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Adriana Freire Nogueira

coordenadora
Adriana Freire Nogueira
coordenadora

Otium et Negotim
Otium et
Negotium
As Antíteses na Antiguidade
Actas de Colóquio

Vega Vega
2007
otium et negotium
Adriana Freire Nogueira
Coordenadora

otium et negotium
As Antíteses na Antiguidade

Actas do IV Colóquio da APEC


(Associação Portuguesa de Estudos Clássicos)

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais


Universidade do Algarve
Faro

z
Lisboa
Vega
2007
Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade
Actas do IV Colóquio da APEC

coordenação
Adriana Freire Nogueira

concepção gráfica
Fernando Bastos

execução gráfica
Vega Editora, Ltda
Alto dos Moinhos, 6-A
1500-459 LISBOA

DEPÓSITO LEGAL
268413/07

Obra publicada com o apoio de:


Fundação para a Ciência e Tecnologia
Governo Civil de Lisboa
Universidade do Algarve

© 2007, Universidade do Algarve


Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
Faro
Apresentação

Otium et Negotium – A s A ntíteses na A ntiguidade

O título deste Colóquio da Associação Portuguesa de Estudos Clássicos (APEC)


foi sugerido pela localização do encontro: a Universidade do Algarve (UAlg).
Zona conhecida essencialmente pelo lazer, o Algarve não é comummente asso-
ciado a estudo e investigação. Contudo, com o tempo, a UAlg foi impondo a sua
presença na comunidade e foi sendo reconhecida como entidade prestigiada em
diversos domínios, alguns mais evidentemente relacionados com o mar, outros
menos evidentes, como os estudos em literatura oral e tradicional e os estudos
teatrais.
Mas existe esta nossa área do saber, também aqui desenvolvida. Ainda que o
grupo de pessoas seja pequeno, não deixa de ter significado, visto estar enquadrado
num contexto maior que é o do trabalho realizado dos Centros de Investigação
alocados nas diversas universidades portuguesas e da acção da própria APEC. O
encontro facultou a compreensão interna e externa de que a actividade desenvolvida
por poucos não é, ipso facto, uma actividade individual(ista) e descontextualizada.
A dicotomia Otium et Negotium pretendeu ser mote para outras dicotomias,
todas elas tão bem expostas nas comunicações apresentadas pelos participantes, ul-
trapassando a esfera estrita deste conceito da cultura romana. É por isso que temos,
neste volume, textos que reflectem dualidades na cultura grega, na cultura latina,
em épocas como a medieval ou a renascentista, em abordagem de género e compa-
ratistas, em temas como a religião, desde a popular à egípcia, em poetas e escritores
contemporâneos.
A internacionalidade do encontro permitiu aos participantes confirmarem que
os seus saberes não estão isolados nem estão a ser desenvolvidos fora das linhas de
investigação que se seguem em outros centros de saber. Participantes de institui-
ções de todo o país, de universidades da Alemanha, Espanha, Estados Unidos da
América, Grécia, Itália e Reino Unido, falaram todos a mesma linguagem, mesmo
quando não usavam a mesma língua.
O Colóquio mobilizou também docentes de Escolas Secundárias da região.
Alguns de Línguas e Literaturas Clássicas, que puderam reencontrar a sua área de
estudos principal, muitos de Línguas e Literaturas Modernas, que ensinam Latim
e que tinham falta destas actividades para os levarem a aproximarem-se mais do
que se faz por este país fora. O encontro foi creditado no CCPFC, proporcionando
créditos nas suas áreas científicas, o que se veio a revelar uma vantagem adicional,
nomeadamente nos concursos para titulares.
A comunidade não académica também não ficou indiferente a este simpósio

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade I


Apresentação

(ao qual não faltou um banquete num restaurante grego). A ACTA (A Companhia
de Teatro do Algarve) fez uma ante-estreia da peça que estava a encenar (Antígona,
num texto adaptado da tragédia de Sófocles e de A Tumba de Antígona, de Maria
Zambrano), no Grande Auditório da Universidade do Algarve, numa das noites
do Colóquio, e o Cineclube de Faro disponibilizou-se para apresentar na sua sala,
no espaço do IPJ da cidade de Faro, a Phaedra, de Jules Dassin, dando estas duas
instituições culturais visibilidade ao que os classicistas do país podem fazer.
A leitura dos textos dirá tudo o resto.
Quero deixar aqui o nosso apreço e respeito pelo malogrado colega Fernando
Patrício Lemos, da Universidade de Lisboa, com quem pudemos conviver mais de
perto naqueles dias.
A todos os participantes, com e sem apresentação de comunicação, devo graças
pela presença no IV Colóquio da APEC e pela paciência em esperar pela saída des-
tas Actas. Não me alongando, quero destacar e agradecer especialmente:
- o apoio constante que nos deu o então Departamento de Letras Clássicas e
Modernas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Al-
garve (hoje Departamento de Línguas, Comunicação e Artes), que quis, por muito
tempo, que o seu nome reflectisse esta área de conhecimento;
- ao Mestre Luís Miguel Pereira, que foi o braço direito da execução da activi-
dade;
- à Professora Doutora Maria de Fátima Sousa e Silva, pelo amparo que deu a
este projecto, desde o embrião.

Adriana Freire Nogueira


Presidente da Comissão Executiva

Faro, Setembro de 2007

II Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


SUMÁRIO

Conferência de Abertura - Roma: a Vencedora Vencida 001


Maria Helena Ureña Prieto

Igualdade na Diferença 009


Manuel Alexandre Júnior

Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim 019


António Rodrigues de Almeida

Nostos and Oblivion in Greek Tragedy 031


Marigo Alexopoulou

Tão contrário a si é o Amor 037


Carlos Ascenso André

A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos 049


Adriano Cordeiro

O Idílio 2 de Teócrito 061


Cláudia Cravo

Deuses Pagãos e Demónios no Cristianismo 067


Paula Barata Dias

Justice and Injustice in the Iliad 079


Katerina Dimopoulou

O  de Aquiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhança 093


Pedro Braga Falcão

Odi et amo: amor e ódio em Catulo 101


José Ribeiro Ferreira

Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno 113


Isilda Leitão
Causídico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial 127
Fernando Lemos

In eo quod amatur aut non laboratur aut et labor amatur 139


Alexandra de Brito Mariano

Lo justo frente a lo legal 149


María José Martín Velasco

Desporto e solidariedade: um testemunho escolar quinhentista 157


António Melo

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade III


indice

O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’ a Criação do Mundo de Torga 171


António Moniz

Ambiguidades no Eutidemo de Platão 187


Adriana Freire Nogueira

Inversão do Papel da Mulher n’As Bacantes de Eurípedes 195


Natália Maria Lopes Nunes

Hélia Correia, o Rancor. Exercício sobre Helena 203


Alessandra Oliveira

Otivm e Negotivm no Tratado da República de Cícero 213


Francisco de Oliveira

A ritual without the time of exception 232


Giovanni Panno

Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre 241
Ioanna Papadopoulou

Real vs Virtual: a aprendizagem das declinações através do Jogo Lingua Latina 253
Luís Pereira

A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras 269


Virgínia Pereira

Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua 287


Enrique Pérez Benito

Representações do Outro: Masculino/Feminino nos Romances Gregos de Amor 301


Marília P. Futre Pinheiro

Clitemnestra, «Mulher de Máscula Vontade» 319


Nuno Simões Rodrigues

Contradicciones Trágicas 327


Lucía Romero Mariscal

Representação retórica da mulher na tragédia grega 337


Vítor Ruas

Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio 351


Antonio Ruiz Castellanos

Gregos versus Egípcios na Alexandria Ptolomaica 367


José das Candeias Sales

Grandeza e Pequenez nas Representações de Eros na Literatura e na Arte 383


Maria Leonor Santa Bárbara

IV Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


SUMÁRIO

Figuras de Antígona : do texto à encenação 395


Ana Clara Santos

Falácias, Antíteses e Paradoxos em Torno de “Ser” e “Existir” 407


José Trindade Santos

Antinomias nas Odes Corais Senequianas 413


Ândrea Seiça

Vida e morte na Helena de Eurípides 421


Maria de Fátima Silva

A construção de modelos educativos na Antiguidade 431


Carmen Soares

Reminiscências de Ritos Agrários Romanos em Festividades Cíclicas no Algarve 439


Lina Soares

Da Antiguidade ao Renascimento 451


Maria Luísa de Castro Soares

Otium e Negotium no quinhentismo português 473


Nair Castro Soares

Between Earth and Underworld: The Case of Aristophanes’ Frogs 493


John Thorburn

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade V


CONFERÊNCIA DE ABERTURA

Roma: a Vencedora Vencida


Maria Helena Ureña Prieto
U. Lisboa

P or volta do ano 14 a. C., Horácio escreveu a Epístola I do Livro II, dirigida ao


Imperador Augusto. Nela gravou para a posteridade uma antítese que define,
resumida e lapidarmente, tudo aquilo que se costuma designar como Civilização e
Cultura Ocidental. Nos versos 156 e 157, escreveu:

Graecia capta ferum uictorem cepit et artes


intulit agresti Latio (…)

É fácil traduzir literalmente estes dois versos:

“A Grécia vencida venceu o seu feroz vencedor


e no Lácio agreste as artes introduziu (…)”.

Tão poucas e simples palavras resumem milénios de história. Não é possível,


numa breve comunicação, pormenorizar o conteúdo riquíssimo de sedução exercida
sobre os Romanos pela língua e cultura gregas e, através delas, em toda a civilização
europeia e na dos países que, noutros continentes, receberam da Europa os funda-
mentos da sua actual vivência civilizacional e cultural.
Limitar-me-ei a evocar brevemente alguns marcos históricos da influência grega
em Roma.
Antes de mais, não posso deixar de assinalar o alfabeto grego que chegou a
Itália por volta de 600 a. C., através dos Etruscos. A famosa inscrição da fíbula de
Preneste (tão falada e tão contestada no séc. XX) foi durante muito tempo o docu-
mento citado para comprovar essa transmissão.
Surpreendentemente, a literatura latina começou com uma tradução da Odis-
seia, escrita no verso latino satúrnio, por Lívio Andronico, Grego originário de
Tarento. Como prisioneiro de guerra, chegou a Roma por volta de 272 a. C. Foi
também tradutor para latim de uma tragédia e uma comédia gregas. Escreveu ain-
da, à maneira grega, um canto coral.
Os autores latinos dos fins do séc. III a. C. e do séc. II a. C., Névio, Énio e Ácio,
tentaram romanizar os temas, sem deixar de dever muito à inspração grega nas suas

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 1


Maria Helena Ureña Prieto

obras teatrais e épicas. Quanto a Plauto e a Terêncio, sabemos que as suas peças são,
na maioria, inspiradas na Comédia Nova grega.
Catão-o-Antigo, conhecido como adversário do helenismo, frequentava, no en-
tanto, no dizer de Plutarco, palestras e teatros gregos na Sicília. Consta até que, na
velhice, se teria aplicado a estudar grego…
E que dizer do chamado “círculo dos Cipiões”? A Grécia só foi definitivamente
conquistada por Roma em 146 a. C., mas, antes disso, Públio Cornélio Cipião
(filho de Cipião-o-Africano) escrevera História em grego, prova de que a cultura
romana, nessa época, já era bilingue. Em 168 a. C., depois da batalha de Pidna,
foi deportado para Roma, entre os reféns gregos, o notável estratego da Liga da
Arcádia, Políbio, que, como preceptor de Cipião Emiliano, escreveu em grego uma
das mais notáveis Histórias de Roma. Junto desta família actuou o filósofo grego
Panécio. Mais tarde, Possidónio havia de consolidar o estoicismo em Roma. E, pos-
teriormente, Lucrécio cantará o epicurismo, que não teve grande sucesso entre os
latinos, embora também Horácio fosse em certa medida epicurista.
Entretanto, como disse, a Grécia foi militarmente vencida em 146 a. C. e com
essa derrota consumou paradoxalmente a sua vitória.
No séc. I a.C., os poetas líricos latinos imitavam os Gregos alexandrinos. Cícero
chamava a este grupo inovador (em que Catulo foi um dos principais figurantes) os
“poetas novos” (neoteroi: Cartas a Ático, VII, 2, 1: poetae noui: De Oratore, 48, 161),
que detestavam o velho Énio. Apodava-os Cícero também de cantores Euphorionis
(Tusculanas, 3, 45), como imitadores fanáticos do alexandrino Eufórion.
Mas eis que falei de Cícero! Várias bibliotecas seriam necessárias (e não apenas
vários livros…) para falar pormenorizadamente da actuação de Cícero como trans-
missor da cultura grega para latim e, através deste, para toda a cultura ocidental.
Em breves palavras lembrarei apenas os aspectos fundamentais que todos conhe-
cem. Através das obras filosóficas de Cícero, a principais doutrinas filosóficas gregas
entraram no património cultural europeu. Ele não falou apenas da história da filo-
sofia grega: adaptou a linguagem filosófica à língua latina e, através dela, a todas as
línguas europeias. As obras ciceronianas em que se nota sobretudo a influência da
filosofia grega são: De Officiis, De Republica (I e II), De Legibus (I). Mas Cícero não
se ficou apenas pela filosofia. Encareceu também o valor da História (De Oratore,
II, 15, 62-63), lição igualmente recebida dos Gregos. Dissertou ainda sobre a me-
lhor forma de Constituição Política (como já fizera Políbio e vários outros autores
gregos, de Heródoto a Plutarco1).
As manifestações de apreço pela Grécia não escasseiam em muitos autores lati-
nos. Seria impossível, nesta breve comunicação, alongar-me em muitas citações so-
bre o assunto. Limitar-me-ei a lembrar um passo significativo de Plínio – o – Moço
1 
Dissertei brevemente sobre a história das teorias respeitantes às várias formas de Constituições políticas em Grécia e
Roma no meu estudo intitulado: “Democracia – a palavra e o conteúdo de Heródoto a Plutarco” (Actas do Congresso
“Plutarco Educador da Europa”, de 11 e 12 de Novembro de 1999, Instituto de Estudos Clássicos e Humanísticos da
Faculdade de Letras de Coimbra. Edição da Fundação Engenheiro António de Almeida, Porto, 2002).

2 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Roma: a Vencedora Vencida

(autor da segunda metade do séc. I d. C.). Numa das suas Cartas, dirigida ao amigo
Máximo, nomeado procônsul da Acaia (designação da Grécia no Império Romano)
escreve (Cartas, 24, 1-4):

“A afeição que tenho por ti obriga-me, não a ensinar-te (pois não tens neces-
sidade de mestre), mas a lembrar-te que tenhas presente e ponhas em prática
o que sabes, sem o que melhor seria não saber nada. Pensa que foste enviado
para a província da Acaia, para o seio e o coração dessa Grécia em que, como
reza a tradição, foram descobertas a civilização, as letras e a própria cultura
de terra; que foste enviado para pôr em ordem as Constituições das cidades
livres; que foste enviado a homens que são homens por excelência, a cidadãos
livres, livres entre todos, que depois de terem recebido esse privilégio da na-
tureza, o conservam pela coragem, pelo mérito, pelas alianças, pelos tratados
e pela religião. Respeita os seus deuses fundadores e os nomes que os deuses
usam na sua língua; respeita a sua antiga glória e até a velhice que é venerável
no homem e sagrada nas cidades. Que junto de ti seja honrada a antiguida-
de, os grandes feitos e até as lendas. Não amesquinhes a dignidade de quem
quer que seja, nem mesmo a vaidade de alguém. Conserva diante dos olhos a
noção que dessa terra é que nos veio o Direito; que é ela que nos deu as nos-
sas leis, não depois de nos ter vencido, mas a nosso pedido; que é em Atenas
que vais entrar, que é Lacedemónia que vais governar e que arrancar--lhes a
última sombra e o nome que lhes resta seria cruel, selvagem, bárbaro.”2

Além deste passo significativo, lembrarei apenas o que todos sabem: o grande
poema épico de Virgílio faz de Eneias, um sobrevivente da guerra de Tróia, o fun-
dador do Império Romano. A epopeia latina está repleta de Homero.
Mas isto não quer dizer que os autores latinos não afirmassem os valores roma-
nos e não defendessem a originalidade romana em diversos sectores da vida pública
e privada. As obras mais notáveis a este respeito são o De Republica e o De Officiis
desse mesmo Cícero que tanto helenizou a cultura romana. Deste último tratado
citarei um passo referente ao conceito de guerra justa praticada pelos Romanos (I,
11, 34-36):

“Pelo que toca ao Estado, devem observar-se acima de tudo as leis da guer-
ra. Pois havendo duas formas de contender, uma pela discussão, outra pela
força, e sendo aquela própria do homem, e esta das feras, tem de se recorrer
à segunda, se não for possível utilizar a primeira. Por este motivo, pode-se
entrar em guerra devido a essa razão, a fim de se poder viver em paz sem
injustiça; porém, uma vez alcançada a vitória, devem deixar-se viver os que
não foram cruéis ou desumanos na guerra, assim como os nossos antepas-

2 
Pline-le-Jeune, Lettres, Tomos I-IV, Paris, Les Belles Lettres.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 3


Maria Helena Ureña Prieto

sados deram o direito de cidade a Tusculanos, Volscos, Sabinos, Hérnicos,


mas destruíram radicalmente Cartago e Numância: quereria eu que não o
tivessem feito a Corinto, mas creio que tinham outro fim em vista, sobre-
tudo a vantagem da localização, não fosse um dia a própria configuração
topográfica incitar a fazer guerra. Em minha opinião deve sempre pensar-se
numa paz que não venha a tornar-se insidiosa. Se nesse ponto me tivessem
obedecido, teríamos agora, se não a melhor das repúblicas, pelo menos algo
dela, que é coisa que já não existe. E, com aqueles que se subjugarem pela
força, é preciso cuidar deles, e aqueles que tenham deposto as armas e se
refugiem na lealdade dos generais, devem acolher-se, ainda que o aríete haja
batido nas muralhas. Neste ponto, de tal modo a justiça teve culto entre
nós que os varões que recebiam em seu poder cidades ou nações vencidas na
guerra ficavam tradicionalmente a ser seus protectores. A verdade é que as
condições da guerra justa estão prescritas de uma maneira mais sagrada no
direito fecial do povo romano. De onde se pode deduzir que não há guerra
justa se não se fizer, ou depois de se ter protestado, ou de a ter previamente
proclamado e declarado.”3

No mesmo tratado ciceroniano são recordados sucintamente (I, 33. 121) os va-
lores dos mos maiorum (isto é, a tradição dos antepassados): justiça, lealdade, libera-
lidade, modéstia, temperança, amor da glória e da virtude (iustitia, fides, liberalitas,
modestia, temperantia, gloria, virtus).
Para concluir as alusões a Cícero, acrescentarei apenas umas curtas linhas do
De Officiis (II, 8, 26-27):

“gosto mais de lembrar factos de outros povos que os nossos. No entanto, en-
quanto era a generosidade que sustinha o império romano, e não a injustiça,
enquanto se fazia a guerra para defender os aliados ou para preservar o poder,
o fim das guerras era suave e a severidade só entrava em cena quando era
necessária; o Senado era o porto de abrigo de reis, povos e nações, e os nossos
magistrados e generais ambicionavam obter um único título de glória, o de
terem defendido as províncias e os aliados com justiça e lealdade. Assim po-
dia chamar-se com mais exactidão protecção do mundo do que império.”

Quanto à tolerância do povo romano para com os vencidos, há testemunhos


dos próprios autores gregos. Por exemplo, Díon de Prusa, escritor do séc. I d. C.,
evoca no Discurso VII (o Discurso Euboico, como tradicionalmente se designa), o
funcionamento de uma assembleia da ilha de Eubeia, que testemunha o respeito
3 
A tradução transcrita é de Maria Helena da Rocha Pereira, em Romana – Antologia de Cultura Latina, 4.ª edição, Uni-
versidade de Coimbra, 2000. Será proveitoso consultar também, da mesma autora, Estudos de História da Cultura Clássi-
ca, II volume. Cultura Romana, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. Nesta obra, além de um estudo sobre
a helenização da cultura romana, há o registo de abundante bibliografia actual, em várias línguas, sobre o assunto.

4 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Roma: a Vencedora Vencida

que o Império Romano mantinha pelas liberdades locais, só intervindo quando os


conflitos se tornavam insanáveis ou quando estavam em jogo questões internacio-
nais. Nessa assembleia funcionavam as regras da democracia directa, como na velha
Atenas, a tal ponto que se regista também a intervenção de demagogos (palavra e
realidade política bem gregas e ainda actuais…)4.
Constantino (em 312 e 321) publicou os decretos de Milão, que autorizaram o
livre culto do cristianismo e de outras religiões, convertendo-se ele próprio ao cris-
tianismo. Em 330 estabeleceu a capital do Império Romano em Bizâncio, dando-
lhe um nome derivado do seu (Constantinopla) e reunindo sob a mesma autoridade
a totalidade do império.
Pela conversão ao cristianismo e pela adopção da antiga Bizâncio helénica como
capital, deu uma demonstração exemplar da capacidade romana para acolher e res-
peitar mensagens de outras culturas.
Mas, ao falarmos de cristianismo, não podemos esquecer que, embora a religião
cristã não seja uma herança grega, a língua grega desempenhou um papel primacial
na sua difusão. Já antes do cristianismo, no séc. III a. C., Ptolomeu Filadelfo, sobe-
rano do Egipto, desejando para a famosa biblioteca de Alexandria uma versão grega
da Sagrada Escritura dos Judeus, encarregou setenta e dois tradutores judeus, vin-
dos de Jerusalém, da execução do trabalho. Com o nome de Setenta (Septuaginta em
latim) ficou designada esta mais conhecida tradução grega do Antigo Testamento.5
No Novo Testamento cita-se o Antigo Testamento geralmente segundo o texto dos
Setenta, embora também haja passos em que se segue um texto hebreu. Os Padres
da Igreja seguiam quase sempre o texto dos Setenta e do mesmo modo procederam
os primeiros tradutores da Bíblia para latim. São Jerónimo (347-420) foi o primeiro
que se serviu do original hebreu.
Este predomínio do grego como língua dos primeiros séculos do cristianismo
deve-se principalmente ao facto de ser o grego a língua mais falada no Mediterrâ-
neo Oriental, sobretudo pelas comunidades judaicas de Alexandria, e também em
vastas zonas do Império Romano e até em comunidades não-latinas estabelecidas
na própria Roma.6
Sabemos que, dos quatro Evangelhos (escritos no I séc.), três foram escritos em
grego (de S. Marcos, S. Lucas e S. João) e só o de S. Mateus teria sido escrito em
aramaico. As Epístolas de S. Paulo foram igualmente escritas em grego, assim como

4 
Sobre este Discurso de Díon de Prusa publiquei um artigo intitulado “Uma novela Ecologista na Grécia Antiga” (Re-
vista Ágora, Universidade de Aveiro, n.º 2, 2000, pp. 33-44).
5 
Sobre os Setenta ver a entrada correspondente no meu Dicionário de Literatura Grega, Lisboa, Verbo, 2001.
6 
Sobre o uso do grego pelas comunidades judaicas no Império Romano, ver: Nuno Simões Rodrigues, Iudaei in Urbe.
Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flávios. Tese de Doutoramento em História da Antiguidade Clássica apresentada à
Faculdade de Letras de Lisboa, Departamento de História, 2004, 918 pp. Informação: Esta tese encontra-se à leitura
nas seguintes bibliotecas: Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca Central da Faculdade de Leras de Lisboa, Biblioteca
do Instituto Clássico André de Resende da Faculdade de Letras de Lisboa, Biblioteca do Instituto de Estudos Clássicos
e Humanísticos da Faculdade de Letras de Coimbra.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 5


Maria Helena Ureña Prieto

os Actos dos Apóstolos e o Apocalipse.


Sem pretender um registo exaustivo das reminiscências da língua grega no cris-
tianismo, lembrarei, contudo, que já na versão grega do Antigo Testamento, aparece
o adjectivo christós com o significado de ungido (o que recebeu a santa unção), e que
no Novo Testamento surgiu Christós, como substantivo, para designar o Ungido do
Senhor, por excelência, o Filho de Deus feito homem (em S. Lucas, 2, 26, encontra-
se a mais antiga abonação do vocábulo grego). A acentuação em português não é
a mesma, como todos sabemos. E sabemos também que de Cristo são derivados
cristianismo, cristão, cristandade, etc. De não esquecer é também que evangelho é
uma palavra grega que significa “Boa nova”. A linguagem diária de todos os povos
ocidentais não conhece outros vocábulos para designar as mesmas realidades histó-
ricas. Esses factos são de tal relevância para história da civilização que não poderia
omiti-los, nem numa breve síntese.
Mas continuemos a acompanhar resumidamente a actuação dos imperadores
romanos depois de Constantino.
Os chamados imperadores filelenos apoiaram a cultura grega, política e econo-
micamente, para além de tudo o que seria de esperar. Marco Aurélio, por exemplo,
reorganizou, em 376, as instituições culturais atenienses, onde iam completar a
sua formação intelectual os jovens romanos. Esse mesmo Marco Aurélio escreveu
em grego os Pensamentos para Si próprio ou Meditações (como costumam traduzir
o título). É um autor latino que, por ter escrito em grego, figura nos Dicionários de
Literatura Grega e não nos de Literatura Latina…
A civilização e a cultura greco-latinas permaneceram através de todas as vi-
cissitudes e mudanças políticas milenárias. Em 395, após a morte do Imperador
Teodósio, o Império Romano dividiu-se em duas partes: o Império do Ocidente e
o Império do Oriente.
Entretanto, vieram através dos séculos dias sombrios. O Império Romano do
Ocidente caiu nas mãos dos bárbaros do Norte em 475. Em contrapartida, nos
princípios do séc. VI, o Imperador bizantino Justiniano mandou proceder à com-
pilação de tudo o que restava do Direito Romano, permitindo a sua perenidade até
aos nossos dias. Devemos também lembrar que a missionação bizantina actuava,
introduzindo, no séc. IX, a cultura bizantina e a religião cristã na Rússia, na penín-
sula balcânica e na Europa Central. O alfabeto cirílico (criado por S. Metódio e S.
Cirilo), o alfabeto greco-bizantino adaptado, é usado na tradução eslava da Bíblia
e dura até hoje.
Em 1204, porém, Constantinopla foi invadida pelos Cruzados que fundaram o
Império Latino do Oriente. O Império Bizantino ganhou de novo algumas forças,
no meio de lutas difíceis, a partir de 1261, ma foi dominado em 1453 pelos Turcos.
E só no início do séc. XIX, com a intervenção de grandes potências europeias (In-
glaterra, França e Rússia) é que a Grécia recuperou a sua independência, atacada e
fragilizada ainda mesmo no séc. XX. É bom não esquecer que a sedução da cultura
grega levou românticos europeus, entre os quais Lord Byron, a lutar pela indepen-

6 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Roma: a Vencedora Vencida

dência da Grécia.
E eis que no séc. XXI, a cultura e a língua gregas permanecem em quase todos
os domínios da vida ocidental. No vocabulário da religião cristã, como já lembrá-
mos. Nas ciências tradicionais quase todo o vocabulário é grego (na Medicina, na
Filosofia, na Teorização Literária, na Gramática, etc.). Na política, o termo demo-
cracia repete-se todos os dias. No desporto, fala-se com frequência em autódromos,
hipódromos e em maratonas. A designação de Jogos Olímpicos consagra os maiores
eventos desportivos mundiais, evocação da velha Olímpia grega, onde se disputa-
vam os exercícios do pentatlo (salto, corrida, lançamento do disco, lançamento do
dardo, luta) e as corridas de carros, cujos vencedores o poeta Píndaro (no séc. V a.
C.) imortalizou nas suas Odes Olímpicas.
Na vida quotidiana, não podemos descer à rua sem encontrar táxis, e semáforos.
Se vamos ao correio, é possível expedir telegramas. Ao virar da esquina, podemos
entrar num fotógrafo ou numa biblioteca. E, na vida doméstica, diária, além do
telefone fixo, dispomos de objectos designados com termos greco-latinos, como o
telemóvel e a televisão. Não podemos esquecer também que a grande manifestação
de arte e de técnica, que se afirmou no séc. XX, assumiu o termo grego de cinema.
Não acabaríamos tão cedo se quiséssemos prolongar estas reminiscências…
E eis que aqui estamos no Algarve (que já foi árabe…) a celebrar antíteses greco-
latinas, carregadas de significado para o nosso pensamento e para a nossa activida-
de.
Horácio tinha razão: Roma, a “vencedora vencida” deu, e espero que dará ain-
da, durante milénios, a lição de respeito pelos vencidos, a capacidade de assimilação
de culturas alheias, contrariando a xenofobia (que também é palavra grega…).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 7


Igualdade na Diferença:
homem e mulher na antiguidade e em gálatas 3:28

Manuel Alexandre Júnior


U. Lisboa
malexandrejr@gmail.com

F ará sentido este tema num colóquio sobre as “Antíteses na Antiguidade”? Amor
e ódio, paz e guerra, justiça e injustiça, palavra e acção, seriam, por certo, op-
ções bem mais óbvias e simples de tratar. Mas, um duplo fenómeno ainda hoje me
intriga: o da condição feminina na antiguidade, e o do fracasso do Cristianismo
em fazer vingar na prática o que se vê acontecer no evangelho e a doutrina apostó-
lica ensina. Não existe, de facto, uma antítese na relação homem/mulher. Mas, na
prática de muitos povos, e não só os menos cultos e civilizados, tal suposta antíte-
se molda consciências e mentalidades, impõe-se no âmbito dos relacionamentos,
descrimina e abala profundamente essa área tão sensível da pessoa e da dignidade
humana.
Tendemos a olhar para a Atenas clássica como o paradigma do progresso sócio-
político e cultural: o berço da democracia, da tolerância, da liberdade de pensamen-
to e expressão. Mas o facto é que a igualdade, como a entendemos hoje, não existia.
Só um número restrito de cidadãos com pergaminhos de ascendência democrática
ou uma situação económica invejável se podia gloriar de exercer os direitos cívicos
em plenitude. E as mulheres, mesmo as oriundas das famílias mais nobres, bem
poucos direitos tinham. A julgar por uma afirmação de Menandro, elas nem sequer
tinham direito à educação. “Ensinar uma mulher a ler e escrever?” Interroga-se e
acrescenta: “Que coisa terrível! É como instilar mais veneno numa cobra”.
Como justamente observa Cheryl Glenn, citando Stallybrass, “nos últimos dois
mil e quinhentos anos da cultura ocidental, a mulher ideal tem sido disciplinada
por códigos de cultura que requerem boca fechada (silêncio), corpo coberto (casti-
dade), e vida enclausurada (circunscrição doméstica)1. Mas houve sempre nobres
excepções que culminam com o ensino de Cristo e a prática do evangelho: mulhe-
res que ao longo da história da cultura fizeram a diferença na filosofia, na retórica,
na literatura, na religião, na sociedade e na educação.

1. Condição da Mulher na Antiguidade Greco-Romana


Na antiguidade, o homem e a mulher estavam separados por um mundo de
diferenças. A oposição entre o masculino e o feminino era abismal. Os homens
detinham a cidadania, faziam as leis, determinavam a verdade filosófica, os valores
éticos, os cânones literários, a teoria e a prática na arte da comunicação. As mulhe-
1 
Cheryl Glenn, Rhetoric Retold: Regendering the Tradition from Antiquity Through the Renaissance, Carbondalle: Sou-
thern Illinois University Press, 1984, p. 1. Cf. Peter Stallybrass, “Patriarchal Territories: The Body Enclosed,” in Marga-
ret W. Ferguson et al. (eds.), Rewriting the Renaissance, Chicago: University of Chicago Press, 1986, pp. 123-144.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 9


Manuel Alexandre Júnior

res, por seu turno, eram praticamente destituídas de direitos e viam a área da sua
acção social circunscrita ao domínio das relações familiares e de amizade entre os
seus mais próximos. Excluídas da actividade social, económica e política, as mu-
lheres destinavam-se apenas ao casamento, à vida doméstica e à criação dos filhos2.
Quando Aristóteles afirma que o homem é por natureza superior à mulher3, e que
são mais nobres e belas as suas virtudes e acções4, está simplesmente a representar
um estado generalizado de consciência; estado que se perpetuou por mais de dois
milénios e induziu o homem a ver na mulher um ser naturalmente inferior e dele
dependente. Foi sacrificada por esta ideologia dominante que a mulher se viu des-
tituída de todos os seus direitos fundamentais. Sem espaço algum na vida pública,
e sem a mínima hipótese de acesso ao poder, ela se viu abafada e silenciada5. Não
tinha nome, não tinha estatuto, não tinha sequer direito à cultura e só em ca-
sos muito especiais à cidadania. E essas diferenças de tratamento não se baseavam
primariamente no sexo. Segundo a tese defendida por Fiorenza, “os antigos não
precisavam de se escudar em factos de diferença sexual para sustentar a tese de que
as mulheres eram inferiores aos homens e a eles sujeitas”6. O que determinava a
diferença entre o homem e a mulher, acrescenta, era o estatuto social e o lugar que
cada um ocupava na sociedade, e não o que organicamente os distinguia. Então, era
o género como categoria cultural que determinava a diferença de tratamento. Mas,
com o iluminismo, radicalizou-se a noção de dois sexos opostos, e passou a susten-
tar-se que é nessa oposição biológica incomensurável que se baseiam as diferentes
funções que homens e mulheres desempenham com suas vidas no plano da vida
económica, política, cultural, social e relacional. A mulher não é mais vista como
um ser humano inferior, mas como uma pessoa totalmente diferente do homem;
diferente, mas, mesmo assim, ideologicamente descriminada.
Esta foi a regra, mas houve, felizmente, bem nobres excepções; mulheres que
desafiaram a ideologia do silêncio feminino e romperam as amarras de uma menori-
dade desajustada e cruel, fazendo com que a sua voz isoladamente soasse na poesia,
na filosofia, na palavra profética e no deslumbramento da experiência religiosa. Safo,
Teano, Aspásia, Hiparquia e Diotima entre os gregos, Hortênsia, Fúlvia, Amásia
e Semprónia, entre os romanos, são apenas nove das muitas figuras femininas que
estoicamente resistiram contra a corrente dos tempos pela afirmação do valor e dig-
nidade da sua condição real.
Entre as primeiras, Safo de Lesbos foi a única mulher da antiguidade que pro-
2 
Ibid., pp. 23-24. “A Greek marriage was a transaction whereby a woman’s father lent her out to the head of another
oikos, perhaps meeting her husband for the first time at their marriage, so that she might perform for the latter the
functions of wife and mother” (p. 24).
Aristóteles escreve que, “entre os sexos, o macho é por natureza superior e a fêmea inferior; o macho manda e a fêmea
3 

obedece” (Política 1.2.12).


4 
Aristóteles, Retórica 1.9.15 (1367a).
5 
Citando Sófocles, Aristóteles escreveu que, ao contrário do homem, “o silêncio dá graça à mulher” (Política 1.5.9).
6 
Elizabeth Schüssler Fiorenza, Rhetoric and Ethic: The Politics of Biblical Studies, Minneapolis: Fortress Press, 1999,
p. 151.

10 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Igualdade na Diferença

duziu uma obra literária em nada inferior à mais bela obra poética dos melhores
escritores do sexo masculino. Platão invocou-a como a décima musa, Aristóteles
honrou-a como o expoente máximo de sabedoria, e Estrabão reconheceu nela uma
maravilha entre as mulheres. No número dos discípulos de Pitágoras que se dedi-
caram à filosofia e ao bem da educação e da cultura, contavam-se também muitas
mulheres. Pela sua escola, que dois séculos antes de Platão fora imortalizada por
visar a educação do homem total e se fundar no princípio de igual oportunidade
para ambos os sexos, passou uma mulher excepcionalmente culta chamada Teano.
Referida elogiosamente por Diógenes Laércio e Porfírio7, Teano contribuiu extraor-
dinariamente com suas cartas para a formação moral e espiritual de outras mulhe-
res, embora defendendo uma postura de moderação e ordem social, respeitando as
leis naturais de hierarquia no âmbito da família e do matrimónio. Diotima, mulher
pitagórica exaltada pela sua virtude, eloquência e sabedoria no Simpósio de Platão,
foi mais uma nobre excepção às mulheres excluídas da vida social e intelectual na
antiguidade helénica. Fosse ela uma figura histórica ou literária, o facto é que repre-
sentou a influência de uma mulher no pensamento filosófico, retórico e metafísico
de Sócrates e Platão8. Hiparquia nasceu na Trácia, no seio de uma família aristo-
crática ateniense em 346 a.C. Conforme Diógenes Laércio a retrata, lutou desde
muito cedo por se inserir em círculos intelectuais masculinos, e conseguiu-o em
resultado do seu convívio e aprendizagem com Crates, filósofo cínico brilhante que
se empenhara na disseminação dos ideais de justiça e igualdade. Desta sua relação
com o mestre resultou uma paixão tão forte que, vencendo todas as barreiras e re-
nunciando a todas as vantagens da sua nobre estirpe, acabou por unir a sua vida à
dele crescendo em conhecimento e sabedoria. Na sua luta constante pelos ideais da
equidade, da justiça e dos direitos humanos, Hiparquia passou a sua vida a enco-
rajar a união das mulheres contra todos os tipos de tirania e injustiça, reclamando
os seus direitos de cidadania em áreas tão diversas como a política, a administração
pública, o comércio, as artes e as humanidades9. Uma outra mulher que na Grécia
clássica também não ficou circunscrita à esfera da vida doméstica, antes sobremo-
do se distinguiu na vida pública, foi Aspásia10. A sua reputação na filosofia e na
retórica foi testemunhada tanto por Platão e Xenofonte como por Cícero, Plutarco
e Ateneu. Plutarco, por exemplo, diz que a sua sensibilidade política foi altamente
apreciada por Péricles, que não só se apaixonou por ela e a tomou por companhei-
7 
Este último, na sua Vida de Pitágoras.
8 
Cf. Platão, Banquete 207 c.
9 
Cf. Maria Jamil Fasolo, “Hiparchia – The World’s First Liberated Woman”, http://ancienthistory.about.com /library/
bl/uc_fasolo1b.htm, 2002. Apaixonada pelo filósofo e pela sua doutrina, Hiparquia arriscou tudo. Contrariando as
pressões da família, disse: “Eu honro-vos como uma filha deve fazer, mas porei termo à vida se não consentirem o meu
casamento com Crates”. E, respondendo ao noivo que a pediu em casamento dizendo que nada lhe podia dar como
marido a não ser a filosofia e toda a satisfação que ela proporciona, respondeu: “Tens por mim um amor tão grande e
profundo como o que no íntimo eu sinto por ti? Se sim... então serei tua para sempre... Pois o que eu busco não é riqueza
material, mas as riquezas do espírito que só tu me podes ensinar”.
10 
Cheryl Glenn, op. cit., p. 36-37.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 11


Manuel Alexandre Júnior

ra11, como também se deixou seduzir pela sua arte na composição dos discursos que
mais o notabilizaram, nomeadamente a oração fúnebre12. O reconhecimento da sua
sabedoria e eloquência foi tão generalizado na antiguidade, que Filóstrato diz haver
sido ela quem afinou a língua de Péricles na imitação de Górgias – o mesmo Péricles
que Sócrates havia proclamado como o mais respeitado e perfeito orador do seu
tempo13. A formação retórica, filosófica e sofística de Aspásia, a sua sensibilidade e
competência política, e a influência poderosa que exerceu a estes vários níveis sobre
Péricles consagraram-na como membro activo e eficaz do mais distinto círculo in-
telectual de Atenas14.
A mulher romana, como a grega, foi vítima das mesmas vicissitudes. Poderá tal-
vez dizer-se que a condição da mulher melhorou um pouco sob o império romano15,
mas porque ela não tinha poder nem estava inserida na vida pública, a sua auto-
nomia era pouco mais do que ilusória16. De acordo com a lei romana, as mulheres
transitavam da autoridade dos pais para a dos maridos, e até uma viúva idosa e rica
precisava de um homem para lhe administrar os bens. A única vantagem de trata-
mento que elas poderiam ter devia-se a um mais elevado conceito do casamento, do
lar e da família na sociedade romana. A matrona romana de elevada estirpe chegou,
talvez por isso, a ver alargadas as áreas da sua competência, sobretudo na educação
dos filhos e nas decisões relativas ao seu casamento. As mais cultas vieram mesmo a
distinguir-se na vida pública; sempre, porém, em áreas definidas e contornadas pelo
poder masculino17. Bruce Winter argumenta que no século I a.C., um novo tipo
de mulher começou a surgir na cena social. Mulheres promíscuas, apaixonadas e
aculturadas imitavam a conduta vanguardista da elite feminina de Roma, especial-
mente as mulheres da casa imperial; mulheres que desafiavam a prática tradicional,
forçando a sua participação na vida pública, libertas de constrangimentos morais, e
sendo muito ousadas na maneira de se vestirem e apresentarem em público. As que
mais se distinguiram, transpondo as elementares fronteiras da sua condição, vieram
a sofrer na carne os efeitos da tal ousadia, acabando por ceder ou se mostrar extre-
mamente vulneráveis perante os assaltos desferidos contra a sua honra, a sua sexua-
11 
Plutarco, Vidas dos Nobres Gregos e Romanos, 200.1.
12 
Platão, Menexeno, 236 b.
13 
Fedro 269e – 270a.
14 
Cf. Sheryl Glenn, op. cit., p. 43.
15 
Gillian Clark (Women in Late Antiquity: Pagan and Christian Life-Styles, Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 71),
observa, por exemplo, que, em contraste com o Corpus Hipocrático, “os textos médicos da antiguidade tardia, à seme-
lhança dos do século I e II [d.C.], tendem a enfatizar a semelhança entre o homem e a mulher”. Cf. David Constan,
“Women, Ethnicity and Power in the Roman Empire”, Proceedings of the Second Conference on Feminism and the Classics,
publicadas em Diotima: Materials for the Study of Women and Gender in the Ancient World, 2000. http://www.stoa.org/
cgi-bin/text?doc=Stoa:text:2002.
16 
Cf. Jâmblico, Babylonica (Helmar Habrich (ed.), Iamblichi Babyloniacorum Reliquiae, Leipzig: Teubner, 1960, pp.
27-29. Plutarco, em Virtudes das Mulheres 242 F, afirma que “a virtude da mulher e do homem é uma e a mesma”; mas,
vejam-se casos de virtude feminina em As Mulheres Etruscas 247 A-C, onde parece fazer-se a distinção entre virtude
activa e passiva para justificar a das mulheres.
17 
Sheryl Glenn, op. cit., p. 73.

12 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Igualdade na Diferença

lidade e as suas margens de influência. Foi a presença desta nova classe de mulheres
na sociedade que provocou, não só o surgimento de leis relativas ao casamento e à
forma de apresentação da mulher em público, mas também uma nova ênfase entre
os filósofos sobre a necessidade de se regressar à prática das virtudes cardeais, em
especial a swfrosu n/ h18. Mas terá também provocado atitudes perversas como a
inveja, a calúnia, a injúria e a infâmia, sentimentos que injustamente acabavam por
denegrir até mesmo a imagem de mulheres cujo valor as distinguia na sociedade e
cultura do seu tempo19.

2. Condição de Igualdade Reconhecida e Afirmada no Evangelho


Também não era muito diferente a condição da mulher na sociedade judaica do
tempo de Cristo. Mas os evangelhos reflectem uma mudança radical de mentalida-
de que sugere a instauração de uma nova ordem fundada no princípio da igualdade
em termos totalmente inesperados para a época. Atenta aos vários núcleos narrati-
vos do Evangelho Segundo Marcos, Marie Sabin verifica a forma como as mulheres
são tratadas na sua relação com os discípulos de Jesus20. No início do seu ministério
(1-7), são descritos três milagres de cura – um endemoninhado, a sogra de Pedro e
um leproso. Num tempo em que, à semelhança dos leprosos, as mulheres se viam
confinadas às áreas mais exteriores do templo e só eram socialmente reconhecidas
pela sua relação com os homens – os pais ou os maridos – Jesus cura uma mulher,
situada no meio, entre um endemoninhado e um leproso, pegando-lhe ritualmente
na mão e erguendo-a. Numa sequência vocabular impregnada de significado teo-
lógico, a sogra de Pedro é curada e o efeito da sua cura é duplo: ela é libertada da
sua enfermidade e começa a agir como um dos seguidores e imitadores de Jesus
exercendo a função de uma verdadeira diaconia 21.
Também no capítulo 5, igualmente organizado em torno da cura de três pesso-
as consideradas impuras – um gentio possuído por espíritos imundos, uma mulher
18 
Bruce W. Winter, Roman Wives, Roman Widows: The Appearance of New Women and the Pauline Communities, Grand
Rapids: Eerdmans, 2003, capítulos 2-4: “The Appearance of New Wives”, “New Wives and New Legislation”, e “New
Wives and Philosophical Responses”.
19 
Jennifer W. Knust, na recensão que faz da obra de Bruce Winter (ibid.), observa que ele e outros autores – consultem-
se Averil Cameron e Kate Cooper (The Virgin and the Bride: Idealized Woman in Late Antiquity, Cambridge: Harvard
University Press, 1996), Catharine Edwards (The Politics of Immorality in Ancient Rome, Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1996), e Amy Richlin (The Garden of Priapus: Sexuality and Aggression in Roman Humor, New Haven: Yale
University Press, 1983) – demonstraram que “representations of women, including those found in Roman legal sources,
the writings of Greco-Roman moralists, popular narrative, historiography, encomia, and memorials, were designed to
communicate information about the men, families, and communities with which these women were associated…The-
refore, though there may well have been changes in women’s lives and expectations during the first-century C.E., it is
difficult to determine how much of the discourse involving “new women” can be attributed to their actual “avant-garde
behaviour” (to adopt a term frequently employed by Professor Winter) and how much to the competitive machinations
between rival groups within the empire, all of which were vying for status and legitimacy, in part, by advertising their
commitment to the chastity of ‘their’ women” (recensão publicada na Review of Biblical Literature, pela Society of Bi-
blical Literature 6, August 2004, p.3).
20 
Marie Sabin, “Women Transformed: The Ending of Mark in the Beginning of Wisdom”, Cross Currents, 48:2, 1998.
http://www.crosscurrents.org/sabin.htm, pp. 1-15.
21 
Passou imediatamente a servi-lo (diakoneu w
/ ).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 13


Manuel Alexandre Júnior

com um fluxo menstrual por mais de doze anos, e uma criança defunta – a acção
libertadora de Jesus tem implicações que ultrapassam o milagre. Também aqui a
história central é a de uma mulher considerada impura 22. Em vez de condenação e
exclusão, ela é objecto de especial cuidado. Até porque, se a mulher do primeiro ca-
pítulo é recipiente passiva da cura, esta mulher toma a iniciativa: aproxima-se, pensa
no que vai fazer (“se eu ao menos tocar nas suas vestes, serei curada”), e responde
com temor e fé, em adoração, às palavras de Jesus. Esta mulher, embora não fosse
uma discípula, agiu como tal, crendo nele e passando a segui-lo.
Mais adiante, no capítulo 7, estamos na presença de uma mulher que, a par
de ser mulher, é gentílica ou pagã, e tem uma filha possessa do demónio. Embora
combinando três formas distintas de impureza, também viu a sua petição atendida
na libertação da filha. Contrariamente à tradição dos judeus, a postura de Jesus
em todos estes casos não é de exclusão mas inclusão, e a sua abordagem não é de
condenação mas transformação e libertação. Independentemente das fronteiras que
as separavam e dos respectivos graus de impureza, todas estas mulheres receberam
a dignidade da fé e do ministério23.
Na narrativa da paixão (14-16), verificamos que as mulheres se tornam ainda
mais visíveis no núcleo dos discípulos de Jesus, por contraste com os apóstolos entre
os quais se conta um que o trai, outro que o nega, outros ainda que adormecem e
dele se afastam no auge da sua agonia. O único gesto de fé e de honra em toda a
narrativa foi a unção de Jesus por uma mulher, e este gesto sugere o cumprimento
simbólico de uma real função apostólica ligada à sua paixão e morte24. Além disso,
Marcos observa, no final da cena da crucificação, que enquanto os apóstolos se
afastaram do quadro das operações em que se deu a morte e sepultamento de Jesus,
as mulheres mantiveram-se em cena e permaneceram vigilantes sendo também as
primeiras testemunhas da ressurreição25. Nas palavras de Sabin, “o que é notável
nestas mulheres simples não é quem elas eram, mas o que fizeram. E, nas palavras da
narrativa marcana, o que elas fizeram foi agir como seguidoras fiéis (i.e., discípulos),
como servas (i.e., ministros), e como as testemunhas discipulares que ungiram seu
corpo (i.e., apóstolos)”26. De marginais e excluídas, no ministério de Jesus as mu-
lheres transformaram-se em discípulas, diaconisas e modelos de fé perfeitamente
integradas no testemunho do reino de Deus. Os apóstolos foram chamados a seguir
Jesus (Marcos 1), a tomar a sua cruz (Marcos 8), a seguir o seu exemplo como servos
de todos (Marcos 11), a preparar-se para a sua morte e vigiar com ele na sua agonia

No judaísmo antigo, a mulher era considerada impura durante o tempo da sua menstruação, e os profetas usavam essa
22 

imagem como metáfora do povo de Israel em estado de impureza pela sua idolatria.
23 
Marie Sabin, op. cit., p.7.
24 
Marie Sabin comenta o significado teológico deste acto referindo-se ao óleo trazido num vaso de alabastro, ao seu alto
valor, e ao seu perfume, representando as especiarias que as mulheres mais tarde iriam levar ao túmulo de Jesus e simbo-
lizando a sua morte: o corpo de Jesus quebrantado na cruz do calvário e o seu sangue derramado (op. cit., pp. 5.7).
25 
As mulheres referidas são Maria Madalena, Maria mãe de Tiago, e Salomé.
26 
Marie Sabin, op. cit., p. 8.

14 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Igualdade na Diferença

(Marcos 13-14), a dar testemunho do reino de Deus e também a curar os enfermos


ungindo-os com óleo (Marcos 6): falharam, porém, em todas estas coisas, ao passo
que as mulheres que se envolveram no ministério de Jesus as cumpriram27.
À semelhança de Marcos, também os demais evangelistas põem em evidência
o papel dinâmico e igualitário das mulheres na comunicação da mensagem cristã.
Na maior parte dos casos em que uma acção, uma cura, uma expressão de fé ou
um exemplo em parábola é atribuído a um homem, Lucas, por exemplo, avança
também o testemunho de uma mulher, deixando perceber de forma mais ou menos
explícita a igual dignidade de ambos28. Segundo Jane Kopas, este fenómeno é veri-
ficado numa série de episódios e de curas em que homens e mulheres se referem aos
pares com referência explícita ao seu igual valor29. Mas o que mais nos toca nesta
permanente demonstração de igualdade, é o facto de um grupo de mulheres acom-
panhar Jesus e os doze apóstolos, sustentando financeiramente o seu ministério de
pregação e ensino (8:1-3).30 Também, na grande viagem de Jesus para Jerusalém31,
as mulheres são mencionadas numa série de episódios altamente significativos. O
primeiro é a história de Marta e Maria32, tantas vezes referida como evidência da
superioridade da vida contemplativa sobre a activa, tem sido ultimamente enten-
dida como uma indicação clara de que Jesus encoraja e recomenda a educação das
mulheres ou, no mínimo, a sua clara admissão no núcleo dos seus discípulos33. O
segundo é a resposta de Jesus à mulher que se destacou da multidão e exclamou:
“Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram!” (11:27-
28); resposta em que Jesus parece corrigir duas ideias erradas: que a mera relação
familiar transmite alguma bênção especial, seja ela por descendência física, seja por
vinculação discipular a Jesus; e que a condição ou dignidade da mulher deriva da
sua relação com o marido ou os filhos. O terceiro episódio é a cura de uma mulher
enferma na sinagoga, no dia do sábado, perante o espanto e a indignação do próprio
oficial, e a afirmação de que também ela é uma filha de Abraão ultrapassa em digni-
dade o imaginável (13:10-17). E o último retrata as mulheres que foram as primeiras

27 
Ibid., p. 11.
28 
Cf. Jane Kopas, “Jesus and Women: Luke’s Gospel”, Theology Today 43:2, 1986, p. 192.
29 
Nas promessas feitas a Zacarias e Maria, o primeiro põe em causa a promessa do anjo e fica mudo, a segunda crê,
interroga-se como pode ser isso, uma vez que é virgem, e é altamente favorecida e abençoada. No cântico, o Magnificat
(EvLuc.1:46-56), Maria celebra a solidariedade de todos os que buscam a justiça, em especial as mulheres que partilham
da sua esperança. A viúva de Naim, classe das mulheres mais oprimidas e negligenciadas da sociedade, recebeu de volta
a vida do seu filho, graças a um acto singular de compaixão (EvLuc. 7:11-17). A mulher pecadora, numa atitude humilde
de arrependimento, ungiu os pés de Jesus e lhos enxugou com os seus cabelos, em claro contraste com a atitude arrogan-
te do fariseu que convidara Jesus para jantar (EvLuc.7:36-50). Por isso os seus pecados lhe foram perdoados.
30 
“Mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos, e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual
saíram sete demónios, e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Susana e muitas outras, as quais lhe prestavam
assistência com os seus bens” (EvLuc. 8:1-3).
31 
Viagem que, segundo Kopas, nos dá a estrutura da apresentação do compromisso de Jesus com a sua missão (op. cit.,
p.198).
32 
Apenas registada neste evangelho (EvLuc. 10:38-42).
33 
Loc. cit.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 15


Manuel Alexandre Júnior

a receber a mensagem da ressurreição e a cumprir a função discipular de transmitir


a boa nova aos outros; como que a sugerir que foram elas também, por força da sua
sensibilidade e integridade espiritual, os primeiros e mais fiéis discípulos da nova
dispensação.

3. Igualdade na Diferença em Gálatas 3:28


Uma definição de igualdade que não admite a diferença acaba por legitimar
a desigualdade em nome da uniformidade34, pois toma por modelo o mais forte e
se presta a servir as suas causas. Mas é possível haver igualdade na diferença, pelo
facto de a diferença se poder também compreender como variedade, multiplicidade
e complementaridade. Dos três modelos de sexualidade sugeridos pela experiência
humana35 – o modelo de exploração, em que o homem domina a mulher, dela tira
proveito e a explora; o modelo de androginia ou unissexo, em que a sexualidade é
uma convenção arbitrária, a noção do masculino e feminino são mais ou menos
permutáveis acabando por se explorar mútua e reciprocamente, e qualquer forma de
prazer sexual é aceitável justificando-se toda a sorte de experiências sejam elas homo
ou heterossexuais, masoquistas ou sado-masoquistas, pedofilíacas ou zoofilíacas; e
o modelo de complementaridade, em que o masculino e o feminino mutuamente
se satisfazem e completam como base inesgotável de apoio e cooperação – só este
último nos parece responder com justiça e equidade à verdadeira natureza da alma
humana, e só este lapidarmente interpreta o sentido último de Gálatas 3:28.
É esta mensagem de igualdade na diferença justificada pela diversidade e com-
plementaridade que Paulo proclama em Gálatas 3:28. Inserida nos três pares de an-
títeses – judeu/gentio, escravo/livre, homem/mulher – esta última oposição reveste-
-se de um significado especial por aparentemente se inserir no concerto abraâmico
da (Gén. 17:9-14) circuncisão, em que só o homem tem a possibilidade de se tornar
um verdadeiro israelita. O Cristianismo, porém, fez novas todas as coisas ao desva-
lorizar a circuncisão na carne e colocar homem e mulher sob a mesma necessidade
de uma real circuncisão da alma, a ponto de não haver mais distinção entre eles. Em
Cristo, a igualdade ontológica, tão posta em causa tanto no mundo greco-romano
como no judaico, foi restaurada pelo novo concerto da graça 36. Quando Paulo diz
que, “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem e mulher, pois todos
sois um em Cristo Jesus”, está a mostrar que as diferenças de raça, condição social

34 
“O conceito clássico de igualdade remonta a Aristóteles, que exige que iguais se tratem como iguais e os desiguais de
forma diferente... Esta definição aristotélica de igualdade produziu desigualdades consideráveis cujo padrão e tertium
comparationis para o ser humano tem sido – e ainda é – o homem culto de elite abastada, o senhor, o mestre, o pai de
família. Ele é a medida para o que significa ser humano; é ele que define quem e o que é igual e quem portanto pode
esperar direitos iguais, e quem e o que é desigual e deve por conseguinte ser tratado diferentemente” (Elizabeth Schüssler
Fiorenza, op. cit., p. 158).
35 
Paul C. Vitz, “The Father Almighty, Maker of Male & Female”, http:/www.paulvitz.com/fatherhood2. html, pp.
3-5.
Cf. Don Garlington, “[Corpus-Paul] Martin on Galatians”, http://lists.ibiblio.org/pipermail/ corpuspaul/20030709/...,
36 

pp. 1-2.

16 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Igualdade na Diferença

ou género de modo algum comprometem semelhantes direitos de oportunidade


política, social, vocacional e espiritual, antes se cumprem na perfeita igualdade de
dignidade e valor. Diferença no género e no sexo, mas igualdade de capacidade,
competência e dignidade no exercício dos mesmos direitos, liberdades e garantias.
E, uma vez que este último par constitui uma alusão à história da criação no livro
de Génesis37, ele serve também de paradigma para a interpretação dos outros dois.
Ao invés de negar a realidade ou importância de diferenciação sexual, Paulo está
aqui a mostrar como diferentes tipos de pessoas se podem identificar e formar uma
unidade, a ponto de constituírem família e se tornarem os dois uma só carne38.
Embora diferentes, o homem e a mulher são interdependentes; pois se, como diz
em I Cor. 11:11, “a mulher foi feita a partir do homem, também agora o homem é
nascido da mulher”.
Como acabámos de ver, a visão que Cristo e o ministério apostólico nos dão
da mulher é muito diferente da que ainda hoje algumas franjas do Cristianismo
nos transmitem. Nas suas cartas, Paulo saúda e trata respeitosamente as mulheres.
Preza-se de as ter como cooperadoras39, referindo inclusivamente uma como diaco-
nisa40 e outra como apóstola41. O papel da mulher nas igrejas que se reuniam em
casas foi muito importante, pois em muitos casos eram elas que abriam as suas por-
tas à igreja e participavam nos actos de culto não só pela oração, mas também com
a palavra profética e os seus bens42. A par dos muitos exemplos que temos em Actos
e nas epístolas paulinas, é paradigmático o caso de Tecla – uma jovem aristocrata
de existência histórica ou criação literária – que assistiu ao ensino de Paulo, aderiu
à fé e optou por uma vida de renúncia total para se dedicar à obra missionária43.
Trocando o otium da vida passada pelo negotium do reino de Deus, Tecla veio com
37 
Atente-se em Génesis 1:26-27 para a relação singular/plural e homem/mulher na descrição do ser humano como
imagem de Deus: “Então disse Deus: ‘Façamos o homem (singular) à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e
tenham eles (plural) domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a
terra e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra’. Assim criou Deus o homem (singular) à sua imagem, à imagem
de Deus o criou (singular); homem e mulher os (plural) criou”.
38 
Pamela Eisenbaum, “Is Paul the Father of Misogyny and Antisemitism?” http://www.crosscurrents.org/ eisenbaum.
htm, p. 11.
39 
Saúda Priscila, Júnia, Júlia, Maria, Pérside e a irmã de Nereu, que trabalharam e viajaram como missionárias, jun-
tamente com seus maridos ou irmãos (Romanos 16:3,6,7,12,15). Evódia e Síntique são chamadas suas colaboradoras no
evangelho (Filipenses 4:2-3).
40 
A irmã Febe, que exerce a diaconia na igreja de Cencreia (Romanos 16:1).
Louva Júnia que, sendo notável entre os apóstolos, fora presa por amor da obra que abraçara juntamente com o seu
41 

marido (Romanos 16:7).


42 
As comunidades cristãs primitivas não tinham templos, antes se reuniam em casas não só pelo facto de o Cristianismo
não ser legalmente reconhecido pelo império, mas também porque como igreja perseguida não tinham recursos. Paulo
refere-se a mulheres que eram líderes em algumas dessas igrejas: Afia em Filémon 2, e Priscila em I Coríntios 16:19.
Outras, que ministravam a igrejas reunidas em suas casas, foram Lídia de Tiatira (Actos 16:15), e Ninfa de Laodiceia
(Colossenses 4:15).
43 
Depois de receber o ensino apostólico da parte de Paulo e ouvir o apelo da sua pregação, Tecla deixou o seu noivo,
resistiu aos apelos da família que inclusivamente a ameaçou com a prisão e a morte, renunciou a todos os seus bens e,
não obstante as ameaças de violação, prostituição e martírio, não só preservou a sua fé e a sua castidade, como também
se transformou numa missionária inteiramente dedicada à causa do evangelho de Cristo.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 17


Manuel Alexandre Júnior

a sua vida a inspirar muitas outras mulheres a servir em várias frentes a causa do
evangelho.
O mundo poderia ser hoje bem diferente e o equilíbrio relacional entre o ho-
mem e a mulher mais nobre e justo se, na prática cristã, se tivesse seguido a doutrina
de Cristo com todas as suas consequências sociais e humanas. Mas, à medida que
o Cristianismo se foi instalando e o ministério pastoral evoluiu da sua simplicidade
original para uma hierarquia episcopal masculina, a missão da mulher foi-se apa-
gando e a consciência da sua dignidade diminuindo. Só assim se compreende que
figuras tão distintas da Igreja como Santo Agostinho e Tomás de Aquino se tives-
sem identificado teologicamente mais com a teoria filosófica de Aristóteles sobre a
mulher do que com os ensinamentos de Jesus Cristo, o Senhor da Igreja.

18 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Palavras Longas e Palavras Curtas em L atim
António Rodrigues de Almeida
U. Lisboa
aralme@sapo.pt

A dimensão das palavras latinas é muito diversificada. Se a medirmos em nú-


mero de letras, ela vai de 1 a 23 (Gradenwitz) ou 27 letras (Busa). Na pre-
sente comunicação, é estabelecido o contraste entre as palavras muito pequenas e
as palavras muito grandes, tendo em conta o número de entradas no léxico (O.
GRADENWITZ, Laterculi uocum Latinarum e R. BUSA, Totius latinitatis lem-
mata), o significado, o valor estilístico, o uso nos autores (Plauto, Catão, Cícero e
Vergílio), a cronologia, a sua proveniência indo-europeia (J. POKORNY, Indoger-
manisches etymologisches Wörterbuch) e a sua permanência nas línguas românicas
(W. MEYER-LÜBKE, Romanisches etymologisches Wörterbuch). Serão indicadas as
características básicas (formais, semânticas e de uso) de cada um dos dois grupos
considerados isoladamente e, no seu conjunto, em oposição ao grupo das palavras
de extensão média.
Nesta comunicação, começaremos por definir o corpus lexical e procuraremos,
depois, responder sucintamente às seguintes questões:
O que se entende por dimensão das palavras?
Qual a dimensão das palavras latinas?
O que se deve entender por palavras muito curtas e por palavras muito longas?
O que se deve entender por palavras de dimensão média?
Qual a relação entre a dimensão das palavras e a sua cronologia?
Qual a relação entre a dimensão das palavras e a sua estrutura formal?
Qual a relação entre a dimensão das palavras e o seu significado?
Qual a relação entre a dimensão das palavras e a sua frequência no léxico?
Qual a relação entre a dimensão das palavras e a sua frequência de uso?
Qual a relação entre a dimensão das palavras e o seu uso literário, exemplificado
em Plauto, Catão, Cícero e Virgílio?

Corpus considerado
Léxico latino (LL) desde os primeiros documentos até ao fim da Antiguidade
(52309): em Gradenwitz.
Léxico latino vindo directamente do indo-europeu (IE/L) (4321): em Pokorny.
Léxico latino transmitido às línguas românicas (L/LR) (6481): em Meyer-
Lübke.
Léxico de Plauto (8303): em Maniet.
Léxico de Catão (3287): em Purnelle.
Léxico de Cícero (10014): em Laurand.
Léxico de Virgílio (5831): em Wetmore.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 19


António Rodrigues de Almeida

O estabelecimento da lista de palavras latinas desde os primeiros documentos


até ao fim da Antiguidade, a partir de dicionários como os de Forcellini, Lewis
and Short, Gaffiot, Georges, é uma tarefa longa e fastidiosa. Hoje dispomos da
lista correspondente ao de Forcellini e a correspondente ao de Georges, elaboradas
respectivamente por Busa e por Gradenwitz, ambas apresentando as entradas orga-
nizadas alfabeticamente do princípio para o fim e do fim para o princípio. Estas são
obras essenciais para o estudo formal do léxico latino. Servimo-nos delas aqui como
ponto de partida, embora nos tivéssemos fixado depois apenas na de Gradenwitz,
por se concentrar no léxico comum, o que aqui nos interessa, e por termos vindo a
trabalhar com ela desde há muito e a considerarmos, na forma em que a usamos,
definitivamante corrigida. Aparentemente estas listas são exaustivas e totalmente
seguras. Mas só aparentemente. De facto, nenhuma das obras em que nos baseamos
é utilizável sem um grande trabalho prévio de harmonização, por seguirem critérios
diferentes e por não baterem certo umas com as outras. A consideração do léxico
latino no âmbito do indo-europeu e das línguas românicas e o uso dele feito por
Plauto, Catão, Cícero e Virgílio, só é possível depois de transformar todo o respec-
tivo instrumental num conjunto coerente e concertado. É neste conjunto tornado
coerente e concertado que nos baseamos.
O que entendemos por dimensão das palavras?
A dimensão das palavras é medida em número de letras.
Qual a dimensão das palavras latinas?
A dimensão das palavras latinas é muito diversificada. Se partirmos das listas
de Gradenwitz e de Busa e a medirmos em número de letras ela vai de 1 a 23 (Gra-
denwitz) ou 27 (Busa). Como o número de palavras em Busa é maior do que em
Gradenwitz, poderíamos ser levados a atribuir a este facto a inclusão em Busa de
palavras com 24 a 27 letras. Mas esta explicação não é confirmada pela comparação
das listas de palavras mais extensas nas duas obras, pois são muitas as palavras que
ocorrem em Gradenwitz e não em Busa e vice-versa (Quadro 1).

BUSA letras GRADENWITZ


anthropomorphiticus concupiscentialiter
architricliniarchus decemetducentesimus
concupiscentialiter duodequinquagesimus
duodequinquagesimus inapprehensibiliter
duoetquadragensimus irreprehensibilitas
irreprehensibiliter 19 irreprehensibiliter
numorumexpalponides sesquisextusdecimus
sesquisextusdecimus supereminentissimus
superparticularitas superparticularitas
superquadripartiens superquadripartiens

20 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim

BUSA letras GRADENWITZ


incircumscriptibilis incircumscriptibilis
incomprehensibiliter incomprehensibilitas
polymachaeroplacides inexsistentiabiliter
polymachaeroplagides
pyrrhichioanapaestus 20
sesquioctavusdecimus
subsuperparticularis
tessarescaedecatitae
argentiexterebronides sesquiseptimusdecimus
numquampostcaeripides
21
sesquiseptimusdecimus
sesquivicesimusprimus

argentumextenebronides
cluninstaridysarchides 22
scytalosagittipelliger

clutomistaridysarchides honorificabilitudinitas
sesquivicesimusseptimus 23

supersesquisextusdecimus 24

25
subductisupercilicarptores 26
thesaurochrysonicochrysides
thesaurochrysonicochrysides 27

Quadro 1 - Palavras com 19 ou mais letras em Busca & Gradenwitz (obs: As palavras de Busa
não incluídas em Gradenwitz e as de Gradenwitz não incluídas em Busa estão em itálico).

Vejamos, em primeiro lugar, o que se passa com a dimensão das palavras e a sua
distribuição nos totais de Busa e de Gradenwitz (Quadro 2). A grande maioria delas
situa-se na dimensão de 5 a 12 letras, sobretudo na de 8 e 9. As dimensões de 1 a 3
letras e de 16 ou mais englobam um número relativamente muito reduzido de pala-
vras (Quadro 3). Uma vez que o número total de palavras das duas listas é diferente,
é útil examinar e comparar estes mesmos dados em percentagens (Quadro 4), o que
faremos geralmente daqui em diante pela mesma razão.
As palavras de origem indo-europeia de transmissão ininterrupta (Pokorny),
têm uma dimensão que varia entre 1 e 15 letras, e a maioria situa-se entre as 4 e as
8 letras, sobretudo na dimensão de 5 e 6 letras (Quadro 5).
As palavras transmitidas directamente às línguas românicas (Meyer-Lübke),
têm uma dimensão que varia entre 1 e 14 letras, e a maioria situa-se entre as 4 e as
8 letras, sobretudo na dimensão de 6 e 7 letras (Quadro 5).
A média geral é em Pokorny de 6,0650, em Gradenwitz de 8,7654, em Meyer-
Lübke 6,8263, em Plauto de 7,6112, em Catão de 6,8013, em Cícero de 7,7676 e
Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 21
António Rodrigues de Almeida

em Virgílio 6,7098 (Quadro 6).


O que se deve entender por palavras muito curtas e por palavras muito
longas?
Consideramos como palavras muito curtas as palavras de 1 a 3 letras e muito
longas as palavras de 16 ou mais letras (Gradenwitz).
O que se deve entender por palavras de dimensão média?
As palavras de dimensão média são as de 7 a 11 letras, que correspondem a cerca
de 70% do total (Gradenwitz).

Relação entre a dimensão das palavras e a sua cronologia.


Em geral, as palavras maiores são relativamente mais recentes que as palavras
pequenas, sendo as palavras muito pequenas em geral de proveniência IE (Pokorny)
e as muito grandes em geral de formação latina tardia.
Considerando os três conjuntos de palavras – LL, IE/L e L/LR -, a dimensão
mais reduzida das palavras IE/L entende-se, dada a estrutura triliteral da raiz IE e
a frequência dos nomes-raiz e dos verbos-raiz mantidos; já, porém, a dimensão re-
lativamente reduzida das palavras L/LR, em confronto com as palavras LL, parece
privilegiar as palavras de pequena ou média dimensão, revelando o léxico LL, a
meio do trajecto entre o IE e as LR, um sobredimensionamento particular (Qua-
dro 7). Assim, as palavras pequenas ou de média dimensão revelam a tendência
para se manterem ao longo dos vários milénios de evolução. Pelo contrário, as mui-
to longas são introduzidas em época relativamente tardia e são pouco duradoiras
(Quadro 8).

Relação entre a dimensão das palavras e a sua estrutura formal


Em geral, as palavras muito pequenas são constituídas por um só elemento
lexical e as palavras grandes por vários elementos situados em torno de uma base
lexical, segundo a fórmula PREFIXO(s) + BASE + SUFIXO(s) (ex.: sto / in-con-
sub-sta-nt-ia-li-tas). Em consequência, quanto maior a palavra, maior o número de
elementos lexicais que a constituem. As palavras muito longas revelam, além disso,
uma certa tendência para conterem duas ou mais bases lexicais (34,5 % do total),
ao contrário das palavras pequenas e médias.

Relação entre a dimensão das palavras e o seu significado.


As palavras muito pequenas significam relações espaciais, temporais, numéricas
e processuais de carácter muito geral (ex.: a, in, ex, per, duo, sex, ut, si), o corpo, as
suas partes, manifestações e funcionamento (ex.: os, cor, pes, sum, fio, edo), e ob-
jectos essenciais da envolvência humana (ex.: sol, lux, nox, rus, bos, sus, ius, fas); as
palavras muito grandes apresentam significados restritos, tanto mais restritos em
geral quanto maior é o número dos elementos lexicais que o constituem.

22 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim

Relação entre a dimensão das palavras e a sua frequência no léxico


As palavras curtas são em número relativamente reduzido, crescendo este à me-
dida que aumenta a dimensão; as palavras muito grandes são também em número
muito reduzido, mas dimuindo este à medida que aumenta a dimensão. O pequeno
número das palavras curtas depende basicamente do número de letras que cons-
tituem o alfabeto usado para as representar: consequentemente, se descontarmos
os casos de homografia, o número das palavras de uma só letra será no máximo o
das letras, o de duas letras será no máximo o das combinações possíveis em grupos
de duas letras e assim sucessivamente. De qualquer modo, as palavras de pequena
dimensão apresentam números relativamente estáveis em L/IE, em LL e L/LR, e
tendem a utilizar as várias possibilidades combinatórias, na dependência das restri-
ções fonéticas.

Relação entre a dimensão das palavras e a sua frequência de uso


Em geral, as palavras muito curtas são de uso frequente (ex.: a, in, eo, ago) e
as muito longas são de uso raro. Verifica-se que muitas das palavras com mais de
16 letras são usadas uma única vez (ex.: carrocarpentarius, honorificabilitudinitas),
algumas não ocorrem no Thesaurus Linguae Latinae, no dicionário de Forcellini e
no de Lewis and Short, e, aparecendo embora desde o século III a.C., são poucas as
introduzidas até ao século IV d.C. (Quadro 8).

Relação entre a dimensão das palavras e o seu uso literário: Plauto, Catão,
Cícero e Virgílio
Os teóricos latinos da poética e da retórica (Cícero, Horácio, Quintiliano), re-
ferindo-se à dimensão das palavras, recomendam que se faça um uso harmonioso
delas, combinando alternadamente umas e outras, e que se evite o uso de palavras
muito longas. É óbvio que o uso oral ou escrito da língua latina implica necessa-
riamente o recurso às palavras muito pequenas e às palavras de dimensão média,
as primeiras porque são indispensáveis na interligação das palavras, as segundas
porque constituem a maior parte do léxico. No uso oral, se nos ativermos ao trajecto
do IE para as línguas românicas, revela-se em geral uma tendência constante para
privilegiar a dimensão pequena ou média baixa. No uso literário, verifica-se até ao
século IV d. C., um escrúpulo muito grande no uso de palavras muito longas: as
raras ocorrências devem-se fundamentalmente ao contexto da comédia, em inova-
ções, ao modo grego ou com elementos gregos, com duas bases lexicais (Plauto e Te-
rêncio), ao uso de numerais complexos (Cícero, Tito Lívio, Valério Máximo) e aos
contextos tecnico-científico (Columela, Celso, Plínio-o-Velho, Séneca) e religioso
(Arnóbio, Tertuliano). Com o século IV, embora não se possa falar de um grande
número de palavras muito longas, elas ocorrem com maior liberdade nos autores
cristãos, mormente em Santo Agostinho, e nos contextos das artes (especialmente
gramática, retórica e música).
Uso de Plauto, Catão, Cícero e Virgílio (Quadros 9-13). A dimensão mais fre-

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 23


António Rodrigues de Almeida

quente é a de 6 letras em Catão e Virgílio, de 7 letras em Plauto e de 8 letras em


Cícero. Além disso, a maior frequência das palavras de 1 a 4 letras e a menor fre-
quência das palavras com mais de 9 letras é característica de Catão e Virgílio, em
oposição a Plauto e Cícero, que apresentam uma linha de distribuição muito próxi-
ma a não ser nas dimensões de 6 a 9 letras. Estas coincidências e divergências não
são, obviamente, devidas a razões de cronologia (arcaico/clássico) ou ao facto de o
texto ser em verso ou em prosa. Pensamos que elas são devidas, em primeiro lugar,
à diferença de extensão do corpus lexical de cada um dos autores, relativamente
grande em Cícero (10.014) e em Plauto (8.803) e pequeno em Catão (3.287) e em
Virgílio (5.831); em segundo lugar, ao carácter arcaico ou arcaizante de Catão e
Virgílio; e em terceiro lugar, ao carácter criativo de Plauto e Cícero, visando um a
expressividade e o outro a precisão técnica.

Conclusão
As palavras muito curtas são em pequeno número, relativamente antigas, têm
um significado geral, são de uso comum e muito frequente, e constituídas por um
único elemento lexical.
As palavras muito longas são igualmente em pequeno número, mas são relati-
vamente recentes, têm um significado restrito, tendencialmente técnico, são de uso
pouco frequente ou mesmo singular, são constituídas por uma base (75,5%) ou
mais (34,5%) acompanhada de um ou mais prefixos e/ou sufixos.
As palavras de dimensão média são em grande número, são de uso frequente
mas em dependência do contexto, e são na sua maioria criações tipicamente latinas
constituídas segundo a fórmula PREFIXO(s) + BASE + SUFIXO(s), em época nem
muito antiga nem muito tardia.

24 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim

Quadro 2

Léxico L em Gradenwitz e Busa

18000
16000
14000
Nº de palavras

12000
10000 Gradenwitz
8000 Busa
6000
4000
2000
0
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27
Nº de letras

Quadro 3

Palavras longas e curtas (Gradenwitz)

300

250

200
Nº de palavras

150

100

50

0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23
Nº de letras

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 25


António Rodrigues de Almeida

Quadro 4

Léxico em Gradenwitz e Busa

18
16
14
12
Percentagem

10 Gradenwitz
8 Busa
6
4
2
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 111213 14151617 181920 21222324 252627

Nº de letras

Quadro 5
Léxico latino vindo do IE (Pokorny) e passado às LR (Meyer-Lübke)

30

25

20
Percentagem

Pokorny
15
Meyer-Lübke

10

0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

Nº de letras

26 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim

Quadro 6

Indo-europeu - Latim - Línguas românicas

10 8,76
9 7,61 7,76
8 6,82 6,8 6,71
6,06
Média geral

7
6
5
4
3
2
1
0

Cícero
Meyer-

Catão
Pokorny

Virgílo
Plauto
Gradenwitz

Lübke

Quadro 7

Léxico L (Gradenwitz), IE (Pokorny) e LR (Meyer-Lübke)

30
25

20
Percentagem

Gradenwitz
15 Pokorny
10 Meyer-Lübke

5
0
1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23
Nº de letras

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 27


António Rodrigues de Almeida

Quadro 8

Palavras muito longas

75
80
Percentagem

60

40
20 4,76 7,14 5,95 7,14
0
III-II a.C. I a.C. I d.C. II-III d.C. IV e post.
Séculos

28 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim

Bibliografia

GRADENWITZ, Otto, Laterculi uocum Latinarum, voces Latinas et a fronte et a


tergo ordinandas curavit, Leipzig, Verlags S. Hirzel, 1904.

BUSA, Robertus, Totius latinitatis lemmata, quae ex Aeg. Forcellinii Patavina


editione 1940 a fronte, a tergo atque morphologice opera IBM automati ordinaverat,
Milano, Istituto Lombardo - Accademia di Scienze e Lettere, 1988.

POKORNY, Julius, Indogermanisches etymologisches Wörterbuch, Bern und


München, Francke Verlag, 1959-1969.

MEYER-LÜBKE, Wilhelm, Romanisches etymologisches Wörterbuch, Heidelberg,


Carl Winter, 19353.

MANIET, Albert, Plaute. Lexique inverse. Listes grammaticales. Relevés divers,


Hildesheim, Georg Olms, 1969.

PURNELLE, Gérald, Cato. De agricultura. Fragmenta omnia servata. Index verbo-


rum. Liste de fréquence. Relévés grammaticaux, Liège, C.I.P.L.E., 1988.

LAURAND, Louis, Études sur le style des discours de Cicéron. Avec une esquisse de
l’ histoire du “cursus”. III, Paris, Société d’Édition “Les Belles Lettres”, 19404 (Ap-
pendice II. Vocabulaire complet de Cicéron comparé au vocabulaire de ses discours).

WETMORE, Monroe. N., Index verborum Vergilianus, New Haven, Yale Univer-
sity Press, 19302.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 29


Nostos and Oblivion in Greek Tragedy 1
*

Marigo Alexopoulou
U. Glasgow
mai_nostos@yahoo.gr

T his paper is the result of an investigation of two concepts which are regularly
found as opposites in Greek literature: nostos and lethe. You are probably fa-
miliar with this opposition in the Odyssey. But there has been little attention paid
to this constant opposition as it developed on the tragic stage. Yet, I believe that
such an antithesis is, in fact, an equally dynamic force in many Classical tragedies.
My ongoing research extends to the comprehensive study of nostos in drama in
general. However, in the interest of short-term feasibility, I wish to discuss a single
illustrative case, namely the tragic nostos of Agamemnon as it is approached by
Aeschylus. By considering this example I believe that one may reach a better un-
derstanding of the nature of nostos in Greek drama, generally speaking.
So far I have continuously employed the term nostos, but in many ways this
is not a self-explanatory notion. What then do we mean by this term? Etymo-
logically, nostos is a nominal derivative of the verb νέομαι (I return home). Nostos,
the homecoming of someone who has been away, occurs with varying elaboration
throughout much of ancient Greek literary culture and imagination. The earlier
Greek tradition included several variants of the nostos story, in both epic and in lyric
versions, among which the Odyssey is a major example. However, other examples of
this theme were also well-known in antiquity, such as the Nostoi ascribed by Proclus
to one Agias of Trozen; the three fragments of the Hesiodic catalogue that deal
with various features of the story of Agamemnon’s fatal return; and also the fact
that Stesichorus wrote a poem called Nostoi and a poem called Oresteia.2
In the Odyssey, the direct antithesis of νόστος (return) and λήθη (oblivion) is
pervasive: it forms the decisive tension of many episodes. Thus, for instance, in the
episode with the Lotus-eaters, the opposition of nostos and lethe is explicit: anyone
who eats their fruit becomes oblivious of all but immediate pleasure, and forgets his
desire to return home. So, indeed, those of Odysseus’ companions who consume
the lotus forget their homecoming (9. 95-7). The same effect is intended by Circe’s
1  *
The first version of this paper was written when I was invited to contribute to the exploration of the variety of antith-
esis in antiquity at the conference of Otium et Negotium at the University of Algarve, October 2004. I thank those who
invited me, and those who discussed the paper with me, on that and on subsequent occasions; and especially Professor
D.L. Cairns and Kieran Hendrick.
2 
See Books three and four of the Odyssey; cf. the Nostoi ascribed by Proclus to one Agias of Trozen, see Bernabé PEG
I (1987) 94ff., Davies EFG (1988) 66f.; the three fragments of the Hesiodic catalogue treat various features of the story
of Agamemnon’s fatal return, see esp. Hesiod: 23(a) MW). Stesichorus wrote a poem called Nostoi, (Page PMGF 208,
209) and a poem called Oresteia (PMGF 210-19); cf. E. Tro. 78-83; A. Ag. 627, 635, 650-57; E. Hel. 407-10.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 31


Marigo Alexopoulou

magic potion (10.236). In Book 12 the Sirens with their song appear as another
temptation to Odysseus’ desire to return home. The hypnotic power of their song
(θέλγουσιν 12.40,44) makes the listener forget his thoughts about homecoming.
These examples suggest that in the Odyssey there is in a constant opposition of nostos
and oblivion.
Thus is established the crux of the hero’s choice: Odysseus could either return
home, or remain unseen from his fellows and family in Ithaca. One who chooses
not to return sinks into oblivion (e.g. Od. 1.95, 3.77-78).3 Odysseus comes back
from darkness. This association is especially supported by the name of Καλυψώ
that derives from the verb καλύπτειν (to cover) and suggests darkness. Living with
Calypso would mean Odysseus’ cutting himself off from society, whereas Penelope
is part of his family, kin and friends. Circe functions in a similar way in Odysseus’
nostos-story. Even innocent Nausicaa stands for Odysseus as a temptation.
His homecoming, as for any voyager, is a reclaiming of his entire life in Ithaca.
He rediscovers those left behind amid the feeling of change, ageing and death (e.g.
the parents of Odysseus: Laertes (Od. 11.187-196) in his old age isolates himself out
of longing for his son, and Anticleia (Od. 11.197) dies out of longing for her son’s
homecoming). It is obvious that the search for an unchanged world of his remem-
brance is in vain. He has to re-establish himself and reinvent his identity as the king
and the head of the household. The joy of rediscovery is mixed with the sadness of
irreparable loss.
As in the Odyssey, so also in Greek tragedy the treatment of nostos becomes a
great metaphor for the concept of change and illustrates that our native land can-
not remain a place of fixity. Obviously the Odyssey must have been an influential
example for the Attic dramatists in shaping stories with a homecoming theme pre-
sented in tragedies. Already in the Odyssey Homer uses the problematic return of
Agamemnon as a counterpoint to Odysseus’ return. So what I want to consider
now briefly is how the dualistic perspective of nostos and oblivion shows itself in Ae-
schylus’ play. We have seen that the nostos-theme in Homer’s narrative is in explicit
contrast to the concept of lethe. This opposition in Aeschylus’ play is more subtle
but, as I will show, it is effective in creating strong ironical effects and manipulating
audience response.
Aeschylus’ Agamemnon is a nostos-play since it is about Agamemnon’s home-
coming.4 As I have already suggested nostos was a theme related to heroes return-
3 
In Greek society the individual was also driven away from home in search for κλέος both in athletic contests and in
war. Achilles’ immortal glory signifies the heroic ideal of a θάνατος καλός (glorious death). He did not return home,
like Odysseus, but by dying young in Troy he obtained immortal glory (Il. 9.413 ὤλετο μέν μοι νόστος, ἀτὰρ κλέος
ἄφθιτον ἔσται).
4 
Nostos, the absence of a hero and his return, is one of the characteristic plot-elements of Greek tragedy. Among
the surviving tragedies Aeschylus’ Persae, Aeschylus’ Agamemnon and Sophocles’ Trachiniae may properly be called
nostos-plays, since nostos is enacted as a basic element of their plot. The formal similarity of the nostos-plays has been
acknowledged, but has not been discussed explicitly. Taplin first traced the use of the nostos-pattern in Greek tragedy
and discussed briefly which of the surviving tragedies should be called nostos-plays. He defines the nostos-plays as follows
(1977) 124: ‘First Pers is an example of a form or pattern of plot which is recurrent in Greek drama: it is what might

32 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Nostos and Oblivion in Greek Tragedy

ing from the Trojan War and the poetic repertoire included several variants of
the nostos-story. Now, in the case of Odysseus, while he is away from home, he is
offered other alternatives than returning. But for Agamemnon, what would be his
alternative? He thinks he can only return home and assumes that things will be the
same. However, his homecoming means oblivion. The fusion of nostos and oblivion
exposes the fundamentally problematic manner of his return. Can his homecoming
reconcile the past memories with the present situation? It is exactly these dynam-
ics of oblivion that Aeschylus exploits in order to bring about Agamemnon’s fatal
return.
The existence of the opposition between nostos and lethe is proved by the treat-
ment of Agamemnon’s homecoming in Aeschylus’ text. I wish now to make some
comments on some illustrative passages from Aeschylus’ Agamemnon that bring
about this antithesis. The antithesis of nostos and oblivion is established at the very
beginning of the play. The anxiety of the Watchman employed by Klytaimestra to
give warning of the arrival of Agamemnon sets up the mood of foreboding. And his
celebration when the beacon appears signalling the fall of Troy is cut short by fear.
His worries about Klytaimestra remain, but they are too dangerous to mention
openly. Thus, he would rather keep silent (35) and most importantly he will have
no recollection (λήθομαι 39) of hinting at anything at all.
So, while the opening lines of the play introduce the nostos-theme, we are made
to feel that there is danger impending for Agamemnon when he returns. On the
homecoming of Agamemnon the Chorus admits that they disapproved of his de-
cision to get involved in a war for the sake of Helen. The returning hero is con-
demned on his arrival (799-802). Can the past be forgotten? (eg. Agamemnon’s
decision to slaughter his daughter: 205-17). So Agamemnon is held responsible for
a number of crimes: Iphigeneia, a war for the sake of Helen, the heavy loss of life at
Troy, the sacrilege. The returning hero is not the same man as he was before. Most
significantly, he returns with Cassandra. She remains at first a silent and enigmatic
figure on stage and thus becomes yet one more element wrong in the homecoming.5
She is the visual evidence of change on the returning hero.6 His absence has also
affected the status of the members of the household who were left behind (see the
clear hints that the Chorus gives at Aegisthus: 808-9 cf. 1225, 1625).
The fatal return of Agamemnon was familiar to Aeschylus’ audience. But Ae-
schylus’ creative response to the tragic return of Agamemnon is evident in his treat-
ment of it. Agamemnon greets the gods who gave him a safe homecoming and
helped him win against Priam (810-13) but his entry to the palace is pre-empted
by Klytaimestra’s appearance. Her arrival is a sudden transformation of the situa-
be called a ‘nostos’ play. In such plays a ‘hero’ returns from some mission or expedition; he may return safely to some
catastrophe at home, or may (as here, i.e. in A. Pers.) return from a catastrophe’
5 
See Taplin (1977) 304.
6 
Cassandra, like Iole in Sophocles’ Trachiniae, threatens the symmetry of the marriage of Agamemnon and
Klytaimestra.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 33


Marigo Alexopoulou

tion. Agamemnon was about to enter the palace and erase the crimes of the past.
Klytaimestra controls the palace door and she will be victorious in the debate over
the manner of his entry. The tapestry scene represents the transition of a victor to
a victim. Victory, in Pindar, brings the achiever to heroic heights and the divine
resentment is a possibility. Divine φθόνος is a prize of achievement. However, Ag-
amemnon is not treated as a victor who resumes his relations with society. While
the returning hero is ready to take up his activities as king and lord of his household
he remains segregated from the community. Klytaimestra receives him in a way
that does not secure his return. This is well illustrated in the sinister associations of
this valuable textile. She proposes he should walk on tapestries when he enters. The
tapestries are dyed crimson/purple which was very expensive. Hence Klytaimestra
is proposing gratuitous destruction of their household’s wealth. The colour is also
reminiscent of dried blood – a powerful visual image of imminent death. In this
fusion of the homecoming scene to his death Agamemnon has walked into the pal-
ace. Thus the scene has a dramatic point. It well illustrates that Klytaimestra can-
not forget what happened in the past (see esp. the reminder of Iphigineia’s death).
And although she feigns devotion to her husband (A. Ag. 607) like a good waiting
wife she becomes man-destroyer (see 1231).7 Her words and her actions initiate the
chain of transgressions that underline the flaw in the welcome-scene of the return-
ing Agamemnon.
The manner of Agamemnon’s death emphasises the terrible wrongness of the
king’s return. Klytaimestra traps Agamemnon coming out of the bath with a robe
(esp. 1125-9). The theme of bath and clothing that would normally signify a posi-
tive nostos is here perverted.8 Most remarkably, after the murder the robe is called
by Klytaimestra ἄπειρον ἀμφίβληστρον (1382). The use of the word ἀμφίβληστρον
seems designed to suggest ἀμφιβάλλειν, used in all Homeric passages (as Fraenkel
points out at 1382) for dressing the guest after his bath.9 Aeschylus departs from
this Homeric topos and ἀμφιβάλλειν becomes fatal. All these elements in the text
symbolically reflect the fact that Agamemnon’s homecoming is not accomplished
with his re-integration into the oikos but with his own death. The inability to forget
destroys the possibility of a successful nostos. His nostos becomes his oblivion that
will be his death. And this is quite natural since the ultimate lethe is death.10
The souring of his return makes one feel the distance between what was and what

7 
In the case of Deianeira in Sophocles’ Trachiniae she appears completely disqualified for the role that Klytaimestra
plays, but she, like Klytaimestra, will prove herself man-destroyer of Heracles by sending a fatal garment in receiving
her husband on his return.
8 
In the Odyssey Eurynome put a robe around Odysseus after his bath see: Od. 23.153-5.
9 
See Fraenkel (1950) III on ἀμφίβληστρον at 1382: ‘In Ag. 1382 and Cho. 492 the word was undoubtedly chosen
because of the connotations of ἀμφιβάλλειν; it is obvious that another name for a fishing-net would not have served the
poet’s purpose. We have already noticed in general (on 1109) that the whole conception of Agamemnon’s murder in the
Oresteia rests on premises that are characteristically ‘Homeric’.’
10 
Death is defined as the realm of oblivion, the λήθης πεδίον (see Hesiod Theogony 1216, Aristophanes Frogs 186).

34 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Nostos and Oblivion in Greek Tragedy

is.11 Tragedy dramatises the tragic effect of nostos on the household. The returning
hero is no longer the person that he was when he departed and his oikos has changed
during his absence. One may think that nostos is sad by its nature since it involves
mutability. From a geographical point of view the absent hero returns to the same
place; but his tragic return reveals the effect of mutability due to the passage of time.
The past cannot be forgotten and thus Agamemnon’s homecoming remains forever
out of reach and solely in his imagination. I have tried to argue that the Greek an-
tithesis of nostos and oblivion is well illustrated in the Odyssey, especially in the case
of Odysseus, where if he stays homeless he risks complete obliteration. This dualistic
concept is extended on the tragic stage. By considering some passages from Aeschylus’
Agamemnon I hope that I have shown that such an antithesis is an equally dynamic
force in a tragedy dealing with a homecoming story. The memories of the past destroy
Agamemnon’s possibility of a positive nostos. Therefore, nostos and oblivion remain
two direct opposites that cannot be reconciled on tragic stage.

Bibliography

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(Leipzig).

Bollack, J. and Judet de la Combe, P. (1981), Agamemnon 1.1-2., Cahiers de


Philologie 6-7
— (1982), Agamemnon 2, Cahiers de Philologie 8.

Chantraine, P. (1968), Dictionnaire étymologique de la langue grecque (Paris).

Davies, M. (1988), Epicorum Graecorum Fragmenta (Göttingen).


— (1991), Sophocles’ Trachiniae (Oxford).

Denniston, J. D. – Page, D. (1957), Aeschylus Agamemnon (Oxford).

Fraenkel, E. (1950), Aeschylus Agamemnon 3vols (Oxford).

Heath, M. (1987), The Poetics of Greek Tragedy (London).


— (1989a), Unity in Greek Poetics (New York).

Taplin, O. (1977), The Stagecraft of Aeschylus (Oxford).

Vernant, J.-P. (1983), Myth and Thought among the Greeks (London).
11 
The souring of the return is evident in the homecoming of other heroes in Greek tragedy (namely the return of
Heracles in Sophocles’ Trachiniae and Euripides’ Heracles, the return of Neoptolemus in Euripides’ Andromache and the
return of Orestes in Aeschylus’ Choephori and the two Electra-plays.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 35


Tão contrário a si é o A mor:
o paradoxo amor - ódio em catulo e ovídio

Carlos Ascenso André


U. Coimbra
caa@ci.uc.pt

A mor e ódio. Vida e morte. Luz e trevas. Tristeza e euforia. Liberdade e escra-
vidão.
Estas são algumas das contradições de que se tecem, desde os tempos mais
remotos, as malhas do amor. É, sem dúvida, o paradoxo no seu estado mais puro,
este que junta, em uma só pessoa, contra todas as regras da coerência e sem o mais
pequeno vestígio de lucidez, tão contraditórios estados e sentimentos. Mas foi sem-
pre assim, ao longo da história do amor, o mesmo é dizer, desde que o homem se
conhece enquanto tal, enquanto ser que sente e, portanto, enquanto ser que ama.
Nem sempre assim é; mas não são poucos os poetas do amor que persistem em
acasalar amor e ódio, em juntar vida e morte, em anunciar, à uma, euforia e pessi-
mismo, em fazer conviver tristeza e alegria, em viver, ao mesmo tempo, na luz e nas
trevas, em sentir a liberdade mesclada de cadeias e grilhões.
São paradoxos, sim, aparentemente impossíveis, como todos os paradoxos, mas
que são, em si mesmos, um dos emblemas mais visíveis dos amantes de todos os
tempos.
Em certa medida, não surpreende que assim seja. Afinal de contas, o ódio mais
intenso entre dois seres é aquele que teve antes de si uma não menos inflamada pai-
xão. Porque do amor ao ódio, como da vida à morte, a distância é bem curta.
Foi assim que foi celebrado o amor por poetas de todos os tempos; Camões será,
entre muitos outros, um exemplo bem significativo; e, com ele, tantos outros poe-
tas do Renascimento e do Barroco. A Idade Média, o Renascimento, o Barroco, o
Maneirismo, porém, neste como em tantos outros aspectos, não foram inovadores,
antes foram recolher na Antiguidade Clássica, não apenas temas, como também a
forma de os exprimir.
Esse apego a motivos e a modos de expressão, entretanto, não nasce do acaso:
ao invés, tem as suas raízes em cada época concreta. Ou seja, neste, como em tantos
outros aspectos, a literatura e, em geral, toda a actividade estética emergem num
dado contexto; é, pois, nesse mesmo contexto que devemos buscar explicações para
ambas.
Ora, as figuras do exagero, em que o código retórico é fértil, como paradoxos,
antíteses, oximoros, hipérboles, e as que dão ao discurso uma formulação mais re-
buscada, como quiasmos e trocadilhos, entre tantas outras, são frequentes em tem-
pos de encruzilhada, quando o homem vive em permanente desencontro consigo
mesmo, quando o mundo ganha a aparência de um caos ou um labirinto. Foi o que
se passou no Maneirismo, como foi, igualmente, o que se passou, muitos séculos

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 31


Carlos Ascenso André

antes, em Roma, nos anos terminais da República . 1

A forma como o amor é cantado pelos poetas é bem o reflexo dos sentimentos
exacerbados característicos desses tempos de “desvario”, para deitarmos mão de
uma sugestiva expressão camoniana.
Assim era, também, o amor em Roma, à medida que a República caminhava
para o fim; ou, pelo menos, esse foi o retrato que nos foi legado por muitos dos po-
etas de então, o retrato de um sentimento exacerbado, onde o arrebatamento é nota
dominante e onde a paixão tudo subjuga; são, enfim, os traços de um sentimento
irracional, contraditório, obsessivo . 2

Quatro dos poetas mais destacados deste tempo, Tibulo, Ovídio, Catulo, Pro-
pércio, são exemplos sugestivos dessa entrega exclusiva ao amor, aos seus doces ma-
les e suas encantadoras agruras, às suas penosas alegrias.

“Viue, deus, posito”, siquis mihi dicat, “amore”,


deprecor, usque adeo Dulce puella malum est.3

“Vive e põe de parte o amor!” Se algum deus mo disser,


hei-de cair em súplicas diante dele, a tal ponto a mulher é um doce mal.

São palavras de Ovídio, convicto de que era preferível uma noite de dúvidas,
angústias e incertezas a uma noite de sono; a primeira permite acalentar alguma
esperança; a segunda, pelo contrário, confunde-se com a morte. Antes, por isso, as
contradições do amor:

Me modo depiciant uoces fallacis amicae


(sperando certe gaudia magna feram),
et modo blanditias dicat, modo iurgia nectat,
saepe fruar domina, saepe repulsus eam.4

A mim, que me tragam na ilusão as palavras de uma amante enganosa


(na esperança, por certo, hei-de alimentar prazeres sem conta);

Vejam-se as reflexões de V. M. Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa, Coimbra, Centro de
1 

Estudos Românicos, 1971; vd. em especial os capítulos “A temática da lírica maneirista” (pp. 221-323) e “Estilo e formas
da lírica maneirista” (pp. 325-395).
2 
De entre os muitos trabalhos que têm sido publicados nos últimos anos e cuja leitura influenciou especialmente as
reflexões feitas aqui, vale a pena referir: E. Greene, Erotics of domination: male desire and the mistress in latin love poetry,
Baltimore & London, The Johns Hopkins University Press, 1998; E. Greene, “Refiguring the feminine voice: Catullus
translating Sappho”: Arethusa 32.1 (1999) 1-18; P. Grimal, L’amour à Rome, Paris, Éditions Payot & Rivages, 1995; D.
F. Kennedy, The arts of love: five studies in the discourse of Roman love elegy, Cambridge, Cambridge University Press,
1993; S. Lilja, The Roman elegists’ attitude to women, Helsinki, Suomalainen Tiedeakatemia, 1965; G. Luck, The Latin
love elegy, London, Methuen & Co., 2ª ed., 1969; P. Veyne, L’ élégie érotique romaine: L ’amour, la poésie et l Occident,
Paris, Éditions du Seuil, 1983.
3 
Ovídio, Amores, 2.9b.1-2
4 
Ibidem, 43-46

32 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tão contrário a si é o Amor

quer ela me sussurre meiguices, quer pragas lance contra mim,


muitas vezes da minha amada hei-de eu desfrutar, muitas vezes
escorraçado hei-de ser.

Forçoso é reconhecer que este não é um jogo de palavras marcado pela novida-
de, nos seus paralelismos rítmicos, trocadilhos, como que a enredar no preciosismo
retórico o jogo do amor. É, pelo contrário, bem antigo; os poetas das últimas dé-
cadas da República usaram-no à saciedade, afeiçoados como eram a todo esse tipo
de floreados retóricos, como quiasmos, hipérboles, antíteses, entre outros. Era uma
atitude típica dos neóteroi, poetas da moda, olhados com desconfiança e desprezo
pelos seus contemporâneos mais austeros.
Estamos, portanto, longe daquela serenidade de matriz epicurista que parece
ter dominado a poesia de uns anos antes. Este é um tempo bem diferente, tempo
de um amor violento, exacerbado, inflamado; como dirão muitos versos de muitos
poetas, é tempo de um amor que arde; assim será, também, celebrado, séculos
mais tarde, pelos poetas do Maneirismo e do Barroco. É o amor-fogo que em suas
chamas implacáveis consome o poeta-amante. É um amor ao arrepio de qualquer
assomo de lucidez, que resvala ou faz resvalar para contradições absurdas, como é o
caso do apregoado convívio, na mesma pessoa, de amor e ódio.
Até mesmo Virgílio, o poeta que, ao longo da sua obra, nunca cantou o amor na
primeira pessoa, reconhece a força do amor e o seu poder; e, para o fazer, recorre,
também ele, à formulação antitética, de uma forma que faz sobressair, no combate,
vencedor e vencido:

Omnia uincit Amor; et nos cedamus Amori.5

Tudo o amor leva de vencida; e nós, verguemo-nos ao Amor.

Propércio, por seu turno, é, em toda a sua obra, uma história de amor repleta de
contradições; no seu percurso de poeta e amante, visto que ambos se confundem,
amor e ódio alternam, em momentos sucessivos, as mais das vezes de modo desor-
denado e incoerente.
A paixão e o temor são sentimentos a que, alternadamente, se submete. Paixão
por Cíntia, um fascínio irresistível, cuja nota principal será o desejo e a sensualida-
de. Paixão física, porque materializada no corpo e nos sentidos. Mas também temor.
Cíntia é altiva e prepotente, arrogante e autoritária, e possui um humor fácil, o que
a faz inconstante nas reacções (e nas relações); é, por isso, propensa a desvairados
arrebatamentos de amor, mas, ao mesmo tempo, a não menos violentos arrebata-
mentos de raiva. Quando assim acontece, Cíntia é avassaladora, implacável.
Mesmo assim, Propércio submete-se, procura-a, deseja-a, à espera de um peda-

5 
Virg. Buc. 10.69.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 33


Carlos Ascenso André

ço de luz, o mesmo será dizer do encontro dos corpos, de uma noite de amor.
Assim se vai construindo, poema a poema, verso a verso, um binómio de fla-
grantes contradições e de emoções contrárias: Cíntia é a pérfida, a falsa, a fingidora,
a perjura. Ele, apesar disso, proclama constância, fidelidade, submissão. Mas, logo
depois, rejeita-a, antes de, irresistivelmente, de novo a ela se submeter. Cíntia é fria,
calculista, dominadora. Ele, por seu turno, sentimental, emotivo, submisso às leis
do amor. Foi isso que, desde o início do seu Monobiblos, assumiu. 6

É isso que explica as suas oscilações e uma espécie de zigue-zague emocional


entre a paixão por Cíntia e o desejo de dela se libertar. À semelhança do que sucede
nos demais poetas desta época, ambos os sentimentos se sobrepõem. Daí nascem
clamores de revolta, imprecações furiosas de quem não está disposto a suportar
mais.
A conclusão é uma antítese venenosa, tão expressiva quanto corrosiva:

Cynthia forma potens, Cynthia uerba leuis.7

Cíntia, na beleza, poderosa; Cíntia, nas palavras, bem ligeira.

Bem antes de Propércio, porém, Catulo será, neste mesmo aspecto, um exemplo
bem mais característico. A dilaceração que o atinge manifesta-se, de modo bem ex-
pressivo, na própria enunciação: coabitam, no seu íntimo, dois – o que ama com a
irracionalidade da paixão e o que, lucidamente, entende estar na hora de renunciar,
de pôr fim a tudo. Mas

Difficile est longum subito deponere amorem.8

É difícil deixar cair de repente um longo amor.

É a antítese, de novo, e estrategicamente colocada mesmo a meio do verso –


longum subito –; o objectivo é claro: um amor tão prolongado não logra extinguir-
-se num ápice. Não é, no entanto, impossível apagá-lo. Subito é uma objecção, é
verdade, mas é, também, uma porta aberta ao prosseguimento do duelo interior.
Por isso, a voz da razão insiste: não há caminho alternativo, a vitória que importa
alcançar é essa.
Não era a primeira vez que Catulo ensaiava esta espécie de desdobramento de
personalidade.
O Carmen 8, pelas oposições que nele se constroem, verso após verso, ajuda a compreender
a natureza paradoxal do dístico odi et amo, com o qual há-de encerrar-se a presente reflexão.

6 
A elegia 1.15 é, neste aspecto, elucidativa.
7 
Prop. 2.5.28.
8 
Catulo, 76.13.

34 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tão contrário a si é o Amor

Miser Catulle, desinas ineptire,


et quod uides perisse perditum ducas.
Fulsere quondam candidi tibi soles,
cum uentitabas quo puella ducebat,
amata nobis quantum amabitur nulla.
Ibi illa multa tum iocosa fiebant,
quae tu uolebas nec puella nolebat.
Fulsere uere candidi tibi soles.
Nunc iam illa non uult; tu quoque, impotens, noli,
nec quae fugit sectare, nec miser uiue,
sed obstinata mente perfer, obdura.
Vale, puella! Iam Catullus obdurat,
nec te requiret nec rogabit inuitam.
At tu dolebis, cum rogaberis nulla.
Scelesta, uae te! Quae tibi manet uita!
Quis nunc te adibit? Cui uideberis bella?
Quem nunc amabis? Cuius esse diceris?
Quem basiabis? Cui labella mordebis?
At tu, Catulle, destinatus obdura.9

Pobre Catulo, deixa de ser louco


e o que vês que se perdeu, dá-o por perdido.
Resplandeceram, um dia, para ti luminosos sóis,
quando acorrias aonde a tua amada te levava,
tão amada por mim quanto nenhuma outra hei-de amar.
Aí, então, muitas coisas prazenteiras se faziam,
que tu querias e a tua amada não deixava de querer.
Resplandeceram, de verdade, para ti luminosos sóis.
Agora, ela já não quer; e tu, também, mesmo sem poderes, não queiras,
nem persigas aquela que se esgueira, nem vivas na tristeza,
mas, de coração determinado, resiste, mantém-te firme.
Adeus, minha amada! Já Catulo se mantém firme,
nem te há-de procurar, nem te há-de implorar, contra tua vontade.
Mas tu vais sofrer, quando nada te for implorado.
Malvada! Ai de ti! Que vida te espera!
Quem te há-de, agora, buscar? A quem vais parecer formosa?
Quem vais, agora, amar? A quem dirás que pertences?
A quem hás-de beijar? A quem vais morder os lábios?
Mas tu, Catulo, determinado, mantém-te firme.

9 
Catulo, 8.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 35


Carlos Ascenso André

O retrato da situação é definido nos dois primeiros versos,que constituem, por


isso, o ponto de partida para todo o poema; é evidente a sua força expressiva, desde
logo devido à acumulação de formas verbais (tal como sucederá em odi et amo), to-
das elas diferentes: desinas ineptire… [quod] uides perisse… perditum ducas – “deixa
de ser louco… o que vês que se perdeu… dá-o por perdido”.
Mas este é, antes de mais, um retrato do passado. Sobressai o confronto de von-
tades, a do amante e a da amada. Ele será a parte activa, dinâmica, neste processo
de enamoramento – quae tu uolebas. Ela, por seu turno, não sendo, muito embora, a
parte passiva (nolle não é o lado passivo de uelle) é, pelo contrário, o lado que detém
o poder, visto ser a parte que consente – nec puella nolebat.
Já o presente é bem diverso, neste quase labirinto de contradições e antíteses.
Non nolle dá lugar a non uelle, ou seja, o consentimento é transformado em rejei-
ção.
Confundem-se voz da razão e voz da paixão. Ora é o amante que fala, com
um misto de raiva, despeito e compaixão; ora é o bom senso que teima em levar o
homem apaixonado a arrepiar caminho.
Não se trata, é bom de ver, do paradoxo amor/ódio; mas é difícil não reconhecer
que estamos perante uma antevisão desse paradoxo.
Uma tal hesitação entre sentimentos extremos, ou seja, esta viagem permanente
entre o amor e o despeito, entre a paixão e o ódio e, portanto, entre a submissão
amorosa e a rejeição radical, é comum, sobretudo, a Catulo e Propércio. No fim de
contas, é bem semelhante a personalidade de mulher a quem um e outro se subme-
tem.
Por isso, os poemas de ambos, de Catulo e Propércio, são, quando globalmente
olhados, uma expressão coerente do paradoxo amor/ódio.
Ovídio, anos depois, seguirá de perto o modelo catuliano. No seu caso, no
entanto, ao contrário do que é usual na poesia ovidiana, pouco dada a excessos e
arrebatamentos, parece ter-se atingido o limite e ter-se esgotado a capacidade de
suportar afrontas e traições.
Aparentemente mais claro, desde o começo, do que Catulo, anuncia a ruptura
logo a abrir um dos seus poemas.

Multa diuque tuli; uitiis patientia uicta est.


Cede fatigato pectore turpis amor.10

Muito e por muito tempo suportei. Pelo mal foi a paciência vencida.
Deixa um coração atormentado, ó amor insano.

Deve notar-se, desde logo, uma intensa rede de correspondências internas: tuli
antecipa patientia, e multa diuque reforçam o sentido dessa mesma palavra; uitiis

10 
Ovídio, Amores, 3.11a.1-2.

36 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tão contrário a si é o Amor

documenta um artificioso jogo fónico com uicta; fatigato pectore está em subtil opo-
sição a turpis amor; esta mesma expressão, aliás, turpis amor, a encerrar o dístico,
pode bem ser a explicação de quanto a antecede – uitiis, patientia, uicta, fatigato.
Assim se amplifica a afronta e, também, a perversão em que se traduziu. Patientia,
por seu turno, relaciona-se com fatigato, do mesmo modo que multa e diu.
Logo depois, contudo, repete-se o verbo que serviu de abertura – ferre –, mas
associado a um novo conceito, o de pudor e vergonha; aqui, também, é de notar
o recurso, uma vez mais, a uma arquitectura de preciosismos, consubstanciada em
duplo quiasmo, associado a uma antítese: non pudet contrapõe-se, antiteticamente,
a pudet; e, no quiasmo non puduit ferre … tulisse pudet, já não é só a ordem dos
termos que se inverte, mas também a sua relação interna, que se converte de pas-
sado-presente em presente-passado. O amor, que surgia simbolizado nos grilhões
(catenas), passa a ser, ele mesmo, o subjugado – domitum:

Scilicet adserui iam me fugitque catenas,


et quae non puduit ferre, tulisse pudet.
Vicimus et domitum pedibus calcamus amorem;
uenerunt capiti cornua sero meo.11

Logrei já, sem dúvida, salvar-me e escapei aos grilhões


e o que não tive vergonha de suportar, tê-lo suportado envergonha-me.
Venci. E, depois de o dominar, aos pés calquei o amor,
à minha cabeça chegaram, ainda que tardios, os chifres da virilidade.12

A Eneida, de Virgílio, é, entretanto, um dos textos da literatura latina onde esta


paradoxal coabitação de amor e ódio é mais violenta. O passo em causa é a tragé-
dia de amor de Dido e Eneias, mormente no momento do desenlace. Neste caso,
porém, a antítese não é tão evidente no plano das palavras quanto no das situações;
dito de outra forma, não é tanto na expressão do código retórico que a formulação
antitética mais se evidencia, mas, sobretudo, na organização do código narrativo.
Nos momentos finais, Dido experimenta emoções e reacções totalmente opostas às
de Eneias. A natureza da paixão que desde o início dela se apoderara – a irracionalidade
– manifesta-se. No momento em que, por fim, é dominada pelo desespero, sucedem-se
sentimentos contraditórios. O ódio e a vingança dão-lhe ânimo e força nos instantes
derradeiros. Ambos têm as suas raízes no amor e na paixão, e isso é claramente eviden-
ciado. Em cada palavra de Dido, de despeito, de amargura, de raiva, de ódio, de vingan-
ça, o que se lê, paradoxalmente, é a paixão que se não extinguiu ainda. A vingança por
ela projectada pretende ser uma forma de não mais o deixar, de lhe impor para sempre
a lembrança de si mesma e da pira onde prepara a sua imolação:
11 
Ovídio, Amores, 3.11a.3-6.
12 
Importa referir que os chifres eram sinal de masculinidade, conotação que perdurou ao longo dos séculos (vejam-se,
já na Idade Média, as várias menções simbólicas ao cervo).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 37


Carlos Ascenso André

[…..] Neque te teneo nec dicta refello;


i, sequere Italiam uentis, pete regna per undas.
Spero equidem mediis, si quid pia numina possunt,
supplicia hausurum scopulis et nomine Dido
saepe uocaturum. Sequar atris ignibus absens
et cum frigida mors anima seduxerit artus,
omnibus umbra locis adero; dabis, improbe, poenas.13

[…..] Nem te retenho, nem as tuas palavras eu as contrario:


vai, procura Itália tocado pelos ventos, busca os teus reinos por sobre as
[ondas.
Tenho esperança, é certo, se os deuses piedosos algum poder possuem,
que venhas a sorver suplícios do meio dos penhascos e pelo nome de Dido
muitas vezes venhas a chamar. Mesmo ausente, hei-de perseguir-te com
[chamas de negrume;
e, quando a morte gélida tiver arrancado a alma a este corpo,
por toda a parte, como sombra te hei-de acompanhar.
Tu hás-de sofrer, miserável, o castigo que mereces!

Todo o final da tragédia de Dido é denominado pelo mesmo paradoxo – o


ódio e o amor intimamente enlaçados –; mas, juntamente com este paradoxo, so-
bressaem antíteses várias estrategicamente dispostas na maldição final, em jeito de
profecia pressaga: absens opõe-se a sequar, tal como a absens se opõe, mais abaixo,
adero; a expressão atris ignibus configura, também, um oximoro, quando a olhamos
no plano cromático; o mesmo sucede, aliás, com mors anima.
São expressões do irracional, do desvario, justamente as situações onde mais
facilmente germina o paradoxo.
No suicídio, Dido escolheu a forma suprema de vingança (e que pode ser, para
um espírito desvairado, a forma suprema de amor). A paixão converteu-se no seu
oposto, não menos excessivo, não menos irracional – o ódio.
O mesmo se verifica em Catulo e, pelo menos uma vez, em Ovídio. Este últi-
mo, a dado passo, celebra a hostilidade e o ódio como que enlaçado no amor, uma
espécie de casamento contra-natura assente em paradoxos sucessivos; é,digamos,
uma espécie de exercício lúdico, bem ao gosto ovidiano, de um código retórico
onde abundam oximora e antíteses. Ódio e amor convivem, de forma contraditória,
em espírito que tanto hesita quanto manifesta a sua insatisfação, em arrojo formal
e conceptual a que Catulo, anos antes, havia dado formulação sublime. O amor,
entretanto, parece triunfar. Vale a pena olhar o texto por inteiro:

13 
Aen. 4.380-386.

38 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tão contrário a si é o Amor

Luctantur pectusque leue in contraria tendunt


hac amor, hac odium, sed, puto, uincit amor.
Odero, si potero; si non, inuitus amabo.
Nec iuga taurus amat; quae tamen odit, habet.
Nequitiam fugio; fugientem forma reducit;
auersor morum crimina; corpus amo.
Sic ego ne sine te nec tecum uiuere possum
et uideor uoti nescius esse mei.
Aut formosa fores minus aut minus improba uellem;
non facit ad mores tam bona forma malos.
Facta merent odium, facies exorat amorem.
Me miserum! Vitiis plus ualet illa suis!
Parce, per o lecti socialis iura, per omnis,
qui dant fallendos se tibi saepe, deos,
perque tuam faciem, magni mihi numinis instar,
perque tuos oculos, qui rapuere meos!
Quidquid eris, mea semper eris! Tu selige tantum
me quoque uelle uelis anne coactus amem!
Lintea dem potuis uentisque ferentibus utor,
quam, quamuis nolim, cogar amare, uelim.

Lutam entre si e o meu coração amolecido cada um para seu lado o puxam
daqui o amor, dali o ódio, mas, estou certo, é o amor que vence.
Hei-de odiar, se for capaz; se não, contra minha vontade hei-de amar.
Não ama o jugo o boi; aquilo, no entanto, que odeia, tem de suportá-lo.
Fujo da devassidão; àquele que foge, a beleza o traz de volta.
Abomino os vícios de carácter; o corpo, eis o que amo.
Assim, nem sem ti nem contigo sou capaz de viver,
e parece que nem sei o que quero.
Que fosses menos formosa ou menos velhaca, esse era o meu desejo;
não fica bem a tão grande formosura um carácter tão reles.
Os teus actos merecem ódio, o teu rosto reclama amor.
Pobre de mim!... É pelos seus vícios que ela mais se distingue!
Compadece-te de mim, pelas juras do leito partilhado, por todos os deuses
que tantas vezes te concedem o poder de os enganar
e pelo teu rosto, que tenho por manifestação de um poder divino
e pelos teus olhos, que arrebataram os meus!
O que quer que sejas, sempre hás-de ser minha! Tu, escolhe, ao menos,
se queres que também te queira ou se, antes, contra vontade eu te ame.
Será melhor que eu largue as velas e as solte a ventos que as levem
do que, apesar de o não querer, ser forçado a querer amar-te.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 39


Carlos Ascenso André

Em todo o poema, aquela que parece ser a sua força motriz é a oposição dia-
léctica entre o ódio e o amor; isso patenteia-se, desde logo, no elevado número de
ocorrências de palavras dessa área semântica: em dez dísticos, oito são as palavras
da área semântica do “amor”, cinco as da área do “ódio”.
É um contraste que se evidencia logo na abertura – luctantur, in contraria ten-
dunt – e que se consubstancia, do ponto de vista do código retórico, numa sucessão
de paradoxos e antíteses: hac amor, hac odium; odero… amabo; amat... odit; fugien-
tem reducit; auersor… amo e morum… corpus; nec sine te nec tecum; mores malos,
bona forma; facta, facies e odium amorem; nolim, uelim.
Esta evolução de formulações antitéticas, aliás, obedece a um esquema ovidiano
bem usual.
Surge a abrir, como se disse, o anúncio do paradoxo que há-de ser o seu fio
condutor, isto é, amor/ódio : luctantur… in contraria tendunt, hac amor, hac odium.
Mas logo se afirma o resultado da contenda – uincit amor.
A escolha por um dos elementos da antítese, no entanto, não depende da von-
tade; essa pronuncia-se, inquestionavelmente, pelo ódio: odero, si potero; sabe-se,
porém, desde o começo, que isso não é possível; e por isso se sublinha a contrarie-
dade: inuitus amabo.
Começa, a partir de então, a desenhar-se uma nova série de oposições, com a
intenção de clarificar o motivo das contradições e da hesitação inicialmente enun-
ciadas: as qualidades morais da mulher, ou antes, a falta delas, o seu espírito per-
verso, em claro contraponto à excelência do corpo e à beleza física mores... corpus...
forma. O que repugna ao poeta, no fim de contas, é o vício moral, os defeitos de ca-
rácter; por outro lado, como é próprio de Ovídio, poeta do sensual, do amor físico,
do sexo, o que o atrai é, sempre, o corpo e a beleza: auersor morum crimina, corpus
amo; nequitiam fugio, forma reducit; facta merent odium, facies exorat amorem.
Uma análise minuciosa tornaria ainda mais evidente que o texto documenta
um preciosismo estilístico bem visível, que é, afinal, desde sempre, a expressão mais
adequada do desarranjo interior, do desencontro, do desconcerto. São frases curtas,
antíteses e paradoxos, a par de jogos etimológicos rebuscados e aliterações, tudo
para dar nota de um espírito marcado pelo desassossego. Não será abusivo afirmar
que Ovídio, neste aspecto, é, em certa medida, um precursor de idênticas opções
estéticas de Camões e da poesia do ocaso do Renascimento.
É a Catulo que cabe, contudo, a autoria daquela que é, sem dúvida, a mais su-
blime expressão desta estranha convivência entre contrários, ou seja, entre o amor e
o ódio, nascida da paixão exacerbada e doentia em que o poeta se enredou e que a
sua obra espelha em tantos passos. Trata-se, como é bom de ver, do Carmen 85:

Odi et amo. Quare id faciam fortasse requiris.


Nescio. Sed fieri sentio, et excrucior.
Odeio e amo. Por que assim faço, perguntarás, talvez.

40 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tão contrário a si é o Amor

Não sei. Mas sinto que assim acontece, e atormento-me.


Dificilmente um poema poderia ser mais conciso, sem que isso diminua a sua
intensa expressividade.
Destaca-se, desde logo, o paradoxo inicial: odi et amo. Não é apenas a expressão
pura e dura do aparentemente impossível, ou seja, a paradoxal convivência entre
contrários; é, também, o modo como essa impossibilidade se manifesta, através
de uma concisão e uma simplicidade extremas, numa frase que sobre si mesma se
fecha, numa massa fónica reduzida ao mínimo: não mais que cinco sílabas no total,
todas elas sonoras (somente três consoantes).
Um outro pormenor interessante e significativo é o facto de os dois versos pos-
suírem, no total, oito verbos, mas nem um único substantivo, e apenas um prono-
me. Tudo o resto não passa de auxiliares de expressão, como quare, sed, et. É, sem
dúvida, a manifestação de espírito conturbado, contraditório, dividido, indeciso.
Esses mesmos verbos, aliás, veiculam, ora a indecisão, como nescio, faciam (con-
juntivo interrogativo, dubitativo), ora os sentimentos – sentio, excrucior.
Na sua concisão, é legítimo dizer-se que este poema sintetiza de forma magistral
o percurso do seu autor enquanto amante; e simboliza, em larga medida, o percurso
de muitos outros poetas deste tempo, entre eles Catulo, Propércio, Tibulo, Ovídio:
um percurso, em suma, marcado por oscilações sem fim, vividas ao sabor do tempo,
ditadas por emoções fáceis e fortes.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 41


A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos
Adriano Cordeiro
ISLA
amilho@mail.telepc.pt

Já levantada, a mão tanto será


um recolher da alba ou seu ceder.
A luz comanda o gesto: é por seus fios
que o coração recobra o que mais pode
ser nave ou porto
ou a dúctil alquimia do olhar1.

A obra de Hugo Santos apresenta-se hoje invulgarmente rica e extensa, um


imenso tesouro à espera de uma mão sensível, preciosa que nos apresente com
porfioso labor, leituras possíveis sobre a sua escrita. É que Hugo Santos confirma-
se de trabalho para trabalho, como um dos melhores escritores portugueses da
actualidade. Segundo Fernando Dacosta «a escrita, excepcionalmente depurada e
emotiva, torna o seu estilo frequentemente luminoso. Um universo quente e cúm-
plice individualiza-o e dilata-o como raras vezes acontece na nossa literatura.»
Interrogar-se-ão muitos: quem é Hugo Santos?! Nasceu em Campo Maior na
década de quarenta do século passado e toda a sua extensa e intensa obra nos fala da
vasta e silenciosa beleza do Alentejo raiano, da ternura, do amor, da busca de uma
luz física, sensorial e ao mesmo tempo subtil, quase transcendente.
Poeta, romancista e contista com raro dom de envolvimento do leitor nos mis-
térios e voluptuosos acidentes da vida e da palavra, recebeu já dezassete prémios
literários e conta com quarenta e duas obras publicadas. E mais se esperam!
Não quis ainda a Fortuna acariciá-lo. Avaras intelectualidades as deste país que
tão acremente o esquecem. Pois é! Hugo Santos vive, há muitos lustros na única
casa existente na Calçada das Mestras em Torres Novas, desapegado de corren-
tes literárias específicas e de magnas, mas por vezes maculadas metrópoles. Muito
poucos sabem onde se situa, o que julgam como recôndito local… para um escritor
viver. Talvez um dia… em nome de um qualquer deus da escrita, ou da palavra
olhem com assombro maravilhado a Luz da vida e a poética do Amor entretecida
pelas suas hábeis mãos, os seus profundos ideários e se releiam nos seus Afectos2, em
algumas das suas Raivas, nos seus Ofícios das Nostalgias e compreendam melhor esse
luminoso país ao sul que é o Alentejo profundo que lhe esculpiu segredos inescru-
1 
Hugo Santos, Decálogos do Bom-Amor, Ponta Delgada, Editorial Éter, 1996.
2 
Cf. Hugo Santos, Diário de Raivas e Afectos, Lisboa, Hugin, 2003.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 49


Adriano Cordeiro

táveis, albas, rios pássaros e crepúsculos.


O trabalho hic et nunc que apresentamos apenas poderá por ora constituir como
um singelo átomo, fito de partida e nada mais do que isso, sobre o prodigioso ho-
mem de escrita que é Hugo Santos!
Um riquíssimo caudal lírico-narrativo percorre toda a sua obra de uma forma
intensa, convidando-nos a participar e a jogar com as nossas memórias. «Rouxinol
vagabundo tecedor de nostalgias», o autor através de uma prosa poética que reabilita
o toque clássico entrosado com o registo neo-romântico, rebusca na arca do passa-
do, lembranças, hieróglifos de emoções. Na opinião de Baptista-Bastos o escritor
de Campo Maior apresenta «uma estrutura verbal cada vez mais singular, cada vez
mais apurada e diversificada de ritmos3.»
Os belos e singulares livros de Hugo Santos constituem-se como um itinerário
pessoal, engenhoso, intimista, mas sempre cingido aos outros. Fala-nos de coisas
eternas às vezes ligadas ao trágico, e ao desafio do trágico, comuns à condição hu-
mana4 de todos nós.
Procurarei ocupar-me em algumas das suas obras, a fim de rentabilizar o espa-
ço por Cronos concedido, pois observar neste instante de forma pormenorizada o
seu precioso e extenso trabalho seria algo de hercúleo e pouco conveniente para o
momento. De forma inequívoca far-se-ão também referências a outras premissas,
observadas em outras obras, pintadas5 e cinzeladas pela mão úbere do escritor norte
alentejano.
Centremo-nos então um pouco em Os Caçadores da Luz, romance mágico, ao
mesmo tempo sereno e convulsivo, por ser na opinião de Urbano Tavares Rodrigues
«talvez a sua obra mais genuína e profunda síntese de todas as poéticas reescritas
pelo autor.» Essa é também a nossa convicção. Trata-se de um romance súmula,
pois nele se encontram muitas das suas ideias, postulações e pensamentos.
A Casa dos Deuses ou Carta Aberta a um Deus Menor, trabalho urdido decorria o
ano de 1997, quis o Fatum que só em 2003 tivesse sido publicado com outro título,
Os Caçadores da Luz. Trata-se de um livro intimista, quase autobiográfico6 - como
acontece de resto quase com todos os seus trabalhos - dedicado neste caso especí-
fico por Hugo Santos à sua filha Marta - Deus Menor - e que nos remete para uma
atmosfera de profundo convívio com recordações de antanho.
Como dizia Torrente Ballester no seu Filomeno «o convívio com as recordações
não é fácil. Vão e vêm como querem, segundo a sua lei, fora da nossa vontade, e
é preciso agarrá-las, deixá­-las quietas, quando se metem nas palavras; soltá-las a
3 
Cf. Hugo Santos, Os Caçadores da Luz, Porto, Campo das Letras, 2003.
4 
Cf. Baptista-Bastos in Hugo Santos, Avisos de Bem-Querer, Lisboa, Editorial Escritor, 1992.
5 
Cf. Teoria de Horácio sobre tal matéria na sua Arte Poética, vv. 361 ss.
6 
Até ao momento todas as obras do escritor norte alentejano já publicadas e que são objecto deste estudo apresentam
uma relação muito sui generis entre a vida do poeta e a sua escrita. Trata-se no fundo de um poderoso e irreal fingimento,
ficções e poesias que contêm tantas verdades como a própria vida. A verosimilhança de Hugo Santos literária e estilisti-
camente é inovadora não se assemelhando a nada nem a ninguém. Talvez em certos poemas a Al-Mu’tamid. Veja-se por
exemplo o caso d’ As Mulheres que amaram Juan Tenório, prémio Miguel Torga 2004.

50 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos

seguir para que apareçam outras. De todos os modos, são indóceis, as recordações,
são inclassificáveis e indomáveis. Às vezes aparecem coloridas; outras, ouve­-se como
repetem as palavras sem valor que, não se sabe porquê, ficaram ali, enquanto as
graves, as transcendentes, as felizes, se apagaram para sempre. É necessário especu-
lar; suspender a escrita e perguntar-se: O que é que eu disse, o que é que me disse,
naquela ocasião? Umas vezes acer­ta-se; outras, só aproximadamente; algumas trans-
crevem um diálogo que não pode ter sido assim, mas que nunca se saberá como foi.
Escrever as memórias tem a sua parecença com escrever um romance, mais do que
é conveniente.»
Assim o regista Hugo Santos, pois sabe que mais tarde ou mais cedo terá de
partir. Como todos, afinal. Escreve porque segundo o seu ditame «as palavras fo-
ram sempre o princípio da nossa casa. Das nossas casas. Primeiro a pedra, a trave,
a madeira – os mil e um artefactos da conquista. Depois os pátios, os ventos, os
álamos e o recolhimento das sombras. E assim dispostas as palavras (ah, não te falei
na arquitectura do sonho e no jubi-lo de assumi-lo!), com outro olhar se fitou a
paisagem, se reclamou a terra, se tacteou a semente (...).
Escrevo-te isto e sei que é poesia. Mas também sei que a dúvida te alimenta as
certezas. Crer é, antes de mais, a encenação proposta pelo não-crer. De que te ser-
ve uma certeza se não podes contraditá-la? (...) Todos os rios vão dar ao mar. Pois
bem: imagina o invés. De quantas, grandiosas e imprevistas verdades, se faria a tua
imaginação?». Imagina fértil e cândida a fantasia da sua filha, afinal como o é a de
todas as crianças, pequenos deuses da Luz, elos entre o passado e o que a seguir
há-de chegar.
O diálogo interior recorrente em toda a obra, consigo mesmo, com a pequena
Marta e com o leitor toca-nos profundamente. As inquietudes do poeta são tam-
bém as nossas: «E, no fundo, porquê estares inquieto? Sossega, sossega…Os dias
não acabam hoje. A esta tarde quente se seguirá a luz breve do crepúsculo, o bailado
das sombras e um recôndito apelo, vindo da fundura da noite que se aproxima, a
que naturalmente terás que responder. Não penses no que dirás. As palavras foram
feitas para a surpresa e o maravilhamento de proferi-las, não para a complacência da
sua pronunciação.
(...) De que nos servem, para onde encaminharmos as naus de névoa das pala-
vras?»
Logo a seguir uma nova referência à pequena e terna mão infantil de Marta:
«Lembro: a tua mão inclina-se suavemente para o papel, parece ir adormecer sobre
ele. A palma para baixo, o polegar e o indicador sustendo ainda com dificuldade a
ponta afiada do lápis – a indecisão do gesto complementado o ofício divino da sua
anunciação. «Vamos desenha o sol». Procuras o canto esquerdo da folha de papel:
pressinto que aí encontrarás o sol. E uma ave depois, uma árvore, o acolchoado azul
duma nuvem, porventura a imprecisa pegada de quem, intruso e inesperado, veio
observar o voo, gozar a sombra, colher a luz. Claro, é o teu mundo.
(…) Escrever-te, entendo-o hoje, é assumir a fragilidade do homem que me

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 51


Adriano Cordeiro

habita.
(…) Tens a luz e a emoção – que mais podes desejar? Tens ainda, meu pequeno
deus menor, tempo para interrogares os ventos, peneirares as névoas, contares as
areias, acariciares as brumas e aguardares as naves. E, enquanto esperas, novo tem-
po te virá para a indecisão de buscares.
(…) Falo-te, meu frágil deus menor, dum tempo de grandezas e usurpações,
de mentiras e verdades, de descrenças e esperanças, de medos dúbios, anónimas
coragens, fortuitas revelações – falo-te da usura dos silêncios. Que definitivamente
se foi? Não o sei também. Escrever (escrever-te) é-me hoje anteceder o naufrágio e
recolher os despojos. E, mais que tudo, recuperar das palavras o eco fugidio do seu
pronunciamento.»
E o poeta-romancista vai em busca do «velo de ouro» da Luz, qual argonauta
dos tempos pré-clássicos de antanho. O importante não é chegar, mas ir e diz: «(…)
Vamos sobe à montanha, procura o velo d’ouro no mais alto, no mais inacessível,
no mais recôndito lugar da terra. Não vás pelos caminhos que os teus olhos vêem,
mas por aqueles que a imaginação do olhar te reclamar. Tentarás chegar. Ah, mas
se o não conseguires, não desesperes. Chegar não é o mais importante. Chegaremos
algum dia? E onde? E quando? E estará lá o velo d’ ouro da verdade que procu-
ras?»
E eis o Alentejo também ele solo nostálgico, pátria de naves, abertura para a
bruma de outros tempos que são estes também, terra de amores e desamores, de
sangue que lateja nas veias, de Luz intensa e céu azul. A poética do amor entreteci-
da pelo grande escritor nato em Campo Maior tem profundas marcas clássicas. Tal
como em Ovídio7 percebemos na obra de Hugo Santos um certo desterro, expe-
rimentamos uma triste e inabalável nostalgia, um exílio incessantemente revivido,
pois a casa ancestral da «eternidade» da «Luz» é um elemento sempre omnipresente
da sua produção escrita.

Falo-vos dum país adiado.


As grandes verdades couberam sempre
numa serena nave vagando entre o olhar e o longe.
Plantámos árvores: não vimos crescer a floresta.
Alquimistas de sonhos, deixámos passar os ventos
e incendiámos oceanos.
Pegámos uma flor dissemos: «Isto é uma flor».
Mas omitimos suas cores e a memória que lhe cabia.
À humilhação respondemos quase sempre com uma lágrima
ou o furtivo sussurrar duma palavra entre os lábios fechados.
Párias de mil pátrias, optámos pelo exílio dos silêncios.

7 
Tal como em Ovídio assim também em algumas das poesias de Hugo Santos experimentamos momentos de um
erotismo surpreendente.

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A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos

Minha mãe, entretanto, semeava nenúfares nos rios da nossa casa.


Sentava-se à soleira do plátano, recolhia seu pólen
e só depois catalogava os despojos.
Escrevia cartas de si a si; as mãos tremiam-lhe.
Artesã de esperas, sabia o nome de todos os barcos
que clandestinamente acostavam à planície.
Pela luz da alma rememorava os naufrágios.
Filhos de deuses, escolhemos a mais humana face dos presságios.
E, subornados, pela luz entreolhámo-nos.
Depois, quando vieram os ventos de Abril, foi só tempo
de recolhermos as chuvas e amadurarmos a colheita8.

Hugo Santos deixa-nos algo de espantoso tal como Al-Mu’tamid: os seus pró-
prios versos. E esses versos têm o valor de um verdadeiro diário espiritual, porque
Hugo Santos tal como o magno poeta luso-árabe nascido em Beja no século XI,
rei de Silves e Sevilha, fez poesia em todos os momentos da sua vida: na graça, na
desdita, no amor!... Fê-lo quando estava apaixonado, quando se sentia desgraçado,
em todas as oportunidades. Ambos nos deixam um testemunho ímpar.
O artista na opinião de muitos, quando cria uma obra, está a exibir uma másca-
ra: tem diversas máscaras, cada poema poderá ser uma máscara. Fernando Pessoa,
enquanto iniciado, disse que «o poeta é um fingidor.» É essa máscara que cada um
poderá preencher ao ler. «E, no acto de ler, transformará a máscara – uma coisa de
fingir, inanimada – e dar-lhe-á vida, realidade. A criação artística é um mistério e
os mistérios não são para ser explicados, são para ser vividos. (…)9» Hugo Santos
tal como Al-Mu’tamid apresenta várias máscaras de si próprio, às vezes tão reais…
Ambos os poetas nascidos no cálido solo alentejano e a dada altura exilados da
primeira vida se pintaram como pensavam ser e pensaram como queriam parecer
aos outros.
Para ambos os poetas «o Amor é sentirmos que somos, não apenas nós, mas
também o outro, ou seja, que o outro não existe verdadeiramente fora do Mes-
mo10.
A subjugação à beleza feminina em alguns passos da obra Hugo Santos lembra-
nos outro grande poeta luso-árabe nascido em Silves, Ibn ’Ammar, companheiro e
primeiro-ministro de Al-Mu’tamid11.
São posições estruturantes em todo o pensamento poético-narrativo de Hugo
Santos o seu ecumenismo humanista, a sua constante busca da Luz que é a vida,
mas também as memórias e as sementes indeléveis deixadas por cada ser à face da

8 
Cf. Hugo Santos, Diário dum Construtor de Naves, Lisboa, Editorial Éter, 1996. p. XXX.
9 
Adalberto Alves, Portugal - Ecos de um passado Árabe, Lisboa, Instituto Camões, 1999, p. 19.
10 
Idem Ibidem, p. 21.
11 
Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji, Ibn ‘Ammar Al-Andalusî, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p. 55.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 53


Adriano Cordeiro

nave Terra. De tudo isto nos fala a sua excepcional obra em todas as ocasiões.
Ainda que separado fala-nos do seu Alentejo natal, região de grandes longes,
planícies de espaços ilimitados trazendo um verso em cada mão. As suas obras não
deixam nunca de reflectir a face telúrica, e o imaginário do espaço transtagano
de tempos idos12, onde uma Luz dourada o religa com o passado que também é o
presente.
Voltou o poeta e não encontrou a árvore, nem escutou o canto do rouxinol.
«(…) A casa é a minha eternidade. Buscai-me aqui, mesmo que não esteja. Procurai-
me, mesmo que não volte. (…) Fomos feitos para permanecer. Cortou-se a árvore;
lembraremos a sombra. O vale, os ventos e a montanha sentirão, rejuvenescida, a
presente ausência dela, a árvore. A luz virá, a cada alba, lembrar o espaço úbere das
folhas, das asas e dos frutos. Talvez digamos: «Vim e não encontrei a árvore, não
escutei o canto do rouxinol». Cerrai os olhos, peço-vos. Ouvi quem vem. Que im-
porta o tempo? Tudo está aí, voltado para o eco inicial do que fomos.»
A «casa-mãe» em Campo Maior é o local do bulício das primeiras interroga-
ções, espaços mentais que pairam sobre espaços físicos. As ruas, os cheiros, os sons
de um «país sem pátria» de um «país de sul e solidão», as verdades, as mentiram, as
emoções, ódios e afectos. O pai, a beleza humilhada da mãe, a tia Maria a inespe-
rada morte da avó Feliciana, a dor as contínuas ansiedades que levam a questionar
a existência de Deus àquele petiz aprendiz de ventos, de corpo franzino que vive
ainda hoje na presença do que é, escreve e ama sofregamente a vida...
São as dúvidas que conduzem o poeta à sabedoria do não saber e diz: «A uma
montanha ( ...) se seguirá outra e outra e outra.»
A horaciana ideia do tempo que passa e não volta, matizada por inultrapassáveis
formas com sensações e raízes bem portuguesas é também laboriosamente desen-
volvida pelo escritor de Campoamor: «Lançou-se a pedra à água. Serás capaz (por
mim to exijo) de recuperares o gesto, redesenhares o círculo, prolongares, o breve
ondular dos ranúnculos do rio? Sei que outra é a mão e outro também o jeito de
arremessá-la. Outra a pedra e a água? Diferente o círculo? Dragados pelo tempo
morreram os nenúfares.»
Ricardo Reis é desta forma, também seu companheiro de ideias, entristecendo-
se o poeta de Campoamor com a tristeza de saber o que é.

Os dias passam porque é esse o seu mester: passar.


Cheios de vozes ou silêncios,
de humilhadas renúncias ou alvorotadas esperanças, passam.
Têm a idade que medeia entre uma e outra alba,
uma noite e outra noite,
imparáveis como um rio sem foz.
12 
Cf. Manuel Garrido in Hugo Santos, Vinte Cartas para um Deus Ausente, Fânzeres, Junta de Freguesia de Fânzeres,
1993.

54 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos

Caminham (os dias) tão-só por caminhar,


oficiantes de luzes e crepúsculos,
colhendo os grãos de areia da sua ânfora de destinos.
Dizemos «os dias» e envelhecemos a seu lado.
Não olham (eles) a tamareira que plantei junto ao muro,
nem o álamo, nem o plátano, as oliveiras do pátio.
Rasam sobre as coisas a afiada lâmina das ausências.
Sem sentido aparente, passam. Carregados de infinitos,
rodam sua pedra de astros pelas ingastáveis planícies
do tempo.
Dizemos: «amanhã». Mas amanhã não existe.
Os dias estão aí (in)ajustáveis ao amanhã que não há
Nada nos será gratuito nunca. Nem a vida nem a morte
Porque não nascem nem morrem os dias. Passam apenas.
E, entre as trevas e a luz, retomam o jogo de espelhos
da irrecusável certeza que os traz: passar13.

E o que transparece incessantemente d’ A Casa dos Deuses? Uma reflexão, uma


meditação existencial tal como em Horácio. A vida é um palco, onde cada um en-
cena mais ou menos máscaras e comoções.
Depois sobrevem a morte diz-nos o poeta-narrador: «A morte (a ausência) é,
muitas vezes, a forma mais vivificadora da presença», da Luz. É terrível o poder de
recordar. O tio Narciso, a biblioteca as primeiras leituras. Um dia será o seu deus
menor - Marta sua filha - a inventariar e a catalogar os despojos, talvez doutra casa,
tendo sempre em mente que «as certezas são mais mutáveis que as ilusões.»
Para o poeta-narrador a imagem do pai, com o seu bornal de estrelas e por
quem os livros da vida lhe foram dados, está continuamente omnipresente. Os lon-
gos passeios pelo Caia e pelo Guadiana donde se avistam as «Dos Hermanas.» Os
campos de Olivença ao longe. Os felizes dias de caça e pesca com o pai, as gerações
de vários cães, também eles dotados de personalidades diferentes.
A mãe e o papel da tia Maria. Os outros membros da família. A comovida
morte do pai:
«Há momentos na vida, deus menor, em que as águas parecem retomar ao
ponto de partida. Não há antes nem depois, mas apenas a anunciação plena
do instante preciso da evocação. A presença do pai era tão real quanto o ade-
jar das garças que persistiam em rasar a água, a caminho do matagal cerrado
das lagoas dos Três Moinhos.»

A natureza é também ela à boa maneira do lirismo das cantigas de amigo dos

13 
Cf. Hugo Santos, Diário dum Construtor de Naves, Lisboa, Editorial Éter, 1996. p.I.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 55


Adriano Cordeiro

primórdios da nossa lírica, confidente do poeta. Num regresso de muitos anos de-
pois, fala em interiorizado monólogo com «Foge-ao-Vento», pescador que vivia nas
margens do rio Guadiana num velho moinho. Problemas familiares já esvaziados
são relembrados como se fossem um puzzle de nostalgias sempre presente. Depois
a guerra em África com as suas fratricidas mortes. Aura a primeira paixão. A emi-
gração para a Europa que empobrecia e esvaziava o país de recursos. O jogo sem-
pre lúdico e por vezes, perigoso das palavras; a polícia política sempre vigilante a
desatentos vocábulos. Porém, todos sabemos já, que a vida é um teatro de palavras.
Depois venda do último olival. Não foi dono da terra. A mãe que ficou só. A partida
de Aura para a África do Sul.
Uma tarde veio Sofia, avassaladora de paixão desencadeadora de grandiosos
hinos ao Amor. Era agora professor. Sofia partiu: «A solidão solidária, ouves-me tu,
aí? A melancolia, quase doce, do teu olhar, Sofia.»
Com Maria Irene outro amor e as utopias, as conversas vagueando por aqui,
por ali, sempre vagueando. Para o poeta foi aquele um tempo de utopias. Embora
desvanecidas ainda o será.
Chegou depois o 25 de Abril e o relato da história deste país das últimas décadas
e também políticas ironias, entretecidas na vida do poeta. Maria Irene e a paixão
de conversar. A morte da mãe assim descrita: «Vejo-te, sempre, velha, caminhando
entre áleas de tílias, quando as nostalgias requerem a tua presença.»
A «estação das lembranças», porque «feita (s) do passado, do presente e do futu-
ro de todas as outras, é uma estação sem tempo.»
Regressa de novo ao ensino. Esse o poeta que está dentro de si vai florindo cada
vez mais. E o jogo das palavras é cada vez mais intenso. São as palavras na opinião
do narrador, o artefacto das novas recordações da ligação ao momento actual. Ex-
plica ao seu deus menor «que as coisas já não são como eram, que até os pássaros
desertaram do nosso país-ao-sul.»
«(...) Desci ontem ao meu país-ao-sul. Quase desconheço os lugares do assom-
bramento. Uma voz ou outra, a espaços, sacudindo-se da poeira dos anos, vem
alertar-me para interiores peregrinações que não recuso.»
As recordações do pai continuam presentes: «Quando se caminha para o fim
(tu sabes, velho, que os anos não perdoam) valoriza-se mais a vida, nossa e as dos
demais.»
De seu pai lhe ficou um interrompido gesto de camponês de astros, um celeiro
de seus ventos, um porão de certezas e de dúvidas.
Não foram fáceis as palavras quando os potros da memória fizeram ouvir seus cascos
pelas longas planícies da solidão. Sabíamos, no entanto que outras naves assomavam já
ao vale e recolhiam o néctar de mais ventos, a anunciação dos deuses que tomavam14.
As recordações estão sempre omnipresentes:

14 
Hugo Santos, Os Rios Sobre a Parede, Mira-Sintra - Mem Martins, Câmara Municipal de Sintra, 1992, p. 24.

56 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos

Da vida e da morte sei hoje os imponderáveis signos da renúncia.


Uma guitarra de ventos me sobeja para a colheita maior dum novo olhar.
Planto álamos, escrevo cartas, reparto como posso as leiras do silêncio.
Agricultor de palavras como meu pai, artesão de esperas como minha mãe,
aguardo o sinal das naves lunares do amanhecer.
Delas ouvirei a hora certa de segar o trigo que me cabe
e armazenar seus longes.
Sei que a terra, por mim, responderá15.

Voltando à obra Os Caçadores da Luz, o fio de conversa com o seu deus menor
permanece desde a primeira até à última página, com avanços e recuos cronológi-
cos. «Às vezes, deus menor, sentimo-nos como actores de um filme que, ainda que
emocionalmente nosso, nos não pertence por completo.» Termina confidenciando
ao seu deus menor - Marta -, sua filha e a nós leitores: «(...) Que queres tu mais? Esta
é, sem apelo, a pátria que nos pertence.
Como disse a tia Maria, a história não acaba aqui, deus menor.»

«Ficou a luz, pousada sobre um mútuo olhar enternecido.»16

Tempos antigos sempre relembrados. Uma Luz sempre omnipresente resplan-


dece a cada passo no seu espírito, transmutando-a metaforicamente para o leitor. A
Luz incessante que todos procuramos. A Luz das memórias de esquivas lembranças
e que remexem a cada momento.
Voltou o poeta e não encontrou a árvore, nem escutou o canto do rouxinol.
Mas que importa o tempo. Ah, esse inexorável Orco que nos persegue... sem que
possamos sequer esbracejar!
Como professor diz-nos Hugo Santos que aprendeu mais do que ensinou. Não
se sente frustrado por isso. Nunca soube ao certo por onde, nem como devia co-
meçar. Foram as comoções a escrever no quadro negro os pontos cardeais dessa sua
inquietante aventura de ser poeta e mestre-escola. Os números e as letras tornaram-
se pássaros e rios cujo rumo sempre desconheceu. Avaro lhe foi tantas vezes o nego-
tium! Não foi dono da terra17.
O humanismo patente na sua escrita lembra-nos Séneca, Sartre, Virgílio Ferrei-
ra, outras vezes, Horácio, Tibulo, e até o azedume político de Marcial está tantas e
tantas vezes presente nos seus labores literários. A poética da ternura, do amor até
do exílio, interior e espacial em relação ao seu Alentejo natal são também outras das
peias mestras da sua já longa carreira de escritor. As relações com Fernando Pessoa
e heterónimos são também intensas.

15 
Hugo Santos, Os Rios Sobre a Parede, Mira-Sintra - Mem Martins, Câmara Municipal de Sintra, 1992, p. 54.
16 
Idem Ibidem.
17 
Cf. Hugo Santos, Diário de Raivas e Afectos, Lisboa, Hugin, 2003, p. 12.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 57


Adriano Cordeiro

Nas poesias da obra O Caçador, presa e perseguidor assomam e rememoram-


nos ecos camonianos de pensamento e linguagem que podem ser testemunhados
pela musicalidade das frases, pelo colorido melancólico das descrições, pela extrema
sensibilidade da análise íntima, pela chama erótica, pela reinvenção do Amor:

Tão ajustada a mão a seu tremor,


tão quente de seus dardos o olhar
que no círculo da mira a presa ilude
os contornos da luz que o predador
por seu mester clama.
Entre a vida e a morte pouco mais
que um breve palpitar; um devoluto
penhor que a si se cobra.
Dos ardis da caça só se sabe
este tenso fruir que, vindo ao corpo,
suas naves de gozo aí aporta.
Tão retesada a corda, ai atentai
como no vento roçando já retinem
as catedrais maiores da floresta18.

Numa outra obra sua, Os Dias da Espera, colocada invariavelmente no femi-


nino, na voz deuxième sexe que Simone de Beauvoir tão admirável e contunden-
temente dissecou, Hugo Santos faz lembrar em não poucos passos, a luxuriante
teatralidade nupcial do Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. Este livro de
Hugo Santos vem trazer-nos no quadro de um intenso alegorismo, que é uma das
suas características mais assinaláveis, toda a envolvência da aproximação, aqui ou ali
sobressaltada mas em linha geral de crescendo entre dois seres19.
As antíteses que caracterizam o mundo antigo, desde a filosofia à vida quoti-
diana, tais como trabalho/lazer, amor/ódio, eu/outro, natureza/lei, homem/mulher,
guerra/paz, vida/morte, justiça/injustiça, cidade/campo e que servem de mote a este
Congresso, todas elas estão presentes na obra do grande escritor de Campoamor.
Porém o tempo urge.
Hugo Santos põe em causa algumas das teorias nossas contemporâneas, de-
senvolvidas por alguns teóricos da literatura dos últimos lustros, quer ao nível da
narrativa quer ao nível da poética.
A sua notável obra plena de evocações metafóricas, ou de palavras enigmas
merece um estudo lúcido e profundo É sem sombra de dúvida, um dos maiores
escritores portugueses dos últimos tempos, com uma peculiar maneira de escrever e
de apresentar o mundo que o rodeia. O bornal das suas palavras é verdadeiramente

18 
Cf. Hugo Santos, O Caçador, 1994, p. 1.
19 
Cf. Hugo Santos, Os dias da Espera, Torres Vedras, Câmara Municipal de Torres Vedras, 1993, p. IX.

58 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Indelével Busca da Luz na Obra de Hugo Santos

único, singular. O seu estilo é poderosamente próprio. Pena é que os seus escritos
sejam tão pouco conhecidos.
Em agradável otium consertámos um pequeno percurso por algumas das obras,
do grande escritor das letras portuguesas norte alentejano que é Hugo Santos, sem-
pre independente, secreto, misterioso e discreto.
Bebamos na magnífica e clássica prosa entretecida por Hugo Santos que faz dele
um dos maiores escritores de Língua Portuguesa do nosso tempo. Embriaguemo-
nos na Luz silenciosa e bela do Alentejo da raia, busquemos a Luz das nossas vidas
e com a alma plena atingiremos a utopia de ser...
A busca da Luz permanecerá efectiva e indelével na sua obra...

«Pela luz vieste: toma-a inteira e inaugura a alba 20.»

20 
Cf. Hugo Santos, Os dias da Espera, Torres Vedras, Câmara Municipal de Torres Vedras, 1993.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 59


O Idílio 2 de Teócrito:
uma feiticeira temível ou uma jovem desesperada?

Cláudia Cravo
U. Coimbra
claudiacravo@hotmail.com

O Idílio 2 de Teócrito dá-nos a conhecer Simeta, uma jovem mulher que recor-
re às artes mágicas na tentativa de recuperar a afeição de Délfis, um atleta
com quem manteve um relacionamento amoroso e por quem é ignorada há já onze
dias. O poema abre em plena acção, com Simeta a dirigir-se impacientemente à
sua escrava Téstilis com instruções muito precisas, concernentes aos preparativos
do ritual mágico que vai ter lugar a partir do v.17. Os primeiros dezasseis versos
funcionam como uma introdução, na qual Teócrito informa os leitores do que se
está a passar. Simeta procura o louro e os filtros de amor e ordena a Téstilis que
cinja uma taça com lã de cor vermelha. Anuncia, por duas vezes, a sua intenção
de prender o homem que ama, e passa de imediato a resumir a difícil situação em
que se encontra: Délfis não vem visitá-la nem quer saber dela, certamente por-
que encontrou um novo amor. A jovem está determinada a ir ter com ele, no dia
seguinte, à palestra de Timageto, mas antes quer prendê-lo por meio de feitiços.
Invoca, então, em voz baixa, Selene e Hécate, divindades de quem espera a ajuda
necessária para levar a sua empresa a bom termo. A Hécate dirige uma súplica
muito concreta: roga-lhe que a acompanhe até ao fim, para que os seus pharmaka
sejam tão eficazes como os das magas mais ilustres da Antiguidade.
Inicia-se aqui o ritual de encantamento amoroso, que nos é descrito em porme-
nor. Quase todas as operações desenvolvidas pelas duas mulheres pertencem à ma-
gia dita ‘simpática’, no sentido em que a transformação realizada sobre um objecto
pretende ter uma repercussão análoga sobre a pessoa visada pelo rito. Porque o uso
da palavra é indispensável para que qualquer acto mágico seja eficaz, os gestos de Si-
meta são quase sempre acompanhados de preces ou da expressão de um desejo, e o
nome de Délfis é repetido com insistência. A rapariga começa por queimar farinha
de cevada e louro, que simbolizam, respectivamente, os ossos e a carne do homem
amado. Passa depois a queimar o farelo, e é nesse exacto momento que os latidos
das cadelas anunciam a chegada de Hécate. O silêncio dos elementos da natureza
é um novo indício da presença da temível divindade. Segue-se o derretimento da
cera, muito provavelmente modelada numa figurinha representativa de Délfis, com
o intuito de fazer com que o próprio se derreta de amor. Entretanto, a serva recebe
ordens para fazer girar um rombo de bronze, numa tentativa de que, da mesma
forma, o atleta regresse, louco de paixão, à porta da sua ama. A cerimónia prossegue
com uma tripla libação, que vem acompanhada de um conjuro, também repetido
três vezes: Délfis deve esquecer o seu novo amor, da mesma forma que Teseu es-
queceu Ariadne, ao deixá-la abandonada numa ilha. A este paralelismo inspirado

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 61


Cláudia Cravo

na mitologia, segue-se um outro, de cariz muito diferente, desta vez retirado da


natureza: Simeta deseja que Délfis vá até sua casa, completamente enlouquecido
de amor, tal como as éguas enlouquecem nas montanhas da Arcádia sob a influ-
ência de uma planta, de nome hippomanes. O sortilégio propriamente dito termina
quando a protagonista queima uma franja do manto de Délfis. A intenção desta
prática é evidente e decorre da crença generalizada de que um objecto (ou parte de
um objecto) que tenha estado em contacto com o corpo de um indivíduo permite
exercer uma acção sobre ele.
A cena de magia chega ao fim num ambiente de ameaça. Simeta declara a sua
intenção de, no dia seguinte, levar ao amante infiel uma poção maligna. Ainda
assim, ordena a Téstilis que saia de casa para realizar um feitiço no umbral da por-
ta de Délfis, com aquilo a que chama throna, que, ao que parece, seriam as ervas
mágicas que tinham estado a cozer no caldeirão durante o encantamento. E é deste
modo que termina a primeira parte do idílio, ao longo da qual Simeta repetiu dez
vezes a mesma frase-refrão, onde reclama o regresso do homem amado através da
invocação de uma roda mágica que, ao que tudo indica, teria estado continuamente
em movimento.
Até este ponto do texto, tivemos diante dos nossos olhos uma mulher forte,
segura, empenhada em alcançar, a todo o custo, aquilo que pretende e, por isso
mesmo, temível. Simeta dá ordens precisas, sabe que é conveniente agir depressa e
impacienta-se quando a criada não é suficientemente ágil a espalhar a farinha de
cevada. Esta sua diligência parece ser indício de uma grande familiaridade com
práticas rituais de feitiçaria. E muitos outros pormenores apontam nesse mesmo
sentido: Simeta sabe que as operações mágicas devem ter lugar durante a noite; pro-
nuncia os encantamentos em voz baixa, como é habitual em contextos ligados ao
sobrenatural; conhece a ligação do número três à magia; sabe que os latidos dos cães
são um sinal da chegada de Hécate — e isto só para citarmos alguns exemplos. Ten-
do em conta o desempenho de Simeta ao longo da cerimónia mágica que conduz,
o mais fácil será mesmo concluir-se que a protagonista do Idílio 2 é uma verdadeira
feiticeira, uma mulher experiente em práticas de encantamento amoroso, que sabe
exactamente o que fazer para recuperar o amante infiel e cujas acções infundem te-
mor. Esta é, de facto, a opinião de vários eruditos actuais, dentre os quais podemos
destacar Tupet, Bernand e Faraone1. Mas a crítica moderna é tudo menos unânime
quanto à avaliação que faz da figura de Simeta, e se, de um lado, há os que vêem esta
mulher como uma profissional sábia e assustadora, do lado oposto encontram-se
aqueles que defendem que Teócrito quis caracterizar a sua protagonista como uma
pobre jovem vulnerável e infeliz, que procura, por todos os meios, e sem grandes
conhecimentos de magia, reaver o homem que ama. Esta última teoria é defendida
por estudiosos como García Teijeiro, Griffiths e Segal2, entre outros.
1 
A.M. Tupet, La magie dans la poèsie latine I. Des origines à la fin du règne d’Auguste (Paris, 1976) 151-153; A. Bernand,
Sorciers grecs (Paris, 1991) 175-181; C.A. Faraone, Ancient Greek love magic (Cambridge, 1999) 140-154.
2 
M. García Teijeiro, «Il secondo Idilio di Teocrito», QUCC 61 (1999) 71-86; F.T. Griffiths, «Home before lun-

62 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Idílio 2 de Teócrito

A coexistência de sentimentos antagónicos em face da figura de Simeta é, em


nosso entender, perfeitamente justificável e deve-se ao facto de a própria construção
da personagem assentar numa antítese. O objectivo deste nosso trabalho é, preci-
samente, fazer sobressair o contraste existente entre a feiticeira temível que Simeta
aparenta ser e a rapariga ingénua e desamparada que realmente é. Com este pro-
pósito, passaremos agora a analisar os vários detalhes — alguns deles muito subtis
— que indiciam esta antítese e que nos hão-de levar a concluir que a protagonista
do Idílio 2 não é uma maga convincente, pois ostenta uma segurança que, de facto,
não tem.
Após o afastamento de Téstilis, Simeta decide dirigir-se à Lua para lhe confi-
denciar os seus males de amor. No solilóquio que constitui a segunda parte do poe-
ma, a jovem relata as várias etapas da sua atribulada relação com Délfis, ao mesmo
tempo que vai desvendando facetas da sua personalidade até então pouco perceptí-
veis. Simeta começa por recordar as circunstâncias do seu primeiro encontro com
o atleta: convidada por uma vizinha para ir assistir a uma procissão em honra de
Ártemis, ela acaba por aceder e é a meio do caminho que se cruza, pela primeira
vez, com o homem que haverá de ser seu amante. Délfis vinha com um amigo e o
brilho da pele de ambos deixava perceber que acabavam de sair do ginásio. É com
emoção que a rapariga descreve os sintomas arrebatadores causados pela visão de
tamanha beleza: o seu coração ficou abrasado e foi como louca que voltou para casa,
já sem ânimo para assistir à procissão; durante dez dias e dez noites esteve de cama
com febres muito altas; a sua tez mudou de cor, os seus cabelos caíram e emagreceu
muito, até ficar só em pele e osso. Neste ponto da narrativa, a jovem interroga-se a si
mesma, nos seguintes termos: «Que casa deixei eu de visitar? A que velha entendida
em encantamentos deixei eu de me dirigir?» (vv.90-91), numa clara alusão às muitas
diligências que terá feito junto de feiticeiras experientes, capazes de ajudá-la naquele
momento particularmente difícil da sua vida. Esta circunstância, que poderá passar
despercebida ao comum dos leitores, reveste-se da maior importância para a avalia-
ção da figura de Simeta, uma vez que torna evidente que a protagonista do Idílio 2,
ao contrário do que quer fazer crer, não é uma profissional das artes ocultas, mas
apenas uma mulher, como tantas outras haveria, que recorre à magia em desespero
de causa.
Não é este o único passo em que as declarações de Simeta contrastam aberta-
mente com a imagem de feiticeira implacável que encontramos na primeira parte do
poema. No final do idílio, depois do relato detalhado do seu envolvimento amoroso
com Délfis e da intimidade física que os unira, a jovem revela o modo como tivera
conhecimento da infidelidade do amante: a mãe das suas amigas Filista e Melixo
contara-lhe, naquela mesma manhã, que o atleta tinha um novo amor. Confron-
tada com a triste notícia, Simeta conclui que Délfis tê-la-á, por certo, esquecido,
ch: the emancipated woman in Theocritus», in H.F. Foley (ed.), Reflections of women in Antiquity (New York, 1981)
247-273; C. Segal, «Simaetha and the Iynx (Theocritus, Idyll 2)», QUCC 15 (1973) 32-43; C. Segal, «Alphesiboeus’
song and Simaetha’s magic; Virgil’s Eighth Eclogue and Theocritus’ Second Idyll», GB 14 (1987) 167-185.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 63


Cláudia Cravo

porque antes vinha vê-la três ou quatro vezes por dia e entretanto já onze dias pas-
saram desde a sua última visita. Nesta altura, profere então as seguintes palavras,
dirigidas, como sempre, à Lua: «Agora vou amarrá-lo com os meus feitiços de amor!
Mas se ele continuar a atormentar-me, pelas Moiras que é à porta do Hades que
irá bater. tão perigosas são as drogas que guardo para ele no meu cofre, conheci-
mentos que aprendi de um estrangeiro assírio» (vv.159-162). Mais uma vez aqui nos
apercebemos de que Simeta não é uma feiticeira sábia e experiente. Para conhecer
os pharmaka que poderão causar a morte de Délfis, ela tem de consultar um mago
de profissão, neste caso alguém da Assíria, região de onde são provenientes terríveis
feiticeiros. O discurso acabado de citar deixa ainda entrever uma enorme insegu-
rança relativamente ao sucesso dos seus feitiços, pois a rapariga coloca a hipótese
do prolongamento do seu sofrimento amoroso («mas se ele [Délfis] continuar a
atormentar-me…»). Poucos versos depois, encontramos uma nova evidência da sua
pouca fé nas acções mágicas anteriormente realizadas, quando, ao despedir-se da
Lua, sua confidente, Simeta diz: «eu suportarei a minha paixão, como a suportei até
agora» (v.164). Estas declarações surpreendem quem esperava voltar a encontrar-se
com a mulher confiante da primeira parte do idílio e são a prova concludente de
que essa mulher segura de si mesma é apenas o disfarce usado por uma outra, que
não passa de uma jovem ingénua e desamparada, prestes a perder a esperança de
recuperar o homem que ama e com quem perdeu a virgindade.
A verdadeira natureza de Simeta revela-se apenas na segunda parte do poema,
mas é interessante notar como, desde o início, Teócrito foi deixando pequenos si-
nais que denunciam a carácter da sua personagem. Logo no v.8, enquanto fazia os
preparativos para o encantamento que se ia seguir, a rapariga profere as seguintes
palavras: «Amanhã irei à palestra de Timageto para ver Délfis e dizer-lhe como me
atormenta, mas agora quero prendê-lo com os meus feitiços». Se Simeta acreditasse
no seu poder como feiticeira, não teria premeditado encontrar-se com o amante
para repreendê-lo. O leitor mais atento apercebe-se, de imediato, que a jovem mu-
lher está muito longe de ter segurança na eficácia da sua magia, não obstante queira
fazer parecer o contrário. Um pouco mais adiante, no v.15, Teócrito coloca um
erro muito subtil na boca da sua protagonista, ao fazê-la trocar o nome da feiticeira
homérica Agamede por Perimede3. Para além de acrescentar um toque humorístico
ao poema, este equívoco de Simeta caracteriza-a, deste logo, como inculta e pouco
versada em assuntos de magia. No v.58, já no final do sortilégio amoroso, a rapariga
volta a indiciar falta de confiança no êxito dos seus feitiços, quando projecta levar a
Délfis, no dia seguinte, uma poção maligna preparada com lagarto esmagado.
Os detalhes que temos vindo a enumerar tornam evidente que a protagonista
do Idílio 2 não é uma verdadeira feiticeira. Devemos ter este facto bem presente
quando avaliamos a cena de encantamento do poema, caso contrário facilmente

3 
Tal como H. White (Studies in Theocritus and other Hellenistic poets, Amsterdam, 1979, p.21) sugere, esta é a interpre-
tação mais verosímil para o uso do nome “Perimede” ao lado de figuras tão ilustres da magia, como Circe e Medeia.

64 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Idílio 2 de Teócrito

incorreremos no erro de muitos estudiosos, que tentam ver no ritual descrito por
Teócrito uma fonte de informação rigorosa sobre as práticas reais de magia amorosa
na época helenística. Embora esteja completamente fora do nosso propósito debater
aqui esta complexa questão, convém todavia referir que uma análise pormenoriza-
da dos rituais desenvolvidos por Simeta permitir-nos-ia concluir que o poeta não
descreve ritos precisos, mas antes uma série de práticas mágicas entrelaçadas, que
muito dificilmente seriam usadas em conjunto4.
Sem pretensões de decalcar a realidade mágica contemporânea, Teócrito faz uso
do motivo da magia em função dos seus objectivos poéticos, que passam, antes de
mais, pela construção do retrato da sua protagonista. A abundância de procedimen-
tos mágicos utilizados por Simeta e a desenvoltura com que dá instruções à sua es-
crava deixam a impressão de que ela é uma maga perfeita. Quando o leitor descobre
que a pretensa heroína é, na realidade, a antítese do que aparenta ser, o impacto é
muito grande e, consequentemente, a adesão à dor de Simeta é muito mais fácil. Em
vez de uma mulher perigosa e ameaçadora, ela revela-se uma jovenzita incauta e de-
sesperada; alguém que foi vítima da sua própria ingenuidade e que agora se debate
com um forte sentimento de desonra; alguém que parece refugiar-se na auto-ilusão
para melhor poder suportar um desejo sem esperança de realização5; alguém que
tem como último recurso a magia, uma força tão irracional quanto o sentimento
que lhe agita o coração; alguém que executa uns ritos que aprendeu recentemente,
mas em cujo poder não confia. Simeta é, sem dúvida, uma das criações magistrais
de Teócrito, e este facto fica, inegavelmente, a dever-se à sua requintada caracteriza-
ção, que, como acabámos de ver, assenta numa original ambivalência de posturas.

4 
Vide, a este propósito, o interessante estudo de F. Graf, La magie dans l Antiquité gréco-romaine (Paris, 1994) 199-230
e ainda D. Pralon «Théocrite, La magicienne», in A. Moreau et J.-C. Turpin (edd.), La magie. Du monde babylonien au
monde hellénistique. Tome 1 (Montpellier, 2000) 307-326.
5 
Sobre o ritual de encantamento mágico entendido como uma tentativa de reconciliação de Simeta consigo mesma,
vide F. T. Griffiths, «Poetry as Pharmakon in Theocritus’ Idyll 2», in G. W. Bowersock, W. Burkert and M. C. J.
Putnam (edd.), Arktouros: Hellenic Studies presented to Bernard M. W. Knox (Berlin, 1979) 81-88 e H. Parry, «Magic
and the songstress. Theocritus’ Idyll 2», ICS 13 (1988), 43-55. Já em 1965, L. Séchan («Les magiciennes et l’amour chez
Théocrite», AFLA 39, pp.83-84) havia pertinentemente realçado que os encantamentos mágicos do Idílio 2 de Teócrito
não tinham como resultado prático o regresso de Délfis, mas sim o apaziguamento da dor de Simeta, sob a acção da
confidência e do canto.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 65


Deuses Pagãos e Demónios no Cristianismo
Do silêncio de Pã de Sophia de Mello Breyner às andorinhas de Marguerite Yourcenar

Paula Barata Dias


Universidade de Coimbra
pabadias@hotmail.com

A motivação para o assunto desta comunicação radica numa memória de leitura


que fizemos e se tornou o ponto de partida de uma interrogação que nos tem
acompanhado e que, com o tempo, ganhou corpo sob a forma de um interesse
científico. Falamos do poema “Crepúsculo” de Sophia de Mello Breyner Andre-
sen, retirado das pp. 72-73 do volume Geografia, Lisboa, de 1967, e que julgamos
ser muito conhecido.
Reproduzimos aqui os últimos versos do mesmo:

........................................................
“Mas eis que se apagaram
Os antigos deuses sol interior das coisas
Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas
Somos alucinados pela ausência bebidos pela ausência
E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:
“– Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado.
Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte melodiosa.
A água que fala calou-se”

Os últimos versos deste poema reproduzem, na nossa leitura, o sentido daquele


momento da história em que a Antiguidade transitou do modelo religioso pagão
para o modelo religioso do monoteísmo cristão. As palavras que a Sibila dirigiu ao
mensageiro de Juliano o Apóstata, transmitidas em primeira mão por Filostórgio,
cristão ariano que se propôs continuar a História Eclesiástica de Eusébio de Cesa-
reia, dirigidas a um dos últimos imperadores romanos que enfrentou activamente
o cristianismo crescente no seu Império1, tiveram, para nós, a leitura dramática de
denunciarem o fim abrupto para os deuses antigos. Estes, desprovidos de funcio-
nalidade numa sociedade que já não reconhecia o poder dos oráculos ou a magia
das árvores sagradas e das fontes cantantes, apagaram-se, derrotados por uma nova
religião que ‑ e a interpretação é nossa ‑ “abriu o vazio que nos separa das coisas”.
Assim, o fim da Antiguidade pagã teve como aspecto marcante também o fim
dramático e abrupto dos deuses que com ela se identificavam e que, de algum
modo, lhe sustentavam a fortuna.
1 
A resposta da Pítia foi transmitida por Filostórgio, (Antologia Graeca, 7,Teubner, p. 77) ariano leigo que viveu em
Constantinopla entre 425-433, conhecido por ter continuado a obra de Eusébio de Cesareia, A História Eclesiástica,
para o período de 300 a 425.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 67


Paula Barata Dias

Iniciada a pesquisa sobre esse exacto ponto de ruptura, ingenuamente julgando


possível que uma sociedade adormecesse pagã e acordasse a dar hossanas ao Senhor,
fomos constatando que esse só existiu na liberdade dos poetas ou nas narrativas
literárias de conversões heróicas. A história e os textos clássicos mostram-nos uma
realidade de claro-escuro, de um limbo de passagem em que se dá, de facto, o des-
pontar de uma nova forma religiosa que não começa do zero, e recebe muito do
universo religioso que, explicitamente, e também por imperativos retóricos e por
afirmação própria, combate.
Assim, mais do que um momento de ruptura, pareceu-nos interessante procu-
rar os múltiplos sinais de contacto que geraram fenómenos de hibridismo religioso.
Estes não ocorreram num exacto momento do tempo ou do espaço. Encontrar es-
tas ocasiões de transferência cultural, em que realidades supostamente antagónicas
deslizam uma sobre a outra, sem verdadeiramente porem fim aos sentidos primeiros
dos códigos adoptados, tornou-se um fim cujo caminho nos foi, novamente suge-
rido pela leitura dos poetas. Falamos do conto de Marguerite Yourcenar “Nossa
Senhora das Andorinhas”2.
Este conto recria literariamente o que poderia ter acontecido na cristianização
de populações não urbanas, para quem fazia sentido a magia dos rituais ligados à
terra, aos ciclos naturais e à fertilidade. Neste conto, é-nos sugerido um fim, sem
dúvida violento, para as ninfas, mas é também oferecida uma porta de continuidade
que passa por uma nova funcionalidade para estes seres antigos, que assim se inte-
gram no mundo cristão, preenchendo um espaço do seu imaginário.
As duas autoras, Sophia de Mello Breyner e Marguerite Yourcenar, assumida-
mente cristãs e admiradoras do legado clássico do mundo greco-romano, apresenta-
ram, nos seus textos, formas diferentes para documentar o fim dos deuses antigos.
Sophia, ao repetir as palavras de Filostórgio, adopta a versão legalista e apologis-
ta do cristianismo em afirmação. Assim, o vigor de um novo Deus transformou
imediatamente o mundo antigo. Marguerite Yourcenar recria literariamente uma
situação que julgamos estar mais próxima da realidade histórica, que é a de a cris-
tianização ter sido um processo de avanços circunstanciados muito dependentes das
comunidades que acolhiam a nova religião.
É neste âmbito que queremos abordar especificamente o modo como os deuses
pagãos, nas suas características e atribuições, ficaram presentes no cristianismo, e
serviram para compor as características de reconhecimento das “manifestações do
mal”; os demónios, as forças a combater e a derrotar. São à primeira vista, realidades
antitéticas, nos antípodas umas das outras: paganismo/ cristianismo; politeísmo/
monoteísmo; deuses/demónios; deus/ demónio. O que aqui pretendemos atestar é
o fenómeno de transferência de categorias, ainda que com novas funcionalidades,
entre estes pares de opostos entre si.

2 
Marguerite Yourcenar, Nouvelles Orientales, Gallimard, 1963, pp. 91-103; traduzido em português pela D. Qui-
xote, 1994, pp. 85-95.

68 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Deuses Pagãos e Demónios no Cristianismo

Uma das motivações que explicam a adopção de uma realidade hostil que é
integrada e neutralizada numa nova mensagem, prende-se com as necessidades de
comunicação. Estas obrigam a uma retórica que apela aos valores de proximidade e
à realidade conhecida do receptor. Sendo o cristianismo uma religião proselítica, a
Boa-Nova assumia plasticamente as formas que melhor chegavam ao receptor, pelo
que tinha de assentar nas expectativas, nas ansiedades do homem a quem chegava,
para então frutificar.
Exemplo paradigmático desta adequação da mensagem ao público está nos Act.
17, 16-34. Paulo, o missionário privilegiado dos pagãos helénicos, faz o seu discurso
para os atenienses usando como ponto de partida o “altar ao deus desconhecido”.
A apresentação da nova religião num ambiente pagão helenizado e culto faz-se por
uma linguagem filosófica, apelando ao próprio relativismo e espírito de auto-crítica
com que os gregos consideravam a sua religião politeísta. Contudo, já num registo
mais caseiro, Pedro, o apóstolo que primeiramente assumiu a evangelização entre os
judeus, no seu discurso ao povo de Jerusalém (Act. 3, 12-26) centra a sua mensagem
no facto de Cristo ser o Messias que cumpre as promessas do Antigo Testamento, e
no facto de Cristo ter nascido entre o povo de Deus, para quem foi primeiramente
enviado. Pedro deixa no escuro a universalidade da mensagem cristã, não a negan-
do, mais omitindo-a, pois sabia que esse era um ponto sensível para a mentalidade
judaica. Estes dois episódios de evangelização provam a plasticidade que os primei-
ros divulgadores da fé cristã imprimiam ao conteúdo a divulgar, qualidade que foi
eficaz para o sucesso da nova religião.
Temos também de considerar razões menos intencionais, e até mais óbvias, pois
ninguém ou nada parte do vazio. A cultura de origem dos primeiros cristãos, na
qual foram educados e cujos contributos não podiam recusar, teria exercido o seu
papel. Assim, desde cedo penetrando em comunidades de cultura judaica e judeo-
helenizada, estavam criadas as condições para a transferência de aspectos culturais
entre o paganismo refinado dos primeiros séculos da nossa Era e o cristianismo.
Assim, este processo de transformação dos deuses pagãos em demónios cristãos
começou já e foi favorecido pelo próprio paganismo:
O paganismo desenvolveu, numa determinada fase da sua história, um discurso
crítico da religião tradicional que, desvalorizando os múltiplos deuses do panteão
tradicional em prol de uma concepção mais depurada e abstracta da divindade,
fez emergir como importante uma categoria divina que sempre existiu, mas que a
meditação filosófica do platonismo médio colocou como seres intermédios, activos
e mensageiros entre a entidade divina única e os homens: os daemones.
A reflexão filosófica grega de inspiração platónica, cujos reflexos encontramos,
por exemplo, em Plutarco, contemporânea da afirmação intelectual do cristianismo,
desaguou na reflexão cristã, que procurou, particularmente no séc. II, enquadrar o
conhecimento antigo com as exigências da nova fé. O resultado foi um hibridismo

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 69


Paula Barata Dias

notável de concepções3.
Segundo a religião grega, os demónios pagãos são seres intermédios, forças ac-
tivas que presidem aos rituais de comunicação entre homens e deuses, os oráculos e
sonhos, actos mágicos, adivinhação, com uma função protectora dos homens e das
suas necessidades4.
Valorizamos Plutarco não tanto pela profundidade das suas reflexões, mas mais
pelo facto de ele ter sido, no séc. II, um testemunho e transmissor das posições
dominantes da filosofia pagã do seu tempo, recolhendo as concepções dos filósofos
que deram forma à Antiguidade Tardia pagã. A demonologia Plutarquiana apro-
fundou a meditação sobre estes seres, acrescentando à sua natureza medianeira o
facto de eles habitarem o ar, ou seja, o espaço intermédio entre a terra e o céu, entre
os homens e os deuses, e)n me/sw| qew=n kai\ a)nqrw/pwn (De Iside, 26). Os daemo-
nes partilham com a natureza humana as paixões, e com a natureza divina a imor-
talidade, mas não a eternidade. É também Plutarco que nos expõe a ambivalência
destes seres criados pela divindade, que não estão necessariamente comprometidos
com o bem. São espíritos libertados dos corpos que podem ser maus ou bons5.
Também em Plutarco surge a interpretação das divindades do panteão tradi-
cional como seres de natureza demónica6. Os demónios são seres de natureza com-
plexa e inconsistente, transitória mikth\n kai\ a )nw /malon fu /sin e )co n/ twn kai\
proai/resin (De Iside, 26).
O cristianismo em afirmação apropriou-se das teorias demonológicas desenvol-
3 
Justino ( Apologia II, 5, 2-6, PG 6 col. 452-453) tenta mostrar aos pagãos que as divindades a quem prestam culto
são demónios; Tatiano, (Oratio aduersus Graecos 16, PG 6, col. 841), refuta a crença de que os demónios são almas sepa-
radas dos corpos; as divindades pagãs, como demónios, estão associadas ao curso dos astros, e os homens deixaram-se
escravizar pela crença de que estes controlam o seu destino; Clemente de Alexandria, (Paedagogus III, 3-15 PG 2 cols.
252-253) afirma que eles não são entidades protectoras, mas seres caprichosos, sensuais e maus, ávidos de sacrifícios. O
mesmo Tatiano (Apologia I V, 3 PG 6 col. 336) afirma que são os demónios que tudo fazem para desviar os homens de
Cristo, atraindo-lhes a atenção com visões e sonhos, e com as maravilhas da magia. Para enganar os homens, eles che-
gam ao ponto de parodiar dogmas e ritos cristãos. E dá exemplos: Belerofonte, Perseu, Asclepios, Héracles, são imitações
mentirosas de Cristo (LIV, 7-8, col. 410); os banhos rituais imitam o baptismo (LXII (LXII, 1-2, col. 421); os mistérios
de Mitra a Eucaristia (LXVI 1-4, col. 428-429). Celso, pensador pagão, estabelece uma ponte entre a crença pagã
nas divindades inferiores, os daimones, e a diatribe cristã: se os cristãos crêem nos anjos, porque não reconhecem nos
daimones uma natureza angélica, cuja protecção é requerida por um culto? Temos nesta concepção o embrião do culto
dos anjos como “seres próximos de Deus” e dos demónios como seus equivalentes em estatuto, ainda que numa escala
de oposição. Preserva-se, desta forma, a concepção de Deus único, cuja omnipotência está acima do mal, o demónio, o
anjo, ou os anjos caídos em desgraça.
4 
Hesíodo, Trabalhos e Dias, vv. 121-127, in M. H. R. Pereira, Hélade, 7ª ed., Coimbra, 1998, p. 94.
5 
Plutarco, De Iside 26, in Plutarch’s Moralia, t. 5, Loeb, Cambridge-Harvard 1976, p. 64. Segundo Plutarco, Em-
pédocles diz que os demónios cumprem uma pena pelos seus erros e omissões. No cap. 46, apresenta a teoria dualista,
própria da religião mazdeísta, ou seja, a crença em a )ntite c
/ noi, artífices, um do bem e outro do mal. Estas entidades
divinas dividem os seres vivos entre si, as plantas e animais, (§ 46, p. 112) ou seja, esta teoria, também se reflecte no
mundo sensível. O cristianismo desenvolveu algumas correntes heréticas que exibiam este dualismo, como o manique-
ísmo.
6 
De Iside..., cap. 25-26: as histórias de Tífon, Osíris e de Ísis, deuses egípcios sincreticamente associados aos deuses do
panteão helénico (Hades, Adónis ou Dioniso, Afrodite) não são de homens nem de deuses, mas de daimones. Nestes
parágrafos, Plutarco atribui aos deuses egípcios uma identidade demonológica, e estes servem de ponto de partida à
explanação de uma teoria demonológica, com uma resenha das posições dos filósofos anteriores (Platão, Xenócrates,
Crísipo, Homero, Empédocles).

70 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Deuses Pagãos e Demónios no Cristianismo

vidas pelos anos finais do paganismo, e, verificando a fragilidade e a mutabilidade


do estatuto destes seres, a par com a divulgação que a sua crença tinha nos cultos
populares, assume-os como as entidades oponentes de Deus, conhecidos de todos7.
Tornava-se assim mais permeável o penetrar no sentir religioso pagão, encontrando
pontos de contacto e de sentidos entre as duas formas religiosas.
E, antes de passarmos para o reflexo desta situação nos autores cristãos, vejamo-
la em S. Paulo, o apóstolo que evidencia mais mestria no lidar com o conflito cultu-
ral entre o paganismo e o cristianismo em afirmação (Rom. 1, 23, 25). Ao invectivar
os judeus romanos que se deixaram amolecer pelo ambiente supersticioso de Roma,
acusa-os de cederem aos falsos deuses, homens corruptíveis e animais:

kai\ h ) l/ lasan th\n do /xan tou= a )fqa /rtou qeou= e )n o (moiw /mati ei )
ko n/ oj fqartou= a )nqrw p/ ou kai\ peteinw =n kai\ tetrapo d/ wn kai\
e (rpetw =n (…) e l) a t/ reusan th = | kti/sei para\ to\n kti/santa

“e trocaram a glória de Deus incorruptível por figuras de homem corruptível,


de aves, de quadrúpedes e de répteis” (...) veneraram a criatura e lhe presta-
ram culto de preferência ao criador”

Paulo critica a idolatria, e destaca particularmente a que se serve das formas


animais. Fala de uma realidade que conhece, e que sabemos ter existido, que é o ter
havido, nos sécs. I e II da nossa era, um interesse crescente pelos cultos orientais, de
natureza “mais exótica” do que o antropoteísmo das culturas gregas e romana, nas
quais já não repousavam os anseios religiosos comuns do homem antigo.
Também em Eph. 6, 12, Paulo afirma que o cristão se deve preparar e armar
para um combate, não contra a carne e o sangue (isto é, contra forças físicas) mas
contra, e citamos: “os principados, potestades, contra os dominadores deste mundo
tenebroso, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares” ( ...Pro\j ta\ pneu-
matika\ thj= ponhri/aj e )n toi=j e )pourani/oij).
Nestes dois excertos paulinos, destacamos dois elementos que se podem aproxi-
mar do que Plutarco nos deu a conhecer da demonologia pagã: por um lado, a crí-
tica ao teriomorfismo religioso do paganismo, tornado popular por cultos religiosos
de matriz oriental como o Isismo, para nos cingirmos apenas ao testemunho Plutar-
quiano. Por outro lado, releva-se também o facto de estes pneumatica ou daimones
terem a capacidade de voar.
Estes seres antagónicos, a quem o cristão dirige combate, está distante do que
7 
Também Filostórgio, já nos inícios do séc. V, nos oferece um exemplo desta transferência entre os deuses pagãos e os
demónios do cristianismo, no que é confirmado por inúmeros testemunhos das actas de martírios. No entanto, o seu tes-
temunho é valioso porque o seu discurso se assume como mais informativo e mais factual do que o das Acta Martyrum.
Assim, (Ecclesiasticae Historiae, VII, 8, PG 65, col. 546), Juliano manda o Bispo de Bibilas sacrificar “aos demónios”
(para Juliano, seriam os deuses) to\n o s ( / ion toi=j dai/mosi qu e/ in (...). E, para o mesmo Juliano, destruir o cristianismo
passa por entregar as ofertas das Igrejas aos ministros dos demónios (i.e., para Juliano, dos seus deuses) (...) kai\ tw =n
e )kklhsiw =n to\ sithre s/ ia toi=j tw =n daimoni/wn qerapeutai=j metedi/d ou.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 71


Paula Barata Dias

nos é oferecido pelo NT, onde a descrição é pautada pela sobriedade nas manifesta-
ções deste ser maligno, e também pelo facto de a representação deste como ser uno
dominar8.
Hierarquia, habitat, natureza ou história não despertam a atenção deste texto
chave. O demónio é um ser tentador, que age no coração dos homens, levando-os
ao mal: no livro do Génesis, quando tenta com sucesso Adão e Eva, e, já no NT,
no Evangelho de Mateus, quando tenta Jesus no limiar da sua carreira messiânica9.
Tem traços vagamente antropomórficos, mas a sua acção é definida em termos
abstractos ou imateriais. Não age directamente sobre a realidade visível, nem as-
sume formas sensíveis ao homem. É, no entanto, um ser poderoso. O livro do
Apocalipse vinca bem essa dimensão da potência do anjo caído, livro que sublima
como nenhum outro o dualismo entre Deus, identificado com o bem e o demónio,
identificado com o mal, duas entidades que se combatem pelo domínio do mundo.
De facto, não é na tradição judaica, ou mesmo no NT como texto das primeiras
gerações cristãs, muito influenciadas pelo judaísmo, que vamos encontrar a fonte
para a representação do mal como seres multiformes e zoomórficos, que veremos
irromper na literatura e no pensamento cristão da Antiguidade Tardia.
Esta demonização das divindades pagãs eclodirá sempre que o cristianismo,
na sua actividade proselítica, encontrar comunidades religiosamente arreigadas às
religiões pagãs locais, assumindo estes seres malignos, plasticamente, os contornos
característicos das divindades que a nova religião procurava suplantar.
Um exemplo paradigmático deste procedimento ocorre na Vida de Santo Antão,
biografia da autoria do Bispo de Alexandria, Atanásio, que, ao narrar os combates
heróicos de Antão, o primeiro monge, com os demónios, se transforma numa fonte
de informação preciosa sobre o estado religioso deste Egipto do séc. IV.
Os demónios de Atanásio coincidem, nos traços gerais, com o apontado por
Plutarco no De Iside: são seres aéreos, que vivem acima de nós, entre a terra e o
céu. Podem assumir múltiplas formas, diferenciadas entre si (21.4) Polu\j me\n
ou ) =n au )tw =n e )stin o ( o c ) / loj e )n tw = a )e /ri, kai\ makra\n ou )k ei )si\n a )f )
h (mw =n. Pollh\ de\ ti/j e )stin e )n au )toi=j diafora / (…). São seres que foram
criados bons, mas, caídos na terra por faltas próprias, enganam os pagãos com as
suas aparições. Movem-se por todo o lado, e, numa atmosfera saturada de espíritos
malignos, bloqueiam fisicamente a subida dos cristãos ao céu, de onde eles caíram,
no passado: (22.2) Alla\ )) kaloi\ me\n gego n/ asi kai\ au )toi/, e )kpeso n/ tej de\
a )po\ thj= ourani/ou
) fronh /sewj, kai\ loipo\n peri\ th\n gh =n kalindou /menoi,
tou\j me\n (E / llhnaj h )pa t/ hsan tai=j fantasi/aij (...) pa n/ ta kinou=sin,
qe l/ ontej e )mpodi/zein h (maj= thj= ei )j ouranou\ ) j a )no d/ ou i n( / a mh\ o q
( / en
e x) e p/ eson au )toi\ a )ne l/ qwmen h (mei=j (…). Têm o poder de se metamorfosearem
8 
DACL, s. v. «Démon: Démonologie Chrétienne Primitive», t. 3; col. 143. Como personagem definida, o dia b/ oloj
surge no livro de Job. É um dos anjos da corte de Deus, e desempenha o papel activo no ferir de Job. É, portanto, um
instrumento dócil das ordens de Deus.
9 
Mt 4 1-6.

72 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Deuses Pagãos e Demónios no Cristianismo

(25.1) e t( / oimoi pro\j pa n/ ta metaba l/ lesqai kai\ schmati/zesqai; têm capa-


cidade de voar (cap. 28.5) ...kai\ e )n tw = | panti\ a )e /ri tugca n/ ousin.
De facto, o Egipto romano fornecia um terreno ideal para um combate singular
entre duas formas religiosas antagónicas, que se fascinavam reciprocamente e resis-
tiam a ceder em definitivo o lugar uma à outra. Plutarco testemunhou o facto de
os egípcios acreditarem que os deuses viviam nos corpos de íbis, cães, falcões, ou de
acreditarem que as almas podiam encarnar em seres animais10. Floresciam os híbri-
dos helenísticos como Serápis e Agathos Daimon de Alexandria, cultos de cujo fim
violento temos dramáticas narrativas. Mas o templo de Ísis em Philae resistiu até
ao séc. VI da nossa Era. Assim, não só se vivia um florescimento de manifestações
pagãs de pendor místico, como estas revestiam formas especialmente propiciadoras
de uma reacção concertada de hostilidade por parte do cristianismo11.
No Egipto, cristianizado com sucesso desde o séc. I, formas religiosas ancestrais
conviviam com o cristianismo oficializado a partir do séc. IV, sobretudo nos meios
rurais, espaço em que a religião tradicional egípcia se tornava operativa. De facto,
esta é uma religião de celebração da natureza e dos seus ritmos cósmicos12. Polite-
ísmo e zoolatria associavam-se, numa prática religiosa de características mânticas,
presa aos elementos materiais e sensíveis. Na sua diversidade, o paganismo egípcio
coexistia com um cristianismo progressivamente legalizado e afirmado a partir das
cidades, e mantinha a sua presença no universo religioso e social egípcio. Seriam as
ordens sacerdotais organizadas, os oráculos, as adivinhações, os tributos e sacrifícios
materiais aos deuses em rituais propiciatórios, manifestações de dimensão religio-
sa cujas motivações devemos bem entender, pois também entre nós conhecemos
pessoas que, sendo baptizadas e afirmando-se cristãs quando indagadas sobra a sua
fé, mantêm, em paralelo, uma crença e uma prática de acordo com “superstições”
várias, não vendo nisso qualquer conflito de interesses.
Sinal evidente de que Atanásio dirigia o seu discurso para um destinatário am-
bíguo na sua prática religiosa, isto é, legalmente cristianizado, mas ainda arreigado

10 
De Iside, 71. Plutarco critica o facto de os egípcios tratarem os animais como deuses, não só por ser ridículo e preju-
dicial mas por degradar as práticas religiosas... Ai )gupti/wn (...) qerapeu o/ ntej au )ta\ ta\ zw =a kai\ perie p/ ontej w (j
qeou\j ou ) ge l/ wtoj mo n/ on ou )de\ cleuasmou = katapeplh k/ asi ta\j i (erourgi/a j, a l) la\ tou =to thj= a b) elteri/a j,
e l) acisto n/ e )sti kako n/ (…).
11 
O AT dá já conta desta zoolatria dos egípcios, acusação que é retomada sempre que se dá um choque entre a cultura
judaica e as culturas politeístas, maioritárias no próximo oriente (Sap 11, 15, 16). Passa a ser uma crítica alargada ao uni-
verso dos pagãos no NT, como podemos perceber em Rom. 1, 23-25. A arqueologia mostrou que a religião tradicional
egípcia “s’enfonce de plus en plus dans la fange du culte zoolatrique” (Dictionnaire de Géographie Chrétienne, t. 3, col.
1336-1337) A mumificação dos gatos cães, crocodilos, aves, carneiros e mesmo escaravelhos é uma das manifestações
desta zoolatria e foi um fenómeno generalizado no período helenístico-romano do Egipto, como a arqueologia o prova.
Os autores gregos, como Diodoro Sículo, Estrabão e mesmo Plutarco (De Iside... 71) relatam episódios que provam ser
esta uma tendência muito popular da religião egípcia do final do Novo Império.
12 
DSp. “Égypte”, col. 1321. Ísis e Osíris, a dupla de deuses tornada mais popular nos anos do Egipto helenístico-
romano, identificam-se com a terra negra, e húmida e com o Nilo que lhe dá a vida. Seth e Nefthys identificam-se com
a esterilidade selvagem do deserto que ameaça a terra fértil. Na Época cristã, os cultos de Ísis, Osíris, Horus, Ápis e de
Serápis, nas cidades associados a alguns deuses gregos (Afrodite, Dioniso, Hermes, Apolo) mantinham-se activos, ainda
que o Egipto se tivesse cristianizado com extraordinária rapidez.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 73


Paula Barata Dias

aos hábitos dos cultos ancestrais, que sempre praticou e aos quais reconhecia valida-
de como adjuvante da sua relação com o meio natural, está bem presente no facto
de o seu herói, Antão, lutar contra o costume da mumificação, e de ter tomado
medidas para evitar que os seus seguidores sujeitassem o seu corpo, após a morte,
a um tratamento que o preservasse (caps. 90-91). Os seus seguidores eram cristãos,
mas para eles fazia sentido a mumificação dos entes queridos, prática milenar da
cultura egípcia. De igual modo, a invectiva de Antão centra-se sobre aspectos do
paganismo egípcio relacionados com o mundo natural: os oráculos e a sua vali-
dade para prever as cheias cíclicas, a magia que cura doenças, os ídolos-demónios
que reclamam culto para não se tornarem nocivos, tudo realidades de um mundo
religioso em fronteira, que ainda fornecia uma leitura do mundo capaz de atrair as
pessoas que dele dependiam.
E, de facto, o crescimento do monaquismo no Egipto, ocorrido após o termo
das grandes perseguições, acompanhou a cristianização dos espaços rurais perifé-
ricos. Neste sentido, a biografia de Antão é testemunho dos anos dramáticos de
convivência de dois sistemas religiosos, em que o emergente se procura substituir,
com escassas fracturas de funcionalidade, ao antigo. Antão, com o abandono pro-
gressivo do espaço civilizado das vilas, de Heracleópolis no Egipto Médio, a Pispir
e às montanhas do maciço arábico, nas bordas do mar vermelho, isola-se cada vez
mais no deserto egípcio, como se procurasse enfrentar o coração das trevas, que
para o egípcio comum era o deserto, espaço ermo e estéril.
Assim devemos compreender a presença de vários animais na obra de Atanásio,
que aqui se prestam a servirem de materialização para os demónios, os inimigos
do paladino da verdadeira fé, que é o monge cristão Antão. Uma via erudita, a das
correntes filosóficas dominantes de que a obra de Plutarco é um exemplo, havia já
aberto a porta à interpretação das divindades egípcias tradicionais como seres de es-
tatuto demónico, divindades inferiores, dotadas de um poder restrito e circunscrito
a um espaço. Mas também pelos caminhos da religiosidade popular, verificamos
que o panteão egípcio favoreceu esta identificação, visto muitos dos seus deuses
terem atributos e formas de representação teriomórficas.
Neste processo de afirmação da nova religião, que passa pelo combate aos ídolos
tradicionais, há também a apropriação de um esquema religioso que, paradoxal-
mente, garante a sobrevivência de elementos do paganismo no novo mundo. Como
sinal desta sobrevivência, temos o destaque dado ao conhecimento e caracterização
dos demónios.
A caracterização destes demónios coincide, em muitos aspectos, com a imagem
“oficial” com que se apresentavam os deuses egípcios. Os animais identificados
com Seth adquirem particular relevo13. Recolhido num túmulo, Antão é atacado
13 
Em De Iside, 21, Plutarco apresenta uma interpretação astronómica dos deuses egípcios. As almas dos deuses-demó-
nios egípcios estão no firmamento: Ísis é a estrela Sírio, da constelação do cão, e por isso este animal representa a deusa.
Quando aparece no firmamento anuncia a chuva. Typhon-Seth é a estrela do urso (cap. 29) O boi é o animal de Serápis
ou de Osíris (cap. 38) O Nilo enche-se quando o sol se conjuga com a constelação do leão. (cap. 50) A serpente é um dos

74 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Deuses Pagãos e Demónios no Cristianismo

por demónios metamorfoseados de animais: (Vida de Antão 9.6) (…) o ( to p/ oj


eu )qu\j peplhrwme n/ oj fantasi/aj leo n/ twn, a rktwn, )/ leopa /rdwn, tau /rwn
kai\ o fewn
)/ kai\ a )spi/d wn kai\ skorpi/wn kai\ lu k/ wn (…). Leões, ursos, leopar-
dos, touros, serpentes, víboras, escorpiões e lobos são animais selvagens que vivem
em locais ermos, desérticos, ou pelo menos afastados de locais habitados, mas são
também figuras representadas na iconografia da religião tradicional egípcia, cujas
divindades têm por face visível animais ou híbridos fantásticos. São também ani-
mais potencialmente perigosos para o homem e para as suas actividades, ou seja,
são seres naturalmente nocivos encarados com desconfiança, que transportam a sua
carga maléfica para a sua simbologia sobrenatural.
A ilusão visual e auditiva com que a aparição multiforme é descrita no cap. 9
da obra adquire uma certa verosimilhança, sobretudo se nos lembramos que os tú-
mulos egípcios eram decorados com pinturas que representavam a mundividência,
real e sobrenatural, do egípcio. Como Antão, num transe místico, contemplasse a
animação dos frescos que adornavam as paredes do túmulo.
Num outro passo, Antão atravessa o rio para a sua margem esquerda, e, no
deserto, ocupa um forte em ruínas, dominado por serpentes. Estes batem ime-
diatamente em retirada (12.4) (…) ta\ me\n ou ) =n e (rpeta\, w sper (/ tino\j
diw k/ ontoj, eu )qu\j a )nacw /rhsan (…). Noutro momento, (15.1) ao atravessar o
canal de Arsinoë, na altura cheio de crocodilos, diz uma prece e todos os discípulos
que o acompanhavam atravessam incólumes (…) tou= Arsenoi/ ) tou ... plh /rhj
h ) =n h ( diwrux
= krokodei/lwn. Kai\ mo n/ on eu x) a /menoj e )ne b/ h au )to /j te kai\
pa n/ tej oi ( su\n au)tw=| kai\ dih =lqon a )blabei=j14. Frequentemente, nas suas apa-
rições, o demónio faz-se acompanhar por cães, a imagem de Anúbis, (42.1) (O me\n
ou ) =n e )cqro\j meta\ tw =n e (autou= kunw =n...A identificação com Seth é perfeita no
momento em que, na sua última aparição, o diabo lhe surge sob a forma de um
onocentauro (53.2): ei ) =de qhri/on, a )nqrw p/ w | me\n e )oiko\j e w ( / j tw =n mhrw =n,
ta\ de\ ske l/ h kai\ tou\j po d/ aj o (moi/ouj e c) / on o )nw=|... 15

A par desta caracterização zoomórfica dos demónios que assaltam Antão, cons-
tata-se a transferência de uma linguagem religiosa: Antão é capaz de agir sobre
o meio natural, sobre o comportamento das bestas, da mesma forma como um
sacerdote pagão exibia, como traço do seu poder, a manipulação da natureza por
meio da palavra16. Esta manipulação faz-se pelo recurso seja ao poder apotropaico

animais de Seth. (cap. 73) todos os animais de aparência selvagem estão identificados com o deus do mal, Tytphon-Seth
(…) pa =sa fu s/ ij a)/logoj kai\ qhriw d/ hj th =j tou = kakou = dai/monoj ge g/ one moi/raj (…)
14 
O crocodilo, o burro e o hipopótamo são animais de Typhon-Seth (De Iside 50; 75).
15 
Plutarco dá conta de um ritual execratório que envolve a precipitação de um burro, símbolo de Typhon-Seth, como
forma de expurgação do mal (De Iside 30).
16 
O contacto com o sobrenatural através da manipulação da natureza animal, e o modo como este tipo de manifes-
tações estava arreigada à prática religiosa egípcia, está demonstrada em De Iside (73-75). Plutarco dá, como explicação
para esta prática uma interpretação lógica: os rituais mágicos (que não se esgotam nos sacrifícios) com animais reflectem
a necessidade e a utilidade destes animais (crei/a j kai\ w )felei/a j) na vida do homem egípcio. Os exemplos dados
por Plutarco mostram-nos que esta manipulação dos animais esgota a sua finalidade na reposição de um equilíbrio

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 75


Paula Barata Dias

da palavra, seja a uma prece, como no caso da expulsão dos crocodilos, seja com
mensagens que reforçam a fragilidade, fraqueza, ou inconsistência do poder dos
demónios.
A primeira multidão de demónios é expulsa a golpes de ironia (9.9-10)
(…) Ei ) du n/ ami/j tij h ) =n e )n u (mi=n, h k ) / ei kai\ mo n/ on e x) u (mw =n e )lqei=n
e n( / a; (...) -ei ) du n/ asqe kai\ e x) ousi/an e )la b/ ete kat )e )mou=, mh\ me l/ lete,
a )ll )e )pi/bhte... “Se tivésseis algum poder, bastaria um de vós. (...) Mas atacai, não
hesiteis, venham...”. Num outro ataque, (39, 3) os demónios enchem-lhe a caverna
de cavalos, feras e répteis. Antão expulsa-os com salmos: (…) i p( / pwn kai\ qhri/wn
kai\ e (rpetw =n e )plh /rwsan to\n oi k ) / allon (...).
) / on. Ka )gw\ e y
Durante uma vigília, o demónio lança contra ele animais selvagens, en-
tre estes hienas. As palavras de Antão, como chicotes, põem-nas em fuga,
(52, 2-3) Agrupnou=nti
) gou=n au )tw = | nukto\j e )pafh =ke qhri/a. Kai\ scedo\n e )n
e )kei/nh | th = | e)rh/mw| pasai = ai ( u ainai
(/ e x) elqou=sai tw =n fwlew =n (...) Tau=ta
tou= Antwni/ou
) le g/ ontoj e f
) / ugon e )kei=nai, w (j u (po\ ma /stigoj tou= lo g/ ou
diwko /menai.
Noutros passos ainda, Antão assume o poder taumatúrgico de interferir com a
natureza no sentido de a domesticar, de acordo com um ideal de universo civiliza-
do, submetido ao poder do homem que se assume como vigário de Deus na terra.
Segundo afirma Antão, no cap. 24.4, derrotar o demónio é domesticar e ci-
vilizar uma natureza selvagem, submetendo-a ao domínio humano: “é como pôr
a canga no focinho de um boi, como furar o nariz e os lábios de um escravo fu-
gitivo, aprisionando-o, é como fechar um pássaro na gaiola. Os demónios foram
reduzidos a escorpiões e serpentes que se podem esmagar com os pés” (…) w (j
me\n dra k/ wn ei (lku /sqh tw = a )gki/strw para\ tou= Swthroj, = w (j de\ kth =noj
forbai/an e )l/ abe peri\ ta\j r (i=naj, w (j de\ drape t/ hj kri/kw | de d/ etai tou\j
mukthraj = kai\ yelli/w | tetru p/ htai ta\ cei/lh. Kai\ de d/ etai me\n para\
tou= Kuri/ou w (j strouqi/on (...) dai/monej w (j skorpi/oi kai\ o f ) / eij ei )j to\
katapatei=sqai par )h (mw =n tw =n cristianw =n.
A percepção de que os deuses do paganismo migraram, no cristianismo, para
o estatuto de demónios não escapou a Marguerite Yourcenar, essa extraordinária
escritora belga que não escondia, nem a sua fé cristã, nem o seu amor pela cultura
clássica. Num pequeno conto publicado em 1963 no volume Nouvelles Orientales,
intitulado Notre-Dame-des-Hirondelles, a autora recriou poeticamente este encon-
tro entre as duas realidades antagónicas, cuja harmonia é restabelecida de forma
invulgar. Tem como protagonista o monge Terapião, na sua juventude discípulo
do grande Atanásio, de quem temos vindo a falar. Enviado para a Grécia, assume
como missão libertá-la dos sortilégios de Pã. E empreende, inspirado pela imagem
do seu mestre, uma cruzada iconoclasta contra as últimas manifestações de um
paganismo em decadência. E, no campo, pressente a presença das ninfas, essas

ecológico.

76 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


malignas que ocupavam os bosques sagrados, as fontes, os campos. O povo, discí-
pulo de Cristo, não deixava, no entanto, de prestar culto a estas senhoras da terra,
a quem reconhecia o talento para proteger a fertilidade dos campos e a abundância
das fontes. Assim Terapião serra as árvores sagradas, planta cruzes nos caminhos,
até que, finalmente, empareda as ninfas numa gruta onde se haviam refugiado da
sanha persecutória do monge. Elas definham à fome e à sede e privadas da luz.
Até que vem ao encontro de Terapião, plantado na entrada da gruta onde cons-
truíra uma ermida, uma Senhora, vinda “do nascente, como a manhã”, que o inter-
roga sobre os seus actos. Ouvida a resposta, a Senhora replica:

–“Quem te disse que a paz de Deus não se estende às ninfas como às gazelas
e aos rebanhos de cabras? – (...) Pois não sabes que no tempo da criação Deus
esqueceu-se de dar asas a certos anjos, que caíram na terra e se fixaram nas
florestas, onde formaram a raça das Ninfas e dos Faunos? E outros instala-
ram-se numa montanha, onde se tornaram deuses olímpicos. Não exaltes,
como os pagãos, a criatura à custa do criador, mas não te escandalizes tão-
pouco pela sua obra. E agradece a Deus no teu coração por ter criado Diana
e Apolo.”

Mas a sensualidade das ninfas perturba a obra de Terapião junto dos fiéis, e o
mesmo confessa que vai persegui-las, “até ao inferno”. A Senhora, numa postura
conciliadora, pede-lhe que a deixe entrar na gruta. Afasta com as mão uma enorme
cruz “aquele objecto familiar” e, transformando as ninfas em andorinhas, trá-las no
seu manto e devolve-as à luz, em liberdade.
Chamamos a atenção para os termos com que a Senhora, personagem que, na
obra, se vai revelando como Maria, a mãe de Cristo, constrói uma história divina
que assimila a tradição cristã e a pagã: Deus esqueceu-se de dar asas a alguns anjos,
que, caindo na terra, deram origem às ninfas, faunos e deuses olímpicos. Fica na
penumbra o aspecto da revolta do anjo, ou dos anjos, que teria estado na origem da
queda e, portanto, na etiologia destes seres que se opõem a Deus. Preserva-se, da
tradição pagã, o facto de os deuses terem uma origem e, da tradição cristã, o facto
de serem criados por Deus, ou seja, de ocuparem um lugar de potência inferior, em
relação à divindade suprema. As ninfas, divindades de estatuto secundário para o
paganismo, sendo transformadas em andorinhas, repõem a esfera de intervenção
destas entidades no mundo animado da natureza. A verdade poética de Marguerite
Yourcenar, que assim encontrou lugar para estas, é, portanto, o espelho dessa per-
manência dos deuses antigos num mundo conquistado para Cristo.
Mas há, sem dúvida, uma fractura entre o ponto de vista de Terapião e o da
Senhora, que só a intervenção miraculosa desta resolve. Encontramos este mesmo
sentido de fractura, de ausência de comunicação, e, com contornos bem mais dra-
máticos, no poema de Sophia de Mello Breyner “eis que se apagaram/os antigos
deuses sol interior das coisas/ eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas...”.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 77


Paula Barata Dias

Também a Senhora manda a Terapião que “não se escandalize com a obra de Deus”,
de que as ninfas, gazelas, e rebanhos de cabras fazem parte. Para Sofia, perdeu-se,
com o apagar dos deuses antigos, uma relação “com as coisas”, interpretamos nós,
com o mundo natural, com os seus ritmos e sentidos, em que o homem agia como
parte integrante e não como elemento externo de domínio. E não será por acaso
que, para Antão e para Terapião, o avanço e triunfo do cristianismo assume contor-
nos de uma ocupação física do mundo natural, numa estratégia de civilização que
passa pelo neutralizar e domesticar da força selvagem da natureza.
A expulsão dos deuses-demónios pagãos empreendida pelo cristianismo teve,
assim, o sentido de romper, no coração dos homens, a ligação entre estas entidades
e os seus mundos de sentido, inaugurando uma nova relação, agora mais desigual,
entre o homem e o espaço que o rodeia.

78 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Justice and Injustice in the Iliad:
The Case of Moipa

Katerina Dimopoulou
STC - Tessalónica
popepiou@otenet.gr

T his is a paper about the Iliadic gods and the perplexing question of their jus-
tice: scholars and readers alike have been puzzled by the gods’ behaviour ever
since antiquity;1 arguments and counter-arguments have been raised, and diverse
interpretations offered. For some, the gods represent a narrative device or mecha-
nism, the well-known Götterapparat, whose function is either to provide a relief
from the grim presentation of human life or to forward the plot of the poem – in
either case they are far from being agents of morality or justice; others deny their
justice on the grounds that the very concepts of morality and justice are simply
non existent at the age of the poem’s composition: according to such a view, the
archaic age is ignorant of the internalised and conceptualised ideas of later ages,
and it is therefore incapable of properly conceiving the very idea of divine justice;
finally, there are those who advocate divine justice and see in it a power that per-
meates the poem, even if very discreetly: the very end of the poem seems to prove,
according to this view, that the gods, and in particular Zeus, can be just.2
Such conflicting interpretations of the gods do not emerge ex nihilo: in fact,
they correspond to the conflicting qualities of the gods themselves. For the dif-
ficulty when discussing divine morality or justice in the Iliad lies with an essential
inconsistency in the portrayal of the gods: they are said to represent an idea of jus-
tice, even if vaguely and indirectly, yet at the same time they behave in a manner
that actually defies all the principles that an idea of justice seems to entail. In other
words, their actual behaviour and participation in the plot does not conform with
the belief in their supporting justice, a belief which does exist in the poem and is
expressed in a variety of ways and in a considerable number of cases.
A typical example of this inconsistency can be found in the episode of Menelaus’
and Paris’ duel. In book 3 Paris suggests that the end of the war should be deter-
mined by a duel between him and his main opponent. Oaths are taken in order to
seal the agreement that whoever wins will take Helen and the war will come to an

1 
See Xenoph. frs.11B and 12B DK; Heracl. frs. 30 and 21 DK; Pl. Euthyphro and Resp. 398a-b, 607a.
For a sceptical or even negative attitude towards the existence of divine justice in the poem see, for example, Cal-
2 

houn (1937) 268, Greene (1944) 11, Dodds (1951) 32, Chantraine (1952) 64, Adkins (1960) 62, Janko (1992)
on Ξ 153-155; for the opposite view, which advocates the gods’ justice see especially Lloyd-Jones (1983) ch. 1; also
Kirk (1985) on Γ 351-54 and Δ 160-162, Hainsworth (1993) on Ι 502-12, Richardson (1993) on Χ 358, Ω 22-76
and Ω 33-54.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 79


Katerina Dimopoulou

end. Agamemnon invokes Zeus, Helios, the rivers and the earth, as well as the pow-
ers of the underworld, as witnesses of the agreement and the oaths taken who will
see to its fulfilment: if the Trojans violate the agreement, the gods should support
the Greeks (Γ 276-91). Just before the duel starts Menelaus expresses his feelings of
self-righteousness in a prayer to Ζεὺς Ξείνιος (Γ 351-54): Paris’ violation has to be
punished, and although it is Menelaus himself who will exact the punishment, the
god is invoked as the power who will guarantee the successful accomplishment of
this act.3 The duel ends with the intervention of Aphrodite, who saves Paris when
Menelaus is about to kill him (Γ 373ff); at Δ 105ff. the oath is being broken by
Pandarus who wounds Menelaus; Agamemnon, heavily sighing with pain, tries to
soothe his brother by claiming that Ζεὺς Ὅρκιος will punish the transgression, as he
punishes any transgression of the same kind, and in this way he will re-establish the
moral order that has been violated; for the violation of oaths is, after all, evidence of
disregard for the τιμή of Ζεὺς Ὅρκιος (Δ 154-168; cf. Δ 234-39, 266-71.). It is in this
belief that Agamemnon finds support for his sense of self-righteousness
However, the gods’ actual behaviour in the poem seems to contradict and belie
the heroes’ belief. In the first case, Zeus is not merely indifferent to the principle
of oath-taking, but he is actually responsible for the violation of the oaths since
he is the one who, under the pressure of Hera’s whining, sends Athene to incite
Pandarus’ attack on Menelaus (Δ 1-73). In the second case, Menelaus’ conviction
that Zeus is concerned for the moral aspect of the war seems incompatible with the
god’s actual motivation in the poem, which is largely, if not only, the result of his
old obligation to Thetis (Α 493-530). In both cases the god appears to us to be es-
sentially immoral and unjust.4
In order to understand the essence of the Iliadic gods we have to admit that this
inconsistency is an inextricable element of their very nature: the gods can be just
and unjust, moral and immoral. Once we admit this, the question is not whether
the gods are just or not, but how they can be both just and unjust, what is the
nature of the Iliadic gods and what are the elements that allow them this peculiar
inconsistency. I would like to approach this question in the light of the relation of
the gods to the Iliadic concept of μοῖρα. I will certainly not try to give an exhaus-
tive account either of Iliadic religion, or of the relation between fate and the gods;
rather, I will restrict myself to an aspect which I find particularly interesting and
illuminating, namely μοῖρα’s capacity to denote a cosmic moral order and the gods’
3 
A similar ides is expressed by Menelaus in an even more powerful way at Ν 620-39; in his words self-righteousness and
despair are combined in an outburst of frustration as he realises that Zeus supports the Trojans after all; a strong moral
terminology is used by Menelaus, especially when condemning his enemies.
4 
The poet’s narrative is clearly at odds with the heroes’ words. The idea that the heroes’ perception of reality is to be dif-
ferentiated from reality itself as presented by the poet has been explored by Jørgensen (1904) with regard to books 9-12 of
the Odyssey. The same distinction between two levels of knowledge is to be discerned in the Iliad as well. However impor-
tant the distinction, though, we cannot say with certainty whether the poet’s aim was to prove his heroes wrong or simply
to bring the limits of their mortal nature to even greater relief. More important, though, is the fact that the references to
divine justice are not limited to the heroes’ wishful thinking; one need only remember the simile of Π 384-93 and Apollo’s
outburst of moral indignation at Ω 33-54.

80 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Justice and Injustice in the Iliad: The Case of Moipa

relation to this order.


The basic words used in the poem to denote the concept of fate are μοῖρα, αἶσα
and πέπρωτο. All three of these words belong to a group of words called by Palmer
‘boundary words’: boundary words set off as terms which denote natural limits
and soon expand their application from the outer to the inner experience of man,
thus attaining a moral significance and reflecting ‘a peculiar concept of justice and
judgement as the respect for certain limits’.5 It is worth noting that words which
constitute the Greek moral terminology, such as δίκη, νόμος, νέμεσις, ὅρκος, are
all ‘boundary words’ which seem to suggest the existence of limits that should
not be transgressed if order should be maintained, while words of negative moral
implications, such as ὕβρις and ὑπερβασίη seem to denote the transgression of lim-
its. Of the words which denote fate, μοῖρα is the one with the greatest frequency and
the widest semantic field, and I will therefore focus on its application, referring to
αἶσα and πέπρωτο only when necessary.
Μοῖρα stems from the verb μείρομαι, ‘receive a portion’, and is therefore quite
transparent as regards its original meaning of ‘share, portion’.6 According to Burk-
ert, ‘the concepts of moira and aisa, constitutive of the Greek world picture’ have to
do with the sharing of food after hunting, ‘one of the universalia of human civiliza-
tions… Recognition of equality and rank comes in from the start, as “parts” are
distributed in due order’.7 This idea of distribution in due order takes us to the sec-
ond meaning of the word, that of social propriety; the meaning is found mainly in
the expressions κατὰ μοῖραν and κατ’ αἶσαν, which are often employed by the poet
and his heroes, both mortal and immortal, in a formulaic manner to denote that
someone has acted or has spoken appropriately.8 One could say that in these cases
the reference is made to the hero’s behaving according to the demands of his social
status. Departmentalisation takes place this time on a social level, and we may talk
of an apportionment of τιμή among men: each person lives within the limits of his
personal τιμή, and a proper behaviour entails observance of these limits.9 The idea
is also evident in the use of the adjectives ἐναίσιμος and ἐξαίσιος: the prepositions
ἐν and ἐκ fairly clearly denote someone who is within or beyond one’s own αἶσα or
share, that is, within or beyond one’s own limits.10
Both the prepositional expressions and the adjectives, then, are evocative of an
order which results from the observation of set limits. It would seem that at the
same time they extend their meaning and relate to social order itself. When Nestor,
5 
Palmer (1950) 161f.
6 
See Κ 252-53, Π 68; cf. ἔμμορε at Α 278, Ο 189, and ἄμμορος at Σ 489.
7 
Burkert (1996) 150.
8 
Κατὰ μοῖραν appears at Α 286 = Ω 373 ≈ Κ 169 ≈ Ψ 626, Ι 59, Ο 206; κατ’ αἶσαν appears at Γ 59 = Ζ 333, Κ 445, Ρ 716.
Cf. also ἐν μοίρῃ at Τ 186, αἴσιμα at Ζ 62 and ἐναίσιμα at Ζ 519; the opposite is οὐδὲ κατὰ μοῖραν at Π 368, and ὑπὲρ αἶσαν
at Γ 59 = Ζ 333.
9 
So Adkins (1960) 21; Yamagata (1994) 107.
10 
See Palmer (1950) 162-163, for the similar implications of the antithetical couples ἔνδικος-ἔκδικος, ἔννομος- ἔκνομος.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 81


Katerina Dimopoulou

for example, tries to reconcile Achilles and Agamemnon, he speaks κατὰ μοῖραν (Α
286): he speaks, that is, in a manner that is appropriate to the situation as a whole
if order is to be maintained, and not simply appropriate to his own social status
or τιμή; the issue at stake is one of order and propriety on the side of Achilles and
Agamemnon, not of Nestor.
The two meanings, that of ‘share’ and that of ‘order’ or ‘propriety’, seem com-
bined in the third meaning, that of fate. The concept does not refer simply to an
established future or to a destiny; life’s predetermined course is now interpreted as
the result of an apportionment, thus further stressing the existence of individual
portions and shares, and consequently of limits. One’s share in life is individual and
unique, defined by the particular conditions of one’s own life and death.11 As Clay
notes, μοῖρα is what differentiates one hero from another, and this differentiation
may be said to span one’s life from birth to death.12 The fact that fate is perceived
as a share is perhaps the most important characteristic of the Iliadic concept; life
itself is departmentalised on the human level, and this seems to entail that there is
an order which is preserved whenever μοῖρα is fulfilled.
It is worth noting that μοῖρα as fate is mostly used as an explanation post even-
tum. Referring to accomplished events of the past, it entails both inevitability and
irreversibility, and it denotes the final and ultimate point whence no return can ever
exist. Thus, it becomes the reasoning, the explanation as to why things happened
as they have. This explanation does not correspond to an illustration of a rational
sequence of causes and effects; rather, μοῖρα simply removes the anxiety man feels
against the chaos that surrounds him, against the vertiginous speed of life itself, by
confirming that what happened was part of an order against which he could not
have acted.13
The order implicit in this idea can be seen as moral in two ways. First of all, the
principle of limitation, as suggested by the belief in well-defined shares, is moral
in the sense that it is consistent with itself: it almost imposes a law, and it does so
indiscriminately and invariably, perpetuating and thus confirming itself. Second,
being thus consistent with itself, this principle suggests an order according to which
the established limits cannot and therefore will not be violated. As Cornford rightly
observes, μοῖρα is not simply what must be, but also what ought to be.14
The event which seems to capture the idea of μοῖρα most successfully is un-
doubtedly death. This is a use that is most prominent in the Iliad. The reference can
11 
See in particular Pötscher (1960).
12 
Clay (1983) 157.
13 
It is most important that fate is most of all a post eventum explanation for the poet: despite the fact that Achilles refers to
his own fated death prospectively, the narrative is actually a retrospective account given by the poet, and fate is in this way
no more than the reasoning behind Achilles’ untimely death. Besides, even the heroes themselves, when referring to fate
as an event which is to be accomplished in the future, they do so only when they realise the inevitability of its accomplish-
ment, presenting the unknown future as a well-known and certain past. The shift in perspectives should always be borne
in mind.
14 
Cornford (1912) 11.

82 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Justice and Injustice in the Iliad: The Case of Moipa

be made to one’s individual death, which is fated to happen at a particular moment


and under particular circumstances, as happens with Hector (Π 852-54) or Achil-
les (Ψ 80-81); or it can be made to the general and common fate of mortality, the
end that awaits all men indiscriminately (Π 441= Χ 179). Death is the only reality
that man can never doubt or ignore, the only eventuality with the compelling force
of a natural moral law that is imposed on man against his will, the predictable but
nonetheless inevitable end that awaits all men, an inextricable quality of the very
essence of human life. It is the persistent leitmotif of life, the one necessity that man
experiences repeatedly throughout his life, dying as he does more than one death,
up until the moment he has to die himself, the grasp of time that creates Glaucus’
beautiful simile: οἵη περ φύλλων γενεή, τοίη δὲ καὶ ἀνδρῶν. / φύλλα τὰ μέν τ’ ἄνεμος
χαμάδις χέει, ἄλλα δέ θ’ ὕλη / τηλεθόωσα φύει, ἔαρος δ’ ἐπιγίγνεται ὥρη· / ὣς ἀνδρῶν
γενεὴ ἡ μὲν φύει ἡ δ’ ἀπολήγει (Ζ 146-149).
In human mortality some of the basic characteristics of the idea of fate seem
to be concentrated: inevitability, inaccessibility and independence of human will
and action. More important, though, is the fact that human mortality seems to
confirm the association of μοῖρα with an idea of order. Death evokes the order of
nature itself; natural order implies balance and stability which are guaranteed by
regularity and by the eternal law of action and reaction, seen in antithetical couples
such as day and night, spring and winter, fecundity and aridity – a succession whose
regularity appears to have a reassuring effect upon us. This is an order in the sense
that it is invariably perpetuated, obedient to its own laws of equilibrium, and hence
rational, but more important, a moral order, in the sense that it is consistent with
itself. Man is part of this order, and his very existence is subject to the same laws of
regularity and perpetual balance: his mortality implies regularity, and inevitability
is part of this regularity. Death is an indication and confirmation at the same
time of this moral natural order, thus elucidating the moral quality of this Greek
concept.
One point should be made clear: according to such an interpretation, μοῖρα is
being seen as an event, or a series of events, which are perceived in their entirety
only after they have been fulfilled, and not as a force, whose jurisdiction it is to
define life in advance. True, the idea of μοῖρα as an agent does exist in the poem:
twice do we hear of the spinning woman, who is called Αἶσα at Υ 127 and Μοῖρα
at Ω 209;15 more interesting still, at Ω 49 we hear of Μοῖραι who are responsible
for man’s enduring heart16 – this is the only occurrence of the noun in the plural,
evoking groups of female deities such as the Charites, or the Muses.17 Nonetheless,
15 
Cf. η 197.
Macleod (1983: on Ω 49) sees Moirai as a ‘source of right order in the world’; of interest is his remark that Apollo
16 

consciously uses Moirai here, for had he used the gods instead, he would not have been able to arouse the gods’ pity.
17 
There are two further instances in which we have Μοῖρα: at Τ 87, where she appears along with Zeus and Erinys in Ag-
amemnon’s famous apology to Achilles, and at Τ 410, where Achilles’ horses foresee the hero’s death, for which they are not

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 83


Katerina Dimopoulou

these are only isolated cases that cannot provide us with convincing evidence of
μοῖρα’s personal character. In the poem μοῖρα is mainly an event, and not an agent
or a power imposing her will on man; the only agents the poet and his heroes ac-
knowledge are the gods. To quote Cornford, ‘[Moira] was not credited with fore-
sight, purpose, design; …though we speak of her as a “personification”, [she] has
not the most important element of personality – individual purpose … she is not
a deity who by an act of will designed and created that order [of the world]. She is
a representation which states a truth about this disposition of Nature, and to the
statement of that truth adds nothing except that the disposition is both necessary
and just’.18
To sum up: μοῖρα entails more than predetermination. Relating originally to
a share in a material sense, the word comes to mean a distribution which both
defines and preserves the order of well established limits. When this idea of distrib-
uted portions is applied to human life, and μοῖρα becomes one’s share in life and
death, it seems to retain its basic reference to this same order, which provides the
explanation as to why things happen as they do, why man has to die, or why he has
to die at a particular moment and under particular circumstances, why a disaster
must fall on a people; most often used as a post eventum explanation, it helps ‘make
sense’ out of life’s almost meaningless flow. The idea of order is related to that of
departmentalisation, which, when seen in terms of the social hierarchy and order,
refers to the most important idea of τιμή: τιμή is after all implicit of the limits that
demarcate one’s vital field of existence. The same idea of departmentalisation is true
of the gods and their divine τιμή. The Olympians exist primarily as a family, but at
the same time the very structure of the divine society is merely a reflection of that of
human society: Zeus is an ἄναξ (Γ 351), just like Agamemnon, demanding obedi-
ence and having the power to impose his will on the divine family (e.g. Α 545-67);
the gods hold assemblies of their own (e.g. Δ 1-77), and opinions are heard before
Zeus makes the final decision – a decision which is irrevocable; for as he himself
says, οὐ γὰρ ἐμὸν παλινάγρετον οὐδ’ ἀπατηλὸν / οὐδ’ ἀτελεύτητον, ὅ τί κεν κεφαλῇ
κατανεύσομαι (Α 526-27). In this order of social hierarchy, divine ethics is obviously
a reflection of human ethics: τιμή is of the utmost importance, and the relations be-
tween the gods are reciprocal, based on the same principle of do ut des that defines
human interrelations: Thetis helped Zeus once, and Zeus is now obliged to help her
back, showing thus his gratitude and properly recognising her τιμή (Α 503-10); if he
refuses to help her, she will think of herself as μετὰ πᾶσιν ἀτιμοτάτη θεόν (Α 516) –

responsible themselves, ἀλλὰ θεός τε μέγας καί μοῖρα κραταιή. In neither case, however, does there exist any obvious reason
for writing the word with a capital Μ. See Dodds (1951) 7.
18 
Cornford (1912) 20-21; cf. Burkert (1985) 129. It is worth noting that in the Iliad the concept of fate is very close to
that of chance; fate does not refer to a metaphysically pre-ordained plan about the cosmos, and therefore it is to be differen-
tiated from the idea of destiny or providence; fate is simply a chance even, whose consequences are inevitable – the emphasis
being laid on the inevitability of the effect rather than on the indefinability of the cause, we talk of fate rather than chance.
Contra Dietrich (1965), who talks of a pre-Homeric personification, and indeed deification of μοῖρα.

84 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Justice and Injustice in the Iliad: The Case of Moipa

and thus Zeus makes the promise that is necessary for the plot to unfold.19
In a very interesting passage of book 15, Poseidon refers to divine τιμή as the
result of departmentalisation:

πόποι, ἦ ῥ’ ἀγαθός περ ἐὼν ὑπέροπλον ἔειπεν,



εἴ μ’ ὁμότιμον ἐόντα βίῃ ἀέκοντα καθέξει.
τρεῖς γάρ τ’ ἐκ Κρόνου εἰμὲν ἀδελφεοί, οὓς τέκετο Ῥέα,
Ζεὺς καὶ ἐγώ, τρίτατος δ’ Ἀΐδης, ἐνέροισιν ἀνάσσων.
τριχθὰ δὲ πάντα δέδασται, ἕκαστος δ’ ἔμμορε τιμῆς·
ἤτοι ἐγὼν ἔλαχον πολιὴν ἅλα ναιέμεν αἰεὶ
παλλομένων, Ἀΐδης δ’ ἔλαχε ζόφον ἠερόεντα,
Ζεὺς δ’ ἔλαχ’ οὐρανὸν εὐρὺν ἒν αἰθέρι καὶ νεφέλῃσι·
γαῖα δ’ ἔτι ξυνὴ πάντων καὶ μακρὸς Ὄλυμπος.
τῶ ῥα καὶ οὔ τι Διὸς βέομαι φρεσίν, ἀλλὰ ἔκηλος
καὶ κρατερός περ ἐὼν μενέτω τριτάτῃ ἐνὶ μοίρῃ.
θυγατέρεσσιν γάρ τε καὶ υἱάσι βέλτερον εἴη
ἐκπάγλοις ἐπέεσσιν ἐνισσέμεν, οὓς τέκεν αὐτός,
οἵ ἐθεν ὀτρύνοντος ἀκούσονται καὶ ἀνάγκῃ. 20

O 187-199

A few lines later, Poseidon mentions that he is ἰσόμορος and ὁμῇ πεπρωμένος αἴσῃ
(209) with Zeus, each having an equal share of power. The passage is particularly
interesting for its relating τιμή with μοῖρα: the gods are called ἰσότιμοι and ἰσόμοροι
– in other words, each god has a τιμή, and this τιμή is seen as a μοῖρα, a share result-
ing from the apportionment of power; order can be attained and maintained only
when each god’s τιμή is properly acknowledged. This order of things is πεπρωμένη
αἴσῃ, established, that is, from without, an order which the gods should not oppose.
It is the order of life and nature, which exists independently of the Olympians:
despite their divine superiority, the gods are not the creators of this cosmos, nor are
they the authors of its order. The gods are part of this order just as men are, and
although they can apparently go against it, they never actually do. The same idea
is implied in two well-known, and almost identical, passages of the poem, Π 440-
49 and Χ 178-181: Zeus has been pondering whether he should save Sarpedon and
Hector respectively; the reply given by Hera in the first case is as follows:

19 
Other references to the gods’ reciprocal relations: Θ 360-73, Ξ 263-79, Σ 394-409, Ω 110-111.
20 
Burkert (1992: 88-95) informs us that the casting of lots among three deities, and the distribution of power among
them, is a motif taken from the Akkadian epic of Atrahasis – the result apparently of the neo-oriental influence on Greece
during the eighth century; not being rooted in actual Greek cult, it is one of the few cosmogonical references in the poem,
the other being Hera’s reference to Oceanus and Tethys at Ξ 201-2 and Ξ 246, and the scene of Zeus’ seduction by Hera in
Ξ, especially the description of their love-making at 346-51; see also Burkert (1985) 132.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 85


Katerina Dimopoulou

αἰνότατε Κρονίδη, ποῖον τὸν μῦθον ἔειπες.


ἄνδρα θνητὸν ἐόντα, πάλαι πεπρωμένον αἴσῃ,
ἂψ ἐθέλεις θανάτοιο δυσηχέος ἐξαναλῦσαι;
ἕρδ’· ἀτὰρ οὔ τοι πάντες ἐπαινέομεν θεοὶ ἄλλοι.
ἄλλο δέ τοι ἐρέω, σὺ δ’ ἐνὶ φρεσὶ βάλλεο σῇσιν·
αἴ κε ζὼν πέπμψῃς Σαρπηδόνα ὅνδε δομόνδε,
φράζεο μή τις ἔπειτα θεῶν ἐθέλῃσι καὶ ἄλλος
πέμπειν ὃν φίλον υἱὸν ἀπὸ κρατερῆς ὑσμίνης·
πολλοὶ γὰρ περὶ ἄστυ μέγα Πριάμοιο μάχονται
υἱέες ἀθανάτων, τοῖσιν κότον αἰνὸν ἐνήσεις.

In these cases αἶσα denotes the only share of which man is certain, his inextri-
cable link to death. According to Hera (and Athene), the god cannot set free from
death ἄνδρα θνητὸν ἐόντα, πάλαι πεπρωμένον αἴσῃ. The line sounds like a definition
almost of human essence, and it is obvious that the idea projected is that of human
mortality, a predictable, and therefore pre-ordained event, yet inescapable and be-
yond control. The gods can, but do not oppose this order of life. For this is an order
that precedes the birth of the Olympians, it is one of the human characteristics
for which the gods bear no responsibility: the fact that the heroes have to die is far
beyond their jurisdiction and power. The fact that Zeus is presented as being able
to choose, if so he wishes, to save the heroes, and thus control death and human
mortality, is not without significance: the god appears to be neither subordinate to
nor responsible for μοῖρα, but rather free to choose whether he should act according
to or against it; the fact that he opts for the former underlines his concern for the
moral order of life as suggested by μοῖρα.21
The same order that determines and demands human mortality defines the
immortal quintessence of the gods. The distinction between the divine and the
human is one prescribed by it, and the dividing line between the two is clearly and
irrevocably circumscribed. The stark contrast between the divine and the human
is an essential element of the poem, underlining as it does man’s mortal nature of
limited knowledge and perception: against the divine, immortal light of the ever
youthful Olympians the dark sorrow of man struggling against life and against
his own nature as prescribed by μοῖρα assumes an even graver significance, and the
tragic reality of the poem becomes even grimmer.22 More important still, this very
distinction which is part of the natural order implied by μοῖρα provides us with an
answer to the inconsistent behaviour of the gods.
The gods’ superiority is related to their superior τιμή. As Phoenix says of the

One can also think of the cases in which a violation of fate is suggested (ὑπέρμορα: Β 155-156; ὑπὲρ αἶσαν: Ζ 487, Π 780,
21 

Ρ 321-22; ὑπέρμορον: Υ 29-30, Φ 516-17; ὑπὲρ μοῖραν: Υ 335-36): only once, at Π 780 do we hear of something happening
against fate, but the idea implicit is that fate can indeed be violated; it is the gods’ intervention which does not allow this to
happen. For a different view, which sees fate as the will of Zeus, see Lloyd-Jones (1983) 5.
22 
For the importance of the distinction between the divine and the human see Griffin (1980) ch. 5, Taplin (1992) ch. 5

86 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Justice and Injustice in the Iliad: The Case of Moipa

gods, τῶν περ καὶ μείζων ἀρετή τε τιμή τε βίη τε (Ι 498). Man should acknowledge
divine τιμή and divine superiority, thus acknowledging the very order of life. And
this he does in his desperate attempt to establish, as much as possible, a relation of
mutual reciprocity with the gods, whereby the elementary principle of retributive
justice will be hopefully maintained. Gods, on their part, are particularly sensitive
to their own τιμή, defending their privilege with an extreme sense of self-righteous-
ness. This preoccupation of the gods with their personal τιμή is usually the reason
why we feel disconcerted by their behaviour: Hera and Athene, for example, sup-
port the Greeks not out of a concern for their moral cause, but because their own
τιμή was violated when Paris chose Aphrodite over them (Ω 25-30); the offence can
cause an insatiable hatred that can be quenched only with the annihilation of Troy
(e.g. Δ 31-36); the gods’ behaviour is affected by their obsession to such a degree
that they seem to be motivated by their emotions and passions rather than by a
concern for justice or morality. Subject to love and hatred, affection and jealousy,
they can easily be regarded as self-centred and self-absorbed, impartial and essen-
tially immoral – their emotional weakness inevitably restricting their ability to act
justly.
Considering the importance of τιμή in Homeric society, the gods’ concern for
their τιμή does not come as a surprise. Anthropomorphism is a rationalising proc-
ess; the assimilation of the gods to human standards and principles reflects man’s
attempt to comprehend the indefinable power that exists beyond his knowledge,
and this means basically that essential qualities of the divine are simply translated
into signs or terms that will be easily identifiable or recognisable by man.23 Hence
the attributes of ἀρετή, τιμή and βίη, which are no more than the acknowledge-
ment, in human terms, of the superiority of the divine. The gods represent the
‘unattainable extreme, perfection’,24 and this perfection can only make sense if seen
in the light of principles of which man is aware.
The case of Zeus’ protection of oaths, ξενία and ἱκεσία is particularly illuminat-
ing: all three of these principles are of the utmost importance to Homeric society,
creating the conditions necessary for the coherence and security of the social group;
their violation is seen as a violation against Zeus himself, a sign of indifference
towards his τιμή, and the god’s reaction to such violations aims simply at restoring
the order. By being related directly to the supreme god, the principles are being es-
tablished and sanctioned: the necessary link between propriety and divine response
is made comprehensible through the reference to the god’s τιμή, and although we
may find the association too mundane, it seems to provide the proof for the god’s
concern for propriety: if Zeus punishes transgressions, this means that he is of-
fended by such transgressions, which are therefore unwelcome to him and con-
demned in man. The abstract idea of divine reciprocity and justice is reduced to the

23 
See Chantraine (1952) 57ff, esp. 63.
24 
Burkert (1996) 27; see also ch. 4.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 87


Katerina Dimopoulou

concrete image of a god reacting to violations of τιμή in man’s attempt to solidify


and comprehend the unknown forces of life. The negative connotations that τιμή
has for us simply do not exist.
For the Iliadic man the fact that the gods are concerned with their τιμή is an
indication of the interaction that exists between the human and the divine. Accord-
ing to Burkert, ‘if reality appears dangerous and downright hostile to life, religion
calls for something beyond experience to restore the balance’.25 Cults, rituals and
religious practices seem to be based on the assumption that the powers that exist
beyond man’s reach and comprehension are affected by human behaviour in multi-
ple ways and respond to it accordingly. Such beliefs in their turn seem to condition
human behaviour and ultimately form the basis of social principles and codes, or
even superstitions. ‘By establishing connections of fault, consequence, and remedy,
[religion] creates a context of sense and premises a meaningful cosmos in which
people can live in health and at ease’.26 The gods, then, are believed to respond to
human behaviour, which is therefore conditioned accordingly, due respect to the
gods being an essential principle of the code of ethics.27 When Chryses prays to
Apollo, reminding him of all the past offerings, the god responds (Α 35ff), and this
may be seen as the result of Chryses’ own piety as manifested in the past and of
his special relation to the god through his priesthood – a response, that is, based
on reciprocity. To some, such a response may appear too superficial, the result of
favouritism rather than moral consideration,28 but I would think that for Homeric
man this is simply an instance of a god’s just reaction to a pious man. Behind it we
can discern a most elementary concept of the belief in divine justice: the good have
to prosper, the bad have to suffer.
Obviously, this is not what happens eventually – not in the poem, nor more
important in real life. For the religious worldview of the poem this is partly the
result of polytheism. Plato discerned the difficulties of polytheism, when he had
Socrates tell Euthyphro that, in this pluralistic system of many gods οἱ μὲν δίκαια
ἡγοῦνται, οἱ δὲ ἄδικα· περὶ ἃ καὶ ἀμφισβητοῦντες στασιάζουσί τε καὶ πολεμοῦσιν ἀλλήλοις
(Euthph.7 e 11-13). The complications are indeed inevitable: each god representing
an entirely different power with a distinct field of action, the result is a sense of
disorder, the well known ‘caractère anarchique du panthéon homérique’,29 since
‘there is obviously a no to every yes, an antithesis to every thesis’.30 What honours
Aphrodite, dishonours Hera and Athene, and the Trojan women’s prayers to the
daughter of Zeus for protection are despite their piety neglected. But there is more
to be said.
25 
Burkert (1996) 33.
26 
Ibid. 128.
27 
For vows, prayers, sacrifices and offerings being of the universalia of religion see ibid. 4.
28 
So Gagarin (1987) 294, n. 25.
29 
Chantraine (1952) 64.
30 
Burkert (1985) 248.

88 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Justice and Injustice in the Iliad: The Case of Moipa

The order prescribed by μοῖρα, the very order which demands human mortal-
ity and divine immortality, entitles the gods to occasional indifference. The rela-
tion between the human and the divine is indeed one of τιμή and reciprocity, but
this means that the gods can and do most often react when their personal τιμή is
involved, but they can also be indifferent when it is not. Enjoying their unique
privilege of immortal and superior power that their τιμή and μοῖρα entails, the gods
can easily disregard moral considerations if they so wish for the sake of some other
purpose of theirs. The gods are ‘perfectly within their own rights’31 when they react
because of their offended τιμή, but they are also perfectly within their own rights
when they decide to neglect man’s claims on morality. The gods are not bound by
any obligation towards man, and their occasionally immoral or excessive behaviour
is merely the natural consequence of their very immortality as prescribed by μοῖρα
and life’s order; immune to the fear of pain, time and death, they can do as they
please, certain that their bliss is eternal, never to be threatened by the misery of the
mortals.
Morality is evidently not the quintessence of the Iliadic gods, not in their rela-
tion to man; the relation between mortals and immortals is well defined as one of
inferiority-superiority, the limits being inviolable and irrevocable, and in the gods’
whimsical behaviour and wish to act as they like man acknowledges a right which
is based on this superiority of theirs. The gods are inaccessible, they are nature and
life itself, and man cannot demand their attention, nor press a rightful claim on
them. The gods can be just as easily as they can be unjust, moral as well as immoral,
for their morality is one that goes beyond the distinction of good and evil: it is
simply the harsh and irrational morality of μοῖρα and life that demands man’s utter
limitation by time and death. In the Iliadic gods the two antithetical qualities of
justice and injustice seem to converge into a peculiar synthesis which challenges our
expectations and demands a more cautious approach. Interpretations which aim at,
or wish for, a single and more consistent idea of the divine in the poem, inevitably
depend on a choice, a preference for one or the other characteristic, ignoring or
neglecting the aspect against which they opted, and thus disregarding an essential
quality of the Iliadic gods, namely their moral ambivalence.

31 
Lloyd-Jones (1978) 4.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 89


Katerina Dimopoulou

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Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 91


O  de Aquiles e de Heitor:
Unidade versus Dissemelhança
Pedro Braga Falcão
CEC / U. lisboa
pedrobragafalcao@hotmail.com

Q uem é Aquiles; quem é Heitor? O seu canto é uno? A sua voz é uma mesma,
que entoa o canto de um só herói, a “ideia” de herói? São sinónimos ou an-
títese? Proponhamos aqui interrogações, baseadas nos dois seguintes excertos da
Ilíada:

I
   462
    
   
     465
        
 
 
  
   470
   
Ilíada, XII, 462-471

Tradução:
(…) Então o magnífico Heitor, de aspecto semelhante 462
ao da rápida noite, avançou. Luzia com as terríveis armas de bronze
que lhe cingiam o corpo, trazendo na mão duas lanças.
Ninguém conseguiria travá-lo, excepto um deus, 465
quando ele transpôs a porta aqueia. Com fogo luziam seus olhos.
Voltando-se para a multidão, exortou os Troianos
a saltar os muros: e eles obedeceram a quem assim lhes exorta.
Nesse mesmo instante galgam os muros, e precipitam-se
sobre a sólida porta. Os Dánaos fogem então, aterrorizados, 470
para as côncavas naus, e um clamor sem fim eleva-se.

II
    

  

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 93


Pedro Braga Falcão

 
  
  220
 
    
 
        
   225
  
  
 
 
Ilíada, XIII, 215-229

Tradução:
Deteve-se então [Aquiles] no fosso, dirigindo-se para as muralhas, 215
não se misturando com os Aqueus: honra assim as sensatas ordens da mãe.
Detendo-se aí gritou, e para longe brama também Palas Atena:
Eleva-se já um clamor imenso junto dos troianos.
Tal como a retumbante voz que o salpinx faz ressoar
quando o inimigo quebrantador de ânimo cerca a cidade, 220
assim era a retumbante voz do Eácida.
Assim que ouviram o brônzeo brado do Eácida,
a todos se lhes quebrantou o ânimo: os cavalos de belas crinas
puxam os seus carros para trás: prevêem no seu ânimo desgraças.
Os cocheiros ficam estupefactos, ao verem o incessante fogo terrível 225
que alumia a cabeça do Peleida de grande ânimo.
Foi Atena, a deusa dos olhos garços, quem lha alumiou.
Três vezes gritou ingentemente o divino Aquiles sobre o fosso,
três vezes se atemorizaram os Troianos e seus ilustres aliados.

A) Da unidade do gesto de Aquiles e Heitor. Temos nestes dois excertos, que


ora apresentamos, descrito o gesto de dois heróis – Heitor e Aquiles. Ambos são
os alicerces da esperança de vitória de Troianos e Aqueus. Aparte isto, atente-se
que ambos os trechos representam a saída definitiva, no seu sentido etimológico de
“impor um fim”, dos dois heróis para o prélio. Tomemos Heitor. Se observarmos as
consequências do arrojo guerreiro que é o de transpor a sólida porta das muralhas
dos Dánaos, veremos o porquê de dizermos que tal passo do canto XII representa
a saída definitiva de Heitor para o combate. Senão vejamos: quais vão ser as conse-
quências de Heitor passar as amuradas aqueias? Primeiro que tudo, a grima entre os
Aqueus. Segundo, a busca de auxílio em Aquiles. Terceiro, Aquiles envia Pátroclo.
Quarto, Pátroclo morre. Quinto, a cólera de Aquiles muda na direcção de Heitor.

94 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Pur de Auiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhança

Sexto, Heitor morre. Ergo, o “início da morte” de Heitor começa neste trecho.
Mas também Aquiles sai definitivamente para o combate neste excerto. Aquiles
é  , e, ao lançar-se ao combate com tal cantada violência, a sua morte do-
brará com ele: este é o ponto de viragem no canto de Aquiles, a partir deste gesto, o
herói entra definitivamente no seu destino: vingará Pátroclo a soldo da própria vida.
O fortíssimo com que ataca este seu acorde só pode levar a uma única cadência – a
sua morte – nem poderia, a partir deste momento, deixar incompleta a sinfonia
que assim começa; ou seja, a sua melodia começa aqui e na própria agógica da peça
seria impossível interrompê-la. Não seria aqui o momento apropriado para discutir
aquilo que sempre sentimos quando lemos este excerto no contexto global da Ilíada:
que estamos perante o clímax, o ponto culminante do crescendo musical que entoa
o canto de Aquiles, que todavia não coincide com o clímax da violência (talvez a
barbárie junto a rio Escamandro), o que causa uma certa estranheza. Referimo-nos
contudo a um clímax de força poética, de sentido e de luminosidade.
Procuremos agora encontrar pontos de encontro entre os dois excertos. De um
ponto de vista de proporção aritmética, repare-se nos seguintes cantos: XII-XVI-
XVIII-XXII – vão passar-se exactamente quatro cantos desde da passagem de Hei-
tor pelas muralhas até à morte de Pátroclo, e outros tantos desde o bélico aulido
de Aquiles até à morte de Heitor. Por outro lado, que reacção provocam os dois
heróis? Heitor, ao aparecer num imenso fulgor e ao exortar os troianos a transpor
a porta aqueia, vai provocar um tumulto sem fim,  . Aquiles,
ao bradar ingentemente e ao ser visto com uma coroa de fogo, vai igualmente pro-
vocar um clamor incessante, a[speton kudoimovn (XVIII, 218). Como são descritos
os dois heróis? Em ambos reside a força do bronze: Heitor brilha com a luz do
terrível bronze     (XII, 463-464), e a voz do Eácida é
de bronze,   (XVIII, 222). Por outro lado, repare-se que ambos os he-
róis surgem comparados a manifestações da natureza: Heitor é comparado à presta
noite    (XII, 463) e a cabeça de Aquiles luz com um fogo incessante,
  (XVIII, 225). A comparação de uma personagem com a “noite rá-
pida” é inusitada nos textos homéricos, como sublinha Willcock1: em toda a Ilíada
e Odisseia só há duas comparações relativas à noite: na Ilíada I, 47, Apolo, trazendo
a praga, vem «como a noite» para as naus gregas; na Odisseia, XI, 606, Héracles
avança entre os fantasmas «como a escura noite», com o arco pronto a disparar.
Mas, como se vê, nenhum delas é tão sugestiva como esta comparação relativa à
«rápida noite», onde o adjectivo empresta celeridade à própria identificação de Hei-
tor com a Noite. E quanto ao fogo incessante que rodeia a fronte de Aquiles, este é
uma imagem suficiente para causar pânico nos próprios cavalos e nos seus cocheiros
– repare-se que este verso é formado quase somente por pés dactílicos, o que diz
bem da reacção que provoca: um medo súbito, toste como a noite de Heitor. Temos
então Heitor e Aquiles, heróis próximos na medida em que em ambos reside a força

1 
M. M. Willcock, A Companion to the Iliad, The University of Chicago Press, Chicago-London, 1976, p. 143.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 95


Pedro Braga Falcão

da terra: a noite e o fogo. É esta força telúrica da  e do   que, julgamos nós,
aproxima os dois heróis, e os torna agentes de um ojn unificador que os engloba: a
própria natureza. Por outro lado, ambos luzem com o fogo,  . Os olhos de Heitor
brilham com o fogo,  , e um fogo alumia a cabeça de Aquiles.
B) Da dissemelhança do gesto de Aquiles e de Heitor. Mas será ο   de Aquiles o
mesmo que incendeia os olhos de Heitor? É uma importante questão, especialmente
se tomarmos   metaforicamente, isto é, o fogo de alma, alento, arrojo mavórcio.
Isto porque se analisarmos o trecho do canto XVIII podemos encontrar na imagem
de Aquiles certos pormenores que não encontramos no do canto XII. Senão veja-
mos: é relativamente claro que a atitude guerreira dos dois heróis é diferente – Aqui-
les não se mistura com os Aqueus, nem os exorta ao combate, ao contrário de Hei-
tor. Repare-se que neste excerto só há referência aos Aqueus para dizer precisamente
que o herói não se mistura com ele; no do canto XII, pelo contrário, há uma clara
referência ao povo troiano, que em conjunto passa as muralhas do Dánaos. Assim,
Aquiles aparece só, e é só, o que aparentemente lhe dá um protagonismo diferente
do de Heitor, que representa um povo e não um indivíduo. Por outro lado, o clamor
que se eleva num e noutro excerto é de origem diferente. O o[mado" (XII, 471) que
sobrevem não é unicamente acirrado por Heitor, mas por ele e pelo seu povo. Já o
kudoivmon (XVIII, 218) que se eleva aos céus é pura e simples consequência de todos
verem a coroa de fogo inextinguível de Aquiles. O Eácida é só, não é chefe nem pas-
tor de tropas, o filho de Príamo, esse, é o seu povo, é o timoneiro e guia. Por outro
lado, repare-se no carácter estático de Aquiles, repetido em duas formas verbais do
verbo  (XVIII, 215) e stav" (XVIII, 217). Aquiles está parado, imóvel,
enquanto o primeiro verbo associado a Heitor é e[store (XII, 462) – Heitor avança.
Aquiles detém-se enquanto todos os troianos recuam, aterrorizados.
Já as consequências do gesto de Aquiles parecem-nos ser diferentes: o terror que
se experimenta não se vive só no mundo humano, como no fragmento do canto
XII, mas também no mundo animal: os cavalos de belas crinas puxam os seus
carros para trás, prevendo no seu ânimo desgraças. A ideia de que um herói, pela
simples visão, transmite tal terror que até os cavalos se arreceiam é, sem dúvida,
mais superlativa do que o ‘simples’ medo dos Aqueus ao verem Heitor e o seu povo
renhir com eles, no final do canto XII. Aliás, se continuássemos a ler para além do
verso 229 do canto XVIII, verificaríamos que doze dos melhores troianos morreram
pela sua própria mão, matando-se com as suas armas involuntariamente quando
tentavam fugir atabalhoadamente (XVIII, 230-231): e isto tudo só à simples visão
do filho de Peleu.
Mais há mais evidências deste carácter bem mais superlativo do comportamen-
to de Aquiles em relação ao de Heitor. Repare-se que no texto do canto XVIII
aparece repetida quatro vezes em apenas quinze versos a palavra quvmo" compos-
tos dela, algo a que tentámos ser sensíveis na nossa tradução, repetindo a palavra
“ânimo”. A repetição deste vocábulo dá uma obriga-nos a visualizar e a ouvir (sim,
porque é um terror que se ouve) o pavor troiano ao ver o filho de Tétis – um terror

96 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Pur de Auiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhança

movimentado, diro, premonitório. Também o símile do  (XVIII 219-221)


traz ao texto sons afins – o som da guerra, da morte, da destruição, do cerco de
uma cidade. Ideia presente também na inexorável repetição do triv" – que sugere
frenesim, movimentação surda.
Mas retomemos a nossa questão anterior - o   de Aquiles é o mesmo que
incendeia os olhos de Heitor? Posto o que dissemos, podemos tentar responder à
pergunta. Pensamos que a grande diferença entre o gesto dos dois heróis, do seu
 , reside fundamentalmente na qualidade de tais fogos. Repare-se que no trecho
do canto XVIII há uma clara relação de Aquiles com o divino. Aquiles, para já, é
 (XVIII, 228) – e o fogo que lhe alumia o rosto é de origem divina: foi Atena
quem lho deu (XVIII, 227). Atena não se limita porém a ter um papel passivo na
acção; não, no grito de Aquiles existe algo de divamente sinfónico, pois Atena grita
com ele (), conferindo uma musicalidade divina ao seu brado. De igual
modo, Aquiles não se mistura com os Aqueus, honrando as sensatas ordens da mãe
Tétis. Sendo assim, o  de Aquiles é sem dúvida divino, pelo menos na origem.
E será também o de Heitor? Não julgamos; se Aquiles é , Heitor é “somente”
 (XII, 462), e todos o temem, excepto os deuses,  (XII, 466).
Se a luz incessante de Aquiles é de origem divina, a de Heitor é emprestada pelo
bronze, / (XII, 463- 464). E se Aquiles grita, h[us! (XVIII,
217), Heitor apenas exorta, kevkleto (XII, 467).

C) Do porquê de tal dissemelhança. No entanto, porque não é o mesmo o fogo o


que alumia Aquiles e Heitor? Que é o mesmo do que perguntar, porque é Aquiles
Aquiles ou Heitor Heitor? Como se define o seu heroísmo? Podem ambos ser predi-
cados de “herói”? Para responder a esta pergunta, propomos distinguir dois tipos de
heróis na Ilíada: Aquiles, e todos os outros. Com tal provocação (mais não o pode
ser no contexto de uma curta comunicação) queremos dizer que Aquiles é só no seu
gesto. Aquiles é o herói que mais se assemelha a um Gilgamesh. Mas porque dize-
mos isto? Não podemos fundamentar uma intuição, ou melhor, podemos funda-
mentar aquilo que levou à nossa intuição, mas nunca a intuição em si. A verdade é
que sempre que pensamos no gesto de Aquiles, ou de Gilgamesh, pensamos em
força, em possessão divina, de  que muito dificilmente poderemos
caracterizar. A dificuldade desta caracterização assenta no facto de, como inteligen-
temente aponta Parry2, “what is a characteristic of the Iliad, and makes it unique as
a tragedy, is that this otherness of Achilles is nowhere stated in clear and precise
terms”. Este otherness de Aquiles parece-nos evidente, até pelo facto de o grande
esparto que liga a acção da Ilíada é a  do herói, e os seus dois momentos -   
por Agamémnon, desviada em    por Heitor. Mas onde está esse otherness,
usando o feliz termo de Parry? Pensamos que este reside no facto de existir algo de

A. Parry, “The Language of Achilles”, in The Language and Background of Homer, G. S. Kirk (ed.), Cambridge-New
2 

York, Heffer-Barnes & Noble, 1967, p. 53.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 97


Pedro Braga Falcão

“daimoníaco” na acção heróica deste ser. Porque dizemos isto? Comecemos pela
própria filiação dos heróis. Aquiles é filho de Tétis. Não concordamos com interpre-
tações simplistas como é, pensamos, a posição de Bowra; de facto, num estudo
comparativo que este autor tem sobre as idades dos heróis, o autor diz a certo mo-
mento: «sometimes, like certain Greek heroes, they [the heroes] are half-divine in
origin; there is often something unusual or miraculous in their birth. But this is an
incidental and almost irrelevant, no more than a tribute to their eminence by trying
to explain it as a matter of breeding»3. Não podíamos discordar mais. O facto é que
não é acidente (no sentido aristotélico) o facto de Aquiles e ser filho de uma deusa;
se lhe retirassem em última análise esta qualidade (o processo epistemológico de
demonstração do  aristotélico), Aquiles deixaria de ser Aquiles. Pelo
contrário, se lhes retirassem o seu famoso escudo, Aquiles continuaria a ser Aquiles.
Escudo é acidente (), filiação divina é substância (oujsiva). Porquê? Por-
que, em última análise, define o algo a que o discurso épico se reporta, a excelência
que não é adquirida, mas nasce com o herói, como aliás contraditoriamente admite
o próprio Bowra: «the Greek explained this [the heroes’ power] by saying that they
possessed a higher degree of inborn power, and indeed it is this which makes a hero,
wherever he is to be found»4. A forma de explicar este ‘inborn power’ não é uma
forma nem intelectual, nem poética, nem mitológica, nem sentimental, é uma for-
ma teológica: Aquiles é Aquiles por ter sido tocado “geneticamente” pelos deuses; a
sua filiação é a primeira prova da sua gratia divina. E nenhum outro herói na Ilíada
“é tocado” de tal forma; nenhum outro herói “canta com” os deuses. Clarifiquemos.
Esta otherness de Aquiles reside, em nosso entender, na qualidade da sua   . No
contexto da epopeia, utilizar o termo    requer um certo cuidado. Defendemos
que existe dois tipos de    na Ilíada. A primeira, chamemos-lhe “    huma-
na”, é característica de personagens como Heitor ou Pátroclo, e os seus gestos de
arrogo definem-se por «cegueira heróica», ou seja, pela forma como não são capazes
de interpretar os sinais que lhes são enviados devido à excessiva confiança que têm
no momento do seu apogeu bélico – Heitor não soube interpretar o que representa-
va para ele vestir as armas de Aquiles, depois de despojar Pátroclo, assim como Pá-
troclo não soube parar o seu furor guerreiro, precipitando-se sobre Heitor, não se-
guindo os sinais dados pelo seu próprio amigo, Aquiles. E todo este
comportamento hybrístico assenta em gestos simbólicos, pequenos na dimensão,
embora posteriormente grandes no sentido – vestir as armas do émulo, avançar um
pouco mais na refrega. É fundamentalmente uma hybris de erro, isto é, de não saber
interpretar, um erro de cálculo (ajmartiva). O excesso de Aquiles é completamente
diferente. A sua hybris é cósmica, na medida em que todos os sinais são correcta-
mente interpretados por ele. Aliás, o erro é difícil, quando a própria mãe, uma
deusa!, lacrimosa lhe diz «Terás então uma morte rápida, meu filho, ao falares as-
3 
C. M. Bowra, “The Meaning of a Heroic Age”, in The Language and Background of Homer, G. S. Kirk (ed.), Cambrid-
ge-New York, Heffer-Barnes & Noble, 1967, p. 23.
4 
Bowra, ipso loco.

98 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Pur de Auiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhança

sim! Pois a morte está iminente para ti, junto com Heitor» (XVIII, 95-96), ao que
Aquiles responde: «Que eu morra agora mesmo, se não tentasse socorrer o meu
companheiro já morto.» Ou quando Xanto, o seu cavalo, lhe vaticina uma morte
em breve, ao que ele responde: «Xanto, porque me vaticinas a morte? Não precisas.
Isso bem eu próprio sei que de seguida o destino me fará perder, longe do amado
pai e mãe: mas com certeza não descansarei enquanto não levar os troianos ao fastio
da guerra» (XIX, 420-423). Este argumento de “pré-conhecimento” de Aquiles é
discutível, uma vez que Heitor também o tem (Pátroclo diz-lhe, morrendo, «não
viverás muito também; já de ti se acercou a morte e o destino potente, que te farão
subjugar pelo braço ilustre de Aquiles Eácida» (XVI, 853). No entanto, pensamos
que Heitor aceita esse destino, mas não se cola a ele, se me perdoam a expressão
usada pelo Professor José Pedro Serra, como é o caso de Aquiles, ou seja, divisa o
seu destino, mas não se lhe entrega heroicamente; o gesto de vestir as armas de Pá-
troclo é pequeno, é humano, é um “pequeno excesso”, embora grande, como já
dissemos, nas consequências. Pelo contrário, os excessos de Aquiles são enormes,
fisicamente enormes, enormes em termos de sentido. Mesmo a própria consciência
da sua morte; Clarke, numa exímia obra sobre os conceitos de alma e corpo em
Homero, soube como ninguém intuir a forma única como Aquiles encara a sua
morte: comentando IX 321-22, um dos momentos mais fortes no discurso de Aqui-
les a Ulisses. «Although he invokes it at a time when his mood has been dictated by
yielding to his passions in the most intense self-awareness, even here the core of the
images is that the yuchv will be lost in death, not that it underlies emotion, thought,
or active life”5. E esta torva consciência é, pensamos, bem própria deste herói; ela
encara a própria morte de uma forma diferente, pois vê o mundo de forma diferen-
te – ele foi tocado por gratia vertical, isto, vinda de cima. Tudo é isolado no seu
gesto; ele vindima um imenso número de troianos, turva a cor do rio com a sangue
das vítimas, investe contra a própria natureza e a sua ordem – a    de Aquiles é
uma    cósmica. Tudo é grande na sua cólera funesta; o arrastar do corpo de
Heitor em volta do túmulo de Pátroclo, a própria morte de Heitor, a bestialidade da
carnificina que vai provocando, o momento em que se detém sobre o fosso, como já
vimos. Os seus excessos perturbam não só a ordem humana, perturbam a ordem
cósmica – e é esse o verdadeiro motivo, no nosso entender, da sua iminente morte
– ordem cósmica porque a forma como ele é humano não é humana: as suas sevícias
têm algo de daimoníaco, quer pela sua filiação divina, quer porque toda a sua acção
é desmedida, pois excede a medida humana, por natureza horizontal, cronológica.
Aquiles é , Heitor é . Se nos conseguirem demonstrar que a    de
Heitor é semelhante à de Aquiles, então admitiremos que o seu pu'r é semelhante.
Acentuámos a distância que vai de Aquiles a Heitor. Mas será mesmo verdade que
só existe um herói na Ilíada? Queríamos aqui dizer que sim; o tempo que dispomos
M. Clarke, Flesh and Spirit in the Songs of Homer: A Study of Words and Myths, Oxford, Clarendon Press, 1999, p. 57.
5 

O autor não defende aqui a particular consciência de Aquiles em relação à morte, somos nós que interpretamos as suas
palavras dessa forma.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 99


Pedro Braga Falcão

e o bom senso leva-nos a dizer que não. Vivemos em permanente antítese, em rela-
ção a nós próprios; vivendo queremos ser Aquiles, anelamos porém por igualmente
ser Heitor; somos heróis quando levamos aos limites da nossa ajrethv os dois pólos
do nosso querer. Ser Aquiles é sem dúvida tarefa dissonante, porque não está em nós
a decisão de o ser. Ser Heitor é igualmente sublime, difícil, mas não cósmico: de-
pende exclusivamente de nós, embora, paradoxalmente, a um deus seja impossível
ser Heitor. Quanto a mim, gostaria de ter provado do doce cálice materno o daímon
de tudo; teria preferido fixar-me no sol do exício sob a lua que alteia – participar em
passado futuro na grata guerra de Tróia.

100 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Odi et amo: amor e ódio em Catulo
José Ribeiro Ferreira
U. Coimbra
rifer@ci.uc.pt

C atulo, como é bem conhecido, compôs um livro a que poderemos chamar Os


Poemas de Catulo e que, segundo K. Quinn, teria sido preparado para publi-
cação pela própria mão do poeta. Com uma técnica de expressão apurada e requin-
tada até ao pormenor, encontramos nesse livro temas mitológicos e cultos pouco
conhecidos ou rebuscados, ao gosto dos poetas gregos do período helenístico, com
destaque para alguns que viveram em Alexandria; mas também epitalâmios, po-
emas de amor, de amizade e amor fraterno, de crítica e invectiva literária, social,
política ou de outra índole.
Catulo é profundamente fertilizado pela literatura grega, em especial pelos au-
tores helenísticos. A estética helenística enformou, de facto, toda a sua poética: por
exemplo, “Átis” (Carme 63) tem modelos helenísticos, com possível influência de
Calímaco; o “Epitalâmio de Peleu e Tétis”, o conhecido epílio 64, apresenta mo-
delos gregos que, no entanto, são difíceis de identificar; “A cabeleira de Berenice”
(Carme 66) que é imitação de um poema de Calímaco; o epicédio pelo pardal da
amada (Carme 3) tem correspondência na poesia helenística, com alguns exemplos
na Antologia Palatina (7. 189-216); para o irónico convite para jantar do Carme 13
há paralelos e modelos helenísticos (e. g. Antol. Pal. 2. 28 e 9. 44). Mas a influência
grega é colhida também em outras fases da literatura grega. O exemplo mais ca-
racterístico é com certeza o Carme 51 que tem como modelo a chamada “Ode do
Ciúme” de Safo (fr. 31 Lobel-Page). O poema sobre o navio envelhecido (Carme 4)
parece ter sido influenciada por Alceu, da mesma época de Safo, se bem que encon-
tremos paralelas composições helenísticas (e. g. Antol. Pal. 9. 34 e 36) 1.
Os sentimentos, em Catulo, exprimem-se de forma irreprimível e com uma for-
ça que é rara na literatura. De temperamento eminentemente egocêntrico, o Veronês
mostra-se exclusivo nesses sentimentos: ama ou odeia de modo integral. Impulsio-
nado pelo coração, não é capaz de racionalizar, discernir, compreender ou perdoar
o que vive, sente, sofre ou lhe fazem. E assim a vivacidade dos afectos colora todo
o seu livro; atravessa-o o fogo da paixão, que por vezes parece explodir e deflagrar.
A intensidade das reacções contraditórias tanto se encontram na exteriorização dos
seus sentimentos pela amada, a que dava o nome de Lésbia, como das suas relações
com os amigos. No que respeita a estes, conforme as circunstâncias, pode dirigir-se-
lhes com diminutivos afectuosos, desejar-lhes sinceras felicidades, comover-se com
o pensamento de os reencontrar depois de longa separação; mas também é capaz

1 
Sobre o débito de Catulo à Grécia vide J. Bayet, «Catulle, la Grèce et Rome», in L’ Influence Grecque sur la poésie latine,
Entretiens Hardt, vol. II (Genève, 1953), pp. 1-39.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 101


José Ribeiro Ferreira

de lhes arremessar os nomes mais difamantes, ou porque são inimigos e adversários


declarados; ou porque os amigos, traindo o pacto estabelecido, se tornaram inimi-
gos, caso em que a reacção surge potenciada por uma cólera dolorosa. É que a ironia
impiedosa é suficiente para atingir quem por nós manifesta natural antipatia, mas
não basta para dizer quanto se sofre e sente com a traição e o abandono do que por
palavras se diz nosso amigo.
É todavia na expressão dos seus sentimentos por Lésbia que a força explosiva
do vulcão amoroso em especial se manifesta, quer nos momentos de arroubamen-
to, quer nos de desilusão e de azedume. Há carmes que parecem compostos sob o
efeito da labareda dessa paixão e da lava que explode – um verdadeiro delírio de
amor pela amada. São cabal manifestação deste estado de espírito os dois poemas
dos beijos (Carmes 5 e 7)2. O primeiro, com várias imitações modernas (Ronsard,
Jonson, Crashaw)3, é uma composição cuidadosamente elaborada, a que não falta
uma subtil ironia: os três primeiros versos apresentam três ideias – uiuamos, amemus
e senes seueriores – que depois recebem expansão em três correspondentes secções
posteriores do poema: os versos 4-6 desenvolvem o tema do viver, e neles o pensa-
mento da morte pressiona a uma vida mais intensa, a ser mais sôfrego no amor, no
amemus, a que são dedicados os três versos seguintes (7-9); a terceira secção, a mais
longa (vv. 10-13) regressa ao tema dos senes seueriores e ao modo de confundir a sua
curiosidade. Traduzo o poema:

Vivamos, Lésbia minha, e amemos.


Os murmúrios dos anciãos, demasiado severos,
tenhamo-los na conta de um vintém apenas.
Morrem os raios do sol e podem nascer,
5 mas, para nós, quando se apaga a breve luz,
espera-nos o sono de uma noite eterna ...
Dá-me beijos mil, e depois cem,
depois outros mil, depois outra vez cem,
mais outros mil ainda, depois ainda cem.
10 Depois ... já completados muitos milhares,
misturemos tudo, para lhes perder a conta,
— ou nenhum malvado, possa sentir inveja,
ao saber que tantos foram os beijos trocados.

É bem conhecido este poema como o é também o Carme 7 que volta ao tema
dos beijos, como se fora um segundo fragmento de um contínuo dramático: à
2 
O Carme 48 fala também em número infindável de beijos, mas agora nos olhos de mel de Juvêncio: «beijar-tos-ei até
perfazer trezentos mil / e não me parece que jamais possa ser saciado» (usque ad milia basiem trecenta / nec numquam
uidear satur futurus).
3 
O de Jonson é uma fusão dos Carmes 5 e 7. Vide K. Quinn, Catullus, The Poems (London, Macmillan, 1973), p. 110,
ad Carm. 5.

102 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Odi et amo: amor e ódio em Catulo

pergunta-hipótese inicial de Lésbia sobre o número de beijos que satisfará Catulo


(vv. 1-2), este não se fica pelas coisas módicas e responde, sem rebuço, que não se
contenta senão com número ‘ilimitado’. Para expressar essa ideia, o poeta recorre a
símiles de tipo homérico, baseados nos grãos de areia do deserto e nas estrelas do
céu – dois símbolos tradicionais de infinidade (respectivamente, vv. 3-6 e 7-8): qual
«o número de grãos de areia» que cobrem o deserto da Líbia, qual «a multiplicidade
de astros na noite silenciosa», «tal é o número de beijos que deves dar / ao delirante
Catulo, para que lhe baste e se satisfaça» (vv. 3-12). São afinal os excessos de todos
os amantes que são capazes de todas as juras e das declarações mais arrojadas, como
proclamar — qual se fora a coisa mais natural do mundo — que será mais fácil o
Tejo, o Mondego ou qualquer rio inverter a sua marcha e passar a deslizar para a
nascente do que eles esquecer a pessoa amada. Estamos em presença do adynaton,
ou – para usar o termo latino mais usual – dos impossibilia. Este caso específico
de hipérbole, embora possa ocorrer em qualquer tipo de poesia, aparece sobretudo
como expressão hiperbólica do amor: assim se pretende realçar o paroxismo do
sentimento que habita o amante ou sublinhar os sofrimentos resultantes da indife-
rença da pessoa amada, considerando-se que será mais fácil ocorrerem impossíveis
na ordem do mundo do que afrouxar o amor que se sente. Pode ser desta fase, ou
melhor, insere-se neste espírito de arroubamento o poema 83, analisado mais adian-
te, em que Catulo troça do marido de Lésbia por este não perceber que é por amor
que ela o insulta.
É natural que, num arroubamento destes, o acúleo do ciúme compareça e acica-
te o poeta com alguma intensidade, quando imagina ou sabe que a amada se encon-
tra com outro. Observamos esse sentimento no Carme 51 imitado de Safo, poeta de
cerca de 600 a.C. Cito em primeiro lugar a ode de Safo (fr. 31 Lobel-Page) — não
menos famosa e conhecida — que retrata o avolumar do sentimento do ciúme e
seus efeitos físicos, aqui apresentada na versão poética de Eugénio de Andrade4:

Semelhante aos deuses me parece


o homem que diante de ti se senta
e, tão doce, a tua voz escuta,

ou amoroso riso – que tanto agita


meu coração de súbito, pois basta ver-te
para que nem atine com o que diga,

ou a língua se me torne inerte.


Um subtil fogo me arrepia a pele,
deixam de ver meus olhos, zunem meus ouvidos,

4 
Poemas e Fragmentos de Safo (Porto, 51995), p. 21.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 103


José Ribeiro Ferreira

o suor inunda-me o corpo frio,


e tremendo toda, mais verde que as ervas,
julgo que a morte não pode tardar.

……………..

O poema de Catulo segue de muito perto o de Safo, com excepção da ênfase


colocada no ‘homem’ que se senta junto da amada, através da repetição anafórica de
ille, inexistente na ode grega; descontada também a falta de correspondência entre
as quartas estrofes dos dois poemas. Transcrevo o poema:

Homem semelhante a um deus me parece,


homem que — se me é lícito — supera os deuses,
aquele que, sentado frente a ti, continuamente
te contempla e ouve

o teu doce riso, o que — pobre de mim! —


me arrebata todos os sentidos; pois apenas
te olho, Lésbia, nada mais me resta

**********

A língua entorpece, uma chama subtil


espalha-se nas veias, com zumbido interior
retinem os ouvidos, cobrem-se os olhos
de dupla noite.

O ócio, Catulo, é-te funesto;


o ócio transtorna e excita-te em demasia;
o ócio já antes de reis e de opulentas
cidades foi a perdição.

A última estrofe de Safo chegada até nós não tem tradução no poeta latino e
a quarta e última de Catulo parece ser acrescento seu, e nela o Veronês introduz o
conceito do otium, eivado da carga depreciativa que os Romanos lhe davam. E os
malefícios do ócio são realçados por tríplice anáfora que caminha do particular para
o universal5. É certo que a ode de Safo não se encontra completa, a avaliar por al-
gumas palavras que iniciariam a nova estrofe que começaria por afirmar que «tudo
era de ousar». Tudo parece indicar, no entanto, que a estrofe final de Catulo sobre
a ociosidade e suas consequências negativas é um acrescento seu. A controvérsia

5 
Vide E. Ftaenkel, Horace (Oxford, 1957), p. 213.

104 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Odi et amo: amor e ódio em Catulo

sobre o assunto é longa e não oferece certezas. Essa nova estrofe de Catulo sobre o
ócio, tanto pode ser fruto de junção de parte de um poema independente com o
mesmo metro, devida a editor pouco escrupuloso; como tratar-se de auto-censura
ou de acrescento posterior do próprio poeta, ao preparar a composição para publi-
cação; ou, na opinião de T. Edwards, os versos são inovação de Catulo e traduzem
a colisão entre o temperamento e o dever6. A complexidade e incerteza da matéria
levaram E. Fraenkel a confessar que já mudara várias vezes de opinião e que tal
facto o predispôs a abster-se7.
Com uma mulher como Lésbia, o homem ciumento tem a vida ainda mais com-
plicada, porque ela não era pessoa que se possa dizer de um só amor ou de escassas
experiências. É uma mulher vivida, que troca com facilidade de afeições e de leito.
E Catulo naturalmente sofre, ao saber que ela se delicia nos braços de outro. Então
critica-a, torna-se a cada passo contundente. Assim acontece no Carme 11 que,
pertencente ao género da renuntiatio amoris, marca o fim da relação com a amada
e apresenta significativas correspondências com o 51 – a mesma estrutura métrica,
estrofes sáficas, uso da palavra rara identidem nos dois (11. 19 e 51. 3)8. Pode por
isso causar estranheza a sequência por que aparecem nos Carmes. Acidente ou pla-
nificação do poeta ou editor para transmitir a ideia de fragmentos colhidos ao acaso
num contínuo dramático? A composição, depois de exortação a Fúrio e a Aurélio (v.
1) e de várias referências geográficas longínquas (oriente afastado, Gália e Britânia),
até onde esses dois amigos não deixariam de o acompanhar sem desfalecimento (vv.
2-14), Catulo pede-lhes que levem a Lésbia a sua mensagem de rompimento — pa-
lavras azedas, nas quais a considera culpada de o seu amor ter morrido e a acusa de
hipocrisia, de ter muitos amantes e de não amar nenhum (vv. 15-24):

Ide anunciar à minha amada estes parcos dizeres


em nada agradáveis:
Que viva e seja feliz com os seus amantes devassos,
uns trezentos a quem ela abraça ao mesmo tempo.
Nenhum ama de verdade, mas de todos, amiúde,
viola as ilhargas.
Não olhe ela, como dantes, para o meu amor,
que esse, por culpa sua, morreu como a flor
que na borda extrema do prado, ao passar,
a charrua tocou.

A imagem da morte da flor na borda do prado pisada ou cortada pelo arado,


6 
«Greek into Latin: A note on Catullus and Sappho», Latomus 48 (1989) 590-600.
7 
Horace (Oxford, 1957), pp. 211-212 nota 4. Para mais pormenores sobre as hipóteses avançadas vide C.J. Fordyce, Ca-
tullus. A Commentary (Oxford, 1961), pp. 218-219; K. Quinn, Catullus. Na Interpretation (London, 1972), pp. 56-60.
8 
O poema 11, pelos versos 10-12, que se referem às campanhas de César nas Gálias, deve ter sido composto depois de
55 a.C, talvez no inverno de 55/54.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 105


José Ribeiro Ferreira

que o poeta retoma e desenvolve no Carme 62. 39-44, em símile à maneira homé-
rica, foi naturalmente colhida na Ilíada 8. 306-308 e em Safo fr. 105c Lobel-Page.
Virgílio utilizá-la-á também na Eneida 9. 435-436.
O retrato de Lésbia não sai nada favorecido dos citados versos do Carme 11;
muito pelo contrário. Afinal aparece caracterizada como uma mulher da vida que
se entrega a autênticas orgias com os seus muitos amantes devassos, uns trezentos
que abraça ao mesmo tempo (cum suis …moechis, / quos simul complexa tenet tre-
centos) e a quem esfrega as ilhargas (ilia rumpens). Não é, em nada, mais benéfica a
visão do Carme 58, no qual o poeta contrasta a felicidade passada (vv. 1-3) com a
degradação actual de Lésbia (vv. 4-5), passando da evocação amorosa à quase obs-
cenidade. As cores negras carregam-se sobretudo nos dois versos finais: acusa-a de
«nas encruzilhadas e nas vielas» (in quadriuiis et angiportis) descascar os Romanos,
com a forma verbal glubit a adquirir talvez conotações sensuais. E com tudo isto
estabelece vivo contraste a irónica grandiloquência da expressão magnanimi Remi
nepotes que conclui o poema:

Célio, a nossa Lésbia, essa Lésbia,


a Lésbia, única mulher que Catulo tanto
amou, mais do que a si próprio e a todos os seus,
agora, nas encruzilhadas e nas vielas,
descasca os descendentes do magnânimo Remo.

A composição contrapõe o amor de Catulo por Lésbia, a única mulher que


amou, à atitude dela que se vai entregando a vários nas ruas de Roma. O poema
pode reduzir-se a uma afirmação contundente como esta: «Célio, a nossa Lésbia é
uma vulgar e comum prostituta». É elucidativa a repetição, nos dois primeiros ver-
sos, do nome de Lésbia e do enfático illa em posição quiástica, espécie de doloroso
lamento repetido. No fundo, trata-se de um poema eivado de desilusão que é ao
mesmo tempo a confissão de que o amor ainda se não extinguira no coração do
poeta, apesar de o tempo verbal ser o passado (v. 3: amauit).
A confissão é mais explícita no Carme 92 que Aulo Gélio considerava uenustissi-
mum9. A composição deve ser analisada em ligação com o Carme 83, pois apresenta
uma justificação para a premissa, aí subjacente — a ideia de que desdenhar de outra
pessoa é sinal de que o amor existe ou ainda persiste. No Carme 83, o poeta zomba
do marido de Lésbia10, por não perceber o verdadeiro sentido das maldições que a
mulher, na sua presença, profere contra Catulo:

Lésbia, na presença do marido, lança contra mim inúmeras maldições


que são para esse cretino motivo da maior alegria.
9 
Noctes Acticae 7. 16.2.
O Carme 83 talvez se possa datar de escasso tempo antes de 59 a.C., se é possível identificar Lésbia com Clódia, já que
10 

aquela data é o ano da morte de Metelo Céler, seu marido.

106 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Odi et amo: amor e ódio em Catulo

Burro, nada percebes. Se, esquecida de mim, ela se calasse,


o seu coração estaria puro. Agora que gane e me injuria,
não só me tem na mente, mas, coisa que se torna muito mais grave,
está irritada. Ou seja, arde de amor e fala.

A indisposição ou mesmo irritação de Lésbia contra Catulo, na presença do ma-


rido, será apenas um arrufo de amantes ou tratar-se-á já do degladiar entre os dois,
antes do desenlace final? Não parece muito admissível a segunda hipótese, dado que
Catulo parece deliciar-se com as maldições de Lésbia e não se exime a censurar a
falta de perspicácia do marido que, sem perceber o verdadeiro alcance das palavras e
do sentimento da mulher, manifesta alegria com os ataques que ela dirige ao poeta.
Aliás a noção de que os doestos de Lésbia contra Catulo são sinal do seu amor por
ele volta a estar presente no Carme 92, onde, ao verificar que Lésbia passa o tempo
a falar mal dele, o poeta exclama: «Eu morra, se Lésbia me não ama». Como prova
e justificação, apresenta a sua própria experiência pessoal. Cito a tradução:

Lésbia passa a vida a falar mal de mim e não se cala nunca


a meu respeito. Eu morra, se Lésbia me não ama.
Qual a prova? Comigo sucede o mesmo: cubro-a de maldições
a toda a hora, e eu morra, se não a amo.

Variação do 83 e inspirado pelo mesmo estado de espírito, os dois poemas têm


subjacente a mesma experiência psicológica, que é traduzida pelo provérbio latino
Ex abundantia cordis os loquitur. O Carme 92 não manifesta, no entanto, a mesma
exaltação do seu antecessor. Pelo contrário, nele se imiscui a dúvida — evidente na
pergunta retórica Quo signo? — de que a maledicência de Lésbia é, de facto, sinal do
seu amor por Catulo ou resulta apenas de ilusão de enamorado que transfere para a
amada as suas próprias experiências espirituais.
Em determinado momento Lésbia volta para Catulo, quando ele já não o espe-
rava. Então o poeta manifesta a sua satisfação e alegria no Carme 107, um poema de
reconciliação, cujo texto infelizmente se encontra muito danificado na parte final.
A composição parte de uma afirmação geral (vv. 1-2), aplicada depois ao caso parti-
cular de Catulo e seus sentimentos (vv. 3-4) — com a repetição das palavras gratum
(vv. 2 e 3) e cupido (vv. 1, 4 e 5) a enfatizar que esse era o seu desejo e que aceita,
agradecido, a dádiva da fortuna —, para terminar numa exclamação de alegria que
é uma expansão lírica da secção anterior (vv.5-8). Cito os versos 4-9:

Tu retornas, Lésbia, para mim que te desejava.


Retornas para quem, já sem esperança, te desejava. Tu voltas, por ti,
para mim. Ó dia digno da marca mais brilhante!
Quem vive mais feliz do que eu? Que coisa mais
desejável do que esta vida pode alguém anunciar?

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 107


José Ribeiro Ferreira

Perante a promessa da amada (Carme 109), de que há-de ser eterno o amor que
lhe dedica (amorem / hunc nostrum inter nos perpetuumque fore), e apesar da insis-
tência num amor recíproco, sublinhado pela aposição de nostrum e inter nos, o poeta
recebe essa promessa com dúvidas, reservas, senão mesmo com amarga ironia. Por
isso pede aos deuses que façam com que a amada seja capaz de manter a palavra (fa-
cite ut uere promittere possit) e o diga com sinceridade e do fundo do coração. Lésbia,
todavia, em questão de amores não era, evidentemente, mulher de uma só palavra, e
logo esqueceu a promessa e a jura. Nem os deuses poderosos conseguiram o milagre
de que ela a mantivesse. O poema 109 é o último da colectânea pertencente ao ciclo
de Lésbia. Se foi Catulo a realizar a compilação dos Carmes para publicação, teria
optado por esta ordenação, porque desse modo nem deixava a impressão final de
alegria, nem de desespero.
A desilusão com a amada e recíproca confissão de amor é ainda mais evidente
no Carme 76, em que o poeta, em tom reflexivo e melancólico, declara ter perdido
de todo a esperança de que Lésbia mude o seu comportamento: assim, embora con-
sidere ser difícil largar, de repente, um longo amor (v. 13: difficile est longum subito
deponere amorem), é necessário que o faça e mantenha um coração firme (v. 11),
para não continuar um desgraçado (v. 12). E na súplica aos deuses, Catulo já não
pede que a amada corresponda ao seu amor ou que seja pudica; apenas manifesta o
desejo de recuperar a saúde (v. 25: ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum).
Ressabe a melancolia este poema de renúncia ao amor.
O mesmo acontece no Carme 8, um novo poema típico de renúncia, de re-
nuntiatio amoris, embora com um tom significativamente diverso, pela elegância
de forma, pelos laivos de humor e de auto-ironia, pelo comedimento e controlo
nas ameaças. Catulo, mais uma vez, incita o coração a deixar de pensar na ama-
da, encorajando-o a suportar o desgosto e a sofrer resolutamente (vv. 1-2, 9-12 e
19); por outro lado, censura Lésbia e chama-lhe maldita, prevendo para ela triste
vida no futuro (vv. 14-18). A composição, um monólogo percorrido por profunda
e contida emoção, apresenta a seguinte sequência de conteúdo: enuncia a situação
de conflito e ruptura com Lésbia (vv. 1-2), evoca a felicidade do amor passado (vv.
3-8), anuncia a renúncia amorosa do presente (vv. 9-13), prevê o triste futuro da
amada (vv. 14-18) e termina por um verso (v. 19) de incitamento a si próprio para
ser forte no seu propósito e não ceder. Na opinião de Fraenkel, o poema evidencia
uma completa ausência de amor-próprio e descreve a mais gritante humilhação,
com pormenorizada precisão. E o poeta aceita a situação como inevitável, como se
fora um fruto da natureza. Cito os versos 1-2 e 10-11:

Pobre Catulo, põe termo ao teu delírio


e o que vês desaparecer considera-o perdido.
..............................................................
Não busques quem te foge nem vivas amargurado,

108 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Odi et amo: amor e ódio em Catulo

mas suporta de coração resoluto e sofre.


O poema, como nota K. Quinn, dá forma dramática ao conflito interior de Ca-
tulo entre a rejeição intelectual de uma situação impossível e a relutância emocional
em enfrentar o inevitável desenlace11. É com certo prazer e mágoa ao mesmo tempo
que revela, no verso 5, não ter havido mulher tão amada quanto Lésbia o foi por
ele (amata nobis quantum amabitur nulla), verso que se tornou um topos na poesia
amorosa. Esta ideia volta a ser reafirmada no Carme 87, um poema curto mas car-
regado de emoção que passo a traduzir:

Nenhuma mulher pode dizer que foi tão amada,


de modo tão sincero, quanto por mim o foi a minha Lésbia.
Nenhuma lealdade houve tão grande em pacto algum
quanta a que ao teu amor foi dedicada por mim.

O poema insiste na lealdade (fides) no pacto (foedus) entre amantes, como tam-
bém acontece no Carme 109 – uma transposição para a esfera amorosa de hábitos
correntes nas relações humanas, tanto na administração, como nos negócios ou na
política. Constituído por dois dísticos apenas, a repetição anafórica de nulla no
início de cada um deles e de mea est no final, enfatiza a afirmação de que nenhuma
mulher foi tão amada e nenhuma lealdade foi tão lídima como a sua.
Mas os incentivos que a si próprio dirige, para que seja firme e não ceda, não
surtem efeito. E suplica, revolta-se, humilha-se. Catulo não consegue esquecer Lés-
bia. Assim, no Carme 75 confessa que muito se arruinou, devido à sua fidelidade, e
que muito desceu a sua alma, por culpa da amada. Agora já não é possível querer-
lhe bem nem deixar de a amar:

A tal desceu a minha alma por tua culpa, Lésbia minha,


e tanto se arruinou com a sua própria fidelidade,
que já não é possível querer-te bem, sejas mesmo a virtude em pessoa,
nem deixar de te amar, ainda que tudo faças para isso.

Com um paralelismo sintáctico e colocação em quiasmo de tua... culpa... offi-


cio... suo, que põe em relevo a culpa de Lésbia em contraste com a fidelidade de Ca-
tulo, o primeiro dístico da composição oferece uma formulação consentânea para a
distinção e antítese entre amare e uelle bene do segundo.
O poema 72, apesar dos seus diferentes cambiantes e pormenores, apresenta
uma confissão semelhante, com a mesma antítese, e sobressai pelo modo preciso
como formula um ideal perdido. O poeta acreditou em Lésbia que lhe jurava só
conhecer Catulo e o preferir a todos, mesmo a Júpiter. Por isso, lhe quis como um
pai quer aos filhos (dilexi tum te... pater ut gnatos diligit). No entanto, constante-

11 
Catullus, The Poems (London, 21973), pp. 114-115.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 109


José Ribeiro Ferreira

mente traído e preterido, no coração o ódio começa a rivalizar com o amor. Por
isso revela, desiludido, que agora a conhece e a considera muito mais vil e leviana;
que já não é capaz de lhe querer bem, embora a ame mais (vv. 5-8). Composto por
quatro dísticos elegíacos, o primeiro relembra as juras de Lésbia, o segundo refere
o amor intenso e terno de Catulo, para os dois últimos revelarem que a traição e as
infidelidades de Lésbia conduziram o poeta a «amar mais» (amare magis) e a «bem
querer menos» (bene uelle minus). Cito os dois últimos dísticos:

Agora, conheço-te. Por isso, embora em fogo mais intenso arda,


para mim, todavia, és muito mais vil e mais leviana.
Como isso pode ser — perguntarás? A quem ama tal traição
constrange a amar mais e a bem-querer menos.

E assim o poeta balanceia entre o amor e o ódio, como desesperadamente con-


fessa num curto epigrama de um dístico apenas (Carme 85), o mais conhecido de
todos os poemas de Catulo e o mais vezes imitado. Nele observa-se a total ausência
de substantivos e a existência de oito verbos, quatro em cada um dos versos, com
correspondência entre eles mas em ordem inversa: odi et amo, que abrem o hexâme-
tro, correspondem a sentio et excrucior que terminam o pentâmetro; faciam corres-
ponde a fieri e requiris a nescio. Por outro lado, odi et amo e excrucior que, respecti-
vamente, abrem a terminam o poema, equivalem-se do ponto de vista métrico e são
as palavras do poema com mais potencialidades emocionais; expressam três acções
verbais, as duas primeiras polarmente opostas e a última a traduzir uma consequên-
cia das duas primeiras. O poeta admite que chegou a uma encruzilhada em que a
análise lógica não consegue avançar nem ter esperança, como nota K. Quinn12. É o
reconhecimento explícito — sem ser capaz de o explicar — de que odeia e ama e de
que esse contraditório sentimento é, para ele, um martírio: excrucior. Termino com
a tradução deste bem conhecido poema:

Odeio e amo. Como tal possa ser, talvez perguntes.


Não sei. Sinto-o e aí reside a minha cruz.

Bibliografia

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Entretiens Hardt, vol. II (Genève, 1953), pp. 1-39.

Deroux, C., «Catulle et Cicéron ou les raisons d’ un silence», LEC 53 (1985)

12 
Catullus, The Poems (London, 21973), p. 421.

110 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Odi et amo: amor e ódio em Catulo

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Wiseman, T. P., Catullus and his world. A Reappraisal (Cambridge, 1985).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 111


Tragédia e “Desnudez Extrema”
na Fedra de Miguel de Unamuno

Isilda Leitão
ESHTE
isaleitao@hotmail.com

«[...] No te cuides en exceso del ropaje / de escultor, no de sastre es tu tarea,


/ no te olvides de que nunca más hermosa / que desnuda está la idea. (...)»
(Miguel de Unamuno, Credo Poético)

«un hombre en lucha consigo mismo, con su pueblo y contra su pueblo,


hombre hostil, hombre de guerra civil, tribuno sin partidarios,
hombre desterrado, salvaje, orador en el desierto, provocador
[...] paradógico, inconciliable, irreconciliable,
enemigo de la nada y a quien la nada atrae y devora,
desgarrado entre la vida e la muerte [...] invencible y sempre vencido [...].
No tiene ideas ... pero este perpetuo monólogo, en que todas las ideas del mundo
se mejen para hacerse problema personal, pasión viva [...].» 1

(Jean Cassou, 1926)

Introdução
A presente comunicação centra-se, no âmbito da vastíssima e diversificada obra
de Miguel de Unamuno, na atenção que o escritor deu ao recorrente tema de Fe-
dra.
A comunicação organiza-se em dois grandes blocos temáticos.
No primeiro, desenvolvem-se algumas reflexões sobre a importância que o autor
deu ao teatro. Dentro da produção textual unamuniana o teatro é, sem dúvida,
uma das formas de linguagem em que Unamuno deixa transparecer a sua concep-
ção da existência como agon, neste caso em Fedra.
No segundo bloco temático, partindo da antítese Afrodite-Ártemis, procuramos
surpreender o carácter agónico e paradoxal do imaginário unamuniano, imaginário
que sem fugir ao tempo e à contradição, ao racional e ao irracional, à claridade e
às trevas, aos cumes e aos abismos, descobre e constrói o elemento infirmitas que
habita a profundidade do próprio «hombre de carne y hueso».

1. O agonismo literário e social de Unamuno


Para além do ensaio, da novela, da lírica... é igualmente extensa a produção
dramática unamuniana, embora muita dessa produção só tenha sido impressa após

1 
Cf. Cassou apud Egido, 1986: 20.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 113


Isilda Leitão

a morte de Miguel de Unamuno (1864 - 1936)2. Efectivamente, o nosso autor de-


fendia que o teatro era para ser ouvido e visto, não para ser lido3. Assim, pouca da
sua produção dramática foi editada em vida do escritor: apenas as peças que foram
representadas.
É este o caso de Fedra, que aparece pela primeira vez referida em carta de 1910,
sendo concluída, segundo afirmação do próprio escritor, em 19114. A tragédia é,
assim, contemporânea da publicação do Rosario de Sonetos Líricos (1911), «más bien
trágicos» que líricos, como afirmaria Unamuno. Por esta altura, o poeta dramaturgo
lia «bastante - [...] clásicos griegos »5, hábito que parece não ter abandonado, ao longo
da sua vida: «leo a los clásicos. Ahora a Eurípides. Y he concibido el propósito de hacer
una Fedra moderna, de hoy [...] es un asunto inegotable. Sobre todo, la terrible nemésis
del amor que busca quien no le busca a él. El que no le hace, el que no hace el amor, le
padece. [...]»6.
Traduzida e representada em Itália e apesar de escrita em 1911, a tragédia só é
apresentada pela primeira vez em 1918, no Ateneo de Madrid. Conhece um período
de interregno entre a representação de 1924 e a de 1931, dado o desterro político
de Unamuno7 em Fuerteventura, Paris e Handaia. Em 1931, ano da IIª República
espanhola, a Fedra sobe à cena em homenagem a Unamuno, o Excitador Hispaniae
(E. Curtius), que havia enfrentado os ditadores Primo de Rivera e Millan Astray
(«candidato a Mussolini español», no dizer de Dom Miguel). No entanto, só nos
anos cinquenta (1957) é que Fedra volta à cena, em Madrid.
Em relação à obra dramática de Unamuno, parece que dela se pode pensar o
mesmo, no que toca à ignorância e incompreensão a que foi votada no seu tempo,
do que grande parte da obra de Eurípides. Aproxima-os, igualmente, o exílio, real
ou metafórico... O siracusano morre longe da terra natal e da sua Atenas (Macedó-
nia, 406 A.C.). O «vizcaíno, paciente y terco»8, sediado pelas forças franquistas em
Salamanca, virá a morrer aí, longe de parentes e amigos… A Pátria/Mãe, que tanto
haviam amado, parece não ter correspondido, de forma satisfatória, aos anseios dos
seus filhos.
No que respeita à abordagem de problemas sociais, originados por preconceitos
e pela hipocrisia, o teatro unamuniano lembra o teatro de Ibsen (1828-1906), a
quem Unamuno votava grande admiração9. Recordemos o filósofo Rafael Argullol
2 
Ao todo, segundo Garcia Blanco, treze obras dramáticas concluídas (a primeira datada de 1898, a última de 1933, com
apenas sete publicadas em vida do autor) e mais de catorze em projecto (Cf. Garcia Blanco, 1958: “Prologo”, T. XII).
3 
Como afirmava o reitor salmantino a D. Emilio de Caceres, em 1910: «Me resisto a imprimir obras de teatro, escritas
para ser oídas e vistas, no para ser leídas» (Cf. Unamuno, 1991a: 270, T. I).
4 
Cf. Unamuno, apud Garcia Blanco, idem: 86-88.
5 
Cf. Unamuno, carta (1910) a Ernesto A. Guzmán, apud Garcia Blanco, idem: 101.
6 
Cf. Unamuno, carta (1910) a Francisco Antón, apud Garcia Blanco, idem: 87.
7 
Cf. Unamuno havia afirmado, quando partiu para o exílio: «Volveré no con mi libertad, que nada vale, sino con la vues-
tra» (Cf. Unamuno, apud Leitão, 2004).
8 
Cf. Unamuno, carta (1911) a Fernando Díaz de Mendonza, apud Garcia Blanco, idem: 87.
9 
. Num discurso em que, como habitualmente, o alvo é a sociedade espanhola, a actividade cultural ou o seu próprio yo,

114 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno

que, a propósito do teatro de Shaskepeare e das suas semelhanças com a condição


trágica do homem moderno, afirma:

“una diferencia fundamental entre el pensamiento trágico del Romanticismo y


del Renacimiento: los héroes de éste se mueven en una pasional inserción en las
vicisitudes de su época: los de aquél extienden su solitaria rebeldía exilandose del
proprio siglo que los ha visto nacer.” 10

Sobre a Fedra e a sua modernidade, sobre a lucha contra um público com pre-
conceitos, sobre as dificuldades em estreá-la ou dar-lhe continuidade, dado que
pressentia que não podia «luchar con la gente del teatro»11, sobre a pobreza que en-
contrava no teatro contemporâneo, Unamuno afirmava:

“He querido hacer un drama de pasión, y de pasión rugiente [...] un drama


desnudo. [...] Una pasión en carne viva. La cosa es fuerte y recia. Primero me
dijeron los cómicos que era muy crudo. Y le aseguro que es ello muy casto. Lo que
hay es que esta gente se asusta del desnudo y no del desvestido; representa verdade-
ras indecencias pero no sabe dar solemnidade trágica a la pasión. Si yo fuese más
joven y estuviese en outra posición social, era capaz de hacer, vestido de mujer,
el papel de Fedra, ante un auditorio de monjas, seguro de no escandalizarlas y
sí conmoverlas. [...] Y yo lo que más odio en el teatro es la pantomina. [que] es
la muerte del teatro como literatura. [...] Pero los cómicos, como no saben decir,
quieren lucirse con pantomimas [...] Mas, por mi parte, les he hecho saber que
no escribo a la medida de sus gustos o sus habilidades...Vea usted la batalla en
que me he metido.” 12

Quando Fedra é estreada, em sessão privada, no Ateneo de Madrid, Unamuno


terá necessidade de expor a sua teoria sobre o drama a um público que ficaria des-
concertado face ao argumento e à apresentação cénica da peça. Teoria no sentido
das suas concepções sobre a arte dramática, concepções já expostas em cartas ou
artigos de imprensa, em analogia com o que costumava fazer, quer com a poesia,
quer com a novela...
No «Exordio» de Fedra, composto para ser apresentado no dia da estreia, com
a sua habitual sinceridade, Unamuno apresenta ao público as razões «externas e in-
ternas» à arte, que impediam que as suas obras fossem representadas nos teatros de
Madrid. Dom Miguel expõe a sua incapacidade para lidar com os procedimentos
típicos aos autores da época, bem como a sua não subserviência aos salões e tertúlias
afirma Unamuno, a propósito do exilado norueguês em Roma...: «Ibsen, el solitario, el fuerte [...] forjó su espírito en el duro
yunque de la adversidad [...] solo y fuera de esa llamada republica de las letras [...].» (Cf Unamuno, 1958: 431-432, T. III)
10 
Cf. Argullol, 1990: 247.
11 
Cf. Unamuno, carta (1920) a Gilberto Beccari, apud Garcia Blanco, idem:97.
12 
Cf. Unamuno, carta (1913) a Ernesto E. Guzmán, apud Garcia Blanco, idem: 91-92.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 115


Isilda Leitão

da moda. Refere ainda a incapacidade dos actores desempenharem o seu papel de


acordo com o texto apresentado, que tinha de ser normalmente adaptado à medi-
da destes 13. Por outro lado, afirma que «hay que educar al público para que guste
del desnudo trágico»14, explicitando o que considera desnudo: «Llamo desnudo en la
tragedia o desnudez trágica al efecto que se obtiene presentando la tragedia en toda su
augusta y solemne majestad.»15
Para além da crítica à dramaturgia e à cenografia da época, está patente, as-
sim, uma intenção claramente apelativa, no sentido que a arte dramática volte à
sua «primitiva severidade de desnudez clásica y dejando para aquel otro todo lo que es
ornamentación escénica»16.
Como é que o nosso autor consegue, então, essa «desnudez»? Parece que a «pro-
fesional familiaridad con los trágicos» do autor de Del Sentimiento Trágico de la Vida
(1912) o leva, através da austeridade dos elementos (à maneira de Sófocles), a criar
uma maior densidade trágica. Fedra aparece enquadrada por um cenário que su-
prime quer episódios de «pura diversión», quer personagens, cenários, mobiliários
ou vestes de mero «adorno» (do tipo daqueles em que as espectadoras se distraem
«mirando como va vestida la actriz que la representa»)17, quer diálogos prolixos e in-
flamados: «el diálogo mismo tende a ser lo menos oratorio posible»18.
Com a sua habitual tendência a tornar híbridos os géneros literários, acrescenta
ainda Unamuno:

«Es poesía y no oratoria dramática lo que he pretendido hacer. Y esto [...] es


tender al teatro poético y no ensartar rimas y más rimas [...] teatro poético
será el que cree caracteres, ponga en pie almas agitadas por las pasiones eter-
nas y no las meta al alma, purificándonosla, sin necesidad de ayuda, sino
la precisa, de las artes auxiliares. Hace tiempo que a nuestra dramaturgia

13 
Vale a pena recordar o início desse Exordio , em que Unamuno afirma: «Esta mi tragedia Fedra no me ha sido posible
que me la accepten para representarla en un teatro de Madrid. La misma suerte han ocorrido a otros dramas que tengo com-
posto y presentados. Ha habido por ello razones externas al arte y otras internas a él. Las externas son que no formo parte del
cotarro de lo que se llama por antonomasia autores, ni hago nada por entrar en él mediante los procedimientos ya clásicos,
y que tampoco puedo ni debo reducir a perder el tiempo en saloncillos y otros lugares análogos solicitando, siquiera con una
silenciosa asiduidad a tales tertulias teatrales, un turno para que den al público a conocer mis obras dramáticas. Agréguese
que ni sé ni quiero saber escribir papeles, y menos cortados a la medida de tal actor o actriz desconociendo, como desconozco,
las respectivas aptitudes de los hoy en boga, desconocimiento que no me han de perdonar. Y como procuro, en vez de cortar
papeles, crear personajes - o más bien, personas, caracteres - tampoco puedo ni debo estar dispuesto a modificar y estropear a
éstos para acomodarlos, como a un potro, a las condiciones de quien los haya de representar. Son éstos, los actores y actrices,
los que en buena ley de arte deben doblegarse al carácter dramático. Hay un perenne conflito entre el arte dramático y el arte
teatral, entre la literatura y la escénica, y de esse conflito resulta que se impone al público dramas literariamente detestables,
estragando su gusto, y otras veces se ahogan excelentes dramas. [...]Lo que leído produce efecto dramático, cómico o trágico, ha
de producirlo si se sabe representarlo.» (Cf. Unamuno, 1958: 400-401, T. XII).
14 
Cf. Unamuno, idem, ibidem.
15 
Cf. Unamuno, idem, ibidem.
16 
Cf. Unamuno, idem, ibidem.
17 
Cf. Unamuno, idem: 402.
18 
Cf. Unamuno, idem: 402.

116 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno

española le falta pasión, [...] le falta tragédia, le falta drama. Le falta inten-
sidad 19

Deste modo, embora no rasto da tradição de Fedra, que passa por Eurípides,
Séneca, Racine ou D`Annunzio20, a Fedra de Unamuno distingue-se das de Raci-
ne ou de d`Annunzio pelo ausência de decoração e de retórica, que estes últimos
apresentam. Sobre a cenografia do trágico, lembramos Thierry Maulnier, quando
afirma: «Un mundo trágico es un mundo del que ha sido expulsado todo lo accidental;
la interpretación trágica de la vida lleva consigo toda una estética de la simplicidad».21
Seria pela «economia», pela «intensidad», pela «desnudez» total, numa grande an-
tinomia formal ao teatro seu contemporâneo, que se delineariam esses complexos
caminhos da contradição:

«el desarrollo de la acción, resultado de choques de pasiones, va por la línea


más corta posible [...] He querido presentaros unas almas humanas arrastra-
das por el torbellino del amor trágico»22

Com a sua Fedra, o «profesor de lengua y literatura griegas», «sin intención didác-
tica alguna», pretendia fazer, assim, um «ensayo de renovación y modernización de los
viejos temas»23, tentado pelo «amor irresistible de la madrasta por su hijastro»24.
Recordemos então o mito de Fedra, a brilhante (phaidra). Conta o mito que
Fedra, filha do rei e da rainha de Creta, foi dada em casamento ao rei de Atenas,
Teseu, quando este ainda estava casado com uma bárbara, Antiope ou Hipólita,
rainha das Amazonas, de cujo matrimónio tivera um filho, Hipólito.
Hipólito herda da mãe a paixão pela caça e pela natureza, dedicando especial
veneração a Ártemis, a deusa virgem, que se tornará sua protectora, desprezando os
favores de Afrodite, por considerá-la «la divinidad más malvada», enquanto Árte-
mis, irmã de Febo, seria «la más importante entre las divinidades. Por el verde bosque,
acompañando sin cesar la doncella con sus rápidos perros elimina las fieras de la tierra.»
(10-20), como descreve Eurípides.25
Descendente de Apolo, Fedra (tal como as mulheres da sua família, entre elas,
a sua irmã Ariadna) é perseguida pelo ódio de Afrodite, desde o momento em que
Apolo denunciou, junto dos Deuses do Olimpo, os amores entre a deusa e Marte.
Mulher de idade madura, de alto nível social, com dois filhos, «Fedra resultó

19 
Cf. Unamuno, idem: 404.
20 
20 O tema chama igualmente a atenção, entre outros, de Pausânias, Plutarco ou Diodoro Sículo.
21 
21 Cf. Maulnier, apud Argullol, idem: 246.
22 
22 Cf. Unamuno, idem: 402- 404.
23 
23 Cf. Unamuno, 1991a: 305, T. I.
24 
24 Cf. Unamuno, idem, ibidem.
25 
25 Cf. Eurípides 2000 : 264.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 117


Isilda Leitão

presa en su corazón de terrible amor» (20-30)26, pelo seu jovem enteado, graças aos
desígnios de Afrodite, pois a deusa queria vingar-se de Hipólito «por los yerros»
(20-30)27 que havia cometido contra ela. Afrodite protegia os que veneravam o seu
«poder» e abatia todos os que o desafiavam. Fedra torna-se, deste modo, vítima da
vingança de Afrodite e do conflito entre as duas deusas.
Ártemis e Afrodite terão, na versão de Eurípides (Hipólito Coroado, 428 A.C.),
na do latino Séneca (Phaedra, entre 49 a 62 D.C.), ou na de Racine (Phédre, 1677),
um maior ou menor protagonismo, dependendo do enfoque ser posto mais no
conflito entre as divindades iradas ou no drama de amor à escala humana. Estas
versões deixam igualmente transparecer uma filosofia mais sofista (Eurípides), es-
tóica (Séneca), ou jansenista (Racine) do homem e da divindade, que pretendiam
servir de ponto de reflexão para a época. Eurípides será considerado um precursor
do Helenismo, dadas as profundas contradições e antinomias que presidem à sua
obra poética.
Quando, em 1912, Unamuno descreve a Fedra ao escritor Pérez Galdós, seu
«querido amigo y maestro»28, fá-lo da seguinte forma:

«el argumento mismo de las de Eurípides y de Racine, sólo que moderniza-


do, cristianizado y puesto en la época actual. Es una tragedia en que he ten-
dido a la máxima sencillez; el número de personajes, tres principales (Fedra,
su marido e Hipólito, hijo de este y entenado de aquella) y tres accesorios: la
misma decoración - que puede ser de cualquer casa - en tres actos [...]»

Apesar da tragédia ir beber a Eurípides e Racine, todo «el desarrollo es distinto»29.


A tragédia seria, deste modo, composta por:«Un mínimo de personajes [...] la misma
decoración para los tres actos (la mejor una sábana por fondo y tres sillas) trajes, los de
la calle, nada de episodios ni digresiones y lo menos posible retórico. [...]»30
A Fedra de Unamuno tem, assim, seis personagens. As três secundárias são
Eustáquia, a ama («nodriza») de Fedra; Marcelo, o médico amigo de Pedro, que
se define a ele próprio como «incompatible con la Esfinge» (2, IX) e que considera
Hipólito «el único sano de la casa, gracias al campo.» (2, IX) - Fedra não gosta do
médico, porque lhe adivinha o «secreto» (3, I): «su mirada penetrábame hasta lo más
hondo; era mi demonio de la guardia, mi acusador»(3, I) -; por último, Rosa, a criada,
já tinha «notado que la señorita se está volviendo otra» (2, XI). As três personagens
secundárias funcionam todas um pouco à maneira de coro, omisso nesta peça.
Das personagens principais, só Fedra e Hipólito conservam os nomes míticos,

26 
26 Cf. Eurípides, idem: 264.
27 
27 Cf. Eurípides, idem: 264.
28 
28 Cf. Unamuno, idem, ibidem.
29 
29 Cf. Unamuno, carta (1911) a Fernando Díaz de Mendonza, apud Garcia Blanco, idem: 87.
30 
30 Cf. Unamuno, carta (1913) a Ernesto E. Guzmán, apud Garcia Blanco, idem: 91-92.

118 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno

sendo que o marido de Fedra, Teseu, na obra de Unamuno aparece com o nome de
Pedro. Fedra é uma mulher da burguesia, orfã, «neurocardíaca» como a mãe, edu-
cada num convento pelas «madres» (1, I), que se casa «vencida» pela «generosidad»
de Pedro (1, I). Não tem filhos e o enteado é, em palavras suas, «casi de mi edad
misma... podría ser mi hermano, mi marido.» (2, IV). Hipólito é um caçador, amante
da vida do campo. Quando nasceu, «costó la vida a su madre» (2, VI) e, embora
duvide que possa vir a enamorar-se, a única hipótese que apresenta para casamento
é «Diana» (1, IV).
Não aprofundaremos todas as semelhanças ou diferenças que se podem encon-
trar nas versões de Eurípides e de Racine, em relação à obra de Unamuno. Contudo,
gostaríamos de referir um dos aspectos centrais, nomeadamente no que diz respeito
ao tema amor/mors ou, nas palavras de Racine: “Et Phèdre au labyrinthe avec vous
descendue / Se serait avec vous retrouvée ou perdue.”(II, V).
Tal como no Hipólito Velado, a primeira versão perdida de Eurípides, (seguida
posteriormente pelo latino Séneca), ou tal como na Phédre de Racine (2, V)31, Una-
muno põe Fedra a declarar o seu amor a Hipólito (1, IV), ao contrário da segunda
versão do trágico grego, Hipólito Coroado, em que a ama denuncia o amor de Fedra
a Hipólito (570-670), talvez para não escandalizar o público da época de Péricles.
No que respeita à representação teatral da morte da personagem feminina, im-
porta dizer que as três se suicidam. Mas enquanto no Hipólito Coroado Fedra se
enforca, fora de cena (800-810), a Fedra de Racine toma uma poção venenosa (de
acordo com as bienséances, não era digna a morte por enforcamento...) e morre
rodeada por Teseu e por outras personagens (5, VII). A Fedra de Unamuno, suici-
dando-se com excesso de comprimidos, agoniza e morre fora de cena (todo o Acto
III, excepto a Cena I), pois Dom Miguel não gostava de «pantomina». Para o nosso
autor: «Las muertes en escena, y todo lo patológico - ataques de nervios, de locura - me
resulta insuportable.»32
Unamuno escreverá uma Fedra centrando-se na problemática amorosa, a do
«hombre de carne y hueso», levantando desta forma a questão da própria condição
feminina. Se a condição da mulher, no mundo antigo, parece não incutir, de uma
maneira geral, o respeito que o cristianismo e o culto mariano lhe imporiam33, uma
das perguntas que Unamuno parece colocar é como reagiria o tempo católico e
burguês do início do século XX a este drama. Pergunta que continua, quanto a nós,
pertinente no século XXI.34
31 
31 Uma dupla transgressão de Racine/Fedra, se olharmos para as biénseances do século XVII, no que respeita à inicia-
tiva da declaração de amor ser feita por uma mulher e desse amor ser ilícito... Em 1677, a obra é impressa com o título
Phèdre et Hippolite, mas nas obras completas de 1687 aparece já com o título que hoje conhecemos.
32 
32 Como afirma Unamuno, em carta (1912) a Ernesto A. Guzmán (Cf. Unamuno, apud Garcia Blanco, idem: 92)
33 O que não invalidaria, por exemplo, que Eurípides, excluindo a Fedra ou a Medeia, tenha sido um dos primeiros
33 

que pintou com traços indeléveis a sua admiração pelas virtudes e dignidades da mulher , como recorda António
Freire, exemplificando com os perfis femininos de Ifigénia e Macária, Andrómaca e Alceste, Hécuba e Políxena (Cf.
Freire, 1985: 199).
34 
34 Embora com distintas abordagens à problemática dos conflitos matrimoniais, como são o caso de La Esfinge

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 119


Isilda Leitão

Mas abandonemos o agonismo da criação literária de Miguel de Unamuno,


agonismo que diz respeito à relação do Autor com os outros criadores/ escritores,
com as personagens/actores, com o público/sociedade, para nos dedicarmos à com-
ponente vital, ontológica do teatro unamuniano, a que se prende com as imortais
contradições35, com a «lucha», com o confronto das forças espirituais contraditórias,
inerentes ao próprio homem. Como diria o autor de Del Sentimiento Trágico de La
Vida: «Contradicción?! Ya lo creo!! La de mi corazón, que dice sí, y mi cabeza, que dice
no!»36

2. O paradoxal imaginário unamuniano


Não é esta afinal, a contradição que pungentemente atravessa a própria vida
de Fedra? Contradição que em termos arquetípicos, na tragédia de Eurípedes, se
expressa nas figuras de Afrodite e Ártemis.
Com efeito, Eurípides acentua eloquentemente este forte antagonismo, esta ten-
são trágica entre Afrodite e Ártemis, ao longo de toda a tragédia, tensão que no
entanto surge paradigmaticamente marcada no contraste entre a primeira fala de
Afrodite (com que começa a peça) e, já mesmo no seu final, a última fala de Árte-
mis.
Logo a abrir a peça, Afrodite afirma: «Soy diosa importante [...] y abato a cuantos
se enorgullecen contra mí [...] Hipólito [...] dice que soy la divindad más malvada[...]
mas [...] a Ártemis [...] la honra, considerándola la más importante entre las divinda-
des» (10-20) 37.
Já no final da tragédia de Eurípides, quando Hipólito compreende finalmente o
papel de Afrodite em todo este enredo, afirma veementemente: «Ay! Ojalá el linaje
humano pudiera lanzar maldiciones contra los dioses!» (410-420). Logo de seguida,
na sua última fala, Ártemis afirma: «Déjamelo a mí! [...] Porque yo, com mi mano,
contra el mortal que le sea más querido, me vengaré gracias a mis flechas inevitables.»
(410-430). Como que profeticamente, conclui dizendo: «[...] y el amor de Fedra ha-
cia ti no quedará en silencio ni caerá en olvido.» (430-440).
Neste sentido, a tensão entre Ártemis e Afrodite é extrema, e a tragédia de
Hipólito, o Puro, e de Fedra, a Brilhante, seja ela do século V A.C., XVII ou XX
D.C., pode ser encarada como um eco do conflito íntimo dessas divindades que
habitam em nós. Mas afinal quem são essas divindades, como são elas próprias
apresentadas antinomicamente e o que representam do ponto de vista simbólico?
É certo que o confronto Afrodite-Ártemis não aparece explicitamente na Fedra
de Dom Miguel, mas a presença de um imaginário estruturalmente antitético, na
diversidade das suas manifestações, na diversidade dos seus múltiplos rostos, é algo
(1898), Fedra (1910/11) ou Soledad (1921) o teatro unamuniano faz ressaltar, com maior ou menor fortuna, a impor-
tância da mulher.
35 
35 Cf. Leitão, 2004.
36 
36 Cf. Unamuno, 1991b: 31.
37 
37 Cf. Eurípides, idem : 263.

120 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno

que está fortemente marcado neste drama unamuniano. Imaginário onde racional e
irracional, claridade e trevas, destino e vontade, cidade e campo, inocência e menti-
ra, cumes e abismos, convenção social e verdade interior, palavra e segredo, na uni-
dade e complementaridade desses pares de opostos, são a condição da construção
de um tempo simultaneamente mítico e histórico.
A antítese cidade e campo é um desses pares de opostos, uma dessas antinomias,
mas cada um desses pólos é também intrinsecamente paradoxal. A «Naturaleza»,
«no sufre fiebres ni necesita luchar para querer. Por eso es el verdadero templo de Diós»
(1, III); o campo é um locus aemenus, «allí se ve todo claro!» (1, III), é certo, mas,
paradoxalmente, é também o local onde se matam as feras, onde se «libra de vicios»
(1, III) e onde «se te curan las demasías» (1, III)
Também o segredo se opõe à urgência apolínea de tudo trazer à luz, também o
Segredo entra em conflito com a Palavra, a intimidade da alma com as exigências
e padrões sociais. O segredo individual mantém-nos separados da sociedade. Ao
revelarmos o nosso mistério, acabamos por revelar a nossa individualidade. Fedra,
ao confessar o segredo da sua alma, ao trazer para a luz, numa urgência apolínea,
os abismos da alma, ao romper com a máscara social, pela dificuldade de lidar com
a interioridade do recinto sagrado das «simas», acaba por se tornar vítima dessa ten-
são, dessa conflitualidade.
É certo que a alma gostaria de desnudar-se perante outrem na sua linguagem
simples, ingénua e espontânea, mas os muros e os véus, as preocupações considera-
das socialmente superiores, os imperativos de conformidade social, impedem, tan-
tas e tantas vezes, a experiência directa da profundidade da própria alma.
É este abraço, este inconciliável abraço, mas abraço por certo, esta tensão nunca
resolvida, jogo dramático do qual nenhuma das polaridades é excluída, que permite
construir e resgatar o sentido da vida e das coisas. Abraço onde convergem a acção
e a contemplação, a dúvida e a certeza, a eternidade e a caducidade, a quietude das
águas infinitas a que se aspira e o fluxo das águas heraclitianas de que não se pres-
cinde.
Ilustremos com alguns exemplos, algumas das polaridades e tensões anterior-
mente referidas:

(Nodriza) - «Pero qué, no se te quita eso de la cabeza, Fedra? [...] El corazón


es más rebelde, lo sé...» (1, I)
(Fedra) - «con estas cosas no sé ya si creo o no [...]» (2, I)
(Fedra) - «en estos días de lucha...» (1, I)
(Fedra) - «[...]con pensar no se hace nada [...]» (1, I)
(Fedra) - «No cabe resistencia. Esto así, contenido, me abrasa: revelado, se
curaría mejor. Está escrito, es fatal!» (1, I)
(Fedra) - «Eso quisiera yo, que me callase lo que llevo dentro...» (1, I)
(Hipólito) - «Debo al aire del campo la vida y aborrezco la ciudad... Hay que
salir de casa...adónde mejor que al monte?» (1, III)

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 121


Isilda Leitão

(Hipólito) «La vida del campo, bajo el cielo libre, el aire libre, sobre la santa
y libre tiera, mejora el hombre. Alli no hay odios ni envidias; los robles, los
arroyos, las rocas, no envidian, no odian...» (1, 3)
(Nodriza) - «El sacrificio habría sido decir la verdad, toda la verdad.» (3, I)
(Pedro) - «...esto ha de guardarse aqui, enterrado entre los tres» (2, V)
(Hipólito) - «No vemos la sima hasta que estamos a su borde. Como pude
vivir junto de ella tan ciego?» (3, V)

Cada esforço, cada sedução, implica novos perigos e renovadas decepções. O


imaginário unamuniano, tal como se revela na Fedra, não se resigna ante uma razão
dogmática, não se submete a uma fé inquestionável e infalível, lutando antes, inces-
santemente, com o enigmático e o misterioso. Mesmo quando surge a tentação na-
dista, o apelo do repouso, a vontade da dissolução, a atracção das águas profundas
e tranquilas, em suma, o sentimento oceânico, é ainda para, no mesmo momento,
ganhar ânimo e recuperar forças, retornar a um princípio de luta e acção, para se
envolver, plena e totalmente, num agir comprometido e empenhado.
Sabe-se que os Gregos se referiam à infinidade dessas polarizações, à diversidade
desses espíritos sem nome, que instigam e guiam a nossa vida, usando expressões
como divindades ou demónios. Sócrates dizia que tinha vivido de acordo com os di-
tames do seu daimon. Carl Jung, embora preferisse o termo inconsciente, não recusa-
va utilizar a palavra demónio, ao referir-se a essa imagens, a essas polarizações, pois
afirmava: “Sabemos que algo desconhecido, estranho, caminha ao nosso encontro,
tal como sabemos que não somos nós que fazemos um sonho ou uma inspiração,
mas que eles, de uma forma ou de outra, surgem espontaneamente. Pode dizer-se
que aquilo que nos acontece desta maneira emana do mana, de um demónio, de um
deus ou do inconsciente”. 38.
A vivência demoníaca torna-se, assim, na possibilidade de descoberta das regi-
ões mais profundas, dessa fonte inesgotável donde flui a vida, dando desta forma à
alma a possibilidade de, ao confrontar-se com o seu mistério, por ele se deixar guiar,
ou, agónica e complementarmente, lutar com esse enigma, com essa esfinge.
A alma unamuniana - como a tensão trágica que sempre acompanha Fedra -
não é propriamente a ânsia e a vontade de perfeição, quando entendida esta como a
ascensão aos mundos apolíneos da luz e das alturas, da ascese e da pureza; quando
entendida esta, a perfeição, como a ascensão a um mundo onde a sombra não tem
lugar, mundo que rompe, radicalmente, com a negatividade da noite. Embora a
atracção dos cumes esteja, sem sombra de dúvida, fortemente presente em Unamu-
no.
Mas Unamuno procura a paz na guerra, a altura nas profundidades, assume o
conflito e a contradição, recusando encerrar-se na unilateralidade de qualquer das
polarizações. Ao contrário do puro Hipólito, que só vê o abismo quando nele já se

38 
38 Cf. Jung apud Moore, 1992: 314.

122 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno

despenhou «No vemos la sima hasta que estamos a su borde» (3, III) - Unamuno en-
contra sempre alguma luz no seio das sombras, alguma dúvida na certeza, alguma
alma na elevação dos cumes.
Hipólito, na sua aérea e apolínea elevação, adorava Ártemis e desprezava Afrodi-
te, desdenhando «el lecho [...]no prueba el matrimónio» (10-20)39. O seu aio tinha-o
advertido que as divindades, como os seres humanos, não suportam um tratamento
desdenhoso e que procuram vingar-se se não lhe damos a atenção que merecem40.
A esta unilateralidade e desdém, os antigos gregos chamavam insulto à divindade,
atitude que acarretava a ira divina em relação aos mortais, que acarretava um feitiço
trágico. Um grego da antiguidade, cuja vida não corria bem, costumava questionar-
se sobre que divindade tinha ofendido. Questionava-se sobre a divindade que estava
esquecendo, sobre o altar em que não estava sacrificando.
O Hipólito unamuniano «es bueno, honrado y trabajador, pero fuera de su tra-
bajo parece no vivir sino para la caza» (1, II), não está «resuelto [a]casarse [...]como no
fuese con Diana [...]lo que dudo, llegase a enamorarme...» (1, III).
Seria esta hybris desmedida, esta recusa em aceitar a autoridade dos deuses, no
caso a divindade de Afrodite, que levaria ao desastre, à tragédia, ao sofrimento.
Hipólito com a sua «torpeza», a sua «ceguera», a sua «brutalidad» (3, VII), a sua
unilateralidade, com o seu insulto à divindade, a Afrodite, tece a sua própria tra-
gédia: «cazador no adverti como se caía y no la sustuve a tiempo, antes que la cosa no
tuviese remedio» (3, VII).
No entanto, a alma unamuniana descobre-se e constrói-se, acima de tudo, na
sua própria inteireza, na paradoxal totalidade, como mysterium coniunctionis, uma
forma de teleiósis completamente distinta. Descobre-se e constrói-se na plena acei-
tação e reconhecimento do elemento tensão, do elemento infirmitas, que habita
a própria alma. É neste sentido que talvez não seja inadequado dizer que a Fedra
habita em todos nós.
Como reconhece o próprio Hegel, a tendência para a desordem e para o sofri-
mento, para a patológico e para a anomalia, para a loucura mesmo, é uma forma
ou etapa necessária ao desenvolvimento da alma41, uma afirmação ontológica da
própria alma. O «cálice amargoso da desgraça»42, como reconhece o nosso Ante-
ro, a paixão e a dúvida, o tédio e o mal, são inerentes à natureza da alma, mas o
espírito, ao encerrar-se no seu mundo ideal, que tudo «consola» e que «para tudo é
compensação»43, ao elevar-se a um aperfeiçoamento espiritual, ao espírito superior,
de alguma forma atraiçoa a alma, a alma como totalidade, como paradoxo, com as
39 
39 Cf. Eurípides, idem: 264.
40 
40 «[...] ... a los dioses hay que llamarles amos [...] odian la actitud soberbia [...] como entonces no saludas tú a una diosa
respectable?» (90-100) (Cf. Eurípides, idem: 266).
41 
Recordamos G. W. F. Hegel, e a sua Filosofia del Espirítu, «Zusatz»: «En la loucura, el alma lucha por restaurar la
perfecta armonía interior a partir de la contradicción existente» (Cf. Hegel, citado por Hillman, 1999:160).
42 
Cf. A Santos Valente , Sonetos Completos.
43 
Vide carta de 1886, a Vicente Machado de Faria e Maia (Cf. Quental, 1989: 811, T. VII).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 123


Isilda Leitão

suas polarizações diurna e nocturnas, luminosas e sombrias.


Os caminhos da alma e do espírito poucas vezes coincidem. Quantas e quantas
vezes divergem, nomeadamente quando este último segue a trajectória ascendente
das asas e do voo, procurando romper com os laços que também nos prendem ao
terrestre, à gravidade, ao tempo e à história.
Mais, mesmo quando não convocados, principalmente quando ignorados e
desprezados, rejeitados (é este, precisamente, o caso de Hipólito, o Puro), os deu-
ses sempre estão presentes, sempre reaparecem. Mesmo quando a alma, nas suas
asceses diurnas ou nocturnas místicas, se identifica com o espírito, com o pneuma,
os deuses irados, o lado sombra da divindade, os ventos da tragédia, forçam a sua
presença.
É neste contexto que poderemos por certo afirmar que Fedra é o caminho da
alma, não o do espírito.
Numa mesma direcção, em Del Sentimiento Tragico de la Vida, Unamuno afir-
ma que «No basta pensar, hay que sentir nuestro destino»44, para ao longo da obra
se manter nessa tensão e equilíbrio instável entre o viver e o compreender, entre o
pensamento e a irracionalidade que ele sempre encerra, recusando assim afastar-se
da tragicidade da vida, o que sempre ocorre em qualquer tradição puramente racio-
nalista, que não consiga vislumbrar o perigo de «querer creer con la razón y no con
la vida!»45.
A Fedra é esse tempo, esse regime do imaginário em que os opostos ainda estão
lado a lado, em que deus é luz e abismo e tece a duas mãos: «Dios a dos manos teje en
su telar» ( “La Ley del Milagro , XXX”, Rosario de Sonetos Líricos).
Se o homem inicialmente matou esse deus paradoxal, esse deus que tece a duas
mãos, expulsando Satã «del trono del Señor» ( “Satan , LXXIII”) criando assim um
deus apolíneo e todo poderoso, um deus refúgio em quem deposita todas as suas
esperanças de libertação, é esse mesmo deus de luz e verdade, perdidas todas as
ilusões, que agora mata. A este propósito diz-nos James Hillman: «Se Deus morreu,
foi devido a um excesso de saúde; havia-se distanciado da infirmitas íntrinseca do
arquétipo.»46
Desta forma, se os deuses são imortais, se o arquétipo é o universo em nós, se há
doença no arquétipo, então a infirmitas que apresentam é igualmente eterna. Assim,
o deus paradoxal, que parecia estar morto, estava apenas adormecido, relegado para
o esquecimento, pela atitude invasora da luz.
Os caminhos que o imaginário de Dom Miguel percorre, na sua Fedra, não
são os do deus apolíneo e luminoso, mas os dessa geografia agónica e trágica com
os seus mundos de luz e de trevas, onde até a própria morte tem um sentido. O seu
discurso é o discurso paradoxal, que tão longe se situa da estrutura esquizóide e
44 
Cf. Unamuno, 1991 b: 33. Na mesma obra, Unamuno afirma que «el fin de la vida es vivir y no lo es compreender»
(idem: 121), para de seguida se referir ao «pensamiento de la vida; pensamiento a base irracional» (idem: 129)
45 
Cf. Unamuno, idem: 86.
46 
Cf. Hillman, apud Avens, 1993: 131 (bold nosso).

124 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Tragédia e “Desnudez Extrema” na Fedra de Miguel de Unamuno

separadora dos regimes aéreos, diurnos e luminosos.


Nesta sua obra Unamuno representa o drama, o drama de Fedra, como conflito
existencial. A sua Fedra é um imenso oxímoro, um espaço desesperado de conver-
gência dos opostos, um hino à coincidentia oppositorum, o confronto com a infirmi-
tas do arquétipo e, portanto, a inevitável redescoberta do «hombre de carne y hueso».
Do homem de ontem e de hoje, do homem universal e eterno, de cada um de nós.

BIBLIOGRAFIA

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ARGULLOL, R. (1990). El Héroe y el Único. Barcelona: Destino.

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Contradições. Barcelona: Universidade de Barcelona (Tese de Doutoramento).

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UNAMUNO, M.de, (1991b). Del Sentimiento Tragico de la Vida. Madrid: Alianza.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 125


Causídico, Patrono ou A dvogado
nos Epigramas de M arcial
um negotivm indigno

Fernando Lemos
U. Lisboa

No âmbito da cadeira de Didáctica das Línguas Clássicas, que oriento na Facul-


dade de Letras da Universidade de Lisboa, na realização de um projecto didáctico
prático do ano lectivo passado – a leccionação de uma unidade pensada para o 11º
ano e com o mesmo título que tem o presente colóquio – o texto escolhido por uma
das alunas, que resolveu tratar a actividade diária dos cidadãos romanos, foram os pri-
meiros oito versos do epigrama 8 do IV Livro de Marcial. Deixando de lado a opção
discutível de, com certeza por apresentarem maior dificuldade, ter prescindido dos
últimos quatro decisivos versos, chave para o entendimento do poema e, ao mesmo
tempo, explicação de o verso 7 invocar o tricliniarca Eufemo1, a verdade é que no ex-
tracto aparece marcada a sequência das horas diurnas e não é muito difícil identificar
a actividade própria de cada período, assim satisfazendo os objectivos pretendidos pela
docente. Logo naquele momento me tocaram dois aspectos: o mais óbvio foi o facto
de Marcial, fiel aos seus gostos e carácter tantas vezes declaradamente assumidos,
passar rapidamente em três versos pelo negotium e deliciar-se no otium ao longo dos
nove restantes; o segundo aspecto é uma interrogação que ficou a pairar na minha
mente: por que motivos, para ilustrar o aspecto do negotium com os uarios labores
que em Roma se prolongam até à hora quinta (v. 3), o poeta recorre, após apontar a
salutatio, apenas e só aos raucos causidicos (v.2). Ainda tudo isto estava fresco na minha
memória, quando surgiu a oportunidade de participar neste colóquio e como assunto
de comunicação se me impôs procurar responder a esta pergunta, verificando como,
nos quinze Livros dos seus epigramas, Marcial trata os advogados. Embora ele use por
vezes circunlóquios, como causas agere2, lis esse3, aliquem defendere4, para referir tal

1 
Em razão da sua estratégia adulatória dirigida ao Príncipe, Marcial coloca a leitura dos seus versos não no ambiente
das termas ou das palestras, mas em tempo de convívio após uma cena imperial. Dados os hábitos de temperança de
Domiciano, espera que a bonomia alcançada pela satisfação do estômago e do espírito com bebida e alimentos divinos
constitua conjuntura propícia para o imperador deferir favoravelmente o empenho de Eufemo, constituindo-se em alto
mecenas do poeta. As notas que acompanham a recente tradução portuguesa dos epigramas são da máxima utilidade.
Neste caso, cf. Marcial, Epigramas, Lisboa, Edições 70, 2000, Vol.II. p.22. Será supérfluo confessar que consultei
passim os quatro volumes da obra da Colecção Clássicos Gregos e Latinos, resultantes da colaboração de professores das
Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa.
2 
Cf. II, 7, III, 38 e VIII, 17.
3 
Cf. VI, 19.
4 
Cf. IV, 16.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 127


Fernando Lemos

profissão, limitar-me-ei, com poucas excepções, aos poemas em que ele a designa,
recorrendo a três lexemas: causidicus, patronus e aduocatus 5.
O termo mais vezes utilizado por Marcial é causidicus, um lexema relativamen-
te recente, segundo os etimologistas, pela primeira vez registado em Cícero, com
conotação claramente negativa. O arpinate explica o vocábulo, aproximando-o de
clamatorem aut rabulam – para Morais, no seu Dicionário, rábula é um “causídico
chicaneiro”− e contrapõe tal conteúdo a um “forense plurivalente, eficaz, subtil,
elegante”6, um quase divino antístite da arte oratória, ornado de profunda cultura
humanística e técnica, terror de criminosos e inimigos do Estado, defensor de víti-
mas inocentes, paladino emérito do bem comum, da honra e da paz em causas civis
ou públicas7.
Regressando ao epigrama de Marcial, facilmente detectamos marcas da carga
negativa que o poeta quer associar neste passo à actividade do causídico. O signifi-
cado imediato do adjectivo raucos é realidade incómoda quer para quem fala quer
para quem ouve, posta em evidência, a nível fónico, pelas assonâncias presentes no
verso8; os verbos utilizados complementam tal sensação, dilatada em três repeti-
das formas de presente durativo: extendit aplica-se a trabalhos e fadigas, tal como
exercet, que aqui não se vislumbra enquanto hipotética e realizadora subida ao alto
da fortaleza, para façanha heróica ou contemplativo descanso do espírito; conterit,
aplicado directamente à visita matutina dos clientes ao patronus, prática para Mar-
cial de tal modo violenta e destruidora que a virá a anunciar como motivo para o
abandono de Roma e regresso à terra-natal9, afecta igualmente, por extensão, con-
tinuidade textual e analogia, tudo quanto constitui, durante a manhã, o fervilhar
buliçoso do foro.
Ainda encontramos uma mensagem de condenação do causídico e que pode-
mos considerar típica do pensamento de Marcial, no dístico que constitui o epi-
grama V, 33. Não retira força – antes pelo contrário! – à maldição apotropaica de
destruição e ruína uae tibi causidice, com que termina o poema, o facto de estarmos
provavelmente perante uma ficção criada pelo poeta, denotada quer no anonimato
5 
O quadro esboçado por Marcial não pode fugir à natureza satírica do género literário que cultivou e dá uma ideia par-
cial da realidade. Para lá das sombras que afectam a prática forense em Roma cuja descrição os epigramas privilegiam,
não podemos esquecer a importância que o Direito, enquanto legado romano, teve ao longo dos séculos e ainda hoje
conserva nas civilizações e culturas ocidentais. Continua a ser da maior utilidade ler o capítulo “Les Avocats” de uma
obra já com meio século: Ugo Enriço Paoli, Vita Romana. La Vie quotidienne dans la Rome antique. Édition française
revue et augmenté par Jacques Rebertat. Paris, Desclées de Brouwer, 1955, pp. 304-319. Nela encontramos uma síntese
clara duma realidade dinâmica e complexa, onde a mudança, por vezes, esconde certos traços ancestrais, como o carác-
ter obsequioso da assistência e do conselho jurídicos ou a distinção entre o estudioso teórico da causa ( Juris consultus) e
aquele que acompanhava o cliente e lhe aconselhava a melhor estratégia ou, a seu pedido, o podia substituir na apresen-
tação dos seus pontos de vista perante o tribunal (orator).
6 
Cf. Orator, 30.
7 
Cf. De Oratore, I, 201 s. Transcrevo a parte central do texto, que, para melhor compreensão, deve ser consultado na
íntegra: Non enim causidicum nescio quem neque clamatorem aut rabulam hoc sermone nostro conquirimus, sed eum virum,
qui primum sit eius artis antistes, (…).
8 
Notem-se a repetição do ditongo au, da surda velar k e do estridente som i.
9 
Cf. XII, 68.

128 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Causídico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial

da denúncia quer na circunstância de não se encontrar identificado o acusado de


censurar as palavras do poeta; como é seu hábito, Marcial não se arriscaria a expri-
mir livremente o seu pensamento se fosse para atacar uma pessoa real e concreta10.
Com a ironia que percorre, do princípio ao fim, os quatro versos do poema I,
97, increpando um certo Névolo, com certeza nome fictício11, desenvolve um topos
que já vem dos gregos12 e constitui característica paradoxal do advogado: a incapaci-
dade de falar. Contra as mais elementares regras do senso comum, por incompetên-
cia, vergonha ou timidez, Névolo não espera que haja silêncio na sala do tribunal,
pois sabe que só terá força anímica para usar da palavra no meio da balbúrdia e
do clamor de todos. Não sendo ouvido por ninguém, julgá-lo-ão eloquente e ele
próprio se considerará autêntico advogado. Os traços deste quadro de ficção são
acentuados pelo uso do discurso directo que bi-invoca o antropónimo no primeiro
e no último verso, pelas antíteses e lítotes que justapõem o barulho com o silêncio, a
articulação verbal indistinta quer com a mensagem recebida pelo receptor quer com
a eloquência retórica; particularmente ambígua é a reunião copulativa de patronum
causidicumque, termos com conteúdo semântico a variar desde a quase sinonímia
ao realce de aspectos opostos13.
Passa-se algo de semelhante com uma outra composição com cinco dísticos
elegíacos, a II, 64. Também é um certo Lauro, campeão14 em permanecer indeciso
entre retor ou causídico, que é incentivado a escolher a sua profissão, antes de atin-
gir a idade de Peleu, Príamo ou Nestor. Ambas as profissões, aparentemente boas
por o estudo de mercado indicar que em qualquer delas não haverá desemprego,
conduzirão à morte real – morreram três retores e o sátiro Mársias, sacrificado por
Apolo, está agora reduzido ao frio mármore de uma estátua do Foro, que, por ouvir
os advogados frequentemente reunidos à sua volta, tem capacidade para ser perita
em leis – ou à morte simbólica da não realização – a última palavra do poema é
10 
Transcrevo o mais importante do comentário de Peter Howell em Martial. The Epigrams Book V. Warminster, Aris
& Phillips, 1995, p. 116: (…) his fixed principle is never attack real people by name, the threat is not intended seriously,
and the man probably did not exist”. Convém ainda lembrar que continuava em vigor a lex Cornelia de iniuriis, do ano
81 a.C., contra a difamação; Nero aplicou-a para condenar autores de epigramas contra si como réus do crime de lesa-
-majestade.
11 
O diminutivo acentua a insignificância de uma verruga ou sinal na pele, que naeuus significa.
12 
Transcrevo o comentário de Mario Citroni (M. Valerii Martialis Epigrammaton liber primus. Introduzione, testo,
apparato critico e commento a cura di Mário Citroni. Firenze, La Nuova Italia Editrice, 1974), p. 297: “L’ avvocato, e,
con temática affine, il retore, sono spesso oggetto di satira nell epigr. greco. Disonestà (Agatia, AP XI 350), stupidità
(Agatia, AP XI 376), ignoranza (Ammiano, AP XI 152), solecismi (Lucillio, AP XI 143; AP XI 148; Ammiano, AP XI
146), voce sgradevole (Lucillio, AP XI 143; Pallada, AP XI 204 e cfr. Ammiano, AP XVI 20) sono alcuni dei motivi
riconnetti”.
13 
O comentário de Mario Citroni confirma que o termo causidicus admite vários sentidos e, com base no levantamento
estatístico do seu uso, permite concluir que Marcial se distingue dos outros poetas. Transcrevo: “causidicum: sinonimo
de patronus, usato soprattutto nel linguaggio colloquiale (Quint. inst XII, 1, 25 aduocatum quem... causidicum ulgo
uocant) e spesso com tono dispregiativo: cfr. ad es. Cic. de orat. I 202; Quint. l. cit; Tac. dial 1. Termine dell uso
quotidiano, è raro in poesia: un caso in Lucr,; 8 casi in Iuv.; 15 in Mart. Del resto anche patronus è molto raro in poesia:
un es. in Ov. eleg.. e Phaedr.; 2 in Catull. e Hor. epist e ben 11 in Mart.” (o.c., p. 298).
14 
Estou a interpretar simbolicamente o antropónimo: a coroa de louros era atribuída aos vencedores das competições
olímpicas.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 129


Fernando Lemos

nihil. Deste modo não é muito importante a escolha e, à semelhança da referência


despropositada neste contexto aos heróis da Guerra de Tróia – uma prática ineficaz
de muitos advogados -, advém de uma intenção irónica, que percorre o poema do
princípio ao fim, a insistência para Lauro se decidir e optar por uma de duas profis-
sões, em si perfeitamente compatíveis.
É à luz de opiniões tão inequivocamente expressas nos epigramas acabados de
ler que devemos interpretar outros em que a mensagem sofra alguma forma de
obnubilação.
Marcado sem dúvida por visão negativa porventura algo atenuada pela referên-
cia a um maldizente Zoilo, invejoso e actualizado, o dístico elegíaco XI, 30 levanta
a questão de causídicos e poetas serem igualmente acusados de feder – talvez conta-
minados pelos vícios que, com o uso da palavra, denunciam; a resposta encontrada
consiste em apontar outros mais mal cheirosos: os fellatores. As razões para assacar o
mau hálito generalizado aos indivíduos de duas classes profissionais não são eviden-
tes e os comentadores arriscam como hipóteses a ansiedade, o tipo de alimentação
ou hábitos morais15. Também ficamos algo perplexos, ao ver que Marcial na sua es-
tratégia de defesa não dissocia as duas classes e deixa pairar o labéu sobre os poetas,
um grupo a que ele pertence e uma vocação merecedora do sacrifício de confortos
e abastança. Talvez ele, cioso do seu valor, pretenda distanciar-se dos maus poetas
que proliferam e não podem evitar a ansiedade sempre que apresentam ao público
qualquer composição.
Parece ser o caso com que brinca, como é natural que aconteça durante as Sa-
turnais, em um dos apoforetos, o XIV, 219: o causídico-poeta pobre não tem juízo
(cor [non] habere), pois, sem talento retórico nem inspiração poética, resolveu arra-
nhar tais artes em vez de ter escolhido um ofício, intelectualmente menos exigente
mas mais rendoso.
A associação entre o literato e o advogado continua a ser o motivo presente em
mais um epigrama, o II, 27, com um contexto que mantém como referência pri-
vilegiada o uso ou até o abuso da palavra. Embora na ausência de qualquer marca
negativa que afecte directamente o senhor que se dirige ao foro, seja para exercer o
patrocínio jurídico seja para fazer a leitura pública da sua obra, não seria ilegítimo
admitir uma espécie de contaminação negativa, advinda de Sélio16, caçador de jan-
tares. O louvaminheiro importuno, por obrigação e estratégia, acompanhante nas
deambulações do senhor, insistiu em interjeições laudatórias e insuportáveis ou em
exclamações desgarradas; para conseguirem fechar-lhe a boca, rendem-se aos seus
desejos e prometem-lhe o jantar.
15 
Em relação a este último aspecto, é interessante e engenhosa a explicação de N. M. Kay. Perante a insinuação de Zoilo
– os causídicos e os poetas, incluindo Marcial, têm por hábito a fellatio – o autor desarma a armadilha, antecipando-se
a explicitar que são os outros os fellatores (N. M. Kay, Martial, Book XI. A commentary, London, Duckworth, 1985, p.
137).
16 
Podemos levantar a hipótese de que Marcial terá pretendido usar um nome próprio que se pode aproximar de sella,
cadeira de transporte dos senhores (a sede gestatória que os Papas abandonaram há bem pouco tempo, tem esta origem
histórica). Na tentativa de caçar jantares, Sélio rodeou muitas vezes as sellae dos seus patronos.

130 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Causídico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial

Dentro desta mesma temática, podemos ainda incluir um outro epigrama, o


VI, 8, que nos narra uma história de competição. Aqui, sete causídicos não estão só
ao lado de dez poetas mas também de dois pretores e quatro tribunos; entram to-
dos, cada um com os seus trunfos, em disputa pela mão de uma jovem; o pai, velho
e experiente, dentro das suas competências legais, não tem grandes hesitações em
escolher como marido da filha o pregoeiro Êulogo, dotado, como o nome indica,
de qualidades mais do que suficientes para publicitar a mercadoria a vender, e que,
parece, nem se tinha candidatado. A história simples e coerente tem um desfecho
que se baseia no saldo das contas bancárias dos diversos intervenientes, que no texto
surgem em gradação, ordenados por ordem crescente do número de indivíduos de
cada profissão. Estes números, que não contrariariam os resultados de um inquérito
à composição da sociedade romana, levantam de novo a perplexidade de causídicos
e poetas – tão grande número não pode equivaler a qualidade – aparecerem inti-
mamente associados. Não podemos, no entanto, ignorar a pergunta retórica com
que o sexteto termina, interrogando desta vez uma personalidade real, o seu amigo
Severo, e nela pressentir a intenção subliminar de pôr em causa a justeza da decisão
do velho experiente, com base exclusivamente em critérios económicos.
De toda a maneira, é claro que o epigrama é uma “brincadeira bem-humorada”17,
onde as profissões referidas se ordenam por ordem decrescente da sua capacidade
económica, resultando como mais valorizada a de pregoeiro, com certeza em virtu-
de das comissões recebidas. Encontramos confirmada esta hierarquia em um outro
epigrama, o V, 56, que trata expressamente esta temática.
Entre as artes a evitar de todo – vislumbramos um tom irónico18 – está implí-
cita a de advogado, quando se referem os retores, mestres da profissão, ou quando
se nomeia Tutílio, porventura um causídico contemporâneo conhecido. Para obter
dinheiro apontam-se negotia práticos: de citaredo e flautista para candidatos mais
dotados e de arquitecto e pregoeiro, se duros de cabeça.
Sem pôr em causa a hierarquia das artes pecuniosas (v. 8) estabelecida no anterior
epigrama, não podemos considerar todos os advogados uns pobretanas. A tradição
de exercerem o patrocínio sem nada receberem foi consagrada pela lex Cincia de
204 a. C., mas supõe que os actores judiciais tinham outras fontes de rendimento
e assim estávamos perante uma justiça administrada apenas por plutocratas19, que
tinham disponibilidade para adiarem por algum tempo a cobrança dos serviços
prestados e ficarem na expectativa de, porventura bastantes anos depois, vir a re-
ceber honras, condecorações e outras benesses não menos proveitosas20. Cláudio
17 
Tese de Doutoramento de Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, A adulatio em Marcial, Lisboa, 1993,
p. 61. Esta foi uma outra obra – seria imperdoável não a consultar – à qual recorri com frequência.
18 
A exemplificação de uma educação elitista, ultrapassada e pouco utilitarista, com vultos tão grandes e incontestáveis
como Cícero e Vergílio, dá peso à hipótese de Marcial advogar uma outra ordem de valores.
19 
A actividade pedagógica dos sofistas, remunerada pelos usufrutuários, o que na Grécia constituiu verdadeira revolu-
ção dos hábitos ancestrais, é interpretada por muitos como etapa na democratização dos conteúdos e ideais educativos.
Entre o ideal programático ou legislativo e a prática concreta há uma grande distância, como nos dá conta Rosalía
20 

Rodríguez López no estudo “El Abogado en Roma”, inserido na obra colectiva, sob responsabilidade dos editores

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 131


Fernando Lemos

achou preferível acabar com esta situação e permitiu que recebessem honorários até
10.000 sestércios. Esta mudança pode explicar procedimentos diversificados por
parte dos advogados e as críticas de Marcial em alguns dos seus epigramas, centra-
dos nesta temática.
O causídico a que faz alusão em IX, 68 é merecedor de crítica por mostrar o di-
nheiro de forma ostentatória e desajustada à sua situação. Os seis dísticos elegíacos
destinam-se a satirizar os mestres-escola que, com gritaria e açoites matinais, infes-
tam os ares de barulho tão intenso que faz esquecer ferreiros ou a multidão ululante
no anfiteatro, e atormentam alunos e vizinhos da aula. O homem do Direito apa-
rece na cena, manifestando inequívoco poder económico e manias de novo-rico a
quem tivessem outorgado a dignitas de eques, ao encomendar uma estátua equestre
para o átrio da sua casa – se calhar, não sabe montar nem nunca o fez na vida –, não
se importando do incómodo que provocam o martelar do ferro, o atrito na bigorna,
o crepitar do fogo na forja ou, semelhantes a estas, outras praxes de Vulcano.
Nem sempre são socialmente justificáveis os rendimentos obtidos pelos advoga-
dos, mesmo quando dentro da lei21, mas a administração da justiça constitui uma
actividade dispendiosa e assim continua, ainda hoje, que deriva logicamente da
natureza e importância dos interesses que estão em jogo, ninguém se dispondo a
arriscar perder a vida ou a riqueza sem combater com os melhores meios que possa
adquirir. Pode haver, no entanto, alguns habilidosos que tentam fugir ao pagamen-
to devido, como nos conta Marcial em dois pequenos poemas, os dísticos I, 98 e
II, 13, em que é patronus a palavra escolhida para indicar a actividade de defensor
judicial.
No primeiro caso, a censura ao litigante Diodoro22, perfeitamente assumida
pelo sujeito poético que interpela o interlocutor Flaco e faz diagnóstico médico,

Jesús Mª García González e Andrés Pociña Pérez, En Grécia y Roma: Las Gentes y sus cosas, Granada, 2003, pp. 319-337,
cronologicamente delimitado “desde segunda mitade del s. II a.C. hasta las primeras décadas del s. I d.C.” (p. 324).
Informa-nos que sempre “algunos abogados ganaban grandes sumas de dinero e que desde tiempos de Augusto (…)
los honorarios serán exigibles judicialmente fuera del ordem procesal habitual (extra ordinem)”. O comportamento
indigno de muitos advogados acabou por ter eco em “la literatura romana [que] satirizó en múltiples obras su rapiñaría
y corrupción” (p. 326).
21 
Quintiliano condena o piraticus mos de os advogados combinarem a remuneração que lhes será devida, antes de
prestarem o serviço aos seus clientes (Institutio Oratoria, XII, 7, 11-12). Esta prática é explicitamente reconhecida na
história que Marcial nos conta no epigrama VIII, 17, recorrendo a um diálogo gracioso mas chocante. Acabamos por
tomar consciência do desplante argumentativo de um advogado incompetente mas pudibundo, que exige pagamento
integral dos honorários, reduzidos a metade pelo cliente, depois de aquele reconhecer que não o defendeu devidamente,
desculpando-se com o facto de ter vergonha dos crimes por este cometidos. O risco de tais acordos monetários está
documentado em mais duas histórias vivas, jocosas e irónicas. Em VI, 35, o cliente invectiva o seu advogado Ceciliano
por ter criado uma situação ridícula e embaraçosa; obteve mais tempo para intervir e agora, sem nada de novo para
dizer, gasta-o, espreguiçando-se e bebendo água; é aconselhado a consumir a água da clépsidra. Em VI, 19, a queixa
é da mesma natureza, apesar de o defeito do advogado Póstumo ser precisamente o oposto: com verborreia e vaidade
desajustadas às circunstâncias, evoca cenas guerreiras e tópicos épicos aprendidos na escola, quando o litígio em causa
diz respeito simplesmente ao roubo de três cabrinhas.
22 
Será por ironia que ele tem um nome que significa dom dos deuses. Este e os outros aspectos de seguida analisados
fundamentam que se fale numa construção artificiosa do epigrama, aspecto evidenciado por Citroni no seu comentário
(o.c., p. 299).

132 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Causídico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial

obtém-se à custa do paralelismo antagónico entre os dois versos, marcado pela ad-
versativa sed e por dois grecismos; a doença física dos pés expressa pela segunda pa-
lavra do texto, podagra, joga com a penúltima cheragra, doença moral que disforma
as mãos mesquinhas do caloteiro unhas-de-fome e o tolhem de pagar àquele que o
representou e defendeu no litígio.
O segundo dístico não é menos expressivo a patentear as custas da justiça 23,
que talvez pudéssemos ilustrar com o provérbio Mais vale um mau acordo do que
um bom litígio. O segundo verso, ainda que sintacticamente independente, é a con-
sequência lógica da realidade averiguada no primeiro – os magistrados judiciais
exigem dinheiro e mais dinheiro – e expressivamente exibida no quiasmo, no po-
lissíndeto do et, que contra o habitual é a primeira palavra, na anáfora do petit. A
conclusão é extraída por um sujeito pensante que se exprime em primeira pessoa e
a aplica, apesar de ter valor universal, em primeira-mão ao interlocutor a quem se
dirige, aconselhando-o, com um conjuntivo optativo, a evitar o tribunal.
Muitos dos que, olhando para o exemplo de advogados bem sucedidos, tenta-
vam a sua sorte, esperando apenas as prendas que os clientes quisessem oferecer,
não passaram da cepa torta. Neste contexto é muito interessante o epigrama IV, 46,
formado por 19 versos hendecassilábicos, em que a primeira palavra claramente nos
revela a sua temática principal: as Saturnais e o hábito de por essa ocasião se ofere-
cerem presentes, que, quando insignificantes, dão azo à veia satírica do poeta.
O protagonista da narrativa, toda ela em terceira pessoa, com o tempo verbal
do perfeito substituído quatro vezes24 pelo presente expressivo e visual, é o causídico
Sabelo, personagem fictícia, cujo nome ouvido por quatro vezes25, por remeter para
a origem sabina, tem com certeza o valor simbólico de saloio, sóbrio e frugal. Com
tal associação paradoxal entre uma profissão urbana e um provinciano, está criada
a ambiguidade, explorada ao longo de todo o texto. As primeiras linhas exibem
às escâncaras e com pompa e circunstância um advogado cioso do seu sucesso,
realizado e dotado de riqueza obtida de forma magicamente invulgar, à custa dos
presentes recebidos por ocasião das festas libertárias das Saturnais; este alerta inicial
confirma-se quando, no verso 6, a enumeração dos presentes recebidos nos leva
a desconfiar de estarmos a ser vítimas do feitio e intenções jocosas do autor, que
armadilhou o texto e o semeou com falsas pistas; mas só com muita atenção à subs-
tância (farinha, favas, salsichas, figos, cebolas, caracóis, queijo, azeitonas, guarda-
napos, meio alqueire ou seja 4,32 litros, libra e meia ou seja 486 gramas) evitaremos
deixar-nos enganar pela acumulação de presentes descritos durante 12 versos, pela
presença de produtos exóticos como a pimenta e o incenso, pela sugestão de múlti-
plas e diversas regiões, desde a Lucânia, Falérios e o Piceno à Síria, Líbia e Sagunto,
pelo recurso a lexemas normalmente aplicados a vasos ou objectos requintados ou
23 
Título de Sic incipitur, p. 191.
24 
Razões de ordem métrica (versos falécios) permitem concluir que uenit (v. 12) está no perfeito.
25 
Sempre no final dos versos 1, 2, 5 e último. O estudo pormenorizado da colocação das palavras é um dos aspectos
estudado por Maria Cristina Pimentel. Cf. o. c., pp. 410 ss.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 133


Fernando Lemos

preciosos, como synthesis, toreuta ou laticlavo, aqui qualificando cerâmica ou uten-


sílios de baixa qualidade. Distinguindo a substância dos acidentes, confirmaremos a
presença, desde a primeira às últimas linhas, onde se declara quão lucrativas foram
as festas para Sabelo, da mais fina e subtil ironia 26.
Pelo confronto com a profissão de causídico, Marcial esclarece as suas opções.
Teoricamente a sua preparação académica permitir-lhe-ia exercer a advocacia, o
que, sob o ponto de vista social, não levantaria quaisquer objecções27. Quase so-
mos levados a interpretar alguns poemas como se Marcial nos manifestasse que
estava verdadeiramente tentado a mudar de convicções. A teoria literária, porém,
ensina-nos que os textos simples e imediatos supõem muito trabalho de depuração e
exigem algum esforço e estudo para serem devidamente compreendidos. Marcial é
sem dúvida, como tem sido evidenciado em recentes estudos, um destes autores em
que a aparente espontaneidade e repetição de processos não é sinónimo de ligeireza
ou porte leviano.
Em V, 16, Marcial assume ter optado por um género de poesia leve e graciosa e
congratula-se com o facto de assim ter fama, os seus versos serem populares e anda-
rem na boca de todos os romanos. Considera que devia ser justamente recompensa-
do e, em ordem a pressionar os usufrutuários do seu trabalho literário, desenvolve
uma argumentação retórica clara e bem sinalizada até pela menção do falciferi (…)
Tonantis (v. 5), das Hispanas (…) metretas (v. 7) ou do uati (…) Alexis (v. 12). O
recurso a tópicos épicos inadequados neste tipo de poesia cria um ambiente irónico,
onde a ameaça de se dedicar a profissões mais terra-a-terra, coladas ao Tesouro e Fi-
nanças do Estado ou ao Direito, que lhe encheriam a casa de produtos importados
das extremidades do Império e os bolsos do vil metal, não é para ser levada a sério
mas apenas ser vista como forma de pressão. O uso de uma condição potencial – si
(…) uelim (vv. 5,6) – confirma que era verosímil, mas ele de modo algum está dis-
posto a ser um dos que, no exercício da sua profissão, esfolam os clientes.
É precisamente isso que declara com toda a clareza no epigrama XII, 68, escrito
em Bilbilis, donde lança um olhar nostálgico sobre o passado. Exprime certa sau-
dade de Roma, para onde até admite regressar, mas é a calma e o sossego da cidade
hispânica que constituem condições para viver a sua vocação de otium, descrita
precisamente nos três últimos dos seis versos elegíacos, com uma imagem porven-
tura hiperbólica e não consentânea com afirmações proferidas em tempos de maior
vitalidade: é um discípulo preguiçoso e cansado das Musas.
Nos três primeiros versos perpassa a ideia de negotium. A afirmação central é a
26 
Resulta imagem por igual negativa de advogado pequenino mas emproado, gabarola e insinuante de uma interpre-
tação algo diferente, engenhosamente proposta por Ugo Paoli: «Mais derrière cette caricature de Sabellus, nous entre-
voyons le petit causidicus, attendant les Saturnales avec impatience, courant après les clients et leurs cadeaux; et ceux
qu il reçoit lui fournissent, en dépit de leur médiocrité l’occasion de faire un peu d’épate à l’époque où tout le monde
en fait, de se donner des airs et de soigner sa publicité» (o.c., p. 318 s.).
27 
Deixo aqui o comentário de P. Howell: “Since Martial had received the normal Roman rhetorical education (IX,
73), he could have made a profession of the law, and this was in fact the one profession open to a man of social standing
that was both respectable and profitable” (o.c., p. 93).

134 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Causídico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial

do verso 3: não tem espírito combativo nem aptidão para aguentar as acrimónias e
os dissabores das lides forenses. Mas, lembrado da condição vivida durante largos
anos, interpela os clientes de Roma e deseja que eles aproveitem com ambição a
oportunidade que a capital lhes oferece para frequentar os palácios dos poderosos.
A dificuldade de conciliar a sua vocação poética com as obrigações de cliente
pobre não protegido por um grande mecenas constitui o motivo principal de outros
poemas, em que a referência ao causídico só tem carácter negativo se a aproximar-
mos ao patronus.
Isto acontece claramente no epigrama X, 70, que gira em volta da actividade
diária do poeta, ocupado desde a hora primeira até à décima 28 com as obrigações
da sua condição de cliente, que de manhã visita o patrono e o acompanha nas suas
deambulações e à tarde vai buscar a espórtula. Apesar de toda esta actividade não
limitada ao período matinal, o destinado pelos Romanos ao negotium, ainda tem
de ouvir a censura do seu patrono, o poderoso Potito29, que lhe assaca a responsabi-
lidade de ser pouco produtivo no aproveitamento dos momentos de ócio para editar
em livro as composições poéticas.
A referência ao causídico surge em paralelo não só com o retor e o gramáti-
co, que vêm imediatamente depois, mas também com o cônsul e o pretor. Todos,
impantes de poder, importunam o autor, por vezes, reclamam os seus serviços ou
conselhos, lhe roubam tempo, o obrigam a participar em sessões de leitura pública,
o impedem de usufruir a vida e ocupar-se naquilo que mais lhe agrade, precisamen-
te escrever poesia. Repetem-se praticamente as mesmas ideias nas críticas amargas
que dirige a um outro patrono, de nome Labulo30, mesquinho na exigência de não
ver o seu séquito gregário de clientecos togados31 diminuído em uma unidade que
seja, ideias expressas em 15 versos falécios que constituem o poema XI, 24. Ao seu
protector, nada generoso e indigno do nome de mecenas32, assaca a responsabilida-
de de durante um mês não ter conseguido escrever nem uma página. No epigrama,
também o causídico surge entre um elenco de notáveis, representantes de Roma,
que lêem o poeta e o admiram, o louvam, dele usufruem, por um novo livrinho de
versos ansiosamente esperam: o viandante, o titular da ordem equestre, o senador,
o poeta33.
28 
É inevitável pensarmos no epigrama IV, 8. As diferenças, no entanto, são muitas. Aqui, apenas se referem as horas
primeira, quinta e décima e o vocabulário acentua o carácter penoso das actividades que é obrigado a empreender, as
únicas descritas. O essencial da mensagem é, porém, o mesmo. Ele gostava de se dedicar ao otium de escrever poesia e
de não ter necessidade de perguntar, como o faz no final: Fiet quando, Potite, liber?
29 
Mais uma vez o nome parece ter sido escolhido intencionalmente e com valor simbólico. O diminutivo sugere que o
poder não será tão grande como parece ou pelo menos é desprestigiante.
30 
Diminutivo que significará pouco trabalhador.
31 
Uso a expressão de Delfim Ferreira Leão, que assim traduziu um expressivo togatulorum (Epigramas, Vol. IV, 80).
A nota adstrita a este passo remete para outros poemas, onde encontramos um sintagma não menos vivo, grex togatus,
u.g. em II, 57.
32 
Os defeitos deste patrono são invectivados em outros poemas, u.g. XII, 36 (Cf. Maria Cristina Pimentel, o. c., p.
285).
33 
Neste caso, não é legítimo atribuir ao termo causidicus conotação negativa.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 135


Fernando Lemos

Marcial utiliza apenas uma vez o lexema aduocatus em X, 87, um interessante


epigrama, 20 falécios para se congratular com o aniversário natalício do célebre e
facundo Restituto, amigo, protector, personalidade real, que terá merecido igual-
mente a admiração e os louvores de Plínio34. São razões de ofício que aduz para
fundamentar a aqui transparente benevolência, quase sempre arredia deste tipo de
poesia. Trata-se de um profissional experto e polivalente, capaz de defender os inte-
resses económicos de comerciantes, antiquários, empresas de pesca e caça, compe-
tente para minorar a pena de quem se deixou levar pelo excesso de bebida e prota-
gonizou injustas cenas de pugilato, idóneo para pôr a descoberto as artimanhas de
peritos no assédio de frágeis donzelas.
Com uma estrutura simples, a parataxe estende-se ao longo dos primeiros 18
versos e, associada ao uso apenas do conjuntivo optativo ou do imperativo, é expres-
sivamente exacta para, com o efeito acumulativo (vv. 8-18) de prendas requintadas,
magníficas ou preciosas35, manifestar os seus parabéns e votos de felicidade; antes
tinha enunciado a data e motivo da festa e, em três versos, mencionara algumas das
ofertas adequadas às Saturnais mas de todo impróprias para tão ilustre senhor.
Estrutura os dois últimos versos, introduzidos por uma oração condicional a
pedir consentimento ao homenageado, uma interrogativa directa; o nome do ani-
versariante interpelado aparece em vocativo, no meio do último verso, em posição
destacada também pela cesura. Tudo está orientado para um final que se distingue
e onde o autor privilegia a sua própria oferta, precisamente o poema acabado de
compor e que enviará – a primeira palavra do último verso é o particípio futuro
missurum – a Restituto.
Um outro caso parecido, mais sintomático por dele outras fontes, nomeada-
mente Plínio e Tácito, nos fazerem um retrato de todo desfavorável, é o de Régulo.
Tratando-se de um patrono que o favoreceu, Marcial abdica do necessário espírito
crítico para apresentar os defeitos, e dele, em 12 poemas36, traça um retrato idealiza-
do. Em Régulo, como está patente, u.g. no epigrama I, 111, superabundam todas as
qualidades (sabedoria, piedade, engenho, competência profissional) que dele fazem
um exemplo de virtudes, digno da protecção divina e do reconhecimento público
expresso em poemas congratulatórios e na oferta de incenso. Nos dois últimos epi-
gramas que lhe dedica37, Marcial já marca algum afastamento, mas a crítica é leve:
em VII, 16, fica pela queixa de que, na falta de dinheiro para se sustentar, tem de
vender os presentes que Régulo outrora lhe oferecera.
Após este percurso pelos epigramas onde está presente algum dos termos que

34 
Cf. Maria Cristina Pimentel, o. c., p. 51.
Ao valor material das sardónicas junta-se a minúcia de serem entregues pessoalmente pela donzela, pormenor intro-
35 

duzido no meio do verso com uma adversativa: sed ipsa tradat.


36 
Livro I: 12, 82, 111; Livro II: 74, 93; Livro IV: 16; Livro V: 10, 21, 28, 63; Livro VI: 38, 64. Acerca desta personali-
dade, é imprescindível consultar Maria Cristina Pimentel, o.c., pp. 30-33; no Índice da Tese indicam-se outros passos
em que o nome é referido.
37 
Livro VII: 16, 31.

136 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Causídico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial

nomeiam a actividade de advogado e que espero nem tenha sido fastidioso nem
tirado a vontade de ler Marcial, estaremos mais habilitados a responder à pergunta
formulada no início?
É certo que Marcial não nos apresenta o mundo dos tribunais e a função da-
queles que nele representam os cidadãos, sob uma única luz, e a distinção não é
demarcada pelo uso de algum dos termos: causidicus não tem sempre, como em
Cícero e porventura em outros autores38, conotação negativa. Sem dúvida é esta que
predomina e o poeta compraz-se em acentuar que nunca optará por uma actividade
de explorador do próximo, por muito lucrativa que se apresente.
Há outros ofícios muito mais rendosos, incompatíveis com o seu estatuto social,
mas entre os que implicam preparação intelectual e ele, teoricamente, admite a hi-
pótese de desempenhar, o de advogado proporcionará ocasião de melhores regalias
do que o de retor ou gramático, precisamente o que acontece com amigos seus, aos
quais não assaca os defeitos tópicos da profissão, antes os adula devotamente. Deste
modo, justifica-se que apresente o causídico como seu inimigo principal, enquan-
to paradigma do negotium, ao qual se opõe o seu ideal de ócio literário. A opção
dilacerá-lo-á, repetirá que não é suficientemente recompensado pela sua actividade
literária e acabará por convencer-se de que os contemporâneos, apesar de todos os
esforços e empenhos, nunca virão a reconhecer-lhe mérito e, muito menos, o génio.
Teve de esperar, como na grande maioria dos artistas, pela fama post mortem, como
ele mesmo, de certo modo contrariado, acabou por aceitar: cineri gloria sera uenit
– é já tarde que às cinzas a glória chega 39; nesta hipótese, no entanto, dispôs-se a
aguardar por tal momento durante muito tempo: si post fata uenit gloria, non prope-
ro – se a glória só vem depois da morte, não tenho muita pressa 40. A fama não foi
fogo-fátuo, consolidou-se e continuamos hoje a lembrar o poeta: celebrámos este
ano os 1900 anos da sua morte, porfiamos em encantar-nos com a sua aparente
simplicidade, repleta de jogos e enigmas.

38 
Nas Cartas de Plínio não encontramos este termo.
39 
Cf. Marcial, I, 25, 8.
40 
Cf. Marcialsd, V, 10, 12 e Epigramas, vol. II, p. 65.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 137


In eo quod amatur
aut non laboratur aut et labor amatur:
esforço e satisfação no Itinerarium de Egéria

Alexandra de Brito Mariano


U. Algarve
amariano@ualg .pt

Definição do género: o texto de peregrinação


É difícil precisar o que se entende por literatura de viagens, pois é grande a
diversidade de textos que têm como tema a viagem e este género, multiforme por
natureza, abarca tipologias textuais diferenciadas. Podemos encontrar cartas e re-
lações de embaixadores e missionários, textos de cruzadas e de expedições lon-
gínquas, como as dos aventureiros, obras de carácter puramente geográfico, mas
também guias destinados aos viajantes, aos comerciantes e sobretudo aos peregri-
nos.1 Uma vez que o objecto não é idêntico e os leitores não são os mesmos, as
características da redacção vão, necessariamente, variar em função destes factores.
Outras vezes o objectivo do texto poderá ser semelhante. Por exemplo guias e textos
de peregrinação têm em comum o facto de pretenderem constituir-se como teste-
munho útil de uma experiência piedosa: relato da visita aos martyria, os santuários
onde são conservados os testemunhos da vida dos santos, as relíquias dos mártires e
as recordações da vida terrestre de Cristo. Fornecem, portanto, indicações práticas
relativamente aos locais a visitar, aos percursos a tomar, à duração dos trajectos, às
condições de segurança na zona, aos povos que aí habitam e aos seus costumes, por
exemplo. Mas fundamentalmente o que distingue o texto de peregrinação do guia
é a visão pessoal que aí perpassa: é a sua peregrinatio em particular que o viajante
pretende dar a conhecer.
Ora, a importância que a peregrinação foi tendo para os cristãos dos primeiros
séculos da Igreja fez nascer uma grande variedade de textos cuja proficuidade per-
durou muito para além do seu tempo. Conhecem-se inúmeras viagens de visitantes
que por devoção piedosa procuravam os lugares que a tradição definia como santos.
Demandavam a Terra Santa peregrinos vindos da Hispânia, França, Itália, norte de
África, Pérsia, Arménia, Geórgia, etc...
É neste contexto de profundas alterações políticas e sociais, já no final do século
IV, que Egéria iniciará a sua peregrinação à Palestina, viagem que durará três anos

*
Este trabalho tem por base o estudo introdutório que acompanha a nossa tradução portuguesa. Cf. Egéria - Viagem do
Ocidente à Terra Santa, no séc. IV (Itinerarium ad loca sancta) estudo e tradução: Alexandra B. Mariano, texto latino:
Aires A. Nascimento. Lisboa, Colibri,1998.
1 
Jean Richard, Les récits de voyages et de pèlerinages, (Typologie des sources du moyen âge occidental, n.º 38), Brepols,
Turnhout, 1996, pp. 15-52. Não existe referência ao Itinerarium Egeriae porque a Typologie definiu como balizas crono-
lógicas o período de 500 a 1500.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 139


Alexandra de Brito Mariano

o que, só por si, permite adivinhar o carácter determinado da sua autora, pois uma
viagem de tal envergadura exigiria, certamente, a mobilização de meios considerá-
veis, mesmo segundo os padrões da nossa época.

As fontes: Aretinus 405 / Egéria


O Corpus Christianorum no tomo 175 da sua série latina 2 apresenta os vários
Itineraria à Terra Santa até ao séc. VIII. O Itinerarium Burdigalense, que é a pri-
meira relação conhecida deixada por um visitante dos lugares santos da Palestina é,
no entanto, o único do século IV, ou seja, do mesmo período histórico que o Itine-
rário egeriano, que ora nos propomos apresentar, e revela uma única preocupação
do autor: a marcação das distâncias entre as estações (mutationes) onde pára, ou as
cidades que atravessa e os albergues (mansiones) onde passa a noite. Ora, o Itinera-
rium ad loca sancta de Egéria3, ultrapassa a simples nomenclatura topográfica para
assumir uma densidade a que não é alheia a singularidade da sua autora. O texto é o
segundo testemunho escrito de uma peregrinação ao Oriente (viagem empreendida
cerca de 50 anos depois da do peregrino de Bordéus, que já referimos) e o primeiro
que se conhece redigido por uma mulher4.
Descoberto em Arezzo por G. F. Gamurrini em 18845, este manuscrito do séc.
XI (Aretinus 405) não apresenta referência expressa à identidade do autor. Foi recor-
rendo à carta em louvor de Egéria que o eremita galego Valério, no século VII, di-
rigiu aos monges de Bierzo6 que se estabeleceu como certa a autoria do Itinerarium.
Quem era afinal Egéria? A leitura do texto permite vislumbrar uma personalidade
piedosa, uma monja, provavelmente até abadessa de uma comunidade religiosa.
2 
CCL, Turnhout, 1965. Além do Itinerarium Egeriae, referem-se o da autoria do peregrino de Bordéus (séc. IV); o de
Euquério, De situ Hierusolimae (1.ª metade séc. V); o de Teodósio, De situ Terrae sanctae (sécs. V-VI); o de Antonino
de Placenta (c. 570); o Breuiarius de Hierosolyma (1.ºs decénios do séc. VI); o de Adamnano, De locis sanctis (séc. VII);
o de Beda e de Pedro Diácono, De locis sanctis (séc. VIII).
3 
É este o título do texto preferido ao de Peregrinatio. Tal nome encontra-se referido em três catálogos de manuscritos
da biblioteca de Saint-Martial, em Limoges. Este título deve também depreender-se da expressão Ingerarium Geriae, da
carta de S. Rosendo, texto do século X redigido em nome deste bispo de Mondoñedo. Trata-se da carta de fundação da
abadia de S. Salvador de Celanova (Orense). A. Wilmart («L`Itinerarium Eucheriae», Revue Bénédictine, 25, 1908, pp.
458-467) foi o primeiro a identificar este Ingerarium Geriae com a narrativa da nossa monja. Cf. Pierre Maraval, Égérie:
Journal de voyage (Itinéraire), Paris, 1982, pp. 18; 44; 328-329. (Sources Chrétiennes, n.º 296).
4 
Conhecem-se, é certo, outras damas que teriam empreendido peregrinações ao Oriente. Destacamos, por exemplo,
Melânia-a-Velha viúva de um prefeito de Roma, em 373 (Jerónimo, Epist., 4 – PL, t. 22, col. 336), Paula de uma nobre
família romana e Eustóquio, em 385 (Idem, Epist., 108 – PL, t. 22, col. 878-906) e Poemenia, parente de Teodósio, em
390 (Paládio, Hist. Laus., 35 – PL, t. 74).
5 
A bibliografia mais recente e completa da obra de Egéria é da autoria de M. Starowieyski, «Bibliografia Egeriana»,
Augustinianum, 19, 1979, pp. 297-318 (296 números). Sebastià Janeras acrescentou mais 49 novos títulos à bibliografia
egeriana. Cf. Sebastià Janeras, «Contributo alla bibliografia egeriana», Atti del convegno internazionale sulla “Peregrina-
tio Egeriae” – Nel centenario della publicazione del codex Aretinus 405 (già Aretinus VI, 3), Arezzo, 13-15 Ottobre, 1987,
Arezzo, 1990, pp. 355-366. A primeira edição portuguesa, publicada no Brasil, é da autoria de Maria da Glória Novak,
Peregrinação de Etéria, Petrópolis, 1971; já referimos a mais recento tradução portuguesa no início de nosso artigo.
6 
Epistola beatissime Egerie laude conscripta fratrum Bergidensium monachorum a Valerio conlata. Cf. a edição de M. C.
Díaz y Díaz inserida na obra já citada de Pierre Maraval. Os vários manuscritos desta carta apresentam cinco formas
diferentes para o nome da monja: Egeria; Eiheria; Echeria; Heteria ou Etheria, mas hoje em dia é comumente aceite a
forma Egeria. Para o estudo desta problemática cf. a obra supra, pp. 17 e 327.

140 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


In eo Quod Amatur aut Non Laboratur aut et Labor Amatur

Tal facto pode ser deduzido, segundo informação do próprio texto, pela familia-
ridade com que Egéria refere a diaconisa Martana que teria encontrado na sua
visita a Selêucia e que teria a seu cargo um mosteiro na cidade.7 Mas é sobretudo a
referência explícita a um grupo de mulheres «veneráveis senhoras e irmãs»8, como
frequentemente lhes chama, a quem dirige o seu testemunho escrito que permite
que aceitemos como certa a sua condição de religiosa. Repare-se, por exemplo, no
parágrafo 23, 10: «Deste lugar, senhoras, minha luz, enquanto escrevia isto a Vossa
Caridade, era meu propósito, em nome de Cristo nosso Deus, ir logo à Ásia, isto é,
a Éfeso, para rezar por causa do santuário do santo e bem-aventurado apóstolo João.
Ora, se depois disto estiver ainda no meu corpo, e se puder conhecer outros lugares
contá-lo-ei em presença a Vossa Caridade, se Deus se dignar conceder-mo; ou pelo
menos, se um outro projecto me vier ao espírito, informar-vos-ei por escrito (...).»9.
Provavelmente estas senhoras são companheiras de mosteiro, pois esta proximidade
é reafirmada pela preocupação constante em relatar um conjunto de experiências
de base religiosa. A expressão iuxta Scripturas, que surge logo na abertura do texto -
«[os lugares] eram-nos mostrados seguindo as Escrituras10;» -, demonstra a vontade
de identificar (manifeste cognoui, 2, 7), por intermédio da visão, e recordar as raízes
históricas bíblicas11.
É a sua piedosa religiosidade (gratia religionis, 19, 5) e uma aguçada curiosidade
que não se envergonha de expor que a motivam a avançar. Atente-se no começo do
parágrafo 16, 3: «Então eu, como sou muito curiosa, comecei a perguntar que vale
era este onde um santo monge tinha feito para si agora um mosteiro, pois de facto
pensava que isto não tinha sido sem razão12.» A sua peregrinação tem, pois, um ob-
jectivo claro: obedecendo a uma inspiração divina (iubente Deo) procura reconhecer
com precisão os lugares que a tradição aceita como sagrados e que circunscreve a

7 
23, 3: Nam inueni ibi aliquam amicissimam michi, et cui omnes in oriente testimonium ferebant uitae ipsius, sancta diaco-
nissa nomine Marthana, quam ego aput Ierusolimam noueram, ubi illa gratia orationis ascenderat; haec autem monasteria
aputactitum seu uirginum regebat. Quae me cum uidisset, quod gaudium illius uel meum esse potuerit, nunquid uel scribere
possum? - «De facto, encontrei ali uma das minhas melhores amigas, a quem todos no Oriente rendiam homenagem
pela sua vida, uma santa diaconisa de nome Martana, que eu tinha conhecido em Jerusalém onde ela tinha subido para
rezar; ora, ela dirigia um mosteiro de apotactitas e de virgens. Quando me viu, que alegria para ela e para mim! Como
poderei descrevê-la?»
8 
3, 8: dominae uenerabiles sorores. Cf. também os parágrafos 19, 19; 20, 5; 23, 10; 46, 1 e 46, 4.
9 
De quo loco, domnae, lumen meum, cum haec ad uestram affectionem darem, iam propositi erat in nomine Christi Dei
nostri ad Asiam accedendi, id est Efesum, propter martyrium sancti et beati apostoli Iohannis gratia orationis. Si autem et post
hoc in corpo fuero, si qua preterea loca cognoscere potuero, aut ipsa presens, si Deus fuerit prestare dignatus, uestrae affectioni
referam aut certe, si aliud animo sederit, scriptis nuntiabo. (...).
10 
1, 1: ...ostendebantur iuxta Scripturas. Cf. 7, 2: singula loca, quae semper ego iuxta Scripturas requirebam; «(...) todos
os lugares, que eu procurava sempre seguindo as Escrituras;» e 5, 12: omnia loca quae ego semper iuxta Scripturas requi-
rebam, «(...) todos os lugares, que eu procurava ver sempre seguindo as Sagradas Escrituras;». Repare-se como Egéria
recorre ao pronome ego para marcar de forma incisiva o forte desejo que preside à procura.
11 
A expressão é de Remo Gelsomino. Cf. Remo Gelsomino, «Egeria, 381-384 d. C: dalle radici romane alle radici
bibliche», Atti del convegno internazionale ..., pp. 245; 281.
Tunc ego, ut sum satis curiosa, requirere cepi, quae esset haec uallis ubi sanctus monachus nunc monasterium sibi fecisset;
12 

non enim putabam hoc sine causa esse.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 141


Alexandra de Brito Mariano

uma área geográfica bem definida. Desloca-se de Bíblia na mão,13 de lugar em lu-
gar, e sempre que faz uma paragem solicita que lhe seja lido o passo das Escrituras
a que o local faz memória.

Enquadramento geográfico e temporal


A viagem decorreu de 381 a 384, porém apenas temos acesso ao relato dos
últimos seis a sete meses, pois o Itinerário apresenta-se incompleto, faltando-lhe o
início, até ao Sinai, e o fim, a partir de Constantinopla. A viagem durou, portanto,
três anos, conforme refere no seu testemunho: «Em seguida, em nome de Deus,
passado algum tempo, como havia já três anos completos que eu tinha chegado a
Jerusalém e tinham sido vistos também todos os lugares santos aos quais me des-
locara para rezar, e tendo já por isso a intenção de voltar à pátria, quis também,
por vontade de Deus, ir à Mesopotâmia da Síria, para ver os santos monges, que se
dizia serem ali muito numerosos e de vida tão admirável que apenas a custo pode
ser referida. (...)»14.

Aspectos linguísticos: a origem hispânica?


É provável que Egéria tenha iniciado a sua viagem a partir da Galécia que com-
preendia o conuentus de Bracara e tinha esta cidade como capital de província, já
no século IV. O facto de utilizar um discurso onde se podem distinguir alguns usos
linguísticos próprios da região noroeste da Península tem permitido que alguns
estudiosos a considerem de origem hispânica15.
O estudo das peculiariedades hispânicas do texto remonta ao século passado
a trabalhos de Hübner16, Férotin17 e mais recentemente de Agustín Arce18, Väänä-
nen19 e, no caso português, de José Geraldes Freire20 e Aires A. Nascimento.
Väänänen referiu a expressão tam magnum = tantum como equivalente ao por-
13 
J. Ziegler demonstrou que Egéria trazia consigo livros que a ajudavam na viagem: em primeiro lugar a Bíblia, mas
também o Onomasticon, de Eusébio, traduzido por Jerónimo. (Z. Ziegler, «Die Peregrinatio Aetheriae und das Ono-
mastikon des Eusebius» e «Die Peregrinatio Aetheriae und die Hl. Schrift», Biblica, 12, 1931, pp. 70-84; 162-198.) Cf.
P. Maraval, Lieux saints et pèlerinages d`orient, Paris, Les Éditions du Cerf, 1985, p. 14.
14 
17, 1: Item in nomine Dei, transacto aliquanto tempore, cum iam tres anni pleni essent, a quo in Ierusolimam uenisse,
uisis etiam omnibus locis sanctis, ad quos orationis gratia me tenderam, et ideo iam reuertendi ad patriam animus esse: uolui,
iubente Deo, ut et ad Mesopotamiam Syria accedere ad uisendos sanctos monachos, qui ibi plurimi et tam eximiae uitae esse
dicebantur, ut uix possi referri; (...).
15 
Outros autores sustentam opinião diferente. Gamurrini considerou-a originária da Gália Narbonense e K. Meister da
Gália Meridional. Maraval, no entanto, considera que não é possível comprovar a origem de Egéria recorrendo às fontes
e à análise linguística do texto. No seu entender a questão fica em aberto (cf. P. Maraval, op. cit., 1982, pp. 19-21).
16 
E. Hübner, Inscript. christ. lat. Hispaniae, 1871, n. 103.
17 
M. Férotin, Recuil des chartes de l`abbaye de Silos, Paris, 1897, pp. 28; 165; 234; 278; 341.
A. Arce, Itinerario de la virgen Egeria (381-384), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1980, p. 52 (=BAC,
18 

416).
19 
V. Väänänen, «I due livelli del linguaggio orale nell`”Itinerarium Egeriae”», Atti del convegno internazionale..., p.
162.
20 
J. G. Freire, «Três notas sobre a origem de Egéria: accedere, collum, pullus.», Separata do colóquio sobre o ensino do
latim, Lisboa, 1987, pp. 273-282.

142 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


In eo Quod Amatur aut Non Laboratur aut et Labor Amatur

tuguês «tamanho»; Freire apontou três momentos do Itinerário onde estão docu-
mentados usos do português: o passo do parágrafo 12, 3 onde o verbo accedere
surge em correspondência ao português «aceder»; a expressão in collo (em 31, 3)
com o valor de «ter ao colo», ou ainda, o vocábulo pullus (recorde-se a expressão
ante pullorum cantus, 24, 1) cuja permanência seria visível em alguns derivados por-
tugueses, como por exemplo a palavra «poleiro».
Aires A. Nascimento21, destacou ainda outras ocorrências que podem atestar
aproximações aos usos do português. Recordemos algumas. O termo loco deve ser
entendido em alguns passos na acepção de advérbio de tempo «logo», cf. 24, 8: «na
basílica que está logo junto da Anástase»22, e 46, 1: «estão logo, mesmo logo, os
padrinhos e as madrinhas»23. Também o verbo mittere pode traduzir-se, em dois
exemplos, num português de registo informal, por «meter»; tal sucede nos pará-
grafos 3, 8 e 9, 3: «meter a Alexandria;» e «mete da Tebaida a Pelúsio», respectiva-
mente.24 Quanto à expressão portuguesa «tudo a direito» é possível encontrar uma
correspondente no passo totum ad directum (3, 1).
O elenco das ocorrências latinas que remetem, quase automaticamente, para
vocábulos e expressões portuguesas compreende, ainda, a palavra pisinno/a, subs-
tituta de paruus na língua popular, a lembrar o adjectivo «pequeno/a», no grau
diminutivo: Ipse autem sanctus episcopus ex monacho est nam a pisinno in monasterio
nutritus est - «Quanto àquele bispo ele vem de monge; na realidade, desde pequeni-
no foi criado no mosteiro» (9, 2); e In eo ergo loco ecclesia est pisinna - «Neste lugar,
há uma igreja pequenina» (10, 9); a locução verbal facientes aquam (= aquari) e o
vocábulo foras, avançamos nós, não são estranhas se pensarmos no português «fazer
aguada» e «fora».
A espontaneidade e coloquialidade do texto deriva, certamente, do seu carácter
epistolar. Este formato epistolar é marcadamente notório no texto pela referência
expressa às dominae, irmãs companheiras de mosteiro, para quem endossa a sua
relação de viagem, como anteriormente já referimos. Os termos afectuosos com
que se lhes dirige – uenerabiles, animae meae/lumen meum, uestra affectionem - são
próprios de uma cultura eminentemente cristã 25 evidenciando a postura de piedosa
humildade da monja e são apenas um magro exemplo do vocabulário cristão que
abunda no Itinerarium. Os verbos declarativos, tais como referam (10 ocorrências26)
e nuntiabo (1 oc.), acentuam a ligação entre a narradora e as suas correspondentes,
mas muitos outros, como aio (171 oc.), dico (171 oc.) e requiro (11 oc.), por exemplo,
21 
Aires A. Nascimento, «V. Väänanën, Le Journal-Épître d`Égérie (Itinerarium Egeriae). Étude linguistique», Revista
Euphrosyne, 16, Lisboa, 1988, p. 438. Apresentamos, para as diferentes atestações, a tradução do autor.
22 
in basilica, quae est loco iuxta Anastasim (...).
23 
stant etiam loco patres uel matres(...).
24 
Cf.: Egyptum autem et Palestinam et mare Rubrum et mare illut Parthenicum, quod mittit Alexandriam (3, 8) e quod
transiebat per Arabiam ciuitatem, id est quod mittit de Thebaida in Pelusio (9, 3).
25 
Cf. P. Maraval, op. cit., 1982, p. 54.
26 
Seguiu-se a concordância lematizada elaborada pela equipa do Projecto VERLAME (JNICT).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 143


Alexandra de Brito Mariano

que são empregues em várias situações demonstram o forte desejo de procura e im-
primem uma coloquialidade espontânea ao texto, marca de um estilo próprio que
parece radicar na linguagem falada. É a coloração vulgar do latim da peregrina para
que Prinz27, Díaz y Díaz28, e mais recentemente P. Maraval29, chamaram a atenção.
Esta coloquialidade é também acentuada pelo recurso a repetições de vocábulos;
de pronomes demonstrativos; de partículas (em especial nam, autem e ergo); aos
pleonasmos (do tipo ita...ita; tam...tam, etc.); à utilização de expressões de valor
superlativo, de diminutivos ou restritivos (tais como ingens, ualde, satis.30).
Tratando-se de um relato de viagem, o vocabulário empregue pela narradora
acusa necessariamente essa progressão espácio-temporal que é evidenciada na pri-
meira parte da narrativa pelo recurso a verbos de movimento como ascendere (3, 1;
11, 4), descendere (3, 2; 7, 7; 16, 5; 20, 5; 36, 2), ambulare (4, 5), exire (4, 6), mouere
(16, 5), accedere (20,1), ire (25, 6; 44, 3), reuertere (19, 3), etc.
A visão ocupa, igualmente, um papel de destaque enquanto meio priviligiado
de captação do real que transparece ao nível das escolhas vocabulares A tal facto
não é alheia a circunstância da monja entender a viagem enquanto trajecto de enri-
quecimento e aprendizagem e de desvendamento e revelação para si e para todos os
que partilham da sua experiência. Assim ela vê o local sagrado e em seguida recor-
da a circunstância que aí ocorreu ou a personalidade que o distingue recorrendo à
oração e à leitura de codice31 que funcionam como rituais de ligação entre o mundo
físico captado visualmente e a sua contrapartida espiritual. Esta fidelidade ao real,
assegurada pela confirmação visual, é explicitada pelo recurso a dois verbos preferi-
dos, os verbos uideo (73/3 oc.) e ostendo (55 oc.). O primeiro distingue os momentos
em que a peregrina é a primeira a captar e descrever o que a motiva, enquanto que
o verbo ostendo é empregue nas situações em que ela beneficia e recebe apoio das
pessoas com quem se relaciona, normalmente monges a quem qualifica de santos.
A originalidade do relato não se esgota no estilo ou nas escolhas lexicais. A sin-
taxe do texto também é precursora. Com efeito, um dos traços mais característicos
da narrativa diz respeito à ordem das palavras na frase. Esta, apesar de livre, revela
uma notória tendência sujeito-verbo-objecto - (S)VO -, que é típica das línguas
românicas32.

27 
O. Prinz, Itinerarium Egeriae, Heidelberg, 1960, p. V.
28 
M. C. Díaz y Díaz, Antología del latin vulgar, Madrid, Gredos, 1962, p. 79.
29 
P. Maraval, op. cit., 1982, p. 52.
30 
Cf. V. Väänänen, Le Journal-Épître d`Égérie (Itinerarium Egeriae). Étude linguistique, Helsinki, 1987.
31 
O vocábulo codex (cf. também 33, 2) era empregue no século IV para designar a Bíblia.
32 
V. Väänänen, op. cit., p. 106.

144 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


In eo Quod Amatur aut Non Laboratur aut et Labor Amatur

Itinerários
Ao nível da estrutura a narrativa constrói-se pela articulação entre duas partes
perfeitamente distintas. A primeira (parágrafos 1 a 23), que contempla o relato das
viagens, os encontros com monges e bispos, a enumeração dos espaços percorridos e
visitados, as referências ao tempo gasto em cada trajecto; e a segunda (24 a 49), onde
se procura descrever com grande pormenor a liturgia de Jerusalém e cujo objectivo
está claramente definido nas palavras de abertura do parágrafo 24: «Ora, para que
Vossa Caridade saiba que ofícios têm lugar cada dia nos lugares santos, julguei de-
ver dar-vos disso conhecimento, sabendo que teríeis gosto em conhecê-los.33»
A narrativa torna-se coesa pela complementaridade entre estes dois grandes blo-
cos. O primeiro é fortemente sustentado pela noção de espaço, porque corresponde
ao registo das impressões que o percurso de visita a locais de interesse religioso sus-
citou; o outro é dominado, genericamente, pela componente temporal, porquanto
se assume como descrição detalhada de cerimónias litúrgicas compreendidas num
calendário determinado.
Num é notória a tentativa pedagógica de recuperação de um conhecimento
religioso comum que parte dos textos sagrados, pela verificação do seu contraponto
real, veja-se a viagem ao Sinai, a visita ao túmulo de Job; com o outro procura-se
alargar esse saber, através de referências específicas aos ofícios sagrados da Cidade
Santa, recordemos, a título de exemplo, as cerimónias da festa da Epifania ou a
descrição das festas Pascais.
A primeira parte da narrativa que contempla as viagens desenvolve-se assente
em quatro macro-sequências ou agrupamentos de parágrafos a que chamaremos
itinerários (I), cujo espaço dominante, ponto de partida e de retorno, é Jerusalém,
excepto na última sequência que coincide com o regresso à pátria (cf. 17, 1).
O I 1 compreende o percurso até ao Sinai (1 - 9); o I 2 a visita ao monte Nebo
(10 - 12); o I 3 a ida à terra de Job (13 - 16); e o I 4 a viagem à Mesopotâmia (17
- 23)34. Ao nível do discurso, estas macro-sequências são demarcadas entre si por
frases introdutórias de conteúdo e estrutura similar permitindo a diferenciação en-
tre as várias viagens nucleares, mas criando também uma uniformização e coesão
ao nível da estrutura interna do texto35.
A estes quatro itinerários subjaz uma articulação encadeada de micro-sequên-
cias, os capítulos, de maior ou menor extensão, que permitem acompanhar com mi-
33 
Vt autem sciret affectio uestra, quae operatio singulis diebus cotidie in locis sanctis habeatur, certas uos facere debui, sciens
quia libenter haberetis haec cognoscere.
34 
Discordamos, neste ponto, da proposta de Hélène Pétré (Éthérie - Journal de voyage, Paris, 1948, p. 27. = Sources
Chrétiennes, n.º 21) relativamente à definição do capítulo que marca o início da última sequência.
35 
Cf. 10, 1: «Em seguida, passado algum tempo, e por vontade de Deus, houve novo intento de ir até à Arábia, isto é, até
ao monte Nebo» - Item transacto aliquanto tempore et iubente Deo fuit denuo uoluntas accedendi usque ad Arabiam, id est
ad montem Nabau; 13, 1: «Em seguida, após algum tempo, quis ir também ao país de Ausítis (...)» - Item post aliquantum
tempus uolui etiam ad regionem Ausitidem accedere e 17, 1: «Em seguida, em nome de Deus, passado algum tempo, (...)
quis também, por vontade de Deus, ir à Mesopotâmia da Síria (...)» - Item in nomine Dei, transacto aliquanto tempore (...)
uolui, iubente Deo, ut et ad Mesopotamiam Syria accedere. Não temos a introdução à primeira grande sequência, porque
a parte inicial da Peregrinatio não chegou até nós; o texto apresenta lacunas no início e no fim.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 145


Alexandra de Brito Mariano

núcia a progressão no espaço. Por exemplo, a descrição do vale do Sinai (capítulos


2, 1 a 2, 7), a subida ao monte de Deus (3, 1 a 3, 8), a descida para o vale (4, 1 a 4,
8), a travessia do vale (5, 1 a 5, 12) - e assim sucessivamente.
Podemos demarcar três grupos distintos de locais a que Egéria se desloca para
prestar a sua devoção: 1. aqueles a que se liga a recordação dos homens e aconte-
cimentos do Antigo Testamento (I 1 a 4); 2. os que são memoria36 ou martyria de
santos cristãos a que o Novo Testamento faz referência (exclusivamente I 4), por
exemplo o santuário de S. Tomé em Edessa (17, 1), o do monge Helpídio em Carra
(20, 5), o de S.ta Tecla em Selêucia da Isáuria (23, 2) e o de S.ta Eufémia na Calce-
dónia (23, 7); 3. finalmente os locais que relembram os mistérios da vida de Cristo,
em particular a paixão, a ressurreição e a ascensão. Referimo-nos ao conjunto das
construções Martyrium, Crux e Anástase37, aos santuários do monte das Oliveiras
(Imbomon, Eléona e Getsémani38) e à igreja de Sião39 - lugares que são descritos na
2.ª parte da narrativa40.

O valor do testemunho
Para além do seu valor literário e linguístico, o Itinerário é um texto fundamen-
tal do ponto de vista histórico-cultural. Quem pretendesse encetar uma viagem aos
lugares santos encontraria nele, certamente, um conjunto de informações que ultra-
passariam a esfera religiosa. Indicações que lhe facilitariam a viagem, já o dissemos,
e referências a aspectos linguísticos, geográficos e etnográficos que permitiriam o
conhecimento de algumas particularidades regionais ou da situção política na zona
à época.
Veja-se, por exemplo, a descrição que faz dos faranitas suscitada pela viagem
empreendida de Farã a Jerusalém – que decorreu de 21 de Dezembro de 383 a 1
de Fevereiro de 384. Como nos diz Egéria, eles teriam desenvolvido um original
sistema de orientação no deserto: «Ora, os faranitas, que costumam caminhar por
ali com os seus camelos, colocam sinais de lugar em lugar e através destes sinais se
guiam e assim circulam durante o dia, ao passo que de noite são os camelos que se
guiam pelos sinais. E que dizer? Graças a este costume, os faranitas já caminham
de noite com mais certeza e segurança neste lugar do que qualquer homem pode

P. Maraval destaca que é no Itinerarium Egeriae que se encontra atestado pela primeira vez este vocábulo e sublinha a
36 

sua função comemorativa. (P. Maraval, op. cit., 1985, p. 194.)


37 
Situada a oeste da ábside do Martyrium, aí se encontra o túmulo de Cristo e se comemora a Ressurreição.
38 
No Imbomon recorda-se a Ascensão de Cristo; em Eléona a reunião de Jesus com os apóstolos e em Getsémani a
última noite de Cristo e a traição de Judas.
A igreja de Sião onde está a coluna da flagelação e onde se relembra a descida do Espírito Santo é o sítio mais impor-
39 

tante de Jerusalém, a seguir à Anástase.


40 
Outros lugares anotados por Egéria encontram-se mais distantes de Jerusalém. Referimo-nos ao Lazário - local onde
se encontra o túmulo de Lázaro e que comemora a sua ressurreição -, situado a uma certa distância da cidade - «(...) a
cerca de mil e quinhentos passos de Jerusalém (...)» (25, 11); «a cerca de duas milhas da cidade» (29, 3) -, e a basílica da
Natividade em Belém, «em que está a gruta onde nasceu o Senhor», onde se relembra o nascimento de Cristo.

146 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


In eo Quod Amatur aut Non Laboratur aut et Labor Amatur

caminhar naqueles lugares onde existe uma estrada aberta.41». Também os isáurios
merecem a sua atenção quando chega a Selêucia na província de Isáuria em Maio
de 384. Segundo a autora, este povo que habitava as montanhas do Tauro era co-
nhecido pelas suas incursões e pilhagens: «Mas para voltar ao assunto, há, pois, uma
grande quantidade de mosteiros42 ali sobre esta colina e, no meio, um muro grande
que circunda a igreja onde está o santuário; este santuário é muito belo. Por outra
parte, quanto ao muro foi ele construído para guardar a igreja dos isáurios, que são
bastante maldosos e que frequentemente se dedicam à pilhagem, não fossem tentar
qualquer acção próximo do mosteiro que está ali para servir a igreja.».43 Recorde-
mos ainda a alusão ao estabelecimento de fortes e postos de soldados e oficiais que
zelariam pela manutenção da ordem em percursos instáveis, como por exemplo o
trajecto entre Clisma e a cidade de Arábia, que a monja teria efectuado de 2 a 5
de Janeiro de 384: «Há, pois, de Clisma, isto é, do mar Vermelho até à cidade da
Arábia quatro etapas pelo deserto; contudo pelo deserto em cada etapa existem
postos de soldados e oficiais que nos escoltavam sempre de um forte a outro forte.
Neste itinerário, pois, os santos que estavam connosco, isto é, os clérigos e monges,
mostravam-nos todos os lugares, que eu procurava sempre seguindo as Escrituras;
de facto, uns ficavam à esquerda, outros à direita do nosso itinerário, uns mais longe
do caminho, outros mais perto.»44.
Com efeito, as viagens na época implicavam dificuldades acrescidas, pela in-
segurança geral45, pela pouca comodidade, pela lentidão dos meios de transporte,
pela dificuldade extrema de alguns percursos. Gregório de Nissa, escritor contem-
porâneo de Egéria faz-nos o seguinte retrato: «Uma mulher não pode empreender
uma viagem tão longa sem ter com ela alguém para a proteger; a debilidade natural

41 
Cf. 6, 2: Faranite autem, qui ibi consueuerunt ambulare cum camelis suis, signa sibi locis et locis ponent, ad quae signa se
tendent et sic ambulant per diem. Nocte autem signa cameli attendunt. Et quid plura? Diligentius et securius iam in eo loco
ex consuetudine Faranitae ambulant nocte quam aliqui hominum ambulare potest in his locis, ubi uia aperta est.
Recordem-se, a título de exemplo, os mosteiros fundados por Melânia-a-Velha e Rufino, em Jerusalém no século IV
42 

(Paládio, Hist. laus., 46, 5 - PL, t. 74), e de Paula e S. Jerónimo em Belém (Jerónimo, Epist., 66, 14; 108, 14).
43 
Cf. 23, 4: Sed ut redeam ad rem, monasteria ergo plurima sunt ibi per ipsum collem et in medio murus ingens, qui includet
ecclesiam, in qua est martyrium, quod martyrium satis pulchrum est. Propterea autem murus missus est ad custodiendam
ecclesiam propter Hisauros, quia satis mali sunt et frequenter latrunculantur, ne forte conentur aliquid facere circa monaste-
rium, quod ibi est deputatum.
44 
7, 2: Sunt ergo a Clesma, id est a mare Rubro, usque ad Arabiam ciuitatem mansiones quattuor per heremo, sic tamen per
heremum, ut cata mansiones monasteria sint cum militibus et propositis, qui nos deducebant semper de castro ad castrum.
In ergo itinere sancti, qui nobiscum errant, hoc est clerici uel monachi, ostendebant nobis singula loca, quae semper ego
iuxta Scripturas requirebam; nam alia in sinistro, alia in dextro de itinere nobis errant, alia etiam longius de uia, alia in
proximo.
45 
Havia no entanto zonas mais seguras onde não era necessário recorrer, por exemplo, à escolta de soldados. Tal sucedeu
na passagem, efectuada por Egéria em Fevereiro de 384, da cidade de Arábia até Jerusalém (cf. 9, 3): «Ora, a partir dali
nós dispensámos os soldados que nos haviam prestado ajuda em nome da autoridade romana, durante o tempo em que
tínhamos andado por regiões pouco seguras; agora, porém, como era a via pública do Egipto que atravessava a cidade de
Arábia, isto é, aquela que vai da Tebaida a Pelúsio, a verdade é que já não era necessário incomodar os soldados.» - Nos
autem inde iam remisimus milites, qui nobis pro disciplina Romana auxilia prebuerant, quandiu per loca suspecta ambulaue-
ramus; iam autem, quoniam ager publicum erat per Egyptum, quod transiebatur per Arabiam ciuitatem, id est quod mittit
de Thebaida in Pelusio, et ideo iam non fuit necesse uexare milites.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 147


Alexandra de Brito Mariano

do seu sexo exige que a ajudem a subir para a sua montada, que a ajudem a descer.
É preciso necessariamente que a amparem nos percursos difíceis. Quer se trate de
um amigo ou de um mercenário que lhe preste os seus serviços, ela não conseguirá
evitar a censura; e se se entregar ao estrangeiro ou ao servidor, ela violará as leis de
castidade.» 46
No entanto é com felicidade e satisfação que a monja suporta as provações da
longa viagem. Recordemos as dificuldades da subida ao monte Sinai: «Assim, pois,
por vontade de Cristo nosso Deus, ajudada pelas preces dos santos que me acompa-
nhavam e com um grande esforço, porque era preciso subir a pé, pois não se podia
de todo subir em sela, a verdade é que este esforço não se sentia, por aquela parte;
de facto, não se sentia o esforço, porque o desejo que eu tinha via-o realizar-se, por
vontade de Deus; (...)»47 e a viagem ao túmulo de Job: «Em seguida, após algum
tempo, quis ir também ao país de Ausítis, para visitar o túmulo do bem-aventurado
Job e aí rezar. Via, com efeito, muitos monges que vinham dali para Jerusalém para
visitar os lugares santos e rezar; ao falarem pormenorizadamente daqueles lugares
criaram em mim um maior desejo de me impor o esforço de ir também até àque-
les lugares, se é que se pode falar em esforço quando uma pessoa vê o seu intento
realizar-se.»48
Todos estes elementos permitem imaginar uma mulher a quem a devoção enche
de coragem, que procurou através da peregrinação, e da leitura e oração, reviver e
recuperar, para si e para outros, um conhecimento que se fixa nas Escrituras. O
modo como Egéria nos relata as suas experiências, a curiosidade e a vivacidade
simpática que imprime ao seu relato deixam depreender, igualmente, os contornos
de uma abertura de espírito ao exotismo e às diferenças de usos e costumes estran-
geiros. É este maravilhamento perante o que vê e ouve, não apenas o que já conhece
e pretende confirmar mas também o que lhe é desconhecido, passado para a escrita
de uma forma singela a que não é alheia a sua condição de religiosa que torna a sua
relação de viagem um testemunho singular. O Itinerarium da monja Egéria é, pois,
uma representação do mundo mas, como qualquer relato de viagem, é fundamen-
talmente um testemunho sobre ela própria.

46 
ΠΕΡΙ ΤΩΝ ΑΠΙΟΝΤΩΝ ΕΙΣ ΙΕΡΟΣΟΛΥΜΑ
3, 2: Hac sic ergo iubente Christo Deo nostro, adiuta orationibus sanctorum, qui comitabantur, et sic cum grandi labore,
47 

quia pedibus me ascendere necesse erat, quia prorsus nec in sella ascendi poterat, tamen ipse labor non sentiebatur ex ea parte
autem non sentiebatur labor, quia desiderium, quod habebam, iubente Deo uidebam compleri (...).
48 
13, 1: Item post aliquantum tempus uolui etiam ad regionem Ausitidem accedere propter uisendam memoriam sancti Iob
gratia orationis. Multos enim sanctos monachos uidebam inde uenientes in Ierusolimam ad uisenda loca sancta gratia ora-
tionis, qui singula referentes de eisdem locis fecerunt magis desiderium imponendi michi laboris, ut etiam usque ad illa loca
accederem, si tamen labor dici potest, ubi homo desiderium suum compleri uidet.

148 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo justo frente a lo legal
María José Martín Velasco
U. Santiago de Compostela
lgchevip@usc.es

E n el libro primero de la Retórica al hablar sobre el tratamiento de la ley como


prueba inartística (1375a28-29), contrapone Aristóteles Ley común, Equidad y
Justicia a Ley escrita1 y sugiere a los oradores modos de argumentar que se apoyen
en la ley escrita cuando esta está a su favor y otros que disminuyan su valor cuando
esta les es contraria.
El consejo no parece haber sido seguido por los oradores en los discursos foren-
ses, que si bien recurren continuamente a los argumentos basados en la ley escrita,
nunca aconsejan explícitamente recurrir a la ley natural y a la equidad, ni apelan a
la justicia en abstracto en lugar de a la ley escrita. Lo justo es, al menos de manera
explícita, lo conforme a la ley. Una actitud distinta a la de exaltar y defender las
leyes supondría para el orador una merma en su credibilidad y proporcionaría al
adversario un punto vulnerable por donde atacar. Por el contrario el orador suele
definirse a sí mismo como seguidor de la ley y a su oponente como trasgresor2.
Sin embargo sí que encontramos algunos pasajes en los que los oradores pa-
recen admitir de modo implícito la posibilidad de que la ley escrita sea, al menos
parcialmente, errónea o errónea para una situación concreta y deba pasarse por alto
para que sea justa la decisión que estamos tratando, sin que ello implique que la ley
escrita sea errónea en su conjunto.
Una interpretación muy acertada es la de Mirhady3 que propone identificar
los conceptos de divkaion y sumfevron respectivamente con los de ejpieikev y koinon
novmon y considerar los argumentos a favor de estos dos conceptos frente a la ley
escrita, que si que se encuentran en los oradores, como la transformación de una
discusión forense en una extralegal y semipolítica en la que los jueces asumen el
papel de legisladores. Aristóteles probablemente lo que hace es reconocer que en
algunos casos uno de los dos litigantes intenta persuadir a los jueces no solo de que
decidan los hechos del caso como jueces sino de que evalúen la validez de la ley
como legisladores.
A partir de estos presupuestos, nos proponemos en este estudio revisar la argu-
mentación basada en la ley de un discurso completo, el Contra Androción de De-

1 
Arist. Rh 1375a28-29
       

Está claro que si la ley escrita es contraria al caso, se debe recurrir a la ley común y a argumentos de mayor equidad y
justicia.
2 
Hay continuos ejemplos de esto. Cf. entre otros D 39, 41; Aischin 3.8 y Lys 10, 32.
3 
MIRHADY, David C., “Aristotle on the Rhetoric of Law”, GRBS 31, 1990, pp. 393-410.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 149


María José Martín Velasco

móstenes, y seleccionar los pasajes que nos parece tienen relación con los consejos de
Aristóteles al tratar sobre el uso de la ley como referente de la justicia y del recurso a
la ley natural y a la equidad. El discurso es una graphe paranómon, una acusación de
ilegalidad, con la que el orador intenta que no siga adelante la propuesta del acusado
de otorgar una corona al Consejo del que él había formado parte, para premiar la
labor llevada a cabo por dicho organismo. La acusación de la ilegalidad de la pro-
puesta se basa en que el Consejo no había cumplido el deber al que estaba obligado
de construir un determinado número de trirremes. El tipo de argumentación que
sigue Demóstenes es el de anticiparse a las posibles objeciones del acusado. En este
sentido anima a los jueces durante todo el discurso a que se limiten a la aplicación
de dicha ley y no presten atención a esas objeciones que, según él, quedan al margen
del asunto. De ahí que, en lo que se refiere a la ley como prueba retórica, Demós-
tenes centre su argumentación en recordar a los jueces el juramento dicástico, en
interpretar el espíritu del legislador, en destacar los beneficios que supone al bien
común el seguimiento de la ley y la adecuación del veredicto a ella y en considerar
la ley un modo de defensa ante oradores que pueden caracterizarse personalmente
por su falta de principios morales. Los pasajes que hacen referencia a todo esto son
los que vamos a analizar, poniéndolos en relación con las afirmaciones de Aristóteles
al respecto.
El juramento dicástico lo pronunciaban todos los que podían actuar como jue-
ces en Atenas, es decir, los ciudadanos varones adultos mayores de 30 años4. Su
fórmula5 incluía el compromiso de juzgar no solo en conformidad con la ley (kata;
tou;" novmou") sino también según la opinión más justa ().
Este juramento, con la mención explícita de la fórmula “según la opinión más justa”
(), suponía para los jueces6 una interpelación a su concien-
cia en lo referente a obligación moral de mantener en su actuación los principios
que guiaron al legislador.
Aristóteles cuando expone los argumentos que deben utilizarse cuando la ley
no está a favor del orador interpreta el significado de dicha fórmula como “que no
hay que servirse con exclusividad de las leyes escritas” 7. Y cuando se refiere a los ar-
gumentos que se apoyan en la ley dice que dicha fórmula “no sirve para pronunciar
sentencias al margen de la ley, sino para que no haya perjurio si es que se desconoce

4 
TOOD S.C., The Shape of Atenian Law, Oxford, 1993, pág. 83.
5 
Cf. Pólux, Onomasti. VIII 10. Se encuentra con frecuencia mencionada en los oradores (D 23, 96-99; 20, 118; Aischin
3, 8 y Lys 10, 32). El texto parece ser el que encontramos en D. 24. 149-51, aunque incompleto. Cf. al respecto Harrison
1968-71: II pág. 48 y Todd 1993, pp. 54-55.
6 
BISCARDY, Arnaldo., “La gnome dikaiotate et l’interpretacion des lois dans la Grèce ancienne”, RIDA 17, 1970, pp
219-232.
7 
Arist., Rh, 1375a29-30
        


150 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo justo frente a lo legal

lo que dice la ley”8. Como ya hemos dicho, no se encuentran en los oradores afir-
maciones del primer tipo, pues mencionar la posibilidad de dictar una sentencia
contraria a la ley escrita, supondría un desprecio a las leyes y, en consecuencia, una
merma de su prestigio, pero sí algunas en que se insta a que la sentencia sea confor-
me a lo justo () omitiendo e ignorando la mención de la ley escrita.
En el discurso que estamos tratando, al final de la introducción, refiriéndose a
la defensa que hará el acusado, Demóstenes exhorta a los jueces a votar de acuerdo
con lo que han jurado y menciona lo justo antes de hacer referencia a las leyes:

“Sé claramente que este no podría decir nada simple, ni justo y que intentará engaña-
ros fingiendo y forjando argumentos malévolos ante cada uno de estos asuntos... en
favor de no que seáis persuadidos a votar lo contrario a lo que habéis jurado, y para
que no dejéis libre a este que es digno de castigo por parte vuestra por muchas cosas,
prestad atención a lo que diga9.

La mención de lo justo y no de las leyes al comienzo del discurso deja abierta a


los jueces la posibilidad de no ceñirse a estas si en el transcurso de la defensa el rival
las utiliza como una prueba retórica más convincente en sentido contrario.
También al comienzo del discurso plantea Demóstenes la posibilidad contraria,
la de que sea el adversario el que base su argumentación en algo distinto a la ley en
la que él se apoya. En este caso recuerda a los jueces la capacidad de oponerse con
razones que califica también de justas. La objección del adversario sería:

Si no he hecho mención de las naves en mi decreto, sino que invoco otras


razones por las que concedo una corona la Consejo, ¿cómo es que os he
presentado una moción al margen de la ley? No os es difícil contestar a esos
argumentos con justas razones10 .

La mención del juramento dicástico adquiere la orientación contraria en el de-


sarrollo del discurso. El orador remarca las consecuencias beneficiosas para el com-
portamiento del pueblo en lo sucesivo de un veredicto que refuerce el valor de la
ley:

8 
Arist., Rh,1375b16-18:        
  
9 
D. 22, 4:               
     
           
   
10 
D. 22, 8:         
     
   

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 151


María José Martín Velasco

Pero si como dice la ley y deben hacer quienes han prestado juramento, se-
vera y sencillamente liquidáis los pretextos y resulta patente que les habéis
privado de la recompensa porque no han construido las naves, todos, varones
atenienses, os entregarán construidos los trirremes, por haber visto que ante
vosotros todo lo demás ha sido considerado de menor importancia que la
ley11.

En el mismo sentido están las recomendaciones de los parágrafos 3912, 4313,


4514 y 4615.
En definitiva, el recurso al juramento dicástico en el tratamiento de la ley como
prueba retórica es utilizado en la introducción para abrir la posibilidad de una ar-
gumentación cuyo objetivo sea lo justo antes que lo legal; y a lo largo del discurso
como medio para dirigir la votación de los jueces hacia su causa, presentando su
propuesta como lo legal e identificando el veredicto favorable a su causa con la de-
fensa de lo justo.
En cuanto al segundo aspecto al que nos hemos referido, la interpretación del
espíritu del legislador, de lo beneficioso para la comunidad y de la función de la ley
como defensa ante los hábiles oradores, hay que destacar la frecuencia con la que
Solón o el legislador en general es mencionado. Las características del discurso que
estamos tratando es lo que determina estas referencias, ya que al tratarse de un pro-
ceso general por ilegalidad, Demóstenes apoya su acusación en varias leyes que sabe
que el acusado puede pasar por alto, demostrando así que no existe tal ilegalidad y

11 
D. 22, 20   
      
 
   
12 
D. 22, 39:       i.
D. 22, 43:     :.
13 

No habéis prestado juramento para juzgar esos asuntos, sino el hecho de si propuso o no su moción conforme a las
leyes.
14 
D. 22, 45:     
    
      
     
Ahora hay algo que vosotros debéis considerar: si en ese precio valoráis la constitución, las leyes vigentes y vuestro
juramento; en efecto, si absolvéis a ese individuo, que tan a las claras ha presentado proposiciones contrarias a las leyes,
daréis la impresión a todos de haber preferido esas sumas de dinero a las leyes y a vuestro juramento.
15 
D. 22, 56:       
      
          
  
    
De modo que, cuando diga eso , acordaos de vuestros juramentos y tened en cuenta, respecto de la acusación, que ahora
no se está tratando de recaudación de impuestos, sino acerca de si es menester que las leyes sigan teniendo autoridad. Y
si en relación con estos asuntos (la forma en que, desviando vuestra atención de la ley, intentará engañaros y las réplicas
que contra esas maniobras os conviene recordar para no permitírselo), aunque mucho todavía puedo decir, como consi-
dero que lo ya dicho es suficiente, lo dejaré estar.

152 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo justo frente a lo legal

desviando la atención de los jueces hacia otros matices de su propuesta diferentes a


los que entran dentro de las leyes en las que Demóstenes basa la acusación.
Aristóteles, con relación a esto, dice en defensa de la ley común y la equidad
frente a la ley escrita “que lo justo es verdadero y también lo conveniente, pero no
así lo que es opinable, de manera que la escrita no es propiamente una ley, pues no
cumple la función de la ley”.16
Demóstenes se esfuerza en afirmar lo contrario, utilizando los mismos térmi-
nos:

Pues el que legisló esa ley consideraba que era menester no poner la cuestión
a merced de la capacidad de los oradores, sino dejar fijado mediante una
disposición legal lo que cabía imaginar que era justo y al mismo tiempo,
conveniente para el pueblo17.

Hay otro pasaje de Aristóteles, tratando de prevenir los motivos subjetivos que
pueden hacer que en el veredicto de los jueces se desvíe de lo que establece la ley,
dice que “nadie escoge lo que es bueno en absoluto sino lo que es bueno para él”18 y
que “el miembro de una asamblea y el juez tienen que juzgar inmediatamente sobre
casos presentes y determinados, a lo que muchas veces les viene ya unida la simpa-
tía, el odio y la conveniencia propia, de suerte que ya no resulta posible establecer
suficientemente la verdad, y más bien oscurecen el juicio razones de placer o pesar”19
y Demóstenes utiliza el consejo en el mismo sentido:

“porque por esa razón, varones atenienses, tiene ese carácter la ley...para que
no sucediese que el pueblo fuera persuadido o engañado” 20.
“el legislador (...) Solón si se disponía a legislar de forma que esas sus leyes
(...) satisficiesen a los audaces y los expertos en el uso de la palabra, pensaba
que los simples ciudadanos no podrían obtener justicia de la misma manera
que ellos” 21.
Hay finalmente una utilización muy oportuna por parte de Demóstenes de
16 
Arist. Rh 1375b3 1375b5:     
   
17 
D. 22, 11:           
       

18 
Arist. Rh 1375b19       ./
19 
Arist. Rh 1354b7-11:   
     
      
20 
D. 22, 11:    
     
      
D. 22, 25:   
21 

    




Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 153


María José Martín Velasco

la mención al legislador, cuando la utiliza para justificar el carácter coercitivo


de las leyes, tan poco grato al espíritu libre de los atenienses:
“...Solón... veía que la mayoría de vosotros, aunque le está permitido hablar
en público no lo hacéis, de forma que esa prohibición no la consideraba nada
agobiante, y si, al menos, lo que quería era castigar a esos individuos, hubiera
podido fijar otros mucho más duros”22.

Conclusión
Los pasajes son solamente una selección que ilustra lo que queremos mostrar.
La tarea del orador en la composición del discurso con respecto a las leyes no es
únicamente la de elegir las leyes adecuadas y justificar el procedimiento, sino que
implica además toda una elaboración retórica que le permita conectar su demanda
con la mentalidad de los jueces en lo relativo a la justicia y a las leyes, de forma que
su autoridad moral quede a salvo. Para ello debe subordinar la argumentación basa-
da en la ley a la basada en la equidad como principio de justicia, ya que cuando la
equidad toma el lugar del principio de justicia que está incorporado a la ley general,
la ley general como tal permanece válida 23.
Esto implica, por una parte, el que sea un presupuesto de los oradores al diri-
girse al auditorio, el que en algún momento del discurso se deje un campo abierto
a una argumentación no ceñida a la ley y a un veredicto que, sin mencionar al ley,
se califica como “justo”. Implica también una continua reflexión sobre el contenido
de la ley, en forma de aclaraciones y racionalizaciones a veces excesivas, siguiendo
en esto el consejo de Aristóteles (Rh. 1374b 13) “mirar no a la ley, sino al legislador;
no a la letra sino a la inteligencia del legislador; no al hecho, sino a la intención; no
a la parte, sino al todo”.24
De este modo deja abierto el campo a considerar la justicia por encima de la
ley. La ley no se discute ni se pone en tela de juicio porque la ley es general y no
pierde validez por no ser aplicada en este caso concreto.

22 
D. 22, 30: 




23 
VON LEYDEN, W., “Aristotle and the concept of law”, Phylosophy 42, 1967, pp. 1-19.
24 
Arist. Rh. 1374b 13: 



154 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo justo frente a lo legal

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156 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e solidariedade:
um testemunho escolar quinhentista

António Melo
UCP - Braga
antmelo@braga.ucp.pt

C elebra a Europa, em 2004, o Ano Europeu da Educação pelo Desporto. Com


efeito, três grandes eventos desportivos, com repercussão universal, tiveram
lugar no Velho Continente: o Euro 2004, campeonato europeu de futebol, que
decorreu em Portugal, de 12 de Junho a 4 de Julho; os Jogos Olímpicos 2004,
organizados pela cidade de Atenas, de 13 a 29 de Agosto; ainda na capital da
Grécia, de 17 a 28 de Setembro, haviam de decorrer os Jogos Paralímpicos. Todas
estas manifestações se caracterizam por actividades desportivas de índole física,
praticadas por atletas jovens; aos estádios, aos pavilhões gimnodesportivos, ao hi-
pódromo, às piscinas, às regatas, à estrada acorreram multidões de espectadores
– um número ainda maior assistiu a elas na televisão ou as acompanhou através da
imprensa escrita ou radiofónica.
Resulta assim claro que, por um lado, o desporto não se reduz ao futebol, nem
muito menos ao futebol profissional e de alta competição – ele é apenas uma das
muitas modalidades desportivas; por outro, emergem deste contexto as potencia-
lidades didácticas1 do desporto, nomeadamente enquanto instrumento ao serviço
da formação integral do homem, promovendo um são equilíbrio entre o desenvol-
vimento das faculdades físicas e intelectuais2. Ainda mais relevante para este ideal
de construção humana se torna a educação para os valores, presente desde a génese
do fenómeno desportivo. De entre todos os certames, ainda hoje ocupam posição
cimeira os Jogos Olímpicos que devem o seu ressurgimento ao afã inquebrantável
do francês Pierre de Fredy, barão de Coubertin. Dizia ele que «o importante nos
jogos não é tanto o ganhar mas sim o competir, pois o essencial na vida não é o
conquistar mas o lutar bem»3. Sábias palavras estas que acabamos de citar!...

1 
Do adjectivo grego didaktikóç, «próprio para ensinar ou instruir».
2 
A afluência de numeroso público a Olímpia, por ocasião das competições desportivas, motivou o exercício da arte
retórica: vide, nomeadamente, Pausânias, Descrição da Grécia, VI, 23, 7, que menciona a recitação de discursos impro-
visados e de toda a espécie de obras escritas; Platão, Hípias Menor, 368 b-e, onde se faz referência à participação deste
sofista nestes concursos artísticos; Lísias, Discurso em Olímpia, 2, fala de «uma parada da inteligência no lugar mais
belo da Grécia». A presença simultânea destes concursos revela a importância que na mentalidade grega se conferia a um
desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito, que ganha expressão na máxima gravada no frontão do templo de
Delfos, onde se adorava o deus Apolo    «nada em demasia» (Cf. Platão, Cármides, 165 a).
3 
Citado por Miguel Guzmán Peredo, A história dos desportos olímpicos, Lisboa, 1992, p. 16. Uma resenha do movi-
mento olímpico moderno pode ser consultada em Conrado Durántez, Olímpia y los juegos olímpicos antiguos, Ma-
drid, 1975, «El resurgimiento de Olímpia», II vol., pp. 335-409. Para mais pormenores sobre os Jogos Pan-Helénicos,
sobretudo os Olímpicos, e sua importância vide Francisco de Oliveira (coord.), O espírito olímpico no novo milénio,
Coimbra, 2000; J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos.1 – Génese e evolução de um conceito, Coimbra, 21993, pp.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 157


António Melo

Se bem que haja actividades desportivas que exigem muito pouco esforço físico,
como o xadrez e as damas, entre outras, são, contudo, «as actividades desportivas
de índole física que, pelo modo como solicitam o empenhamento das diferentes
áreas da personalidade do indivíduo e, sobretudo, pelo seu elevado teor interactivo,
revelam um maior potencial educativo»4, como declarou Marcos Onofre5, no âm-
bito das comemorações do Ano Europeu da Educação pelo Desporto. Ainda neste
contexto, a maratonista portuguesa, Rosa Mota, havia de sublinhar que, «havendo
desportos colectivos nas escolas, estaremos a preparar os nossos jovens para o futu-
ro, porque temos de pensar em conjunto, contrariar o individualismo, que é cada
vez maior»6.
Foram estes os pressupostos que motivaram o tema desta nossa reflexão. É deles
que vamos partir para uma aproximação ao conceito de ócio, tema que nos é pro-
posto para esta reunião magna.
No plano etimológico, o vocábulo ócio nada tem a ver com a ociosidade no
mundo actual, «a mãe de todos os vícios», como frequentemente é designada7. De
facto, o sentido deste termo deve aproximar-se do substantivo grego scol», que
significa fundamentalmente «descanso, repouso, tempo livre»8, mas também com-
preende a nobre ocupação própria de um homem livre, em tempo de ócio: o estu-
do9. Deste modo, o ócio é entendido como cultura do espírito. Para Aristóteles, a
essência de uma vida verdadeiramente humana consiste na busca da felicidade, que
144-154; Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de história da cultura clássica. I – Cultura Grega, Lisboa, 81997, pp.
339-348; G. A. Christopoulos – John C. Bastias (eds.), The Olympic Games in Ancient Greece, Atenas, 1982; H. W.
Pleket, «The participants in ancient Olympic games: social background and mentality», in Coulson and Kyrieleis
(eds.), Proceedings of an international symposium on the Olympic Games (5-9 September), Atenas, 1992, pp. 147-152; S. G.
Miller, Arete. Greek sports from ancient sources, Berkeley, 1991.
4 
Escola Revista, Lisboa, 2004, p. 3.
5 
Professor Auxiliar na Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa.
6 
Escola Revista cit., p. 2.
7 
Vem a propósito fazer uma referência à expressão latina taedium uitae que, no âmbito da periodização das literaturas
em vernáculo, referencia os românticos que padecem do mal du siècle; o ídolo do tempo foi o escritor inglês Lord Byron
(1788-1824). Entre nós, o carácter desta geração identifica-se, geralmente, com o estado de espírito que nos é transmiti-
do pelas palavras de Carlos dirigidas a Joaninha: «Eu estou perdido. E sem remédio, Joana, porque a minha natureza é
incorrigível. Tenho energia demais, tenho poderes demais no coração. Estes excessos dele me mataram...e me matam!»
(Almeida Garrett, Viagens na minha terra, Lisboa, 1963, pp. 308-309). Para outros pormenores, vide Vítor Manuel de
Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Vol. I, Coimbra, 71986, pp. 547-548.
8 
Vide Platão, Apologia de Sócrates, 36 d-e, a célebre passagem em que Sócrates, ao invocar a sua inocência perante a
Assembleia dos Heliastas, sugere como sentença alternativa, embora com propósito provocatório, ser distinguido pela
cidade e obter, assim, sustento gratuito no Pritaneu: «O que merece um homem que assim procedeu? Algo de bom,
cidadãos de Atenas, se é que me cumpre propor algo de acordo com os meus méritos! Uma boa recompensa, que me
conviesse. E que recompensa pode convir a um homem nobre como sou e vosso benemérito, e que necessita de ócio para
vos exortar? A tal homem, Atenienses, nada há que convenha tanto como o ser sustentado pelo Pritaneu. É isso muito
mais conveniente para mim do que para um desses que venceu as corridas de carros de dois cavalos, ou de quadrigas
nos Jogos Olímpicos, porque esse vos torna felizes apenas de aparência, enquanto eu vos torno felizes de verdade. Além
disso, esse não precisa que o sustentem, enquanto eu preciso» (Platão, Apologia de Sócrates, tradução, prefácio e notas
de Pinharanda Gomes, Lisboa, 21993, pp. 81-82).
9 
Este vocábulo deriva do substantivo latino studium, que pode significar «dedicação, afeição» mas também «aplicação
ao estudo»; do substantivo grego deriva o substantivo latino schola que, de início, designava «ócio dedicado ao estudo»,
vindo a especializar-se no sentido de «lugar onde se ensina».

158 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e Solidariedade: Um Testemunho Escolar Quinhentista

se encontra na actividade contemplativa da mente, participante da natureza divina,


como se lê na Ética a Nicómaco (1177 a 10-21). Esta actividade ocupa inteiramente
a vida do homem livre, é um fim em si mesmo e tem o seu próprio prazer (Ét. Nic.
1177 b 20); por isso, afirma ainda o estagirita, a felicidade requer ócio, pois traba-
lhamos para ter ócio (Ét. Nic. 1177 b 1-6), isto é, ocupamo-nos para nos libertar-
mos das actividades utilitárias, próprias do homem comum.
A felicidade reside, deste modo, no ócio de espírito, numa vida de esforço sério,
que não conhece tensão ou fadiga (Ét. Nic. 1177 b 4-15), à semelhança da actividade
contínua e eterna de Deus (Metafísica, 1072 b 15-30). Desta felicidade não participa
o homem comum (Ét. Nic. 1177 a 6-8), subjugado pelas mais diversas ocupações. E
como este homem não pode trabalhar continuamente, surgem momentos propícios
ao jogo, uma espécie de repouso ou pausa (an£pausij) que interrompe uma acti-
vidade. Em consequência, o descanso não é um fim em si mesmo, pois existe para
melhor se retomar uma actividade (Ét. Nic. 1176 b 27-35). Por isso, a felicidade não
está no jogo, na diversão, pois esta não é uma vida segundo a virtude, uma vida de
esforço sério (Ét. Nic. 1177 a 1-2)10.
Porém, o jogo também há-de ter o seu lugar na vida de ócio na medida em que
o ócio puro é uma actividade específica de Deus, que jamais se cansa, não sentindo
necessidade do jogo11.
Resulta, assim, que a pólis grega era essencialmente uma cidade ociosa, consa-
grada à cultura. E se, para Aristóteles, ócio não é sinónimo de jogo, podemos, no
entanto, descobrir alguma proximidade semântica: paidiva, «jogo» e paideiva, «cul-
tura». Com efeito, a própria cultura implica a noção de jogo: os seus criadores – o
filósofo, o poeta, o político – pensam, imaginam como quem joga, jogando: «por
isso, os jogos olímpicos, os jogos e os exercícios físicos em geral são cultura, cultura
10 
Aristote, L´ éthique a Nicomaque, introduction, traduction et commentaire par René Antoine Gauthier et Jean Yves
Jolif, Vol. I Introduction et traduction, Paris, 1958, pp. 301-309.
11 
Não obstante, Aristóteles diz expressamente na Política (1337 b 33 – 1338 a 13) que o lugar próprio do jogo é no
trabalho: «Com efeito, se trabalho e ócio são indispensáveis (embora o ócio seja preferível ao trabalho e até à finalidade
deste) pesquisemos como deve ser usado o tempo de lazer. Não certamente a jogar, porque então o jogo constituiria
forçosamente a finalidade da nossa vida, o que é impossível (é, aliás, durante a labuta quotidiana que os jogos são melhor
empregues, pois o trabalho árduo exige pausas, e os jogos são próprios para dar descanso, sendo que o trabalho implica
cansaço e esforço). Nesse sentido, importa fomentar os jogos, mas sempre acautelando o momento oportuno da sua
utilização e aplicando-os como se de uma terapêutica se tratasse, porquanto o movimento da alma que deles resulta
produz relaxamento, e o prazer que deles se retira facilita o descanso. Por outro lado, o ócio parece conter em si mesmo
prazer, felicidade e ventura. Os que trabalham não podem usufruir disto, mas apenas os que se entregam ao ócio, já que,
na verdade, o que trabalha fá-lo relativamente a um determinado fim de que não tira proveito. Ora a felicidade é um fim
em si próprio, pois todos julgam que não surge acompanhada de dor mas de prazer. No entanto as opiniões divergem
quando se trata de definir que prazer é esse, pois cada qual o determina de acordo com a sua disposição. Uma coisa é
certa: o melhor prazer é o do melhor homem e o que provém das fontes mais excelentes. Torna-se claro, portanto, que
devem ser aprendidas e ensinadas coisas em função da diagogia, e que esses ensinos e aprendizagens devem ser úteis
em si mesmos, ao passo que as matérias que se referem ao trabalho são necessárias e úteis em função de outras coisas»
(Aristóteles, Política, edição bilingue, prefácio e revisão literária de Raul M. Rosado Fernandes, introdução e revisão
científica de Mendo Castro Henriques, tradução e notas de António Campelo Amaral e de Carlos de Carvalho Gomes,
índices de conceitos e nomes de Manuel Silvestre, Lisboa, 1998, pp. 565-567). É neste passo que Aristóteles critica pela
primeira vez Platão, que havia identificado jogo e ócio em As Leis (803 b-e). Vide Aristote, L´ éthique cit., Vol. II.2 -
Commentaire, Paris, 1970, pp. 866-880.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 159


António Melo

do corpo, da mesma maneira que o teatro é cultura do espírito»12.


Já Platão, em As Leis (643 c-d), salienta o valor educativo do jogo13, o ins-
trumento mais propício ao desenvolvimento, na criança, de um   adequado
ao futuro cidadão da pólis14. Na Retórica (1370 b 34 – 1371 a 6), Aristóteles vai
enumerar os principais jogos dos gregos: «E porque a vitória é agradável, também
são necessariamente agradáveis os jogos de combates e disputas (pois neles muitas
vezes se obtém a vitória), tais como jogos de ossos, da bola, de dados e de damas. O
mesmo acontece com os jogos que requerem esforço; pois uns tornam-se agradáveis
quando a eles nos habituamos, e outros o são imediatamente, como, por exemplo,
a caça com cães e toda a sorte de caça. Porque onde há combate há igualmente
vitória»15. Não se limita a enumerá-los, pois na Ética a Nicómaco (1122 a 7-11) havia
de condenar asperamente os jogadores dos dados, aliás em consonância com outras
vozes, como a de Sócrates que, na sua censura, abrange também os jogadores de
damas16.
Platão (As Leis, 795 d) continua a tradição17 ao afirmar que a instrução a dar é
dupla: deve formar o corpo pela ginástica e a alma pela música18. Embora sob a for-
ma interrogativa, idêntica asserção já se lia na República (376 e): «Será difícil achar
uma (educação) que seja melhor do que a encontrada ao longo dos anos – a ginástica
para o corpo e a música para a alma?»19.
Também Aristóteles (Política, 1338 b 2-8) refere a importância da cultura física
no âmbito da educação grega: «Dada a evidência de que a educação se deve basear
mais no hábito do que propriamente na inteligência, e preocupar-se mais com o
12 
José Luís L. Aranguren, «El ócio y la diversion en la ciudad», Revista de la Universidad de Madrid, VII 25 (1958)
60.
13 
O prazer lúdico na aprendizagem pode perscrutar-se já na República (537 a): «não eduques as crianças no estudo pela
violência, mas a brincar, a fim de ficares mais habilitado a descobrir as tendências naturais de cada um». Platão, A
República, introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, 31980, p. 355.
14 
Se às crianças dos três aos seis anos se concedia a liberdade de eleição dos seus próprios divertimentos (As Leis, 794
a), o mesmo não sucede a partir desta idade, prescrevendo jogos fixos (Ibid., 797 a-c), pois em educação é importante a
estabilidade das normas e das instituições do Estado encarregadas de velar pela boa tradição. Com efeito, novos jogos
significam um novo espírito na juventude, que exige novas leis. Ora, toda a mudança é perigosa, seja ela no clima, no
regime alimentar ou no carácter da pessoa: a única excepção é a mudança do que está mal (Ibid., 797 d-e). Cf. Werner
Jaeger, Paidéia: a formação do homem grego. Título original: Paideia, die formung dês griechischen menschen. Tradução
de Artur M. Parreira; adaptação do texto grego para a edição brasileira por Mónica Stahel M. da Silva; revisão do texto
grego por Gilson César Cardoso de Souza; São Paulo, 21989, p. 927. Legislar é educar, pois o fim último do legislador é
a virtude total (As Leis, 630 d 631 b), alcançar a excelência humana    ; por isso, a educação, um grande
bem que não se deve desprezar (Ibid., 644 b), é uma formação regular que acompanha o homem desde a sua infância
(Ibid., 643 b).
Aristóteles, Retórica, introdução de Manuel Alexandre Júnior, tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo
15 

Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, Lisboa, 1998, p. 86.


16 
Xenofonte, Memoráveis, I.2.57 e III.9.9. Este tipo de condenação é perfilhada ainda por Aristófanes, As mulheres
na Assembleia (v. 672) e retomada, mais tarde, por Teofrasto, nos Caracteres (V,11-12).
17 
Em Platão (As Leis, 792 e), uma grande força tem o hábito ( ), de que faz derivar o carácter (); para Aristó-
teles (Política, 1334 b 8-11), em educação, o hábito e a razão devem estar conjugados em perfeita harmonia.
18 
Sobre a aprendizagem das letras, vide 809 e 810 c. Vide tradução em Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade.
Antologia de cultura grega, Coimbra, 71998, p. 424.
19 
Platão, A República, introdução cit., p. 86.

160 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e Solidariedade: Um Testemunho Escolar Quinhentista

corpo do que com a mente, é manifesto que as crianças devem ser entregues aos
cuidados de um mestre de ginástica e de um preparador físico; aquele dotará os
corpos de boa forma, este treina-os para os exercícios»20.
Não obstante esta continuidade de pensamento na cultura grega, há uma dife-
rença entre os dois autores: em Platão, as reflexões sobre a música precedem as da
ginástica – «depois da música, é na ginástica que se devem educar os jovens… edu-
cados nela cuidadosamente desde crianças, e pela vida fora» (Rep., 403 c-d)21 –, as-
segurando «que a ginástica conveniente é simples, e acima de tudo a dos guerreiros»
(Rep., 404 b)22, pois esta formação contínua tem como finalidade a preparação de
cidadãos aptos para a defesa da polis23. O contrário sucede na Política de Aristóteles
que, fiel à tradição do mundo homérico, coloca a ginástica a preceder a música na
educação dos jovens24. Além disso, enquanto Platão (Rep., 536 e) sustenta que «os
esforços físicos, praticados à força, não causam mal algum ao corpo»25, Aristóteles
opõe-se, ao afirmar que «até à adolescência deve praticar-se ginástica com mode-
ração, evitando uma alimentação pesada e exercícios violentos, a fim de que nada
obste ao pleno desenvolvimento físico» (Pol., 1338 b 38-41)26. Prova de que os
excessos podem redundar em prejuízo do corpo, «é que, de entre os vencedores
dos Jogos Olímpicos normalmente apenas vislumbramos dois ou três Esparta-
nos bem sucedidos, contando com adultos e crianças (de facto, a exigência do
treino físico a que foram sujeitos desde tenra idade acabou por esgotar-lhes as

20 
Aristóteles, Política, edição bilingue cit., p. 569. A ginástica superior (γυμναστική) pratica-se no ginásio e a sua
finalidade é desenvolver, através de um exercício metódico e de um regime alimentar apropriado, as qualidades físicas
do guerreiro e do atleta, tendo em vista preparar o futuro cidadão para o serviço militar e as competições desportivas.
Por seu turno, na palestra, o mestre (παιδοτρίβης) prepara o corpo do jovem para exercícios físicos mais elaborados.
Aristote, Politique, texte établi et traduit par Jean Aubonnet, T. III (deuxième partie), Livre VIII, Paris, 1989, p. 96.
Numa passagem anterior (Ibid., 1334 b 21-28), o estagirita já havia justificado a sua opção pela educação do corpo, em
primeiro lugar: «Ora, da mesma forma que o corpo antecede a alma na ordem temporal da geração, também a parte
irracional é temporalmente anterior à parte dotada da razão. Prova dessa antecedência é o facto de os recém-nascidos
e crianças manifestarem ânimo, vontade e apetite, ao passo que a razão e a inteligência apenas se manifestam com o
avançar da idade. Eis porque o cuidado do corpo deveria necessariamente preceder o da alma, surgindo o cuidado com
os desejos logo a seguir. Contudo, e em vista da razão que se deve cuidar primeiro do desejo, tal como é em vista da alma
que se deve cuidar primeiro do corpo». Aristóteles, Política, edição bilingue cit., p. 545.
Platão, A República, introdução cit., pp. 136-137. Veja-se, a propósito, a importância destas considerações morais:
21 

«A mim não parece ser o corpo, por perfeito que seja, que, pela sua excelência, torne a alma boa, mas, pelo contrário, a
alma boa, pela sua excelência, permite ao corpo ser o melhor possível»(Ibid., 403 d).
22 
Platão, A República, introdução cit., p. 138.
23 
Cf. ibid., 410 c sq.
24 
Pode ler-se em A República (521 e): «Anteriormente, a educação que lhes atribuímos era pela ginástica e pela música».
Platão, A República, introdução cit., p. 329.
25 
Ibid., p. 355.
26 
Aristóteles, Política, edição bilingue... cit., p. 571. Da mesma forma que condena a especialização, alheia ao espíri-
to grego do homem livre, Aristóteles verbera as cidades que procuram dotar as suas crianças de uma compleição atlética,
em detrimento das formas e do desenvolvimento harmonioso do corpo (Pol., 1338 b 9-11). Segundo ele (Pol., 1335 b
8-12), «a melhor compleição é a intermédia. Devem possuir uma compleição exercitada, sim, mas em tarefas não vio-
lentas nem em tarefas exclusivas, como é o caso dos atletas; devem orientar-se para actividades de homens livres, o que
se aplica, por igual, a homens e mulheres». Ibid. Após a adolescência, ambos os filósofos comungam a mesma opinião
quanto à necessidade de exercícios árduos: Rep., 537 b e Pol., 1339 a 5-10.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 161


António Melo

forças)» (Pol., 1339 a 1-4)27.


Sintomática esta referência aos jogos mais importantes de entre os quatro28 que
maior celebridade alcançaram entre os helenos; são eles que melhor ilustram uma
das suas facetas mais características, o espírito agónico. Manifestação essencialmen-
te religiosa 29, em honra de Zeus, os Jogos Olímpicos são um festival que integra
competições atléticas30, mais tarde também hípicas31, em que os vencedores são
coroados com prémios simbólicos. Este prazer de se ser o primeiro, motivado sim-
plesmente pela honra de competir, há-de despertar a admiração dos bárbaros, que
o historiador grego Heródoto celebrizou, no âmbito das Guerras Medo-Persas, com
a exclamação de Tritantaicmes, filho de Artábano: «Estamos perdidos, Mardónio!
Trouxeste-nos para combater contra homens que não se batem pelo dinheiro, mas
pela virtude»32.
Para Olímpia convergiam multidões que podiam usufruir da simbiose única da
alma helénica plasmada no esforço de atletas e nas vivências dos artistas. Enquanto
aqueles, no estádio ou no hipódromo, levavam ao extremo as suas capacidades físi-
cas, estes últimos, através da escultura, da poesia ou da música, revelavam a faceta
artística do espírito grego. Era um momento que a todos unia, um momento único
de afirmação da amizade pan-helénica, como proclamou Lísias, em Olímpia33. No
epinício que celebra a vitória de Hierão de Siracusa, na corrida de cavalos – 1.ª Ode
Olímpica – , de forma singular, o poeta tebano Píndaro havia de perscrutar a alma
helénica, que viu nestes festivais uma realização insuperável:

A melhor coisa é a água; o ouro, qual fogo incandescente,


que se distingue na noite, sobreleva a riqueza orgulhosa.
Se anseias celebrar os jogos, ó minha alma,
27 
Aristóteles, Política, edição bilingue... cit., p. 571.
28 
Próximos da notoriedade destes estão os Jogos Píticos, em Delfos, em honra de Apolo; havia ainda, com periodi-
cidade bienal, os Jogos Ístmicos, em honra de Poséidon, na cidade de Corinto e os Jogos Nemeus, em honra de Zeus,
em Nemeia. António Maria Martins Melo, «A areté helénica nos Jogos Olímpicos», Revista Portuguesa de Filosofia, 52
(1996) 527.
29 
Vide Pausânias, Descrição da Grécia, V, 10.1: «Muitas são as maravilhas que na Grécia podem ver-se e ouvir-se; mas
as que mais participam do espírito divino são as cerimónias de Elêusis e os Jogos Olímpicos». Maria Helena da Rocha
Pereira, Hélade... cit., p. 492.
30 
A participação em competições e jogos desportivos parece ser uma tendência dos gregos que já se manifesta nos
alvores da literatura grega; nos poemas homéricos, identificam-se duas passagens: na Ilíada, canto XXIII, descrevem-
se os jogos fúnebres em honra de Pátroclo, morto às mãos de Heitor, filho de Príamo, rei de Tróia; na Odisseia, canto
VIII, Ulisses, conduzido por Alcínoo, assiste aos jogos dos Feaces. José Ribeiro Ferreira, As civilizações clássicas I.
Grécia, Lisboa, 1996, p. 295; Waldo E. Sweet, Sport and recriation in Ancient Greece, Oxford, 1987, cap. 2 «Athletics
in Homer», pp. 11-26.
31 
As provas no hipódromo iniciam-se em 680 a. C., com quadrigas.
Livro VIII. 26. Tradução de António Freire, Humanismo Clássico. Estudos de Cultura e Literatura Greco-Latinas,
32 

Braga, 1996, p. 62.


33 
Vide Discurso em Olímpia, 2 e António Maria Martins Melo, «A areté... » cit., p. 532. Os Jogos Olímpicos, segundo
Jean-Pierre Vernant, reflectem uma cultura, onde «os espectáculos de maior importância não são, nem as manifesta-
ções naturais nem as da alma individual, mas os encontros públicos em que as pessoas se reúnem para celebrar festas,
ouvir música, assistir a competições atléticas e a ritos religiosos» (O homem grego, Lisboa, 1994, p. 183).

162 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e Solidariedade: Um Testemunho Escolar Quinhentista

não busques astro mais ardente que o Sol,


quando fulge, de dia, no éter deserto,
não queiras celebrar jogos superiores aos de Olímpia 34.

Prenúncio da sodalitas humanista, esta reunião quadrienal impulsionou uma


formação humana cada vez mais integral, que tinha por objectivo o equilíbrio har-
monioso das faculdades humanas. É este o ideal da paideia helenística, lapidarmen-
te expresso pelo poeta satírico latino Juvenal: mens sana in corpore sano 35.

Em Roma, também os jogos públicos – os Ludi – na sua origem, estiveram li-


gados à religião36. Nestes festivais, não havia lugar para competições atléticas. Estas
provas desportivas haviam de ser introduzidas nos agones gregos, que conheceram
a sua primeira realização no século II a. C.37 Com efeito, a grauitas da aristocracia
romana desde sempre manteve uma atitude de suspeição relativamente a este géne-
ro de provas. Deu voz a este descontentamento, entre outros38, Séneca, numa das
cartas dirigidas ao seu amigo Lucílio:

Ponho-me a pensar na quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez


dos que ginasticam a inteligência; na afluência que têm os gratuitos espec-
táculos desportivos, e na ausência de público durante as manifestações cul-
turais; enfim, na debilidade mental desses atletas de quem admiramos as
espáduas musculadas39.

Trata-se de um testemunho contemporâneo da consagração dos    ou


certamina graeca: realizados pela primeira vez em 60 d. C., os Neronia40 seriam
34 
Vv. 1-7. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade.... cit., p. 160.
Sátiras, X.356. Nesta linha de pensamento, vide Manuel Alexandre Júnior, «Paradigmas de Educação na Antigui-
35 

dade Greco-Romana», Humanitas, 47-I (1995) 489-497 e Henri-Iréné Marrou, Histoire de l éducation dans l antiquité.
Tome I: Le monde grec. Paris, 1981, pp. 325-326 que, a propósito da paideia helenística, afirma que ela procurava um
equilíbrio e harmonia completa «do corpo e da alma, do carácter e do espírito, da sensibilidade e da razão».
36 
A tradição faz recuar a origem dos jogos, em Roma, aos tempos de Rómulo. Em Tito Lívio encontramos a descrição
célebre do rapto das Sabinas, que sucedeu durante os jogos em honra do deus Conso (Desde a Fundação da Cidade,
I.9-13).
37 
Com efeito, em 186 a. C., para celebrar a sua vitória sobre os Etólios, Marco Fúlvio Nobilior organiza, pela primeira
vez, este tipo de jogos, com a presença de muitos atletas gregos. Neste ano, por sua iniciativa, também foram introduzi-
das as uenationes ou caçadas. Cf. Tito Lívio, Desde a Fundação cit., XXXIX.22.2. A Etólia era uma região montanhosa
que se situava a Norte do Golfo de Corinto, na Grécia Antiga; estes povos, no séc. IV a. C., chegaram mesmo a dominar
a Anfictionia de Delfos.
38 
A mesma opinião é partilhada por Marcial (Epigramas VII.32, por exemplo). O historiador romano Tácito (Anais,
XIV.20), numa reflexão paradigmática, aproxima a opinião daqueles que se opõem agora a este género de jogos à pers-
pectiva dos que outrora já se manifestaram contra a construção de um teatro, o que só veio a suceder com Pompeu, que,
em 55 a. C., mandou erigir o primeiro edifício permanente. Maria Cristina Pimentel, «O espírito agónico no Alto
Império», in: Francisco de Oliveira (coord.), O espírito olímpico cit., maxime pp. 127-132.
39 
IX.80.2. Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, tradução, prefácio e notas de José António Segurado e Campos,
Lisboa, 22004, p. 344.
40 
Trata-se de uma imitação dos Jogos Olímpicos gregos, com provas gímnicas, hípicas, concursos musicais e poéticos.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 163


António Melo

instituídos sob o impulso do imperador Nero. A sua morte havia de precipitar o fim
destes jogos. Mais tarde, com Domiciano, iniciam-se os ludi Capitolini (86 d. C.),
em honra de Júpiter, que se realizam de quatro em quatro anos.
Se bem que estes festivais sigam o modelo dos Jogos Olímpicos, bem diferente,
contudo, é o espírito que os anima. Com efeito, em Roma, estes certames são ape-
nas espectáculos de inconfessáveis desígnios políticos; em troca da diversão ofereci-
da, buscavam os soberanos a aura popularis41. Da mesma forma se compreende que
tenha sido estranha à mentalidade romana a concepção do otium enquanto activi-
dade intelectual produtiva e que parece ter chegado a Roma através do Círculo dos
Cipiões42. Para os Romanos, com efeito, otium significa essencialmente tempo livre
das actividades públicas, os negotia. Marco Cornélio Frontão, preceptor do futuro
imperador Marco Aurélio, vai adoptar a expressão otium liberum.
Em tempo de ócio, o romano ocupava-se em actividades de lazer, procurando o
prazer do jogo. O divertimento era próprio de todas as idades: enquanto as crianças
jogavam a bola e o pião ou se recreavam com o arco e com carros de brincar, os
adultos, que também jogavam a bola, deleitavam-se nos banquetes ou distraíam-se
com os dados, a pesca, o atletismo, a natação, o hóquei43.
É desta última modalidade desportiva que passamos a apresentar um testemu-
nho quinhentista, no âmbito da pedagogia dos Jesuítas. Trata-se de um episódio
secundário que aparece na tragicomédia Iosephus, representada no Colégio das Ar-
tes de Coimbra, em 1574. O seu autor é o mestre jesuíta Luís da Cruz, de que se
celebra este ano o IV centenário da sua morte44. Este colégio, fundado em 1548 por
D. João III, havia de ser entregue aos Jesuítas a 10 de Setembro de 155545, pelo então

Este festival distinguia-se do certame olímpico apenas na sua periodicidade: realizava-se de cinco em cinco anos.
41 
Maria Cristina Pimentel, «O espírito agónico... » cit., maxime pp. 140 e 150. Esta ligação dos jogos à política já é
visível nas lendas das origens de Roma, com o célebre Rapto das sabinas (Cf. supra, nota 36). Para mais pormenores vide
Francisco de Oliveira, «Actividades de lazer em Roma», in: Francisco de Oliveira (coord.), O espírito olímpico... cit.,
pp. 111-126; Id., «Teatro e poder em Roma», in: As Línguas Clássicas. Investigação e Ensino, Coimbra, pp. 121-142.
42 
A propósito, é significativa uma passagem da carta que Plínio o Moço dirige a Minúcio Fundano (I.9): «Por isso tam-
bém tu, logo que tenhas oportunidade, abandona esse estrépito, essas correrias inúteis, esses trabalhos completamente
estéreis, e entrega-te ao estudo ou ao otium. Pois é melhor, como disse o nosso amigo Atílio, com muita sabedoria e
espírito ao mesmo tempo, estar ocioso (otiosus) do que não fazer nada». Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira,
Estudos de história da cultura clássica. II – Cultura Romana, Lisboa, 21990, p. 388. Um dos primeiros elogios à sabedo-
ria, entre os Romanos, encontra-se em Énio, nos Anais, VII.125-129, 130-131, 136-153; VIII.156-161. Cf. id., ibid., p.
126.
43 
Cf. Francisco de Oliveira, «Actividades de lazer... » cit., p. 111; D. Mancioni, Giochi e Spettacoli, Roma, 1987; J.
Guillén, Vrbs Roma. Vida y costumbres de los romanos. Vol. II. La Vida Publica, Salamanca, 1980; R. C. Beacham,
Spectacle Entertainments of Early Imperial Roma, New Haven, 1999; R. Auguet, Cruauté et civilisation: les jeux romains,
Paris, 1970; Ugo Enrico Paoli, Vrbs : la vida en la Roma Antigua, Barcelona, 1990, capit. XXI «Diversiones y recreos de
grandes y pequeños», pp. 307-320.
44 
A obra dramática deste autor mereceu honras de publicação: Tragicae comicaeque actiones, a regio Artium Collegio
Societatis Iesu, datae conimbricae in publicum theatrum. Lugduni, apud Horatium Cardon, 1605. Pôde ainda contar com
uma edição quinhentista, uma paráfrase do Livro dos Salmos, com 150 cânticos: Bíblia. V. T. Psalmi. Latino. Versioni
metriche. Interpretatio poética latine in centum quinquaginta psalmos. Ingolstadii, ex cudebat Adam Sartorius, 1597.
45 
Na sessão solene de abertura deste Colégio a 1 de Outubro, agora sob a jurisdição da Companhia de Jesus, o P.e Pedro
Perpinhão vai proferir a oração de sapiência De societatis Isesu gymnasiis, et de eius docendi ratione.

164 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e Solidariedade: Um Testemunho Escolar Quinhentista

Principal Diogo de Teive, natural de Braga (c. 1514-depois de 1569). Suspeitava-se,


então, da heresia de alguns dos seus prestigiados mestres.
O Iosephus inspira-se no relato bíblico do Génesis – 37.1-50.26, excepto os ca-
pítulos 38, 48-50 –, permitindo-se o autor algumas liberdades imaginativas que
muito valorizaram esta tragicomédia, uma das obras mais representativas da sua
produção teatral. Divide-se ela em cinco actos, como as tragédias de Séneca, tão em
voga no teatro humanístico, até mesmo no de inspiração bíblica, como é o caso 46.
Abre este drama com um prólogo, segundo a tradição clássica, que nos apresen-
ta o drama de José do Egipto no contexto da história da salvação. O primeiro acto
inicia-se com um longo solilóquio de Jacob: depois de fazer menção à instabilidade
da vida humana (Incerta cursu uita quam fertur suo!)47 – um topos recorrente de
inspiração clássica48 –, declara que a providência divina a tudo assiste (Id euenire
dico prouidentia / Regentis orbem numinis)49. Todavia, o seu curso resulta de opções
livremente tomadas por cada um de nós50, numa clara defesa do livre arbítrio, que
assumiu novas proporções com o molinismo e a questão De auxiliis51. José, filho
predilecto de Jacob (quamuis sis inter tuos / fratres amore primus)52, também vai
exprimir a sua confiança em Deus (Rogo te mearum firma spes rerum Deus)53. Entre-

46 
O ambiente cultural de Coimbra, centro do saber do Portugal de Quinhentos, onde se havia formado o dramaturgo
P.e Luís da Cruz, era bem o reflexo do magistério e até do convívio de grandes mestres europeus. Vide Séneca, Tragé-
dias, introdução, tradução e notas de Jesus Luque Moreno, Madrid, 1979.
47 
Iosephus, I.01.141: 165 Quão incerta a vida se diz no seu curso! Vide António Maria Martins Melo, O P.e Luís da
Cruz S.J e a tragicomédia Iosephus. Tomo II. Edição crítica, Braga, 2002. Dissertação de doutoramento dactilografada;
Id, Teatro Jesuítico em Portugal no Século XVI: a tragicomédia Iosephus P. Luís da Cruz, S.J., Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2004.
48 
A instabilidade da fortuna é um tema glosado na história da literatura grega, e. g., por Simónides (fr. 6 Diehl) e Pín-
daro (II.ª Ode Olímpica, vv. 35-37; VII.ª Ode Olímpica, vv. 95-96). Na literatura latina, podemos verificá-lo, e. g., em
Névio (fr. 16 Strelecki), Salústio (Catilina, VIII.1; Jugurta, I.3), Virgílio (Eneida, VIII.16, 578-580), Tito Lívio (Desde
a Fundação da Cidade, II.12.7) e Séneca (Cartas a Lucílio, V.47.10). A instabilidade da fortuna também é de inspiração
senequiana: Troades, vv. 1-9, 260-275; Phaedra, vv. 1144-1153; Hércules Oetaeus, v. 132; Agamemnon, vv. 407-413;
Thyestes, vv. 32-36. Cf. Nair de Nazaré Castro Soares, Teatro clássico no Século XVI. A Castro de António Ferreira:
fontes – originalidade, Coimbra, 1996, p. 41.
49 
Iosephus, I.01.161-162: 165 Isto sucede, digo eu, pela providência / da divindade que governa o mundo .
50 
Ibid., vv. 162-168:

Sed arbiter
Etiam actionum quisque conciliat sibi
Peiora rerum, ex sorte commutabili:
Potiora iuuenis sed mihi optaui Deo
Opem ferente: namque cum fugi mei
Peregrinus odium fratris atque auunculum
Adii Labanum a patria extorris domo.

‘..ainda assim, é cada um de nós, como árbitro das suas acções, que da sorte mutável tira para si as piores coisas. Porém,
eu, ainda jovem, escolhi coisas melhores para mim, com o auxílio de Deus. Com efeito, como peregrino, evitei o ódio
do meu irmão e, exilado da casa paterna, fui para casa de meu tio Labão.’
Para mais pormenores, vide António Maria Martins Melo, A controvérsia do livre arbítrio, no tempo de Góis, in: Con-
51 

gresso Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, 2003, pp. 703-718.
52 
Iosephus, I.01.264-265: 165, “...embora sejas entre os teus irmãos pelo amor o primeiro”.
53 
Ibid., I.02.235: 165, ‘Peço-te, ó Deus, esperança firme da minha vida’.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 165


António Melo

tanto, denuncia ao pai a má vontade dos irmãos mais velhos (Aetate grandiores auer-
sissimi) e narra-lhe o sonho da ceifa: Quod messis illud somnium?54 – pergunta-lhe seu
pai. Incrédulo do sonho e seu simbolismo, incentiva José a ir ao encontro dos seus
irmãos, de quem não tem notícias, pois há muito estão ausentes na pastorícia, para
os lados de Siquém (ouesque rura nunc Sichemia / Fortasse totis obtinent ouilibus)55.
Entretanto, conhecedores do sonho, Dã e Gad, em conjunto, sentenciam a morte de
José (Ego perdidissem, qui uolet me perdere)56 e suscitam o apoio dos outros irmãos
(Narremus ista fratribus)57.
Manifesta-se, deste modo, nos irmãos de José, a paixão da inveja, que deriva
do desejo de glória, da ambição das honras: rivalizamos com as pessoas que nos
são chegadas, mais familiares58. Para o desfecho trágico anunciado, ajudam à nossa
compreensão as palavras de Dário, em Os Persas, de Ésquilo: «a insolência, quando
floresce, produz a espiga / da desgraça, cuja ceifa é toda feita de lágrimas»59.
José cumpre a vontade do pai e vemo-lo, na peça, errante por veredas expostas
aos perigos da floresta (infesta saepe belluis teterrimis)60, a ser ajudado por um tran-
seunte que admira os rebanhos de Jacob.
O espectador começa a temer pela sorte imerecida do seu herói, vítima de um
infortúnio que ele mesmo poderá vir a sofrer. É o despertar da compaixão que o
temor e a empatia fazem suscitar ao público espectador61. Introduz-se o episódio do
podador e do camponês, um intermezzo lúdico, típico da comédia que serve para
desanuviar a tensão dramática.
Mas logo recomeça a actio, com a inveja fraterna no auge. O espectador é, as-
sim, lançado para o centro dos acontecimentos – in medias res, conforme é prescrito
pela Arte Poética horaciana –, e elimina-se a descrição de pormenores fastidiosos.
Com efeito, a tragédia não é uma narrativa cronológica, «antes põe em cena, através
de situações paradigmáticas e intemporais, a fragilidade do humano, a inconsistên-
cia dos bens terrenos, o destino do homem»62.
Recrudesce a tensão dramática.
José aproxima-se; os irmãos amaldiçoam a sua vinda e decidem-se pelo ho-
micídio. Opõe-se a moderação de Rúben que, em alternativa, há-de sugerir o seu
encarceramento numa cisterna das proximidades (est in proximo / Cisterna luco…

54 
Ibid., v. 274: 166, ‘Que sonho da ceifa é aquele?’
55 
Ibid., vv. 313-314: 166, ‘As ovelhas agora os campos de Siquém / com quase todos os redis ocupam.’
56 
Ibid., I.03.348: 166, ‘Eu mataria quem me quisesse matar.’
57 
Ibid., v.349: 166, ‘Vamos contar isto aos nossos irmãos.’
58 
Aristóteles, Retórica, 1387 b 24-26; 1388 a 1-16.
59 
Vv. 821-822. Vide tradução em Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade... cit., p. 199.
60 
Iosephus, I.05.402: 166, ‘ameaçados, frequentemente, por feras terribilíssimas.’
Aristóteles, Retórica, 1385 b 20-34. O temor ( ) e a compaixão ( 
61 
 ) são os efeitos específicos da tragédia
(Retórica, 1453 b 11-14).
62 
Nair de Nazaré Castro Soares, «Dramaturgia e actualidade do teatro clássico: matéria e forma na tragédia quinhen-
tista», in: I Congresso da APEC. Raízes greco-latinas da cultura portuguesa, Coimbra, 1999, p. 174.

166 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e Solidariedade: Um Testemunho Escolar Quinhentista

/…ibi sepultus expiret puer)63. Consumada a perfídia, divertem-se quais pastores da


Arcádia – onde não faltam as contendas de tom virgiliano –, música e dança ao
som da lira e do tambor, com um jogo de hóquei em campo e um apetitoso manjar,
regado com um vinho delicioso (Grata soporanti uenient cum fercula uino)64, numa
alegria esfuziante (Saltemus, ista gaudeamus gaudia)65. É um momento de júbilo ma-
cabro: Simeão sugere que se mate um cabrito para festejar o crime, se beba leite, se
cante, se dance… Dã saca da lira, à flauta está Zabulão, Issacar no tambor. Embora
o espírito popular, de folguedo, seja de todas as civilizações, quer-nos parecer que
esta manifestação de contentamento assume uma feição tipicamente portuguesa.
A dar continuidade ao canto e dança, aparece o ludus pilae ligneae, baculis im-
pulsae, onde a presença do vocabulário recorrente baculis denuncia o genus humilis,
atribuído ao estilo das éclogas de Virgílio. É esta variedade cénica que torna esta
peça de inspiração senequiana, de tom retórico e moralizante, num verdadeiro es-
pectáculo de diversão, “com cor, som”.
De índole clássica, este jogo de hóquei em campo configura uma amplificatio
de verosimilhança, na economia da narrativa. Com efeito, o texto sagrado não faz
referência alguma a esta actividade desportiva66. Interrompe-se, deste modo, a pro-
gressão da acção dramática, recreando-se o espectador com este entretenimento.
Enquanto Dã inicia os preparativos para o almoço, Simeão vai sugerir aos ir-
mãos, à maneira de aperitivo, um jogo:

Gratius epulabimur
Si ludus acuet ligneae stomachum pilae,
Baculis recussae, et intra metas conditae.
Omnes
Placet, eia metis pone Iuda terminos.

Mais agradavelmente comeremos


se nos despertar o apetite o jogo da bola de madeira,
repelida à bastonada e metida na baliza.
Todos
Boa ideia. Vamos, Judá! Marca as balizas67.
Judá estabelece os limites do recinto de jogo, que todos aceitam (accipimus),

63 
Iosephus, I.08.594-596: 167, ‘há nos bosques / mais próximos uma cisterna... /... que ali sepultado expire o menino’.
64 
Iosephus, I.11.862: 167, ‘Deliciosos manjares hão-de vir com um vinho entorpecedor’.
65 
Ibid., v. 740: 167 ‘Dancemos, vivamos em cheio estas alegrias’.
66 
Veja-se, para confronto, esta passagem nas Sagradas Escrituras (Génesis, 37.23-25): «Quando José chegou junto dos
irmãos, estes despojaram-no da túnica comprida que usava e, agarrando-o, lançaram-no à cisterna. Esta estava vazia e
sem água. Depois, sentaram-se para comer. Erguendo, porém, os olhos, viram uma caravana de ismaelitas que vinha de
Guilead.» Bíblia Sagrada, versão dos textos originais, Difusora Bíblica, Lisboa, 2003, p. 77.
67 
Iosephus, I.10.780-783.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 167


António Melo

Huc oculos. Austri uersus pluuialia regna


Quercus limes erit; Stellis Borealibus ornus

Voltem para aqui o vosso olhar. Do sul, voltado para os pluviosos reinos
o carvalho será o limite; (do Norte, voltado) para as estrelas Setentrionais,
o freixo silvestre68.

e define a regra do vencedor:

Qui ter teretem per limina buxum


Intulerit fausto baculi contraria pulsu,
Is sibi laeta mea est, hodie uictoria clamet.

Aquele que, por três vezes69, na baliza contrária


a bola de buxo introduzir por feliz impulso do bastão,
Esse tem o meu contentamento; que hoje dê gritos de vitória70.

A sorte há-de ditar a eleição daquele que será o primeiro a jogar, segundo a
proposta de Judá:

…Iungamus baculos, iaciantur in aera, uicto


Incumbens baculo baculus, det iura legendi.

‘…Unamos os bastões, atirem-se ao ar;


o bastão que cai sobre o vencido bastão dará o direito de escolher’ 71.

Inicia-se o jogo e os irmãos trocam a bola entre si; Judá será o vencedor, como
proclamam as palavras de Zabulão: Vicisti, o inclyte Iuda 72. Não se pense, contudo,
que por lhe ter sorrido a vitória, a sorte vai estar sempre do seu lado; Simeão recorda
ao grande vencedor:

Saepe solet primis euentibus alba uideri,


Quae tamen extremo nigra est fortuna recessu.

Muitas vezes costuma, nos primeiros resultados, parecer favorável,

68 
Iosephus, I.11.795-796.
69 
Número cuja simbologia se perde na noite lendária dos povos. As Sagradas Escrituras também revelam a sua presença
e, v. g., no Novo Testamento, pode significar a unicidade de Deus trinitário, a repetição do «Cordeiro de Deus», na
Santa Missa ou sinal de arrependimento, com o pecador, por três vezes, a bater no peito.
70 
Iosephus, I.11.797-799.
71 
Ibid., v. 805-806.
72 
Ibid., v. 832: 168, ‘Venceste, ó bravo Judá!’

168 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Desporto e Solidariedade: Um Testemunho Escolar Quinhentista

contudo, a sorte é tenebrosa ao afastar-se no fim73.

A narrativa deste episódio põe em relevo o testemunho dum ideário educativo,


onde o desporto ocupa lugar de destaque para a formação intelectual dos alunos.
Com efeito, para o humanista do Renascimento, o desporto descansa e apazigua
o espírito para a verdadeira concentração e bom aproveitamento dos estudos. Na
opinião de François de Dainville74, pertence aos Jesuítas a iniciativa de aligeirar os
horários escolares, em proveito da saúde de mestres e alunos, com a introdução de
pausas para distracção. É uma tendência que se verifica a partir de meados do séc.
XVI. Afinal, o homem não era apenas espírito, mas também corpo, com possibi-
lidades limitadas. Por isso, no fim deste século, vai consagrar-se uma nova prática
pedagógica com a institucionalização de um período de férias no mês de Setembro.
Acompanha-se, deste modo, o ritmo da secularização da escola, que acolhe cada vez
mais jovens laicos, destinados ao exercício de cargos públicos ao serviço do estado.
Estas preocupações com o corpo estão em sintonia com o pensamento do
fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loiola (1491-1556). Com efeito, nas
Constituições da Companhia de Jesus, estabelece-se que, todas as semanas, se inter-
rompam os estudos durante uma tarde, logo após a refeição. Segundo ele, «convém
ordinariamente a todos algum exercício corporal, ainda àqueles que hão-de aplicar-
se ao trabalho intelectual»75. Esta preocupação com o exercício físico dos estudantes
revela-nos um pensador meticuloso, a ponto de recomendar que «por uma hora ou
duas depois das refeições, sobretudo no verão, não devem permitir-se, na medida do
possível, exercícios violentos do corpo ou do espírito»76. E acrescenta, com o propó-
sito de evitar excessos: «não convém prolongar demasiado os trabalhos sem alguma
interrupção ou conveniente recreação»77.
A esta temática já não ficou indiferente Jerónimo Osório (1506-1580): a questão
é estudada no tratado De regis institutione et disciplina ( Da educação e instrução do
príncipe ), publicado em 1572. No início do livro I (262.55-263.42), advoga-se uma
educação moderna para D. Sebastião, que deve ser formado em três áreas comple-
mentares: no desenvolvimento das aptidões físicas (palaestra) e intelectuais (litteris),
bem como no campo moral e religioso (religione). O mesmo assunto é retomado no
livro IV (385.17-36)78, onde se propõem os desportos e as actividades físicas reco-

73 
Ibid., v. 835-836.
74 
François Dainville, L´ éducation dês jésuites (XVI e -XVIIIe siècles), Paris, 1978, maxime pp. 519-533.
Inácio de Loiola, Constituições da Companhia de Jesus anotadas pela Congregação 34 e Notas Complementares aprova-
75 

das pela mesma Congregação, Braga, 1997, p. 90, n.º 298.


76 
Ibid., n.º 299.
Ibid. José Manuel Martins Lopes, O projecto educativo da Companhia de Jesus: dos Exercícios Espirituais aos nossos dias,
77 

Braga, 2002, pp. 235-238.


Jerónimo Osório, Hieronymi Osori Lusitani, Episcopi Algarbiensis Opera omnia, Hieronymi Osorii nepotis Canonici
78 

Eborensis diligentia. In unum collecta, et in Quattuor volumina distributa. Ad Philippum I Portugaliae regem inuictissi-
mum. Romae. Ex Bibliotheca Georgij Ferrarij MDCII.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 169


António Melo

mendáveis ao príncipe79.
Idêntico espírito anima o humanista bracarense, Diogo de Teive, que atribui
aos exercícios físicos um grande valor na formação integral da personalidade, reco-
mendando a sua prática80.
Como vemos, o desporto tem ocupado um lugar de relevo na cultura ocidental:
desde Hipócrates que se reconhece a importância do exercício físico para uma vida
mais saudável. Da sua história, havemos de concluir que se trata, essencialmente, de
uma manifestação humana, imprescindível na formação integral dos cidadãos, cor-
porizada no velho adágio mens sana in corpore sano, já acima mencionado. À natu-
reza intrínseca do desporto pertence a dimensão religiosa: a sua ausência conduziu
o homem ao relativismo que explica a absolutização do mercantilismo ocidental81.
Apesar disto, o desporto, enquanto escola de formação humana norteada pelos mais
nobres ideais, continua a perdurar, pelo menos, na mente de alguns praticantes,
ainda que profissionais. Neste sentido, torna-se gratificante recordar as palavras
do guarda-redes Gianluigi Buffon, proferidas em tom de desabafo, em Guimarães,
após o afastamento da selecção italiana: «O desporto deve ser uma escola de valores;
o que vamos nós ensinar às crianças? Para as crianças que vêem futebol, o que lhe
vamos dizer?!...»

79 
Na Idade Média, a cultura física era vista em função do adestramento nas armas. Nair de Nazaré Castro Soares, O
Príncipe Ideal no Século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório, Coimbra, 1994, pp. 299 e 427-428.
80 
Diogo de Teive, Epodos Que Conte m Sentenças Úteis A Todos os Homens, A’s quaes se acrescentão Regras para a boa
educação de hum Príncipe, trad. no vulgar em verso solto por Francisco de Andrade (conforme à ed. De Lisboa, 1565).
Lisboa. Na Of. Patr. De Francisco Luiz Ameno, MDCCLXXXVI; Nair de Nazaré Castro Soares, Tragédia do Príncipe
João de Diogo de Teive, introdução, texto, tradução e notas. Coimbra, 1999, p. 34.
81 
A propósito, vide José M. Alejandro, «Nuestro occidente deportivo», Razón y Fe, 152, N.os 690-691 (1955) 39-56 e
J. Huizinga, Homo ludens. Essai sur la fonction sociale du jeu, tradução de Cécile Seresia, Paris, 1951.

170 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o L abor nas Geórgicas de Vírgilio
e n’a Criação do Mundo de Torga

António Moniz
U. Nova de Lisboa
am.moniz@fcsh.unl.pt

Introdução
A dicotomia clássica otium versus labor, ou negotium, fruto da consciência cul-
tural e civilizacional que decorre do envolvimento individual e colectivo da espécie
humana na Cosmogonia, representa, em qualquer estádio histórico, ou pré-histó-
rico, a necessidade dialéctica de conciliar o esforço com a fruição, a acção com a
contemplação, o trabalho com o lazer.
O mito da aurea aetas, literariamente esboçado por Hesíodo, resume não ape-
nas a concepção tendencialmente decadentista da História humana, levemente con-
trariada com a idade dos heróis, mas também a natural inclinação para a inércia, de
pouco valendo, pelo menos à primeira vista, a compensação mitológica e religiosa
que faz do Homem um colaborador da criação divina. No entanto, não é despicien-
do o prazer que resulta de um trabalho concluído, em termos de realização pessoal
e colectiva, espécie de shabat bíblico no éden contraditório da vida quotidiana.
Por outro lado, apesar de todos os reveses que a História contemporânea regista,
não deixa de ser aliciante avaliar e contemplar, ao invés da tendência decadentista
que transparece desse mito hesiódico das Idades, a enorme evolução positiva que a
Humanidade pôde traçar ao longo de séculos e milénios, em termos económicos,
sociais, políticos e culturais: da barbárie para a civilização, da escravidão para a
liberdade, da ignorância para o conhecimento, da miséria para a dignidade e a
qualidade de vida.
As Geórgicas, de Virgílio, e A Criação do Mundo, de Torga, vão constituir objec-
to comparativo de dois mundos civilizacionais, no âmbito da representação cosmo-
gónica: o mundo antigo e o mundo contemporâneo. O otium e o labor desenharão
a bissectriz que iluminará a consciência do estádio evolutivo de cada mundo, na
dialéctica Homem-Natureza e Homem-Sociedade.

1. As Geórgicas, de Virgílio
Situado no âmago da História de Roma e do mundo antigo, na expectativa de
uma nova aurea aetas, com o advento messiânico de César Augusto, Virgílio evoca a
sociedade agrária sobre a qual se edifica esse mundo, formulando o objecto épico do
seu canto1 numa cardeal divisão quaternária: a agricultura (livro I)2; a silvicultura e

1 
“[...] hinc canere incipiam” (Geórgicas, I, 5).
2 
“Quid faciat laetas segetes” (I, 1).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 171


António Moniz

a viticultura (livro II)3; a pecuária (livro III)4; a apicultura (livro IV)5.


Os deuses tutelares e doadores dessa riqueza fundiária são objecto de uma cir-
cunstanciada invocação, sendo sumariamente concebidos como astros de primeira
grandeza, na mais pujante iluminação cósmica6: Líber e Ceres, responsáveis pela
cultura do vinho e dos cereais7; os Faunos e as Dríades, míticos habitantes dos
campos8; Neptuno e a sua dádiva do cavalo9; Pã, guardião dos ovinos10; Minerva,
criadora da oliveira11; Silvano, portador de um cipreste12.
César, “nova constelação” do Universo13 e novo nume olímpico14, a quem a terra
e o mar acolherão como senhor e autor das estações15, é também invocado como
dedicatário e patrono do poema16.
O labor, matéria quase absoluta do corpus discursivo do poema, entronca nos
mitos cosmogónicos da aurea aetas17, do fogo sagrado e de Prometeu18, surgindo, à
semelhança da visão bíblica do Génesis, como uma dura prova para a condição hu-
mana e animal19, por imperativo divino: “Pater ipse colendi / haud facilem esse uiam
uoluit”20. A hostilidade da Natureza passou a traduzir-se no veneno das cobras21, na
predação animal22, na alteração dos mares23. A par desta visão depreciativa do labor,
indiciada pelo adjectivo improbus e pela premente imposição da necessidade, não é
negligenciável a sua capacidade vitoriosa (uicit) sobre essa hostilidade: “labor omnia

3 
“[...] ulmisque adiungere uitis” (I, 2).
4 
“[...] quae cura boum, qui cultus habendo / sit pecori” (I, 3-4).
5 
“[...] apibus quanta experientia parcis” (I, 4).
6 
“Vos, o clarissima mundi / lumina, labentem caelo quae ducitis annum” ( I, 5-6).
“Liber et alma Ceres, uestro si munere tellus / Chaoniam pingui glandem mutauit arista / poculaque inuentis Acheloia
7 

miscuit uuis” (I, 7-9).


8 
“[...] et uos, agrestum praesentia numina, Fauni, / ferte simul Faunique pedem Dryadesque puellae” (I, 10-11).
9 
“Tuque o, cui prima frementem / fudit equom magno tellus percussa tridenti, / Neptune” (I, 12-14).
10 
“ipse, nemus linquens patrium saltusque Lycaei, / Pan, ouium custos, tua si tibi Maenala curae” (!, 16-17).
11 
“[...] oleaeque Minerua / inuentrix” (I, 18).
12 
“[...]et teneram ab radice ferens, Siluane, cupressum” (20).
13 
“[...] nouom [...] sidus” (I, 32).
14 
“Tuque adeo, quem mox quae sint habitura deorum / concilia incertum est, [...] Cesar” (I, 24-25).
“[...] urbisne inuisere, Caesar, / terrarumque uelis curam, et te maximuus orbis / auctorem frugum tempestatumque
15 

potentem / accipiat, [...] an deus immensi uenias maris ac tua nautae / numina sola colunt” (I, 25-28.29).
16 
“[...] da facilem cursum atque audacibus adnue coeptis, / ignarosque uiae mecum miseratus agrestis / ingredere et
uotis iam nunc adsuesce uocari” (I, 40-42).
17 
“Ante Iouem nulli subigebant arua coloni; / ne signare quidem aut partiri limite campum / fas erat  : in medium
quaerebant ; ipsaque tellus / omnia liberius, nullo poscente, ferebat” (I, 125-128).
18 
“Ille [Iuppiter] [...] ignemque remouit / […] et silicis uenis abstrusum excuderet ignem” (I, 129. 131).
19 
“Nec tamen, haec cum sint hominumque boumque labores / uersando terram experti” (I, 118-119).
20 
I, 121-122.
21 
“Ille [Iuppiter] malum uirus serpentibus addidit atris” (I, 129).
22 
“[...] praedarique lupos iussit” (I, 130).
23 
“[...] pontumque moueri” (I, 130).

172 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

uicit / improbus, et duris urgens in rebus egestas”24. As alfaias agrícolas e a aprendiza-


gem da metalurgia, dom de Ceres25, permitem transformar a esterilidade da terra
em produção agrícola 26.
Resta aos humanos colocarem a sua inteligência ao serviço da sua actividade
laboriosa 27, já que o ócio inactivo e entediante passou a constituir um interdito28.
Resulta a necessidade do estudo do clima e dos modos tradicionais da agricultura
e da maior aptidão cultural de cada região29, bem como da proveniência comercial
dos diversos produtos de todo o Mundo Antigo30. O conhecimento das culturas do
trigo e dos legumes31, do linho, da aveia e da papoila32, bem como da alternância
de culturas33, das técnicas das queimadas34 e da necessidade cíclica do pousio35
constitui objecto simultaneamente científico, ou paracientífico, e literário. O re-
conhecimento do tempo favorável à sementeira e à colheita36, a aprendizagem dos
sinais dos tempos, dom de Júpiter37, a identificação dos prognósticos da Lua38 e do
Sol39, a relação entre o registo dos sismos no Etna e o mito dos Ciclopes40 são outros
tópicos do Livro I, que combinam as informações técnicas com as culturais.
Ligado à aurea aetas, o otium evoca nostalgicamente a época de Saturno41, mas

24 
I, 45-146.
25 
“Prima Ceres ferro mortalis uertere terram / instituit” (I, 147-148).
26 
“[...] interque nitentia culta / infelix lolium et steriles dominantur auenae” (153-154).
27 
“[...] primusque per artem / mouit agros, curis acuens mortalia corda” (I, 122-123).
28 
“[...] nec torpere graui passus sua regna ueterno” (I, 124).
29 
“Ac prius ignotum ferro quam scindimus aequor, / uentos et uarium caeli praediscere morem / cura sit ac patrios
cultusque habitusque locorum, / et quid quaeque ferat regio et quid quaeque recuset. / Hic segetes, illic ueniunt felicius
uuae, / arborei fetus alibi atque iniussa uirescunt / gramina” (I, 50-56).
“Nonne uides croceos ut Tmolus odores, / India mittit ebur, molles sua tura Sabaei, / at Chalybes nudi ferrum uiro-
30 

saque Pontus / castorea, Eliadum palmas Epiros equarum?” (I, 56-59).


31 
“[...] aut ibi flaua seres mutato sidere farra, / unde prius laetum siliqua quassante legumen” (I, 73-74).
32 
“[...] Vrit enim lini campum seges, urit auenae, / urunt Lethaeo perfusa pauera somno” (I, 77-78).
33 
“Sed tamen alternis facilis labor; […] / […] Sic quoque mutates requiescunt fetibus arua, / nec nulla interea est ina-
ratae gratia terrae” (I, 79. 82-83).
34 
“Saepe etiam sterilis incendere profuit agros, / atque levem stipulam crepitantibus urere flammis: / siue inde occultas
uiris et pabula terrae / pinguia concipiunt, siue illis omne per ignem / excoquitur uitium atque exsudat inutilis umor, /
seu pluris calor ille uias et caeca relaxat / spiramenta, nouas ueniat qua sucus in herbas, / seu durat magis uias et uenas
adstringit hiantis, / ne tenues pluuiae rapidiue potentia solis / acrior aut Boreae penetrabile frigus adurat” (I, 84-93).
35 
“Alternis idem tonsas cessare noualis, / et segnem patiere situ durescere campum” (I, 71-72).
36 
“[...] hinc messisque diem tempusque serendi” (I, 253).
37 
“Atque haec ut certis possemus discere signis, / aestusque pluuiasque et agentis frigora uentos, / ipse Pater statuit quid
menstrua Luna moneret, / quo signo caderent Austri, quid saepe uidentes / agricolae propius stabulis armenta tenerent”
(I, 351-355).
38 
“Si uero solem ad rapidum lunasque sequentis / ordine respicies, nunquam te crastina fallet / hora neque insidiis
noctis capiere serenae” (I, 424-426).
39 
“Ille [Sol] etiam caecos instare tumultus / saepe monet fraudemque et operta tumescere bella” (I, 464 s.).
40 
“Quotiens Cyclopum efferuere in agros / uidimus undantem ruptis fornacibus Aetnam / flammarumque globos
liquefactaque uoluere saxa!” (I, 471-473).
41 
Cf. I, 125-135.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 173


António Moniz

também a memória cultural das tradições42. A contemplação da Natureza43 e dos


frutos do trabalho agrícola reenvia o leitor para o equilíbrio alternativo entre os dois
tipos de ocupação humana44.
O canto de Baco45 dá o tom ao Livro II, enquanto espaço de silvicultura, em
geral, e da olivicultura e da viticultura, em particular. As diferentes espécies arbó-
reas surgem como ícones identitários de cada pátria46, como o ébano em relação
à Índia,47 o incenso à Arábia Sabeia48, o limoeiro à Média49. O mundo, na óptica
virgiliana, está submetido aos cultivadores: “Adspice et extremis domitum cultoribus
orbem”50. A própria Itália é hiperbolicamente convertida num jardim edénico, su-
perior à Média, ao Ganges, ao Hermo, à Báctria e à Pancaia51, um locus amoenus
de eterna Primavera, numa fertilidade de duas culturas anuais: “Hic uer adsiduom
atque alienis mensibus aestas: / bis grauidae pecudes, bis pomia utilis arbos”52. Em
harmonia com este esplendor natural, o património artístico coroa a civilização
romana: “Adde tot egregias urbes operumque laborem, / tot congesta manu praeruptis
oppida saxis / fluminaque antiquos subterlabentia muros”53. O próprio mar Tirreno
desemboca miticamente no Averno54, enquanto Roma é saudada como terra de
cereais e mãe de heróis55: os Décios, os Mários, os Camilos, os Cipiões e, acima de
todos, César Augusto56.
Ao lado da descrição poético-mitológica da Primavera57 e do gosto popular

42 
“Possum multa tibi ueterum praecepta referrre, / ni refugis tenuisque piget cognoscere curas” (I, 176-7).
43 
“Illic, ut perhibent, aut intempesta silet nox / semper et obtenta densetur nocte tenebrae, / aut redit a nobis Aurora
diemque reducit ; nosque ubi primus equis Oriens adflauit anhelis, / illic sera rubens accendit lumina Vesper” (I, 249-
251).
44 
“Contemplator item, cum se nux plurima siluis / induet in florem et ramos curuabit olentis” (I, 187-8).
45 
“[...] nunc te, Bache, canam, nec non siluestris tecum / uirgulta et prolem tarde crescentis oliuae” (II, 2-2).
46 
“[...] diuisae arboribus patriae” (II, 116).
47 
“Sola India nigrum / fert hebenum” (II, 116-7).
48 
“[...] solis est turea uirga Sabaeis” (I, 117).
49 
“Media fert tristis sucos tardumque saporem / felicis mali” (II, 126).
50 
II, 114.
51 
Cf. II, 134-139.
52 
II, 149-150.
53 
II, 155-157.
54 
“Tyrrhenisque fretis immititur aestus Auernis?” (II, 164).
55 
“Salue, magna parens frugus, Saturnia tellus, / magna uirum: tibi res antiquae laudis et artis / ingredior, sanctos ausus
recludere fontis, / Ascracumque cano Romana per oppida carmen” (II, 173-176).
“[...] haec Decios, Marios magnosque Camillos, / Scipiadas duros bello et te, maxime Caesar, / qui nunc extremis
56 

Asiae iam uictor in oris / imbellem auertis Romanis arcibus Indum” (II, 169-172).
57 
“Ver adeo frondi nemorum, uer utile siluis; / uere tument terrae et genitalia semina poscunt. / Tunc pater omnipotens
fecundis imbribus Aether / conjugis in gremium laetae descendit et omnis / magnus alit magno commixtus corpore
fetus. / Auia tum resonant auibus uirgulta canoris / et Venerem certis repetunt armenta diebus. / Parturit almus ager,
Zephyrique tepentibus auris / laxant arua sinus; superat tener ómnibus umor; / inque nouos soles audent se germina
tuto / credere, nec metuit surgentis pampinus Austros / aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem: / sed trudit gem-
mas et frondis explicat omnis. / Non alios prima crescentis origine mundi / illuxisse dies aliumue habuisse tenorem /
crediderim; uer illud erat, uer magnus agebat / orbis et hibernis parcebant flatibus Euri, / cum primae lucem pecudes

174 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

italiano pela comédia58, surge o trabalho rotineiro do viticultor59, “durus uterque


labor”60, em oposição ao cultivo das oliveiras61 e da fruticultura62.
De qualquer modo, a cultura agrária da civilização romana está bem patente na
opção virgiliana pela aurea mediocritas, em versos que foram tutelares dos poetas do
Renascimento europeu, designadamente dos portugueses Sá de Miranda, António
Ferreira ou, mesmo Camões: “O fortunatos nimium, sua si bona norint, / agricolae!
quibus ipsa discordibus armis, / fundit humo facilem uictum iustissima tellus”63, e da
idealização do género de vida sóbrio e tranquilo e das virtudes dos camponeses64,
em contraste com a cultura palaciana e da pragmática do luxo65.
É neste contexto que o otium virgiliano se inscreve como desejo de acesso aos
mistérios da Natureza, quer através da ciência66, quer através da poesia e da contem-
plação da beleza dos campos67. A ciência, com o seu efeito esconjurador de medos
e superstições68, é elogiada como uma mais valia da civilização, mas não como um
apanágio da cultura urbana, já que não invalida a aurea mediocritas69. O quadro

hausere uirumque / terrea progenies duris caput extulit aruis / immissaeque ferae siuis et sidera caelo. / Nec res hunc
tenerae possent perferre laborem, / si non tanta quies iret frigusque caloremque / Inter. Et exciperet caeli indulgentia
terras” (II, 323-346).
58 
“Nec non Ausonii, Troia gens missa, coloni / uersibus incomptis ludunt risuque soluto, / oraque corticibus sumunt
horrenda cauatis, / et te, Bacche, uocant per carmina laeta tibique / oscilla ex alta suspendunt mollia pinu” (II, 385-
389).
59 
“[...] Redit agricolis labor actus in orbem / atque in se sua per uestigia uoluitur annus. / Ac iam olim, seras posuit cum
uinea frondis / frigidus et siluis Aquilo decussit honorem, / iam tum acer curas uenientem extendit in annum / rusticus
et curuo Saturni dente relictam / persequitur uitem attondens fingitque putando” (II, 401-407).
60 
II, 412.
61 
“Contra non ulla est oleis cultura” (II, 420).
62 
“Poma quoque, ut primum truncos sensere ualentis / et uires habuere suas, ad sidera raptim / ui propria nituntur
opisque haud indiga nostrae” (II, 426-428).
63 
II, 458-460.
64 
“[...] illic saltus ac lustra ferarum / et patiens operum exiguoque assueta iuuentus, / sacra deum sanctique patres;
extrema per illos / iustitia excedens terris uestigia fecit” (II, 471-473).
65 
“Si non ingentem foribus domus alta superbis / mane salutantum totis uomit aedibus undam / nec uarios inhiant pul-
chra testitudine postis / inclusasque auro uestis Ephyreiaque aera, / alba neque Assyrio fucatur lana ueneno / nec casia
liquidi corrumpitur usus oliui, at secura quies et nescia fallere uita, / diues opum uariarum, at latis otia fundis, / spelun-
cae, uiuique lacus, et frigida Tempe / mugitusque boum mollesque sub arbore somni / non absunt” (II, 461-471).
66 
“Me uero primum dulces omnia Musae, / quarum sacra fero ingenti percussus amore, / accipiant caelique uias et
sidera monstrent, / defctus solis uarios lunaque labores, / unde tremor terris, qua ui maria alta tumescant / obicibus
ruptis rursusque in se ipsa residant, / quid tantum Oceano properent se tingere soles / hiberni, uel quae tardis mora
noctibus obstet” (II, 475-482).
67 
“Sin, has ne possim naturae accedere partis, / frigidus obstiterit circum praecordia sanguis / rura mihi et rigui place-
ant in uallibus amnes, / flumina amem siluasque inglorius. O ubi campi / Spercheosque et uirginibus bacchata Lacaenis
/ Taugeta! O qui me gelidis in uallibus Haemi / sistat et ingenti ramorum protegat umbra!” (II, 482-489).
“Felix qui potuit rerum cognoscere causas, / atque metus omnis et inexorabile fatum / subiecit pedibus strepiumque
68 

Acheruntis auari!” (II, 490-492).


69 
“Fortunatus et ille deos qui nouit agrestis, / Panaque Siluanumque senem Nymphasque sorores ! / Illum non populi
fasces, non purpura regum / flexit et infidos agitans discordia fratres / aut coniurato descendens Dacus ab Histro ; non
res Romanae perituraque regna ; neque ille aut doluit miserans inopem aut inuidit rura / sponte tulere sua, carpsit nec
ferrea iura / insanumque forum aut populi tabularia uidit.” (II, 493-502).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 175


António Moniz

bélico pintado70, sobretudo as guerras civis71, e o exílio72, contrasta com esta ideali-
zação agrária, o trabalho sem repouso do agricultor,73 a afectividade familiar74 e as
festas agrícolas em honra de Dioniso75.
Roma torna-se, assim, a mais bela maravilha do mundo: “et rerum facta est pul-
cherrima Roma / septemque una sibi muro circumdedit arces”76.
O Livro III, dedicado à pastorícia, através da invocação de Pales77, canta o
memorável pastor do Anfriso78, as florestas e rios do Liceu79. Dirigido ao leitor, que
tem o privilégio do otium80, o Livro contempla, ainda, os mitos de Euristeu81, Busí-
ris82, Hilas83, Delos84, Hipódamo85 e Pélops86, mas, principalmente, César Augusto,
deus colocado no meio do templo87, e as suas vitórias no Nilo e na Ásia88.
O poeta não deixa de se auto-referenciar, ao pretender, com a sua obra, uma
via de acesso à glória, simbolizada na coroa de oliveira, para si e para a sua bela
Mântua89.
“Sollicitant alii remis freta ruuntque / in ferrum; penetrant aulas et limina regum. / Hic petit excidiis urbem mi-
70 

serosque Penatis, / ut gemma bibat et Sarrano dormiat ostro : / condit opes alius defossoque incubat auro ; hic stupet
attonitus rostris ; hunc plausus hiantem / per cuneos, geminatus enim, plebisque patrumque corripuit” (II, 503-510).
71 
“[...] gaudent perfusi sanguine fratrum” (II, 510).
72 
“[...] exilioque domos et dulcia limina mutant / atque alio patriam quaerunt sub sole iacentem” (II, 511-512).
73 
“Agricola incuruo terram dimouit aratro: / hinc anni labor, hinc patriam paruosque nepotes / sustinet, hinc armenta
boum meritosque iuuencos; / nec requies, quin aut pomis exuberet annus / aut fetu pecorum aut Cerealis mergite culmi
/ prouentuque oneret sulcos atque horrea uineat” (II, 513-518).
74 
“Interea dulces pendent circum oscula nati, / casta pudicitiam seruat domus, ubera uaccae, lacteae demittunt, pin-
guesque in gramine laeto / inter se aduersis luctantur cornibus haedi” (II, 523-526).
“Ipse dies agitat festos fusuque per herbam, / ignis ubi in medio et socii cratera coronant, / te, libans, Lenae, uocat,
75 

pecorisque magistris uelocis iaculi certamina ponit in ulmo, / corpora agresti nudat praedura palaestra” (II, 527-531).
76 
II, 533-535.
77 
Deusa dos pastores e das pastagens: “Te quoque, magna Pales, [...] canemus” (III, 1).
78 
Rio da Tessália: “[...] et te, memorande, canemus, / pastor ab Amphryso” (III, 1-2).
79 
Monte da Arcádia, consagrado a Pã “[...] uos, siluae, amnesque Lycaei” (III, 2).
80 
“[...] quae uacuas tenuissent carmine mentes” (III, 3).
81 
Rei de Micenas: “[...] Eurysthea durum” (III, 4).
82 
Rei do Egipto: “[...] inlaudati [...] Busidiris”” (III, 5).
83 
Companheiro de Héracles, raptado pelas ninfas, seduzidas pela sua beleza: “Hylas puer” (III, 6).
84 
Ilha de Latona, mãe de Apolo e Ártemis: [...] et Latonia Delos”.
85 
Filha de Enómao e mulher de Pélops: “Hyppodameque” (III, 7).
86 
Filho de Tântalo, que o pai mandara servir aos deuses num banquete, sendo por eles restituído à vida: “[...] umeroque
Pelops insignis eburno, acer equis” (III, 7-8).
87 
“In medio mihi Caesar erit templumque tenebit” (III, 16).
88 
“In foribus pugnam ex auro solidoque elephanto / Gangaridum faciam uictorisque arma Quirini / atque hic undan-
tem bello magnumque fluentem / Nilum ac nauali surgentis aere columnas. Addam urbes Asiae domitas pulsumque
Niphaten / fidentemque fuga Parthum uersisque sagittis / et duo rapta manu diuerso ex hoste tropaca / bisque trium-
phatas utroque ab litore gentis (III, 26-33). Mox tamen ardentis accingar dicere pugnas / Caesaris et nomen fama tot
ferre per annos, / Tithoni prima quot abest ab origine Caesar” (III, 46-48).
89 
“Temptanda uia est, qua me quoque possim / tollere humo uictorque uirum uolitare per ora. / Primus ego in patriam
mecum, modo uita supersit, / Aonio rediens deducam uertice Musas; / primus Idumaeas referam tibi, Mantua, palmas;
/ et uiridi in campo templum de marmore ponam / propter aquam, tardis ingens ubi flexibus errat / Mincius et tenera
praetexit harundine ripas (III, 8-15). Ipse caput tonsae foliis ornatus oliuae / dona feram” (III, 21-22).

176 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

Mecenas, impulsionador da obra90, surge como arquétipo da diligência a efec-


tuar pelo artista da palavra escrita, contra todos os obstáculos, pessoais e alheios91.
A propósito da juventude dos animais, o tópico da fugacidade dos belos dias,
marcados pela fogosidade amorosa, em contraste com a chegada apressada da velhi-
ce, da doença e da morte, constitui um quadro paradigmático de toda a vida ani-
mal, extensivo à condição humana92. À lei universal do amor93 e ao seu efeito mais
intensivo nos jovens94 sucede-se a lei da fugacidade do tempo: “Sed fugit interea,
fugit inreparabile tempus, / singula dum capti circumuectamur amore”95.
Em contraste com a actividade laboriosa dos pastores em quase todo o ano, o
Inverno é caracterizado pela imposição climática do ócio96, através do passatempo
dos jogos e das bebidas alcoólicas97.
O quadro negro da doença e da morte98 ensombra o final do Livro III, des-
prendendo-se, após o catálogo das doenças, sua diagnose e proposta terapêutica,
uma conclusão desoladora, a propósito da avaliação de uma vida: “Quid labor aut
benefacta iuuant? Quid uomere terras inuertisse grauis?”99.
Dedicado à apicultura, o Livro IV propõe o universo das abelhas como arquéti-
po de uma sociedade utópica, sendo o mel um dom celeste100 e a obra empreendida
pelas respectivas artesãs uma maravilha, cuja contemplação estética é apresentada
ao dedicatário como exemplo de uma interacção harmoniosa entre chefes e o colec-
tivo dos intervenientes na produção101.
Símbolo da condição humana e animal, as abelhas envolvem-se em combates

90 
“Interea Dryadum siluas saltusque sequamur / intactos, tua, Maecenas, haud mollia iussa” (III, 40-41).
“Te sine nil altum mens incohat. En age, segnis / rumpe moras; uocat ingenti clamore Citaeron / Taugetique canes
91 

domitrixque Epidaurus equorum; / et uox adsensu nemorum ingeminata remugit” (III, 42-45).
92 
“Optima quaeque dies miseris mortalibus aeui / prima fugit; subeunt morbi tristisque senectus / et labor, et durae
rapit inclementia mortis” (III, 66-68).
93 
“Omne adeo genus in terris hominumque ferarumque / et genus aequoreum, pecudes pictaeque uolucres / in furias
ignemque ruont: amor omnibus idem” (III, 242-244).
94 
“Quid juuenis, magnum cui uersat in ossibus ignem / durus amor?” (III, 258-259).
95 
III, 284-285.
96 
“Interea toto non setius aere ningit [...]. Ipsi in defossis specubus secura sub alta / otia agunt terra congestaque robora
totasque / aduoluere focis ulmos ignique dedere” (III, 367. 376-378).
97 
“Hic noctem ludo ducunt et pocula laeti / fermento atque acidis imitantur uitea sorbis” (III, 379-380).
98 
“It tristis arator / maerentem abiungens fraterna morte iuueneum / atque opere im medio defixa relinquit aratra. /
Non umbrae altorum nemorum, non mollia possunt / prata mouere animum, non qui per saxa uolutus / purior electro
campum petit amnis; at ima / soluontur latera atque oculos stupor urget inertis / ad terramque fluit deuexo pondere
ceruix” (III, 517-524).
99 
L. III, 525-526.
100 
“Protinus acrii mellis caelestia dona / exsequar” (IV, 1).
“Admiranda tibi leuium spectacula rerum, / magnanimosque duces totiusque ordine gentis / mores et studia et
101 

populos et proelia dicam” (IV, 3-5).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 177


António Moniz

pela conquista do poder102, cuja vitória é atribuída ao melhor103. O Estado de direito


é evocado no papel civilizacional das abelhas, expresso na consciência da cidadania
e da religião familiar e numa economia baseada no trabalho solidário e previden-
te104. O espírito cooperativo pauta toda a sua produção105, sendo os ciclopes o para-
digma da sua auto-subsistência, a partir da estratégia da parceria106.
A alternância labor/quies no mundo das abelhas representa o equilíbrio harmo-
nioso da vida humana107. O respeito máximo para com o rei, mais do que entre os
Egípcios e os Lídios, numa perfeita osmose108, chegando a defendê-lo até à morte109,
em compensação com a sua vigilância110, é um motivo de grande simpatia e admi-
ração por parte de Virgílio.
Em suma, reconhecendo a vida como dom divino111 e professando, numa linha
pitagórica, platónica e estóica, a crença na sobrevivência da alma,112 o Poeta entron-
ca a habilidade das abelhas na inteligência divina113.
A arte de cantar os jardins, evocada em estilo de proposição114, antes da refe-

“Sin autem ad pugnam exierint nam saepe duobus / regibus incessit magno discordia motu; / continuoque animos
102 

uogi et trepidantia bello / corda licet longe praesciscere; / namque morantis / Martius ille aeris rauci canor increpat, et
uox / auditur fractos sonitus imitata tubarum; / tum trepidae inter se coeunt, pinnisque coruscant / spiculaque axacuunt
rostris aptantque lacertos / et circa regem atque ipsa ad praetoria densae / miscentur magnisque uocant clamoribus
hostem” (IV, 67-76).
103 
“Verum, ubi ductores acie reuocaueris ambo, / deterior qui uisus, eum, ne prodigus obsit, / dede neci; melior uacua
sine regnet in aula” (IV, 88-90).
104 
“Solae communis natos, consortia tecta / urbis habent magnisque agitant sub legibus aeuom / et patriam solae et
certos nouere Penatis / uenturaeque hiemis memores aestate laborem / experiuntur et in medium quesita reponunt”
(IV, 153-157).
“Namque aliae uictu inuigilant et foedere pacto / exercentur agris; pars intra saepta domorum / narcissi lacrimam et
105 

lentum de cortice gluten / prima fauis ponunt fundamina, deinde tenacis / suspedunt ceras; aliae spem gentis adultos /
educunt fetus; aliae purissima mella / stipant et liquido distendunt nectare cellas” (IV, 158-164).
106 
“Aut ueluti lentis Cyclopes fulmina massis / cum properant, alii taurinis follibus auras accipiunt redduntque, alii
stridentia tingunt / aera lacu; gemit impositis incudibus antrum; / illi inter sese magna ui bracchia tollunt / in numerum
uersantque tenaci forcipe ferrum: / non aliter (si parua licet componere magnis) / Cecropias innatus apes amor urget
habendi, / munere quamque suo” (IV, 170-178).
107 
“Omnibus una quies operum, labor omnibus unus: / mane ruont portis; nusquam mora; rursus easdem / uesper
ubi e pastu tandem decedere campis / admonuit, dum tecta petunt, tum corpora curant; fit sonibus, mussantque oras
et limina circum. / Post, ubi iam thalamis se composuere, siletur / in noctem, fessosque sopor suos occupat artus” (IV,
184-190).
“Praeterea regem non sic Aegyptus et ingens / Lydia nec populi Parthorum aut Medus Hydaspes / obseruant. Rege
108 

incolumi mens omnibus una est” (IV, 210-212).


“[...] illum admirantur et omnes / circumstant fremitu denso stipantque frequentes / et saepe attolunt umeris et
109 

corpora bello / obiectant pulchramque petunt per uolnera mortem” (IV, 215-218).
110 
“Ille operum custos” (IV, 215).
“[...] deum namque ire per omnis / terrasque tractusque maris caelumque profundum: / hinc pecudes, armenta,
111 

uiros, genus omne ferarum, / quemque sibi tenuis nascentem arcessere uitas” (IV, 221-224).
112 
“[...] scilicet huc reddi deinde ac resoluta referri / omnia, nec morti esse locum, sed uiua uolare / sideris in numerum
atque alto succedere caelo” (IV, 225-227).
“His quidam signis atque haec exempla secuti / esse apibus partem diuinae mentis et haustus / aetherios dixere” (IV,
113 

219-221).
114 
“Atque equidem, extremo ni iam sub fine laborum / uela traham et terris festinem aduertere proram, / forsitan et,
pinguis hortos quae cura colendi / ornaret, canerem biferique rosaria Paesti, / quoque modo potis gauderent intiba riuis

178 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

rência ao mito do velho de Tarento, surge, entretanto como arquétipo do otium da


aristocracia romana: o aproveitamento do terreno abandonado, improdutivo para a
pecuária e a vinha, constitui uma verdadeira alternativa, surgindo o jardim como
imagem simbólica da riqueza e da estética do cosmo, tocado pela mão e a inteligên-
cia humanas115.
O epílogo do poema contextualiza o canto das Geórgicas na campanha militar
de Augusto no Eufrates116, época em que o Poeta dedicava o seu labor, ou ócio poé-
tico, ignobilis oti, à escrita da I Bucólica117, cujo verso inicial transcreve118.

2. A Criação do Mundo, de Torga


Entendida à medida do homem e do indivíduo119, A Criação do Mundo, plasma-
da em prosa120, reparte-se pelo relato de um percurso autobiográfico em seis dias,
como no Livro bíblico do Génesis. O universo de Miguel Torga, diferentemente do
de Virgílio, é o mundo individual, com sua “torrente de emoções, volições, paixões
e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade
proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também
rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais in-
fausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor. Mundo de
contrastes, lírico e atormentado, de ascensões e quedas, onde a esperança, apesar de
sucessivamente desiludida, deu sempre um ar da sua graça, e que não trocaria por
nenhum outro, se tivesse de escolher”121.
Do mundo da infância (O Primeiro Dia), associado ao “paraíso de delícias”122,
ressalta a experiência escolar, designadamente a festa da árvore, com o seu hino,123
e o contacto com o mestre, cuja “largueza pedagógica” abrangia manifestações de
carácter popular, como a Encomendação das Almas, na Quaresma124, e o coro da
/ et uirides apio ripes, tortusque per herbam / cresceret in uentrem cucumis; nec sera comantem / narcissum aut flexi
tacuissem uimen acanthi / pallentisque hederas et amantis litora myrtos” (IV, 116-124).
“Hic rarum tamen in dumis olus albaque circum / lilia uerbenasque premens uescumque papauer: / regum aequabat
115 

opes animis, seraque reuertens / nocte domum dapibus mensas onerabat inemptis. / Primus uere rosam atque autumno
carpere poma; / et, cum tristis hiems etiamnum frigore saxa / rumperet et glacie cursus frenaret aquarum, / ille comam
mollis iam tondebat hyacinthi / aestatem increpitans seram Zephyrosque morantis” (IV, 130-138).
116 
“Haec super aruorum cultu pecorumque canebam / et super arboribus, Caesar dum magnus ad altum / fulminat
Euphratem bello uictorque uolentis / per populos dat iura uiamque affectat Olympo” (IV, 559-562).
117 
“Illo Vergilium me tempore dulcis alebat / Parthenope studiis florentem ignobilis oti / carmina qui lusi pastorum
audaxque iuuenta” (IV, 563-565).
118 
“Tytire, te patulae cecini sub tegmine fagi” (IV, 566).
“Todos nós criamos o mundo à nossa medida. [...] O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados”
119 

(Miguel Torga, Prefácio à tradução francesa d’ A Criação do Mundo, Julho de 1984, p. 5).
120 
“[...] crónica, romance, memorial, testamento -, tu dirás, depois da última página voltada, se valeu a pena ser visi-
tado” (Ib).
121 
Ib.
122 
“Tomou o Senhor Deus ao homem e pô-lo no paraíso de delícias” (A Criação do Mundo, Lisboa, C.L., 2001, p. 15).
123 
“Ó escolas, semeai!...” (Ib.).
“Homem, olha que és terra! / Lembra-te que hás-de morrer! / Que hás-de dar uma estrita conta a Deus / Do teu bom
124 

e mau viver!” (Ib., p.16).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 179


António Moniz

Maria Cavaca, na cava das vinhas125. O mundo rural, com toda a sua sensualidade,
regurgita nas festas, como a do São João das Fontainhas126.
A terra natal, Agarez, “oásis assinalado por copa de negrilho” no “mapa on-
dulado” que se estendia na descida para Vila Real, prendia o sujeito da escrita e
da narração “à condenação da enxada”, como na Bíblia127, no conservantismo das
coisas e dos acontecimentos128. O regresso a esse espaço, após uma experiência de
ausência no Porto, permite redescobrir os prazeres autênticos, como o das comidas
familiares, e o reencontro com as pessoas conhecidas129.
O Segundo Dia, marcado pela adolescência, amplia os horizontes europeus do
sujeito ao tropicalismo brasileiro, com toda a sua riqueza pletórica, na vasta extensão
dos cafezais, dos canaviais, dos arrozais, da mata virgem, do capim, das manadas de
gado, da usina, do alambique, do afro-brasileiro130. Esta “pujança tropical”131 não só
espantava o recém-chegado132, como lhe acelerava o crescimento físico e psicológi-
co133. Em contraste, porém, com a prosperidade da fazenda agrícola134, as carências
do adolescente acentuavam o cansaço do trabalho físico135. Após cinco anos de

“O coro da Maria Cavaca [...] cheirava a pólen e acicatava apenas os instintos. Assim como havia comidas próprias
125 

para cada serviço sopas de mel e vinho nas malhadas, torresmos com batatas a nadar em pingo nas podas -, também em
cada um se cantava ou reinava de sua maneira. Nas segadas, já se sabia: – Aqui d el rei! / – Que tens? / – Cortei-me na
mão da ceitoira... / – Quem te cura? / – Pedra dura. / Quem te ama? / – A Mariana. / – Quem leva o burro?” (Ib.).
“O São João das Fontainhas encheu-me o coração e os sentidos. Nenhum arraial a que tinha assistido até ali se lhe
126 

comparava. Bailes, manjericos, gente aos encontrões... Até tascas havia! (Ib., p. 45).
127 
“Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gén.3, 19).
128 
“Em casa nada mudara. A mesma pobreza, a mesma fuligem, o mesmo caldo. As galinhas esgadanhavam no quin-
teiro, o porco grunhia no cortelho, a burra roncava na loja” (Id., p. 47).
129 
“Mas a minha saudade tornava surpreendente cada reencontro. As comidas outrora enjoadas sabiam-me bem, ouvia
chiar um carro à porta a vê-lo passar, queria saber de tudo e de todos” (Ib.)
130 
“Mas a visão alargou-se, pouco depois. Havia ainda quilómetros e quilómetros de cafezais, encostas plantadas de
cana-de-açúcar, várzeas cobertas de arrozais, extensões enormes de mata virgem (porque o que eu vira eram simples
capoeirões), montes e montes cobertos de capim, onde pastavam grandes manadas de gado, o engenho, a usina, o alam-
bique, um rio do tamanho do Corgo e pretos e pretas a torto e direito. A seguir, meu tio, que me mostrava a fazenda,
ia vendo, ouvindo e fixando nomes. Inhame, mandioca, quiabo, manga, abacaxi, jacarandá, tucano, araponga... Nada
do que aprendera em Agarez servia ali. Nem os ninhos eram iguais. Alguns, suspensos das árvores, pareciam lampiões
pendurados. Os pássaros cantavam doutra maneira, os frutos tinham outro gosto, e, onde menos se esperava, havia
cobras disfarçadas, enormes, bonitas, sempre de cabeça no ar, à espera” (Ib., p. 76).
131 
Ib., p. 90.
“Mal podia acreditar que nascesse e crescesse milho assim cultivado, de mais a mais quatro pés juntos, sem sacha,
132 

nem rega. E que cada um desse três ou mais espigas. Toda a gente, porém, garantia que sim, e, se o diziam, devia ser
verdade (Ib., p. 77). Flores que o senhor Valadares nem sonhava, crescia por toda a parte aos montes, sem ninguém as
olhar; ao pé do tamanho dos jacarandás, coitado do negrilho! Em vez das leiras, fazendas. Quatro ou cinco juntas de
bois a puxar a um carro!” (Ib., p. 78).
133 
“Mas enquanto que o corpo se desenvolvia em tamanho todos os dias tinha a impressão de não caber na roupa
-, a alma apenas medrava em amargura. Amargura de me sentir injustamente odiado por minha tia, de ser como um
estranho para meu tio, de viver aperreado no seio da liberdade” (Ib., p. 90).
“A fazenda ia de vento em popa. Os velhos cafezais, capinados, pareciam outros; os novos, já plantados por nós, dava
134 

gosto vê-los; os pastos limpos, estavam cobertos de gado; nos canaviais mal se rompia; as roças verdejavam, semeadas de
milho; os porcos engordavam no chiqueiro” (Ib.).
135 
“E eu sequioso de ternura, sem a receber, comido de desejos, sem os satisfazer, moído de trabalho, sem uma palavra
de aplauso” (Ib.).

180 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

migração brasileira136, a partida para Portugal soa como um grito de libertação137,


anunciada como um sonho pela corrente caudalosa do rio Paraíba138.
O despertar para as Letras surge com O Terceiro Dia, desde os primeiros arre-
medos139 até à colaboração em revistas, como a Vanguarda, e a fundação do Facho
e do Trajecto140. A experiência repartida pelo trabalho da terra e a consagração às
musas criara uma dicotomia entre dois tipos de homens: o pragmático e realista;
o poeta idealista, “sedento de absoluto”141. A avaliação desse envolvimento socio-
cultural, na serenidade da passagem do tempo, permite estabelecer a relação entre
os objectivos visados e a sua concretização142. A disputada questão, desde o final
do século XIX, sobre arte útil ou comprometida e arte pela arte, permite ao autor
justificar a opção da revista fundada, no equilíbrio entre a liberdade do poeta e a
sua cidadania143.
Outra dicotomia já aflorada nesta jornada é o conflito entre as actividades li-
gadas à medicina e a cultura literária144. A descoberta do drama da surdez é uma
“Por detrás da bruma que pouco a pouco ia cobrindo tudo, ficava a terra onde deixava cinco anos de vida. E a alma,
136 

magoada, negava-se a cobrir de saudades prematuras esse chão já só vislumbrado, esquecido de que não guardava apenas
dele imagens tristes” (Ib., p. 141).
“Foi um alívio quando recebi carta de meu tio a anunciar a partida. Pouco ou nada me prendia mais àquela pequena
137 

cidade [Ribeirão], cheia de sol, com os seus cedros velhos no Jardim Público, o seu Ginásio de dois andares, e o seu enge-
nho de café na Rua Afonso Pena. Vivera nela o tempo possível da ilusão. O espírito que ia do desespero cego à esperança
lúcida. A minha inquietação já não cabia ali” (Ib., p. 129).
138 
“Tinha fome de ser como aquele rio, que de novo corria ao lado, livre, forte e caudaloso, levando apenas à tona
outros troféus: os dentes postiços de minha tia, que me mordiam, e o seu vestido de folhas, que me envergonhava” (Ib.,
p. 135).
“Poucos progressos fizera em relação às musas. Em Ribeirão imitava Casimiro de Abreu; agora, lido, arremedava
139 

Antero. Do pé para a mão, saíam-me catorze decassílabos filosóficos, que até o inferno tremia” (Ib., p. 170).
140 
“Mal abandonara a Vanguarda, fundara uma revista independente, Facho, que morreu ao nascer. As boas intenções
de fazer dela um farol de nova luz não bastaram. Sobrestimara as próprias forças. Pudera discordar das antigas compa-
nhias, tivera a coragem de abandonar o movimento e arrastar com todas as consequências, mas faltava-nos a voz para
dizer aonde queria ir. E falhei. [...] Com o tempo, porém, fui aprendendo a formular mais claramente o que ali apenas
soubera balbuciar, arranjei colaboradores, e consegui lançar outra folha, Trajecto, que eu dirigia, mas a que o Gonçalo
e o André estavam também intimamente ligados” (Ib., pp. 227-228).
141 
“E os dois homens opostos viviam dentro de mim. O campónio de Agarez, a caminho da formatura, pragmático,
acautelado, instintivamente necessitado de prolongar a espécie; e o poeta, sedento de absoluto, inconformado com a
precariedade das coisas terrenas, insocial e rebelde. Igualmente poderosas, as duas forças exigiam igual aceitação” (Ib.,
p. 186).
142 
“Queríamos uma arte rebelde, enraizada no circunstancial. A Vanguarda nunca valorizara suficientemente a realida-
de. O velho mundo burguês, abalado nas estruturas, estrebuchava nas vascas da agonia, desenhavam-se além-fronteiras
num subjectivismo macerador. Essa pertinaz atitude introspectiva diminuía o alcance do esforço renovador que empre-
endera, de que sentia legítimo orgulho, mas que só esteticamente dera frutos positivos” (Ib., p. 229).
143 
“Sabíamos que mergulhar de mais a pena nessa tinta rubra implicava alguns riscos. De tanto reclamar justiça, a
voz solidária acabaria por ser monótona. Uma página de prosa a enumerar misérias obstinadamente, redundaria num
fastidioso relatório. E, em vez de poemas e romances, teríamos panfletos ou reportagens. Sacrificar o individualismo
criador no altar colectivo, era apagar na terra a chama da singularidade e do imprevisto. Por isso, procurávamos um
caminho de liberdade assumida, onde nem o homem fosse traído, nem o artista negado.” (Ib.). “Até nisso Trajecto fora
uma revista aberta e generosa. [...] Como eles, queria uma arte enraizada na sociedade, se em verdade havia alguma que
o não estivesse. Exigia, no entanto, que nenhuma realidade, por mais premente, esmagasse o artista e o privasse da li-
berdade criadora. Individualista impenitente, opunha-me ao controlo colectivo, à negociação do variado e do múltiplo”
(Ib., p. 246).
144 
“Herdara de meu Pai o sentimento de fazer bem feitas todas as coisas em que me metesse. De maneira que trabalhava

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 181


António Moniz

das primeiras aproximações entre o médico recém-formado e a sua clientela con-


creta145.
Nova abertura de horizontes geoculturais se oferece ao escritor autobiográfico
com O Quarto Dia: o passeio pela Europa. A Itália, com a apelativa atracção da
sua memória cultural representa uma tentação de abandono da pátria146. Os Alpes
evocam as grandes figuras do passado, indiferentes à sua combatividade ou ao seu
mérito, numa meditação sobre a “cegueira do poder, as artimanhas da cobiça, a
indecência do oportunismo e todas as formas da degradação humana”147. A cosmo-
polita Paris é objecto de ambígua visão: a do turismo e a do exílio, “uma feérica,
outra funérea”148. Então, perante a tentação de fugir da pátria, nova dicotomia se
constrói entre o cidadão e o escritor: “Seria capaz de viver longe dela na situação
de emigrante que ganha o seu pão. Já o fui, de resto. Mas nunca poderia viver fora
dela como escritor”149. A experiência amarga de um velho professor de Coimbra,
exilado em Paris, permite não apenas a evocação nostálgica do Choupal e da cabra
da Universidade, mas também a conciliação entre a investigação científica e a do-
cência, agora comprometida por essa forçada situação150. A alternativa utópica ao
exílio de Paris é o envolvimento militante na guerra civil de Espanha, com Spender,
Machado, Hernández, Alberti...151.

a valer. Repetia as tentações do sono às horas dele, e abria mastóides na morgue, em vez de atender as musas” (Ib.).
145 
Ia descobrindo, de resto, algumas novidades naquele pequeno território médico. O drama murado da surdez, por
exemplo, - um dos pesados tributos que o homem desta civilização de ruídos traumatizantes teria de pagar ao futuro.
Até ali, era a cegueira que eu julgava a suprema clausura humana, longe de supor que havia ainda outra pior: a perda da
audição. Só agora avaliava em toda a medida a solidão de uma criatura sem diálogo possível” (Ib., p. 247).
146 
“Por que não poderia o poeta ficar ali, naquela terra de artistas, a polir a alma e o entendimento? Por que não renegava
ele os companheiros analfabetos, os pais analfabetos, a pátria analfabeta, e nascia de novo num sítio do mundo onde as
próprias raízes mergulhavam em túmulos etruscos?” (Ib., p. 295).
147 
“Já a rodar em terras alpinas, nem a própria grandiosidade da paisagem, agora duma dignidade inacessível monta-
nhas coroadas de neve debruçadas sobre a limpidez dos lagos adormecidos -, os erguia da rasteira pequenez habitual. Por
ali tinham passado os Césares de todas as idades, sem que o tropel dessas glórias perturbasse a quietude dos píncaros e
das águas. Deixa oportuna para uma fácil meditação, onde a cegueira do poder, as artimanhas da cobiça, a indecência
do oportunismo e todas as formas da degradação humana ouvissem a reprovação da consciência” (Ib., p. 302).
148 
“À noite, quando nos encontrávamos no hotel e desfiavam o rosário de deslumbramentos, ia comparando aquela
Paris de ida e volta com o que nela viviam desterrados. E ficavam-me na mão duas realidades opostas: uma feérica, outra
funérea. Uma de fruições, outra de penitências” (Ib., p. 320).
149 
“Faltava-me o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do povo. Além de que é preciso pagar
a liberdade. E a minha está lá. Aqui, tenho quase a certeza de que nunca passaria de um enraizado lírico revolucionário
de má consciência” (Ib., p. 327).
150 
“E foi então, quando naquele cenário romântico a fervilhar de mocidade, a cabra a lembrar as aulas, que o velho
mestre, numa melancolia súbita, que o álcool possivelmente favorecera, escancarou as portas da alma, que o pudor mal
deixara entreabrir no dia do nosso primeiro encontro. Para além da amargura do desterro, havia uma outra razão de
sofrimento, mais cruciante ainda: o estar divorciado dos seus alunos, a falta do calor de gerações sucessivas, que se lhe
revezassem nos olhos e no coração. E falou da alegria de ensinar, da aventura de cada lição, do jogo apaixonante e diá-
rio de atracções espontâneas e repulsões vencidas, de telepatias naturais ou conquistadas entre a cátedra e as carteiras.
Investigar, sim, mas para alimentar a fome de cada nova leva de curiosidades, para maior poder de comunicação com
a avidez que o interrogava. O amor à ciência, evidentemente, mas por amor a quem vinha procurá-la, por intenção de
quem o pedia...” (Ib., p. 328).
“Porque não seguira o conselho do Tavares? Ficava, e, em vez de pegar estaca em Paris, ia juntar-me a outros poetas
151 

que cantavam e combatiam nas trincheiras de Madrid, a Spender, a Machado, a Hernández, a Alberti. Se morresse,

182 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

A procura aproximada de uma equação entre o “exercício de curar” e o “su-


plício de escrever” é objecto explícito de O Quinto Dia, num esforço suplementar,
repartido entre o dia e a noite, tendo em mente as dificuldades políticas acrescidas e
a humildade resultante do “lento e penoso” “caminho da arte”152. A clivagem entre
as expectativas populares em relação à medicina153 e a consciência das exigências da
arte da linguagem escrita permitem uma autoquestionação pertinente e permanen-
te154.
A proximidade entre o “urbano e o campestre” faziam de Leiria, desde a leitu-
ra da Corte na Aldeia e de O Crime do Padre Amaro, “o encanto feminino daquela
cidadezinha de ruas de curto fôlego e praças de intimismo familiar, acolhedora, a
ressumar história e cultura por todas as pedras e ao mesmo tempo impregnada de
ruralidade”155. Mas nada como a evocação do “cenário da meninice”, como sinal da
“certeza íntima de trazer o selo da origem impresso no barro da carne”, isto é, da
identidade pessoal156.

morreria dignamente, a bater-me por um ideal; se sobrevivesse, teria pela existência fora a paz do dever cumprido” (Ib.,
p. 337).
152 
“Foi nessa terra [Leiria], assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a
continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto
às aplicações, quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as
independências e desiludia as mais firmes determinações. [...] A trabalhar como trabalhava durante o dia a ver doentes
e parte da noite agarrado aos livros -, em poucos meses estaria apto a usar honestamente o espéculo e o bisturi. Quanto
à caneta, se não vinha mais aparada da viagem, trazia pelo menos outra humildade. Em face de alguns exemplos cru-
ciantes, ficara a saber que é lento e penoso o caminho da arte, e que nele só o esforço aturado conta verdadeiramente”
(Ib., pp. 346-347).
153 
“A verdade, porém, é que os doentes, quando procuravam um médico, não queriam encontrar um homem, mas um
taumaturgo. Inquietações, dúvidas, terrores traziam-nos eles. E de nenhum modo entendiam que o semideus se des-
mentisse. Condenavam-no tanto pela incerteza confessada como por uma certeza inconfirmada. Se dizia morre, tinha
de morrer; se dizia vive, tinha de viver. A esperança tem uma vertente irracional. Incapaz de distinguir a clarividência
clínica da vidência bruxa, o enfermo vincula o médico indelevelmente à fama do primeiro êxito ou do primeiro fracasso”
(Ib., pp. 356-367).
“Obcecado pela linguagem escrita, monólogo gráfico esperançado apenas na réplica mental de hipotéticos leitores,
154 

quase que me esquecera de reparar no milagre da oralidade, da comunicação directa, franca, livre, sem ambições qui-
méricas de antologia e perenidade. A palavra temperada pelo sal da boca, arredondada pela graça labial, ágil ou morosa
consoante a urgência da oralidade, e sempre ajudada pela presença e atenção dos ouvintes. [...] E aí estava eu metido na
pele dum simples narrador, Xerazade masculino, a encher o vazio das horas, a dar voz à mudez das coisas. [...] Embora de
longa data advogasse uma arte viva, onde a circunstância palpitasse significativamente em cada linha, uma arte inserida
no contexto temporal, empenhada, sem deixar por isso de ser arte e ser livre, só agora tentava dar expressão plena a este
propósito” (Ib., p. 369.373).
155 
“Em nenhuma outra de Portugal era tão indecisa a fronteira entre o urbano e o campestre. As vinhas e os prados
entravam por ela dentro numa fusão natural. De qualquer miradouro que se olhasse, viam-se telhados e copas, calçadas
e feno. As veigas do Liz cercavam-na dum lado, e os do Lena do outro. No meio, campanários, chaminés e outeiros
granjeados. Daí talvez a circunstância feliz de o bucólico de 600 [Rodrigues Lobo] e de o mordaz oitocentista [Eça de
Queirós] poderem sentir com igual intensidade, a respirar-lhe os ares, a frescura das brisas pastoris e o mormaço das
paixões humanas” (Ib., p. 354).
156 
“Tudo no seu [Agarez] tinha concretização. Deus estava presente na hóstia, a Primavera nos renovos, o amor na arca
do bragal. Não havia domingo sem missa, festa sem foguetes, entrudo sem orelheira. [...] Necessitado de contemplar
de tempos a tempos o cenário da meninice, de provar os frutos da terra e beber água da fonte, de ouvir o sino dobrar e
repicar, de me sentar à lareira paterna e de sentir nos ombros o peso da ancestralidade, nos intervalos, às vezes longos
e atribulados, bastava-me uma comunhão telepática, a certeza íntima de trazer o selo da origem impresso no barro da
carne” (Ib., p. 374).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 183


António Moniz

A prisão política no Aljube tem o condão de permitir a descoberta do “fio liber-


tador” de Ariadne e de Teseu, “dentro do labirinto”, na reflexão sobre a dissociação
entre o “trabalho” e a “vocação”, “num compromisso equívoco”, “sem iniciativa,
sem alternativa e sem protesto”157.
Finalmente, O Sexto Dia coroa o conjunto de reflexões do sujeito sobre o per-
curso da vida até à maturidade.
Tal como Virgílio, Torga deixa-se fascinar pelo mundo da irracionalidade e
transforma o tempo do cárcere político num otium literário, através dos contos Os
Bichos158. Tal como Virgílio, Torga é tocado pela “pulsação natural da vida”, que o
leva a contemplar o “ritmo vital” da Natureza159, a cumplicidade e a solidariedade
do amor humano160, a fugacidade do tempo161, a leitura dos astros, no “equilíbrio
perfeito com as forças da natureza”162. Cumprir-se163, na autenticidade do homem e

“O homem só se descobre a descobrir. E descobria até que ponto ele é capaz de reverter a seu favor os próprios malefí-
157 

cios da desgraça. Em vez de me deixar destruir pela força da agressão, surpreendia-me a desviar a brutalidade da energia
desencadeada contra mim no exame minucioso das minhas íntimas reacções, exacerbadas pela acuidade reforçada dos
sentidos acossados. [...] A verticalidade de meu Pai dera-me a medida do homem: um ser em que toda a grandeza conce-
bível tinha a obrigação de se reflectir. [...] Um veleiro sueco veio lançar ferro mesmo no centro da minha retina. Depois
de grandes esforços, consegui ler-lhe o nome: Ariane. E pus-me a transfigurar o barco na filha de Minos, enquanto eu
próprio, Teseu dentro do labirinto, sonhava receber dela o fio libertador. [...] Não seria que no mundo de hoje, onde o
trabalho está dissociado da vocação, o homem arrasta os dias num compromisso equívoco, a protelar o advento da sua
boa hora, sem iniciativa, sem alternativa e sem protesto, até que o hábito dá com ele impotente e conformado?” (Ib., pp.
393. 404. 431. 436).
158 
“E, quase sem eu dar conta, quando fui a ver, ao lado desse livro aplicadamente descoberto, tinha outro ludicamente
inventado, onde uma fauna estranha se movia a cumprir com romanesca naturalidade as leis da vida e da morte. A ideia
de o escrever ocorrera-me nos tempos do Aljube, quando, fascinado, passava horas infindas a contemplar os jogos amo-
rosos das pombas nos telhados da Sé. Afinal, a ternura, como os demais sentimentos, era património comum de toda
a Criação... E lembrei-me de fazer uma surtida no misterioso mundo dos irracionais. [...] Acostumado à insinceridade
humana, o espírito tropeçava na sinceridade animal” (Ib., p. 460).
159 
“Cada vez mais sensível à pulsação natural da vida, observava os Velhos cheio de curiosidade e respeito. [...] A passear
pela veiga fora ao lado de Jeanne, quase que sentia tangível essa verdade polarizadora. Havia não sei que força latente a
comandar o ritmo vital que nos rodeava. Cada astro a seguir a sua trajectória, cada bicho a obedecer submisso à sua lua,
cada árvore a florir pontualmente na sua primavera” (Ib., pp. 461. 462).
160 
“Quanto oiro fino incrustado no cascalho grosseiro! Quanta solidariedade sem retórica na malga do caldo estendida
caridosamente a uma boca faminta! Quanta riqueza de sentimentos, numa palavra piedosa gemida ao pé do sofrimento
alheio. E rendia-me, contrito, àquela ligação de humanidade, que só agora entendia na justa medida. Ele, masculino, a
assumir de manhã à noite toda a carga de responsabilidades. As suas e as da comunidade. A repartir salomonicamente
as águas de regadio, a festejar com fé singela a Senhora do amparo, a presidir revestido de autoridade ao conselho do
povo. Ela, feminina, a borboletear à sua volta, de engaço, roca ou seitoira na mão. Ambos certos no mundo, que parecia
ter ali o centro físico e metafísico” (Ib.).
161 
Cf. Geórgicas, III, 284 s. O destino fizera de mim um nó cego de angústias, sempre apertado, mesmo nos velhos
momentos. Insatisfeito ao cabo de todas as realizações, obcecado pela fuga do tempo, rolado como um seixo na torrente
dos dias, nenhuma hora me sabia ao gosto sonhado (Ib., p. 462).
“Em equilíbrio perfeito com as forças da natureza, [meu Pai] sabia até onde podia ir em cada gesto e em cada ac-
162 

ção. Sentia o cansaço das leiras, como o seu próprio. E só faltava repartir com elas o almoço e o jantar quando as via
enfraquecidas. Lia nos astros melhor do que eu nos livros. Movia-se no mundo na paz de quem o entendia de todas as
maneiras. Talvez por isso, não tinha medo de o deixar, como minha Mãe. Dava a impressão de caminhar para a sepul-
tura com urbanidade” (Ib., p. 465).
163 
“O meu projecto de vida sempre fora o mesmo: cumprir-me. Ser como homem uma autenticidade tácita e como
artista uma aflição expressa. Nada mais. Por isso, temia igualmente a dissolução passiva na sociedade e a integração
activa nele” (Ib., p. 471).

184 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


O Otium e o Labor nas Geórgicas de Vírgilio e n’a Criação do Mundo de Torga

na angústia do artista164, “a testemunhar ao vivo” o ciclo das estações165, é o seu des-


tino, no sentido agónico da vida166 e na aprendizagem do valor da arte, para além
da precariedade da existência167. Mas, mais do que Virgílio, Torga deixa-se impres-
sionar pelo sentimento de perda perante a morte, neste caso da mãe168, “vazio” que
contrasta com o “festival cósmico” da Primavera169. A “visão pessimista do mun-
do” acentua-se, sob a “aparência voluntariosa”170. Condenado ao individualismo e
à “solidão irremediável”, apesar do seu “destino social”171, o homem, para Torga
reduz-se a “uma essencialidade tendinosa”: “a lei das Parcas, os desentendimentos
e as circunstâncias”172. O futuro “sem ambições” passa a ter “como lenitivo, só o
cilício cruciante da meditação”173.

“[Meu Pai] Sabia que desde Camões não havia poetas felizes. Por isso, a sua preocupação não era contra a poesia, mas
164 

contra a minha infelicidade” (Ib., p. 463).


“Fazia diariamente a pé, com facilidade, quatro vezes o mesmo trajecto, por entre plátanos e tílias do jardim público
165 

[de Coimbra], a testemunhar ao vivo pelo ano fora o desenrolar das estações. Primeiro, o sono das seivas, surdo e cego a
todas as invernias; a seguir, cada pálpebra semiaberta, a espreitar curiosa a luz primaveril; depois, o esplendor impudico
das folhas e das flores estivais; por fim, a grande icterícia romântica do Outono” (Ib., p. 473).
166 
“Desde menino que tinha um sentido agónico, cada dia, cada hora, cada minuto. À espera da morte.” (Ib., p. 489).
“Mas diante das grandes ruínas é que via claramente como eram vãos os sonhos de qualquer perenidade. Apesar de
167 

tudo. Tirava da peregrinação um ensinamento: embora precária, só a arte valia realmente a pena. As instituições passa-
vam, os impérios ruíam, e apenas ela durava, se não no seu esplendor original, ao menos amparada, remendada, copiada
pela devoção dos homens” (Ib.)
“O mundo parecia-me vazio, espectral, sem sentido. Nada nele me apetecia. Nem a comida, nem o ar que respirava.
168 

A minha natureza profunda sentia-se abalada nas raízes. Era um sentimento de catástrofe para além de toda a com-
preensão. Faltava-me agora não sei que justificação primordial. [...] Os gados necessitavam de ser alimentados, as leiras
de ser cavadas, os frutos de ser colhidos. [...] A morte batera pela primeira vez à minha porta. [...] Agora a mão sinistra
tocara carne de que eu era carne. Sabia que nunca mais voltaria a ser o mesmo. Fora atravessado por um relâmpago
negro” (Ib., p. 502).
169 
“A Primavera estava no seu esplendor. A azálea amarela, à entrada do portão, parecia um sol vegetal. Os lilases
enchiam o ar de perfume quente. As glicínias caíam em festões do muro do quintal. Nos campos, em aleluia também,
as papoilas sorriam e as espigas ondulavam. E era através deste festival cósmico que o cortejo avançava, moroso, em
direcção ao cemitério” (Ib.).
170 
“Esse sentimento profundo do nada irremediável a que o homem estava condenado, velho em mim, tornou-se obsi-
diante a partir daí, e agravava a visão pessimista do mundo, que sempre tivera, e que a aparência voluntariosa disfarçava.
Costumava dizer que era um homem de esperança desesperançado” (Ib., p. 503).
171 
“Continuava cada vez mais convencido de que o homem, embora condenado a um destino social, começava por ser
um indivíduo. Dizia-mo o entendimento e mostrava-mo diariamente a prática médica. Anos e anos de experiência clíni-
ca tinham-me ensinado a ver sempre em cada criatura a solidão irremediável que ela é nos momentos cruciais. Nascia-se
sozinho, sofria-se sozinho, morria-se sozinho, por muito amor e solidariedade que houvesse no mundo. [...] Simplesmen-
te, a nossa tragédia era tal que nunca o bálsamo de que dispúnhamos chegava à fundura das feridas” (Ib., p. 528).
172 
“Por mondas sucessivas, a minha vida ia-se estremando. A lei das Parcas, os desentendimentos e as circunstâncias
reduziam-na pouco a pouco a uma essencialidade tendinosa. O supérfluo banido dos livros, as relações expurgadas dos
entusiasmos pueris. Antecipava-me às desilusões agindo em qualquer ilusão. O desaparecimento do velho [Pai] como
que clarificara de repente a realidade a meus olhos. Encarava as coisas e as pessoas com outra lucidez. Tinha a impressão
de convalescer de uma grande doença” (Ib., p. 530).
173 
“Quisesse ou não quisesse, durasse o que durasse, tudo estava consumado. [...] Sem direito ao amor e à inspiração,
despojado de ambições e a redoirar a esperança à sobreposse, nem a lição de Agarez, a cavar por descargo de consciência,
a costeira maninha das courelas, me podia valer. De ora em diante, como lenitivo, só o cilício cruciante da meditação.
Sim, a vida ia continuar. Outros dias viriam cheios de sol, de flores e de frutos. Mas não seriam meus” (Ib., p. 561).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 185


António Moniz

Conclusão
Separados no tempo e no espaço, Virgílio e Torga, convergem, todavia, na cele-
bração épico-lírica da terra mater, espaço económico e ecológico, natural e cultural,
objecto de intervenção dos deuses e dos homens, de trabalho e de lazer.
Ambos celebram a criação do mundo, a transição do caos para o cosmo, como
arquétipo da acção humana. Mas, enquanto o primeiro concede o primado das
atenções ao objecto descrito, predominantemente exterior ao sujeito da escrita, o
segundo representa-se narcisicamente como centro do mundo.
Ambos reflectem sobre a condição humana, na sua envolvência ecológica, ambos
caracterizam a identidade cultural dos povos de que se ocupam, ambos manifestam
motivações de carácter didáctico-pedagógico, embora o segundo, mais embaraçado
nas teias do pessimismo, transmita a imagem de um mundo menos luminoso.
Produtos estéticos de uma determinada cosmovisão, à escala dos respectivos
parâmetros subjectivos e espácio-temporais, as Geórgicas de Virgílio e A Criação
do Mundo de Torga, moldadas em diferentes formas de expressão literária, um em
poesia, outro em prosa, ultrapassam, cada qual à sua medida, as limitações culturais
das respectivas épocas, para se projectarem na transtemporalidade das obras-primas
da Humanidade.

186 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A mbiguidades no Eutidemo de Platão
ou «as passas do algarve» de um tradutor

Adriana Freire Nogueira


Universidade do Algarve
anogueir@ualg.pt

E sta comunicação irá apresentar dois tipos de problemas que se colocam ao tra-
dutor português de Platão, no que respeita a ambiguidades, e que lhe dificul-
tam a tarefa, pois se traduzir é «dizer quase a mesma coisa»1, não é, efectivamente,
a mesma coisa: «quase» faz toda a diferença.
O primeiro problema que analisaremos é o levantado pelo verbo eimi, um dos
mais complexos verbos da língua grega 2. Na realidade, um filólogo não fica emba-
raçado perante einai, que pode traduzir, consoante os contextos, por ser, estar ou
existir, obtendo, deste modo, uma frase inteligível e facilmente compreendida na
nossa língua. Apenas não daria conta das ambiguidades que o verbo tinha para
quem o ouvia e para quem o usava no séc. V a.C.
O segundo problema resulta do facto de, em Grego, a função das palavras nas
frases ser determinada pelo caso e não pelo lugar que nelas ocupam, tornando, as-
sim, algumas anfibologias difíceis de transpor.
Em textos filosóficos, nomeadamente em Platão e, neste caso específico, no
Eutidemo3, o tradutor terá que se aperceber destes sentidos e tentar que o leitor mo-
derno consiga apreender a variedade que o texto lhe apresenta4.
Se assim não fosse, as graças (e graçolas) que se podem ler no diálogo que ele-
gemos não teriam provocado as reacções que o autor descreve: os que ouviam os
sofistas a argumentar «quase morriam de satisfação, a rir e a bater palmas!» e que
«pouco faltou para que também as colunas do Liceu aplaudissem e se regozijassem»
(303b).
Vejamos um primeiro exemplo (283b-d). Clínias, um jovem amigo de Sócrates,
está a ser interrogado pelos irmãos Eutidemo e Dionisodoro (que se dizem sabedo-
res de tudo e tudo poderem ensinar). Estes perguntam a Sócrates e a Ctesipo, outro
jovem, amigo de Clínias:

«–Diz-me tu, Sócrates» disse ele «e vocês também, vocês que dizem desejar
que este jovem se torne (genesthai) sábio, estão a dizê-lo por brincadeira, ou
desejam-no de verdade e com seriedade?»

1 
Umberto Eco, 2005, Dizer Quase a Mesma Coisa. Sobre a Tradução. Lisboa, Difel.
2 
Charles H. Kahn, 2003, The Verb «Be» in Ancient Greek (with a new introductory essay), Indianapolis. Hackett.
3 
A tradução usada é a da nossa autoria, publicada na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1999.
4
Esta parte da comunicação tem um carácter demonstrativo, fazendo contraponto com a apresentada por José Trindade
Santos, «Falácias, antíteses e paradoxos em torno de ser e existir».

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 187


Adriana Freire Nogueira

A insistência parece séria e querer esclarecer bem os termos do que se declara:

« – Ora bem» - disse ele - «pelo que afirmam, vocês pretendem que ele se
torne sábio?»
« – Absolutamente.»
« – E neste momento» continuou «Clínias é sábio ou não?»
« – Ele diz que não, mas não é de se gabar» respondi.
« – E vocês» prosseguiu «desejam que ele se torne (genesthai) sábio, e que não
seja (einai) ignorante?»
Confirmámos.
« – Portanto, querem que ele se torne no que não é (ouk estin), e que deixe de
ser (meketi einai) o que é agora (esti nun).»
Ao ouvir isto, fiquei perturbado, mas ele continuou apesar da minha per-
turbação.

Que tem esta argumentação de especial, a ponto de perturbar Sócrates? Aliás,


Ctesipo não parece ter ficado desconfiado com nenhuma das perguntas que lhe
foram colocadas, sendo ele uma personagem com uma atitude de desafio em re-
lação aos dois irmãos e que se apropria, por vezes, dos raciocínios que este tipo de
argumentação propicia.
Deste modo, a perturbação de Sócrates só se entende se considerarmos que o
filósofo antevia alguma ambiguidade que dali poderia advir, ambiguidade essa que,
para um leitor português, até aqui, nem sequer pode ser vislumbrada.

e disse:
« – Logo, se o que desejam é que ele deixe de ser quem é agora, o vosso desejo,
ao que parece, é que ele morra.»

Estamos perante uma confusão entre os sentidos existencial e copulativo (ou


identitativo) do verbo eimi. Neste passo, «não ser» está a ser usado pelos sofistas,
sem sombra de dúvidas, como não existir, logo, morrer. Este era um sentido possível
para um ouvinte grego, mas não para um português. No entanto, o tradutor não
pode escolher esta opção, «existir», pois isso destruiria a sequência de raciocínio
que os sofistas parecem seguir. Era esta a causa da perturbação de Sócrates. E, na
verdade, o tradutor só neste momento se terá apercebido da ambiguidade. Assim,
apesar de o resultado da tradução ser menos claro inicialmente, deixa-se a cargo do
leitor a compreensão do problema ontológico.
Vejamos um segundo exemplo de ambiguidade do verbo eimi, num passo da
obra onde se preconiza a impossibilidade de mentir (284b-c), adoptando o seguinte
raciocínio:

« – As coisas que não são, são alguma outra coisa, ou não são?»

188 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Ambiguidades no Eutidemo de Platão

« – Não são.»
« – Então não há nenhum lugar onde as coisas que não são sejam?»
« – Nenhum lugar.»
« – E será possível alguém agir sobre coisas que não são, de modo a que,
quem quer que seja, produza essas coisas que não são em lado nenhum?»
« – Penso que não» disse Ctesipo.
« – Ora bem, quando os oradores falam ao povo, não estão a agir?»
« – Sim, estão» concordou.
« – Portanto, se agem também produzem?»
« – Sim.»
« – Falar é, então, agir e produzir?»
Concordou.
« – Então ninguém diz as coisas que não são, pois assim já produziria qual-
quer coisa... ora tu acabas de concordar que ninguém seria capaz de produzir
o que não é. Assim sendo, pelas tuas palavras, ninguém diz mentiras e, se
Dionisodoro diz, diz a verdade e as coisas que são.»

Sistematizando:
1. Mentir é dizer as «coisas que não são».
2. As «coisas que não são» são as coisas que não existem.
(Defendemos que esta inferência esteja subjacente, pois só assim se percebe o
modo como o argumento continua):
3. Como não posso dizer «coisas que não são» (isto é, que não existem).
(Assunção, aqui, do sentido existencial)
4. Porque se as dissesse passavam a existir.
5. E se existem são verdade.
6. E ao dizer as coisas que são, digo coisas que são verdade.
7. E se são verdade, não posso mentir.

Encontramos aqui outra ambiguidade no uso do verbo eimi: a confusão entre


a existência do que se diz (o meu discurso existe) e o conteúdo do que se diz (se
existe é verdade), ambiguidade possível pelo uso veritativo do verbo, isto é, «verda-
de» como equivalente a «realidade», sendo «realidade» aquilo que «é», aquilo que
«existe». Também este sentido era apreendido por um falante de grego, mas não
é evidente para um tradutor. E quando este capta completamente estes sentidos,
também não pode dissolver as ambiguidades, tal como no caso anterior, sob pena
de perder o jogo que se estabelece em grego. Dizer, de imediato, que «as coisas que
não existem, são alguma outra coisa, ou não existem?» seria resolver um problema
filosófico e isso não lhe compete fazer.

« – Mas ele diz as coisas que são de um certo modo e não como elas são de
facto.»

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 189


Adriana Freire Nogueira

Ctesipo reconhece, agora, estas ambiguidades. As «coisas que são» (ta onta)
equivalendo a «coisas que existem» mas não necessariamente equivalendo a «coisas
verdadeiras». Assim, estamos perante um jogo baseado nos sentidos predicativo e
existencial por um lado, e veritativo, por outro, fazendo equivaler «dizer as coisas
que existem» a «dizer a verdade». Esta tese que defende a impossibilidade de men-
tir continua no sofisma que se segue (sequencial ao anterior e que vai de 284c até
285a):

« – O que é que estás a dizer, Ctesipo?» perguntou Dionisodoro «Pois há


pessoas que dizem as coisas como elas são?»
« – De certeza que há gente bem formada que diz a verdade.» respondeu.

Apesar do problema já ter sido detectado e os vários sentidos de einai descorti-


nados, não se pode concluir que as dificuldades do tradutor estão resolvidas. Um
pouco mais adiante, em 286b, os argumentos apresentados pelos sofistas continu-
am a ser sobre a impossibilidade de mentir, sempre baseando-se na ambiguidade
de einai. No fim destes raciocínios (que se encadeiam uns nos outros), Sócrates
sintetiza muito bem as dúvidas dos ouvintes dos sofistas:

« – Eis então a tal pergunta grosseira:» - disse eu - «Se não cometemos erros
ao agir, ao falar ou ao pensar, por Zeus, se isto é assim, o que vieram vocês
ensinar?» (287a-b)

Voltemos um pouco atrás e prestemos, pois, atenção ao processo que o levou


a formular esta pergunta (que é tudo menos grosseira, visto que é de uma grande
finura de espírito, isto é, de um espírito de tal modo inquisitivo que pouca coisa não
é apanhada nas suas finas redes):

« – Vejamos» - disse ele - «há enunciados para cada uma das coisas que
são?»
« – Perfeitamente.»
« – E como cada uma é ou como não é?»
« – Como é.»
« – Pois se te lembras, Ctesipo» disse «há pouco demonstrámos que ninguém
diz uma coisa como ela não é, pois o que não é, obviamente ninguém o diz.»
(285e-286a)

Dionisodoro (o sofista que aqui fala com Ctesipo) está a defender que é impos-
sível a contradição, pois atribui um sentido existencial a cada uma das coisas que
são, isto é, «cada uma das coisas que existem». O que aqui se afirma é que não se
pode falar do que não existe (aqui considerado o mesmo que não é), «pois o que não
é, obviamente ninguém o diz». Vai, então, apresentar quatro razões que justificam

190 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Ambiguidades no Eutidemo de Platão

esta sua declaração:

« – Mas será que nos contradiríamos se ambos produzíssemos um enunciado


acerca do mesmo objecto? Ou nesse caso não estaríamos a dizer, de facto, o
mesmo?» (286a)

Portanto, (1) não há contradição quando ambas as pessoas dizem o mesmo


sobre o mesmo objecto. Continuemos:

« – Mas quando nenhum de nós produz um enunciado acerca desse objecto,


será que poderemos contradizer-nos, ou neste caso nenhum de nós não teria,
sequer, em mente esse objecto?» (286b)

Apresentou-se aqui o segundo raciocínio: (2) não há contradição quando nin-


guém diz nada sobre um objecto.

« – Mas quando eu produzo um enunciado acerca de um objecto, e tu um


outro acerca de outro objecto, contradizemo-nos? Ou quando eu falo de um
objecto e tu não dizes nada de nada? Como é que uma pessoa sem falar pode
contradizer outra que fala?» (286c)

Também (3) não pode haver contradição se ambos falam de objectos diferen-
tes.

« – Ou quando eu falo de um objecto e tu não dizes nada de nada? Como é


que uma pessoa sem falar pode contradizer outra que fala?» (286c)

E, para finalizar, (4) não há contradição se uma pessoa fala e a outra está calada.
Assim sendo,

Então, não é possível dizer falsidades? - pois é essa a força do argumento,


não é? - mas quando se diz alguma coisa, ou se diz a verdade ou não se diz
nada?” (286c)

om esta afirmação da impossibilidade da mentira passamos ao segundo pro-


C
blema enunciado no início: encontrar anfibologias em português que equivalham
ao grego. Mais uma vez, a questão coloca-se ao tradutor: se traduzir de modo a
resolver a ambiguidade não conseguirá o efeito, nos que agora o lêem, semelhante
ao que o original teve em quem o leu (ou ouviu)?
A construção que se segue foi escolhida por, aparentemente, ter equivalente na
nossa língua, apesar desta não permitir o mesmo tipo de ambiguidades da língua
de partida. O tradutor teve, pois, que desambiguar o nome que numa frase é sujeito

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 191


Adriana Freire Nogueira

e noutra complemento directo (sendo que em grego pode ser lida sempre das duas
maneiras) sob pena do leitor não ter acesso o jogo de palavras no original. Digamos
que em português há uma falácia evidente por parte dos sofistas, já que mudam a
sintaxe, falácia essa que não existe, efectivamente, em grego, onde houve apenas
um aproveitamento de uma possibilidade da sintaxe grega (a particularidade das
orações infinitivas terem sujeito e complemento directo no mesmo caso) para levar
o interlocutor a aceitar uma das estruturas e a não poder contradizer-se ao ser con-
frontado com a outra.
Atendamos ao exemplo:

« – Quer dizer que tu sabes o que convém a cada artesão?» perguntou ele «E
a quem convém primeiro forjar, sabes?»
« – Sei. Ao ferreiro.»
« – E fazer cerâmica?»
« – Ao ceramista.»
« – E degolar, esfolar e, cortando em pequenos pedaços a carne, fazer cozer
e assar?»
« – Ao cozinheiro» respondi.
« – Portanto se alguém fizer o que é conveniente, agirá bem?»
« – Muito bem.»
« – Pois então, pelo que tu dizes, convém o cozinheiro cortar em pedaços e
esfolar? Concordaste com isto ou não?»
« – Concordei, mas desculpa-me lá...»
« – É então evidente» continuou «que, se alguém degolar e cortar o cozinhei-
ro em pedaços, o cozer e o assar, estará a fazer o que convém; e se alguém
forjar o próprio ferreiro ou modelar o ceramista, também este agirá como
convém.» (301 c-d)

Em português, «convém o cozinheiro cortar em pedaços e esfolar» é uma frase


com o verbo unário «convir», que não permite elevação do sujeito5. Além disso,
sendo uma língua SVO, a alteração da ordem das palavras implica outras funções
sintácticas.
Deste modo, em «convém o cozinheiro cortar», a alteração para «convém cortar
o cozinheiro» conduziria a uma nova frase, com outra sintaxe e outra semântica,
pois «cozinheiro» deixaria de ser sujeito da frase infinitiva para ser complemento
directo desse infinitivo. Ora, em grego, a alteração da ordem não iria modificar a
semântica (posto que são os casos indicam as funções e estas não são determinada
pelo lugar que as palavras ocupam) nem levar a uma ambiguidade maior do que
a que já existia, pois «o cozinheiro» está no caso acusativo, podendo ser entendido
quer como sujeito da oração infinitiva pedida por «convém» (prosêkei) - sendo esta

5 
João Andrade Peres e Telmo Móia, 2003, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, pp. 258/9.

192 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Ambiguidades no Eutidemo de Platão

a forma entendida por Sócrates - quer como complemento directo dessa mesma
oração («convém cortar o cozinheiro»).
Com os exemplos destes dois géneros de problemas pretendemos mostrar como
não pode haver uma atitude inflexível por parte do tradutor, procurando seguir
uma determinada posição teórica sobre a tradução, pois a prática concreta do texto
no seu contexto (e os contextos filosóficos são especialmente sensíveis) é o que de-
termina as opção de manter ou resolver as ambiguidades.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 193


A Inversão do Papel da Mulher
n’As Bacantes de Eurípedes

Natália Maria Lopes Nunes


E.Sec / U. Nova de Lisboa
nlnunes@hotmail.com

A o longo dos séculos, muitos autores manifestaram nas suas obras vários as-
pectos da vivência feminina e, alguns deles, revelaram uma atitude misógina.
Hesíodo, na sua Teogonia e nos Trabalhos, apresenta a criação da mulher como
um mal profundo cuja curiosidade desencadeou o mal – Pandora (mulher que nos
escritos cristãos se assemelha a Eva). Para além deste autor, outros manifestaram
uma atitude semelhante, nomeadamente Eurípedes. Para ele, quem não falasse
mal das mulheres, seria um infeliz. Esta atitude de carácter anti-feminista revela-se
sobretudo na tragédia Hipólito.
Contudo, n’As Bacantes (apesar de no final da obra as suas heroínas serem con-
denadas) o autor apresenta uma visão diferente sobre as mulheres, inserindo-as num
culto onde predominava a orgia. Esta tinha um carácter sagrado e estava intima-
mente ligada às religiões de mistérios. O culto dionisíaco, vindo de terras longín-
quas, apareceu na Grécia cerca do século XII a.C. Como o próprio deus refere no
prólogo d’As Bacantes:

- […] Abandonei os campos da Lídia, fecundos em ouro, e as planícies da Frígia


pelos planaltos da Pérsia devorados pelo sol, as cidades muradas da Bactriana, o
país dos Medos, gelados pelos Invernos, a venturosa Arábia e, finalmente, toda a
Ásia que se estende ao longo das ondas salgadas, com as suas cidades onde se er-
guem belas torres, nas quais vivem misturados os Gregos com os Bárbaros […].1

Dioniso é um deus estrangeiro que penetrou no mundo helénico rural e urba-


no. O culto foi imposto com violência em algumas regiões que não acederam de
imediato e As Bacantes demonstram precisamente a forma como o culto se afirmou
em Tebas, a cidade natal de Sémele (mãe de Dioniso) onde o deus procurou vingar
sua mãe:

[…] Importa que esta cidade se convença de que carece das minhas danças e
dos meus mistérios e se aperceba de que vingo a honra de minha mãe Sémele,
manifestando-me aos homens como a divindade que Zeus nela engendrou […].2

1 
Eurípedes, “As Bacantes”, in Ifigénia em Áulis. Electra. As Bacantes, p. 180.
2 
Idem, pp. 180-181.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 195


Natália Maria Lopes Nunes

Na tragédia, Penteu é o símbolo da resistência e da profanação dos mistérios


dionisíacos. A sua recusa desencadeara a ira de Dioniso contra as filhas de Cadmo,
tornando-as adeptas do seu culto. Elas, tais como as outras bacantes, adquirem uma
conduta orgiástica que integra elementos rituais e míticos. Por outro lado, o novo
culto veio pôr em causa diversos valores, sobretudo no que diz respeito à condição
feminina.
Na Grécia antiga, como já referimos, a vida da mulher pautava-se pela “devo-
ção” à família, pelo cumprimento dos deveres ligados aos trabalhos da casa onde
a moderação, a honestidade e a fidelidade constituíam os aspectos fulcrais da boa
esposa. Ora, com a afirmação do culto dionisíaco, é posta em causa o papel da
mulher através da inversão de todos esses valores. Dioniso, exercendo o seu poder
divino sobre as mulheres, leva-as à loucura, envia-as para a montanha onde, num
delírio místico de possessão divina, e comparadas a animais selvagens, elas se aban-
donam aos impulsos mais elementares. Estes manifestam-se essencialmente pela
dança, música, entusiasmo e omofagia (comer carnes cruas). Como refere Edmond
Rochedieu, «e quando os seus fiéis – os Bacantes e as Bacantes, pois também têm o
nome de Baco – estão possessos dele, também eles devoram com fúria, sem sequer
se darem ao trabalho de os matar, os animais que lhes vão ter às mãos. E se, por
acaso, o ser vivo sobre o qual se lançam não é um animal mas um homem, os Ba-
cantes e as Bacantes, tomados de loucura, imaginavam-se a devorar um cabrito ou
qualquer animal selvagem»3.
Penteu, ao renunciar ao culto dionisíaco, sofre precisamente o castigo divino:
visto como um leão pelas bacantes, é dilacerado pelo ímpeto canibal da própria mãe
que, fora de si, sacrifica o filho invertendo, deste modo, o seu papel de mãe. Este
aspecto é claramente evidenciado quando é referido que as bacantes amamentavam
os animais selvagens: «[…] Algumas traziam nos braços pequenos corços ou crias de
lobo a que estendiam o seio túrgido do leite da sua recente maternidade privada de
filhos […]»4.
No final da obra, salienta-se também o carácter selvagem de Agave ao enfatizar
o acto atroz como mata o filho:

- Pai! Podes vangloriar-te de ter engendrado filhas como jamais algum mortal
deitou ao mundo. De todas, deves orgulhar-te ainda mais de mim que abando-
nei o tear e a lançadeira para me engrandecer, submetendo as feras às minhas
mãos. Trago nos meus braços a prova da minha insigne coragem […].5

A omofagia funciona como um acto mágico de comunhão com o divino uma


vez que a vítima (Penteu) é, simbolicamente, o duplo de Dioniso, a figura do outro,
Edmond Rochedieu, As Grandes Religiões do Mundo – Ritos, Mitos e Símbolos da Antiguidade à Idade Média, trad.
3 

Manuel Ferreira da Silva, Lisboa, Editorial Verbo, 1983. p. 289.


4 
Eurípedes, op. cit. pgs. 208-209.
5 
Idem, 232.

196 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Inversão do Papel da Mulher n’As Bacantes de Eurípedes

depois dele ter abolido a sua identidade corporal. Simbolicamente, o seu sacrifício
manifesta a renúncia definitiva da imagem narcisista do homem que se opunha à
mulher. Penteu pretendia saciar a sua curiosidade observando o culto, mas não que-
ria disfarçar-se de mulher. Contudo, recusar o ritual dessa loucura sagrada levaria à
morte. Ao aceder à transformação operada por Dioniso, Penteu inicia um processo
de perda gradual da razão que o leva a confundir a divindade com um touro. O
seu estado racional dera lugar à irracionalidade. Neste sentido, o carácter feminino
do culto dionisíaco, abolindo a virilidade e a racionalidade masculinas, faz ressaltar
uma certa virilidade feminina.
A mulher é, no fundo, a iniciadora dos mistérios dionisíacos. O seu compor-
tamento quebra as barreiras do gineceu, do seu papel como esposa e como mãe,
livrando-a do casamento e remetendo-a para o espaço sagrado da montanha cujo
mestre será o próprio Dioniso efeminado. Assim, participar no culto exprime a
abolição da barreira entre o sexo masculino e o sexo feminino, possibilitando ple-
namente a ambivalência do desejo, ou seja, o realizável e o de qualquer coisa que
se perdeu (a Idade do Ouro). Por outras palavras, diríamos que o culto dionisíaco,
através do delírio orgiástico, corresponde a um arquétipo cujo objectivo remete
para a abolição do tempo. A sua finalidade como rito é uma manifestação clara da
nostalgia do regresso ao tempo mítico das origens, ao Grande Tempo, ou seja, à
eternidade e imortalidade. Essa nostalgia do tempo perdido deve-se à insatisfação
da mulher cuja condição humana é baseada em leis morais e sociais que a remetem
para um plano inferior. Dilacerada, ela vive separada no mundo à parte do gine-
ceu. O desejo de recuperar a Unidade Perdida leva à transgressão através do culto
dionisíaco.
O ingresso das mulheres de Tebas no culto, ainda que sob o poder de uma vin-
gança, tem subjacente a ostricidade da casa, as leis, a moral, as ordens impostas pelo
poder do rei (Penteu). Assim, a obra de Eurípedes comporta em si determinados
símbolos e ritos que implicam a presença da coincidência dos opostos (coincidentia
oppositorum). É a nostalgia do Paraíso perdido que obriga a transcender os contrá-
rios. Através dos ritos dionisíacos é possível aceder ao começo (in principio, in illo
tempore) onde não há leis nem proibições. Fugindo às regras do poder masculino
instituído, o novo culto, simbolicamente, representa a forma como as mulheres es-
caparam à vigilância dos respectivos maridos, pais ou irmãos, através da folia e da
abolição de todas as barreiras impostas pelo homem:

- […] Aí as Ménades entregavam-se a tarefas aprazíveis. Umas enlaçavam hera


nos seus tirsos desguarnecidos. Outras, quais potras libertas dos arreios, devol-
viam, como um eco, os responsos de um hino báquico […].6

A mulher, quebrando o círculo do seu estatuto, entrega-se a ritos, nomeada-

6 
Idem, p. 225.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 197


Natália Maria Lopes Nunes

mente à dança e à embriaguez do vinho, que a libertam das tensões psicológicas,


cujos gestos levam ao êxtase e a um abandono total de si. Neste abandono, o corpo
da mulher tem um papel fulcral que lhe permite atingir o poder transcendente
que a faz aproximar da divindade. Citando Edmond Rochedieu, «o êxtase dionisí-
aco e esta convicção de que todo o fiel se poderia unir ao seu deus e, desse modo,
conquistar a imortalidade, estas crenças preparam os espíritos para receberem ou-
tras verdades, aquelas que veremos aparecerem nas religiões dos Mistérios, e depois
desenvolverem-se e culminarem no cristianismo»7.
Na relação entre a mulher e Dioniso, ele funciona como o deus que possui.
Estar possuído por ele consiste em unir-se ou incorporar-se na divindade através
dos rituais orgiásticos. Como afirma Félix Buffière, «le délire, possession divine qui
transporte l’ âme hors d’elle-même et la met dans un état voisin de la folie, le délire, loin
d’ être un mal, est la source des plus grands profits, qu’ il soit divinatoire ou prophétique,
poétique ou amoureux. Ce sont les dieux eux-mêmes qui rendent fous les amants, qui
les plongent pour leur bien dans le délire passionnel»8.
Porém, no que diz respeito à participação masculina no culto, ela obriga ao
disfarce – o homem deve vestir-se de mulher, tal como o próprio Dioniso, renun-
ciando, deste modo, à sua virilidade e “entrando” no mundo feminino. Citando
José Ribeiro Ferreira, «o trajo de Bacante é símbolo exterior da total alteração de
personalidade»9. Penteu teve de vestir roupa feminina para ter acesso aos mistérios.
Todavia, a sua metamorfose levá-lo-á a uma morte atroz:

- […] Quero passeá-lo pelas ruas de Tebas em trajos femininos. O terrível guer-
reiro cujas ameaças ainda há pouco todos temiam, será objecto do riso dos Teba-
nos. Com estas mãos vestir-lhe-ei o trajo com o qual entrará no Hades, após ter
sido degolado pela própria mãe […]10.

Disfarçado de mulher, ser-lhe-ia permitido entrar no ritual da montanha. Esta,


como espaço selvagem e morada dos deuses, era o local privilegiado para o culto,
permitindo uma maior aproximação com o divino. O carácter afirmativo de Dioni-
so e a acção do travesti também são referidos por Ésquilo ao apresentar a divindade
como homem-mulher. A alternância entre o masculino e o feminino (também ela
imposta a Penteu) remete igualmente para o Banquete de Platão ao descrever o ho-
mem primitivo como um ser bissexuado. Como afirma Mircea Eliade, «Dionysos,
il était le dieu bisexué par excellence»11. A androgenia é, n’As Bacantes, sugerida pelo
travesti (o homem vestir roupa de mulher), levando-o a sair de si próprio e a abolir
7 
Edmond Rochedieu, op. cit. , p. 292.
8 
Félix Buffière, Eros Adolescent, la Pédérastie dans la Grèce Antique, Paris, Les Belles Lettres, 1980. p. 404.
José Ribeiro Ferreira, “A Cena da Loucura de Penteu no 4º Episódio das Bacantes”, in As Bacantes e o Nascimento da
9 

Tragédia, coord. António Marques, p. 38.


10 
Eurípedes, op. cit. p. 216.
11 
Mircea Eliade, Méphistophélès et l’Androgyne, col. « Folio/Essai », Paris, Gallimard, 1995, p. 157.

198 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Inversão do Papel da Mulher n’As Bacantes de Eurípedes

as diferenças entre o masculino e o feminino. Abolindo-as, através da inversão de


valores, o ser humano atinge a totalidade, comportando, assim, a coincidência dos
opostos.
O culto dionisíaco viria, posteriormente, opor-se ao culto apolíneo. Segundo
Nietzsche, a origem da tragédia liga-se a duas forças distintas: a apolínea e a dioni-
síaca. Apolo é o deus das artes plásticas, do equilíbrio, da harmonia, do racional, da
individualidade, a representação dos valores do espírito e da inteligência; Dioniso é
o deus da música, das forças obscuras, das manifestações instintivas, do irracional,
da exaltação ébria, da perda de si próprio, simbolizando o homem primitivo. São
precisamente estes aspectos que encontramos n’As Bacantes de Eurípedes – a obra é
uma verdadeira manifestação dos excessos, do caos, da desordem, onde as mulheres
sofrem uma total inversão a nível das suas funções, segundo as leis de uma socieda-
de regida pelo poder masculino, pela contenção da força apolínea e da individuali-
dade, cujo espaço máximo corresponde ao gineceu.
Utilizando a terminologia de Gilbert Durand, diríamos que, enquanto Apolo
se insere no regime diurno onde a razão e o individualismo são valores fulcrais,
Dioniso pertence ao regime nocturno de carácter místico. Este facto deve-se pre-
cisamente à loucura do delírio orgiástico e à fusão entre o homem e deus através
da omofagia. Deste modo, o Mistério da religião dionisíaca, segundo Eurípedes,
consiste na participação das bacantes em rituais que vão desde o esquartejamento
da vítima (sparagmos) até ao consumo de carne crua (omofagia). O animal (Penteu)
devorado implica a incarnação de Dioniso.
A sacralidade dos ritos apresenta a união entre a vida e a morte. Michel Maffe-
soli sintetiza este aspecto ao referir que «le bruyant Dionysos est, ne l’oublions pas, à la
fois le dieu de l’amour et celui de la mort»12. A manifestação dos contrários desenca-
deou uma regressão ao instinto primordial onde a orgia simboliza o carácter arcaico
do erotismo, levando o adepto a uma divinização. O êxtase dionisíaco desencadeou
a libertação total da mulher permitindo-lhe a comunhão com a força vital da pró-
pria divindade. Segundo Mircea Eliade, a orgia, manifestando uma regressão ao
instinto, e contrapondo-se ao apolíneo, será uma forma de assegurar a fertilidade.
Ela permite um regresso ao Caos para que seja possível a cosmogonia.
Além disso, através da orgia dionisíaca, a mulher entra num processo de socia-
bilidade que lhe era recusada no gineceu. Implícito está o carpe diem da mulher e a
sua aproximação e identificação com a divindade. Ela passa a ser a figura soberana,
aquela que, através do êxtase, sai da cidade e entra nos mistérios dionisíacos cujos
rituais implicam a vida e a morte. Violando as leis impostas pelos humanos, ela
substitui os afazeres domésticos pela música e pela dança. De matrona, passa a ca-
çadora, contudo a sua caçada é feita com o corpo, não com armas:

12 
Michel Maffesoli, L’Ombre de Dionysos, Dionysos – contribution à une sociologie de l’orgie, col. « Sociologies au Quo-
tidien », Paris, Méridiens/Anthropos, 1982, p. 23.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 199


Natália Maria Lopes Nunes

- […] Nisto, vi três danças sagradas, três coros de mulheres, conduzidas por Au-
tónoe, por Ino e por sua mãe Agave. Todas elas dormiam com os corpos ao aban-
dono, umas recostadas na rama pilosa dos abetos, outras sobre folhas de carvalho,
a cabeça tombando, ao acaso, no chão […]. Caíram então sobre as reses que
pastavam e, sem usarem qualquer espécie de arma, ofereceram aos nossos olhos
um espectáculo inacreditável. Uma delas ergueu nos braços uma vaca de tetas
túmidas que mugia. Outras deixaram em pedaços os vitelos e as bezerras. Por
todo o lado voavam costelas e cascos fendidos. Pedaços de carne viva, pendendo
dos abetos, pingavam sangue. Com os cornos enraivecidos, os touros jaziam por
terra, derrubados por mil mãos femininas. Em menos tempo do que aquele que
levas para baixar a pálpebra sobre a tua pupila real, elas dilaceraram a carne
que os revestia […]. Às pontas de ferro das lanças elas opunham a sua carne
invulnerável […]13.

O exemplo citado revela que a possessão desencadeia um contacto mais directo


com a divindade. Posteriormente, como caçadoras vorazes numa atitude canibalis-
ta, substituem o animal sacrificado por Penteu, aquele que representa a ordem, a
força apolínea. A sua morte simboliza o fim da ordem, a instauração da desordem
que põe fim à angústia existencial feminina.
Sem fronteiras, sem limites, As Bacantes de Eurípedes exaltam a mulher cuja
virilidade remete para a fecundidade, associando-a à figura da Mãe Terra ou da
Grande Deusa, nomeadamente de Cíbele com a qual o culto dionisíaco se interliga
através da orgia e da castração dos sacerdotes da deusa. Estes, praticando emascu-
lações orgiásticas integravam-se nos mistérios da Deusa Mãe. O coro das bacantes
realça a ligação de ambos os cultos:

- […] aquele que na montanha


santamente purificado
nas Bacanais participa;
que as orgias rituais
de Cíbele, a Grande Mãe,
piedosamente pratica; […]14

Porém, sendo Dioniso o deus da vegetação e da fecundidade (aspectos simbo-


lizados na forma como se apresentam vestidas as bacantes). Deméter é aquela que
com ele simboliza a união cósmica e a união orgiástica. Por outro lado, essa união
está presente em cada uma das bacantes: são elas as iniciadoras da violência ritual
que conduz a uma nova vida onde o erotismo e a sensualidade são partes integrantes
da sua fúria. Michel Maffesoli afirma que «le culte de la “Grande-Mère” tellurique,

13 
Eurípedes, op. cit., pgs. 208-210.
14 
Idem, p. 182.

200 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Inversão do Papel da Mulher n’As Bacantes de Eurípedes

dont le dionysiaque reste le modèle achevé, est avant tout sensuel. Il célèbre ce qui de
multiples manières nous rattache à la terre et à ses plaisirs»15.
Assim, a morte de Penteu acaba por simbolizar o fim da barreira que se opunha ao po-
der da fecundidade da mulher cuja expressão máxima está representada na figura da Magna
Mater. Participar no culto dionisíaco da montanha corresponde à prática do culto de Cíbele,
a deusa que, como afirma Lynn E. Roller, «era a Grande Mãe de Aristófenes, bem como de
Eurípedes»16. Participar no culto da deusa implicava o sacrifício masculino do filho/amante,
sendo Átis o símbolo maior da emasculação que iria ser seguida pelos sacerdotes de Cíbele.
Curiosamente, é para restaurar o “reino” da mãe (Sémele) que outra mãe (Agave) sacrifica
o filho, restaurando desta forma o culto da Magna Mater. Por outro lado, existem diversos
elementos comuns aos dois cultos - a orgia, o sacrifício, os animais, a presença da montanha
(espaço sagrado da Grande Deusa), a vegetação luxuriante - que remetem para a fertilidade da
Terra Mãe associada à fertilidade feminina. Além disso, não podemos esquecer que o próprio
Dioniso fora iniciado de Cíbele.
O coro das Bacantes reflecte igualmente a presença constante do carácter sagrado da Gran-
de Deusa e a forma como elas se apresentam em cena realça a semelhança entre o culto de
Cíbele e o culto dionisíaco:
(Sai pela Direita. O Coro das Bacantes entra na Orquestra pela Esquerda. Vêm toucadas de
serpentes, coroadas de folhas de carvalho, hera e esmilace. Trazem peles de corço, brandem os tirsos,
agitam os tamboris, fazem soar os cequins e tocam flauta, dançando e rodopiando ao som destes
instrumentos.)17
O “Hino à Mãe dos Deuses” de um autor grego anónimo do século VI a. C. reflecte as
semelhanças do culto dionisíaco com o culto de Cíbele e sintetiza aquilo que se depreendeu do
nosso estudo - a inversão do papel da mulher e a exaltação do sagrado feminino n’As Bacantes
de Eurípedes:
Canta-me, Musa de voz clara, filha do grande Zeus, a Mãe de todos os deuses e de todos os
humanos; ela tem prazer em ouvir o ressoar das castanholas e dos tímpanos e o rugido das flautas,
o grito dos lobos e dos leões de olhos brilhantes, o eco das montanhas e dos vales cobertos de árvores.
Saudações para ti também e para todas as deusas que se reúnam a ti na canção18.

Bibliografia

CALYSOA, Bascozoy, Euripide et la Catharsis, Athène, Éditions Tinos, 1989.

CARVALHO, António Pinto de, Eurípedes e o Sentimento da Natureza, Coimbra,


Arménio Amado – Editor, 1947.
15 
Michel Maffesoli, op. cit. , p. 153.
Lynn E. Roller, Em Busca da Deusa Mãe, – o Culto Anatoliano de Cíbele, col. «Crença e Razão», Lisboa, Instituto Piaget,
16 

2001, p. 170 (Aristófanes, As Aves 876; Eurípedes, As Bacantes 78-79).


17 
Eurípedes, op. cit. p. 181.
18 
Cf. Lynn E. Roller, op. cit., pp. 146-147.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 201


Natália Maria Lopes Nunes

DURAND, Gilbert, Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, 10ème éd., Pa-


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Livraria Civilização – Editora, 1969.

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tions Complexe, Éditions Albin Michel, 1983.

NIETZSCHE, Frederico, Origem da Tragédia, col. «Filosofia e Ensaios», trad. Ál-


varo Ribeiro, 2ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1972.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. 1,


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–dissertação para doutoramento em Filologia Clássica, apresentada à Faculdade de
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L’Association Dionysiaque dans les Sociétés Anciennes, col. «École Française de


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(Rome 24-25 mai 1984), Paris, École Française de Rome, Palais Farnèse, 1986.

202 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Hélia Correia, o R ancor. Exercício sobre Helena
O lugar das antíteses numa releitura do mito de Helena

Alessandra Oliveira
FXT / U. Coimbra
alessandrajonas@hotmail.com

Q uedições
cabe à poesia criar uma ilusão capaz de justificar e harmonizar as contra-
inerentes ao real defendera-o já, cinco séculos antes de Cristo, Górgias
de Leontinos, o célebre sofista autor do Elogio de Helena1. Na sua peça O Rancor,
Hélia Correia, longe de propor a simples reabilitação da heroína épico-trágica,
convida-nos precisamente a reflectir sobre o papel da poesia na construção das an-
títeses que reproduzem a natureza plural da realidade: aparência/essência, onoma/
pragma, heroicidade/humanidade. Assim, numa leitura bem actual do mito clás-
sico, em que um sentimento tão humano como o amor - tomado como reverso do
ódio e do rancor - se impõe aos valores heróicos celebrados pelos poetas antigos,
a autora parece explorar a ambiguidade de que se reveste a figura de Helena - se-
duzida ou sedutora, vítima ou culpada - ao mesmo tempo que liberta as restantes
personagens do rígido esquema de acção ao qual estão confinadas pelo estatuto
elevado que lhes confere a poética aristotélica. Comprova-se, deste modo, o ca-
rácter multívoco do mythos, que vemos dar origem a representações bem diversas,
consoante perspectivado sob o ângulo da psicologia feminina ou de valores marca-
damente masculinos, recriado à luz da tradição ou reinventado pela sensibilidade
da autora.
Esta dinâmica de oposições em que assenta toda a estrutura dramática surge,
desde logo, implícita na relação que se estabelece entre o título, O Rancor - sugestivo
do realce que será concedido aos sentimentos, desejos e motivações configuradores
da dimensão humana das personagens - e o subtítulo, Exercício sobre Helena, que
remete para a grandiosidade heróica dos onomata da ficção épico-trágica. Tais antí-
teses serão asseguradas, no decurso da acção dramática, pelas próprias personagens
que, assumindo o papel do poeta, se encarregarão de criar um mundo de engana-
doras aparências, no qual o seu estatuto de heróis é recuperado e a sua condição de
real humanidade escamoteada.
No início do Acto I, o pomposo discurso ensaiado por Menelau (cf. p. 11), a
evocar, pela reduplicação de epítetos e fórmulas, a grandiloquência da epopeia ho-

1 
Cf. Romeyer-Dherbey, Gilbert, Os sofistas, Lisboa, Edições 70, 1986, p.43: «Porque o real está dilacerado pelas
contradições, o mundo humano exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer, e é, de acordo
com a etimologia, à poesia que Górgias se dirige para o fazer. A tomada de posição a favor de um dos contrários não é
atitude de força, mas uma pacificação pela poesia, no sentido amplo do termo diríamos hoje pela arte». Com efeito, para
demonstrar o poder harmonizador e unificador da arte (em particular, da poesia) sobre a mente humana, dividida por
acção de um real múltiplo e contraditório, Górgias aduz, no parágrafo 18 do Elogio de Helena, o exemplo dos «pintores
que saciam a vista quando a partir de múltiplas cores e corpos completam, com perfeição, um corpo inteiro, uma figura
inteira».

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 203


Alessandra Oliveira

mérica, contrasta marcadamente com o tom de impaciente irritação que perpassa


as palavras dirigidas a Etra e Helena, desde logo comprometedoras da sua imagem
de herói:

Menelau: Eu, Menelau, rei da Lacónia, rei de Esparta, a dotada de tão bravos
habitantes que nunca precisou que erigissem muralhas para reforço da defe-
sa, eu, Menelau, da casa dos Atridas, te dou as boas-vindas, ó meu filho. (...)
(Suspendendo o discurso): Mas não vem, essa mulher? (Chamando) Etra! A
tua rainha, onde está ela? (...

(...) A arranjar-se! Mas Telémaco já espera... (p.11)

Ora, se o tom solene e austero do discurso de abertura sustenta a frágil ilusão


de um mundo de valores heróicos, o registo familiar que se lhe segue, mais con-
forme à realidade comezinha destes anti-heróis, denuncia um quotidiano banal de
conflitos e desavenças que a poesia dificilmente consegue ocultar. Porém, não será a
linguagem poética o único veículo da aparência e da ilusão, mas todo um conjunto
de elementos que integram a componente visual do teatro encenado no interior do
próprio drama, como sejam o cenário/espaço, o traje/indumentária, os adornos/
adereços. Assim, veremos que o aparato da recepção preparada no salão principal do
palácio de Esparta e os trajes reais ostentados pelos actores/personagens, sugestivos
da imagem de nobreza e magnificência que convém aos heróis, encobrem apenas a
sua decadência moral e uma torpe realidade marcada pelo crime e pela vingança,
pela culpa e pelo rancor. Começa, pois, a tomar forma a distinção entre a exterio-
ridade e interioridade dos caracteres, implicada, em última análise, na antinomia
aparência/essência. A própria beleza supra-humana de Helena, cantada pelos poetas
e lembrada por Telémaco (cf. p.43), de visita a Esparta, revela ser o contraponto da
sua ruína interior no momento em que a cabeleira egípcia exibida ao longo de todo
o Acto I - metáfora da ilusão forjada pelos artifícios da poesia ou mesmo pelos ardis
femininos - lhe é bruscamente retirada por Menelau, deixando a descoberto a sua
cabeça completamente rapada (cf. p.46), numa clara sugestão do desnudamento da
sua interioridade ou mesmo da fragilidade de uma aparência fundada na enganado-
ra impressão dos sentidos. Sob o signo da ironia trágica, vemos assim o dissimulado
rei de Esparta, sempre empenhado na encenação da farsa da família feliz, revelar
uma verdade que é a negação da imagem de harmonia que pretende transmitir ao
hóspede, um ingénuo Telémaco inebriado (ou ‘enfeitiçado’, no dizer de Pirro - p. 40)
pela grandiosidade das narrativas de heróis.
A discordância entre a acção (pragma) das personagens e o nome (onoma) que as
identifica com as virtudes e os feitos celebrados pelos poetas épicos e trágicos torna-
se mais acentuada à medida que vão sendo reveladas as pechas da corte espartana.
Assim, a Helena que, segundo a tradição e a crença de Telémaco, «foi rapta-
da e esteve presa em Tróia até que Menelau, triunfante, a libertou» (cf. p.40)

204 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Hélia Correia, o Rancor. Exercício sobre Helena

não é senão a mulher comum, que, seduzida pela beleza de Páris e movida pelo
desejo, abandonara a monotonia de uma relação meramente contratual e até as
responsabilidades maternais, para viver a experiência de uma arrebatada história
de amor. A ambiguidade da personagem parece ser, contudo, o reflexo das con-
tradições que dividem a mente humana. Na verdade, se umas vezes reclama
a tranquilidade de uma vida anónima, outras, parece não abdicar do papel da
heroína; e se primeiro refuta a fantasiada versão dos poetas acerca da causa da
Guerra de Tróia, no momento seguinte, vemo-la encenar o espectáculo patético
da rainha escravizada por uma culpa que antes se recusara a aceitar. De facto, é
o papel do poeta que Helena assume2 quando explora o efeito trágico do quadro
simbólico que ela mesma compõe na cena inicial do Acto II (cf. p. 47-49). As-
sim, a rainha em farrapos lavando obsessivamente o chão que diz coberto de
sangue pretende ser a metáfora da mulher torturada pelo remorso do morticínio
de Tróia, buscando desesperada e inutilmente a redenção.

Helena (esfregando o chão): Não sai, não saem estas manchas. Olha. O san-
gue de Páris. (...) (insistindo) Veio agarrado a mim todo este sangue, escor-
reu-me pelas pernas à medida que eu ia caminhando. (pp.47,48)

A Etra, porém, cabe desmascarar o fingido delírio de Helena, cuja dor - ape-
nas aparente - não revela senão o desejo de recuperar o estatuto de heroína
perdido:

Etra: Ela e as suas grandes atitudes!... Imitas muito bem as loucas, queri-
da. Mas não conseguirás enlouquecer. Somente os inocentes enlouquecem.
(p.48)

Contudo, o cenário («as traseiras do palácio ou pátio, ou descampado») e indu-


mentária, ao mesmo tempo que colaboram neste teatro de aparências, voltam a ser
indício da interioridade da personagem, que adivinhamos macerada não pela dor
do remorso mas pelas saudades da paixão ou da aventura em tempos vivida:

Etra: (...) Mas tu não tens remorsos, Helena. Tens saudades. Eu própria, às
vezes, dou por mim a bocejar. E no entanto nunca experimentei um grandio-
so destino, desses que dão depois matéria para os trágicos. (p.49)

Por sua vez, o tíbio Menelau, a quem um papel secundário foi reservado na

2 
De acordo com Ingrid Holmberg (1995, 26-28), já na Ilíada, Helena parece assumir uma função análoga à do poeta.
Com efeito, enquanto borda num manto púrpura os combates em seu nome travados entre Gregos e Troianos (II. 3. 125-
129) ou mesmo quando descreve os guerreiros aqueus, na famosa cena da Teichoscopia (II. 3. 182-242), vemo-la recriar,
sob o ângulo da sua subjectividade, os quadros de guerra em que se movem os heróis, ciente que está da imortalidade
com que os cantos dos vates coroam os homens (II. 6. 354-58).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 205


Alessandra Oliveira

grandiosa empresa de Tróia, reclama as honras de um guerreiro homérico enquanto


exibe orgulhosamente a bela Helena como troféu de uma glória nunca alcançada.
Porém, a aparente imagem do herói logo se desvanece ante a realidade do homem
rude, que ‘bebe e limpa as unhas com a faca’ (cf. p.40), indiferente aos ultrajes co-
metidos contra Helena.
Em torno do par real, outras figuras gravitam: Pirro, o filho de Aquiles, os-
tentando um ardor bélico que não é senão a sombra da glória paterna e a imagem
distorcida de um carácter quezilento e cobarde, esconde ostensivamente a verdade
ultrajante da sua impotência na relação com Hermíone.
Já a verrinosa Etra, incómoda voz de verdades indesejadas, irá desvelando as
reais intenções das personagens e as fraquezas que se esforçam por ocultar sob o véu
da aparência, ao mesmo tempo que encobre, por detrás do seu discurso moralista,
o segredo, durante anos guardado, da verdadeira identidade de Ifigénia, filha afinal
de Helena e Teseu.
Também Orestes parece inadvertidamente participar neste jogo de aparências
em que a verdade e a ficção poética ora se opõem ora se confundem. Assim, se aos
olhos de Etra e Helena surge como vagabundo, louco e até poeta, o príncipe de
Micenas recusa-se também a ver na rainha em farrapos a mulher que afirmava ‘ter
já dormido com reis’ (cf. p.60). De resto, a sua imaginação viciada pelos tópoi da
poesia, fá-lo-ia esperar uma esbelta Helena de longos cabelos loiros «alimentando-se
com figos doces e hidromel» (cf. p.55), alheia à dor das viúvas e órfãos da terrível
guerra de que fora a causa. Com efeito, é o engano veiculado pelos sentidos que
retarda o reconhecimento dos heróis e a crença produzida pela ficção que obsta
ao conhecimento da verdade. Porém, ao contrário do que se verifica em relação às
demais personagens, na figura de Orestes torna-se evidente a aproximação entre
soma e psique, exterior e interior, já que os andrajos e a expressão aterrorizada com
que surge em cena no Acto II não são mais do que a materialização do seu íntimo
dilacerado pelo remorso do crime perpetrado contra a própria mãe. Curioso é ainda
verificar, no quadro do assassínio de Clitemnestra, o desvanecer das fronteiras que
separam verdade e ficção poética. Assim, se antes a poesia se revela bem diversa da
realidade das personagens, agora a distância parece estreitar-se e a verdade chega
mesmo a tomar a aparência de ficção. Comprova-o o emotivo relato da morte de
Egisto e Clitemnestra, marcado pelo tom grave e elevado das tragédias, em que a
verdade é tomada por verosimilhança, confundida com um delírio de poeta (cf. p.
69, 70).
Finalmente, as Erínias vingadoras que acompanham Orestes, projecção da
consciência das personagens - a verdade que umas atormenta e é por outras su-
portada ou até ignorada -, espelham a miséria da condição humana que insiste em
impor-se ao esplendor com que a poesia coroou a história dos heróis.
A acção desenvolve-se, assim, no sentido da revelação da verdade - que as per-
sonagens insistem em ocultar sob o véu da ficção - tomando apenas no epílogo o
rumo inverso, com a reposição da aparência.

206 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Hélia Correia, o Rancor. Exercício sobre Helena

Na definição destas antinomias estruturantes do argumento não nos parece


também despiciendo o papel da linguagem. Assim, enquanto o registo corrente e o
uso repetido do calão se quadram com a face humana das personagens, revelando
uma verdade que se esforçam por ocultar sob um onoma ilustre, o tom solene que
por vezes domina o seu discurso, claramente sugestivo do estilo elevado dos poetas
épicos e trágicos, coaduna-se com a aparência de heroicidade que se esforçam por
conservar. Esclareça-se ainda que é a actualidade de que se reveste a linguagem
que torna possível a identificação dos espectadores com o drama das personagens,
potenciando se não a catarse pelo menos uma reflexão a respeito da decadência de
valores que atinge a sociedade coeva, onde a aparência, a hipocrisia, a vaidade frívo-
la do poder ou da beleza, tendem a sobrepor-se à essência, à verdade e à integridade
moral.
Ora a reflexão a respeito das antinomias verdade/ficção e realidade/aparência
impõe-se ainda a propósito da discussão gerada em torno do tema da guerra, relati-
vamente ao qual as personagens apresentam posições bem diversas. Assim, enquan-
to Menelau e Pirro, de olhos postos no exemplo dos heróis homéricos, se revelam
defensores acérrimos dos valores guerreiros, que consideram o meio supremo de
dignificação, as mulheres, sensíveis às consequências reais da guerra, parecem opor-
se com idêntica firmeza a este arreigado belicismo. Duas visões antagónicas - a
masculina e a feminina - contemplam, pois, uma mesma realidade, conforme se de-
preende do diálogo de Etra e Menelau, que se referem à guerra usando dois termos
bem distintos: «massacre» e «conquista» (cf. p.12).
As opiniões masculinas e femininas divergem também no que concerne às
causas desencadeadoras da guerra de Tróia. Enquanto Menelau e Pirro repetem
a consagrada versão da poesia épica e trágica, a mesma em que Telémaco e Pirro
acreditam, Helena e Etra desmascaram os interesses que teriam verdadeiramente
presidido a esta empresa: a ambição do poder e da glória, a par da ganância desper-
tada pelas riquezas de Tróia.
Em moldes não muito diferentes se pondera o tópico da responsabilidade de
Helena, amplamente explorado na poesia antiga, de Homero a Eurípides, e matéria
ainda do conhecido exercício de retórica composto pelo sofista Górgias. Assim,
se Pirro condena Helena por ter seguido o «estrangeiro de olhos langorosos» (pp.
40, 76), a rainha de Esparta aduz este mesmo argumento para sustentar a sua ino-
cência, defendendo a supremacia do amor sobre as convenções (ou simplesmente a
legitimidade dos seus sentimentos) e confessando livremente os impulsos da sua sen-
sualidade, numa atitude de constante desafio aos valores da sociedade machista que
Pirro e Menelau tão bem representam. De resto, é um desejo de afirmação contra
a arrogância masculina que aproxima as personagens femininas, mesmo quando as
separa um rancor antigo. Saliente-se, a este propósito, a cena em que Etra e Helena
se riem, cúmplices, lembrando a perplexidade de Menelau no momento em que
retira à rainha a peruca egípcia e vê desvanecer-se a aparência do «marido extremo-
síssimo» diante de uma verdade inesperada.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 207


Alessandra Oliveira

Etra: Ele armado em marido extremosíssimo e toda a gente a perceber que


nem sabia que tu tinhas cortado o cabelo todo!
Helena: Como as viúvas, como as descasadas!
Etra: Ele, tão preocupado com a ideia que os outros fazem a seu respeito! A
querer mostrar que é tão feliz contigo e que a história de Páris não passou
pela cama nem pelo coração... A cara dele, ah, ah! (p.52)

Percebe-se, assim, que o rancor destas mulheres não é senão o espelho do desa-
mor a que são votadas pelos homens, demasiado absorvidos pelos assuntos de guerra
ou preocupados apenas com as formalidades que requer a aparência de harmonia
conjugal. Por esta razão, as personagens femininas não abdicam da vivência do
amor e da sexualidade (com excepção de Etra, que em Helena inveja as paixões
nunca vividas), um desafio aos repressivos valores masculinos, que se paga também
com o ódio ou o rancor.
Daqui se infere que o conflito amor/ódio, à semelhança do que se verifica com
a antítese guerra/paz, resulta, em última análise, das divergentes concepções da
realidade que separam o universo de homens e mulheres.
Ao sugerir-se a natureza multímoda do real, que não existe senão enquanto
representação subjectiva, confirmam-se as teses sofísticas acerca da impossibilidade
de aceder à essência das coisas, ao mesmo tempo que se dá expressão à célebre
máxima de Protágoras: «O Homem é a medida de todas as coisas»3.
Provado o carácter inacessível da verdade, assistir-se-á, então, ao triunfo da apa-
rência sobre a essência. Ora, o retomar, no epílogo, da ilusória ordem inicial, em
que as personagens parecem interpretar o papel de que a poesia as investiu, define,
pois, a estrutura em anel do argumento, testemunho do seu pendor vincadamente
retórico. Ensaia-se, assim, o teatro da harmonia familiar, que as próprias Erínias
são chamadas a integrar, transformadas agora - por obra do poder criador das
personagens-poetas - em «simples bailarinas de banquete» (cf. didascália p.105).
Encarregadas de divertir os heróis, prefiguram a ilusão de felicidade forjada pelos ho-
mens para escapar a uma realidade de sofrimentos ou tão só ao remorso que mitiga
a consciência. As desgraças presenciadas atribui-as, assim, Menelau a «um pesadelo
horrível» (cf. p.106). Helena, por sua vez, retoma o traje sumptuoso do Acto I e a
peruca egípcia, cujo simbolismo se revela em pleno quando a protagonista introduz
uma nova versão do mito (a mesma que Eurípides adopta na tragédia Helena), coin-
cidente com a da palinódia de Estesícoro que constitui a epígrafe da obra:

3 
Do pensamento de Protágoras, convirá, sobretudo, destacar a afirmação da natureza subjectiva do real, consubstancia-
da nas palavras introdutórias do tratado A Verdade: «O Homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são,
das que não são enquanto não são.» (fr. B. I.). Ora, esta tese do homem-medida vem legitimar um outro postulado tam-
bém implicado na leitura do mito de Helena proposta por Hélia Correia: « (...) a respeito de tudo há dois discursos que
se contrariam um ao outro.» (apud Romeyer-Dherbey: 1986, 18). O argumento de O Rancor parece, assim, construir-se
em grande medida, sobre o ponto de conexão estabelecido entre as doutrinas sofísticas de Górgias e Protágoras, que
defendem uma verdade não absoluta, mas relativa ao indivíduo.

208 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Hélia Correia, o Rancor. Exercício sobre Helena

Não é verdade esta história.


Não embarcaste nas naus de sólidos bancos.
Não foste à fortaleza de Tróia.

Ao afirmar que, com a ajuda de Afrodite, conseguira escapar ao raptor aquando


da escala das naus no Egipto, onde se refugiara enquanto Gregos e Troianos com-
batiam em nome de um eidolon, Helena não só reabilita a sua imagem como sugere
o carácter ilusório do motivo desencadeador da Guerra de Tróia e, por extensão,
a vacuidade das causas que justificam os conflitos entre os povos. Por meio da
ilusão se harmonizam, assim, as posições de Helena e Menelau, a quem esta versão,
concordante com a aparência da família ideal que tenta recompor, parece agradar,
mesmo a despeito do ideal pacifista que lhe subjaz.
À fastidiosa vida real as personagens procuram, assim, opor o «grandioso desti-
no» dos heróis, buscando na poesia a imortalidade que ao homem comum é vedada
(cf. p.49). De resto, todas elas demonstram partilhar idêntico fascínio pelo universo
fictício criado pelos poetas. Por esta razão, Telémaco chega mesmo a afirmar a su-
premacia da ficção sobre a verdade: quem poderia, afinal, contradizer a versão de
Helena se Tróia era, por si só, uma ilusão? (cf. p.107)
Latente parece estar, pois, a antiga discussão acerca do lugar da poesia. Deverá
ela ser entendida, à luz da filosofia platónica, como mero simulacro do real que
afasta o homem do conhecimento da verdade4, ou, de acordo com Górgias, como o
meio através do qual se cria a ilusão (apate) 5 capaz de apaziguar a mente dilacerada
pelos contrários de uma realidade múltipla, cuja essência é incognoscível ou, pelo
menos, intransmissível?6
Se a resposta a estas questões fica em aberto, uma ideia parece, contudo, tomar
forma no decurso da acção dramática: a de que este doce prazer do engano propor-
cionado pela poesia, equiparado por Orestes à «mais estonteante das bebidas»
(cf. p. 57), permite ao homem fazer face a uma realidade de sofrimento ou pelo
menos à pesada monotonia da vida.
Sob o signo das antíteses, explora, assim, Hélia Correia as potencialidades
4 
Vide Platão, Górgias, 502 b, c ; República 600 e 601c.
5 
De facto, a própria concepção gorgiânica do real assenta no paradoxo que resulta da identificação entre o ser e a sua
manifestação ou entre essência e aparência, conforme atesta o fr. 26: «O ser eclipa-se se não lhe outorgarmos a aparência,
a aparência extingue-se se não lhe outorgarmos o ser.». Ora, de acordo com o sofista, é a linguagem (em particular a
poética), enquanto matéria das aparências, que, ao fazer sobressair um dos termos de uma qualquer oposição, possui o
poder de dirimir os conflitos da mente e criar uma ilusão (apate) capaz de justificar ou explicar a realidade mutável e
contraditória. Esta será, pois, uma ‘ilusão justa ’ – ‘apate dikaia’ (fragmento de Ésquilo citado por Untersteiner, I Sof.I
83) – , e um prazer legítimo e desejável, ao qual cede naturalmente aquele que é sábio: « (...) o que cria a ilusão é mais
justo que aquele que não a cria e aquele que se deixa encantar é mais sábio que aquele que não se deixa levar.» (fr. B 23).
Este poder da linguagem, meio pelo qual se opera, segundo Górgias, a passagem da opinião ao conhecimento, quis o
sofista demonstrá-lo em tratados como Elogio de Helena, a que antes fizemos referência, e Defesa de Palamedes.
6 
Recordem-se as três teses apresentadas por Górgias no Tratado do Não-Ser (980): «Nada existe; e se o ser existe, é
incognoscível; mas mesmo que seja cognoscível, não é possível comunicá-lo a outrem.». Na obra em análise, a sugestão
do carácter inacessível (ou pelo menos intransmissível) da verdade parece, em última análise, reproduzir o núcleo do
pensamento gorgiânico, divergente da filosofia platónica, que preconiza a superioridade do ser sobre o parecer.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 209


Alessandra Oliveira

semânticas e expressivas do mito, ao mesmo tempo que reveste de actualidade al-


guns dos temas centrais da literatura e filosofia clássicas.

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Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 211


Otivm e Negotivm no Tratado da República de Cícero1
Francisco de Oliveira
U. Coimbra
foliveir@ci.uc.pt

Otium et reges prius et beatas


perdidit urbes.
Catulo, Carme 51

1. Introdução
O consagrado dueto otium / negotium, uma das expressões do binómio arma /
toga na cultura romana, tende, em Cícero, a uma coabitação inequívoca, passando
pela valorização do lazer e dos espaços e momentos em que se fazia, pelo tratamento
do negotium como instinto inato, pela sua inclusão no conceito epicurista de prazer,
pela politização do otium litteratum e sua ancoragem no conceito de ciência supre-
ma e de virtude.
Intentarei descortinar esses vários registos no Tratado da República de Cícero,
incluindo na construção do diálogo — dos trechos de carácter parenético, como o
preâmbulo do livro I e o fecho da obra, à data dramática, ao cenário do diálogo, aos
intervenientes e à mensagem geral.

2. Otium, negotium e sapientia suprema


O sentido da oposição otium / negotium tem uma valência de oposição guerra
/ paz que ocorre em vários passos, acaso na proximidade de tranquillitas (cf. 1.1).
Vejamos um trecho referente ao rei Numa Pompílio (Rep.2.26; cf. 6.6):

Ac primum agros quos bello Romulus ceperat divisit viritim civibus, docuitque
sine depopulatione atque praeda posse eos colendis agris abundare commodis
omnibus, amoremque eis otii et pacis iniecit, quibus facillime iustitia et fides
convalescit, et quorum patrocinio maxime cultus agrorum perceptioque frugum
defenditur.

Assim, primeiro repartiu pelos cidadãos, por cabeça, as terras que Rómulo
conquistara na guerra e ensinou que, sem razias e sem saque, cultivando os
campos, eles podiam ter em abundância todas as comodidades, e instilou
neles o amor ao ócio e à paz, com os quais muito facilmente se fortalecem a
justiça e a confiança, com cujo patrocínio melhor se defende o cultivo dos

Retomo aqui ou reformulo parte do material da Introdução à minha tradução Cícero, Tratado da República, Lisboa,
1 

Temas&Debates, 2008.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 213


Francisco de Oliveira

campos e a colheita da sua produção.

Todavia, maior ênfase é posta no conceito de otium como uma espécie de refor-
ma política ou cum dignitate otium, que tem um dos exemplos em Catão, modelo
de governante ideal (Rep.1.1)2:

M. vero Catoni homini ignoto et novo, quo omnes qui isdem rebus studemus
quasi exemplari ad industriam virtutemque ducimur, certe licuit Tusculi se in
otio delectare, salubri et propinquo loco. Sed homo demens ut isti putant, cum
cogeret eum necessitas nulla, in his undis et tempestatibus ad summam senectu-
tem maluit iactari, quam in illa tranquillitate atque otio iucundissime vivere.

Na verdade, a Marco Catão, de origem humilde e homem-novo, pelo qual,


como por um modelo, todos os que nos ocupamos destes assuntos somos
incitados à acção e à virtude, era lícito deleitar-se no seu ócio em Túsculo,
um local salubre e próximo. Todavia, este homem insensato, como esses (sc.
os Epicuristas) o consideram, sem que nenhuma necessidade o obrigasse,
preferiu lançar-se nessas ondas e tormentas até ao fim da velhice a levar uma
vida muito agradável naquela tranquilidade e naquele ócio.

Neste passo, Cícero opõe os ideais epicuristas de quietismo, aponia e ataraxia


à metáfora náutica das tempestades, também evocadora da metáfora da nau-do-
Estado; iucundissime ‘muito agradável’ alude certamente ao conceito epicurista de
prazer, o hedonismo (do grego hedone), traduzido em latim por voluptas, suave e
dulce, e bem ilustrado pela expressão lucreciana iucunda voluptas3.
O outro exemplo é o do próprio Cícero, quando se refere ao seu consulado
(Rep.1.7):

Is enim fueram, cui cum liceret aut maiores ex otio fructus capere quam ceteris
propter variam suavitatem studiorum in quibus a pueritia vixeram, aut si quid
accideret acerbius universis, non praecipuam sed parem cum ceteris fortunae
condicionem subire, non dubitaverim me gravissimis tempestatibus ac paene
fulminibus ipsis obvium ferre conservandorum civium causa, meisque propriis
periculis parere commune reliquis otium.

É que, sendo o tipo de pessoa a quem era lícito ou colher, no ócio, maiores
frutos do que outros, por causa do variado encanto dos estudos em que pros-
perara desde a puerícia, ou então, no caso de algo mais amargo acontecer a
todos, não sofrer reveses da fortuna superiores, mas iguais aos dos outros,

2 
Cf. J.-N. Robert (2002), Caton ou le Citoyen. Biographie, Paris.
3 
Lucrécio, 2.1-10 e Rep.1.fr.1e: oblectationem otiis; e 1.1 ad finem: blandimenta voluptatis otique.

214 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otivm e Negotivm no Tratado da República de Cícero

pois eu não hesitei em enfrentar gravíssimas tempestades, quase afrontando


os próprios raios para salvar os cidadãos e, por minha própria conta e risco,
garantir para os outros uma tranquilidade geral.

Também neste trecho subjaz a legitimidade do otium cum dignitate, agora ex-
plicitado na forma de otium litteratum. Mas ambos os passos colocam esse otium
cum dignitate na dependência de uma obrigação mais alta, sobretudo em momentos
de crise ou tempestade, o dever de intervenção política, isto é, o negotium. Nessa
intervenção política enquadra-se, como veremos, uma forma de otium litteratum
não inútil, a teorização política.
Cícero tinha consciência de que aos ideais da intervenção política activa se opu-
nham ambições de poder pessoal, temas retóricos como o da ingratidão popular ou
o da desconsideração pela glória atribuída pelo vulgo, a tendência estóica para um
ideal de sabedoria puramente especulativa e a valorização epicurista de um otium
quietista, uma ataraxia considerada como critério de prazer.
Contra um ideal de vida puramente especulativo ou theoretikos, Cícero enqua-
dra a noção de otium no conceito de virtude, concebida como inato instinto de
acção cívica (Rep.1.1 e 1.3):

Unum hoc definio, tantam esse necessitatem virtutis generi hominum a natura
tantumque amorem ad communem salutem defendendam datum, ut ea vis om-
nia blandimenta voluptatis otique vicerit.

Só quero tirar a seguinte conclusão: ao género humano foram dados pela


natureza tanta necessidade de virtude e tanto amor ao bem-estar comum,
que essa força venceu todos os atractivos do prazer e do ócio.
...
et quoniam maxime rapimur ad opes augendas generis humani, studemusque
nostris consiliis et laboribus tutiorem et opulentiorem vitam hominum reddere,
et ad hanc voluptatem ipsius naturae stimulis incitamur, teneamus eum cursum
qui semper fuit optimi cuiusque, neque ea signa audiamus quae receptui canunt,
ut eos etiam revocent qui iam processerint.

E uma vez que somos extraordinariamente impelidos a aumentar os recursos


do género humano e com os nossos conselhos e esforços trabalhamos para
tornar mais segura e mais rica a vida dos homens — e somos incitados a este
prazer pelos estímulos da própria natureza —, assumamos então a carreira
que sempre foi a de todo o cidadão excelente e não dêmos ouvidos aos que
tocam à retirada, para fazerem recuar até os que já estiverem na frente.

Com esta argumentação simples, e através de apelativas metáforas, Cícero alar-

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 215


Francisco de Oliveira

gava o ideal de participação a todos, não apenas aos sábios ou a uma elite tradicio-
nal, como ainda englobava o negotium no conceito de voluptas, assim compatibili-
zando a intervenção política com o hedonismo epicurista.
Mas a grande preocupação de Cícero consiste em reforçar de forma inequívoca
a vertente prática do conceito de virtude. Ora quase todas as mais de duas dezenas
de ocorrências de virtus ‘virtude’ se relacionam com acção prática, com intervenção
exterior e política, não com um ideal de vida contemplativa ou especulativa.
Assim, depois de, logo em 1.1, afirmar que o amor ao bem-estar comum é natu-
ral, Cícero vai demonstrar que a virtude não é contemplação e deleite, que a virtude
contém uma dinâmica relacional que se traduz em participação política4. Desta
forma, a política é transformada em basilike episteme ‘ciência rainha’ (Rep.1.2-3):

Nec vero habere virtutem satis est quasi artem aliquam nisi utare; etsi ars qui-
dem cum ea non utare scientia tamen ipsa teneri potest, virtus in usu sui tota
posita est; usus autem eius est maximus civitatis gubernatio, et earum ipsarum
rerum quas isti in angulis personant, reapse non oratione perfectio. nihil enim
dicitur a philosophis, quod <non> ab iis partum confirmatumque sit, a quibus
civitatibus iura discripta sunt, (…) ergo ille, civis qui id cogit omnis imperio
legumque poena, quod vix paucis persuadere oratione philosophi possunt, etiam
iis qui illa disputant ipsis est praeferendus doctoribus. (…) quem ad modum ‘ur-
bes magnas atque imperiosas’, ut appellat Ennius, viculis et castellis praeferendas
puto, sic eos qui his urbibus consilio atque auctoritate praesunt, iis qui omnis
negotii publici expertes sint, longe duco sapientia ipsa esse anteponendos.

E a verdade é que não basta possuir virtude, como se fosse uma arte qual-
quer, se ela não for usada. E embora uma arte possa ser mantida, como co-
nhecimento em si, ainda que não seja usada, a virtude reside totalmente no
seu uso prático. Ora o seu uso supremo é a governação de uma cidade e a
concretização, por actos, não por palavras, daquelas mesmas coisas que esses
apregoam a um canto5. Na verdade, de tudo aquilo que os filósofos dizem, e
refiro-me ao que é dito com rectidão e honestidade, <não> existe nada que
não tenha sido alcançado e confirmado por aqueles que fixaram leis para as
suas cidades. (…) Portanto, o cidadão que, por meio do seu poder e da san-
ção estabelecida pelas leis, a todos obriga a fazer aquilo que, com o seu ensi-
namento, o filósofo a poucos persuade a fazer, também ele deve ser preferido
aos próprios mestres que discorrem sobre essas questões. (…) De verdade,
tal como julgo que “as urbes grandes e poderosas”, como as designa Énio,
devem ser preferidas aos lugarejos e aos castros, assim também considero que
4 
Ver também Rep.1.12, 33, 3.4 e toda a doutrina do Sonho de Cipião. Para a relevância e originalidade desta posição,
cf. K. Büchner (1976), Somnium Scipionis. Quellen, Gestalt, Sinn, Wiesbaden, esp. p.73-81.
A tradução de angulis por “a um canto” é inspirada em Górgias, 485d, na versão de M. Pulquério, Platão, I, Lisboa,
5 

Verbo, 1973. Sugere exactamente o carácter anti-social de algumas filosofias.

216 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otivm e Negotivm no Tratado da República de Cícero

aqueles que, com seu conselho e autoridade, presidem a essas urbes, devem,
mesmo em sabedoria, de longe levar a palma sobre aqueles que não tomam
parte em nenhum negócio público.

Para além da lógica do raciocínio e da razão da eficácia prática, Cícero reforçará


os considerandos com o argumento da autoridade através do exemplo dos Sete Sá-
bios, que “viveram quase todos imersos na política” (Rep.1.12).
Em suma, o preâmbulo do livro I constitui um apelo à participação política
activa, na qual se inclui o otium litteratum quando o mesmo é dedicado a discussões
teóricas úteis ou de importância, o que será bem vincado na caracterização de Lélio,
como se verá.
E para aqueles que pouco ligam a argumentos filosóficos (cf. Rep.1.fr.1c.: “Não
é para os mais doutos”), Cícero sela a mensagem com um apelo emotivo em nome
do patriotismo romano (Rep.1.8):

neque enim hac nos patria lege genuit aut educavit, ut nulla quasi alimenta exs-
pectaret a nobis, ac tantummodo nostris ipsa commodis serviens tutum refugium
otio nostro suppeditaret et tranquillum aut quietem locum, sed ut plurimas et
maximas nostri animi ingenii consilii partis ipsa sibi utilitatem suam pignerare-
tur, tantumque nobis in nostrum privatum usum quantum ipsi superesse posset
remitteret.

É que a pátria não nos gerou e educou na condição de não esperar de nós
como que alimento algum e de, estando ela própria ao serviço da nossa co-
modidade, fornecer ao nosso ócio um refúgio seguro e um lugar tranquilo
para repouso, mas na condição de ser ela a receber os mais numerosos e me-
lhores recursos do nosso espírito, do nosso engenho e do nosso discernimen-
to, e de conceder, para nosso uso privado, somente o que lhe for supérfluo.

3. A exemplificação no diálogo
A união otium / negotium é exemplificada em vários registos artísticos e temá-
ticos do diálogo.

3.1. Data dramática e cenário histórico


A data dramática, 129 aC, evoca o surgimento de famílias e de políticos relacio-
nados com grandes conquistas e vitórias sobre inimigos externos. No plano interno,
trata-se de uma época perturbada por tendências para o poder pessoal e para a acção
política à margem das práticas habituais (cf. 1.14). Toda essa evolução se centrava
na actuação da família dos Cipiões, que incluía tanto a figura central do diálogo,
Cipião Emiliano, como os declarados perturbadores da ordem vigente, os Gracos.
Época em muito semelhante à do próprio Cícero, onde a violência irrompia na po-
lítica e já se perfilavam as figuras dos triúnviros. Razões de sobra para um apelo à

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 217


Francisco de Oliveira

intervenção no sentido da regeneração do Estado (cf. 1.31 e 6.12).

3.2. Do cenário de vilegiatura privada à utilidade pública


Quanto ao cenário, o próprio facto de o diálogo decorrer durante as Férias La-
tinas assume um significado relevante: ocupar um momento de lazer ou otium em
discussões sobre altos assuntos políticos, e não sobre estéril astrologia, constituía
uma forma de garantir que esse otium era utilizado “para utilidade da vida ou até
do próprio Estado” (Rep.1.30), pois, segundo Lélio, o que se deve aprender e discutir
são “disciplinas que fazem com que sejamos úteis à cidade!” (Rep.1.33).
Pela mesma razão, o cenário físico ultrapassa o de um simples espaço particu-
lar de vilegiatura, acaso destinado a leituras (cf. Rep.1.14), para se tornar lugar de
socialização do saber (cf. Rep.1.29), em benefício do interesse colectivo, através da
discussão partilhada de problemas de governação e de teoria política.

3.3. Otium e negotium no perfil das personagens


Cícero apresenta Cipião Emiliano (185/184-129) rodeado de intelectuais filele-
nistas, mostrando como a personagem completava a glória alcançada pelas armas
e pela carreira política com os interesses culturais, incluindo astronomia (1.17),
política (1.34) e capacidade oratória (cf. 1.37). Cipião exemplificava, deste modo,
a necessidade de não separar a especulação filosófica da acção política e militar (cf.
1.36-37), nele se prefigurando a união da cultura grega com a romana.
Com tal perfil, Cipião torna-se a personagem central, apesar de não ser o mais
velho. Todos o reverenciam e dele esperam ensinamentos, pois nele se unem a mais
alta linhagem e a glória pessoal com a experiência prática e o conhecimento teórico
(1.33-37), que o habilitam como o mais capaz de discorrer sobre a melhor forma de
constituição e sobre o bom governante.
Quinto Élio Tuberão, jurista e adepto de um estoicismo rigoroso, mostra-se
totalmente empenhado na vida intelectual6 e interessado em questões especulativas,
do foro da astronomia, especificamente o fenómeno dos dois sóis, tecnicamente
chamado parélio. Revela-se bom conhecedor da história da filosofia e defensor dos
estudos da física, a par da ética (1.16). Apesar disso, e mesmo não tendo alcançado
notoriedade política, ele foi tribuno da plebe em 130 e adversário de Tibério Gra-
co.
Lúcio Fúrio Filo, reputado pela oratória, pela rectidão e pela cultura, incluindo
a astronomia (1.17), vem, por antífrase, a assumir a defesa da injustiça no livro III,
reproduzindo a argumentação do discurso de Carnéades. Mas foi cônsul em 136,
contribuindo para a condenação de Mancino ao desaprovar o tratado com os Nu-
mantinos (3.28).
Públio Rutílio Rufo (n.156/154), jurista e orador, foi discípulo de Públio Múcio
Cévola e adepto do estoicismo, que estudou com Panécio. Interessou-se por ques-

6 
Rep.1.15: “tenho todo o tempo livre para os meus livros”.

218 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otivm e Negotivm no Tratado da República de Cícero

tões de astronomia7 e pela historiografia. Mas também serviu como tribuno militar
de Cipião Emiliano no cerco de Numância em 134-133, foi cônsul em 105 e cola-
borou na governação da Ásia em 94/93. No seu exílio em Esmirna teria relatado, a
Cícero e a seu irmão Quinto8, o debate que constitui o Tratado da República, a que,
ainda jovem, pelos 25 anos, teria assistido. Torna-se, por essa via, a ligação entre o
passado e o presente.
Gaio Lélio o Sábio (190-) teve uma carreira política e militar paralela à de
Cipião Emiliano, de quem era muito amigo e de quem fora legado na Terceira
Guerra Púnica, comandando o assalto final a Cartago. Foi cônsul em 140 e, no
ano de 132, tomou parte activa na legislação contra os adeptos de Tibério Graco,
onde poderá ter exercido a sua craveira de jurista (1.20). é referido como orador de
grande cultura, o que lhe teria valido o cognome de Sapiens ‘Sábio’, mas virado para
questões práticas9. De facto, sem negar algum interesse nos estudos da astronomia
e de todas as ciências teóricas gregas, ele procura sempre “assuntos da maior impor-
tância” (1.30) e é ele quem propõe o tema central do diálogo, “a melhor forma de
constituição” (1.33).
Lélio entra acompanhado de três outras personagens: os seus dois jovens genros,
os jurisconsultos Quinto Múcio Cévola Áugure, cônsul em 117, de sensibilidade
estóica, que só diz uma réplica (1.33, onde significativamente usa a palavra discere
‘aprender’), e Gaio Fânio, cônsul em 122, adepto do estoicismo, orador e historia-
dor; e por Espúrio Múmio, membro do séquito do Emiliano na missão diplomática
ao oriente, seguidor de Panécio e defensor da aristocracia (cf. 3.46-48), o qual, ape-
sar de nunca ter alcançado o consulado, foi colega de Cipião na censura, em 142, e
com ele participou na Terceira Guerra Púnica.
A última personagem a apresentar-se é Mânio Manílio, o mais velho de todos,
“homem prudente, encantador e de todos querido” (1.18), famoso jurisconsulto (cf.
1.20) e cônsul em 14910.
Considerando este conjunto de personalidades na sua globalidade, o primeiro
aspecto a salientar é que, tal como na República de Platão, há mais do que uma
geração ou, pelo menos, vários níveis etários entre os participantes no debate11.
Significa tal facto que se está perante um acto de transmissão de conhecimento
entre gerações, o que é congruente com a tradição pedagógica romana e perfeita-
mente compatível com a ideologia do mos maiorum, que se traduz na necessidade
de guardar a memória dos costumes ancestrais. Na perspectiva da dualidade otium
7 
Cf. Rep.1.17: “até sob as próprias muralhas de Numância costumava por vezes indagar comigo sobre este género de
eventos”.
8 
Rep.1.17: “para nós, é o autor deste diálogo”; cf. 1.13.
9 
Ver logo em Rep.1.19: “Acaso já explorámos o que diz respeito às nossas casas e ao Estado, para estarmos a investigar
o que se passa no céu?”
10 
Tivera Cipião Emiliano como subalterno no início da Terceira Guerra Púnica (6.9), podendo representar assim a
geração anterior, pois já pelo ano de 169 brilhava como jurisconsulto (3.17).
Suponho poderem ser assim determinados os níveis etários: o de Mânio Manílio e Lélio; o de Múmio, Filo e Cipião,
11 

que funciona como centro; e o de Tuberão, Múcio Cévola, Fânio e Rufo (cf. A Ático, 4.16.2)

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 219


Francisco de Oliveira

/ negotium, registe-se que essa transmissão de conhecimentos é feita num momento


e num local de lazer.
E, para além de representarem a maneira romana de fazer política, apoiada
em redes de relações familiares e de amizade12, no seu conjunto estas personagens
ilustram a importância tradicionalmente atribuída pela elite romana à participação
política, que inclui comandos militares e missões diplomáticas, que todos os inter-
venientes desempenharam com mais ou menos brilho.
Mas outra faceta relevante é o interesse de todos pelas letras e pela ciência, e em
especial pela oratória e pelo direito, sem excluir aspectos mais especulativos, como
a astronomia, desse modo se concretizando a aliança entre os valores militares e os
valores civis.

4. Os atractivos do negotium político


Mas a resposta de Cícero à crise moral e política confronta-se com um problema
básico, a necessidade de combater o alheamento dos bons em relação à política, que
assim deixavam livre o caminho para os ambiciosos e amorais.
Para incentivar a participação cívica, Cícero reserva para o bom governante
um prémio consentido pela reformulação do conceito de glória. Esta deixa de ser o
bom-nome alcançado em vida, assim escapando tanto à concepção cínica e estóica
dos ‘indiferentes’ (em grego: adiaphora) como à generalizada convicção de que, em
tempos tão controversos e agitados, a glória era fugaz e até mutável, ideia que, já em
1.26, prepara o fecho do livro VI.
Neste livro, e especificamente no Sonho de Cipião, assim expurgada, a glória
torna-se imortalidade astral, concebida em termos órfico-pitagóricos mas também
aristotélicos e estóicos, e literariamente elaborada através de uma máquina do mun-
do que adopta o relativismo das novas cosmovisões, que da terra faziam um ponto
no universo e da sua parte habitada uma exígua parcela desse ponto13.
Com tal reformulação, numa espécie de composição em anel ou Ringcomposi-
tion, que estruturalmente responde às teses contrárias à acção política combatidas
no preâmbulo do livro I, as camadas dirigentes romanas viam sucumbir as razões
para desprezarem a velha aspiração à glória, que deixava de ser afectada tanto por
teorias filosóficas sobre os indiferentes como por realidades vivas, quais fossem as
mudanças da fortuna e as desconsiderações e perseguições políticas. E alcançar essa
nova glória não era difícil: bastava cultivar a tendência social inata, prezada tanto
por aristotélicos como por estóicos, e até compatível com o prazer epicurista, na
interpretação de Cícero, seguir a lei natural, a qual, inscrevendo-se numa ordem

12 
Cf. A. Lintott (2003), The Constitution of the Roman Republic, Oxford, 1999, repr. paperback. p.161-181.
13 
Cf. J. E. G. Zetzel (1995), Cicero, De re publica. Selections, Cambridge, p.15 e C. Nicolet (1988), L’ inventaire du
monde. Géographie et politique aux origines de l’Empire romain, Paris, cap. III, para as cosmovisões; para a ética estóica,
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220 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otivm e Negotivm no Tratado da República de Cícero

cósmica de registo estóico, mandava o homem dedicar-se ao bem-estar colectivo14,


aplicar normas éticas à política e cultivar virtudes tradicionais como a justiça e a
pietas ‘respeito pelos deuses, amor à pátria e afecto pela família’, inatas no povo
romano e nobilitadas filosoficamente desde que o estoicismo médio valorizara as
virtudes de relação (Relationsbegriffe).
Ao inscrever a valorização da acção cívica na ordem moral, Cícero transformava
o negotium político em virtude e sapientia. Ao fundamentar o reformulado concei-
to de prémio da virtude em especulações em parte astrológicas, Cícero também
chamava o otium especulativo a colaborar com a valorização dessa sapientia e dessa
virtude supremas.
Gizava assim uma aliança bem expressa em Rep.3.4:

Quare sint nobis isti qui de ratione vivendi disserunt magni homines (ut sunt),
sint eruditi, sint veritatis et virtutis magistri, dum modo sit haec quaedam, sive
a viris in rerum publicarum varietate versatis inventa, sive etiam in istorum
otio ac litteris tractata res (sicut est) minime quidem contemnenda, ratio civilis
et disciplina populorum, quae perficit in bonis ingeniis, id quod iam persaepe
perfecit, ut incredibilis quaedam et divina virtus exsisteret.

Por isso, aqueles que dissertam sobre as regras de vida, tenhamo-los por gran-
des homens, como de facto são, por eruditos, por mestres da verdade e da
virtude. Na condição de que — tenham elas sido inventadas por varões ilus-
tres e versados na variedade dos negócios públicos, tenham elas sido tratadas
também no ócio e nos escritos dos mesmos —, não sejam minimamente
negligenciadas, como têm sido, a teoria política e a organização dos povos, as
quais, como já frequentemente aconteceu, fazem com que nos homens bem
dotados surja uma virtude incrível e divina.

14 
Ver 1.1, 12, 33; 3.4, 10-12; 6.15: “É que os homens foram gerados com a seguinte condição: para zelarem por aquele
globo que vês no meio deste templo e que se chama Terra” .

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 221


A ritual without the time of exception:
the one’s achievement in the city of Plato’s Laws *

Giovanni Panno
U. Pisa – U. Tübingen
theoros@web.de

Men’s curiosity searches past and future


and clings to that dimension. But to apprehend the
point of intersection of the timeless
with the time, is an occupation for the saint.
(T. S. Eliot, Four Quartets, III,
The dray Salvages, V, 16-19).

T he difference of time allows for the emergence of different social groups in


the city of Magnesia, the Cretan colony projected in the Laws. Scholé-ascholia
characterize an important, and perhaps decisive, aspect of time in this city, be-
cause they act as a factor of differentiation and of communication. Although the
life of the city needs both poles of this dialectic, I am going to discuss how the
true political life exposed in this last dialogue is a scholé. Therefore I will focus on
the second factor. The goal of this contribution is not an exhaustive analysis of
the meaning of scholé in Plato, nor is it a study of all the variations of the dialectic
unity-difference in the Laws. It is actually an attempt to understand how the scholé
rises to a political necessity in order to show if the time of the Laws works like that
of a ritual achievement of the single citizen. I will discuss briefly through the con-
cept of equality, which mirrors on the horizon of the feast and poses the question
about the conservation of the one’s identity in the scholé of the city.

1. ’IsÒthj and differentiation between citizens and inhabitants.


As in a ritual, there are groups who are excluded from and social groups who
are included in the life of this particular polis. For that which concerns the use of
the dialectic scholé/ascholia, the system of Magnesia does not apparently differ from
the organisation of the Greek society of the IVth Century. I have to use the word
“apparently”, because the wide range of meanings and known literary uses of scholé
is difficult to articulate in the order of the construction of the Laws1. In respect
to some of the contemporary meanings and the following history of the concept,
the scholé is here politically active. This implies that one part of the population, for
whom the scholé normally presented the value of disjunction from the mechanism
of the politics, acts in the life of the city. In order to understand which division I
am referring to, I underline that the last platonic city implies the differentiation
*
I would like to thank my friends Caroline Shisko and Robert Seybold for their indispensable help improving the
English of this paper.
1 
See the recent contribution of Anastasiadis (2004), particularly pp. 59-64.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 223


Giovanni Panno

between real inhabitants and citizens2. This last group is subsequently divided into
four groups or wealth classes3. What does however let the Laws stand out against
the background of the other historical references is that the scholé is a condition
for the good of the entire sphere of the city. On the other hand, this idea does not
support the hypothetical division between a group of wise men and the undistin-
guished many, who neither practice philosophy nor have scholé. In fact, all of the
citizens of Magnesia are expected to have leisure, even if a different corpus of wise
men – the nocturnal council, or college de veille4 – stays in a position that is admin-
istratively difficult to define.
The equality of the city has to be viewed from the division into the ones who
have the right to participate in the magistracy and to vote and the ones who simply
inhabit the colony as metics and slaves. The latter are structurally excluded from the
true political life of the polis, although they have to exercise a part of that ascholia
necessary to provide the scholé of the real citizens5. Nevertheless, when the Athe-
nian Stranger – protagonist of the dialogue – speaks about the „sÒthj of the city,
he does not comprehend the biggest sphere of the inhabitants, but only the small
sphere of Magnesia’s population.
In order to check the plausibility, both philosophical and political, of the con-
cept of scholé, it is necessary to understand which particular declination of equality
is thought to be operating under the division into four classes6.
A significant passage of the Laws7 makes it clear that between the two equali-
ties, the arithmetic, more democratic – in the sense of ancient Greece – and the
geometric, based on the principle of natural differences, the Legislator has to com-
promise. What is necessary to accomplish, through a proper measure, is that the
equality respects natural diversity, because «equal rewards become unequal (t¦
‡sa ¥nisa) if they were distributed to men who are unequal (to‹j ¢n…soij)».
Even if the geometrical equality is the most difficult to recognize („de‹n), it is the
truest (¢lhqest£thn) and the best one (¢r…sthn)8.

2 
Pol…thj is distinct from metics, slaves and servants, see Leg. 743 c7, 846 d 5, 613 e 5.
3 
Leg. 920 a-c. For citizens as gewmÒroj (landholders) see 919 d 4, as ™picor…oj (inhabitants) see 846 d 2. See
Schöpsdau (2003), p. 332-333.
4 
This is not the appropriate context to discuss the value of the choice of Brisson (2000) p. 162 for veille, éveil et vigi-
lance, that I like to remember here as an elegant and good solution, independent of the arguments that Brisson uses to
support his position.
5 
Through this division of work, the slaves and metics were an important part in the hypothetical economy of the life
en logo of the citizens.
6 
«[…] It follows that for many reasons, and for the sake of equality of opportunities in the city, there must be unequal
property-classes […] Quarrels will be avoided because honors and offices will be distributed as equally as possible on the
basis of proportional inequality (æj „sa…tata tù ¢n…sJ summštrJ)». 744 b 3 – All the translations I propose here
are based on the work of Pangle (1980) with few corrections also with the help of Saunders’ translation (1970).
7 
Leg. 757 b-e.
8 
Leg. 757 b 8. I use here the known definition of these types of equality that may refer not simply to the classification
of Archytas (DK 47 B2) for the three kinds of musical proportion, but probably to the Pythagorean sources. Precious
are the pages of M. I. Santa Cruz, On the Platonic Conception of Equality, in M. Migliori, Linda M. Napolitano

224 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ritual without the time of exception

The discontent of the many (tîn pollîn)9 also forces the Legislator to use
the arithmetical equality, and it is his task to choose the right measure (mštrwn)
in order to have the correct mixture of quality and quantity10. What seems very
important to me, in this context, is not merely the mechanism of tuning the natu-
ral differences through the law, but that this movement should correspond to the
one of the plexus scholé/ascholia. Where the latter refers to an action of the law upon
the life of the citizens, the former deals with a characterization of the action of the
citizens. Also, the ones who belong to the two inferior wealth classes have as noble
scholé as the members of the upper wealth classes. Although the Athenian Stranger
seems to prefer the principle of aristocratic participation, really the goal of his choice
is neither an arithmetical nor a geometrical equality, but the virtue of the polis. In
order to achieve this virtue, the ones who have to handle and produce are the resi-
dent metics and their slaves (again, not the slaves of the citizens)11. Since everything
that concerns earning money is seen as a limitation of freedom, or better, as a dis-
persion of energies to be concentrated on the achievement of virtue, the questions
are the following: what does it mean to be a citizen? Which are their activities12? In
order to answer these questions, one must understand whether there is a real dialec-
tic between scholé and ascholia. Therefore, I propose a commentary of the following
long, but necessary quotation from the Laws:

I at least affirm that the causes are the non regimes which I’ve often men-
tioned in the earlier arguments – democracy and oligarchy and tyranny.
None of these is a regime, but all would most correctly be termed “factions”
(stasiwte‹ai). For none of them (oÙdem…a) constitutes a voluntary
(˜kÒntwn) rule over voluntary (˜koàsa) subjects, but instead a voluntary
rule (˜koàsa) always with some violence (b…v), over involuntary subjects
(¢kÒntwn). Since he is afraid the one ruling will never voluntary allow
the one ruled to become noble, or wealthy, or strong, or courageous, or in
any way warlike. These, then, are the two principal causes of nearly every-
thing, and certainly of the things just mentioned. Now the present regime,
which we are legislating, has escaped both of the causes we’ve described. For
it presumably dwells in the greatest leisure (scol»n), and they are free as
regards one another (™leÚqero… te ¢p’¢ll»lwn), and because of these

Valditara, D. Del Forno (ed.), (2004), pp. 272 – 288, here p. 275 note 3.
9 
Leg. 747 e 4.
S. Leg. 691 c – e, where it is simple to recognize that the prominence of the category of meixis is constitutive for the
10 

measure (tÕ mštrion) of the choice of the Lawgiver.


For the concept of banaus…a s. Leg. 952-3, 741 b-e, 742 a and Resp. 495 d- e; correlated to the artistic activity s.
11 

590 c. For this problem s. Weiler (2000), p. 46.


12 
Morrow, in the almost decisive work on the Laws, defines perfectly the life of the citizens by saying that «the citizen’s
craft (tšcnh) is one that demands long practice, much study, and continuous attention; it cannot be made secondary
to other interests». S. Morrow (1960) p. 143.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 225


Giovanni Panno

laws they would be the least likely, I think, to become lovers of money. So
it’s likely and reasonable that the establishing of such a regime would, alone
of all existing regimes, allow for the warrior education and play (paide…an)
that has been elaborated, once the elaboration has been correctly completed
(¢potelesqe‹san) in speech (tù lÒgJ)13.

If the last verb (¢potelšw) says how important the content of this passage
is14, the central items of education and freedom are played towards the background
of the problem of time. Under the two listed causes, false constitutions and love
for richness15, I am interested here in the latter, because it is directly related to the
choice between scholé and ascholia. The lowest point of scholé, as that is most distant
from the true realisation of virtue, both for the single citizen and for the polis, is
the life of the trader, who searches only to accomplish an impossible point of rich-
ness towards the necessities. The lover of richness spends his time at a low level of
quality, then his time is a p£nta crÒnon ¥scolon16. That is said to be the exact
contrary of the scholé, which means freedom for the city and the citizens. The trad-
er’s ascholia is a time empty of being virtuous, a time totally deprived of real time,
because he takes care (™pimšleia) only of private things (tîn „d…wn)17. If the
ascholia tends to the horizon of the private and scholé is identified with the freedom
of the whole state and of the citizens’ regards for one another, the latter is not only a
contemplative activity, but an activity that takes care of the whole. As a profession,
the citizenship in the Laws may resemble the philosophy in the Phaedon18, where
taking care of richness and the body prevents the practice of philosophy.
The banishment of trade from the necessities of life and the strong control upon
property, in addition to the use of an internal value and membership of determi-
nate wealth classes19, are all measures thought to free the citizen from the weight
of material necessities. These solutions also preserve the citizens from the risk of
not recognizing the right hierarchy of goods, and thus not being integrated into
13 
Leg. 832 b 10 to 832 d 7.
Leg. 767 a-b about the judges and most of all 718 b-c, for the effect of the laws to make the city makar…a kaˆ
14 

eÙda…mona, happy and blessed. For the translation is important to notice that ‘subject’ is not in the Greek text.
15 
As Muller correctly notes, in, the passages on war and on wealth belong to a non liberal registry, closely related to
the Spartan one, but then we are told that the good constitution is based on scholé (loisir) and freedom. It is a pity that
the author does not see that this mixed character is just a further explanation of the measure in the laws of Magnesia.
S. muller (1997), p. 215.
16 
Leg. 831 c 4. As Anastasiadis notes this of chrónon áscholon is a hapax for Plato, although the number of recurrences
of the family of the word ascholia is extremely modest. Except Leg. 807 c-d and these already quoted passages 832 c-d,
there are about a dozen cases in Plato’s whole work.
17 
Leg. 831 c 5.
Phaed. 66 d. Because of the slavery of body «we are hindered to practice philosophy (kaˆ ™k toÚto ¢scol…an
18 

¥gomen filosof…a)». The breaks from this slavery are defined as scol¾. S. Sassi (1986), p. 125 and the problem
of Crit. 110 a. The study of ancient myths begins when man has reached a comfortable position (scholé) in respect to
the necessities of life.
19 
Everyone was assigned to these classes as he hypothetically came to the colony.

226 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ritual without the time of exception

the structure of the city. Belonging to this sphere frees the citizens through the
one permitted form of slavery – that to the laws20. I am going to clarify this point,
implicating the concept of voluntary acceptance of the laws, in order to understand
which type of scholé Magnesia has to offer.

2. Participation in the ritual of the city.


Eleutheria is here close to scholé and we know that most of the time in the city is
spent praying and participating in feasts, gymnastic exercises and musical perform-
ances. A necessary character of the nomos of Magnesia is a citizen’s freedom, which
is understood as the absence of

menial service (diakon…an) whatsoever to private persons who are not of


the same condition (m¾ ™x ‡sou ˜autù) – except for his father and mother,
and family members of a still earlier generation, and all those who are elder
than he, who are free and whom he serves in a liberal way21.

If commerce is prohibited because it refers to the type of service that involves a


low grade of self achievement, the only diakon…a is a service to the horizon of the
entire city, the true intermediary between the citizens. But which could be the right
time to exercise scholé and which to exercise ascholia? It is difficult to understand
if the time to pray and to be educated to become a true citizen is to ascribe to the
former or to the latter. That is because the military service and the administration
of politics, involving a large number of citizens, are difficult to distinguish from the
education and preparation for these activities. Being educated to exercise the pro-
fession of citizenship is already considered an activity of citizenship, and thus the
educational system of Magnesia begins with the movement in the womb and ends
with the membership in Dionysus’ Choir. The Magnesian people are supposed to
sustain the education from their city throughout their whole lives22.
The main character of this paideia is the mimesis of models of good behaviour,
taking place principally in the horizon of the feast, but also in every moment of
their lives. The whole constitution traced in the Laws has to be the most beautiful
tragedy, as it is the imitation of the best and most beautiful life23.
The symposia, typical of a time free from serious engagement, are treated as a
form of communication, where everything assumes becomes available to public

S. Leg. 715 d: «I [the Athenian Stranger] have now applied the term “servants of the laws” to the men usually said to be
20 

rulers […] because I hold that it is this above all that determines whether the city survives or undergoes the opposite».
21 
Leg. 919 d 6.
22 
See for example 790 c for the first education of the babies, 664 c-d, for the ones, who are no longer able to sing,
because they are too old, and instead they tell the myths of the city. For the feast in the context of leisure s. Demont
(1996) p. 23. For the citizenship as a time-consuming profession s. Meyer (2003), p. 213.
23 
Leg. 817 b.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 227


Giovanni Panno

view24, because the citizens are at the same time the spectators and the actors of
this tragedy. The use of wine is integrated in this educational system in order to
practice self-control25 and self understanding. This dialectic between self and com-
munity is typical of the scholé of Magnesia, although it is difficult to comprehend
this almost complete organisation of a domain, which, from a modern perspective,
is recognized as a private one. The consumption of wine defined as a diatribÁj26,
a pastime, is a good example of what, in the common opinion (dÒxa) of ‘modern
people’ and of Plato’s contemporaries, belongs to the space of scholé, namely to what
is not regulated by rules. Nevertheless, it is indispensable to the whole educational
apparatus of the Law. Wine loses its disorganized character as a means of exiting
from the sphere of the self: in Magnesia it frees the old members from their fears
and permits them to sing the song of the Laws to the young. The spaces of game
and play know a similar treatment, since they seem to lose their ritual character of
unboundedness, therefore becoming the mimesis that prepares the citizens for real
life, as for example the imitation in war dances or choir songs27.
In spite of the weight the playing holds in the Laws, the citizen of Magnesia
could not be described as the homo ludens of Huizinga: the structure of the polis
seems to fill in every aspect of life, so that there remains no time of exception (Au-
snahmezustand), no time for a differentiation of time. From the perspective of the
paideia, the whole day has to be occupied by paidia. The overlapping of play and
education leaves few possibilities to escape from the ordinary life, the gewöhnliches
Leben of the homo ludens28. The plays and games of the Laws are bounded by the
guidance of the law and its mediation, and their institutionalisation is related to the
health of the constitution itself:

I assert that in all the cities, everyone is unaware that the character of the
games played is decisive for the establishment of the laws (perˆ qšsewj
nÒmwn), since it determines whether or not the established laws will persist
(mon…mouj). Where this is arranged, and provides that the same persons
always play (toÝj aÙtoÝj pa…zein) at the same things, with the same
things, and in the same way, and they have their spirit gladdened by the same
toys, there the serious customs (t¦ spoudÍ ke…mena nÒmima) are also

24
  Pangle (1980) describes the entire Laws as a banquet (p. 203-4), because «a more important intoxicant is philosophy
or its mythic imitation», what resembles Symposion and the bacchic delirium of the philosopher (218 b 1-2).
Leg. 647 e. Wine as f£rmakon (drogue) puts one before oneself, when allows one to express and permits one to have
25 

control over shame and fear.


26 
646 d 5. On the contrary the use of wine is banished as pure paidia (673 e).
27 
Pa…gnia are in the Laws the comedy (817 e 10), the play of Dionysus (844 d 6), the symposia themselves are de-
scribed as a paid…a (672 e 6), which stays between playing and being educated.
28 
The play is in the definition of Huizinga an act of «voluntary activity ( freiwillige Handlung) or occupation in deter-
mined coordinates of time and space, according to rules freely accepted but unconditionally binding, having its aim in
itself and accompanied by a feeling of tension, joy and the consciousness of a different being (Bewußtsein des ‘Anders-
seins’) from ordinary life». Huizinga (1938), p. 34.

228 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ritual without the time of exception

allowed to remain undisturbed (mšnein ¹sucÍ)29.

A particular paidia is the choral performance, that imitates different behaviours,


but all in congruency with the city30. The music is an integrant part of the paideia,
and it is always open to convert its specialized character – as we are often unfortu-
nately used to understanding music – into the wide range of its educative applica-
tions near to the play and game, including the value of the nomoi as songs and the
character of initiation of the Dionysus’ Choir31. Affirming that «one should live
out one’s days playing at determinate games – sacrificing, singing and dancing»32
may complete the idea of the human foundation of the colony. What seems dif-
ficult to accept is the resolute exclusion of a state of exception, an Ausnahmezustand
in which the play as a free action must take place. The voluntary repetition of the
word same (aÙt¦, æsaÚtwj, aÙtoÝj, aÙto‹j) in the previous quotation refers
to the identity of the citizens and the laws. That the same without the other does
not necessarily mean identity seems to be superfluous to notice here. The writer of
the Laws has not forgotten the lesson he gave in the Sophist. The translation of the
theoretical categories in the political field is not simple at all, but neither the state
nor the citizens are expected to survive without dialectical contact with diversity. In
spite of these structural needs, it is difficult to deny the absence of a true distinction
between scholé/ascholia, which could have signified the opening of a ritual time.
Religion and the initiation of the citizen is continuous in such a way that the city
seems to live in the dimension of one permanent ritual – which can also signify no
ritual at all. It is not worth mentioning, for this purpose, the fact that population
and inhabitants are to be distinguished, in order to eventually demonstrate that the
ritual takes place considering the whole of citizens and non-citizens, who practice
ascholia. The whole, on which the Athenian Stranger tries to bestow stability, is
certainly the whole of the city, but he is principally interested in the virtue of the
population. If a ritual has to initiate the participants, it would not be correct to
think that a part – the non-citizens – remains perpetually excluded.
Since the time of passage between scholé and ascholia for the same social group
is not at all starkly marked and not decisive to provoke a new life’s dimension, it
seems that the ritual clashes with the initiation. The time of the life in Magnesia is
then perpetually a sacred one (or perpetually a secular one!). It may be a fruit of the
modern perspective to look for the difference between a sacral and a secular time,
especially when the legislation structure seems to be founded on a type of political
29 
Leg. 797 a 7 – b 3. 794 a. Even the plays of children between 3 and 6 years are controlled. S. 643 e.
30 
Leg.796 b.
Leg. 666 b: «As a man approaches forty he is to share in the enjoyment of the common meals (sussit…oij), invoking
31 

the presence of the other gods, and especially Dionysus, at this mystery-rite (telet¾n) and play (paid…an) of older
men, which he has bestowed on human beings as a drug (f£rmakon) that heals the austerity of old age».
32 
Leg. 803 e. Compare 659 e as well, for the intertwined character of play, music and education: «But since the souls of
the young cannot sustain seriousness, these incantations are called “games” and “songs”, and are threaded as such. It’s
just like when people are sick and their bodies are weak»

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 229


Giovanni Panno

theology as the Laws show. Originally I tried to think of the passage from scholé
to ascholia as the moment of periagwg¾ in the cave’s myth of the Republic33, as
a sort of ritual conversion from the darkness of the unknowing to the light of the
idea. In the Laws, there is no specific point in time where this passage could take
place, for the periagwg¾ is certainly described as a psychical movement, but also
as a universal and progressive one34. It could be applied to the social order, since the
elements of Plato’s philosophy communicate with one another. It seems however
difficult to fit in a possible schema, that is not necessary a platonic one, in which
the ascholia corresponds to the bad movement of the universal soul, and the scholé
to the good one. The justification raises its difficulty if I consider that the ascholia of
the citizens is in any case a state of virtue suited to the virtue of the whole35.

3. An ™xa…fnhj in the Laws? The dialogue as scol».


The plexus scholé/ascholia offers the image of a qualitative full time. What hap-
pens in this time always determines the history of the polis as a history of virtue. In
this, the scholé is not a pause: it does not stop the running toward the acquiring of
virtue. In this sense, the time of Magnesia is an eternal self identical nàn, between
the being in the Parmenides and the moving image of eternity in the Timaeus36.
This now is not the Jetztzeit of a punctual event, notwithstanding the recurrences of
™xa…fnhj of the Laws. This word is normally used by Plato to mark the condition
of immediacy and passage from one condition to another, often to a better one, or
in any case the quality of strangeness of the temporal and human states. Magnesia
does not know any ™xa…fnhj as a change of an ontological state, a metab£llein
in the sense of Parmenides. «La soudaineté ne caractérise alors que des actes ou des
événements, non des changements», as the not premeditated murders of the penal
law37. Nevertheless there is an ¢top…a, that usually accompanies the moment of
™xa…fnhj, just close to the exposition of the Dionysus’ Choir38. It also seems to be
a too uncertain trace to be followed, in order to draw a nearer specification of the
33 
Resp. 521 c.
Leg. 898 c. «Since the soul is what drives everything around for us, it ought to be affirmed that the revolution of
34 

heaven is necessarily driven around under the supervision and ordering of either the best soul or the opposite». S. also
Leg. 893 c – d, Tim. 34 c and Phil. 19 a-b.
35 
«More particularly, the sphere of scol» is directed towards the virtues and the supreme purpose», as Anastasiadis
(2004), p. 72 states.
36 
For the problem in the Parm. 156 c-e see Sasso (1998), p. 46, and Giannantoni (1995) p. 18, who sees a variation
between a punctual and a timeless quality of the ideas. For Tim, 37 d see Brague (1982), p. 39-45. To compare the
e„kë de kinhtÒn tina a„înoj of Tim. 37 d with the time of the Laws, is necessary to think of the movement
in the city of Magnesia, especially the movement of the soul in the tenth book, but that would take the argumentation
too far from the strict problem of scholé.
37 
Leg. 666 d, 667 a. S. Dixsaut (2003), p. 261.
38 
Leg. 665 b. In 678 a, on the contrary, exaiphnes is used just in temporal meaning, without ontological or political
implication, as in 944 b and in 866 d. Finally, 712 e is not related to time, but to the condition of the Stranger, to whom
Klenias poses an unexpected question. In this sense it could have something to do with the state of the advancement of
the dialogue, or with the difference between the historical constitutions and the one en logo, but it could also be just a
part of the choreography of the dialogue.

230 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ritual without the time of exception

quality of scholé as passage.


If there is one atopos so evident in the city of Magnesia, that is expected to refer
to a type of scholé, it is the project of the city itself and the dialogue that is building
the city en logo. The tissue of the history of Magnesia is woven with its telling, with
the logos that draws the movement of its citizens.

So let’s assume that we are now housebuilders (o„kodomoàntaj) who


aren’t working under constraint (m¾ toÝj ™x ¢n£gkh), but are in a lei-
surely way (™pˆ scolÁj) still accumulating some things and incorporating
others. Thus it is correct to speak of some things pertaining to the laws (t¦
tîn nÒmwn lšgein) as being established (æj tiqšmena), and others as
being accumulated39.

The work of the Athenian Stranger and his old fellows as legislators of Magnesia
is not subjected to the necessity. The character of the game of a time entirely dedi-
cated to something without the need to do it, seems to offer a different perspective
on the value the scholé of the Laws. If the object of Plato’s last dialogue is an inquiry
that takes the form of a moderate game concerning laws and played by old men40, it
lays bare a character of leisure that was not found in the artificial life of the citizens.
This leisure presents the state of a time external to the time in which the life is pro-
jected. The dialogue as a tragedy presents two different perspectives to consider the
time. These are both fictional, but in the imagination of the dialogue, the scholé be-
comes something other than the time the citizens spent, and yet it does not lose its
political character. ScolÁj ¢polaÚomen informs the Athenian Stranger, «we’re
enjoying leisure/free time», as a necessary condition of the proof and choice of the
laws41. But what does this complete inquiry into «every aspect of the laws» mean? Is
it a state possible only in an external position in respect to the projected life of the
city, or can it be practised also by the citizens?
The three old men walk in the direction of the cave of Zeus and speak about
the laws they can recollect for a new Cretan colony. Klenias is in charge of choosing
the constitution and the law for the colony of his fatherland, Megillus contributes
to the discussion, bringing the tradition of Sparta, and the Athenian Stranger leads
the dialogue, changing often into monologue. There is a time of the exposition of
the Laws, of their discussion, and this corresponds to the time of the game and
scholé of the three old men. In the polis they draw, there is a place not directly for
the activity of the law giver, but for that of the law keeper: the nocturnal council.
Through the scholé the dimension of the writing of the Laws communicates with
the dimension of the life projected for the colony. At the same time the discussion
39 
Leg. 858 b-c.
40 
Leg. 685 a 7 and Leg. 769 a. Then our prudent game of the elderly would have been played in a noble fashion thus
far.
41 
Leg. 781 e.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 231


Giovanni Panno

out of the frame of the constitution refers in a mirrors’ play to the possible discus-
sion about the nomoi in the nukterinÒj sullogÒj.
The question is now if this particular use of scholé also means a caesura between
the one and the many in the city. If there seemed not to be a variation in the quality
of time between the different classes, how is the order of the city in the domain of
the different levels of wisdom?

4. Exclusion of a hierarchy of knowledge?


According to the statements of the first part of this paper, the citizens were ap-
parently for the sake of scholé all at the same level. Scol£zw as possession of time42
has nothing to do with a private use of the time, because even if scholé can describe
the outgoing of the personal quality out of the horizon of the self, it always happens
in the sphere of the polis.
Nowhere is the reader told that the ones who represent the head of the city,
namely the members of the nocturnal council, dispose of their time in a different
way than the other citizens because of their wisdom43. Through the scholé not only
the different levels of the polis seem to communicate, but also the space between
the external frame of the dialogue and the effective constitution. The situation
is complicated, since the citizens who are said to have the capacity and the lei-
sure (scol£zontaj) to look after (™pimele‹sqai) the common things (tîn
koinîn) are principally the agoranomi44, a certain category of the upper classes.
Then are the members of the nocturnal council and the agoranomi the ones who
take care of the state? The position of the nocturnal council presents, in this case,
other difficulties:

And the meeting (sÚllogon) should be at dawn (Ôrqrion), when eve-


ryone would have the most leisure (Ï tij scol¾ pant…) from the rest of
their private and common activities (tîn ¥llwn pr£xewn „d…wn kaˆ
koinîn)45.

It is unusual that the scholé belongs here neither to the domain of private nor to
that of public. The dialectical thought that takes care of the structure of the polis, as
do the members of the nocturnal council, is recognized to have an oblique position:
at the same time a temporal one, at the gate of the day and night, and a qualita-
42 
Eur., Suppl. V. 209 and 883.
43 
S. Leg. 964 d.
44 
Leg. 763 b S. Lefka (2003), 158.
45 
S. Leg. 961 b 7. Compare Resp. 374 e for the scholé of the Guardians. Here I would see one of the character that let
Plato’s political thought differ from the one of Aristoteles. The political and polemical praxeis (actions) in the Ni-
comachean Ethics are described as ascholoi, because they are not chosen for their own tšloj (goal), in contrast to the
intellectual actions (1177 b 4). In the case of the Laws, when we consider the nocturnal council and the legislator as
philosophers, it is difficult to set as true that the «prerogatives ascribed to the philosopher is the complete availability of
one’s own time (scholé) and freedom» as Gastaldi (2003), p. 143.

232 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ritual without the time of exception

tive one. This expropriation of both private and public character of the action of
the nocturnal council is intertwined with the character of pr£xewn, the actions
themselves. The work of the nocturnal council deals not only with the exercise of
a political activity as can be the one of the magistrates or of virtuous citizens, but
also with the production of the politics in the Laws. In this sense, the scholé of the
nocturnal council cannot find a predetermined placement in the system of Mag-
nesia, because it contributes to the conservation of the system itself, as a point that
is at the same time inside and outside the polis. This condition at the metaphorical
border of the politics of the Laws also determines the absence of true political power
in the sense of the relation between order and obedience. Although this sullÒgoj
is said to be the head of the city, the way in which it operates is through controlling
the harmony of the singular nomoi and their connection to the universal reason, the
nous. In this sense, the nocturnal council is the place in which the possible differ-
ence in respect of the polis is controlled and elaborated. Where does the possibility
of the difference in the city come from?
It deals with the role of the observer (theoros), who travels in other lands and
brings back the different customs and behaviours, with the goal to check if they
are good enough and useful for Magnesia. The theoros is physically external to the
Cretan colony, but what he brings to the constitution of Magnesia is central to
the conservation of the laws. The identity of the city finds its foundation on the
exchange with the difference.
Even if the activity of the theoros happens beyond the borders of the city, it
keeps an important characteristic for the theme of the time in the Laws: his activity
is in fact a particular scholé, namely a time completely full (ple…w) of scholé.

If certain citizens desire to observe (qewrÁsai) the affairs of the other hu-
man beings (t¦ tîn ¥llwn ¢nqrèpwn pr£gmata) at greater leisure
(kat£ tina ple…w scol»n), no law is to prevent them46.

By tracing different grades of scholé, at the extremes of this hypothetical gradu-


ated line, we can find the theoros with a full scholé and the rich man with an empty
one. Between these two poles are the citizens. The nocturnal council has a too dif-
ficult position to be collocated in this hypothetical scale, it would be in any case
difficult to assimilate to the characteristic of the philosophers in the Republic. This
is because it is properly due to his collegiality, that Plato tried to harmonize its dif-
ference of knowledge and wisdom in the city.
Normal citizens have to use the night – as the members of the nocturnal coun-
cil – in order to perform a «good part of the business of politics as well as of the
households»47. For this argument, that which concerns the procedures of the tribu-

46 
Leg. 951 a 5-7.
47 
Leg. 808 b. For the historical characterization of the importance of sleeping s. Schöpsdau (2003) p. 564.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 233


Giovanni Panno

nal is much clearer: in the moment of the trial, the citizens are expected to use their
scholé to be present,

let the vote be taken openly (faner¦), but before this let our judges sit
down in a row right next to one another, in order of age, directly facing the
accuser and the defendant, and let all the citizens (p£ntej), as many as are
at leisure (Ósoiper ¥gwsi scol»n), stand as serious listeners to such
trials48.

Therefore it is not only a prerogative of the lawgivers and the member of the
nocturnal council to act with scholé. In any case, the freedom of the citizens is not
revoked since their scholé is not really the same as that of the nocturnal council or
of the theoros. The problem is to comprehend the nature of this freedom, since it
doesn’t seem to be a choice, although the passage in 832 b 10 to 832 d 7 quoted
above tells about willingness to spend the time that is supposed to be free from the
necessities of life. «There should be a schedule regulating how all the free men spend
all their time, beginning almost at dawn and extending to the next dawn and rising
of the sun»49.
The strict order of time seems to present a contradiction to the statement that
the constitution of Magnesia offers a maximum of freedom50 and scholé. It would
be a conceptual and historic mistake to consider the freedom of the Laws as the
possibility to act beyond the physical and systemic borders of the polis: individual
freedom is never considered; here it is considered only according to the t£xij of
the city. Scholé and free time are correlated with the freedom in and of the polis, not
with the freedom of the individuals. The scholé is then a qualitative state of acting
in the time ordered by the polis.

5. Freedom as regards one another


It would be too courageous and perhaps false from the perspective of a concep-
tual history to speak here about individualism, or to think that the word singularity
it is not an anachronism51. However, it is possible to say that the citizens, exactly in
their being intertwined with the city, acquire a single profile, and this is the reason
why their freedom is not simply their collective freedom, but they are ™leÚqero…

48 
Leg. 855 d 4 – 7.
49 
Leg. 807 d 6.
50 
S. the first quotation of the paper, in particular 832 d.
51 
S. Muller (1997) p. 70 note 5. S. also the critic of Popper, (1973, it. 2002, p. 130), who mixes the argumentations
of Republic and of the Laws, two works that have to be read together, but that also present some important contextual
differences. It is difficult, for example, to follow Piper (1948). Interesting, however, is his use of the word Entproletar-
isierung, although it is not justified in a totally different conceptual field. «Ausweitung des Daseins über den Bezirk
der bloß nutzenden, «knechtlichen» Arbeit hinaus, Eindämmung des Bereichs der artes serviles zugunsten der artes
liberales». S. Piper, p. 71, and Welskopf (1962).

234 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ritual without the time of exception

¢p’¢ll»lwn, free in regards to one another52. In this dialogue scholé does not
mean inactivity and self alienation from the world. The history of thought will
follow this conceptual drift through the Roman thinker until the Renaissance53.
This kind of characterization of scholé, which could apparently be attributed to the
nocturnal council or to the theoros, is absent from the Laws. The scholé is a dimen-
sion of the ta heautou prattein (to play one’s own role) in the Laws54, where I find
the definition of voluntary closely related to the definition of freedom, as it was
quoted in the first passage. Is this the freedom of the city, however, to belong to a
pre-ordered system of education that determines how the time will be spent? If one
of the mistakes of the other constitutions compared to the Laws is the lack of will-
ing acceptance of the nomoi, it may appear paradoxical, but the time free from the
needs of the city corresponds to the time that can be joined for the Good of the city
self. What changes in the perspective of the Laws? The willingness of the citizens
seems to be the new decisive factor. In the Laws, the citizens are expected to obey
the different nomoi, because they are convinced of their goodness, not because they
are obliged to follow their prescriptions. This also justifies the figure of the theoros,
to apprehend the different laws of the city, because Magnesia does not have to live
only in the habit of their laws, but with an understanding of them55, which can be
reached through the comparison with the laws of other cities. Regarding the per-
suasive aim of the nomoi and of the preludes in Magnesia, I would like to add no
more than what can be found in almost all the commentaries on the Laws. I think
that the most persuasive argument for the reader of the Laws is the new relation
between law and nature in the tenth book, which can also explain the reason for
the voluntary acceptance of the laws.
They are indeed a product of a techne, but the first producer of techne is the
soul, whereas the laws themselves are close to human nature. To respect the nomoi
means to respect the order of the soul – and of the soul of the universe. The problem
of freedom in regards to one another can only be explained through subjection to
the law: all the citizens are slaves of the law, and then all are free in respect to the
nous.
If everyone has to serve the polis, in spite of the existence of a hierarchy of
knowledge, there is political equality before the law. And exactly the factor that
seemed to represent a risk to freedom appears to be the one that makes it possible,
since the homogeneity of the time and the repetition of the same role signifies
52 
S. Muller (1997) p. 215, note 2 «Cette liberté des hommes les uns par rapport aux autres est tout le contraire de la
fusion communautaire, caractéristique de certains formes de vie collective pré-étatique ou des phénomènes de foule».
53 
I am not going to describe the history of the concept, but the impression that I get from ancient and Latin fonts is
that the idea of the exclusion from the active society was always present. It only ran parallel to the other philosophical
or more political variations on the theme.
54 
That each one plays his own role, belongs to the Republic as to the Laws, as a figure of the political transposition of
the dialectic between one and many, that is elaborated inside the assembly of the nocturnal council and that serves as a
moving basis for the Laws themselves. S. Leg. 965 b-c.
55 
S. Leg. 951 b 3.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 235


Giovanni Panno

placement in an order. The voluntary acceptance of this order corresponds to the


identification in this placement. The achievement of the single citizen is then the
acceptance of an order that will allow him to reach a virtuous state56 or to retain
this state. If we read it with a presupposition of the modern concept of freedom, it
will appear neither as a utopian, nor as an ancient point of view, only as a constric-
tive one. But I would like to underline a realistic feature hidden in this statement:
the one who is not going to «share in the city» estranges himself, makes himself
¢llÒtrion, different, someone else57. The Laws as a project expect the citizens
not to assume the mask of the Fremd, of the xšnoj, but to take part in the tragic
representation as the best mimesis.
If the scholé is an activity of the in-dividuum in the direction of the sphere of
the whole, it does not mean that this activity has no mirror in his life. In this rela-
tion Plato tries to reach the unity of the citizen, who has the task to be Ÿn, to be
oneself, and to escape the ¢llÒtrioj ›xij. In the moment in which they apply
their character to their time being virtuous, the citizens respect their own roles,
and they let only light emerge between them. In the Laws there is no periagog»
(conversion) able to transform, as in the Republic, the temporal-qualitative state of
the shadows in the cave into the light of ideas. But also without the ™xa…fnhj of
the cave’s myths, there can be a light between the citizens of Magnesia, as they al-
low themselves to be persuaded by and of the order of the city. The scholé is a part of
this timeless ritual of a political construction, that like every play and every game
presents some rules, of which the most important in the Laws is to respect the own
role, being Ÿn prÕj Ÿn, one before the other as himself58,

¡ploàj d kaˆ ¢lhq¾j, simple and true.

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56 

156).
57 
Leg. 774 a. I would like to report here the different translations of this passage. Eyth: «wenn aber jemand nicht
gutwillig gehorcht, sondern sich im Staate wie einen Fremdling und Sonderling anstellt». Schöpsdau: «wenn aber je-
mand nicht freiwillig gehorcht, sondern sich absondert und sich von jeder Gemeinschaft im Staat fernhält». Saunders:
«If anyone disobeys (except involuntarily) and unsociably keeps himself to himself». Zadro: «Se però un cittadino non
accetta questi principi volontariamente e come un straniero vuol vivere nello stato…». Pangle: «If, despite this, some-
one voluntarily disobeys, estranging himself and not sharing in the city…».
And without masks? I am aware of the implications of this passage in 738 e with the problem of mimesis and theatre,
58 

but they were not the goal of this paper.

236 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


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Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 239


Thesis and A ntithesis in the A ncient Greek
and Roman Theatre:
the Example of Euripides’ Hippolytus and Seneca’s Phaedra

Ioanna Papadopoulou
U. Peloponeso
iopa@otenet.gr

Introduction
This paper explores the thesis and the antithesis in the ancient Greek and Ro-
man Theatre and is divided in two parts: the first chapter deals with the function of
the oppositions in the Hippolytus of Euripides; in the second part we briefly discuss
how Seneca’s conception of the same mythological background, in his Phaedra,
creates an antithesis to the Euripidean play.

I. The motif of thesis and antithesis in Euripides’ Hippolytus


It is well known that, according to Aristotle’s testimony in Ars Poetica (1460b
35), Sophocles thought that Euripides tends to represent humans as they are in
real life. But regarding Hippolytus, we could add that Euripides, in this particular
play, not only presents humans as they are, but also illustrates the heroes opposi-
tions towards their environment and their gods in a much more intense way - in
comparison to his other tragedies. In Hippolytus, during the unfolding of the plot,
the initial positions lead to the creation of oppositions and then the establishment
of new positions produces again new oppositions.
This leitmotif, which could be characterised as a continuous formation of the-
sis and antithesis, a constant description of a situation and at the same time of its
removal, sets the ‘boundaries’ of the play schematics. In the form of a ring-compo-
sition, the presence of Artemis, Hippolytus’ patron, in the Exodus, who foretells
her revenge on Aphrodite by killing one beloved of hers (vv. 1420-3), creates an
antithetical answer to the Prologue of Aphrodite, who hates Hippolytus and has
decided to destroy him (v. 21 ff.). Furthermore, this ‘prorhesis’ of Artemis transfers
the opposition of the two goddesses perpetually, in times and places beyond the
drama, as it foreshadows the continuation of their antithesis and juxtaposition.1
We should add that apart from some examples of main positions and opposi-
tions, on which we will focus, this motif of constant thesis and antithesis in the play
is clear even in the frame of one single verse. For instance, when it comes to Phaedra,
Aphrodite foretells (v. 47): ‘she is of good reputation, but she will die’; the contrast
of this passage to the non-antithetic and theological correct statement of Artemis

1 
See J. Blomqvist, ‘Human and Divine Action in Euripides’ Hippolytus’, Hermes 110 (1982) 339-414, esp. 406 ff.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 241


Ioanna Papadopoulou

(vv. 1339-41) is revealing of the interplay of position-opposition in Hippolytus: ‘The


gods are not happy when pious people die, they only destroy the malicious, immod-
est humans (along with their children and their homes)’. Other examples are the
definitions scattered throughout the play that convey an antithesis in the form of
two opposite terms; love, eros has a double-antithetical nature (vv. 347-8):
Phaedra: What is this that humans call love?
Nurse: My child, it is the most sweet thing and at the same time the most pain-
ful.
Friendship (filia) is also of a double-contrary form, according to Theseus (v. 925
ff.): ‘...who is a true friend and who is not a friend’ (cf. also vv. 928-931 regarding
the ‘two different way of speaking’ that are needed in order to detect the truth from
the lies). According to Phaedra, there are also two types of aidôs-shame (vv. 385-6;
cf. Hom. Il. 24. 44-5), which also combines hêdone and otium (vv. 381-5): ‘there are
two, the one is not bad, the other is a burden (a source of grief) for the houses’.2
In order to understand the function of the leitmotif of thesis-antithesis, we will
briefly analyse the oppositions that occur in the play starting from the initial posi-
tion-guideline. Of course, this is stated in the divine Prologue; Aphrodite gives the
outline: ‘I respect those who honour me, I punish those who are high-minded and
arrogant’ (vv. 5-6), and she immediately places Hippolytus among her enemies.
The punishment of her enemies is marked out as the main subject of the play (vv.
48-50), and in this prospect the position of the theme of the play becomes, right
from the outset, an antithesis: Aphrodite versus Hippolytus.
At the beginning of the play another antithesis, the one of light versus darkness,
emerges through the bitter irony (v. 73 ff.) of the image of the young Hippolytus
returning full of enthusiasm from the hunting, bringing a garland as a gift to Ar-
temis. The tragic hero is happy and he doesn’t know that the gates of Hades have
opened this very day and await him; he doesn’t know that he sees the last light (see
vv. 21-2, 56-7).
The presentation of Hades as darkness is partly expanded also in the picture
of Phaedra, whose head is shadowed by a veil (vv. 133-4),3 and the heroine clearly
states that she sighs secretly and that she wishes to die (vv. 139-40). Phaedra’s desire
to die is demonstrated as a situation, according to which she reacts to others. In
spite of that position, the Nurse calls Phaedra to come out to the light for a while (v.
178 ff.). The Nurse attempts to distract Phaedra from the darkness of the palace and
from her morbid death-wish, and to bring her out to the light of hope. But, as the
Chorus emphasizes, when everything is revealed, when the truth about Phaedra’s
passion for her stepson gets to be known, this truth means catastrophe and death
(v. 368), namely a return to darkness.
2 
See J. Holzhausen, ‘Nochmals zur Aidos in Phaedras Monolog’, Rheinisches Museum fuer Philologie (RhM) 146
(2003) 244-58; D. Kovacs, ‘Shame, Pleasure and Honor in Phaedra’s Great Speech’, American Journal of Philology
(AJPh) 101 (1980) 287-303.
3 
See S.A. Barlow, The Imagery of Euripides, A Study in the Dramatic Use of Pictorial Language, London 1971, p. 22 ff.

242 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre

It is the same darkness of the Underworld, to where Theseus as well wishes to


go (vv. 837-8) due to the departure of his wife (see the antithesis in v. 839: ‘you have
killed me then you are lost’). In the Exodus, the dark night of Hades approaching
Hippolytus (vv. 1387-8), prevails; it is the gloom (zophos) of Hades, as Artemis calls
it (v. 1416), the black darkness which Hippolytus sees (v. 1444), before he closes
his eyes. We should add that the goddess of love, Aphrodite, is portrayed by Hip-
polytus (v. 106) as well as by Phaedra (vv. 417-8) as a goddess of the night, who acts
in the dark.
The motif of thesis and antithesis mainly applies to the tragic heroes.4 Hippoly-
tus is in a steady opposition to the rest of the world, caged, we would say, in his own
peculiar loneliness. As before mentioned, he is in direct opposition to the goddess
of love (v. 12 ff.): he, alone from all the citizens of Troizêna, slanders Aphrodite;
‘Only I among the mortals’, he boasts (vv. 84-5), ‘have the honour to share a special
bond with Artemis’. His isolation reappears in the old Servant’s wish (v. 105): ‘May
you live happily with the way you are thinking’.
An antithesis is also partly contained in Hippolytus’ nature, e.g. though an
illegitimate child, he is wise, as the Nurse remarks (v. 309); but primarily the inter-
play of thesis and antithesis is imprinted in his words and actions, and that reminds
of other young heroes of Euripides, like Ion or Orestes. For instance, Hippolytus
‘hears words that cannot be said’ (v. 602); he gives an oath of silence to the Nurse,
‘with his tongue, but not with his mind’ (v. 612).5 The most typical and famous an-
tithesis of Hippolytus is the one towards women (e.g. v 616 ff., v 664), characterised
by the rejection of sex, especially with his stepmother (e.g. v. 102).6
Hippolytus’ antithesis to the rest of the world becomes evident also in his con-
frontation with his father, Theseus, during which Hippolytus’ own conception of
himself (thesis) differs completely from what his father thinks of him (antithesis).
Hippolytus believes that he is chaste, pure, wise, prudent, he thinks of himself as a
sôphrôn man (v. 994 ff.), who has not done any wrong. Theseus, on the other hand,
believes that his son is a common liar, a betrayer, an abuser (vv. 948-9), a charmer
(v. 1038; cf. the Nurse’s opinion in vv. 478, 509-10); his son’s ‘ “modesty” is killing
him’ (v. 1064) and of course he wishes him dead (v. 893 ff.) and sends him into
exile (e.g. vv. 1048-9).
Hippolytus interprets his own situation and that of his stepmother through two
antithetical pairs stated in a distich (vv. 1034-5): Phaedra was the unchaste chaste
(asôphrôn sôphrôn), she won prudence by dying, whereas ‘I am the chaste who did
not behave wisely in this situation’, in other words he characterises himself as a
chaste unchaste (sôphrôn asôphrôn).7
4 
Cf. G.J. Fitzgerald, ‘Misconception, Hypocrisy and the Structure of Euripides’ Hippolytus’, Ramus 2 (1973) 20-40.
5 
See H.C. Avery, ‘My Tongue Sworn, but my Mind is Unsworn’, Transaction and Proceedings of the American Philologi-
cal Association(TAPhA) 99 (1968) 19-25.
6 
Cf. P.A. Watson, Ancient Stepmothers: Myth, Misogyny and Reality (Mnemosyne Suppl. 143), Leiden 1995.
7 
Cf. R. Lattimore, ‘Phaedra and Hippolytus’, Arion 1 (1962) 5-18.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 243


Ioanna Papadopoulou

Right until the Exodus, Hippolytus will try to present himself as the most pru-
dent and decent man (vv. 994-5; v. 1000 when he bids farewell to the city; v. 1191;
v. 1242 while encountering the sea-monster bull). He feels sorry because in the eyes
of his father he is an abuser (vv. 1070-1). Progressively, and without him becom-
ing aware of it, his solitude changes: the Chorus sympathises with his suffering (v.
1149: he is not worth of a atê), and the Messenger is on his side too (v. 1250 ff.). In
the Exodus, Hippolytus underlines his guiltlessness to his father (v. 1383: ‘I haven’t
done any wrong’; v. 1364), and the father-son opposition ends with forgiveness and
with Hippolytus’ pleading his father to cover him because he is dying (v. 1458).
‘Cover my head’, ‘Be silent’, ‘I fear you might speak’ (vv. 243, 245, 251, 279;
sigan vv. 173, 281; v. 294, 394: the Nurse begs Phaedra not to be silent; v. 330:
Phaedra is holding back information),8 that is Phaedra’s position (thesis) as well as
her opposition to others, the Chorus and the Nurse. The initial position was given
again by Aphrodite (vv. 28-29): the heroine is portrayed in the Prologue as a sad
woman that remains silent (vv. 38-9); she has fallen in love due divine intervention,
and theoretically this places her among the followers of Aphrodite, since Phaedra
has also built a temple in honour of the goddess of love ‘epi Hippolytôi’ (vv. 31-3).
Phaedra is found in a peculiar isolation, though different from Hippolytus’.
Her loneliness forms her own opposition to the rest of the world. The heroine wants
to die (v. 139, the Chorus is worried), the symptoms of the death-wish are visible on
her body (vv. 198-200; v. 274). Her odd behaviour creates the notion that she suf-
fers from an inexplicable disease (nosos), which according to the Chorus is a divine
fury (mania, v. 141 ff.) that is either caused by infidelity (v. 152) or by the death of
Theseus (v. 155) or is even attributed to a possible pregnancy (v. 161). The Nurse de-
scribes that the queen behaves inconsistently and cyclothymically; she asks obscure
things (like water from the mountains, v. 212-4), she changes her mind repeatedly,
she says and unsays (v. 181-3). In this manner ‘society’ creates the image of an in-
sane Phaedra (vv. 237-8: a daemon is torching her; v. 269: unknown disease; v. 283:
beyond any doubt it is madness).
The heroine herself testifies her situation cryptographically and in opposed
terms: ‘My hands are pure, but a miasma is in my mind’ (v. 317); ‘A friend is kill-
ing me without me and him wanting it’ (v. 319). When Phaedra’s silence is broken
under the Nurse’s pressure, the calamity of the heroine gets lined up among the
impure loves of her family, and her own death also derives from love (vv. 337, 401).
Actually, the women of the Chorus and the Nurse cannot understand that Phae-
dra’s ‘disease’ is only her defence to Aphrodite’s plot (cf. v. 1304); it is her attempt to
reinforce sensibility (sôphrosyne), even through her suicide (vv. 399, 419 ff.). Death
is her only way-out, her salvation from her passion, since Phaedra wants, above all,

8 
For a discussion on the subject, see Ch. Segal, ‘Confusion and Concealment in Euripides’ Hippolytus. Vision, Hope,
and Tragic Knowledge’ Métis 3 (1988) 263-282; cf. J. Gilbert, Change of Mind in Greek Tragedy (Hypomnemata 108),
Goettingen 1995, pp. 92-6.

244 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre

to be counted among the chaste women (v. 430).9 Based on her obvious antithesis
towards the rest of the world and on her consciousness regarding her fatal passion
for her stepson (v. 672 ff.), Phaedra chooses definitely to die (v. 723) and to get even
with the ‘perfect’ Hippolytus by forcing him to participate in the passion (v. 729
ff.);10 her plan is to make him suffer and thus make him learn to be sensible.11
The leitmotif of thesis and antithesis, of the two sides, is also demonstrated in
the case of the Nurse, who too behaves inconsistently. She wants to die when she
learns the true reason for Phaedra’s strange behaviour, and when she makes up her
mind, she advances the power of love as a common place (vv. 439-49), and she pres-
sures Phaedra to accept it, arguing that the rejection of love is a hubris to the gods
(v. 474). According to Phaedra, the Nurse ‘speaks well, but says obscene’ (v. 503).
We should add that the contradiction between silence-hiding and revealing char-
acterizes the Nurse’s behaviour as well; for instance she asks Phaedra persistently
to break her silence by resorting to a supplication (vv. 495-300), and then she asks
Hippolytus with supplication and by oath to keep silent (v. 603).
In this frame of constant oppositions, the Chorus sings an escape song (v. 732
ff.); the women wish they could fly like a bird to another world of misfortune and
disaster (psychology of analogy) or to a world of happiness.12
For Theseus his late wife is the bird that slipped from his hands and left for
Hades (vv. 827-9). In the interaction of silence and uncovering, Theseus holds, like
the other heroes, a peculiar position: he wishes to speak to his son, although for a
moment he is silent (vv. 882, 911). For the king it is the letter that dins (v. 878), in
other words he accepts as an irrefutable witness not the alive, his son, but the dead,
his wife (vv. 971-2).
Due to this contrast, the father-son relationship is illustrated as a reverse, op-
posed and therefore absolute subjective reality. For instance, Theseus believes that
his son was killed by the father of some woman he had rapped (cf. vv. 1164-5: Hip-
polytus as a serial ravisher). The divine interference leads Theseus to a change; he
realises that his son is brave, full of forgiveness and compassion (v. 1450). Now it
is Theseus’ turn to fly away like a bird, as Artemis says (v. 1292), because now it is
he who is the bad one, the malicious among the chaste (v. 1315), whereas Hippoly-
tus, according to Artemis, is the eukleês (v. 1299), just like Phaedra was, according
to Aphrodite. The king, last in the chain of silence, wishes he had been silent, he
wishes he had never uttered the curse (v. 1412).
In the end, Aphrodite destroys all three, as Hippolytus states (v. 1403).13
9 
Phaedra suicides motivated by fear of shame; cf. E.P. Garrison, Groaning Tears: Ethical and Dramatic Aspects of
Suicide in Greek Tragedy, Leiden 1995.
10 
Cf. L.P. Parker, ‘Where is Phaedra?’, Greece & Rome (G&R) 48 (2001) 45-52.
11 
The lines are omitted by Nauck. On the subject see D.B. Lombard, ‘Hippolytus’ pathei mathos-the lesson portrayed
in the Hippolytus of Euripides’, Antike und Abendland (A&A) 34 (1988) 17-27.
12 
Cf. Barlow, op.cit., p. 38 ff.
13 
However, Phaedra’s love will not be kept silent, as Artemis foretells in the Exodus (vv. 1429-30).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 245


Ioanna Papadopoulou

Throughout the play, the heroes of Euripides oscillate between two poles: what is
right and wrong, what they are allowed to do or to say and not (e.g. Nurse v. 177;
Phaedra v. 339 ff.; Hippolytus v. 988). They are bounded by supplications, oaths of
silence and anavowed secrets, in which also the Chorus takes part by giving oath
to Phaedra and thus the women cannot tell the truth to Theseus (v. 712 ff.). The
antithesis between what the heroes feel and what they say, between what they think
or believe of themselves, or what they wish others would think of them (prudence
and need for renown) and what the others believe of them is crucial, until reconcili-
ation in repentance, regret and forgiveness.

II. Senecas’ Phaedra and its antithesis to the Euripidean play


In order to compose his Phaedra, Seneca had a long tradition of literary explora-
tion of the same myth behind him: apart from the extant Hippolytus of Euripides,
the so-call Stephanias or Stephanêphoros, he may as well have in mind Euripides’
first version of the same myth, the Hippolytos Kalyptomenos. Sophocles had also
approached the same story in his lost play titled Phaedra, and Lycophron had also
written on the myth. In all probability the Roman playwright was influenced by
Phaedra’s letter to Hippolytus in the Heroides (4) of Oratius (Horace), who had
most likely based this letter on Hippolytos Kalyptomenos. But Seneca had much
more behind him in the path that Roman tragedies and comedies had opened
through translations or free adaptations of classic and Hellenistic plays. In other
words, Seneca knew the −lost for us− course which fabula palliata had in the history
of dramaturgy.14
Above all, and we should say that in advance, as far as the whole of his dramatic
production, as well as the treatment of Hippolytus’ myth are concerned, Seneca
created his own play with its unique atmosphere that differs totally from the Greek
play.15 In addition to this, his tragedy is, more of less, influenced by the stoic phi-
losophy.16 Also, in accordance with the literary production of the Neronean era, his
tragedy is influenced by rhetoric; as, for instance, it is obvious in the agôn between
the Nurse and Hippolytus, which is more like a controversia oratio: the one sup-
ports the advantages of life in cities and of indulgence (vv. 435-535), the other the
advantages of simple life in the country (vv. 483-514).
In this framework, the leitmotif of the constant thesis and antithesis which

14 
See e.g. B. Zimmermann, ‘Seneca und die roemische Tragoedie der Kaiserzeit ‘, Lexis 5-6 (1990) 203-14, esp.
212-4.
15 
We do not intend to discuss in this paper if Seneca wrote the plays for the recital hall or for the theater, but we tend
to agree with A. Hollingworth, ‘Recitational Poetry and Senecan Tragedy: Is There a Similarity?’, The Classical World
(CW) 94 (2001) 135-144.
16 
On the subject regarding Phaedra see E. Lefèvre, ‘Quid ratio possit? Senecas Phaedra as stoisches Drama’, Wiener
Studien (WS) 82 (1986) 131-160. For a more general approach see: T.G. Rosenmeyer, Senecan Drama and Stoic Cos-
mogony, Berkeley 1989, N.T. Pratt, ‘The Stoic Base of Senecan Drama’, Transaction and Proceedings of the American
Philological Association (TAPhA) 78 (1948) 1-11; cf. also R.G. Tanner, ‘Stoic Philosophy and Roman Tradition in
Senecan Tragedy’, Aufstieg und Niederschlag der Roemischen Welt (ANRW) vol. 2, 32. 2 (1985) 1100-33.

246 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre

we traced in the Greek play has developed in a more general opposition of Seneca
towards the Euripidean tradition and dramaturgy. We would say −admitting that
this is an exaggeration− that if Seneca regarded the tragedy of Euripides as a thesis
for the myth, he gave his antithesis to it.17 This opposition is clear not only in the
structure of Phaedra, since the divine Prologue and the theophany-dea ex machina
are absent, but in the plot and also in the portrayal of the heroes and in the drama-
turgy.
Since the gods do not take part in the plot, the setting of the positions and op-
positions is transferred to the hands of the heroes. Humans become the centre of the
myth in a very different way compared to the Greek drama.18 It seems that Seneca
is looking for - or trying to explain - the reasons and the motivations of the choices
or the actions.19 In this framework, for instance, it is stressed out that Phaedra has
ceased loving her husband, and Seneca adds an explanation: Theseus’ adultery (vv.
91-9). But in outlining Phaedra’s character and her passion for Hippolytus, adultery
is not used −quite expected under the circumstances− as a reaction or revenge; it is
marked out more as a sign of her loneliness.
In this rational exploration of the myth, Phaedra reveals her love to Hippolytus,
being absolutely certain that Theseus will not return from his journey to the Under-
world; in this case she is a widow and therefore free to love anyone she pleases (see.
vv. 240, 634-5). Of course, in her passion, her lust, Phaedra reaches the exaggera-
tion, she loses her dignity and she behaves as a beggar of love (vv. 664-71) uttering
the characteristic phrase miserere amantis (‘have pity for a lover’).20 Furthermore,
when Hippolytus does not respond to her love, she wishes to die by his very hand
(v. 710 ff.). The Nurse has already stressed out that Phaedra’s passion is unnatural
(see e.g. vv. 171-7: Perge et nefandis verte naturam ignibus).21
Theseus also explains, in terms of reason, the rape committed by his son as a
result of the latter being violent (which was also apparent in the hunting-scene of
the Prologue). The austere, restricted way of life which his son has chosen results in
his being dangerous; in other words, according to Theseus, the young man’s long
chastity leads him to the other edge, that of rough harming (vv. 909-12).
Hippolytus stresses out his difference to the others, but not his isolation, with
the way of life that he has chosen to follow. He becomes absolute, rough; he is not
a modest and decent servant of Artemis, but a man full of an irrational misogyny
(vv. 558-64). His hatred towards women is extended even to his own mother (vv.

17 
Cf. H.M. Roisman, ‘A New Look at Seneca’s Phaedra’ in G.W.M. Harrison (ed.), Seneca in Performance, London
2000, pp. 73-86, esp. pp. 83-4.
18 
Cf. G.O Hutchinson, Latin Literature from Seneca to Juvenal, A Critical Study, Oxford 1993, pp. 124-7 ‘Extrava-
gance’, and pp. 160-164 ‘Structure and Cohesion’.
19 
Cf. A. Schiesaro, The Passion in Play: Thyestes and the Dynamics of Senecan Drama, Cambridge (CUP) 2003.
20 
See also Ch. Segal, Language and Desire in Seneca’s Phaedra, Princeton 1986, esp. p. 150 ff.
21 
On the function of nature in Phaedra see A.J. Boyle, ‘In Nature’s Bonds: A Study of Seneca’s Phaedra’, ANRW vol.
2, 32. 2 (1985) 1284-1346.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 247


Ioanna Papadopoulou

578-9), and the irrationality of his feelings is apparent when he cannot give a rea-
sonable explanation for his misogyny (see v. 230 ff., 555 ff., 566 ff.). The Nurse tries
in vain to talk sense into him, to show him how wrong his way of thinking is, to
make him realise how unnatural his way of life is. The Chorus offers another reason
for Hippolytus’ fall, which can also be regarded as an indirect explanation of Phae-
dra’s lust: Hippolytus’ beauty is beyond words (vv. 736 ff.). But, as it is stated in this
choral song, rarely do handsome men have a good end (v. 821: ‘rarely the beauty of
a men is not unpunished’-Ravis forma viris (saecula perspice) impunita fuit).
On the other hand, Phaedra does not conceal or hide her passion, she is not
silent, she does not desire to die; she commits suicide in the last act, and she does
not do so out of despair nor to protect her good reputation.22 In the Roman play,
the heroine takes the responsibility of her feelings, she makes her own choices (v.
113, 178 ff.; v. 591: aude, anime, tempta...), and she herself reveals her passion to
her stepson. Furthermore, Phaedra is searching and thinking of ways to cover this
nefarious relationship by marriage, since, as aforesaid, she believes Theseus to be
dead, and in this case the relationship of stepmother-stepson does not exist and, in
addition to this, Hippolytus must assume power of the city (v. 620 ff.).
The rape accusation is an act of the Nurse (v. 725 ff.), who has attempted initial-
ly, with obstinacy, but in vain, to make Phaedra see reason (see e.g. vv. 130, 143).
Then she makes up the story of the false rape aiming to protect her lady. Phaedra,
trapped in this lie, accuses Hippolytus of assault on Theseus, but only when the life
of her beloved nurse is in danger (vv. 883-5).
It should be added that in the heroine’s first monologue Seneca composes a
suasoria (vv. 85-128), a speech in defence, presenting Phaedra as a victim of cir-
cumstances. Some of the arguments in her defence are Theseus’ marital infidelity,
Phaedra’s absolute loneliness and helplessness in her passion (in contrast to her
mother’s love-story with the bull) and Aphrodite’s curse on all women of her clan
to get involved in pious love-affairs.
A point of antithesis to the extant play of Euripides is that the heroine is not
interested in her eukleia, but she is more concerned with the satisfaction of her
passion. As for Hippolytus, Seneca’s young chaste hero does not care to behave as
a sôphrôn man. At the end of the play he is already dead, so he never forgives his
father, who is left only with his guilty conscience.
Since the centre of the gravity is obviously transferred from the gods to human
actions and the lack of common sense, Seneca, being a Stoic, places the opposition
between rational and irrational as the main subject of his play. His own thesis is the
anxious question-answer of Phaedra to the Nurses’ efforts to teach her the right way
of morality and sense; Quid ratio possit?, ‘What can reason do?’, Phaedra wonders
(v. 184). Still, it seems that even in the irrationality of Phaedra’s passion Seneca

22 
Cf. e.g. the recent short article of M. Magnani, ‘ La reputazione di Fedra’ in O. Vox (ed.), Ricerche euripidee (Satura
1), 2003, pp. 69-63.

248 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre

provides a logical explanation: the Nurse (vv. 201-10) refers to the ‘policy of love’;
the pure love is for the poor people, and the irrational passions hit only the rich,
because the affluence of goods makes them ask always for more.
There is an antithesis between Phaedra’s irrational feelings and Hippolytus’ and
Theseus’ behaviour: the heroine is aware of the excessive passion, and its rejection
leads her to harm Hippolytus after being manipulated by the Nurse, and when she
feels that she has no way-out.
It is not her intention to make Hippolytus participate in her passion and to
teach him a lesson. On the other hand, Theseus and Hippolytus do not seem to
realise their wrong-thinking.23
Seneca presents in a first level the story of an unreturned love, which due to the
intervention of fortuna (cf. the chorus v. 980)24, due to unforeseen factors, such as
the Nurse’s attempt to protect her lady and vice versa, takes a dangerous turn; and
then it takes the form of an irrational, conscious and yet unwilling fall of a man
from the woman that loves him.
Hippolytus, who is in direct opposition to Phaedra’s love, reacts with exces-
sive anger, range and hatred to her feelings, and he never reaches the point of self-
judgment, as the hero in Euripides’ play. He is portrayed less as a pious young man
and more like a violent hunter. In this aspect lies the tragic antithesis: the hunter of
the Prologue becomes the prey, and the true hunters are the women that love him
and his own father.
In Phaedra, Theseus, although he does not encounter his son, keeps the same
line of action as in the Greek play. In the beginning he reacts heartlessly to the
news of his death (vv. 998-9), but he does weep when he hears the details about
his son’s death from the Messenger; he expresses his own inner antithesis, between
the father’s feelings and the husband’s who avenged his wife’s abuse: ‘I wanted to
kill him for his guilt, but I weep, because he is lost’ (occidere volui noxium, amissum
fleo, v. 1117); ‘I am crying because I destroyed him, not because I lost him’ (Quod
interemi, non quod amisi, fleo, v. 1123).
Theseus also weeps, while trying to find out the truth from Phaedra; he cries:
‘Don’t my tears move you?’ (Lacrimae nonne te nostrae movent?, v. 881,). The strong
opposition between Theseus and Phaedra becomes clear in the last act. She reveals
the truth about Hippolytus’ innocence and his wrong condemnation, and then she
commits suicide with Hippolytus’ sword, whereas Theseus, who loved and believed
her blindly, now condemns her and hates her deeply.
In a higher level, Seneca gives the antithesis under the prospect of the stoic

On the suject see V. Wurnig, Gestaltung und Funktion von Gefuehlsdarstellungen in the Tragoedien Senecas, Interpre-
23 

tationen zu einer Technik der dramatischen Stimmungserzeugung, Franfurt 1982.


24 
On the function of the Chorus in Senecan tragedy see P.J. Davies, Shifting Song: The Chorus in Seneca’s Tragedies,
Hildesheim 1993. On possible influences of Greek poetry in the choral songs see L. Senzasono, ‘Some Influences of
Greek Poetry in the First Choral Song of Seneca’s Phaedra (274-357)’ in E.N. Ostenfeld, K. Blomqvist, L. Nevett (edd.)
Greek Romans and Roman Greeks, Studies in Cultural Interaction, Aarchus 2002, pp. 101-10.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 249


Ioanna Papadopoulou

doctrine. Both Hippolytus and Phaedra live against Nature. Especially the heroine,
because of her desire, does and feels things that are unnatural for her both as a
woman and as a sensible human being; she lives contrary to Nature as defined by
Roman Stoicism. The Nurse’s speech (vv. 451 ff.) with the reference to nature and
providence, offers a characteristic example of stoic thought, and under this view it
is made apparent that not only Phaedra, but Hippolytus as well, lead an unnatural
life (see v. 454).
Regarding the imagery, Seneca creates two oppositions: Hippolytus’ world is
described as a world of freedom and light in the Prologue; his world comes in con-
flict in the next act with Phaedra’s world, which is outlined as the world of water
and sea, of irrational supplication for love and captivity. The latter finally prevails,
with the disaster by the sea-bull becoming its symbol. Respectively, the hole play
is a reverse movement from and to the Underworld: Theseus returns from Hades,
where he went alive and of his own free will; his comeback signals the going down
of Hippolytus, who dies unwillingly, and of Phaedra, who suicides, namely dies
willingly.25
It should be added that regarding the antithetical pairs or double sides of a
definition in a single line they do occur in Seneca’s play, but only on the grounds of
hesitation. For example: Phaedra says when confronting Hippolytus: ‘I call you as
my witness, oh Gods, I do not wish what I wish’ (Vos testor omnis, caelites, hoc non
volo / me volle, v. 604-5); ‘I want to speak and recoil from it’ (Lobet loqui pitetque,
v. 637).
These are the oppositions of Seneca as a representative of Roman tragedy to-
wards the Greek prototypes: the gods exist only like distant shadows, they do not
intervene drastically, and it is the game of self-knowledge and the limits of ration-
ality that lay down the terms of the drama. Down to the bottom line, Phaedra’s
suicide could be regarded from the standpoint of the stoic departure as a heroic
action of a wise human, since, after Hippolytus’ death, she faces a not worth-living
life. Instead, she chooses to follow him in the Underworld and to get united with
him there (vv. 1183-4). Theseus, blind from his love, sees the truth too late, whereas
Hippolytus never does. The three of them get destroyed, but it is not a constant
thesis and antithesis that leads them to this point. Only one antithesis exists and
remains throughout the play: Phaedra’s lust for Hippolytus, Hippolytus’ rejection
to any sort of sexual love, and Theseus hatred for Hippolytus and, after the reveal-
ing of the truth, his hatred for Phaedra (vv. 1279-80).26 The three of them together
introduce examples of the disastrous results that the lack of reason creates, when
the unlimited, unnatural passion, including love, anger, rage and hatred, prevails.

25 
On a different approach on the subject see D. Henry and B. Walker, ‘Phantasmagoria and Idyll: An Element of
Seneca’s Phaedra’, Greece & Rome (G&R) 13 (1966) 223-39.
26 
Cf. C. Garton, ‘The Background to Character Portrayal in Seneca’, Classical Philology (CPh) 54 (1959) 1-44.

250 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and Roman Theatre

Conclusion
Seneca, by focusing on reason, and more generally on Roman Stoicism, re-
formed the myth of Hippolytus, not only in terms of structure, but also in terms of
content, without taking into account the Euripidean leitmotif of thesis and antith-
esis. He sketched a firm and unvarying antithesis among the heroes, who experi-
ence quite difficult situations and react with excessive feelings (anger, rage, passion),
which become dangerous for their own existence as human beings.
The end of both tragedies was given by the Greek mythology: Phaedra dies (com-
mits suicide), Hippolytus dies, Theseus survives, but the course to the tragic end of
the family drama differs. Euripides provided - in his second Hippolytus - outlines of
real, genuine emotions, he examined the pathology that results in unexpected reac-
tions aiming at the inner contradiction of the heroes and the opposition between
the self and the others, until the final despair (the case of Phaedra, partly also of
Theseus), regret, repentance and forgiveness (Hippolytus and Theseus). Seneca, in
his Phaedra, apart from his antithesis towards the parameters of Euripides’ tragedy,
introduces the opposition of reason and irrationality, natural and unnatural desires
and feelings, and the fall that stems from the lack of stoic wisdom and rational
judgement in human choices and actions.27

27 
On the reception of the Phaedra-myth see M. Stadter Fox, The Troubling Play of Gender: The Phaedra dramas of
Tsvetaeva, Yourcenar and H.D., Selinsgrove 2001.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 251


R eal vs Virtual:
a aprendizagem das declinações através do Jogo Lingua Latina

Luís Pereira
U. Algarve
lmpereira@ualg .pt

Gosto de vez em quando de reler os bons latinos. (…)


Sobretudo pelo jogo do cérebro a que me obrigam,
essa dança no arame da sequência das palavras,
da atenção voltada para as suas terminações,
da desarrumação do seu mecanismo de desentender.
Vergílio Ferreira

Introdução
A dimensão lúdica da aprendizagem tem vindo, cada vez mais, a ser valorizada,
muito devido à proliferação de computadores, cada vez mais baratos e cada vez
mais sofisticados. E, naturalmente, ao desenvolvimento da Internet. No entanto,
essa dimensão lúdica só se torna interessante no caso de levar a uma mais efectiva
aprendizagem. Caso contrário, é estéril e enganadora.
Neste trabalho1 quisemos testar as potencialidades do jogo Língua Latina, do
qual falaremos a seguir. O estudo foi aplicado a alunos do 1º ano de Línguas e Li-
teraturas Modernas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
do Algarve que tinham iniciado o estudo do Latim naquele ano lectivo. Pensamos
que as suas conclusões poderão ser aplicadas, de igual forma, a alunos do ensino
secundário que estejam a iniciar o estudo desta língua clássica. O estudo é constitu-
ído por três abordagens, ainda que pouco aprofundadas: plano quantitativo, plano
descritivo e plano qualitativo.

1. O jogo “Lingua Latina”


O jogo “Lingua Latina” encontra-se disponibilizado gratuitamente na web na
seguinte Url: http://www.ucc.uconn.edu/~hasenfra/wlatin.html (Anexo 1).
Este jogo permite treinar os substantivos, adjectivos, verbos, pronomes e vo-
cabulário. Tem como línguas de trabalho o inglês, francês, alemão, espanhol e
latim.
O modo de funcionamento é bastante simples: aparece uma determinada pala-
vra que se deve escrever no caso aleatoriamente seleccionado pelo computador (há
1 
Grande parte do trabalho que aqui se apresenta foi concebido no âmbito do mestrado em Tecnologia Educativa, da
Universidade do Minho, na parte curricular, com a Prof. Doutora Clara Coutinho. A dimensão pedagógica dos jogos
de computador é agora o nosso tema de dissertação.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 253


Luís Pereira

uma alternativa sequencial), no caso dos substantivos e pronomes. Há ainda outros


exercícios para a conjugação verbal e também para testar os conhecimentos no que
toca ao vocabulário.
A apreciação que fazemos este jogo é bastante positiva. Sublinhamos algumas
mais valias: o resultado automático, a pontuação, a variedade gramatical, o facto de
ser gratuito. Como aspectos negativos apontamos, essencialmente, as tonalidades
cinzentas da interface, pouco amigável, a impossibilidade de ser traduzido para
português (seria importante para a aquisição de vocabulário latino), a repetição de
palavras a declinar e a não inclusão do caso vocativo.

2. Plano quantitativo
Através deste estudo pretendemos averiguar até que ponto o jogo de computa-
dor “Lingua Latina” permite uma mais efectiva aprendizagem de uma declinação?
O estudo foi realizado em ambiente de aula, na disciplina de Latim Elementar,
do 1º ano, por motivos que se prenderam com a disponibilidade dos alunos e com a
tentativa de conciliar um conteúdo programático com a realização do estudo. Neste
sentido, este estudo situa-se no plano quase experimental. De facto, ao trabalhar
com os alunos de um grupo já constituído – a turma – a aleatorização completa da
amostra fica comprometida.
Dos alunos presentes na aula, foram seleccionados 14. Eliminámos os alunos
repetentes, bem como os que já haviam tido latim no ensino secundário (já conhe-
ciam a 4ª declinação), porque interessava que os alunos não dominassem este con-
teúdo. Daqui se poderá inferir que não foi realizado um pré-teste, pois se os alunos
desconheciam este item, seria despropositada a sua realização.
Desses 14 alunos, formaram-se dois grupos: experimental e controlo (Tabela 1).
Na tentativa de salvaguardar a equivalência dos grupos, afinal o garante da validade
do estudo, seleccionámos os elementos constituintes do grupo de controlo através
do processo de aleatorização, através de um sorteio.

frequência percentagem percentagem válida


GM 7 50 50
GT 7 50 50
Total 14 100 100
Tabela 1: Tabela de Frequências

Assim, após a delimitação dos dois grupos, explicámos a 4ª declinação. Em se-


guida, os alunos do grupo de experimentação (GM - Grupo Multimédia) desloca-
ram-se para uma sala com computadores, enquanto os alunos do grupo de controlo
(GT - Grupo Tradicional) permaneceram na sala. Estes geriram autonomamente o
seu estudo, aqueles tiveram o nosso apoio.

254 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:

Chegados ao laboratório, cada aluno ligou o seu computador e abriu o jogo


“Lingua Latina”, previamente instalado em todos os aparelhos. Seguiu-se uma ex-
plicação acerca do funcionamento do programa. Demos algum tempo para que os
alunos experimentassem e tivemos o cuidado de os alertar de que não era a observa-
ção da proficiência no uso do computador o objecto de avaliação.
No final dos 30 minutos – o tempo determinado para efectuar a aprendizagem
– os elementos do Grupo Multimédia regressaram à sala, onde foi resolvido o pós-
teste pelos dois grupos.
O pós-teste (Anexo 2) era constituído por 40 questões, distribuídas por 3 gru-
pos:
I - 20 de opção múltipla (entre 4 alíneas)
II - 10 para escrever uma palavra
III – 10 de verdadeiro e falso
Os alunos tiveram 40 minutos (1 minuto por pergunta) para resolver o pós-
teste.

2.1. Exploração dos resultados


A realização do pós-teste revelou-se bastante acessível, quer para os alunos do
Grupo Tradicional, quer para os do Grupo Multimédia. Os resultados são prova
disso mesmo (Tabela 2).

média mediana moda desvio padrão mínimo máximo


GM 19,00 19,00 18 0,86 18,00 20,00
GT 16,29 18,00 18 3,95 9,00 19,50
Total 17,64 - - 3,08 9,00 20,00
Tabela 2: Medidas estatísticas da variável classificação.

A média obtida por ambos os grupos é elevada. No entanto, o Grupo Multimé-


dia obteve uma melhor média. A mediana atesta-o também. No entanto, a coinci-
dência do valor da moda indica que os valores acabam por se equivaler.
É através do desvio padrão que percebamos a diferença de médias obtidas, já
que a média é uma medida susceptível de ser afectada por valores extremos. De
facto, o ter havido uma nota mínima de 9 é determinante para o entendimento dos
resultados anteriores.
O desvio padrão permite inferir que a distribuição das classificações do Grupo
Multimédia é menos dispersa do que a do outro grupo. O mesmo se pode observar
através do Gáfico 1 de extremos e quartis seguinte.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 255


Luís Pereira
22

20

18

16

14

12

Nota Final
10
11

8
N= 7 7

Multimédia Tradicional

Tipo de estudo

Gráfico 1: Gráfico de extremos e quartis.

Devido à distribuição e a uma menor dispersão, o estudo multimédia parece


trazer vantagens aos alunos em dois sentidos: as notas são melhores; mas, sobretu-
do, e é o mais interessante, o grupo torna-se mais homogéneo. Mais considerações,
no entanto, serão feitas ao longo do trabalho.

3. Plano descritivo
Aproveitando este estudo, quisemos também abordar o tema num plano des-
critivo. Assim, inquirimos os alunos do Grupo Multimédia. As respostas a esse
questionário (Anexo 3) permitir-nos-ão tirar algumas conclusões interessantes. An-
tes, será só necessário localizar esta abordagem: um estudo não experimental, do
tipo survey explicativo. Além de descrever, temos o objectivo de tentar determinar
relações entre as variáveis.
Mais uma vez, as conclusões a retirar são pouco claras, devido ao número dimi-
nuto de inquiridos: os 7 elementos do GM.
O questionário, preenchido anonimamente, tinha duas partes distintas: a pri-
meira relativamente ao computador e à Internet; a segunda relativamente ao jogo e
ao estudo de 4ª declinação.

256 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:

3.1. O computador e a Internet


Os dados parecem dizer que os elementos com melhores resultados no pós-teste
gostariam de ver as novas tecnologias com maior frequência na sala de aula (Tabela 3).

Tecnologias
Nota Total
Razoavelmente Bastante Muito
18,0 1 1 0 2
18,5 1 0 0 1
19,0 1 0 0 1
19,5 0 1 0 1
20,0 0 1 1 2
Total 3 3 1 7

Tabela 3: Correlação entre as notas e o desejo de ver as tecnologias mais utilizadas na aula.

Quanto à “relação” com os computadores, o único dado relevante é o facto de


os alunos que obtiveram nota máxima considerarem que têm uma boa capacidade
de lidarem com os computadores. (Tabela 4)

Lidar com os computadores


Nota Total
Fraca Média Boa
18,0 1 0 1 2
18,5 0 0 1 1
19,0 0 1 0 1
19,5 0 0 1 1
20,0 0 0 2 2
Total 1 1 5 7
Tabela 4: Cruzamento entre as notas e a capacidade de lidar com o computador.

Outras variáveis que poderiam suscitar interesse cruzar seria o número de vezes
que cada aluno frequenta a Internet por semana e o seu desejo de ver as tecnologias
mais presentes na sala de aula. Através da Tabela 5, verifica-se que os alunos que
menos navegam na Internet são os menos interessados nas novas tecnologias nas
aulas.
Sublinhamos o facto de um aluno que diz navegar todos os dias na internet e,
apesar disso, ter apenas uma expectativa razoável no que toca ao multimédia e sua
incrementação nas aulas. (Tabela 5)

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 257


Luís Pereira

Tecnologias
Navegação Total
Razoavelmente Bastante Muito
Raramente 2 1 0 3
uma ou duas 0 1 1 2
três ou quatro 0 1 0 1
todos os dias 1 0 0 1
Total 3 3 1 7
Tabela 5: Cruzamento entre o número de vezes/semana na internete o desejo de ver as tecnologias mais
utilizadas na aula.

3.2. A 4ª declinação e o jogo “Lingua Latina”


O grau de aprendizagem que os alunos dizem ter obtido é bom. Aliás, todos,
com excepção de um elemento que não preencheu o item, responderam que lhes
parece terem obtido um rendimento melhor estudando através da aplicação. (Ta-
bela 6)

sim não não respondeu Total


Melhor rendimento 6 0 1 7
Tabela 6: Avaliação do estudo multimédia.

Quisemos verificar se existiria alguma correlação entre o grau de aprendizagem


sentido e o desejo de realizar mais actividade deste género nas aulas de Latim. E há
uma coerência: o grau de aprendizagem foi elevado, por isso gostariam de realizar
actividades idênticas na aprendizagem da língua latina. (Tabela 7)

Mais tecnologia nas aulas de Latim


Grau de Aprendizagem Total
Bastante Muito
Bom 2 3 5
Muito Bom 1 1 2
Total 3 4 7
Tabela 7: Correlação entre o grau de aprendizagem e a presença de tecnologia nas aulas de Latim.

Quanto aos aspectos considerados mais úteis, a escolha foi unânime: a correc-
ção imediata. De facto, uma das mais valias do software educativo tem a ver precisa-
mente com o feedback imediato. O aluno poderá estar a trabalhar sozinho e, mesmo
assim, saber a cada passo se o seu trabalho está, ou não, correcto. (Tabela 8)

258 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:

O que mais gostou Frequência


a pontuação 0
a correcção imediata 7
a ajuda 0
outro 0
Total 7
Tabela 8: Aspectos considerados mais úteis.

Estes são alguns aspectos, do nosso ponto de vista, interessantes na avaliação


deste jogo. Deste modo se conclui que se trata de uma aplicação bastante válida, ao
gosto dos alunos, e que tem imensas potencialidades pedagógicas para as aulas de
Latim.

4. Plano Qualitativo
O questionário que serviu de base à abordagem descritiva continha duas ques-
tões que pediam aos alunos para apresentarem:
i) alguns motivos por que gostariam de ver as tecnologias mais utilizadas na
aula;
ii) razões para serem realizadas mais actividades idênticas à experimentada es-
pecificamente nas aulas de Latim.

4.1. As tecnologias nas aulas


Este item interessa-nos para indagar os motivos que os alunos apresentariam
para o uso das (novas) tecnologias na sala de aula.
As razões que os elementos do grupo apresentam têm em vista a melhoria da
aprendizagem. Assim, encontrar novas e diferentes formas de aprender (sujeito 1) per-
corre a maior parte das justificações. Permite-nos assimilar a matéria dada nas aulas
de uma forma mais divertida, suscitando mais atenção e por vezes menos enfadonha
– diz o sujeito 5.
O lúdico é, pois, um factor apontado: creio que as novas tecnologias podem aju-
dar, de uma forma mais lúdica, a assimilar novos conhecimentos e a consolidar anterio-
res (sujeito 6), por isso com novas tecnologias há (…) um maior incentivo (sujeito 7).
Isto entende-se, pois se gostarmos do método tendemos a aprender com maior faci-
lidade e gosto (sujeito 1). E a sinceridade atinge níveis consideráveis na afirmação do
sujeito 7: é uma motivação para os alunos, que deixam de achar as aulas aborrecidas
só de ouvir professores.
Mas outros alunos mostram-se menos optimistas: tenho algumas reticências em
relação às novas tecnologias (sujeito 2). Contudo, a justificação que este aluno dá
vem de encontro ao que já referimos atrás: …pois não me sinto muito à vontade com

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 259


Luís Pereira

a utilização dos computadores e também é um instrumento pelo qual não nutro uma
grande simpatia (sujeito 2).
Ainda um outro ponto de vista: as novas tecnologias ajudam bastante, mas o
método tradicional é auto-suficiente quando existe interesse por parte dos alunos (su-
jeito 4). Interesse que poderá ser accionado pelas tecnologias, segundo a opinião de
alguns elementos já citados.
Um dos elementos demonstra uma posição conciliadora entre os dois métodos:
creio que possa ser muito benéfico, mas o método tradicional também o é. No meio está
a virtude, conclui de forma apaziguadora o sujeito 3.

4.2. As tecnologias nas aulas de Latim


Interessava-nos sobretudo chegar a este ponto: por que gostariam os alunos que
fossem utilizado mais vezes métodos idênticos ao experimentado. As respostas têm
o mesmo teor daquelas que foram dada à questão anterior:
Porque é interessante e é uma espécie de motivação. (sujeito 7)
(…) uma forma, talvez mais estimulante, de encararmos as matérias. (sujeito 3)
Desta forma aprende-se a matéria mais facilmente, sendo mais entusiasmante do
que se fosse através de métodos tradicionais. (sujeito 5)
Perante o nosso gosto e satisfação, é mais fácil adquirir conhecimentos e aprender.
(sujeito 1)

Pretendíamos, contudo, que os alunos relacionassem a especificidade do estudo


da língua latina e uma abordagem multimédia. O que, de resto, aconteceu por
parte de alguns elementos:
Este tipo de actividade ajuda o aluno a consolidar o estudo de uma forma mais
descontraída e com resultados, talvez, melhores. (sujeito 6)
Facilita mais o trabalho assimilando neste caso as declinações de um modo menos
papagueado (sujeito 5)
Creio que o estudo do Latim deve ser metódico. O que é facilitado em muito pelo
computador. (sujeito 3)

Os alunos que apresentaram respostas menos tecnófilas em 4.1. dizem o seguin-


te: é diferente e como é de fácil utilização, não me assusta (sujeito 2). Talvez dê mais
resultados (sujeito 4).

5. Análise Crítica
O estudo que realizámos, sendo, em rigor, a nossa primeira experiência neste
campo, apresenta algumas deficiências: umas que já detectámos, outras que ainda
não conseguimos apontar.
Obviamente que o número de participantes no estudo é bastante diminuto. Já
referimos que resultou das circunstâncias de termos realizado o estudo numa tur-
ma e termos tido de eliminar os alunos repetentes. Isto levou a que, por exemplo,

260 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:

ficando um aluno com maiores dificuldades no Grupo Tradicional, os resultados


rapidamente se modificassem, porque 1 elemento em 7 tem uma grande influência.
E, depois, todo o tipo de análise fica muito aquém do desejável para um estudo
quantitativo e descritivo: dispersam-se, não sendo verificável uma tendência efectiva
e fundamentada das variáveis. Aqui, pudemos apenas deixar pistas.
Quanto ao Questionário (Anexo 3), na Parte II, na questão nº 2, apresenta como
respostas possíveis “sim” e “não”. Faltou uma terceira opção: “talvez” ou “não sei”.
Também a escolha da expressão “Estudo Tradicional” contrapondo com “Estu-
do Multimédia” não parece ser a mais feliz. A palavra “tradicional” pode ter uma
carga negativa, de inferioridade, quando associada a “multimédia”. Eventualmente,
agora teríamos utilizado, por exemplo, a expressão “Estudo Habitual”.
Outra questão prendeu-se com o tempo dado para os alunos do Grupo Multi-
média. O deslocar-se para uma outra sala, o ligar o computador, abrir o programa,
ouvir a explicação, e desligar e voltar à sala ocupou mais de 50% dos 30 minutos
pensados para a actividade.

6. Conclusão
Para o problema que formulámos (até que ponto a aplicação multimédia “Lín-
gua Latina” permite uma mais efectiva aprendizagem de uma declinação?) tínhamos
em mente que a aplicação multimédia dotaria os alunos de uma maior capacidade.
No entanto, durante a realização do estudo apercebemo-nos de que a utilização da
aplicação tinha o revés de ocupar bastante tempo. Além disso, os alunos sentem que
interiorizam bastante utilizando simplesmente caneta e papel.
Por outro lado, pudemos desde logo constatar um grande entusiasmo: sentia-
se a motivação dos alunos do Grupo Multimédia, que pareceram, de certa forma,
agradavelmente surpreendidos com as potencialidades do jogo. Como vimos, eles
apreciaram sobretudo a correcção imediata.
Um aspecto muito importante é a exploração que o professor faz de um jogo
como este. Apesar de não ser mensurável em nenhuma das questões e das respos-
tas, estamos certos de que a disponibilização de uma dada aplicação multimédia
aos alunos, sem nenhuma explicação não é, de todo em todo, a melhor opção. O
professor deverá explicar o funcionamento, exemplificar e deixar o aluno testar a
aplicação. Depois desta apresentação, os alunos poderão até vir a encontrar poten-
cialidades que terão escapado ao professor.
Não ficámos, no entanto, suficientemente esclarecidos em relação à capacidade
superior do programa em relação ao estudo habitual. Talvez nem fosse o essencial,
já que, pelo menos, é evidente que os alunos se sentiram bastante motivados e in-
teressados. E, se não for mais eficaz, não diminui o nível de aprendizagem. Ora,
se as tecnologias os fazem sentir mais interessados, a opção pela sua inclusão em
ambiente de aula parece ser acertada.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 261


Luís Pereira
ANEXO 1
Interface do jogo Lingua Latina

caixa onde o aluno deve palavra latina e respectiva tradução percentagem de respostas
escrever o caso pedido (pode-se optar entre 6 línguas – certas obtidas
excepto o português)

premindo, aparece quando o aluno sair, mensagem indicando se a resposta


um flash da resposta correcta poderá escolher mais palavras está correcta ou errada;
cada uma das possibilidades
é acompanhada
do respectivo sinal sonoro

ANEXO 2
Pós Teste

I - Depois de ler as frases seguintes, escolha a opção mais correcta.


1. Qual o caso de exercitibus (exercitus, -us)?

a) nominativo do plural
b) dativo do plural
c) dativo do singular
d) genitivo do plural

2. Qual é o acusativo do plural de porticus, -us?

a) porticum
b) porticus
c) porticuus
d) nenhuma das anteriores

262 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:
3. Qual é o ablativo do singular de manus, -us?

a) manibus
b) manu
c) mano
d) mane

4. Em que caso está lacui (lacus, -us)?

a) ablativo do singular
b) ablativo do plural
c) ablativo e dativo do singular
d) dativo do singular

5. Qual o caso de acus (acus, -us)?

a) nominativos do plural
b) nominativo do singular
c) genitivo do singular
d) todas as anteriores

6. Qual o genitivo do plural de porticus (porticus, -us)?

a) porticuum
b) porticum
c) porticorum
d) porticium
7. De que género é a palavra veru, -us?

a) masculino
b) feminino
c) neutro
d) masculino ou feminino
8. Em que casos pode estar genu (genu, -us)?

a) nominativo, vocativo e genitivo do singular


b) nominativo, vocativo e dativo do singular
c) nominativo, vocativo, acusativo e ablativo do singular
d) nominativo, vocativo, acusativo e dativo do singular

9. Na palavra fluctus, -us, o acusativo do plural é igual ao:

a) nominativo do singular
b) nominativo e vocativo do plural
c) genitivo do singular
d) todas as anteriores

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 263


Luís Pereira
10. Qual o nominativo, vocativo e acusativo do plural de cornu, us?

a) corna
b) cornus
c) cornua
d) cornia

11. Como se diz “dos exércitos” (exercitus, -us)?

a) exercitorum
b) exercituum
c) exercitus
d) nenhumas das anteriores

12. Qual o plural de senatui (senatus, -us)?

a) senatibus
b) senatus
c) senatubus
d) qualquer uma das anteriores

13. A que caso correspondem as formas metu e metibus (metus, -us)?

a) ablativo
b) dativo
c) vocativo
d) qualquer uma das anteriores

14. Como se diz “os arcos” (arcus, -us)?

a) arci
b) arcua
c) arcus
d) arcuum

15. Uma palavra de tema em –u, cujo nominativo do plural é em –us, é do género:

a) masculino
b) feminino
c) neutro
d) opção a) ou b)

16. Que terminação não pode ter a palavra complexus, -us?


a) -ua
b) -ibus
c) -u
d) -ui

264 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:
17. A palavra currus (currus, -us) pode ter o predicado:

a) no plural
b) no singular
c) no plural ou no singular
d) currus não pode ser sujeito

18. Uma palavra com o genitivo do singular em –us é do género:

a) neutro
b) masculino ou feminino
c) todas as anteriores
d) se tiver o nominativo em –u, é do género masculino

19. Qual o vocativo do plural de nurus, us?

a) é igual ao dativo do plural


b) é igual ao dativo do singular
c) nurum
d) nurus

20. Qual o caso de sensu (sensus, -us)?

a) nominativo, vocativo e acusativo do plural


b) nominativo, vocativo e acusativo do singular
c) nominativo, vocativo, acusativo e ablativo do singular
d) ablativo do singular

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 265


Luís Pereira

II - Depois de ler as frases seguintes, registe a palavra


(apenas uma) pedida.
1. Qual o nominativo do plural de genu, -us?
2. Qual o genitivo do singular de sensus, -us?
3. Qual o genitivo do plural de fluctus, -us?
4. Qual o ablativo do plural de exercitus, -us?
5. Qual o dativo e ablativo do plural de senatus, -us?
6. Qual o nominativo e vocativo plural de porticus, -us?
7. Qual o nominativo do singular e do plural de manus, -us?
8. Qual o ablativo do singular de cornu, -us?
9. Qual o dativo do singular de lacus, -us?
10. Qual o genitivo do singular e acusativo do plural de specus, -us?

III – Verifique se cada uma das frases seguintes é verda-


deira ou falsa.
1. Nos nomes masculinos da 4ª declinação, o vocativo do singular e plural são
iguais.
2. Os nomes neutros têm 4 casos iguais no singular.
3. Os nomes femininos têm o genitivo do plural terminados em –rum.
4. O genitivo do plural um -u é do radical e outro –u pertence à terminação.
5. O nominativo do plural de complexus, -us é complexi.
6. Manibus pode ser o dativo ou ablativo do singular de manus, -us.
7. O nominativo e vocativo de porticus, -us são iguais no singular e plural.
8. O acusativo do singular de casus, -us é casum.
9. O vocativo do plural de cornu, -us é igual ao ablativo do singular.
10. O dativo do singular de nurus, -us é diferente de qualquer um dos outros
casos dessa declinação.

266 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Real vs Virtual:

ANEXO 3
Questionário

Em cada um dos itens, assinale com uma cruz a resposta mais adequada, correspondendo os números,
sendo que 1 é o mais baixo e 5 o mais alto.

I – O COMPUTADDOR E A INTERNET

1. Como avalia a sua capacidade de lidar com o computador?


[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
2. Que utilidade vê na utilização das novas tecnologias na sala de aula?
[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
3. É utilizador da internet?
[ ] sim [ ] não
3.1. Quantas vezes costuma navegar na Internet por semana?
[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
4. Já tinha utilizado o computador para melhorar o seu desempenho numa determinada disciplina?
[ ] sim [ ] não
5. Até que ponto gostaria de ver as novas tecnologias mais utilizadas nas aulas?
[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
5.1. Porquê? (escreva umas breves justificações)

II – A 4ª DECLINAÇÃO E O LINGUA LATINA

1. Como avalia o grau de aprendizagem que o computador lhe permitiu adquirir?


[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
2. Parece-lhe que teria obtido melhores resultados se tivesse estudado de uma forma mais tradicio-
nal?
[ ] sim [ ] não
3. O que achou mais útil no programa?
[ ] a pontuação [ ] a correcção imediata [ ] a ajuda [ ] outra ________
4. De que gostou menos no programa?
[ ] escrever no monitor [ ] estar noutra língua [ ] a repetição das palavras [ ] outra _____
5. Até que ponto gostou de ter estudado a declinação através deste programa?
[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
6. Até que ponto gostaria de realizar mais actividades deste género na aula de Latim?
[ ] 1 [ ] 2 [ ] 3 [ ] 4 [ ] 5
6.1. Porquê? (escreva umas breves justificações)

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 267


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras
Virgínia Pereira
U. Minho
virginia@ilch.uminho.pt

Alguma coisa na queda do Império Romano me incomoda.


Sei que há bibliotecas sobre o assunto, mas não percebo muito bem.
Mário de Carvalho

1. O estado da questão
Na obra Um deus passeando pela brisa da tarde, de Mário de Carvalho – um
romance histórico cuja acção decorre na Lusitânia, nos tempos de Marco Aurélio e
do seu sucessor Cómodo (primeira metade do séc. III d. C.) –, assiste-se a uma ge-
neralizada agitação política e social, motivada não apenas por constantes incursões
de povos árabes, mas também pelo aparecimento de um novo movimento religioso,
que se identifica com o sinal do peixe e se vai insinuando e espalhando por toda a
parte. Estão em confronto dois mundos: o velho mundo romano, representado, en-
tre outros, pela figura de um duúnviro que via tudo a desabar em seu redor e tinha
dificuldade em compreender o que se passava, e um novo movimento religioso e
sectário, que condenava e desprezava esse velho mundo, contrapondo-lhe a mensa-
gem de Cristo.
Como esclareceu o próprio Mário de Carvalho numa entrevista na qual jus-
tificava o teor e alcance da sua obra, o romance levanta a questão, que continua
irrespondível, da queda de um grande império. Dizia então o autor:

“ As minhas preocupações não podem deixar de estar presentes nos livros que faço.
Quando escrevo um livro sobre a Lusitânia romana – Um Deus Passeando… –, deve
ser claro para o leitor que estou a pensar nos dias de hoje, sem com isso procurar
fazer um paralelismo estrito, que as situações não são comparáveis. Essa inquietação
minha está lá. Alguma coisa na queda do Império Romano me incomoda. Sei que há
bibliotecas sobre o assunto, mas não percebo muito bem.”1

A sensação de inquietude e perplexidade revelada nestas palavras tem-se acentu-


ado nos últimos tempos e muitos são os que se interrogam sobre a sustentabilidade

1 
Entrevista publicada na revista Ler (do Círculo de Leitores), nº 34 (Primavera de 1996), pp. 40-49, p. 46. Sobre o re-
curso ao romance histórico como forma de avaliar o tempo presente, veja-se Osvaldo Silvestre, “Mário de Carvalho:
Revolução e contra-revolução ou um passo atrás e dois à frente”, in Colóquio / Letras, nº 147/148 (1998), pp. 209-229
(pp. 218-220), e Maria de Fátima Marinho, “O sentido da história em Mário de Carvalho”, in Revista da Faculdade
de Letras “Línguas e Literaturas”, Porto, XIII, 1996, pp. 257-267.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 269


Virgínia Pereira

da presente ordem mundial e, em contexto de filosofia da história, sobre o fim dos


impérios e as suas causas.2 A complexidade do mundo actual, o sentimento de in-
segurança que a todos atinge, o declinar de velhas potências e sinais da emergência
de novas, tudo traz inevitavelmente à memória o complexo de causas, inúmeras e
múltiplas – políticas, económicas, demográficas, sociais, militares, morais ou re-
ligiosas –, que conduziram à ruína do Império Romano, isto é, à queda – para
muitos inexplicável – de uma grande cidade imperial que fora, por longos séculos,
caput mundi… A preocupação é já antiga e justifica que desde tempos recuados,
mas sobretudo a partir da publicação da conhecida História do declínio e queda do
Império Romano, de Edward Gibbon, datada de finais do século XVIII, muito se
tenha escrito sobre as causas do chamado declínio do Império Romano, muito em
particular do Império do Ocidente, cuja “certidão de óbito” costuma trazer a data
de 476, mas que na realidade aconteceu algumas décadas antes. Na primeira linha
dos motivos carreados para explicar o acontecido estão as constantes arremetidas
de povos bárbaros, que começaram a pressionar o limes (os limites) do território
romano já em meados do século III e que se intensificaram e atingiram o coração
do Império – a cidade de Roma – no século V. Mas é evidente que o que se passa
junto às fronteiras é já um sintoma claro dos problemas profundos que atingem e
minam esse Império: uns chamam-lhe cansaço, apatia, falta de ânimo e de vitali-
dade; outros invocam como causa fundamental o enfraquecimento geral do mundo
romano, resultante das lutas de classe, de crises económicas e financeiras, de con-
flitos religiosos, enquanto outros constatam que, apesar de tudo, o orbe romano
continua a ser, pelos níveis de vida alcançados, um espaço apetecível para outros
povos, que por isso mesmo forçam a sua entrada, ao mesmo tempo que fogem, em
sucessivas vagas de fugitivos, da pressão e da ameaça dos nómadas da Ásia.3 Para
avaliar da dificuldade da questão, vale a pena dizer que num estudo publicado na
Alemanha no ano de 1984 são aduzidos cerca de 210 (duzentos e dez) factores que
teriam estado na origem da queda do Império.4
Perante um tão complexo problema como o das causas do fim de Roma, há
mesmo historiadores que ou desistiram de tentar explicar esse fenómeno ou dei-
xaram de falar em queda e preferiram defender a ideia de uma contínua mudança

2 
Veja-se, de Pierre Grimal, “La philosophie de l’histoire face à l’angoisse de notre temps”, in Rome, La Littérature et
l´Histoire, Tome II, Rome, École Française de Rome, 1986, pp. 1261-1273.
3 
Peter Brown, O fim do mundo clássico, Lisboa, Verbo, 1972, p. 126, fala na complexidade e multiplicidade das cau-
sas do colapso do governo imperial, somando aos motivos de ordem moral os de ordem económica e social. Sobre esta
matéria veja-se também Pierre Riché, As invasões bárbaras, Mem Martins, Publicações Europa-América, s. d. (1992),
e ainda André Piganiol, Histoire de Rome, Paris, Presses Universitaires de France, 1977 (6ª. ed.), pp. 501-522, que
defende que Roma não morreu de morte natural, foi assassinada; vd. igualmente Averil Cameron, The Later Roman
Empire, AD 284-430, London, Fontana Press, 1993, pp. 190-194, sobre a impossibilidade de decidir sobre o que pesou
mais no desfecho do Império do Ocidente; a mesma opinião é expressa por Balsdon em Roma, Historia de un Império,
Madrid, Ediciones Guadarrama, 1970, pp. 240 e seguintes.
4 
Informação colhida em Arther Ferrill, La caída del Império Romano: Las causas militares, Madrid, Biblioteca
EDAF, 1998 (1986), p. 21.

270 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

e transição do Império Romano do Ocidente para a Idade Média.5 Hoje tende-


-se a privilegiar esta perspectiva da transformação e preferem-se termos como mu-
dança mais ou menos contínua, “modificações inevitáveis, evolução criadora de
novidades”.6 Há, contudo, quem se coloque nos antípodas da questão e considere
que a verdadeira pergunta a fazer não é, na verdade, “quais as causas do declínio e
queda do Império Romano?”, mas sim “por que é que o Império Romano durou afi-
nal tanto tempo?”, como escreveu António Estrela Teixeira, que recupera uma ideia
já presente na História do declínio e queda do Império Romano, de Edward Gibbon7
e retomada por outros.
Considerando tudo isto, e tendo presente que a expressão Roma aeterna chegou
a povoar o imaginário de todos, é lícito tentar indagar que consciência tiveram os
Romanos (e os Gregos) da decadência do Império, quer dizer, se previram o seu
desfecho ou se acreditaram convictamente na sua perenidade. Por outras palavras,
é lícito perguntar que peso ou significado tinham para eles expressões tantas vezes
reiteradas como Roma Aeterna ou Aeternitas Imperii, para citar duas significativas
legendas de moedas.8

2. As laudes e os nota
A chamada grandeza de Roma nunca deixou de causar, a Romanos ou estran-
geiros, uma forte impressão. Pela monumentalidade da cidade e do Império, pela
sua extensão no tempo e no espaço, pela sua organização, “los romanos de todas
partes llegaron a creer en la Roma aeterna, la ciudad eterna.”.9 E não faltam sinais
dessa crença, que cedo se transformou em mito. Roma foi venerada como dea Roma
e o povo romano tinha a sua própria divindade protectora, o seu genius, que se vê
profusamente retratado no tipo monetário GENIO POPVLI ROMANI, ao longo
do período imperial. Cunhado e divulgado por todo o império, este tipo de moeda
ao genius – ao Genius P. R.., celebrado como garante da dominação de Roma sobre
o universo –, funcionava como uma espécie de slogan propagandístico, que acentu-
ava a universalidade de Roma e a unidade imperial.10 Estes conceitos, juntamente
com os de civilização, paz e eternidade, definirão, por largo tempo, a ideia de Roma
5 
Para uma visão actualizada do problema, consulte-se Arther Ferrill, op. cit., em especial o capítulo I. Sobre o
período que vai de Marco Aurélio a Anastásio, fazendo a ponte entre o Império Romano e o Império Bizantino, veja-se
Roger Rémondon, La crise de l’empire Romain, P.U.F., Paris, 1970.
6 
Jean-Rémy Palanque, Le Bas-Empire, Paris, P.U.F., 1971, p. 6.
António Estrela Teixeira, A Herança de Roma (Conhecer a Europa), Mem Martins, Publicações Europa-América,
7 

2001, cap. II e cap. VIII. Sobre o pensamento de Edward Gibbon, veja-se Gilbert Highet, La tradición clásica, II,
México, Fondo de Cultura Económica, 1996 (3ª reimpr.), pp. 89-102.
8 
Arther Ferrill, op. cit., p. 20.
9 
Arther Ferrill, op. cit., p. 20.
10 
Moedas com a legenda Genio Populi Romani podem ver-se em Michael Grant, op. cit., Pl. 3, nº 3 e 1. Segundo
Michel Christol, “Rome et le peuple romain à la transition entre le Haut et le Bas Empire: Identité et tensions”, in
AA.VV., Identità e Valori: Fattori di Aggregazione e fattori di crisi nell’esperienza politica antica, Roma, “L’Erma” di Brets-
chneider, 2001, p. 210, foi Floro (II, 1.2) quem mais pôs em relevo a entidade histórica representada pelo povo romano,
referido como princeps populus, uictor gentium orbisque possessor.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 271


Virgínia Pereira

como orbis terrarum.


Vejamos de que forma os textos antigos referentes a Roma dão o seu testemu-
nho, sabendo de antemão que ora tendem a apresentá-la em termos largamente
encomiásticos (estamos então no âmbito do topos das laudes Romae, expressão clara,
rasgada e assertiva da superioridade de Roma), ora expressam o profundo desejo de
que a grande Roma não pereça (sob a forma de um votum, prece ou súplica pela
eternidade de Roma).
No capítulo das laudes, o mais antigo elogio de Roma que se conhece pertence
a Políbio, historiador grego do séc. II a.C. e grande amigo da família dos Cipiões.
No início da sua importante obra Histórias (I. 4-6), Políbio não esconde todo o seu
espanto e admiração pela grandeza de Roma:
“O que há de paradoxal nos acontecimentos que escolhemos como tema para
tratar é suficiente para provocar e incitar toda a gente, novos e velhos, a ler o meu
trabalho. Na verdade, quem haverá de tão mesquinho ou frívolo que não queira sa-
ber de que modo e com que espécie de governo é que quase todo o mundo habitado,
conquistado em menos de cinquenta e três anos, caiu sob um poder único, o dos
Romanos? Facto ao qual não se encontram antecedentes. [...]”11
Este passo entronca no conhecido debate em torno das razões do poderio ro-
mano, que oscilaram, desde Políbio, entre dois valores, o da uirtus e o da fortuna.
Fascinado pelo poder romano, o historiador grego entendia que ele se devia a um
conjunto de factores associados não apenas à sorte, mas também às reais capacida-
des dos Romanos.12 Na verdade, e ultrapassadas as dificuldades de crescimento e
afirmação, em luta contra povos fortes como os Etruscos, os Gauleses e acima de
tudo os Cartagineses, os Romanos passaram a ser vistos como um povo superior,
dotado de grandes capacidades de resistência e organização. Acreditou-se que esta-
riam destinados a dominar o mundo, embora se soubesse ou pressentisse que o seu
império haveria de ter um fim.13
Estava lançado o mote da excelência romana. Expressões como maxima rerum,
pulcherrima urbs, fortunatissima são frequentes não apenas no período republicano
(como em Cícero), mas também no tempo de Augusto (Tibulo, Propércio, Ovídio)
e depois em Lucano, Estácio, Sílio Itálico e ainda nos poetas da tarda latinidade.14
Para Cícero, por exemplo, Roma era urbem pulcherrimam florentissimamque (Cat.
11 
Tradução de M. Helena da Rocha Pereira, in Romana. Antologia da Cultura Latina, p. 269. Para dar o devido
realce à supremacia dos Romanos, Políbio compara-os com os Persas, os Lacedemónios e os Macedónios, cujos impérios
sempre foram inferiores no tempo e no espaço.
12 
Veja-se, a este respeito, Jean-Louis Ferrary, Philhellénisme et Impérialisme. Aspects idéologiques de la conquête romai-
ne du monde hellénistique, de la seconde guerre de Macédoine à la guerre contre Mithridate, Paris-Rome, École Française
de Rome, Palais Farnèse, 1988, pp. 265-348.
Políbio sabia que as leis universais que regem os seres (nascimento, crescimento e morte) se aplicavam também a
13 

Roma. Por isso lembra (XXXVII, 22) como Cipião Emiliano chorava perante a destruída (por ele) Cartago, citando as
famosas palavras de Heitor quando se despedia de Andrómaca (Ilíada, VI, 448-449): “Um dia virá em que ela há-de
morrer, a sagrada Ílion, e Príamo e o seu povo…”. Segundo P. Grimal, op. cit., p. 1262, os Romanos tiveram a angústia
do fim do nome romano.
14 
Veja-se Virgilio. Enciclopedia Virgiliana, vol. IV, Roma, 1996, s.u. Roma, cols. 516-556.

272 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

II, 13, 29), “cidade tão bela e florescente”, ou hoc domicilium clarissimi imperii, for-
tunatissimam pulcherrimamque urbem (Cat. III, 1), “sede do mais ilustre império,
esta cidade cheia de opulência e beleza”, enquanto Marcial (10.103.9) considera
pulcherrima e domina a sua amada Roma: moenia dum colimus dominae pulcherrima
Romae (“enquanto eu habito as admiráveis muralhas de Roma imperial”). Quanto à
expressão urbs aeterna (epíteto que surge pela primeira vez em Tibulo) e ao conceito,
os exemplos da sua ocorrência poderiam multiplicar-se,15 embora deva observar-se
que nem todos partilhavam deste sentimento de orgulho pela grandeza e perenida-
de de Roma.16
Mas é no tempo de Augusto que a afirmação de uma confiança inabalável na
majestade e eternidade de Roma surge com a máxima força. A Pax Romana e a
Roma Aeterna constituem então como que um binómio indissociável, assegurado
pela figura do Princeps e pela protecção divina, como se conclui da leitura de Vir-
gílio, Horácio e Propércio, três grandes figuras que, cada um a seu modo, aderiram
(apesar das hesitações) ao programa político de Augusto e à ideologia do seu princi-
pado, ou ainda de Tito Lívio, cuja obra histórica tem sido vista como uma celebra-
ção épica de Roma em prosa. Na verdade, o sentimento de que a cidade de Rómulo
estivera, desde as suas origens, sob uma especial protecção divina está presente em
muitos textos antigos, nomeadamente neste famoso passo do prefácio ao Livro I do
Ab urbe condita, de Tito Lívio:

“Quanto aos acontecimentos anteriores à fundação da cidade ou à própria intenção


de a fundar, que andam adornados mais com ficções poéticas do que transmitidos
por meio de incorruptíveis registos de factos, não é minha intenção nem confirmá-
los, nem refutá-los. Esse é um privilégio concedido aos antigos: que, confundindo as
acções humanas com as divinas, tornem os primórdios das cidades mais augustos. E
se a algum povo deve ser permitido considerar divinas as suas origens, e atribuir aos
deuses a sua autoria, a glória militar do povo romano é tal que, quando afirma que o
seu pai e pai do seu fundador é, de preferência a todos os outros, Marte, os povos do
mundo aceitam isto com tanta serenidade como aceitam o domínio romano.”17

15 
Símbolo de eternidade, a Fénix ornamentava desde Adriano as moedas imperiais. E “Vossa Eternidade” (Aeternitas
Vestra) tornou-se título e vocativo corrente dirigido ao Imperador (vd. Auguste Dupouy, Rome et les Lettres Latines,
Paris, Librairie Armand Colin, 1935, pp. 216-217. É conhecida uma inscrição monetária, dos tempos de Constâncio II
e Constante (c. 348-350), que celebra a renovação dos tempos através da representação de uma fénix radiada e a legenda
Fel(ix) Temp(orum) Reparatio. Uma inscrição dedicatória de uma estátua de Aion em Elêusis diz que o monumento foi
erigido “pelo poder de Roma e a eternidade do Império” (veja-se Luisa Musso, “Governare il tempo naturale. Provedere
alla felicitas terrena. Presiedere l’ordine celeste”, in Serena Ensoli ed Eugenio La Rocca (a cura di), Aurea Roma. Dalla
città pagana alla città Cristiana. Roma, ‘L’Erma’ di Bretschneider, 2000, pp. 373-388, p. 377, nn. 50 e 51).
Interessante, a este título, o artigo de W. V. Harris, “Roma vista desde fuera”, in Semanas de Estudios Romanos, Uni-
16 

versidad de Valparaíso, vol. XI (2002), pp. 51-64, onde se recordam comentários mais ou menos hostis a Roma e ao seu
imperialismo. Do ponto de vista dos povos vencidos, deixou testemunho, por exemplo, Júlio César (De bello Gallico VII,
77, 15-16), que atribui ao chefe gaulês Critognato expressões como – aeterna seruitus e perpetua seruitus – que evocam,
por contraste, a eternidade de Roma (aeterna Vrbs) e do seu poder. O domínio absoluto de Roma pressupõe a submissão
absoluta dos outros.
17 
Tito Lívio, Ab urbe condita, prefácio ao Livro I, §§ 6-8, em tradução de Paulo Farmhouse Alberto.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 273


Virgínia Pereira

Este texto espelha bem a forma como Tito Lívio interpretou, na qualidade de
historiador augustano, a mensagem que o Princeps quis legar à posteridade. Segun-
do lembrou A. Espírito Santo, no século de Augusto, ao ideal estético da sobriedade
e harmonia correspondia, na política, o ideal da ordem e da paz augustana, “que
se alimentava da propaganda de uma Roma nascida à sobra de uma providência
protectora e destinada a permanecer para sempre.”18
Outros historiadores seguiram os passos de Tito Lívio, como o grego filo-ro-
mano Dionísio de Halicarnasso, que foi para Roma em 29 a. C., depois da vitória
de Augusto em Actium, e aí se associou à ideologia do principado. Nas suas Anti-
guidades Romanas não deixará de tentar provar que os primórdios de Roma foram
grandes e gloriosos e que a sua hegemonia foi superior à dos outros povos em im-
portância e duração. São muito sugestivas estas suas palavras (3. 5): “Eu escrevo
sobre uma cidade que é a mais ilustre de todas e sobre factos mais brilhantes do que
quaisquer outros. Não sei que mais hei-de dizer.”
Voltando aos poetas augustanos, é inegável que todos afinaram pelo diapasão
do Princeps. A admiração e confiança de Virgílio na superioridade do estado roma-
no é bem conhecida e está já patente na Buc. I, quando Títiro compara Roma às
outras cidades:

“Vrbem quam dicunt Romam, Meliboee, putaui


Stultus ego huic nostrae similem, quo saepe solemus
Pastores ouium teneros depellere fetus.
Sic canibus catulos similes, sic matribus haedos
Noram, sic paruis componere magna solebam.
Verum haec tantum alias inter caput extulit urbes,
Quantum lenta solent inter uiburna cupressi.” 19

O símile aqui presente, de procedência rural, ilustra na perfeição a medida


do espanto que a Roma cesárea já então produzia no poeta provincial. Mas é na
Eneida – um poema épico cuja acção decorre nos tempos que se seguiram à queda
de Tróia – que a ideia de uma Roma nascitura e eterna emerge de forma constante
e estruturante. Nas suas míticas origens troianas, a cidade de Roma, magnificada
como maxima rerum (VII, 602), é aí celebrada como realização futura de uma
grande ordem universal, sendo essa realização projectada na ainda distante época de
18 
In Rui Manuel Sobral Centeno (Coord.), Civilização Clássica – Roma, Lisboa, Universidade Aberta, 1997, p. 256.
Num outro passo (4.4.4), Tito Lívio referiu-se à cidade como in aeternum urbe condita, in immensum crescente, por outras
palavras, uma cidade sem limites no espaço e no tempo.
19 
Buc. I, vv. 19-25: “A cidade a que chamam Roma, pensei, ó Melibeu / – tolo que eu era! – fosse igual a esta nossa,
onde nós, pastores, / tanta vez levamos as tenras crias, às ovelhas tiradas. / Assim como sabia que os cachorrinhos c’os
cães se parecem, / Co’as mães os cabritos, assim comparava grandes a pequenas coisas. / Mas esta de tal modo entre as
outras cidades ergue a cabeça, / Quanto os ciprestes o fazem entre os flexíveis viburnos.” (tradução de M. Helena da
Rocha Pereira in Romana (Antologia da Cultura Latina), Coimbra, 1996). Desta admiração por Roma ficará claro eco
nas Bucólicas de Calpúrnio Sículo (segunda metade do séc. I d. C.), numa das quais (a Buc. VII) se dá conta do espanto
de um pastor pela grandeza da capital e dos espectáculos que oferece.

274 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

Augusto, isto é, anunciada e antecipada por meio de numerosas visões e profecias.


No centro do poema, e em palavras de claro alcance político atribuídas a Anquises
(VI, 851-853), Virgílio define para sempre o estatuto do Romano como o de um
povo cujo lugar no mundo se deve à sua capacidade de organização e imposição
de vontades (v. 852: pacique imponere morem). Deste modo, ao atribuir a Eneias
(prefiguração de Augusto) a missão de civilizar o mundo, Virgílio, o poeta romano,
contribuiu para reforçar a segurança que em si mesmos e no Princeps tinham os
Romanos.20 A própria ideia de uma cidade que de humildes começos se alcandorou
ao cume do esplendor – um dos temas recorrentes da propaganda de Augusto e da
poesia augustana – contribui igualmente para sustentar o orgulho dos Romanos.21
Virgílio não deixou de o sugerir no canto VIII da Eneida – o poema do Século –
ao conduzir Eneias ao modesto palácio de Evandro. Também Propércio consagra
a Elegia 1 do Livro IV (o livro das chamadas elegias romanas, de teor patriótico) à
maxima Roma (v.1), aos valores e mitos da cidade, começando por contrapor os seus
inícios modestos aos tempos modernos, sumptuosos, augustanos.
Paul Zanker estudou o poder da imagem no tempo e na ideologia de Augusto e
observa que, depois de dez anos de renovação religiosa e moral, se via nos edifícios e
nas imagens que “la confianza en la durabilidad del estado restabelecido y la fe en su
conductor crecían por doquier.”22 Era o início de uma nova era de felicidade – um
sentimento que invadia todas as esferas da vida romana e se manifestava em todas
as acções daquele que ficará na história como o “divino Augusto”.
Tornou-se nesse tempo lugar-comum associar à maxima Vrbs a expressão or-
bis terrarum, traduzindo-se desta forma a identificação das fronteiras do Império
com os limites do mundo conhecido. Assim acontece nas Res Gestae Diui Augusti,
verdadeiro testamento político no qual o Princeps deixa exarado ter submetido o
mundo ao império de Roma.23 E já a sua famosa estátua thoracata, conhecida como
a estátua de Augusto de Prima Porta, datada de cerca de 20 a.C., dera sinal evidente
da submissão dos povos ao império romano-augustano, embora os Romanos sou-
bessem bem que a Oriente os Persas não tinham sido dominados.
Na esteira do Princeps, os poetas da época augustana deram voz à sua confiança
20 
Vd. P. Zanker, Augusto y el poder de la imágenes, Madrid, Alianza Editorial, 1992, p. 231.
Sobre este topos, veja-se, por exemplo, Peter White, Promised Verse (Poets in the Society of Augustan Rome), London,
21 

Massachussetts, Harvard University Press, 1993, pp. 182-190 (“Primeval Rome”).


22 
P. Zanker, op. cit., p. 201.
23 
Veja-se Claude Nicolet, L’Inventaire du monde, Paris, Fayard, 1988, pp. 46-48. Para a compreensão da ideologia de
Augusto é fundamental a leitura das referidas Res Gestae Diui Augusti (“Os Feitos do Divino Augusto”). Este importan-
tíssimo texto, exarado no final de vida, destinava-se a ser gravado em placas de bronze e colocado diante do mausoléu do
Princeps, em Roma, e dele se fizeram cópias levadas para vários pontos do Império. O preâmbulo começa assim: Rerum
gestarum diui Augusti, quibus orbem terrarum imperio populi Romani subiecit, […]. Existe uma importante tradução
integral do texto para português em M. Helena da Rocha Pereira, Romana. Antologia da Cultura Latina. 2000, pp.
109-121. Um comentário aprofundado às Res Gestae bem como o texto latino e tradução encontram-se em P. A. Brunt
and J. M. Moore (edd.), Res Gestae Diui Augusti: The achievements of the Divine Augustus, Oxford, Oxford University
Press, 1967; tradução do texto em francês em R. Étienne, Le siècle d’Auguste, Paris, Armand Colin, 1978; tradução
para italiano e comentário em Giovannella Marrone, Ecumene Augustea, Roma, “L’Erma” di Bretschneider, 1996,
pp. 87-125.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 275


Virgínia Pereira

nas potencialidades de Roma e do Império, acreditando que esse império não teria
fim, como profetizou Júpiter (imperium sine fine dedi) no início da Eneida, e como
decorre de tantas outras expressões dessa confiança infinita. Virgílio, por exemplo,
exprime essa confiança inabalável num passo de uma emoção incontida, o epicédio
a Niso e Euríalo - dois troianos unidos por fortes laços da amizade e caídos em
combate:

Fortunati ambo! Si quid mea carmina possunt,


Nulla dies umquam memori uos eximet aeuo,
Dum domus Aeneae Capitoli immobile saxum
Accolet imperiumque pater Romanus habebit.24

Em comentário ao passo, Jacques Perret observa como o poeta associa a promes-


sa de glória para os jovens à duração de Roma, identificada com o immobile saxum
do Capitólio. E lembra, como não podia deixar de ser, palavras bem conhecidas de
uma das mais famosas odes de Horácio (Od., 3, 30, 8-9): dum Capitolium scandet
cum tacita uirgine pontifex, ‘enquanto ao Capitólio subir, com a virgem silenciosa, o
pontífice’. Num caso como noutro, a duração da glória é vista como eterna, porque
se acreditava plenamente na eternidade de Roma, simbolizada pelo pontífice e pela
vestal percorrendo a uia sacra.
Também Ovídio, apesar de relegado pelo Princeps, declara, no último livro das
Metamorfoses (vv. 807-815), que o futuro de Roma está assegurado porque está escri-
to em letras de diamante numa tábua de bronze, ao mesmo tempo que, nos versos
que encerram o poema (vv. 871-879), afirma a indestrutibilidade do seu nome e da
sua fama: per omnia saecula fama[…] uiuam (vv. 878-879) – ‘por todos os séculos,
famoso, viverei’.25
Mas a época de ouro do século de Augusto teria o seu fim. Como escreveu A.
Espírito Santo, com o desaparecimento dos grandes vultos que marcaram o século,
assistir-se-á a uma inversão total da ideologia augustana, ao mesmo tempo que sur-
gem novas formas de ver o mundo e a história. Disso é exemplo Pompeio Trogo,
autor de uma história universal em 44 livros, que “apresenta uma visão da história
em que Roma não passa de uma simples potência igual às outras e como elas desti-
nada ao desaparecimento. Era o ataque da província (Trogo era natural da Gália) ao
centralismo romano e ao mito providencialista das origens.”26 Disso é igualmente
exemplo Lucano, que, no livro IX do seu Bellum Ciuile, a respeito da visita de César
a Tróia, retoma o topos da contemplação de ruínas de cidades que outrora foram

Aen., IX, 446-449: “Afortunados um e outro! Se algum poder têm os meus cantos, / nenhum dia vos verá sair da
24 

memória dos tempos, / enquanto a casa de Eneias se apoiar sobre o rochedo imóvel do Capitólio / e o senhor romano
conservar o império.”
25 
Sobre esta matéria, leia-se Don Fowler, Roman Constructions. Reading in Postmodern Latin, cap. 9 (“The Ruin of
Time: Monuments and Survival at Rome”), Oxford University Press, 2000.
26 
Arnaldo Espírito Santo, in R. M. Sobral Centeno (Coord.), Civilização Clássica – Roma, p. 256.

276 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

florescentes, o que pode ser, e tem sido, entendido como um sinal e um aviso de que
o mesmo poderia acontecer a Roma.27
Com a chegada do século II d.C., que representa a época de ouro do Impé-
rio, voltam a surgir manifestações admirativas relativamente ao mundo romano.
O retor Élio Aristides (c.117 - c.181), por exemplo, compôs, talvez por ocasião da
celebração dos novecentos anos da fundação da cidade, em 147 d.C., um Elogio de
Roma, um discurso panegírico no qual escreveu, a dado passo:

“Graças a vós, Romanos, o mundo tornou-se a pátria comum de todos os


homens. (...) Vocês lançaram pontes sobre os rios, abriram caminhos pelas
colinas das montanhas, povoaram lugares solitários (...) e fizeram reinar por
toda a parte a ordem e a lei.”28

Roma é, para Aristides, incomparável. Este retor grego tinha a convicção de que
o Império Romano não era apenas superior aos seus predecessores – em extensão,
duração e organização – mas era o resultado da obra dos outros, que prepararam a
sua grandeza. Defensor de uma concepção teleológica do destino romano, Aristides
estava também convicto de que vivia na época melhor e mais civilizada de sempre. 29
Comungava, além disso, do dogma oficial da eternidade de Roma, como se deduz
do modo como encerra o Elogio de Roma, nos §§ 108-109. Em palavras que contêm
todos os ingredientes próprios do encómio, designadamente na associação do ady-
naton à prece, diz Aristides:

“Mas este feito empreendido desde o início, o de igualar o discurso à grande-


za do Império, ultrapassa tudo o mais e necessita quase de um tempo igual
ao da duração do Império – isto é, provavelmente, a eternidade. Por isso o
melhor será, a exemplo dos poetas de ditirambos e de péans, concluir o meu
propósito acrescentando uma oração. (109) Que sejam invocados todos os
deuses e os filhos dos deuses, e que concedam a este império e a esta cidade
que permaneçam eternamente florescentes e que não tenham fim antes que
as massas de ferro flutuem à superfície do mar e que as árvores deixem de

27 
Veja-se o interessante artigo de Philip Hardie, “Augustan Poets and the Mutability of Rome”, que lembra que
Lucano não foi o primeiro romano a tomar consciência do facto. Já em 146 a. C. Cipião Emiliano, vendo Cartago
destruída, “was prompted to muse on the mutability of Fortune and to wonder what the future might hold for Rome”
(op. cit., p. 59-60).
28 
Elogio de Roma, § 101 (cit. de Marie-Madeleine Martin, Le Latin Immortel, Vouillé, Diffusion de la Pensée
Française, 1971, p. 25).
29 
O Elogio de Roma, de Élio Aristides, é considerado um dos primeiros elogios da civilização, que é obra e cimento
do Império romano (Alain Michel, La philosopfie politique à Rome d’Auguste à Marc Aurèle, Paris, Armand Colin,
1969, p. 338, n. 16). M. Rostovtzeff considera este discurso como “a melhor descrição, mais detalhada e completa que
possuímos sobre o império romano no século II. Não se trata apenas de um testemunho de admiração sincera perante a
agudeza de Roma, mas também de uma magistral análise política, tão rico em ideias como solidamente fundamentado”
(cit. de Alejandro Bancalari Molina, “Antonino Pio y la Paz Romana: algunos alcances y propuestas”, in Semanas
de Estúdios Romanos, vol. XI (2002), p. 94).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 277


Virgínia Pereira

florir na primavera.”30

Entretanto, sobreveio a crise do século III. As dificuldades enfrentadas por


Roma foram incalculáveis, tudo parecia desabar. Apesar disso, e quase inexplica-
velmente, o século IV – um século de transição entre o velho e o novo mundo –
voltará a dar sinais de renovação de confiança nos destinos de Roma, como vemos
na obra de Amiano Marcelino, o último grande historiador de Roma (séc. IV).31
O tema da sua obra historiográfica é a história do Império romano visto como um
estado universal (pois compreendia a maior parte do mundo conhecido) e eterno,
que resultava de um pacto firmado para esse fim, não tinha dúvidas, entre Virtus
e Fortuna.32 Assim se compreende que o historiador ainda tenha retratatado com
entusiasmo – um entusiasmo de pagão – a Roma monumental e os ornamentos da
cidade eterna, ao descrever a entrada de Constâncio II (imperador do Oriente de
337 a 361) na cidade, no ano de 356.33
Filho de outro imperador – o famoso Constantino –, Constâncio II ficou as-
sombrado com a grandiosidade monumental da cidade, quando lá entrou pela pri-
meira vez. Relatando o facto, Amiano Marcelino tece um verdadeiro encómio da
Cidade Eterna do ponto de vista monumental, através do elenco, verdadeiramen-
te impressionante, de alguns dos monumentos que ficaram célebres para sempre,
como o famoso e colossal Coliseu de Roma (o Anfiteatro Flávio), o Panteão, o teatro
de Pompeio, o Estádio, as Termas.34 Este assombro, contudo, é também do próprio
30 
Éloges grecs de Rome, §§ 108-109, p. 119. Em comentário a este texto, Pernot esclarece, na nota 229, que se trata de
dois adynata célebres, um referido em Heródoto (I, 165), outro num texto da Antologia Palatina (VII, 153). Num outro
passo (XXVI, 29), Aristides celebra a unidade do Império: “Assim, toda a ecoumene unida canta com maior perfeição
que um coro, pedindo conjuntamente que este império perdure por toda a eternidade.”
31 
Natural de Antioquia, na Síria, Amiano Marcelino (c. 330 – c. 400) veio para Roma e aí começou a escrever a sua obra
historiográfica, os Rerum Gestarum Libri XXXI (de que se perderam os treze primeiros livros), que abarcam o período
que vai desde o principado de Nerva, em 96, até à morte do imperador Valente em 378, em Adrianópolis. Pagão con-
victo, o autor prestou particular atenção ao reinado de Juliano, o Apóstata, pelo facto de com ele se assistir a um breve
retomar do paganismo e a uma momentânea interrupção do avanço triunfal do Cristianismo. Na opinião de Santo
Mazzarino, O fim do mundo clássico, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1991, p. 58, a obra de Amiano é
“o livro de história mais insigne e ponderado que o baixo império produziu”; Amiano atribuía a origem da decadência
romana à “burocratização excessiva” e à “opressão tributária”.
32 
A. Marcellinus, XIV, 6, 3. Sobre o pensamento de Amiano Marcelino a respeito da eternidade de Roma, veja-se
Ronald Mellor, The Roman Historians, Routledge, 1999, pp. 118-126. Sobre o pensamento de Marcelino veja-se
Lellia Cracco Ruggini, “Ammiano Marcellino: un intellettuale Greco di fronte all’Impero e alla sua capitale”, in
Cultura latina pagana (fra terzo e quinto secolo dopo Cristo), Firenze, Leo S. Olschki, 1998, pp. 221-227.
33 
A. Marcellinus, Historia, XVI, X, 14: Deinde intra septem montium culmina, per accliuitates planitiemque posita urbis
membra conlustrans et suburbana, quicquid uiderat primum, id eminere inter alia cuncta sperabat: Iouis Tarpei delubra,
quantum terrenis diuina praecellunt; lauacra in modum prouinciarum exstructa; amphitheatri molem solidatam lapidis Ti-
burtini compage, ad cuius summitatem aegre uisio humana conscendit; Pantheon uelut regionem teretem speciosa celsitudine
fornicatam, elatosque uertices qui scansili suggestu consurgunt, priorum principum imitamenta portantes, et Vrbis templum
forumque Pacis, et Pompei theatrum et Odeum et Stadium, aliaque inter haec decora Vrbis aeternae. Este sentimento de
assombro é semelhante ao que sentia o mais comum dos mortais quando de longes paragens vinha à capital do Império,
e não anda longe do que sentiu o pastor Títiro quando comparou Roma com a sua terra natal. Roma era grande não
apenas pela monumentalidade das suas construções arquitectónicas, mas também pela magnificência dos espectáculos
que oferecia. Lembre-se Marcial e a arena que se transformou em lago, no Liber Spectaculorum, 27.
34 
Elaborado já nos finais do século IV, este passo, que celebra a monumentalidade de Roma, coaduna-se mal com a

278 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

historiador, para quem Roma era a Vrbs aeterna, uma urbs sacratissima, um templum
totius mundi e caput mundi. E a confiança de Amiano na perenidade de Roma era
a tal ponto inabalável que, nas suas palavras, (XIV, 6, § 3), Roma viveria enquan-
to houvesse homens: uictura dum erunt homines Roma. Mas – como adverte Italo
Lana – o historiador falava com o coração, e a sua visão da história revela-se trágica,
pois resulta da contradição “entre a fé do historiador na eternidade de Roma e a
realidade evenemencial que vê uma decadência progressiva e instancável do Império
submetido aos assaltos dos bárbaros”.35 Por esta altura, Libânio, um retor grego de
Antioquia, orgulhoso do seu passado e da sua alta cultura grega, lembrava como a
sua cidade e muitas outras cidades gregas viviam cingidas, cercadas pela “cadeia de
ouro dos Romanos”.36
Por fim, também Claudiano – “o último poeta clássico latino”, que nasceu por
volta de 370, quando as pressões dos Hunos sobre as fronteiras se faziam sentir e
obrigavam Alanos, Ostrogodos e Visigodos a lançar-se contra Roma –, compôs em
400 o De consulatu Stilichonis, um poema panegírico a celebrar o ano do consu-
lado do grande general Estilicão, “seu principal patrono e herói máximo dos seus
poemas”.37 Nele faz um extraordinário elogio de Roma (III, 130-173), no qual louva
a extensão ilimitada do Império e a ausência de fronteiras – quod cuncti gens una
sumus, nec terminus unquam / Romanae ditionis erit (vv. 159-160) –, bem como a
organização e a força civilizadora das leis.
A par do encómio da grandeza de Roma, surge – como já foi dito – a formula-
ção de uma prece pelo seu futuro, que se deseja eterno. Confiantes na grandeza da
cidade, que acreditavam gozar da protecção dos deuses, os Romanos formulavam
preces no sentido de que para sempre Roma continuasse a gozar dessa providência
divina. Um exemplo absolutamente paradigmático desta atitude é o de Horácio
quando, associando-se ao sentimento geral de que uma nova era de felicidade che-
gou, se dispõe a celebrar no Carmen Saeculare (‘Canto Secular’), vv. 9-12, em regis-
to hímnico, a cidade de Roma:

Alme sol, curru nitido qui diem


opinião de quem fala da decadência de Roma, pois é difícil perceber como um imperador do Oriente fica impressionado
com tanta grandeza na capital do Ocidente. Mas há que ter em conta que estamos perante elogios de um pagão que
assim pretende obnubilar os efeitos destruidores do avanço do Cristianismo.
35 
Italo Lana, “La vision tragique de l´histoire chex Ammien Marcellin”, in M.-H.Garelli-François (éd.), Rome et
le tragique, Palla, Revue d’Études Antiques, Presses Universitaires du Mirail, 1998, pp. 237-245, p. 237. E o mesmo
autor lembra o passo de Amiano (XIV,6) no qual, ao falar da velhice de Roma, refere como esta dominou todo o mundo
e, deixando as guerras, é na sua velhice venerada e respeitada como soberana e rainha: per omnes tamen quot orae sunt
partesque terrarum, ut domina suscipitur et regina, et ubique patrum reuerenda cum auctoritate canities, populique Romani
nomen circunspectum et uerecundum. Mas a verdade é que, ainda segundo Italo Lana (p. 238), “Ce tableau idyllique
et serein de la situation contemporaine de Rome est très artificiel et ne correspond pás à la vérité”, pois o papel político
de Roma acabara.
36 
Libanius, Or. XI, 129F (cit. de A. López Eire, Semblanza de Libanio, México, Universidad Nacional Autónoma de
México, Instituto de Investigaciones Filológicas, 1996, pp. 16-17).
37 
Veja-se Claudiano, O rapto de Prosérpina. Introdução, tradução e notas de Luís Cerqueira. Lisboa, Editorial Inqué-
rito, 1991, pp. 8-9.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 279


Virgínia Pereira

promis et celas aliusque et idem


nasceris, possis nihil Roma
uisere maius! 38

Mas Horácio não era o único a colocar Roma e a sua perenidade sob o olhar
dos deuses. O motivo convertera-se em topos da poesia augustana e assim o vemos
tratado também por Propércio, que conclui a sua elegia IV, 2 com uma significativa
prece por parte do deus Vertumnus (deus das mudanças…) a Júpiter (vv. 55-56): sed
facias, diuum sator, ut Romana per aeuum / transeat ante meos turba togata pedes, isto
é: “Ó Pai dos Deuses, possas tu fazer que eternamente o povo / togado de Roma vá
sempre passando aqui aos meus pés.”39 Per aeuum, eis aion, até à eternidade.40
Tal como sucede aqui, este voto ocorre, geralmente, a concluir uma obra de to-
ada panegírica ou similar, ao estilo das preces dirigidas às divindades protectoras do
estado romano. O Panegírico de Plínio-o-Moço tornar-se-á, a este título, um exem-
plo clássico ao invocar, in fine orationis, os deuses protectores do império.41 Mas
já um século antes, nas Metamorfoses de Ovídio – a última obra composta antes
da relegatio (8 d.C.) –, exactamente antes do epílogo, surge uma grande invocação
aos deuses protectores de Roma (Penates, Quirino, pai de Roma, Gradivo, seu pai,
Febo e Vesta e Júpiter, e a todos os demais deuses), a pedir “que tarde a surgir, que
surja quando [o poeta] já tiver morrido, o dia em que Augusto, depois de abandonar
o mundo que governa, possa aceder ao céu e atender de longe as preces dos seus
súbditos.”42 Pouco tempo depois, também o historiador Veleio Patérculo, que consi-
derava o principado como um felicissimus status, conclui a sua obra formulando um
uotum aos deuses: que ao imperador vigente suceda, o mais tarde possível, alguém
com capacidade para sustentar o poderio romano. Eis o seu uotum:

“Sol vivificador, que no teu carro brilhante / fazes nascer e fechas o dia, que renasces sempre diferente / e o mesmo,
38 

possas tu não contemplar nada de mais magnífico / do que esta cidade de Roma!” Como uma prece, os versos contêm o
vocativo da divindade invocada e o conjuntivo precativo possis; quanto ao elogio de Roma, ele é dado pela força totali-
zante de nihil e o poder magnificador da forma comparativa maius.
39 
Propércio, Elegias, IV; tradução de J. A. Segurado Campos. Philip Hardie, op.cit. p. 75, comenta assim o passo:
“the pax Romana of an urbs aeterna”.
40 
Na opinião de Luisa Musso (op. cit., pp. 377-378), a eternidade do império (Roma aeterna) coincide com a eternidade
dos imperadores e é promessa de imortalidade. E a mesma autora acrescenta: “Al concetto di eternità si lega l’aspettativa
di renouatio e, ad essa, il mito dell’aurea aetas e della temporum felicitas. L’individuazione della radice di aion nel latino
iuuenis costituisce un’ulteriore prova dell’incidenza dell’idea di rinnovamento perpetuo nella definizione del tempo
eterno.” Percebe-se que, na mente dos Romanos, a ideia de uma Roma aeterna vai de par com a ideia de pax aeterna e
de pax ubique, uma espécie de slogan que, com maior incidência no século III d. C., circulará em muitas moedas. Sobre
esta matéria será da maior utilidade ler Robert Étienne, “Aeternitas Augusti – Aeternitas Imperii”, 1984 (artigo que
não foi possível consultar).
41 
Plinius, Pan., XCIV: In fine orationis praesides custodesque imperii deos, ego consul pro rebus humanis, ac te praecipue,
Capitoline Iuppiter precor, ut beneficiis tuis faueas, tantisque addas muneribus perpetuitatem. […] Non te distringimus uotis.
Non enim pacem, non concordiam, non securitatem, non opes oramus, non honores: simplex cunctaque ista complexum unum
omnium uotum est, salus principis. […]. Este voto termina pedindo que o Imperador (Trajano) tenha muito tempo de
vida e que, quando tiver de ser substituído, o sucessor seja digno de o substituir e de ocupar o Capitólio.
42 
Ovidius, Met. XV, 868-870: tarda sit illa dies et nostro serior aeuo, / qua caput Augustum, quem temperat, orbe relicto,
/ accedat caelo faueatque precantibus absens!

280 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

“Cumpre-me concluir esta obra com um voto. Júpiter Capitolino, e tu, Mar-
te Gradivo, fundador e sustentáculo do nome romano, e tu, Vesta, guardiã
do fogo perpétuo, e vós, divindades todas que elevastes o poder do Império
Romano ao mais alto cume do mundo, em nome de todos eu vos imploro e
suplico: guardai, conservai, protegei este regime, esta paz, <este príncipe>,
e, quando ele tiver cumprido, durante um enorme espaço de tempo, o seu
posto aqui na terra, destinai-lhe, o mais tarde possível, sucessores, mas su-
cessores tais que os seus ombros consigam aguentar o peso do império do
mundo com a enorme força com que, como sentimos, aguentou o presente,
e que os projectos de todos os cidadãos, ou piedosos ...”43

Com este uotum termina, de forma incompleta (faltarão talvez as últimas pala-
vras), a História Romana de Veleio Patérculo, concluída pelos anos 30 ou 31, quando
o princeps reinante era o imperador Tibério.44 Júpiter Capitolino, o pai dos deuses,
Marte (Gradivo), deus fundador (por ser pai de Rómulo) e sustentáculo do império,
e Vesta, símbolo da eternidade de Roma, e todos os numes, sem excepção, todos são
convocados para protegerem o imperador e o império. Este uotum final compartilha
claramente da técnica do panegírico, mas será de igual modo um equivalente, no
dizer de Joseph Hellegouarc’h, dos uota imperiais habituais em tempos de crise –
uma espécie de God save the King (ou the Queen) dos tempos antigos... Na verdade,
o texto do uotum é significativo a vários títulos, quer por encerrar a obra, quer pela
importância do hipotexto virgiliano para que remete e que celebra igualmente a
grandeza do Império, quer pela funda ressonância religiosa e política das suas pa-
lavras. Romani imperii molem... São palavras que fazem lembrar Virgílio, no início
da Eneida, quando alude ao imenso esforço que foi necessário fazer para erguer o
poderoso império romano.45 É ainda o peso simbólico de termos como auctor (da
família etimológica de Augustus: ‘aquele que faz crescer’, ‘aquele que é propício’),
stator (‘aquele que mantém estável’, ‘sustentáculo’, ‘fundador’) e custos (‘guarda’,
‘protector).46 O comentário de Ronald Syme a este respeito é muito significativo:
43 
Velleius Paterculus, Histoire Romaine, tome II, livre II, cap. CXXXI: Voto finiendum uolumen sit. Iuppiter Capi-
toline, et auctor ac stator Romani nominis Gradiue Mars, perpetuorumque custos Vesta ignium et quidquid numinum hanc
Romani imperii molem in amplissimum terrarum orbis fastigium extulit, uos publica uoce obtestor atque precor: custodite,
seruate, protegite hunc statum, hanc pacem, <hunc principem> eique functo longissima statione mortali destinate successores
quam serissimos, sed eos quorum ceruices tam fortiter sustinendo terrarum orbis imperio sufficiant quam huius suffecisse sensi-
mus, consiliaque omnium ciuium aut pia.... Note-se como, por razões de escrúpulo religioso, a invocação a Júpiter, Marte
e Vesta é seguida de um indefinido totalizante, quidquid numinum (isto é, “todas as divindades”, sem excepção). Esta é
bem a expressão de um receio ancestral, de fundo supersticioso e tipicamente romano: o medo de que o orante se possa
ter esquecido de uma qualquer divindade, por mais insignificante que fosse.
44 
Natural da Campânia, V. Paterculus nasceu c. 19 a. C. e terá morrido em 31 d. C. Deixou uma Historia Romana
em dois livros, que começava com as origens míticas de Roma e terminava com a morte de Lívia, mãe de Tibério, no
ano 29.
45 
Aen. 1.33: Tantae molis erat Romanam condere gentem.
46 
Neste uotum note-se ainda a forma extulit (de ecfero, effero, ‘elevar acima de’, ‘erguer’), que não deixa de evocar o
extulit que figura no v. 24 da Buc. I de Virgílio – um verso de exaltação de Roma.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 281


Virgínia Pereira

“A concórdia e a monarquia, a Pax e o Princeps eram tão inseparáveis na realidade


como na esperança e na prece”.47

3. A decadência e as ruínas de Roma


Mas os tempos foram mudando e sobreveio a grande crise do séc. III, que fez
perigar a solidez do Império. O mundo romano tornara-se uma “extensa teia de
aranha cujos fios são as calçadas que de Roma conduzem aos mais longínquos
pontos do novo mapa do Império”, o que fez com que começasse a ser difícil suster
a pressão constante dos bárbaros e provocou a chamada “revolução militar”, que,
em conjunto com as revoltas de cidadãos que se insurgiam contra o insustentável e
frequente aumento de impostos e o alargamento do fosso entre as classes possiden-
tes e os deserdados da sorte, tornaram a situação muito insegura.48 Os tempos de
Diocleciano e da Tetrarquia tinham trazido uma relativa estabilidade económica e
paz social, mas externamente as fronteiras militares eram vítimas de um progressivo
enfraquecimento. A unidade imperial é renovada nos tempos de Constantino, mas
a instabilidade regressa, os Visigodos passam o Danúbio, aniquilam as divisões
orientais do Império e assassinam o comandante em chefe, o imperador Valente, na
decisiva batalha de Adrianópolis, em 378. Este desastre foi sentido pelos contempo-
râneos como o anúncio ou prenúncio do fim do Império.49 Já nos finais do século
IV, em 395, Teodósio divide o Império pelos filhos Arcádio e Honório, antecipando
o seu irremediável desmembramento.
Perante um mundo que parece ruir, é estranho que se não tenha deixado de
ouvir a voz dos poetas em louvor da cidade de Roma. É todavia o que acontece.
No seu catálogo e elogio das cidades mais importantes do Império Romano (Ordo
Vrbium Nobilium), Ausónio, poeta gaulês natural de Burdígala (Bordéus) – o mais
conhecido dos poetas da segunda metade do séc. IV –, refere-se a Roma nos seguin-
tes termos, simultaneamente tão simples e tão pregnantes:

Roma
Prima urbes inter, diuum domus, aurea Roma.
(“Roma, primeira entre as cidades, morada dos deuses, áurea Roma”)

Um nome e um único verso – emblemático verso, como disse Giancarlo Ma-


zzoli50 - permitiram a Ausónio celebrar a mais importante das cidades de então. Um
só hexâmetro dactílico bastou ao poeta para afirmar a grandiosidade de Roma. E
47 
Ronald Syme, La révolution romaine, Paris, Éditions Gallimard, 1967, p. 493.
48 
Vd. López Eire, Semblanza de Libanio, opus cit p. 148.
49 
López Eire, op. cit., p. 27, n. 49; vd. também A. Piganiol, Histoire de Rome, pp. 488-489.
50 
Giancarlo Mazzoli, “Ausonio e Roma”, in Cultura latina Pagana, opus cit pp. 77-91, opus cit p. 83. Trata-se de
um único verso, mas um verso que se contrapõe aos 41 versos dedicados a Burdigala, e nos quais Ausónio diz a dado
passo: Diligo Burdigalam, Romam colo. Ciuis in hac sum, / consul in ambabus: cunae hic, ibi sella curulis. A tradução e
um comentário a este opúsculo e ao seu verso inicial podem ver-se em Alvar Esquerra, Décimo Ausonio, Obra, vol.
II, pp. 119-135.

282 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

no entanto era já um tempo de declínio. Por isso F. Peschoud, no seu livro Roma
Aeterna, tecerá críticas a Ausónio, acusando-o de ter atravessado o seu século como
um cego: não viu o perigo bárbaro, nem o conflito entre pagãos e cristãos, nem a
luta contra a heresia, nem a destruição do poder papal, apesar de Graciano ter sido
assassinado quase debaixo dos seus olhos (em 383).51
Mas o caso mais flagrante de elogio da Urbe surge já depois do saque de Roma
e procede de Rutílio Namaciano, indefectível admirador da grandeza da cidade. De
origem galo-romana, veio a dada altura para Roma (quando seu pai era governador
da Etrúria) e aí fez carreira, sendo nomeado prefeito da Vrbs em 414. Três anos mais
tarde regressa à Gália e, provavelmente durante a viagem, escreveu um poema inti-
tulado De reditu suo, no qual descreve a viagem desde Roma até Luna. Composto
em 417 d.C., o poema ficou inacabado. Nele o poeta, que sofre com a visão das
ruínas que se lhe deparam na sua viagem, deixa bem expressa a sua profunda admi-
ração por Roma, mesmo depois de a ter visto saqueada pelas hordas de Alarico, em
410. Admira a grandeza da cidade e acredita no seu renascimento, convicto de que
viverá eternamente.52 Apesar de bem conhecidos os versos em que, através de uma
apóstrofe sumamente laudatória, Rutílio Namaciano continua a celebrar a grandeza
da rainha do mundo, vale a pena lembrá-los:

“Escuta, ó belíssima rainha do mundo que é teu,


Roma, recebida entre as esferas celestes!
Escuta, mãe dos homens e mãe dos deuses;
graças aos teus templos, estamos menos longe do céu! 50
A ti cantamos e sempre te cantaremos, enquanto os destinos no-lo permitirem.
Ninguém pode estar vivo e esquecer-se de ti!
Mais depressa criminosos esquecimentos reduzirão o sol a escombros
do que se desvanecerá do meu coração a tua imagem.
(...)
Tu formaste para as nações mais diversas uma mesma pátria.
Aos povos sem lei que tu conquistaste foi benéfico estarem sob o teu domínio.
Oferecendo aos vencidos a partilha das tuas próprias leis, 65
fizeste uma cidade do que outrora era o mundo.53

51 
F. Peschoud, Roma Aeterna. Études sur le patriotism romain dans l’occident latin à l’ époque des grandes invasions,
Neuchâtel, Institut Suisse de Rome, 1967, p. 130 (informação colhida em Giancarlo Mazzoli, art. cit., pp. 77-91,
p. 81).
52 
Vide Enzo Marmorale, História da Literatura Latina, II, Lisboa, Estúdio Cor, 1974, p. 121. Pela mesma altura (c.
417), Paulo Orósio escreveu uma História Universal para explicar que o Império era castigado pelos seus vícios.
53 
Rutílio Namaciano, Sobre o seu regresso, I, 47-54 e 63-66: Exaudi, regina tui pulcherrima mundi, /inter sidereos Roma
recepta polos! Exaudi, genitrix hominum genitrixque deorum, / non procul a caelo per tua templa sumus./ Te canimus semper-
que, sinent dum fata, canemus: / sospes nemo potest immemor esse tui. / Obruerint citius scelerata obliuia solem / quam tuus ex
nostro corde recedat honos. (...) Fecisti patriam diuersis gentibus unam; / profuit iniustis te dominante capi. / Dumque offers
uictis proprii consortia iuris, / urbem fecisti quod prius orbis erat. Note-se o recurso expressivo ao adynaton nos vv. 53-54,
relativo à absoluta impossibilidade de o poeta um dia esquecer Roma. Este adynaton não pode deixar de evocar aquele
que Títiro utilizara na Buc. I de Virgílio, quando se referia à impossíbilidade de esquecer algum dia o seu benfeitor,

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 283


Virgínia Pereira

O mundo mudara muito, por efeito da já referida “crise do século III” e de


uma paulatina desregulação da vida política, económica, social, militar, religiosa. A
expansão do cristianismo contribuíra fortemente para a nova situação. Como seria
possível continuar a acreditar no mito da eternidade de Roma?
Conforme tem sido notado, o Contra Symachum de Prudêncio, datável de 402 –
um poema que ataca a pretensão de Símaco de voltar a colocar o altar da Victoria no
Senado e de voltar a celebrar o culto pagão – retoma o mito augustano e virgiliano
da Roma aeterna, mas este é agora assumido numa perspectiva cristã. Na sua visão,
já não é Júpiter, mas Teodósio que, convertendo Roma ao Cristianismo, nec metas
statuit nec tempora ponit,/ imperium sine fine docet (vv. 1. 541-542). E é o Cristianis-
mo que vai assegurar a eternidade da cidade. “Para Prudêncio, como para Teodósio,
o mito clássico da Roma aeterna torna-se realidade graças ao Cristianismo.54 É a
famosa translatio imperii.
Poucos anos mais tarde, ouvir-se-á a voz incrédula de uma das figuras mais im-
portantes do século V, S. Jerónimo (c. 345-419), horrorizado com o que se passa:

“O espírito fica horrorizado ao ver as ruínas dos tempos presentes. Há vinte


ou mais anos que o sangue romano é derramado diariamente entre Cons-
tantinopla e os Alpes Júlios. A Cítia, a Trácia, a Macedónia, a Dardânia, a
Dácia, a Tessália, a Acaia, o Epiro, a Dalmácia e as Panónias, devastam-nas,
exploram-nas, roubam-nas o Godo, o Sármata, o Quado, o Alano, os Hu-
nos, os Vândalos, os Marcomanos [...]. O orbe romano está a ruir […]”.55

É a visão catastrofista de uma Roma em decadência e constantemente atacada


por povos bárbaros. A obra de S. Jerónimo está cheia de reflexões e meditações sobre
esse acontecimento tão espantoso quão inesperado que foi o ataque das hordas de
povos bárbaros a Roma (e ao Império romano), motivadas em especial pelo saque
de Roma perpetrado pelas tropas de Alarico em 24 de Agosto de 410. Os bárbaros
estiveram na cidade apenas três dias.56 Mas... sucedera o que parecia impossível e,
de então em diante, já não era possível estar seguro de nada. Daí as perguntas e as
exclamações de espanto e incredulidade. No seu comentário a Ezequiel (ao prólogo
do livro III), São Jerónimo exclama: Quis crederet ut totius orbis exstructa uictoriis

aquele que lhe permitira que conservasse as suas terras, um “deus” (isto é, Octávio, na linguagem cifrada do poeta).
54 
Veja-se Prudence, Psychomachie, Contre Summache, Paris, Les Belles Lettres, 1992, pp. 96-97.
S. Hieronymus, Epist. Ad Heliodorum, LX, 16: Horret animus temporum nostrorum ruinas persequi. Viginti et eo
55 

amplius anni sunt, quod inter Constantinopolim et Alpes Iulias cotidie Romanus sanguis effunditur. Scythiam, Thraciam,
Macedoniam, Dardaniam, Daciam, Thessaliam, Achaiam, Epiros, Dalmatiam, cunctasque Pannonias Gothus, Sarmata,
Quadus, Alanus, Hunni, Wandali, Marcommani uastant, trahunt, rapiunt. [...] Romanus orbis ruit […]. As referências
geográficas deste texto dizem respeito aos países e regiões do norte e oriente do Império Romano, então as mais amea-
çadas pelas investidas dos povos bárbaros.
56 
Veja-se referência a estes tempos conturbados e ao saque de Roma em Orósio, História Apologética (o livro 7 das His-
tórias contra os Pagãos e outros textos), edição de Paulo Famhouse Alberto e de Rodrigo Furtado, Lisboa, Edições
Colibri, 2000, pp. 11-13 (da Introdução) e §§ 39-40.

284 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A Perenidade de Roma: Luzes e Sombras

Roma corrueret? (‘Quem poderia crer que Roma, vitoriosa no orbe inteiro, desa-
basse?’) E numa carta (Epist. 123, 16) comenta o estado de decadência da cidade
eterna, ao mesmo tempo que se interroga, dando sinal de uma enorme inquietude:
Quid saluum est, si Roma perit? Como se se interrogasse: Como será o mundo depois
da queda de Roma?
Recordemos o passo:

“Há já algum tempo, do mar do Ponto até aos Alpes Júlios, que não eram
nossas as terras que são nossas e há trinta anos que se combatia no centro das
regiões do império […]. Quem teria acreditado que Roma teria de combater
no seu interior não pela glória mas pela sua segurança; mais do que isso, que
teria não de lutar, mas sim de resgatar a sua própria vida com o ouro e todos
os seus bens. Agora, admitindo que tudo acabe em bem, não temos nada a
tirar aos inimigos a não ser os bens que perdemos. Um apaixonado poeta,
falando do poder de Roma, diz: ‘Que é que te basta, se Roma é pouco?’
Podemos transformá-lo neste outro elogio: ‘Que é que se salva, se Roma
perece?’.”57

Esta pergunta, que indubitavelmente deixa transparecer uma grande angústia


quanto ao futuro – e que ainda hoje nos faz reflectir –, é retomada muitos anos mais
tarde, em plena Idade Média, veiculada através de uma frase-sentença que corria
como sendo de Beda, o Venerável, e dizia o seguinte:

“Enquanto o Coliseu permanecer de pé, Roma continuará a existir. Quando


o Coliseu cair, Roma cairá também. Quando Roma cair, cairá o mundo.”58

S. Jerónimo interrogava-se sobre a sobrevivência do mundo após a queda de


Roma. Este anónimo medieval continuava a acreditar que a perenidade do mundo
estava ligada à perenidade de Roma.
Já no séc. XV, em consequência do movimento de renovação dos estudos e do
interesse pela Antiguidade Clássica, Poggio lamentará (no De uarietate Fortunae,
livro I) a grandeza perdida de Roma, nos seguintes termos:

57 
S. Ieronymus, Epist., 123, 15-16. Olim a mari Pontico ad Alpes Iulias non erant nostra quae nostra sunt et per annos
triginta, fracto Danubii limite, in mediis Romani imperii regionibus pugnabatur. Quis hoc crederet […] Romam in gremio
suo, non pro gloria sed pro salute pugnare; immo, ne pugnare quidem, sed auro et suppellettile uitam redimere? Nunc, ut pros-
pero fine eueniant, praeter nostra quae amisimus, non habemus quid uictis hostibus auferamus. Potentiam Romanae Vrbis
ardens poeta describens, ait: Quid satis est si Roma parum est? Quod nos alio mutemus elogio: Quid saluum est si Roma perit?
Séculos antes, Tácito (Historiae, IV, 74) atribuira a Petilius Cerialis, comandante de tropas, palavras que admitiam
a eventualidade da destruição do Império: “Com efeito - praza aos deuses que não! -, se os Romanos são expulsos [da
Gália], que acontecerá se não uma guerra universal?”
58 
Nicholes Purcell, “La ciudad de Roma”, in Richard Jenkins (ed.), El Legado de Roma, Barcelona, 1995, p. 379.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 285


Virgínia Pereira

“É um pensamento solene, para meditar com assombro, que esta colina, o


Capitólio, que outrora foi cabeça do império romano, a cidadela do mundo,
diante da qual todos os reis e príncipes tremiam, à qual tantos generais subi-
ram em triunfo (...), esteja tão arruinada e destruída, tão mudada em relação
ao seu aspecto original, a tal ponto que as heras cresceram no local onde
antigamente se sentaram os senadores...”59

De então para cá, a admiração de uns e a perplexidade de outros continuaram,


e continuarão, a caracterizar o olhar que se volta para a Antiguidade Romana em
busca de respostas.

4. Em conclusão
Ao longo deste percurso pela história romana, em busca de testemunhos de
uma forte crença na eternidade de Roma, foi possível encontrar indícios diversos
dessa crença, alguns dos quais de clara propaganda política. Já os sinais contrários,
talvez vítimas de silenciamento, são em número exíguo. Compreende-se, por isso,
que se possa ter afirmado (como H.-I. Marrou, em Decadência romana ou Antigui-
dade tardia?) sobre o fim do Império: “Os contemporâneos da queda do Império
Romano do Ocidente não tiveram consciência de tal coisa”.60 Afirmação semelhan-
te fez o conhecido Peter Brown, que opinou, a respeito do desaparecimento do
Império Romano do Ocidente – um desfecho algo repentino, a julgar pelas mostras
de renascimento no século IV: “Para os contemporâneos, a falência dos imperadores
do Ocidente, no século V, foi a crise mais imprevista do Estado Romano”.61
De um modo geral os Romanos sabiam que a um império sucede outro, e que o
império de Roma fatalmente haveria de perecer, como os demais. Mas a eternidade
de Roma tornara-se uma crença e um dogma. Foi um mito que muitos defenderam
mesmo quando já as condições objectivas o não permitiam.

59 
Cit. de R. Jenkyns (ed.), El legado de Roma, p. 39. E o tema das ruínas de Roma deu origem, nesse tempo, a inúmeros
poemas. Ianus Vitalis (que morreu em 1560) celebrizou-se com o epigrama, em latim, De Roma Antiqua, que foi tradu-
zido pelo poeta francês Du Bellay, pelo espanhol Francisco de Quevedo e por alguns outros poetas. Sobre este epigrama
e as traduções que dele foram feitas, veja-se Américo da Costa Ramalho, “As ruínas de Roma”, in Idem, Estudos sobre
a época do Renascimento, Coimbra, 1969, pp. 297-317.
60 
H.-I. Marrou, em Decadência romana ou Antiguidade tardia?, trad. port. de Henrique Barrilaro Ruas, Lisboa, Edito-
rial Aster, 1979, p. 103. Mas logo de seguida alerta para o carácter paradoxal desta afirmação, pois não faltam – afirma
- testemunhos escritos do sentimento de uma decadência generalizada e irreparável. Esses testemunhos encontram-se
reunidos na obra de P. Courcelle, Histoire littéraire des invasions germaniques, Paris, Études augustiniennes, 1964 (3ª.
Ed.), de que existe trad. portuguesa na ed. Vozes, Lda., de 1955.
61 
Peter Brown, O fim do mundo clássico, p. 105. O mesmo Peter Brown afiança (p. 127): “Grupo algum de Romanos
idealizara jamais Roma tão entusiasticamente como os poetas e oradores do fim do séc. IV e começos do século V. O
mito de Roma, que havia de obcecar os homens da Idade Média e do Renascimento – Roma aeterna, Roma concebida
como o clímax da civilização, destinado a continuar para sempre –, não foi criado pelos homens do Império Romano
clássico, foi um legado directo do forte patriotismo do mundo latino do fim do século IV.”

286 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega A ntigua
Enrique Pérez Benito
U. Valladolid
copelius@hotmail.com

U n estudio dedicado al papel que el elemento religioso desempeña dentro de la


novela puede quizás transmitir en un primer momento la impresión de que
nos encontramos ante un aspecto de ámbito extremadamente reducido y específi-
co de los estudios sobre este género literario. Sin embargo, una vez superadas esas
primeras sensaciones, nos damos cuenta inmediatamente de que la respuesta a los
interrogantes que el tema nos plantea va mucho más allá de lo que cabría esperar.
Al dejar de lado ese juicio precipitado advertimos que en dichas respuestas puede
estar también la clave para resolver los enigmas principales a los que se han enfren-
tado los estudiosos, cuestiones como la de los orígenes del género o la del público
al que éste se dirigía, que han dado lugar a apasionados enfrentamientos entre las
diversas corrientes de la crítica desde que en 1671, Pierre Daniel Huet escribiera su
Traité de l’origine des romans.
A lo largo de las páginas que componen este trabajo trataremos de profundizar
en el verdadero alcance que tiene el componente religioso existente en las novelas,
para posteriormente adentrarnos en la espinosa cuestión de cuál era exactamente su
función en el conjunto de la obra y si su inclusión en ésta respondía a motivaciones
exclusivamente literarias o si, por el contrario, existe por parte del autor algún otro
propósito subyacente bajo la apariencia del mero entretenimiento.
Incluso la más superficial de las lecturas nos permite darnos cuenta de que
la religión tiene una muy significativa presencia en la novela griega. Observando
cualquiera de los testimonios que de la producción narrativa han llegado hasta no-
sotros veremos una constante aparición tanto de divinidades que intervienen de
un modo u otro en la trama como de determinados rituales o cuestiones referidas
al culto. En el desarrollo de la obra, los amores, las aventuras y desventuras de los
protagonistas, y sus numerosos viajes girarán, en la mayor parte de las ocasiones,
en torno a la figura de un dios, un oráculo o un templo. Aquellos desencadenarán
con su ira o su envidia los acontecimientos, éstos servirán de lugar de encuentro, de
plegaria e invocación. Todo este conglomerado de motivos a diferentes niveles deja
patente a simple vista que la religión desempeña un papel muy destacado no solo
en la trama sino en el conjunto del género. Como dice Hägg, “Even on the surface
religion plays a remarkably important role. Gods, oracles, cults of different kinds
are organically integrated into the course of the events”1. Tendremos ocasión de
comprobar que esto no es sólo algo superficial, sino que lo mismo sucede en una
dimensión más profunda del texto.

1 
Hägg (1983: 103)

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 287


Enrique Pérez Benito

Podríamos dividir en tres grandes grupos los elementos religiosos con los que
nos vamos a encontrar al acercarnos a estas novelas. Primeramente, las divinidades.
Éstas intervienen a menudo en el transcurso de los acontecimientos, tanto a favor
como en contra de los protagonistas, aunque en ocasiones su presencia se limita a
simples referencias que el autor nos brinda en determinados momentos. Los motivos
que han guiado a éste en la elección de cuáles influyen de manera decisiva y cuáles
aparecen fugazmente es uno de los aspectos sobre los que más ha reflexionado la crí-
tica, con la intención de concluir si es o no accidental. Un detalle a tener en cuenta
y de carácter muy significativo es que tales dioses ya no pertenecen únicamente al
tradicional panteón griego; estamos ante nombres que, como Isis o Apis, dejan tras-
lucir la progresiva influencia que en la mentalidad griega de época helenística e im-
perial iban teniendo los elementos orientales, asimilados completamente y cada vez
en mayor número. No son en ningún caso divinidades nuevas, sino dioses o diosas
que han adquirido una dimensión totalmente distinta a la que poseían antes. En
muchas ocasiones se trataba de figuras relegadas a un segundo plano, como Helio,
que pese a sus atribuciones de divinidad solar había sido completamente eclipsado
por un dios fuerte, en este caso Apolo. Otra buena prueba de este proceso sería el
imparable ascenso de Tyche, una diosa atestiguada ya en Homero o Píndaro pero
que en este momento gozará de un poder y respeto tales que se la llegó a considerar
erróneamente una deidad nueva, producto de la época.
En segundo lugar se situarían las festividades, cultos y rituales de diverso tipo
que se suceden de forma continua en las páginas de estas obras. Aquí están incluidas
las grandes celebraciones que se realizaban en honor de ciertos dioses en algunas
ciudades y en los centros importantes de culto. En ocasiones, el primer encuentro de
los dos jóvenes se produce en un templo, durante uno de estos festivales religiosos.
El templo es otro de los elementos cuyo papel resulta esencial en el desarrollo de la
trama. En él también tiene lugar a veces el desenlace y se produce la acción de gra-
cias a la divinidad por permitir el ansiado reencuentro. Además de estas referencias,
también se mencionan en numerosas ocasiones diferentes tipos de ritos pertenecien-
tes al ámbito de la vida cotidiana, tales como funerales, casamientos, etc.
Por último, y como tercer gran bloque, situaríamos todas aquellas alusiones a
otras prácticas habituales en la forma de entender el hecho religioso de los griegos,
como por ejemplo la consulta de oráculos y adivinos, o las diferentes clases de
ofrendas. Otro motivo que se repite es el de los sueños proféticos. Los personajes
tienen con frecuencia ensoñaciones cuyo sentido se les escapa en un principio y que
sin embargo acaban adquiriendo significado completo a medida que se suceden
los hechos. Estos últimos pueden quizás no estar propiamente relacionados con las
creencias religiosas, pero no es menos cierto que encontramos numerosos ejemplos
en la tradición en que los dioses revelan por medio de sueños a los hombres sus
intenciones o se sirven de ellos para persuadir a los mortales de actuar de una cierta
manera, para que así se vea cumplido lo que a veces el Destino y a veces su volun-
tad (o su capricho) ordenan. Esto dota, sin duda alguna, de un carácter religioso a

288 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua

este tipo de sueños. Otras creencias sin vinculación directa con las que podríamos
denominar oficiales pero que son tan antiguas o más que ellas tienen también su
lugar en la novela. Nos referimos a la superstición y a todas aquellas prácticas con
ella relacionadas, que se superponen y se mezclan en ocasiones con aspectos de la
esfera del Más Allá y de todo lo relativo a la muerte.
Esta gran abundancia de motivos relativos a la religión que se suceden a lo largo
de la trama de estas obras ha llevado a determinados autores a considerar la novela
como un género de carácter fundamentalmente religioso, vinculado de manera par-
ticular a cultos de tipo mistérico.
Ya en las primeras décadas del siglo veinte, Karl Kerényi, con su Die griechisch-
orientalische Romanliteratur in religionsgeschichtlicher Beleuchtung 2, planteó por vez
primera la hipótesis de un origen religioso de la novela. Kerényi veía un claro pa-
ralelo entre su estructura narrativa y los mitos en que se basaban los cultos de tipo
mistérico que dominaban el panorama religioso de la época, y más concretamente
el mito egipcio que narra la historia de Isis y Osiris. Para él, tras el esquema argu-
mental que encontramos en todas las novelas que se nos han conservado se hallaría
la representación en clave simbólica de la incansable búsqueda que Isis realizó a lo
largo del Nilo para encontrar los restos de su esposo, Osiris, al que el malvado dios
Seth, su propio hermano, había asesinado y más tarde descuartizado, tirando sus
restos -catorce pedazos – al río.
La repetición de este esquema, si bien con ciertas variaciones en cada caso, se-
ría una constante en toda la producción novelesca, a juzgar por los testimonios de
los fragmentos que de otras obras han llegado hasta nosotros, por lo que podemos
considerarlo como una de las principales convenciones del género. En él, una pareja
de enamorados es repentinamente separada, generalmente por haber despertado
alguno de ellos la ira o la envidia de un dios a causa de su comportamiento o
de su extremada belleza. A partir de ese momento, deberán sufrir penalidades sin
número que pondrán a prueba la fortaleza de su amor y su fidelidad al ser amado
hasta que, una vez satisfecha la sed de venganza de la divinidad y apagada su ira,
ven recompensados sus padecimientos y se produce al fin el reencuentro tras el que
podrán disfrutar para siempre de una vida feliz entregados a su amor y libres de
preocupaciones3.
Todo esto podría reducirse a una fórmula tan sencilla como es la de separación
– búsqueda – reencuentro, cuyo patrón coincidiría con el de la historia de la diosa
Isis, en la que están basados los rituales de iniciación a su culto, y en general los de
todos aquellos cultos de carácter mistérico. Debe notarse que es también la misma

2 
(1927).
3 
Encontramos referencias sobre este aspecto en la totalidad de autores que se ocupan de la descripción de las princi-
pales características del género, entre las que se encuentra esta simpleza estructural y la repetición del mismo esquema
argumental. Sirvan de ejemplo las palabras de Hägg (1983: 3): “Mostly, we are concerned with simply adventure stories
which have love, travel and violence as their main constituents. Sometimes, violence is replaced by a stronger admixture
of emotions, by a marked taste for sentimentality”.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 289


Enrique Pérez Benito

secuencia que encontramos en lo que denominamos comúnmente “ritos de paso”,


a través de los cuales se produce la integración plena del individuo en la sociedad.
Así, la novela sería, bajo esa aparente sencillez y falta de originalidad, un entramado
de alusiones simbólicas a determinados rituales que tan sólo unos pocos iniciados y
profundos conocedores del culto isíaco podrían comprender y descifrar por comple-
to. De este modo, cada una de estas obras podía ser leída y sobre todo entendida de
varias maneras, dependiendo de quien efectuara la lectura y la profundidad de sus
conocimientos o el grado de iniciación en los cultos que allí se trataban.
Esta atractiva visión propuesta por Kerényi caló hondo en numerosos autores
que, convencidos de la explicación religiosa que daba del género el filólogo húngaro,
se dedicaron a desarrollarla y perfeccionarla. Entre todos ellos destaca la figura de
Reinhold Merkelbach, quien partiendo de los presupuestos de Kerényi y siendo un
profundo conocedor de la religión griega como era, expuso de manera muy com-
pleta y rigurosa en su Roman und Mysterium in der Antike4 una teoría acerca de la
vinculación de la novela con las religiones mistéricas que estaban en auge durante
aquellos siglos. A pesar de la similitud de enfoques, Merkelbach iba mucho más
lejos de lo que su predecesor había hecho, pues él no se limitaba solamente a relacio-
nar la novela con los rituales isíacos, sino que asignaba a cada una de las novelas que
se conservaban (excepción hecha de la de Caritón, que no encajaba en su esquema,
por lo que la dejaba aparte) la representación de distintos rituales dedicados a dioses
diferentes. Algunas novelas, ciertamente, sí estaban en relación con los misterios de
Isis; tal era el caso de las Efesíacas de Jenofonte y de las Metamorfosis o el Asno de
Oro de Apuleyo, una obra que por su mayor calidad representaba para Merkelbach
mucho mejor el espíritu del género que la del escritor efesio, que presentaba tales
irregularidades y defectos en su realización que fue considerada incluso un resumen
de una composición anterior. Otras, sin embargo, aunque elaboradas también si-
guiendo esa misma estructura de los rituales mistéricos, estaban vinculadas al culto
de dioses como Helio, Mitra, etc. El autor alemán, además, no se limitó solamente
a lanzar su teoría, sino que llevó a cabo una minuciosa y detallada argumentación
analizando de forma exhaustiva todos aquellos pasajes de las obras en los que veía
el reflejo de alguno de los elementos o fases que seguían aquellos rituales que su-
puestamente la novela ponía en escena de forma velada y subrepticia. Al igual que
Kerényi, por tanto, Merkelbach proponía que estas obras estaban compuestas de tal
forma que presentaban diversos niveles de lectura y comprensión, por lo que úni-
camente podrían ser entendidas por completo por aquel cuyo grado de iniciación
y conocimiento del culto y las prácticas rituales fuera lo suficientemente elevado.
Otros iniciados de menor categoría se darían cuenta, sí, de que la novela era vehícu-
lo de transmisión de un mensaje religioso en clave, disimulado por una vulgaridad
y simpleza excesivas que permitían cumplir mejor ese propósito ocultista que tales
religiones tienen siempre, celosas como son de determinados aspectos de su doc-

4 
Merkelbach (1962).

290 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua

trina y prácticas rituales. Serían, pues, capaces de descifrar una parte del código
de símbolos, pero no su totalidad. En último término estaría la lectura de aque-
llas personas sin relación directa con esos cultos y un conocimiento de ellos nada
profundo. Estos individuos leerían la novela quedándose tan sólo en lo superficial,
considerando el género como una mera fuente de entretenimiento, un texto que
no requería ni excesiva concentración ni esfuerzo intelectual. El género narrativo
debería, por tanto, ser observado desde una perspectiva eminentemente religiosa,
no literaria, ya que la intención primordial de estos textos no sería otra que la ex-
presión de elementos pertenecientes al culto al que la obra en cuestión se adhiriera,
de diferentes clases y de una manera más o menos simbólica y accesible. Vemos,
pues, que la faceta literaria quedaría relegada a un lugar muy secundario en la labor
de creación (fabricación sería quizás más apropiado en este caso) de la novela, al no
existir en ella una pretensión artística. La deficiente caracterización de los persona-
jes (aún de los principales), las incoherencias en el desarrollo de la trama general y
de las líneas argumentales paralelas a ésta o cualquier otra de las deficiencias que
observamos en el ámbito compositivo se justificarían de este modo, ya que no eran
requisitos indispensables para la consecución del objetivo perseguido, realizado a
través de un autor al que ni se le exigiría ser original ni estar particularmente dotado
para la literatura.
La perspectiva predominante entre los estudiosos del género es contraria a esta
tesis, a la que consideran totalmente exagerada y fuera de lugar.5 Pese a ello, no
podemos negar los muchísimos méritos que esta rama de investigación posee. En
primer lugar, y de forma general, por haber sido capaz de concentrar el interés de la
crítica en una materia que hasta ese momento se encontraba en el más absoluto de
los olvidos. Y es que la novela se hallaba aún marcada por el estigma que las concep-
ciones filológicas tradicionales (y que se encontraban en boga incluso muy avanzado
ya el pasado siglo) le habían impuesto. Tales planteamientos, que tomaban como
punto de referencia y valor de comparación la época clásica, despreciaban un género
como la novela, una forma a la que no consideraban digna de una gran atención, en
primer lugar porque pertenecía a un periodo ya de por sí decadente para ellos, y en
segundo, por las propias carencias que como obra literaria tenía.6 La interpretación
en clave religiosa que de ella se hizo, iniciada como veíamos por Kerényi y desarro-
llada y reforzada por Merkelbach, cambió totalmente las perspectivas de la crítica y
convirtió al género en un auténtico objeto de estudio. Otro de los innegables méri-
tos que hay que reconocerle radica en la importancia otorgada al elemento religioso
presente en las diferentes obras que lo componen, en el que nadie había reparado

5 
Cf. Reardon (1971: 393 403). Estas páginas de la obra de Reardon, un completísimo estudio del desarrollo de las
diferentes formas literarias en los siglos II y III de nuestra era, nos ofrecen un excelente panorama de la polémica susci-
tada por las interpretaciones de la novela en clave religioso – mistérica. Cf. también Blánquez (1996: 81 – 82), breve
y ordenada presentación de las diferentes teorías acerca de este tema.
6 
Resulta paradigmática a este respecto la obra del filólogo alemán E. Rohde (1876), buena prueba del negativo talante
de la crítica tradicional en su acercamiento al género.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 291


Enrique Pérez Benito

antes de forma significativa. Y es que la abundancia de referencias de diverso tipo al


ámbito religioso y la ubicación de algunas de ellas en momentos clave del desarrollo
de la trama no podía ser, de ningún modo, algo superfluo. Pese a las diferencias de
enfoque entre esta perspectiva de análisis y la nuestra, el principio sobre el que se
asientan es el mismo: el reconocimiento de que la presencia de elementos religiosos
en la novela no solo no es superflua, sino que éstos cumplen en ella una función
muy importante a nivel estructural y compositivo.
Sin embargo, no han sido estas las únicas teorías que han partido de la consi-
deración de ese componente religioso como el factor esencial para la explicación del
género. No podemos ignorar la existencia de algunas teorías que, si bien reconocen
la posibilidad de que autores como Merkelbach y otros hayan ido demasiado lejos,
insisten en la función primordial que tiene el elemento religioso dentro del género
novelesco. El propósito fundamental de éste sería, para ellos, el de la propaganda re-
ligiosa. La novela tendría por tanto una intención proselitista, encaminada a conse-
guir nuevos adeptos a determinados cultos, que variarían en cada una de las obras.
Esa sería la razón de la presencia tan abundante de motivos religiosos insertados a lo
largo de la trama, lo suficientemente significativa como para que estos autores sos-
pechen que en esta clase de literatura puede estudiarse “una forma de propaganda
y difusión de creencias religiosas concretas en conexión con cultos mistéricos, con
sus iniciaciones y su poder de salvación”7. A lo largo de las obras se estarían repre-
sentando, aunque siempre en el plano de lo simbólico y lo alegórico, ciertas partes
de rituales propios de los misterios de dioses como Isis, Mitra o Dioniso, según el
caso. La diferencia con las propuestas antes mencionadas de Kerényi y Merkelbach
es el propósito que se observa en tal representación. No sería el de crear un texto
únicamente comprensible para los iniciados en un culto (aunque no se descarta que
hubiera ciertos pasajes inaccesibles al común de los lectores) sino más bien conseguir
un producto a través del cual fomentar la devoción a un dios o dioses determinados
e incluso lograr la conversión del mayor número de personas posible.
Ninguna de las dos teorías, coincidentes (pese a las ligeras divergencias que
presentan en los planteamientos) en su consideración del aspecto religioso como
pieza clave de su análisis del género en su conjunto, ha logrado atraer los favores
de la crítica. Antes bien han tenido que soportar en muchos casos su indiferencia
cuando no los más feroces ataques por parte de determinados sectores. Este hecho
es particularmente notable en el caso de la primera, cuyas conclusiones son mucho
más atrevidas que las de aquellos que se limitan a presentar la novela como un
vehículo de propaganda religiosa. La segunda, debido a su talante moderado, ha
pasado mucho más desapercibida y no ha sido contestada con tanta dureza, ya que,
si bien parte de presupuestos en muchos aspectos comunes a las explicaciones más
radicales en el terreno religioso, los funde con otros muy cercanos a los de las tesis

7 
Hidalgo de la Vega (1990: 199)

292 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua

sociológicas que se han impuesto en las últimas décadas.8 Éstas defienden que la
novela no es sino la respuesta literaria a una “specific social reality, the large world
of Hellenistic and early imperial times”, que surge ante las nuevas inquietudes que
se le presentan al hombre de la época, “lost in a world too big for him”9. Ya hemos
hablado de los riesgos de afirmaciones tan categóricas, pero también resulta inne-
gable que el hombre tiene una forma distinta de plantearse las cosas. Hablar de
cambio no significa necesariamente que estemos haciendo referencia a un hecho
traumático. La manera de entender la vida no es algo que pueda variar de la noche a
la mañana, y las “novedades” de que aquí hablamos no han surgido por generación
espontánea, sino que se deben en su mayor parte a un lento proceso de evolución
que permite que sentimientos y actitudes que antes permanecían en un segundo
plano hayan ganado terreno y salgan a la superficie. Podemos afirmar pues, con
Reardon, que la novela surge cuando frente a esta situación diferente “some writers
spread their wings in the new air and began to use the form, to use it to talk about
the new society”10. Pero este enfoque de carácter eminentemente sociológico no
olvida la grandísima importancia que el hecho religioso tenía como parte de esa
sociedad, y es en este punto donde una y otra teorías se cruzan, aunque después
continúen por caminos distintos. De hecho, aunque este sector de la crítica defien-
de como función primordial de la novela el entretenimiento de los lectores, no se
excluye totalmente la posibilidad de que en determinadas circunstancias este tipo
de obras tuviera un efecto similar al de la propaganda religiosa, pero siempre, eso sí,
dentro de un contexto muy determinado y nunca de forma general. La diferencia
está, por tanto, en la importancia otorgada a este aspecto, pues frente a quienes lo
sitúan como fundamento del género, estos autores optan por concederle, en el me-
jor de los casos, un discreto papel secundario.
Hasta ahora nos hemos limitado a la mera exposición teórica de las principales
direcciones seguidas por la crítica a la hora de examinar el papel que el elemento
religioso desempeña dentro de las novelas. También hemos apuntado, aunque bre-
vemente, la fría acogida que, en sus diferentes variantes, han recibido los intentos
por situar el plano cultual en la base del género. Por último, hemos hecho mención
a la visión que predomina entre los estudiosos, aunque sin entrar en excesivos deta-
lles aún. Ha llegado pues el momento de analizar tales perspectivas desde un punto
de vista crítico, que nos permita definir con claridad cuánto de verdad hay en cada
una de ellas y hasta qué punto son aceptables para intentar explicar el fenómeno
que nos ocupa.

8 
El punto de partida debe situarse con la publicación de la obra de B. E. Perry (1967), que marcó un antes y un después
en la crítica sobre la novela, con su ataque a los planteamientos evolucionistas que dominaban los estudios sobre los
géneros literarios y que, en el caso de la novela, postulaba, en su obra ya citada, Rohde. En la misma línea de Perry,
aunque con planteamientos mucho más moderados, encontramos a autores como Reardon (1969) (1991), Hägg (1983)
o Holzberg (1995) entre otros.
9 
Reardon (1991: 172).
10 
Reardon (1991: 12)

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 293


Enrique Pérez Benito

Al igual que ocurre con los que defienden una intención proselitista del género,
nuestro enfoque es parcialmente sociológico, lo que no supone una contradicción
porque, como ya hemos dicho antes, su visión no hace sino resaltar la importancia
que la religión tenía en la vida de la época, hecho por otra parte indiscutible. La
diferencia está en que de ese presupuesto ellos derivan que su constante y acusada
presencia en la novela obedece a un impulso consciente del autor, cuyo propósito
principal sería la exaltación de la figura de algún dios en particular. Esto supone
relegar a un segundo plano (pues no llegan a negar su existencia) las motivaciones
literarias del género, además de ofrecer una visión del mismo muy limitada al dar
tal relevancia al hecho religioso, que no es sino una más (aunque eso sí muy im-
portante) de las facetas que conforman la sociedad en que se desarrolla la novela y
que, en conjunto, determinan lógicamente su fondo y su forma. Sin embargo, esto
no quiere decir que, pese a ser fácilmente rastreables en obras y periodos anteriores,
los numerosísimos elementos relativos a la religión que aparecen a lo largo de toda
la trama sean tan sólo motivos literarios heredados de la tradición, utilizados por
parte del autor simplemente como artificio estilístico o alarde de erudición. La elec-
ción de estos motivos y su pervivencia en la novela no son casuales. Debemos tener
en cuenta el contexto en el que se componen, un momento en el que la religión es
parte fundamental en la vida del hombre y se ha impuesto una nueva concepción
del hecho religioso, mucho más cercana e intensa, y muy estrechamente ligada a
sentimientos y emociones, elementos éstos muy presentes en la novela.
Veamos ahora la definición que hace Reardon de la novela: “extensive narrative
fiction in prose, destined for reading and not for public performance, describing the
vicissitud and psychological torments of private individuals, culminating in their
ultimate felicity, and achieving through the presentation of their fears and aspira-
tions the satisfaction of similar emotions in the reader”11. Es esa última frase la que
resulta verdaderamente clave para hallar respuesta a una serie de interrogantes que
nos conducirán al verdadero sentido de la novela como forma literaria, a partir del
cual podremos establecer, de manera definitiva, la función del elemento religioso
dentro del género. Dice Reardon que el lector de novelas siente como suyas las vici-
situdes y penalidades que sufren los protagonistas de la obra en el transcurso de sus
aventuras, así como sus deseos y esperanzas. Vemos que aquí se produce una iden-
tificación entre dos mundos aparentemente tan distintos como el real y el ficcional.
Si los lectores son capaces de experimentar paso a paso durante la lectura las mismas
sensaciones que los personajes, se debe a que observan que están sujetos a idénticos
temores, que se encuentran manejados por fuerzas a las que ellos están igualmente
sometidos y que es la inquebrantable esperanza en una vida feliz la que guía tam-
bién sus pasos. Esto no es más que la prueba de que la novela, y todos los elementos
en ella representados no son sino un fiel reflejo de la sociedad en la que está escrita,
y que surge en respuesta a las necesidades de esa sociedad y de los individuos que

11 
Reardon (1991: 100).

294 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua

la componen. Y lo hace porque ninguno de los géneros que se habían desarrollado


anteriormente, como la épica o el drama, era capaz ya de satisfacerlas, diferentes
como eran a las que en su día determinaron la aparición de estas formas literarias.
Nos encontramos ahora en un momento en que el individuo, tras la caída de la polis
y de todos los principios sobre los que estaba asentada, ha tomado conciencia de sí
mismo y de su identidad. Esto, más que una liberación, supone para el hombre de la
época verse inmerso en un mundo que no comprende, sólo y privado de repente de
todo lo que conocía y creía seguro, obligado a reconstruir sus esquemas, su estabi-
lidad, pero sin ninguna ayuda, ni siquiera la de aquellos dioses que, pese a su natu-
raleza caprichosa, le hacían sentirse a salvo. Es a este individuo, atemorizado, preso
del pánico y la angustia, al que la novela se dirige: “This narrative expresses social
and personal myth, of the private individual isolated and insecure in a world too
big for him, and finding his security, his very identity, in love”12. Las nuevas aspira-
ciones e ideales que se convertirán en primordiales en este momento, requieren un
tipo de héroe igualmente nuevo. Un héroe muy alejado de aquellos que dejaron sus
vidas en las llanuras de Troya, preocupado no por la gloria imperecedera, sino por
encontrar la felicidad, que para él está en el reencuentro con su joven esposa para
llevar una vida tranquila y apacible. Los personajes en los que la novela se centra son
meros particulares, personas con inquietudes y preocupaciones de la vida cotidiana,
capaces de sentir celos de quienes pretenden a su esposa o nervios ante su primer
encuentro amoroso. No quiere decir esto, sin embargo, que sean egoístas, sino que
los principios que se hallaban vigentes siglos atrás han quedado en el olvido, difu-
minados por el tiempo y sustituidos por otros, que no son mejores ni peores, tan
sólo diferentes. No ambicionan realizar grandes hazañas, ni conquistar imperios,
pero la fuerza que les mueve, los ideales por los que están dispuestos a luchar y en-
frentarse al tormento y aún a la muerte si es necesario no son menos encomiables:
el amor incondicional e imperecedero, capaz de superar todos los obstáculos, y la
fidelidad y devoción por la persona amada, que mantendrán vivas las esperanzas en
un final feliz, por desesperada que parezca la situación.
Hemos observado a través de esta nueva caracterización y construcción de los
personajes que la novela realmente responde a una nueva situación social con exi-
gencias propias y diferentes del resto. Como parte fundamental de la sociedad que
es, la religión no podía quedar de ninguna manera al margen, de ahí la significativa
presencia de elementos religiosos que encontramos insertos en la trama de todas
estas obras. Esto no implica, ni mucho menos, la existencia en el género de un
propósito religioso, sino que nos encontramos ante un aspecto que, por su vital
importancia social, debe aparecer necesariamente en los textos reflejado de forma
muy destacada, ya que la literatura no puede abstraerse de la realidad de su tiempo.
Por tanto, la importancia del componente religioso que encontramos en la novela se

12 
Reardon (1991: 28 - 29). A propósito de este nuevo tipo de héroe son también las reflexiones de Perry (1967: 47 y
ss.) o Schmeling (1974: 130 - 159).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 295


Enrique Pérez Benito

justifica en la medida en que ésta se desarrolla en un momento en que la religión es


parte fundamental de la vida del hombre. No hay necesidad, por tanto, de ir más
lejos e interpretarla como algo ligado a determinado tipo de cultos religiosos, bien a
través de la representación simbólica de algunos de sus rituales, bien destinada sen-
cillamente a su propaganda. De hecho, en ocasiones encontramos elementos que no
encajan del todo bien dentro de las prácticas habituales del culto del que se supone
la obra está haciendo apología. Incluso un autor como Beck13, convencido de la mo-
tivación religiosa del género y de que cada una de las novelas respondería al patrón
del culto de un dios determinado, hace referencia a este aspecto y reconoce que, en
muchos casos, los paralelismos que pretenden hacerse no son tan exactos como se
desearía. Esta idea aparece desarrollada también de forma extensa en un artículo de
Griffiths14, que tomando como ejemplo algunos de los elementos tradicionalmente
usados en apoyo de la interpretación religiosa de esos textos pone al descubierto
diversas inexactitudes que hacen a estas argumentaciones mucho menos convincen-
tes, como el hecho de que el valor simbólico de ciertos pasajes considerados claves
para defender la hipótesis religiosa estén en relación con un dios, sí, pero con uno
diferente al que se supone se está exaltando en la obra.
Es cierto que no puede descartarse, como indica Hägg15, la posibilidad de que
se realizaran lecturas en clave de estas obras, movidas por la identificación de al-
gunos de los elementos que en ellas aparecían con aspectos del culto isiaco. Un
hecho del que no se deben tampoco derivar conclusiones precipitadas acerca del
verdadero propósito que animaba estas composiciones: “the similarities between
myth and mistery ritual on the one hand and the novel on the other can hardly be
explained as the simple relation between cause and effect, but this does not mean
that they are accidental or without interest. (...) The parallels (...) are explicable in
a simpler way: human life and man’s experience of life provide the basic pattern of
myth and ritual as well as the novel”. Las raíces tanto del género literario como de
la práctica religiosa serían las mismas, ambos se basarían en un esquema común, el
de separación-búsqueda-reencuentro, que no es sino una metáfora del discurrir de
la vida, modelada a partir de la propia experiencia vital del hombre, que queda así
reflejada en dos de sus múltiples creaciones, rito y novela. La relación entre los dos
aspectos no sería, por tanto, de dependencia de lo literario respecto de lo religioso
ni al revés, sino que ocuparían lugares equivalentes, hermanados uno y otro como
productos de la mente humana16.
Similar reflexión podemos realizar en lo tocante a la consideración de la novela
como instrumento utilizado por los cultos mistéricos para su difusión. Tampoco
podemos negar la existencia de un abundante material potencialmente propagan-

13 
Beck (1982: 527 540).
14 
Griffiths (1978).
15 
Cf. Hägg (1983: 101 - 104).
16 
Cf. Reardon (1991: 171 - 173).

296 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua

dístico ni, por tanto, asegurar de forma categórica que éste no se haya explotado
en algún instante para que estas obras desempeñaran dicha función proselitista,
o que algunos lectores se hubieran visto inconscientemente influidos por las refe-
rencias que se hacen a determinados dioses y a ciertos aspectos de su culto. Pese a
ello consideramos que no puede hablarse de una propaganda organizada como la
base ni de esta obra ni del género: “Whereas the Aretalogies of Isis emanated from
Egypt and were griten doubtless by a devoted priesthood, the novels were not the
result of an organized institutional propaganda. They expressed rather the impact
made by the Isis-religion on individual authors whose style and presentation varied
considerally”.17
De todo lo que acabamos de decir se deduce el hecho de que la explicación
religiosa aplicada al género por una serie de autores no es falsa, sino tan solo incom-
pleta. La novela, básicamente, tiene como objetivo el entretenimiento, pero un tipo
de entretenimiento que apela a las emociones e inquietudes espirituales íntimas del
lector, que eran, como ya hemos dicho, las mismas que las de los personajes de las
novelas que leía. El tema central de éstas, pese a que las consideremos reflejo del
conjunto de la sociedad de la época, es el individuo, ese individuo asustado por su
soledad ante el mundo, que confiará su única esperanza de salvación y felicidad al
amor, el principio en el que encontrará, por fin, su verdadera identidad. A través
de las trepidantes aventuras y peligrosas situaciones que viven los protagonistas en
la obra, y del ansiado final feliz con que ésta concluye, el lector, que experimenta y
siente como suyo todo lo que ocurre, calma su necesidad de emociones y obtiene
satisfacción a sus propios deseos y temores. Sin embargo, y pese a la fuerza que tiene
el elemento individual en estas obras, todo lo que en ellas ocurre son experiencias
humanas, algo que trasciende finalmente de lo particular. De ahí que el aspecto
psicológico tenga una presencia tan acusada en ellas. El punto de vista desde el que
debemos, por tanto, analizarla, se encuentra entre lo sociológico y lo psicológico.
Sociológico en la medida en que es una creación de y para su época, acorde a las
necesidades y exigencias de ésta, y psicológico en cuanto a que, como parte de la
sociedad que son, los individuos son los destinatarios finales de la obra, y es a ellos
a los que busca conmover, impactar y, finalmente, recompensar. La finalidad de la
novela es satisfacer a su público, y lo hace a un doble nivel: el puramente lúdico,
que podríamos denominar de evasión y, por otro lado, el inconsciente, en que la
novela cumple una función de psicodrama, pues permite a los lectores, a través de
experiencias ajenas, solucionar sus propias contradicciones y encontrar remedio a
sus miedos y angustias.

17 
Griffiths (1978: 425).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 297


Enrique Pérez Benito

Bibliografia

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niaca as a Test Case,” in U. Bianchi, M. Vermaseren, eds., La Soteriologia dei Culti
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Préliminaires aux Religions Orientales dans l’Empire Romain. Hommages à Maarten
J. Vermaseren, vol. 1, Leiden, E. J. Brill, 1978, pp. 409 437.

HÄGG, T., The Novel in Antiquity, Berkeley - Los Angeles, University of California
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KERÉNYI, K. Die griechisch-orientalische Romanliteratur in religionsgeschichtlicher


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MERKELBACH, R., Roman und Mysterium in der Antike, München, Beck,


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REARDON, B. P., Courants Littéraires Grecs des IIe et IIe Siècles Après J.-C., París,
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REARDON, B. P., The Form of Greek Romance, Princeton – N. J., Princeton Uni-
versity Press, 1991.

298 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua

ROHDE, E., Der griechische Roman und seine Vorläufer, 1876.

SCHMELING, G., Chariton, New York, 1974.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 299


R epresentações do Outro:
Masculino/ Feminino nos Romances Gregos de Amor*

Marília P. Futre Pinheiro


U. Lisboa
mfutrepinheiro@hotmail.com

D urante muitos anos, o romance grego foi considerado como um género me-
nor, como uma forma trivial de literatura, destinado a um consumo popular1
e a um público juvenil ou pouco instruído.2 Intimamente associado a esta ideia,
criou-se o preconceito de que o sexo feminino seria o público-alvo e o principal
consumidor deste tipo de narrativas. 3 No entanto, hoje em dia, a incidência sobre
o “feminino” representa um dos factores decisivos da sua reabilitação, constituin-
do um campo fértil de investigação e a faceta que confere maior actualidade a
estas obras de cariz romanesco. O papel central que a figura feminina desempenha
no enredo e a proeminência e determinação das protagonistas face à passividade e
fragilidade de carácter dos seus congéneres masculinos têm contribuído para mul-
tiplicar, nas últimas décadas, os métodos e formas de abordagem, desde a aplicação
da teoria da recepção,4 passando pelas perspectivas antropológica5 e psicanalítica6
até à leitura de índole feminista.7
A primeira, ao atribuir à mulher o papel de leitora assídua e principal destina-
tária do romance, conduz inevitavelmente ao reforço da tese de uma significativa
melhoria do seu estatuto social e grau de literacia.
A segunda passa pela representação da mulher como elemento integrante de
* 
Os textos traduzidos dos romances Quérreas e Calíroe de Cártion, As Efesíacas de Xenofonte de Éfeso e Os Amores de Leu-
cipe e Clitofonte de Aquiles Tácio foram extraídos dos volumes publicados na Colecção Labirintos de Eros, Edições Cosmos,
Lisboa, 1996, 2000 e 2005, respectivamente.
1 
O primeiro a chamar a atenção para a faceta popular do romance grego foi ROHDE (1914:354-5), seguido por HI-
GHET (1949:165) e por PERRY (1967:5). Para uma leitura e interpretação do romance grego como género popular,
como literatura de consumo ou paraliteratura, vide FUSILLO (1994). Tese contrária é defendida por BRIOSO SÁN-
CHEZ (2000 e 2001) e NIMIS (2004).
2 
Sobre o público do romance vide, inter alios, REARDON (1976:130 e 1991:41), LEVIN (1977), SCHMELING
(1980:cap.5), GARCÍA GUAL (1988, cap. 2), WESSELING (1988), WINKLER (1988:1568), TREU (1989), BOWIE
(1992,1994 e 2003), STEPHENS (1994), PERKINS (1995:60) e HAYNES (2003:2-3 e 6-9). Mais recentemente, ainda,
no último capítulo de um estudo que consagra aos mitos da ficção, CUEVA (2005) defende a tese de que o público a que
eram destinados os romances gregos teria presumivelmente um nível elevado de educação e cultura, para poder entender as
subtis alusões de carácter mitológico que enxameiam aquelas obras, sobretudo as de carácter mais sofisticado.
3 
O único testemunho explícito da existência de um público feminino é o de Fócio, que refere, no resumo que faz das
Maravilhas de Além- Tule de António Diógenes, a dedicatória que este autor teria endereçado à sua irmã, Isidora, no início
do romance. Sobre a questão do público feminino, vide SANDY (1982:61), HäGG (1983:95-96), JOHNE (1987:24,
1989:158, 1996:204-207), EGGER (1988:33-44), LIVIABELLA – FURIANI (1989:105-106),WIERSMA (1990:111),
HOLZBERG (1995:35), BREMMER (1998), FUSILLO (2003:304) e HAYNES (2003: 4-6 e 9-10).
4 
Cf. WINKLER (1990), ELSOM (1992), MONTAGUE (1992) e EGGER (1994).
5 
Cf.RUBIN (1975), RABINOWITZ (1993), ZEITLIN (1996:1e passim) e HAYNES (2003: 13-14e passim).
6 
Cf. HAYNES (2003:14-15).
7 
Ibid.: 11-13.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 301


Marília P. Futre Pinheiro

um simbolismo cultural, atribuindo-lhe a capacidade de funcionar como meio de


comunicação, como uma espécie de linguagem ou princípio básico de organização
da cultura ou sociedade. De acordo com Lévi-Strauss, a mulher pode ser assim re-
duzida a signo, e o seu corpo imaculado pode significar ou corporizar a integridade
cultural de um determinado grupo social.8 Pode também ser apresentada como o
Outro, cabendo a Simone de Beuvoir o papel pioneiro na exploração do conceito
de alteridade aplicado à relação entre os sexos. Num livro (Le Deuxième Sexe) que
se tornou obra de referência do movimento feminista mundial e que ainda hoje se
mantém com uma actualidade desconcertante, Simone de Beauvoir procura de-
monstrar como se constituiu a “realidade feminina”, por que razão a mulher foi
definida como o Outro e de que forma foi encarada, sob o ponto de vista masculino,
esta alteridade.9 Defende ela que, ao longo de toda a história da Humanidade, não
tem havido, entre os dois sexos, uma relação de reciprocidade: há um tipo humano
absoluto, que é o tipo masculino, em relação ao qual se define o outro, que é feito
à sua imagem e semelhança, mas sem uma série de atributos que lhe conferem
substância, facto que o torna, segundo a expressão de S. Tomás de Aquino, uma
espécie de “homem falhado”, um “ser ocasional”. Esta é a mensagem que nos foi
transmitida no Génesis, onde Eva surge criada, segundo Bossuet, a partir de “uma
costela supranumerária” de Adão (p.17). A mulher não é, pois, considerada como
um ser autónomo, mas como um acidente, como o absolutamente contrário do
homem, como um espelho que lhe devolve uma imagem incompleta e deformada
de si próprio. Ele é o Sujeito, o Absoluto, o Ser Essencial. Ela é o objecto, o ser ina-
cabado, o Outro.10
Hoje em dia, e no seio da crítica feminista, está muito em voga a interpelação da
"Identidade Feminina" no quadro dos estudos de género, como construção cultural
e socialmente marcada. Ao questionar a construção dualista da realidade, segundo
a qual a diferença sexual e a ordenação dessa mesma realidade se construíram de
acordo com sistemas conceptuais ordenados segundo uma oposição binária, radica-
da num sistema de pensamento patriarcal e por isso responsável pelas distorções as-
8 
Cf.LÉVY – STRAUSS (1967).A aplicação dos métodos da antropologia , sobretudo a de pendor feminista, à área dos es-
tudos clássicos, dos estudos bíblicos e às investigações sobre o judaísmo e a história da igreja primitiva, está a revelar-se, hoje
em dia, muito produtiva. Entre outras obras consagradas à história das mulheres nos alvores do Cristianismo, destacam-se
a de KRAEMER (1992), que estuda o comportamento e as experiências religiosas das mulheres na Antiguidade, a de
CORLEY (1993), que utiliza uma abordagem antropológica para avaliar o significado da presença de mulheres em ban-
quetes, nos Evangelhos e a de MacDONALD (1996), que analisa o papel fundamental da mulher no desenvolvimento do
Cristianismo e explora a relação que existe entre este facto e a crença comum de que o sexo feminino era propenso a excessos
em matérias de religião.Para mais bibliografia, vide MacDONALD (1996:21-22, n.47). Também HAYNES (2003:30-43)
contextualiza o “uso do feminino” no romance no âmbito da esfera cristã.
9 
de BEAUVOIR ( I, 1976:17 sqq., 133, 241sqq. e passim).
10 
Na esteira de Simone de BEAUVOIR, a marcação cultural da categoria “género” determina claramente a orientação
epistemológica de recentes abordagens do feminino, mormente as que configuram o lugar da mulher na ordem cultural da
Idade Moderna como uma categoria humana inferior, encarada como desvio de um modelo de humanidade universal que é
elaborado a partir da construção do masculino, assumido como norma. A mulher vê-se, pois, relegada para uma categoria
de humanidade menor e sujeita, portanto, às contingências sociais e culturais, bem como às especificidades próprias da sua
condição inferior. Para um mais desenvolvido tratamento da questão e bibliografia, vide GIL (2002:9 sqq.)

302 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representações do Outro

sociadas à diferença sexual,11 a tarefa que tem vindo a ser levada a cabo por esta cor-
rente é a de encetar uma re-leitura da história literária e social. Essa nova abordagem
inscreve-se no contexto da progressiva consciência da importância das mulheres no
processo civilizacional e apela à re-descoberta de uma experiência autenticamente
feminina, que incida sobre a identificação do lugar da mulher na esfera literária,
elegendo como tarefa essencial a identificação das estruturas de constrangimento e
coação que conduzem à construção cultural do feminino. 12
Ora, fazendo a dupla masculino/feminino parte integrante da estrutura narra-
tiva dos romances gregos, é minha intenção, nesta comunicação, interpelar os dois
termos dessa relação (masculino/feminino) na base da construção de uma dinâmica
de género de carácter bipolar, e no quadro de um jogo dialéctico de mútuas depen-
dências e tensões, de equívocos e cumplicidades. Estou convencida de que tal tarefa
representará um passo para a decifração desse enigma, desse sistema semiótico de
contornos singulares que são as relações entre os dois sexos, tanto no campo da
literatura como da vida.
Partindo do princípio de que nenhuma teoria por si só é susceptível de expli-
car as ambiguidades, as tensões e contradições inerentes à construção do género
nos romances, recorrerei, sempre que me parecer oportuno, a leituras ditadas pelas
orientações metodológicas das teorias anteriormente expostas.
O romance grego é terreno privilegiado para um debate sobre o género na anti-
guidade. Temas como a violência e aspectos que lhe estão associados, como raptos,
violações e martírios, assim como a defesa intransigente da castidade por parte,
sobretudo, das protagonistas, levantam a questão de saber se tais comportamentos
se inscrevem num espaço ideológico dominado por preceitos androcêntricos de tipo
tradicional, ou se, pelo contrário, um conjunto de circunstâncias culturais e sociais
da Época Imperial terá forçado o cânone literário a acolher a diferença feminina no

11 
Vide, inter alios, CIXOUS (1981:90-91), CIXOUS/CLÉMENT (1989), LAQUEUR (1992). Por sua vez, Judith BU-
TLER, cujas teses geraram polémica, vai mais longe na crítica à dimensão artificial da postura dualista, “ao diluir todas
as categorias e ….legitimar comportamentos sexuais até aí considerados marginais, afirmando a heterossexualidade como
socialmente determinada.” (Gil 2002:11, n.5).
12 
A tendência dominante da crítica literária de pendor feminista vai no sentido de uma exclusiva concentração na “ex-
periência feminina”. Dentre as várias correntes que corporizam essa busca da diferença específica na escrita das mulheres,
destaco a chamada “ginocrítica”, que se apresenta como a “re-descoberta de uma ‘experiência autenticamente feminina’,
que incide sobre a mulher como produtora de significado…..e sobre a linguagem feminina …”(HAYNES 2003:11). As
adeptas desta teoria, que tem como seu expoente máximo SHOWALTER (1979:25 e 1985), defendem a tese que as
imagens da mulher, filtradas pela óptica masculina, são imagens estereotipadas e, por isso mesmo, fatalmente incompletas.
No entanto, conforme acentua HAYNES (2003:12), esta teoria, a ser aplicada integralmente, deixaria de parte muita da
literatura clássica, incluindo as obras que agora nos ocupam, uma vez que muitas das representações do feminino, bem
como a imagem das relações entre os sexos são tradicionalmente construídas e divulgadas através de textos com assinatura
masculina. Este facto não exclui, no entanto, à partida, o valor hermenêutico deste tipo de abordagem, como mais uma
tentativa de aproximação analítica aos textos clássicos, tanto mais que tem sido utilizada, com alguma proficiência, por
autoras feministas daquela área, como CULHAM (1990:162) e LEFKOWITZ (1981:31). Nesta mesma linha e no campo
da literatura de inspiração bíblica, há que ser sensível ao alerta de BROOTEN (1985:80), ou seja, ao facto de que a história
das mulheres na época dos primeiros cristãos deveria estar antes de tudo centrada nas próprias mulheres e não no retrato
que nos é delas transmitido pelos homens. Ainda no campo da literatura feminista, destaque-se a obra de FIORENZA
(1983,1988 e 1992), que tem tido uma repercussão assinalável na área dos estudos do Novo Testamento.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 303


Marília P. Futre Pinheiro

sentido da sua participação na vida social sob a forma de ruptura ou transgressão


das práticas legais e das estruturas que as sedimentam.
Algumas premissas ditadas pela crítica de inspiração feminista ou pelos estudos
de género alertaram-me para a importância de aspectos, tais como a manipulação
da linguagem e dos silêncios, ou o tratamento de temas, como os da violência e cas-
tidade. Irei analisar o tratamento de alguns destes temas consoante o sexo do per-
sonagem, deter-me-ei na análise de algumas circunstâncias em que o herói ou a he-
roína determinam o curso dos acontecimentos ou, pelo contrário, sofrem os efeitos
das acções alheias, irei provar que os silêncios têm género (normalmente o género
feminino) e que frequentemente a mulher é reduzida a objecto do desejo ou é alvo
da contemplação do sujeito masculino. Em suma, tentarei revelar a forma como
cada um dos sexos se constrói face e/ou em oposição ao Outro, Outro este que é
entendido, não na acepção de Simone Beauvoir, enquanto género feminino, mas
numa acepção dialógica que parte do princípio de que o género, encarado sob uma
perspectiva semiótica, é um sistema dinâmico e inter-relacional: o EU constrói-se
e define-se através da forma como encara o OUTRO e nele se projecta ou, dito de
outra forma, a consciência das qualidades polissémicas do género pode funcionar
como parte de um discurso mais vasto de auto-definição. Para atingir tal objectivo
torna-se, pois, necessário descrever alguns padrões definidores da identidade sexual
masculina e feminina, no quadro de um jogo dialéctico de mútuas dependências e
tensões, de equívocos e cumplicidades.
1. O tópico da violência está intimamente ligado à estrutura narrativa destas
obras. Heróis e heroínas cumprem aquilo a que se pode chamar um rito de passa-
gem e encarnam, sob o ponto de vista estritamente narrativo, uma forma de igual-
dade que conduziu à tese de uma “simetria sexual”.13 Em situações de crise, quando
a vida de um ou de ambos está em perigo, eles exteriorizam as suas emoções de for-
ma idêntica, através de suspiros e lamentos, lágrimas e tentativas de suicídio. Idên-
ticos são também os recursos de que se servem na tentativa de superar as terríveis
provações que os assolam e que põem à prova o seu amor e a sua fidelidade. Assim,
este padrão de amor simétrico ou recíproco indicaria, à partida, um significativo
progresso na relação amorosa, na qual a mulher não está condenada a ter um papel
passivo, colocando o romance grego num lugar à parte no conjunto dos restantes
géneros literários, incluindo a épica, a tragédia, a lírica e a comédia nova.
Todavia, este esquema, aparentemente igualitário, não resiste a um olhar mais
atento. O topos da mulher vítima de violência é vulgar no romance grego. O primei-
ro exemplo encontramo-lo em Quéreas e Calírroe de Cáriton: num acesso de raiva,
movido pelo ciúme, Quéreas agride a mulher com um pontapé, deixando-a num
estado de morte aparente (I.12). Mais tarde, após ter sido raptada por um bando
de piratas que assaltaram o túmulo onde fora enterrada e vendida como escrava,
é obrigada a escolher entre a fidelidade ao marido e um novo pretendente. A luta

13 
Cf. KONSTAN (1994:7).

304 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representações do Outro

interior que a faz oscilar entre o amor e a fidelidade a Quéreas e a necessidade de


proteger, com um novo casamento, o filho que traz no ventre, é expressa através de
diversos procedimentos narrativos, como solilóquios, preces e reminiscências de
acontecimentos passados, que lhe dão uma voz independente e a catapultam para o
centro da narrativa. O episódio da agressão é tanto mais intrigante quanto Calírroe,
“mulher fálica”, como já foi apelidada, 14desafia, noutras circunstâncias, a represen-
tação tradicional do feminino e a própria ordem social, quando assume consciente-
mente uma situação de bigamia ou quando encara a possibilidade de abortar. A esta
questão sobre o dilema do aborto voltaremos mais adiante.
Em Aquiles Tácio, por sua vez, as écfrases funcionam como símbolo premoni-
tório dos maus tratos, que chegam a assumir a forma de sevícias, que se vão abater
sobre a heroína no decorrer da narrativa, num percurso que alguns insistem em
interpretar como um percurso iniciático15 ou como uma paideia aristocrática.16
No romance Leucipe e Clitofonte, ao contrário de Quéreas e Calírroe, a acção é
encarada do ponto de vista do protagonista masculino. O herói é também narrador
e a mulher objecto de contemplação. Ora, como acentua Haynes (2003:53 e n.23),
a mulher como ícone, como espectáculo para consumo do olhar e objecto de desejo
constitui, do ponto de vista do discurso feminista, um importante instrumento
metodológico para todos quantos pretendem desvendar a dinâmica do poder no
interior de um texto.
A narrativa começa com uma descrição: o leitor depara de imediato com a
écfrase pormenorizada de um quadro que representa o rapto da heroína mítica
Europa (I,1,10-13), todo ele destilando sensualidade:17

JÎ *¥ Fä:" *4• J-H ¦F2-J@H ßB,N"\<,J@. #"2×H Ï:N"8`lq ("FJ¬D


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Ò P4Jf<.

“…os contornos do corpo transpareciam através das vestes: umbigo profun-


do, ventre esticado, cintura delgada, mas a sua esbelta figura encorpava-se ao
descer para as ancas. Os seios despontavam suavemente do peito; o cinto que
apertava a túnica cingia também os seios e a túnica era o espelho do corpo”
(Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte, I,1,11).

A associação de Europa com Leucipe é visível, não só quando Clitofonte nos


Cf. ELSOM (1992). Sobre a caracterização de Calírroe, vide também HELMS (1966), HäGG (1972), SCHMELING
14 

(1974), WIERSMA (1990) e BILLAULT (2003).


15 
Cf. MERKELBACH ( 1962).
16 
Cf.COURAUD- LALANNE (1999).
17 
Vide, a propósito, BARTSCH (1989:48-49) e FUTRE PINHEIRO (2001:131-132).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 305


Marília P. Futre Pinheiro

relata a sua reacção ao ver pela primeira vez a amada,18 mas também quando, um
pouco mais à frente, a representa como uma festa para os olhos,19 dando um passo
em frente na conceptualização do ser feminino como objecto. As instruções de Clí-
nias sobre como conduzir uma relação amorosa e as repetidas generalizações sobre
o comportamento feminino (a mulher comparada a um animal a domesticar, que
apresenta uma predisposição instintiva para o amor: a sua resistência resulta apenas
do pudor que esconde o seu desejo) (I,9-10), distanciam-nos cada vez mais da con-
cepção da heroína como sujeito, sublinhando a sua conformidade com um padrão
uniformizado do feminino.
A écfrase do jardim da casa de Clitofonte, que vem a seguir (I,15),20 aponta
também para este estereótipo: o jardim é considerado um espaço de delícias para
fruição do olhar, contendo a maior e mais suculenta de todas no seu seio: Leucipe.
No decurso da narrativa, outras écfrases, representando Andrómeda (III,7) e
Filomela (V,3,4-8) enfatizam a relação entre beleza e violência patentes na descri-
ção de Europa e prenunciam os futuros ataques à integridade da heroína. O facto
de estas descrições se situarem imediatamente antes do falso sacrifício (a primeira)
e da pretensa decapitação (a segunda), demonstra claramente a sua conexão com
os acontecimentos que se seguem, conexão esta tornada explícita pela sugestão de
Menelau de adiarem a viagem a Faros: “Os intérpretes de sinais dizem que se de-
vem levar a sério as histórias contadas nos quadros que podemos encontrar quando
saímos para tratar de algum negócio; dizem ainda que o que há-de acontecer será
análogo ao que é contado na história do quadro” (V,4,1).
Em nenhum outro local do romance a exibição de violência perpetrada contra
o corpo da mulher é tão explícita como na cena do falso sacrifício. Clitofonte obser-
va, imóvel, os salteadores a enterrarem o punhal no corpo de Leucipe, as vísceras a
saltarem e os bandidos a banquetearem-se com elas.21 O narrador, que, da sua ópti-
ca restritiva, apenas nos pode transmitir os próprios sentimentos, ao apropriar-se do
exemplo da sofredora Níobe,22 opera uma singular transferência de personalidade,
18 
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RLP¬< 6"J"DD,Ãq ÏN2"8:ÎH (•D Ò*ÎH ¦DTJ46è JD"b:"J4.
“Mal a vi, fiquei perdido. É que a beleza fere, mais penetrante do que um dardo, e através dos olhos corre para a alma, pois
é pelo olhar que passa a ferida amorosa.” (I,4,4).
19 
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J-H 6`D0H BD@FfBT< (,:4F2,ÂH 6"Â •6DVJå 2,V:"J4 6"Â :XPD4 6`D@L BD@,82ã< •B-82@< :,2bT< §DTJ4.
“Os outros mediram o prazer pelo estômago, mas o meu festim esteve nos olhos: regalado com o rosto da donzela,
numa contemplação sem mistura e saciado até mais não, retirei-me, ébrio de amor.” (Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte,
I,6,1)
20 
Para a análise desta écfrase, vide BARTSH (1989: 50-52) e FUTRE PINHEIRO (2001:129-30).
21 
São notórias as semelhanças entre este episódio e os rituais de canibalismo descritos nos fragmentos recentemente desco-
bertos das Fenicíacas de Loliano (sec II d. C.), onde se descreve igualmente o sacrifício de um jovem num cenário bárbaro
e aterrador, semelhante ao que nos é descrito em Aquiles Tácio. Para uma visão de conjunto destas práticas místico-rituais,
de carácter iniciático, bem como das suas implicações na polémica que se gerou entre cristãos e pagãos nos séculos II e III
d.C., vide PENA (2005:83-84, n.33).
22 
Níobe era filha de Tântalo e Dione e irmã de Pélops. Diz- nos Hesíodo que casou com Anfíon, de quem teve dez filhos
e dez filhas. Um dia vangloriou-se de ser superior a Latona, que só tinha dado ao mundo dois filhos. Apolo e Ártemis

306 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representações do Outro

assumindo-se a si próprio como a derradeira imagem do sofrimento feminino.23 Só


no final da narrativa é dada a Leucipe a prerrogativa de afirmar o seu próprio EU e a
sua subjectividade. É quando declara altivamente a Tersandro que a tinha insultado
e agredido com uma bofetada, que o novo espectáculo que lhe era oferecido para
seu deleite era o espectáculo da resistência feminina.24
Também nos outros romances as heroínas são, em norma, mulheres violentadas.
A violência sexual atinge praticamente todas elas e em particular Ântia, Cloe (de
forma metafórica) e Leucipe. Nas Efesíacas, por exemplo, Ântia é confrontada com
um número descomunal de provações: casa com um cabreiro que é encarregado de
a assassinar, é vendida como escrava, é raptada várias vezes por piratas, pendurada
numa árvore para ser sacrificada a Ares, ameaçada com vários casamentos não de-
sejados, enterrada viva, encerrada numa caverna, ameaçada com uma tentativa de
violação que consegue evitar ao assassinar o violador, ameaçada de morte, lançada
a um fosso com cães ferozes, vendida a um proxeneta.
Esta realidade omnipresente, que é a violência, encontra a sua explicação, no
plano imaginário, no modelo mitológico das virgens violadas: a pomba, Eco, Si-
ringe, inspiram a educação de Cloe, Europa, Siringe, Filomela, Anfitrite, Andró-
meda, Dafne, Pítis são duplos da personagem de Leucipe. O relato destas lendas25
é normalmente colocado na boca de um narrador do sexo masculino, o que nos
leva a pensar que a educação da mulher é feita, não só através de situações e factos
concretos (ameaças de violação e submissão à satisfação do desejo do homem), mas
também através do exemplum que o mito veicula. Um tal desencadeamento de
brutalidade, um abuso tão constante da força encerra, para alguns, um significado
que é revelador de diferentes atitudes sociais face a cada um dos sexos. A questão
está em saber qual a interpretação a dar-lhe, quer se trate de uma violência efectiva,
perpetrada contra a integridade física da heroína, ou de uma violência simbólica,
canalizada através do relato mitológico.
Nem todos os exemplos seguem, no entanto, este padrão uniforme. Há casos
em que se verifica, por assim dizer, uma inversão da lógica habitual da utilização do
paradigma da mulher vítima de violência, de que é exemplo a cena anteriormente
referida do romance de Aquiles Tácio, em que o traço mais saliente da história de
Níobe (a sua imobilidade perante o horror do espectáculo dos filhos mortos) é utili-

decidiram vingar a ofensa feita à mãe: com as suas flechas dizimaram toda a descendência de Níobe, à excepção de Clóris,
futura esposa de Neleu e mãe de Nestor. Apiedado com a dor da inconsolável Níobe, Zeus transformou-a num rochedo
de onde brotam as suas lágrimas como de uma nascente.
23 
Cf. EGGER (1990:310 n.3), ELSOM (1992:216) e HAYNES (2003:58). Esta última autora comenta que Clitofonte
“enfatiza o poder insistente da voz masculina”.
«z+(ã *¥ 6"Â (L:<¬ 6"Â :`<0 6"Â (L<Z, 6"Â «< ÓB8@< §PT J¬< ¦8,L2,D\"<, ¼ :ZJ, B80("ÃH 6"J"6`BJ,J"4
24 

:ZJ, F4*ZDå 6"J"JX:<,J"4 :ZJ, BLDÂ 6"J"6"\,J"4. ?Û6 •NZFT B@J¥ J"bJ0< ¦(f.»
«Eu estou indefesa, só, mulher! A minha única arma é a liberdade, que não pode ser destruída por golpes, nem cortada
pelo ferro, nem consumida pelo fogo. É a única coisa que não vos entregarei, nunca!» (Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte,
VI,22,4).
25 
Para um estudo dos mitos no romance grego, vide CUEVA (2004) e LÓPEZ FÉREZ (2004).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 307


Marília P. Futre Pinheiro

zada para ilustrar a semelhança entre a personagem mitológica e o herói romanesco.


Há ocasiões em que, pelo contrário, o exemplo mitológico, do sexo masculino, é
apresentado como protótipo da experiência feminina. É o caso da apropriação, pelo
narrador, da representação, em estatuetas da época, de Mársias atado a uma árvore
(III,15,4), 26 para melhor visualizar a cena em que Leucipe é também amarrada a
estacas antes da cena macabra de canibalismo de que é pretensamente vítima, ou
do quadro de Prometeu (III,8).27 Neste último caso, a representação, de um grande
realismo, de Prometeu acorrentado ao rochedo, da ave que lhe devora as entranhas,
da sua agonia, funcionam como um alerta para o leitor, que, no decurso do episódio
acabado de referir, facilmente reconhece o carácter premonitório desta descrição.
A análise anterior revela, por conseguinte, que há uma ambivalência da con-
dição feminina no romance grego: na aparência, elas são dotadas de carácter fora
do comum, manifestamente mais “viril” que o dos homens; na realidade, porém,
são submetidas a uma educação constrangedora e violenta de acordo com normas
sociais que são as da cidade grega da época clássica que visam, com toda a evidência,
preservar o equilíbrio do corpo social. Na esteira de Winkler, Heffernan (1993:56)
argumenta que a obsessão dos romances antigos pelo tema do rapto (real ou sim-
bólico) denuncia aquilo a que eu chamaria uma “educação sentimental”: a educação
da mulher para aceitar que o sexo é um sistema social enraizado no imaginário
masculino, estreitamente associado à violência. O casamento não pode, pois, deixar
de estar ligado ao rapto, à violação e ao sacrifício.
2. Voltemos um pouco atrás ao exemplo mítico, ao mito da Filomela, que nos
vai servir para ilustrar um outro aspecto importante no delineamento dos padrões
tradicionais do comportamento feminino e que está ligado àquilo a que chamarei a
linguagem do silêncio. A écfrase do quadro de Filomela rompe liminarmente com
a arquitectura retórica, predominantemente masculina, do romance de Aquiles Tá-
cio. Não é por acaso que Heffernan fala, a propósito deste quadro, de uma tradição
feminina da écfrase em oposição à tradição masculina da Ilíada e da Eneida.28 A
história do mito, que foi objecto de tratamento literário em Ovídio (Metamorfoses
VI), é conhecida: Procne, filha de Pandíon, rei de Atenas, fora dada em casamento
a Tereu, rei da Trácia, pelos préstimos deste no combate aos bárbaros que assedia-
vam Atenas. Certo dia, Procne pede a Tereu para ir a Atenas trazer a sua irmã Fi-
lomela para junto de si. Tereu, ao ver Filomela, apaixona-se imediatamente. Decide
encerrá-la numa gruta remota e viola-a. Quando Filomela ameaça revelar o rapto,
26 
Mársias era um sátiro, exímio tocador, que ousou desafiar Apolo para um concurso de flauta. Derrotado pelo deus,
que insidiosamente o convenceu a tocar o instrumento em posição invertida, foi suspenso num tronco de pinheiro e
esfolado vivo. Conta-se que Apolo, arrependido do acto que praticara, quebrou a lira e transformou Mársias em rio.
27 
Prometeu é uma divindade de singular astúcia, que a mitologia grega consagrou como criador e benfeitor dos ho-
mens. Entre as várias acções que levou a cabo em prol da humanidade, destaca-se a de ter transportado para a terra,
sem o consentimento de Zeus, o fogo sagrado. Como castigo de tal acto, foi acorrentado por Hefesto a um rochedo e a
águia de Zeus ia todos os dias devorar-lhe o fígado, que crescia continuamente, eternizando-lhe o suplício. Foi, por fim,
libertado por Héracles.
28 
Ibid. 46.

308 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representações do Outro

Tereu corta-lhe a língua e diz a Procne que a irmã morrera. Filomela, decide, então
enviar a Procne a notícia do seu rapto, tecendo a história numa tela que lhe envia.
Procne, ao tomar conhecimento do rapto da irmã, vinga-se, matando o seu próprio
filho e dando-o em refeição a Tereu. Depois da refeição, as duas irmãs mostram-lhe
os restos do filho. Tereu, em fúria, lança-se sobre elas de espada desembainhada mas
elas transformam-se em pássaros: Filomela, numa andorinha, Procne, em rouxinol
(na versão latina de Higino, Filomela será o rouxinol e Procne a andorinha) e Tereu
em poupa.29
O traço mais significativo deste mito reside na capacidade que as imagens têm
de transmitir uma mensagem e também no facto de as mulheres adquirirem a fa-
culdade de falar através de uma tarefa que simbolicamente lhes silencia a voz: o fiar
e tecer a lã no interior do oikos.
Se compararmos esta descrição com as écfrases masculinas da Ilíada e da Enei-
da, a diferença radica, logo à partida, na natureza dos objectos descritos: por um
lado, o escudo, associado à actividade guerreira, símbolo da virilidade masculina;
por outro, a tapeçaria, tradicionalmente ligada à mudez recatada das mulheres. A
oposição prolonga-se na relação que um e outro objecto têm com a fala. O escudo
é um instrumento da voz masculina, que perdura através dos tempos e que propicia
a conquista da glória que os poetas imortalizam. Mas a tapeçaria pode também
ser a fala das mulheres, o equivalente pictórico da sua voz calada. Assim, o mito
de Filomela dá voz ao silêncio feminino, unindo em estreita cumplicidade o poder
da imagem e a sua capacidade de representação, e a voz da mulher que criou essa
imagem.
Por seu lado, a educação de Cloe foi objecto de um estudo notável de Winkler
que demonstrou que a jovem se tornou de forma problemática, no decorrer da ac-
ção, “cada vez mais uma aprendiza muda”.30 Mesmo quem não adere à ideia de que
Longo tenha tentado denunciar uma ordem social falocrática à qual se submetem
as mulheres, não deixará de ser sensível ao modo como as heroínas são, durante o
seu percurso de aprendizagem, progressivamente desapossadas do direito de fazer
ouvir a sua voz, que, tanto no campo da mitologia grega, como no da realidade do
tempo, é um instrumento de poder.31
Quanto a Leucipe, referimos atrás o comentário provocatório que dirige a Ter-
sandro, comentário esse que codifica o seu comportamento sob uma perspectiva
radicalmente oposta à da leitura masculina da condição feminina que tinha pon-
tuado a narrativa até esse momento. Deve, no entanto, sublinhar-se que este mer-
gulho, por assim dizer, na subjectividade da protagonista está intimamente ligado
à defesa obstinada da sua castidade. Leucipe, que, no início do romance, parecia
querer emancipar-se da tutela maternal, à medida que o relato progride vai sendo
Resumo elaborado por Armando Duarte Senra Martins, no âmbito do Mestrado “A écfrase e a tradição ecfrástica”,
29 

por mim orientado no ano lectivo de 2002-2003.


30 
WINKLER (1990:109).
31 
Vide FUTRE PINHEIRO (2000).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 309


Marília P. Futre Pinheiro

remetida ao silêncio, só readquirindo a voz quando é necessário defender-se contra


atentados à sua honra :

«FL:&@L8,b,4 (•D 6"8äHq J•H $"FV<@LH B"DVFJ0F@<. M,DXJT JD@P`<q


Æ*@× P,ÃD,H, J,4<XJT. M,DXJT 6"Â :VFJ4("Hq Æ*@× <äJ@H, JLBJXJT.
5@:4.XJT BØDq Æ*@× Fä:", 6"4XJT. M,DXJT 6"Â F\*0D@<q Æ*@× *XD0,
FN".XJT. z!(ä<" 2,VF"F2, 6"4<`<q BDÎH BVF"H J•H $"FV<@LH
•(T<\.,J"4 :\" (L<¬ 6"Â BV<J" <46”.»

«Manda vir os instrumentos de tortura. Que venha a roda: aqui tens os meus
braços, estica-os. Que venham também os chicotes: aqui tens as minhas cos-
tas, açoita-as. Que tragam o fogo: aqui tens o meu corpo, queima-o. Que
tragam também o machado: aqui está o meu pescoço, corta-o. Vós sereis
os espectadores de um novo tipo de combate: uma simples mulher em luta
contra todos os instrumentos de tortura e a todos vence.» (Aquiles Tácio,
Leucipe e Clitofonte, VI,21,1-2).

3.Ora, é precisamente neste ponto que me quero deter por breves instantes.
A insistência na castidade, tanto masculina como feminina, constitui um terreno
fértil, propício a diferentes leituras no que diz respeito aos estudos de género.32 Po-
deríamos intitular esta alínea como a retórica ao serviço da castidade. De facto, tác-
tica geralmente utilizada pelas heroínas na defesa da sua honra é o uso da retórica.
Elas aliam, à força emocional, que lhes confere um poder erótico inconsciente,33 a
habilidade para manipularem situações em espaços públicos, tradicionalmente co-
notados com o masculino. Veja-se, por exemplo, a resposta de Calírroe às investidas
preliminares do Grande Rei, mediadas pelo Eunuco Artaxates:

«9¬ (•D @àJT» N0FÂ «:"4<@\:0<, Ë<" ¦:"LJ¬< •>\"< ,É<"4 B,4F2ä J@Ø
:,(V8@L $"F48XTH. +Æ:Â *¥ 2,D"B"4<\F4< Ò:@\" A,DF\*T< (L<"46ä<.
9¬ Fb, *X@:"\ F@L, :<0:@<,bF®H §J4 B,DÂ ¦:@Ø BDÎH JÎ< *,FB`J0<. 5"Â
(•D —< ¦< Jè B"D"LJ\6" :0*¥< ÏD(4F2±, :,J• J"ØJV F@4 P"8,B"<,Ã,
8@(4FV:,<@H ÓJ4 JÎ< (-H •BVF0H 6bD4@< ßBXDD4R"H )4@<LF\@L *@b8®.
1"L:V.T *¥ BäH FL<,JfJ"J@H ßBVDPT< •(<@,ÃH J¬< $"F48XTH
N48"<2DTB\"<, ÓJ4 @Û6 ¦D” *LFJLP@ØH (L<"46ÎH •88• ¦8,,Ã.»

32 
Num estudo recente, LATEINER (1988:186-88) acentua que o rubor que frequentemente aflora à face das perso-
nagens femininas e, por vezes também, das masculinas, em situações de embaraço ou crise interior, são o emblema
apropriado para exprimir pressões psicológicas conflituosas e coerções sociais. Sinal de sensualidade inocente ( o pudor
de Caricleia e Calírroe torna-as mais desejáveis aos olhos masculinos) ou de um erotismo declarado, o rubor desnuda a
personagem aos olhos do leitor, que tem, assim, livre acesso ao espaço íntimo daquela, partilhando, com agrado e com
prazer, desse mundo que, de outra forma, lhe estaria vedado. Para uma história do pudor, vide BOLOGNE (1990).
33 
Cf. EGGER (1988:60).

310 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representações do Outro

«Só se eu estivesse louca é que me ia considerar digna do grande rei. Não


estou acima das escrevas que servem as damas persas. Nem me voltes a fazer
lembrada, é um favor que te peço, diante do teu senhor. Por que mesmo se,
por enquanto, se não mostra irritado, ele vai acabar por se enfurecer contigo,
por pensar que atiraste o soberano do mundo para os braços de uma escrava
de Dionísio. Admiro-me como, com toda a tua perspicácia, te não dás conta
da generosidade do rei; o que ele sente por esta mulher infeliz não é amor, é
pena.» (Cáriton, Quéreas e Calírroe, VI,5,9-10).

Reprimindo a raiva, esta e outras delicadas evasivas realçam a sua inteligência


e argúcia e evitam qualquer retaliação que adviria certamente de uma recusa direc-
ta.
O romance de Xenofonte, apesar de não exibir, devido à sua natureza sumari-
zada, um aparato retórico tão evidente, contém, ainda assim, repetidas referências
à habilidade de Ântia para inventar histórias e à sua capacidade de se aproveitar da
ingenuidade dos seus raptores. Convence, por exemplo, o crédulo Psâmis de que
estava consagrada a Ísis até à idade de casar (III,11) e, mais à frente, quando é levada
para um prostíbulo, inventa umas história de epilepsia que desmotiva a multidão
de admiradores.
Finalmente, encontramos em Heliodoro uma divertida manipulação da ima-
gem estereotipada da mulher respeitável: Caricleia consegue enganar a assembleia
de bandidos com uma recatada exibição de aparente submissão, na qual revela um
conhecimento arguto das reservas masculinas relativamente ao discurso feminino:

«:•88@<» §N0 «Ò :¥< 8`(@H »D:@.,< •*,8Nè Jè ¦:è 1,"(X<,4


J@bJåq BDXB,4< (•D @É:"4 (L<"6Â :¥< F4(¬< •<*DÂ *¥ •B`6D4F4< ¦<
•<*DVF4<q»

«Seria mais apropriado que o meu irmão Teágenes falasse, pois é decoroso, a
meu ver, que uma mulher guarde silêncio e que seja o homem a falar numa
reunião de homens.» (Heliodoro, As Etiópicas, I,21,3).

Estes exemplos são suficientemente elucidativos da habilidade de que as heroínas


dão provas quando se trata de convencer e manobrar os seus pretensos sedutores.
No que diz respeito à castidade masculina, há um passo, n' As Etiópicas, que
ilustra um desfasamento entre a mensagem contida no cânone romanesco e as prá-
ticas sociais em voga: no momento em que Teágenes e Caricleia são submetidos à
prova de castidade, que consistia em pisar uma grelha de barras de ouro incandes-
cente (só os puros de corpo e alma o poderiam fazer sem se queimar), os circunstan-
tes ficaram estupefactos pelo facto de verem um jovem atlético e bem parecido, que
ainda conservava a virgindade (X, 9,7). Ora, se é certo que o romance de Heliodoro
ocupa um lugar à parte no conjunto da restante produção romanesca, não só pelo

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 311


Marília P. Futre Pinheiro

facto de nos oferecer uma visão mais depurada das relações entre os sexos, mas tam-
bém pelo significado simbólico que encerra,34 tal não significa que não encontremos
também, nos restantes romances, traços que se afastam da versão idiossincrática do
comportamento masculino.
Num género literário que floresce em plena época imperial, a guerra é o elemen-
to aferidor do heroísmo daquele que é considerado o sexo forte. Apesar de Quéreas
ser o único herói a escolher o campo de batalha como o local indicado para exibir
a sua coragem, nos outros romances o tema da iniciação guerreira subsiste como
modelo, estando sempre no horizonte como um desenvolvimento narrativo possí-
vel. Mas esta convenção não resiste também a um olhar mais atento. O exemplo
mais esclarecedor do aproveitamento cómico do tema encontramo-lo no amanei-
rado Aquiles Tácio, onde o campo de batalha se transfere metaforicamente para o
campo dos afectos: Sátiro instrui Clitofonte sobre os segredos do amor, associando
este à actividade guerreira. Eros é um deus viril e marcial e não permite hesitações
nem cobardias, mas exige coragem e rapidez no ataque.35
Encontramos ainda outros indicadores de uma alteração nos padrões tradicio-
nais da masculinidade. Dada a ênfase colocada na capacidade de persuasão das
heroínas, é clamorosa a falta de confiança dos heróis nesta matéria. Dáfnis, após
ter tentado arquitectar um discurso razoável em sua própria defesa na sequência da
acusação dos Metímnios, destrói imediatamente todo o impacto que as suas pala-
vras possam ter tido, ao desfazer-se em lágrimas (II,16), numa cena reminescente do
comportamento de Telémaco na Odisseia (II,80-81).
A falta de estratégias defensivas de todos eles, a sua aparente passividade face
à adversidade introduz uma nota discordante em comparação com o engenho das
heroínas. Assim, quando o barco de Quéreas é capturado, é-nos dito que ele e
Policarmo suplicaram que os vendessem a um só dono (III,7), atitude que revela
grande sentido de lealdade mas que é completamente falha de dignidade. Mas o
comportamento de Clitofonte é talvez aquele que nos dá a chave para compreender-
mos esta aparente inferioridade masculina. A sua condescendência em submeter-se
aos irracionais e violentos ataques de Tersandro (V,23,5-7 e VIII,I,3-5) faz supor
que este elemento de heroísmo romanesco constitui uma paródia ao auto-domínio
que se deveria esperar de qualquer representante da alta sociedade da época. Gase-
lee, tradutor da edição da Loeb, não resiste a introduzir uma nota a propósito da
passividade de Clitofonte perante os impropérios que Tersandro dirige a Leucipe.
Diz ele: “o leitor ... chegado a este ponto, conclui que o herói deste romance é um
cobarde da pior espécie”.36 É evidente que, para um gentleman da era vitoriana, o
34 
A propósito, vide FUTRE PINHEIRO (1993).
35 
«}+DTH, ì (,<<"Ã,, §N0, *,48\"H @Û6 •<XP,J"4. {?D”H "ÛJ@Ø JÎ FP-:" ñH §FJ4 FJD"J4TJ46`<q J`>@< 6"Â
N"DXJD" 6"Â $X80 6"Â BØD, •<*D,Ã" BV<J" 6"Â J`8:0H (X:@<J".»
«Eros, nobre senhor, não permite cobardias. Olha como toda a sua aparência é marcial: um arco, uma aljava, flechas e
uma tocha, todo viril e pleno de audácia.» (Aquiles Tácio, Leucipe e Clitofonte, II,4-5).
36 
GASELEE (1969:390-1, n.1), apud KONSTAN (1994:23).

312 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representações do Outro

insulto à honra de Leucipe era totalmente inaceitável, mas Clitofonte mantém-se


imperturbável, até mesmo, como já se assinalou, perante o ataque físico directo de
Tersandro.
É obvio que os protagonistas do romance, independentemente do sexo, sub-
vertem os padrões normativos de comportamento social. Personagens como Ca-
lírroe, Ântia, Caricleia, alertam-nos para a instabilidade da conceptualização do
feminino no género. Certos rasgos transgressores de algumas heroínas são a melhor
expressão da relação algo ambígua do género com as estruturas sociais.37 Há quem
tenha comparado a atitude violenta de Ântia, que assassina o pretenso violador An-
quialau, com a das heroínas de certos textos cristãos, como Tecla e Perpétua, que
subvertem as normas biológicas e sociais da época. Não posso deixar de comparar
Perpétua, que se dissocia da sua função biológica e abandona a sua feminilidade ne-
gando o seu papel maternal, a Calírroe. Também ela, quando descobre que vai ser
mãe de um filho de Quéreas, pensa imediatamente no aborto como solução mais
plausível.38 Todavia, depois de reflectir mais profundamente, fica dividida entre as
duas atitudes a tomar. Por um lado, o contraste entre a sua origem social elevada e
o futuro miserável que antevê para ele justifica o aborto; por outro, é movida pela
compaixão pelo filho que ainda não conhece. O que nos chama a atenção, neste
passo, é a aparente tolerância revelada nesta matéria e o facto de um assunto tão de-
licado, como a escolha entre a vida e a morte ser reduzido exclusivamente a conside-
rações de ordem social e não ética, e a uma questão de lealdade para com Quéreas.39
Estas, são questões demasiado complexas para poderem ser tratadas neste momen-
to.40 Direi apenas que somos tentados a vislumbrar, nestes e noutros indícios, um
desafio velado e subliminar ao poder e instituições imperiais. Mas, ainda que nos
mantenhamos cépticos quanto a aceitarmos qualquer mensagem de ordem política,
preferindo encarar o mundo ficcional como uma entidade despolitizada, o facto
de ele revelar nalguns aspectos um grau invulgar de poder por parte das heroínas
aponta para uma atitude crítica perante a tradição. Neste aspecto, como em tantos
37 
Em contrapartida, COOPER (1996) defende a existência de um vínculo de cumplicidade entre o autor (com toda a
probabilidade do sexo masculino) e o leitor (também presumivelmente do mesmo género), que se estabelece através da
identificação deste último com o desejo que o herói nutre pela heroína. Segundo a autora, o romance tem como principal
objectivo mobilizar este pacto de cumplicidade com vista à defesa da ordem social. Desta forma, o amor, que é mate-
rializado através do casamento, não está em tensão com essa ordem, mas, pelo contrário, o desejo do herói e o desejo do
leitor conjugam-se no sentido de conciliar o amor com o bem da comunidade.
38 
«ADÎ J-H (,<XF,TH B,4DV20J4 2"<VJ@L.»
«Antes de nasceres, mais te vale morrer.» (Cáriton, Quéreas e Calírroe, II,8,7).
«?Û FL:NXD,4 F@4, B"4*\@<, ,ÆH $\@< –284@< B"D,82,Ã<, Ô< §*,4 6"Â (,<<f:,<@< NL(,Ã<. }!B424 ¦8,b2,D@H,
•B"2¬H 6"6ä<. 90*¥< •6@bF®H Jä< B,DÂ J-H :0JDÎH *40(0:VJT<.» AV84< *¥ :,J,<`,4 6"\ BTH §8,@H "ÛJ¬< J@Ø
6"J• ("FJDÎH ,ÆF¯,4.
«Não te vale a pena, meu filho, vires ao mundo para seres um infeliz, e nasceres, para teres de fugir da miséria. Parte li-
vre, sem passares pelo sofrimento. Nem queiras ouvir o que se conta sobre a tua mãe.» Depois mudava de ideias, tomada
de piedade pela criança que trazia no ventre. (Cáriton, Quéreas e Calírroe, II,9,3).
39 
Eb:&@L8@< @Þ< JÎ< –<*D" <@:\F"F" 2DXR"4 JÎ B"4*\@< §6D4<,.
Por pensar que essa era a vontade do marido, a jovem decidiu então criar o filho. (Cáriton, Quéreas e Calírroe, II,9,6).
40 
Para uma discussão do aborto no romance de Cáriton, vide Temmerman (2001) e KAPPARIS (2005:4 e 121-124).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 313


Marília P. Futre Pinheiro

outros, o romance, desde os seus primórdios, faz jus ao estatuto de irreverência e


transgressão que o têm caracterizado ao longo dos seus muitos e muitos séculos de
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Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 317


Clitemnestra, «Mulher de M áscula Vontade»
Nuno Simões Rodrigues
U. lisboa
nonnius@fl.ul.pt

D epois de dez anos de guerra, em Tróia, Agamémnon regressa a casa, trazendo


o espólio que lhe coube em sorte: Cassandra, princesa troiana, filha de Prí-
amo e de Hécuba, irmã de Heitor e de Páris, aquele que desencadeara tudo. Dez
anos antes, o Atrida deixara Argos, sua casa, sua mulher e seus filhos, pela guerra.
Mas nem todos os filhos, pois fora forçado a entregar a mais velha deles, Ifigénia,
num sacrifício de sangue, à deusa Ártemis, que de outro modo teria impedido que
os navios dos Aqueus tivessem partido de Áulis1. Um sacrifício não era uma rari-
dade para a mentalidade religiosa dos Gregos, pois só dessa forma se tornava algo
sacer. Mas um sacrifício humano já era algo de menos normal, ainda que algumas
outras histórias helénicas sugiram que algures, no tempo, o povo helénico teria
oferecido alguns dos seus, ou de outros, aos deuses. E o sacríficio da própria filha,
então, parece ter sido mesmo uma anormalidade, só comparável a alguns outros
textos antigos, gregos e não gregos, em que o destino de algumas personagens
do mundo divino e heróico se viram constrangidas a entregar os seus próprios
descendentes para apaziguar a ira dos numina. Assim parece ter acontecido com
Cassiopeia, cuja filha, Andrómeda, teve de ser entregue a um monstro marinho
para cumprir a vontade divina 2, ou a Jefté, juiz de Israel a quem Javé exigiu o
cumprimento de uma promessa que implicava a entrega da sua própria filha em
sacrifício3. Nesse mesmo contexto bárbaro, também Abraão passou pela prova de
fogo da oferta do filho e o próprio Javé acabou por entregar o seu à morte para re-
missão dos pecados dos homens. Num outro contexto, não grego mas igualmente
semítico, parece ter acontecido que se ofereciam crianças, talvez os próprios filhos
primogénitos, a Melcart, deus fenício que dominou também as terras de Cartago.
Os Antigos conheciam, portanto, razoavelmente bem esta exigência que por vezes
os deuses enfrentavam ou faziam com que os humanos enfrentassem.
Assim aconteceu também com Agamémnon, dando-se continuidade a uma
maldição que o transcendia, mas que inevitavelmente o atingiu, no cumprimento
daquilo que todos os seus contemporâneos acreditavam. Clitemnestra, porém, a

1 
Um dos textos mais antigos, conhecidos, que menciona este mito, Il. IX, 141-158, refere que Agamémnon tinha três
filhas: Crisótemis, Laódice e Ifianassa. Laódice tem sido interpretada como sendo Electra e Ifianassa como sendo uma
variante de Ifigénia, ainda que S., El. 157, 531-541, distinga ambos os nomes. Crisótemis é também uma das persona-
gens da Electra de Sófocles. Note-se que os Poemas Homéricos parecem desconhecer o mito da imolação de Ifigénia a
Ártemis.
2 
Apollod., Bibl. II, 4, 3; Ov., Met. IV, 665ss.
3 
Jz 11.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 319


Nuno Simões Rodrigues

mulher de Agamémnon, não tinha de dar cumprimento a qualquer maldição, pois


a sua casa, aparentemente, não tinha pecado contra os deuses. Mas a sua irmã He-
lena tratara de desencadear o processo que acabaria também por atingi-la. Raptada
ou não, voluntária ou involuntariamente, seguira Páris, traindo o marido, Mene-
lau, e ofendera Zeus Xénio e a hospitalidade que aquele dera ao hospéde troiano,
quando cumpria o costume estruturador que os Antigos tinham como direito e
obrigação. Ao assumir a liderança do resgate da cunhada e dos exércitos aqueus que
agora se uniam para vingarem tal humilhação, Agamémnon arrastava Clitemnestra
e os seus filhos para uma guerra e para uma série de conflitos que se desenhavam e
acabariam por originar as mais terríveis das tragédias.
Agamémnon partiu e assim deixou uma mulher sem filha, ruminando uma
angústia que acabaria por transformar-se na necessidade de uma vingança, aliás
bem conhecida do povo a que pertencia. Quando a guerra acabou, quando final-
mente Ulisses soube como derrotar os que haviam humilhado um grande de entre
os Aqueus, depois do massacre de todos os grandes troianos, os chefes vitoriosos
fizeram o caminho de volta, trazendo consigo o seu quinhão do combate. É certo
que ouro, jóias e outro bens valiosos constituíam a maioria desse despojo, por eles
considerado merecido. Mas havia ainda as Troianas, as derrotadas que sofriam as-
sim duplamente a dor da derrota e da perda dos seus entes‑queridos, da pátria e da
liberdade. Talvez tivessem sido afortunadadas as que acompanharam os troianos na
morte, assim como Creúsa ou Políxena, que acabou por servir de moeda de troca
na vingança de Ifigénia, que na verdade fora a primeira vítima da Guerra de Tróia.
Mas não foi isso que aconteceu a todas. Não foi isso que aconteceu a Cassandra, por
exemplo, que se viu entregue ao primus inter pares dos Aqueus.
É o nostos de Agamémnon que sugeriu a Ésquilo o tema para escrever a Oresteia.
Quando chega a Argos, o rei encontra uma Clitemnestra que não se limitara a espe-
rar por mais humilhação e sofrimento. A rainha de Argos iniciara já o seu processo
de vingança, desencadeara já a sua resposta à prepotência do Atrida seu marido:
Clitemnestra substituíra-o no leito conjugal por um primo dele, Egisto. Mas esse
é o primeiro grande erro de Clitemnestra, que leva ao desaire no alcance do reco-
nhecimento da sua vingança. O adultério, tolerado aos maridos, tal como a vinda
de Cassandra para Argos testemunha, ou até mesmo o episódio de Criseida e Bri-
seida em pleno decurso da Guerra, era algo estritamente vedado às mulheres. Uma
sociedade que desconhece o funcionamento do ADN não pode dar-se ao luxo de
permitir que se levante a suspeita sobre a paternindade das suas crianças, principal-
mente quando está em jogo um património tão importante como um trono. Desde
cedo, por isso, Clitemnestra granjeou antipatias entre os que sobre ela escreveram.
Na Odisseia, por exemplo, é uma mulher odiada, por cuja morte o filho Orestes
organiza um festim4. O Poeta designa-a mesmo como «mulher destestável»5, «ardi-

4 
Od. III, 309-310.
5 
Od. XI, 410.

320 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Clitemnestra, «Mulher de Máscula Vontade»

losa» e «cadela» assassina da profetisa Cassandra6. De algum modo, com a Odisseia,


Clitemnestra assume o papel que, na cultura judaico-cristã, ficou reservado para
Eva, esquecendo-se qualquer etiologia ligada a Pandora:

Pois é certo que nada há de mais vergonhoso


que uma mulher que põe tais acções no espírito,
como o acto ímpio que aquela preparou,
causando a morte de seu legítimo marido. Pois eu pensava
que regressava a casa, bem querido para os filhos
e para os meus servos. Ela é que, pensando coisas terríveis,
derramou vergonha sobre si própria e sobre as mulheres
vindouras- mesmo sobre aquela que praticar o bem.
.......................................................................
“Ai, Zeus de ampla vista detestou na verdade
a descendência de Atreu, por causa das intrigas femininas,
desde o início! Muitos perecemos devido a Helena;
e contra ti estendeu Clitemnestra o dolo enquanto estavas ausente.” 7

Mas nesse mesmo poema, a rainha de Argos não era necessariamente a assas-
sina material de Agamémnon, atribuindo-se o acto em si ao amante, o filho de
Tiestes8.
A Oresteia de Ésquilo não só comprova a faceta malquista de Clitemnestra na
cultura grega, como a desenvolve. Já se afirmou, contudo, que a rainha de Argos
tanto é uma vilã como uma heroína, no sentido positivo. De algum modo, essa
interpretação estaria mesmo de acordo com a teorização aristotélica9. Assim, Cli-
temnestra tanto seria uma vilã porque age voluntária e deliberadamente, com total
conhecimento de causa, como seria heroína, visto que é uma vítima da injustiça e
por isso compelida a agir10. Se Homero se centrava sobretudo na primeira faceta,
Aristóteles valorizaria decerto a segunda. Efectivamente, não seria difícil encontrar
simpatizantes das duas causas.
A Oresteia tem também sido entendida como uma reflexão sobre a justiça divi-
na e etiologia do tribunal ateniense. Nesse sentido, Clitemnestra, e também Egisto,
representam a velha ordem e a vendetta (ius sanguinis) própria de uma sociedade
de honra e vergonha (themis), enquanto Orestes e a superação do seu dilema en-

6 
Od. XI, 422, 425.
7 
Od. XI, 427-434, 436-439. Usamos a tradução de F. Lourenço. Sobre Pandora, ver Hes., Op., 90-105. e Od. XXIV,
196-202.
8 
Od. IV, 524-537. Em XI, 410, lemos que quem matou Agamémnon foi Egisto com a ajuda de Clitemnestra.
9 
Arist., Po. 1452b30-1454b18.
10 
S. MacEwen, «Views of Clytemnestra, Ancient and Modern. An Introduction» in S. MacEwen, ed., Views of Clytem-
nestra, Ancient and Modern, Lewiston/Queenston/Lampeter, 1990, 4-5. Neste mesmo artigo, a Autora enuncia uma
síntese de todo o tipo de comentários que a figura de Clitemnestra tem merecido por parte de filólogos e historiadores.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 321


Nuno Simões Rodrigues

carnam a nova ordem e a génese de uma sociedade assente no Direito (dike). O


drama dos Atridas subjaz assim à evolução civilizacional e ao nascimento da povli".
Desse modo, a Oresteia deixa de ser um drama pré-romântico, cujo tema seria um
simples adultério, como nota Maria Helena da Rocha Pereira, para se tornar uma
tragédia política, no sentido literal do termo, como qualquer drama grego pretende
efectivamente ser11. Esta interpretação alterna com a que pretende que a essência da
trilogia esquiliana está sobretudo na questão religioso-antropológica, i.e., no pro-
blema da substituição de uma religiosidade ctónica por uma outra uraniana, de que
os Olímpicos são a expressão. Nesta leitura, Clitemnestra e as suas «aliadas» Erínias
representam a terribilidade primitiva que é eliminada por uma força encarnada sin-
tomaticamente no seu próprio filho, este por sua vez apoiado por duas divindades
uranianas, Apolo e Atena12. É por isso significativo que tanto Clitemnestra como
as Erínias sejam figuras femininas, de algum modo dissociadas da beleza. É claro
que se poderia argumentar que Atena, uma figura não ctónica, pertence igualmente
ao universo feminino. Mas podemos contra-argumentar que Atena é uma deusa
guerreira e virgem, que nada sabe do casamento ou da procriação ou sequer da sen-
sualidade. Atena é a mulher mais masculina da Grécia.
Com base em ideias como esta, estabeleceram-se teorias e deram-se apoio a
outras que defendem a existência de períodos primitivos em que o mundo medi-
terrâneo, especialmente aquele que veio a ser ocupado pelos Gregos, terá sido em
tempos controlado por uma sociedade em que pontificaram as mulheres e a ordem
feminina. Mitos como o das Amazonas, o das Lémnias ou o das Danaides, onde
a sociedade é dirigida e regulada por mulheres que se sobrepõem aos homens, che-
gando a eliminá-los, seriam a expressão dessa realidade13. A reflexão que mais escola
e polémica formou foi a de J.J. Bachofen, com Das Mutterrecht, publicado em 1861,
que veio posteriormente a alimentar algumas teorias femininstas e derivadas dos
chamados gender studies, com particular desenvolvimento entre os investigadores
norte‑americanos. Para estes, são de particular relevância as motivações de Clitem-
nestra ao assassinar Agamémnon (talvez os adeptos desta corrente prefiram dizer
«executar»), pois fazem dela uma mulher injustiçada em revolta e não uma adúltera
que decide eliminar o marido para se apoderar do poder na cidade14. Nesse sentido,
11 
Cf. M.H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica I, Lisboa, 19978, 420, 422.
12 
Mas as Fúrias femininas não são simplesmente vencidas por uma nova ordem; são persuadidas pela deusa Atena a
desempenharem um outro tipo de papel na administração da justiça. Como refere M. Lefkowitz, Women in Greek Myth,
London, 1986, 25-26. «Far from being suppressed, as Bachofen supposed, the Furies’ great strength is recognised, since
it is only with their support that Athens will maintain her judicial system and her political and economic importance».
Do mesmo modo, F.I. Zeitlin, «The Dynamics of Misogyny: Myth and Mythmaking in the Oresteia», Arethusa 11/1-2,
149, para Ésquilo, o progresso civilizacional faz-se não a partir de uma coincidentia oppositorum mas sim de uma hie-
rarquização dos valores. Não deixa de ser curioso que o texto esquiliano associe Clitemnestra à serpente, em A., Ch.
247-251, 989-996, animal relacionado com o mundo ctónico.
13 
Uma contestação destas ideias, particularmente em relação às Amazonas, pode ser lida em W.B. Tyrrell, Las Ama-
zonas. Un estudio de los mitos Atenienses, Madrid, 1989, 65-70. Outras perspectivas em A. Iriarte Goñi, De Amazonas a
Ciudadanos. Pretexto ginecocrático y patriarcado en la Grecia Antigua, Madrid, 2002, 161-186.
14 
S. MacEwen, «Views of Clytemnestra, Ancient and Modern. An Introduction», 11.

322 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Clitemnestra, «Mulher de Máscula Vontade»

tem particular o importância o passo em que a rainha diz:

Primeiramente, é um mal terrível estar uma mulher sentada em casa, sozinha,


sem marido, ouvindo muitas notícias que só servem para provocar a ira. E en-
tretanto vêm mensageiros com notícias sempre piores do que as anteriores e a casa
enche-se de gritos. E se este homem tivesse recebido tantas feridas como rumores
chegavam ao palácio, semelhantes a água por condutas, teria mais furos no seu
corpo do que uma rede. E, se tivesse morrido com a frequência das histórias,
poderia jactar-se de, qual outro Gérion de três corpos, ter recebido um triplo
manto de terra, depois de morrer uma vez em cada forma. Com tais notícias
desesperadoras muitas vezes suspendi de um laço o meu pescoço e foram outras
mãos, que não as minhas, que à força me soltaram.15

Com estas palavras, aliás ignoradas no resto da peça e sem quaisquer conse-
quências ao nível do diálogo, Clitemnestra manifesta melhor que em qualquer ou-
tra parte a condição da mulher abandonada pelo homem que assume o seu papel de
guerreiro, revelando que o seu sofrimento é tão grande ou maior do que o daquele
que parte. É importante salientar, contudo, com Lefkowitz, que Ésquilo não pre-
tende que Clitemnestra se tenha tornado um homem, afinal, a deusa Ártemis adora
caçar e matar16. Mas teve um comportamento masculino, como é o de Ártemis, que
juntamente com Atena e Héstia são deusas virgens e, como a primeira, guerreiras,
uranianas. Clitemnestra aproximou-se da faceta uraniana, assumiu uma máscara
do mundo celeste, para reagir à sua condição inferiorizada.
Ao analisarmos a personagem trágica feminina no contexto da Grécia do século
V, porém, percebemos de imediato um paradoxo. A mulher grega entra numa con-
dição ingrata, ao ser colocada como figura central: apesar de protagonista e desse
modo projectada para primeiro plano, é trazida de dentro do oikos para a polis,
alcançando desse modo um protagonismo que não lhe é devido, contradizendo
o ideal feminino dos Gregos17. Como dizem Lefkowitz e MacEwen, para que as
heroínas sejam vistas de uma forma simpática, devem defender a philia ou alguns
outros valores relacionados com o oikos, e de uma forma feminina18. Não é esse o
caso de Clitemnestra que recusa a philia e almeja salvar o Estado ao matar o seu
chefe. Clitemnestra é uma femina politica e isso é algo de constranjedor ou mesmo
de repugnante para a época que a definiu. Compare-se com o que sobre elas diz
15 
A., A. 861-874. Tradução de M. Oliveira Pulquério.
16 
M. Lefkowitz, Women in Greek Myth, 120.
S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra» in S. MacEwen, ed., Views of Clytemnestra, Ancient
17 

and Modern, Lewiston/Queenston/Lampeter, 1990, 31. Cf. X., Oec. 7, 30, que afirma que o lugar da mulher é no oikos,
enquanto o do homem é a polis.
18 
S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra», 29-31. A Autora considera a personagem paradoxal em
si mesma: «Is Clytemnestra the victim or the villain then? The answer of course is a non-answer: because she is a woman
trying to be the savior of civilization, she is the villain, and because women are always the enemy of civilized virtues, she
is the victim of her own paradoxical situation».

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 323


Nuno Simões Rodrigues

Tucídides, na mesma época, através de Péricles (e note‑se como as personagens fe-


mininas estão praticamente ausentes da obra de Tucídides):

Se tenho de falar também das virtudes femininas, dirigindo-me às mulheres


agora viúvas, resumirei tudo num breve conselho: será grande a vossa glória se
vos mantiverdes fiéis à vossa própria natureza, e grande também será a glória
daquelas de quem menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos defeitos.19

Ora, a crise central da Oresteia, que desembocará no conflito causado pelos


laços de sangue, assenta precisamente na revolução feminina e consequente acessão
de Clitemnestra ao poder, pois é nesse momento que a polis entra no caos. O femi-
nino é, por isso, essencial à tragédia de Orestes. Mais, o contraste entre o masculino
e o feminino é fundamental para que o conflito faça sentido. Os laços de sangue da
paternidade exigem a vingança de Orestes, enquanto a ausência deles no casamento
torna o crime de Clitemnestra legítimo aos seus olhos. O feminino, tal como o seu
oposto em todas as manifestações, é omnipresente na Oresteia: deusa, rainha, espo-
sa, mãe, filha, irmã, noiva, virgem, adúltera, ama, feiticeira, sacerdotisa 20.
Mas, apesar do lamento da mulher e independentemente do que o leitor/ou-
vinte pudesse ou possa sentir pela heroína/vilã, das suas justificações e das suas
defesas contemporâneas mais ou menos organizadas, a Clitemnestra de Ésquilo é
claramente uma figura negativa na Oresteia. Como salienta M. Lefkowitz, na quali-
dade de mulher que desencadeia a desordem, Clitemnestra simboliza o irracional, o
indesejável21. O seu poder intelectual simboliza a desordem, porque não cabe a uma
mulher tê-lo (fosse um homem no seu lugar e provavelmente o caos não seria evo-
cado). Clitemnestra tem atitudes que trazem o caos à sociedade grega: o adultério,
o assassínio do marido, a usurpação do poder. Nenhum destes actos, se praticados
por um homem, o transforma numa figura a eliminar por essas mesmas razões,
per se. De algum modo, o tapete vermelho que a rainha estende a Agamémnon
simboliza o sacrifício que está prestes a acontecer e que caberia ao homem celebrar.
Até nisso Clitemnestra usurpa a função. Por isso é a rainha mais censurada que o
seu amante: Egisto faz o que se espera de um homem, sendo punido por invadir o
território de outrem, mas isso não basta para fazer uma história. Diz Orestes:

Da morte de Egisto não falo: sofreu o castigo que a lei reserva aos adúlteros.
Quanto àquela que planeou esta abominação contra um homem, de quem trou-
xe no seio o peso dos filhos, fardo então querido, hoje odiado, como está à vista
de todos: que te parece ela? Moreia ou víbora? Em qualquer caso, um ser capaz
de infectar pelo simples contacto, sem morder, pelo só efeito da sua audácia e da
19 
Th. II, 45.
20 
F.I. Zeitlin, «The Dynamics of Misogyny: Myth and Mythmaking in the Oresteia», Arethusa 11/1-2, 149-150.
M. Lefkowitz, Women in Greek Myth, 120-122; S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra», 17,
21 

nota que Clitemnestra também representa «animal passions and barbarian nomoi».

324 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Clitemnestra, «Mulher de Máscula Vontade»

sua natureza celerada.22

Já Clitemnestra não. Clitemnestra faz aquilo que a audiência de Atenas no sé-


culo V a.C. não esperava de todo de uma mulher. Ela é audaz, logo é a negação da
feminilidade, associada à imagem de um ofídio a ser eliminado. E noutros passos,
tanto é leoa, como vaca 23. É isso que faz dela uma história para se contar e drama-
tizar.
Por outras palavras, a rainha faz coisas do domínio da polis e não do oikos. Esse
contraste acentuado entre mulher e homem, definido pela figura de Clitemnestra
em relação à de Agamémnon, é consonante com o espírito que domina a Oresteia
desde o início: a trilogia começa de noite, no palácio dos Atridas, e termina de dia,
no Areópago de Atenas, com Agamémnon vingado24 . As trevas associam-se a Cli-
temnestra e a luz a Orestes e ao seu acto política e socialmente vitorioso.
Em parte, a história de Clitemnestra é como a das Amazonas: o caos momen-
tâneo que deve ser rapidamente invertido. Uma assembleia de cidadãos, de politai,
encarrega-se de restaurar essa ordem. Seria uma perversão, Clitemnestra como sal-
vadora da polis25. É por isso que o papel cabe a Orestes. O crime de Clitemnestra
é sobretudo político, derivado da sua condição de não nascida para a política. E o
irónico é que é um membro da sua família que tem de remediar a situação, o seu
próprio filho. Reside também aí o conflito trágico da Oresteia.
Ao assumir uma vingança e concretizá-la; ao contrapor a sua força à fraqueza
de Egisto26; ao assumir o seu adultério; ao reivindicar o poder; ao eliminar o rei
e marido com as suas próprias mãos; independentemente do que a Oresteia possa
simbolizar ao nível antropológico (oposição entre cosmovisão ctónica e cosmovisão
uraniana ou entre matriarcado e patriarcado), Clitemnestra reveste-se de um ca-
rácter masculino, reclamando para si características masculinas27. Neste contexto,
o drama de Ésquilo define o seu primeiro nível de percepção, a sua leitura básica,
aquela que seria imediatamente perceptível pelo auditório coevo: a mulher que rea-
ge contra a «prepotência masculina», conferindo sentido aos seus espectadores, mais
que quaisquer leituras mais elaboradas, como as de Bachofen, pois é desse modo que
faz sentido nessa sociedade. Assim, ao mesmo tempo que valoriza a instituição do
22 
A., Ch. 989-996.
Cf. A., Ch. 247-251, onde volta a ser associada à víbora. Em A., A. 1258-1261, é uma «leoa de dois pés», e em A., A.
23 

1125-1127, uma vaca. A análise destes atributos foi feita por A.I.R.S. Rodrigues, Valores masculinos e femininos na Grécia
Antiga. Abordagem antropológica da sociedade e de textos mitológicos e trágicos, Lisboa, 1992, 597-611.
24 
A., A. 20-21.
25 
S. MacEwen, «Oikos, Polis and the Question of Clytemnestra», 27.
Apesar de ser uma figura «feminilizada», de modo a criar a antítese, é nela que a rainha se apoia: «Nele eu tenho o
26 

meu grande escudo de segurança», A., A. 1437.


27 
W.B. Tyrrell, Las Amazonas. Un estudio de los mitos Atenienses, 173-186, considera-a uma figura andrógina, e C.
García Gual, «Mujer y Mito: Insumisas y Trágicas (Clitemnestra, Casandra, Antígona)» in F. Diez de Velasco, M. Mar-
tínez, A. Tejera, eds., Realidad y Mito, Madrid, 1997, 203‑217, uma insubmissa. A.I.R.S. Rodrigues, Valores masculinos
e femininos na Grécia Antiga, 595, fala em hermafroditismo. Ver ainda A. Moreau, «La Clytemnestra d’Eschyle» in P.
Ghiron‑Bistagne, A. Moreau, org., Femmes Fatales, Montpellier, 1994, 153-171.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 325


Nuno Simões Rodrigues

tribunal, ao qual fora outorgado o direito de julgar crimes de sangue, pretendendo


realçar a consciência e a responsabilidade individual, Ésquilo expõe o conflito que
se instituíra entre o masculino e o feminino e as funções político-sociais e até mes-
mo biológicas que ficaram distribuídas por cada um deles. A tragédia concretiza-se
quando a isso se associam os laços de sangue.
Posteriormente, outros Autores colocarão diferentes questões, acentuando uma
ou outra face da problemática. Em Sófocles, por exemplo, o vilão é o tirano Egisto,
mais usurpador político que adúltero, ao gosto dos Sofistas, e Orestes é a grande
personagem28. Em Eurípides, Clitemnestra é fundamentalmente uma vítima da sua
crença infundada na vingança 29 e nos valores tradicionais, ou, como em Ifigénia em
Áulis, uma mulher desesperada que vê a filha escapar-se-lhe, em nome da civilização
grega, através de um acto muito pouco civilizado e sem nada poder fazer. Apesar
de Clitemnestra surgir ainda em textos de Sófocles e Eurípides, é em Ésquilo que a
antinomia inerente à condição de mulher de Clitemnestra melhor se define.
Ao assumir uma vingança e concretizá-la; ao contrapor a sua força à fraqueza de
Egisto; ao assumir o seu adultério; ao reivindicar o poder; ao eliminar o rei e marido
com as suas próprias mãos; independentemente do que a Oresteia possa simbolizar
ao nível antropológico, Clitemenestra reveste-se de um carácter masculino, recla-
mando para si características viris e dando sentido à feliz expressão esquiliana «de
máscula vontade» (oJ kratei' gunaikov" ajdrovboulon)30.
Visto que o real subjaz à ficção, talvez isto signifique que havia mulheres que
se recusavam a ficar em casa e que almejavam a uma participação activa na vida
política, como Aspásia. Ou talvez não, visto que a dramaturgia trágica não é histo-
riografia, mas idealização e sublimação... Todas as mulheres trágicas fazem o que as
mulheres não devem fazer... De outro modo, não seriam personagens de interesse
para a tragédia31.
E que tragédia teríamos se fosse Agamémnon a matar Clitemnestra?

28 
B.X. DeWet, «The Electra of Sophocles- A Study in Social Values», Acta Classica 20, 1977, 29-30. A. Betensky, «Aes-
chylus’ Oresteia: the Power of Clytemnestra», Ramus 7, 1978, 11-25.
29 
A., A. 1431-1437.
30 
A., A. 10, em tradução de M.O. Pulquério. Mas nem sempre, na cultura grega, Clitemnestra aparece deste modo.
Chega a ser sugerida como uma mater dolorosa. Assim talvez a possamos considerar, se tivermos em conta que também
a sua prole, como a de outras matres dolorosae, foi entregue em sacrifício; mas que aqui reage, vingando-se... Sobre Cli-
temnestra como mater dolorosa no Télefo de Eurípides, ver E.C. Nelson, «Clytemnestra in Illustrations of the Telephos
Myth» in S. MacEwen, ed., Views of Clytemnestra, Ancient and Modern, Lewiston/Queenston/Lampeter, 1990, 35-51.
31 
M. Shaw, «The Female Intruder: Women in Fifth-Century Drama», CP 70, 1975, 265-266, sintetiza os aspectos
definidores do conflito masculino/feminino na tragédia: 1º um homem, agindo como homem, age de modo a afectar
uma mulher; 2º a mulher sai do oikos e reage, opondo-se ao homem; 3º a mulher assume actos próprios do homem; 4º
impõe-se uma nova ordem entre homem e mulher. Sobre a especificidade do feminino na tragédia, N. Loraux, Façons
tragiques de tuer une femme, Paris, 1985.

326 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Contradicciones Trágicas:
La Ambigüedad de las Polaridades en el Alejandro de Eurípides

Lucía Romero Mariscal


U. Almería
lromero@ual.es

E l Alejandro de Eurípides debió de ser un drama basado en el enfrentamiento


y en la oposición entre contrarios. Como Ustedes saben, la obra debía de de-
sarrollar el tema del reconocimiento de Alejandro/Paris en la ciudad de Troya tras
la victoria atlética de éste en los juegos funerarios que se celebran en su honor con
motivo del vigésimo aniversario de su supuesta muerte. La tragedia se basaba en
el summum de la apatê, por emplear un término gorgiano muy al caso, donde no
sólo sucede lo contrario de lo que se espera, sino que la tensión que vertebra toda
la trama, la competición entre adversarios e ideas en oposición, se sostiene sólo en
apariencia, quedando en evidencia la incertidumbre de nuestros juicios sobre el
mundo de la acción.
La historia de Alejandro es una sucesión de elementos que se oponen en el mar-
co de un enfrentamiento: un vivo que participa en sus propios juegos funerarios, un
pastor del Ida que compite con príncipes de Ilión, un esclavo que se enfrenta a sus
señores, un siervo que se mide con hombres libres. En el Alejandro debían de repre-
sentarse todas las oposiciones significativas de la identidad en el mundo antiguo:
campo/ciudad, naturaleza/cultura, inclusión/exclusión, centralidad/marginalidad,
esclavitud/libertad, excelencia/vileza. Lo singular, sin embargo, es que estos niveles
de oposición articulan la ironía trágica del drama, dejando en evidencia la ambi-
güedad moral que los constituye como teoría. El pastor que vence a los nobles es en
realidad un príncipe, cuya victoria traerá, sin embargo, la derrota y el duelo para la
ciudad que ahora lo acoge entre vítores de salvación. Nada es lo que parece, y sólo
la distancia temporal de los hechos permite una visión más firme de la complejidad
del devenir1.
Como revela la hypothesis del drama [Texto 1], el nudo de la acción estaba desa-
rrollado por un enfrentamiento marco: la celebración de unos certámenes atléticos
(  ) como timê política 2. Los reyes de Ilión deciden conmemorar el sacrificio
de su hijo, expuesto al nacer, mediante la celebración de unos juegos funerarios. La
*
Este trabajo ha sido realizado en el marco del proyecto de investigación que lleva por título «Argumenta Dramatica.
El teatro como argumento retórico y filosófico en la Antigüedad» (BFF 2002-00084 DGICYT, España). Agradezco al
investigador principal del proyecto, D. Juan Luis López Cruces, así como a los profesores D. Javier Campos Daroca y
D. Javier García González, su inestimable ayuda para que esta comunicación fuese posible.
1 
Algo que el mismo Príamo expresa, aun sin ser del todo consciente del verdadero valor de estas palabras, al dirigirse
a Alejandro en el fr. 19 (= 60 Nauck 2)::   <>       /        <>
  . Aceptamos, con la mayoría de los editores y estudiosos de la obra, que debía de ser Príamo, en efecto, quien
pronunciara estos versos. La numeración que empleamos de los fragmentos en este texto es la de la edición de Belles
Lettres (VIII 1: Paris, 1998) a cargo de F. Jouan & H. Van Looy.
2 
Hypothesis, l. 7-11, especialmente la línea 9:   []    .

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 327


Lucía Romero Mariscal

muerte del niño queda asimilada, de esta forma, a la muerte del héroe por la ciudad,
cuya memoria es celebrada en el ámbito de la comunidad a través de la competición
atlética, donde, como en el campo de batalla, el noble puede hacer ostentación pú-
blica de sus proezas y demostrar su valor mediante la victoria personal y la derrota
del adversario. Los juegos funerarios, instituidos con motivo de la celebración ho-
norífica de un héroe muerto en combate, colaboran de esta forma en la imitación
de un enfrentamiento en el que se mide la aretê personal de aquellos que integran la
comunidad de la que formaba parte el héroe que ha dado su vida por ella y que por
ella recibe, a cambio, la compensación de un honor equiparable.
La tragedia de Alejandro hace, sin embargo, de este momento celebrativo un
problema cívico: el problema de la participación, de la discriminación de una no-
bleza política. El momento marco de la celebración de los juegos funerarios divide
la tragedia en dos mitades, el antes y el después de las competiciones atléticas,
protagonizadas por Alejandro. Estos dos momentos dramáticos se desarrollan, a su
vez, en forma de enfrentamiento; en ellos tiene lugar otro modo de confrontación,
en este caso verbal: el agôn correspondiente a los episodios que anteceden y suceden
a los juegos. Los juegos dirimen en el ámbito de la acción la controversia verbal que
los precede y cuyas consecuencias se debatirán también posteriormente.
La hypothesis relata que Alejandro, maniatado, es presentado ante el rey Príamo
por un grupo de pastores que no soportan la insolencia del joven en su trato diario3.
Es posible que ésta fuera la primera aparición de Alejandro en escena y que, entre
otros motivos de acusación, los pastores adujeran como prueba última de la hybris
del boyero su insólito deseo de tomar ahora parte en los juegos. El rey atiende la
situación de discordia o revuelta popular que se ha originado en torno a Alejandro
y adopta el papel de juez que dirime la confrontación. El joven debía de defenderse
de las acusaciones de los demás pastores con tal vehemencia (insistiendo proba-
blemente en su deseo de participar en las competiciones atléticas para demostrar
su valor) que Deífobo –quien, al parecer, se encontraba en compañía de su padre
Príamo– interviene también en el debate en contra del boyero. Finalmente, el rey,
impresionado por las razones y la actitud de Alejandro –que, según la hypothesis,
refutó uno a uno a sus acusadores4 –, permite al pastor que participe en los juegos
funerarios.
La participación de Alejandro en los juegos resulta una anomalía excepcional:
por su condición de pastor, está, en principio, excluido de este tipo de celebraciones
públicas5. Es un hombre del campo, ajeno a la ciudad; su espacio es el de la natura-
leza, el de las montañas del Ida, donde apacienta los ganados del rey a cuyo servicio

3 
Hypothesis, ll. 15-17.
4 
Hypothesis, ll. 17-21. La hypothesis dice “a sus calumniadores” (), pues ha dejado claro desde el principio
que la naturaleza noble de Alejandro era verdaderamente superior a la de un pastor (ll. 13-14), como hijo de reyes que
era; de ahí que el orgullo del joven sea legítimo y las acusaciones de los demás pastores queden convertidas en meras
calumnias.
5 
Sobre las fuentes antiguas y la bibliografía moderna al respecto, cf. Scodel 1980: 84.

328 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Contradicciones Trágicas

se encuentra. Es, por lo tanto, un siervo sometido por necesidad a los esfuerzos de
un trabajo ajeno. Los juegos funerarios, por el contrario, constituyen otro tipo de
esfuerzo en su calidad de povnoi, un esfuerzo absolutamente gratuito que se hace
muestra de libertad y excelencia, y cuyo premio es inalienable. Junto con los ritos
funerarios, los juegos son manifestación pública de un mundo organizado en valores
sociales, expresión de un esquema moral determinado por el lugar que ocupan sus
participantes en la sociedad heroica6. De ahí la insistencia del discurso de Deífobo
en señalar la condición servil y miserable de los congéneres ( ) de Alejandro7,
el supuesto pastor a quien, en definitiva, se dirige Deífibo como antagonista.
Los términos en los que se expresa el discurso de Deífobo destacan las oposi-
ciones siervo/señor (  /), noble/miserable (kalov"/kakov") con las que
éste quiere subrayar el hiato insalvable que separa al pastor de aquéllos con quienes
pretende equipararse y medirse en competición. Para Deífobo, el esclavo carece de
disciplina [Texto 2] y sus intereses son groseros por cuanto están dictados por la
necesidad y atienden exclusivamente a su sustento [Texto 3]. Los fragmentos con-
servados son exiguos, pero nos permiten adivinar la contrapartida de la diferencia:
al contrario que los esclavos, los kaloi miran hacia algo más que el alimento necesa-
rio, dando muestras de su libertad en el mundo de la acción. De ahí que un kakos
no pueda medirse con un kalos en la pugna por la aretê.8
Alejandro, sin embargo, refuta estos principios desplazando significativamente
los términos de la oposición a otro tipo de categorías semánticas; al mismo tiempo,
invierte los valores de los términos enfrentados, socavando los cimientos de la moral
tradicional (aristocrática). El pastor, que no acepta la condición de esclavo que los
demás quieren imponerle9, prefiere trasladar la diferencia del ser al tener: su condi-
ción no es la de la esclavitud sino la de la pobreza10, de forma que los términos que
se oponen son los de riqueza/pobreza (  /) en un régimen de valores
también sociales y morales [Texto 4]. Lo extraordinario es que Alejandro confiere
precisamente el valor superior a la pobreza, que en el mundo antiguo, especialmente
de época arcaica y clásica, solía, sin embargo, ser considerada óbice de la virtud11.
Muy al contrario, para Alejandro la pobreza impone un régimen de vida austero y
eficaz, a diferencia de la riqueza, cuya vida muelle y regalada promueve la inacción

6 
MacIntyre 1987: 156 y 163.
7 
Frr. 11 (= 50 Nauck 2) y 13 (= 59 Nauck 2).
8 
Ni siquiera en un régimen democrático como el ateniense se niegan tales presupuestos. Cf. Adkins 1972: 65-67. Sobre
la conciencia de clase o status de la aristocracia ateniense y su kalokagathia, incluso en los siglos V y IV a. C., cf. Ober
1989: 251-252.
9 
Algo que reprocha incluso a sus compañeros de esclavitud, a quienes trata de hacer ver que llevan el nombre de esclavos
por puro azar, no porque esa sea su condición natural o su talante. Cf. fr. 8 (= 57 Nauck 2), si aceptamos, junto con la
mayoría de editores y estudiosos de esta obra, que era Alejandro quien pronunciaba estos versos. Vid., al respecto, Scodel
1980: 30 y Jouan & Van Looy 1998: 63, nota 47.
10 
Cf. Scodel 1980: 30. Este cambio posee también tintes políticos: mientras que la oposición esclavo/señor pertenece al
ámbito del oikos, la oposición pobre/rico pertenece al de la polis. Cf. Citti 1978: 20 y 25.
11 
Cf. Adkins 1972: 63 y 115-116.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 329


Lucía Romero Mariscal

e, incluso, la injusticia [Texto 5]. Las palabras de Alejandro provocan en el teatro el


mismo escándalo moral que las de Sócrates en Atenas, con quien se llegó a decir, y
creer, que Eurípides tuvo una estrecha relación. Su desprecio por la riqueza material
o de cuna se corresponde con la importancia que, como contrapartida, se otorga a la
educación, lo que nos lleva a otra forma de polaridad significativa: la oposición entre
physis/paideusis. La condición natural puede mejorarse o malograrse por medio de la
educación, cuyo régimen de vida acaba por constituirnos moralmente, es decir, por
troquelar nuestras virtudes y defectos; de ahí que el pastor haga depender el valor
de la eujandriva de un proyecto humano (  )12 susceptible de evaluación.
Para Alejandro, la riqueza y los excesivos lujos constituyen, en este sentido, una
mala decisión (    ) con vistas a la virtud cívica más preciosa tanto
en el campo de batalla como en las competiciones atléticas, pues, –a diferencia de la
pobreza– la riqueza y los refinamientos (        ) no educan
en el esfuerzo ni en la actividad13.
Las razones de Alejandro le permiten, finalmente, participar en los juegos14, y
sus actos vienen a confirmar sus palabras15: el pastor triunfa en las competiciones y
es coronado vencedor frente a los nobles troyanos, a los que ha superado16. La noti-
cia de la victoria del boyero es transmitida por un mensajero en nuevos términos de
oposición [Texto 6]: un esclavo ha vencido no ya a sus señores sino a hombres libres
(  / ), por lo que la victoria del siervo se interpreta como una derrota
afrentosa para aquéllos y para el mismo rey.
Al vencer en los juegos, Alejandro arrebata al resto de los competidores el pre-
mio de la excelencia, haciendo valer su superioridad a través de la derrota de los de-
más. Como en el campo de batalla, en los certámenes atléticos el mérito es absoluto,
ostentado sólo por el vencedor, que deja privados de aquél a los vencidos. Este tipo
de agôn es una forma de enfrentamiento de suma cero (zero-sum), donde aquello
que se gana es directamente proporcional a lo que pierde el adversario17; aunque la
competición se establece entre iguales, la crisis se genera en cuanto que el resulta-
do es exclusivamente individual. De ahí la reacción de Deífobo, cuya humillación
resulta tan insoportable que, no pudiendo sufrir la conformidad de Héctor, acude
a su madre para vengarse del esclavo con la intención de darle muerte. Deífobo,

12 
La transmisión textual del pasaje ofrece una variante de interés, en este sentido, que merece la pena consignar. Cle-
mente de Alejandría (Strom. IV 5. 24, 3) transcribe paivdeuma, frente a Estobeo IV 33, que transmite   . Cf.,
sobre esta cuestión, Jouan & Van Looy 1998: 65, nota 53.
13 
Fr. 16 (= 54 Nauck 2).
14 
Hypothesis, ll. 19-21.
15 
Algo que es probable que el propio Alejandro hubiera valorado en su intervención anterior. Si era Alejandro la persona
loquens del fr. 15 (= 61 Nauck 2), entonces reprochaba muy posiblemente a Deífobo, a quien tildaba con cierta ironía de
“sabio” por la elocuencia de que había hecho gala en el debate, que sus palabras no se correspondieran con sus actos.
En efecto, Deífobo no podrá demostrar su superioridad sobre el pastor cuando compitan en las pruebas atléticas de los
juegos.
16 
Cf. frr. 22 (= 18 Snell) y 28. 6 (= 43. 41 Snell).
17 
Sobre este tipo de aretê competitiva en el mundo griego, incluso de época clásica, cf. Ober 1989: 250-251.

330 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Contradicciones Trágicas

en efecto, se siente «dolido en su fuero interno» por considerar que «un esclavo ha
privado a hombres libres del premio merecido»18: la tensión que genera la desigual-
dad establecida en la diferencia se hace, en este caso, extrema y exige una drástica
reparación que restituya el orden originario19.
Toda competición por la excelencia despierta este tipo de tensión, donde el éxi-
to se hace garantía de superioridad y la derrota de sometimiento. Que esta tensión
comunitaria no derive en revuelta depende del acatamiento del resultado por parte
de los vencidos, que quedan reducidos a una situación de inferioridad respecto al
vencedor. En el ámbito de la competitividad, la victoria es la prueba del valor, y
cuanto mayor es el éxito, tanto mayor es la aretê demostrada. En el ámbito de la
comunidad participativa, la superioridad conferida por el éxito deviene poder y
otorga al vencedor una condición libérrima respecto a los vencidos. Coronado con
la victoria, Alejandro, tras haber dado muestras de comportarse como un hombre
libre entre libres, se hace de pronto con un kratos20 que designa su dominio, pero
con connotaciones de ilegitimidad que lo asimilan al tirano21.
La reacción de Deífobo es consecuencia de este gradiente de anomías que ha
provocado la participación de Alejandro en los juegos22. Tiene por finalidad la res-
titución del orden político y social de la ciudad, que ha sido puesto en jaque, así
como la consideración moral de los que han sido públicamente deshonrados23. La
anagnorisis evita que el medio de esta reparación sea la muerte, pero cumple el
mismo efecto: al reconocer la naturaleza noble del supuesto pastor, la competición
reduce la diferencia mediante la igualdad de los participantes y la victoria se acepta
en términos no cualitativos.
El reconocimiento de Alejandro como hijo de Príamo y Hécuba, ¿viene, enton-
ces, a refutar las palabras del pastor sobre el verdadero valor, nobleza y educación?
18 
Si aceptamos los suplementos de Wilamowitz. Así, dice Deífobo:    ]       [/
    ]     [ (fr. 25. 9-10 = Nauck 2). Cf., también, los fragmentos 28. 1-2 (=43. 36-37
Snell) y 29. 3 (= 43. 73 Snell).
19 
Recordemos que Deífobo había señalado en el fragmento *12 (= 976 Nauck 2) los peligros de indisciplina y orden
que entrañaban los esclavos, un rasgo típico de la diferencia con el hombre libre, es decir, con el ciudadano. Cf. Ober
1989: 270.
20 
   [  / , asume Héctor en su conversación con Deífobo en el fr. 26. 14-15 (= 43. 98-99 Snell).
21 
Cf. Adkins 1972: 67-69, para quien “the more success, the more arete; and the person who has the most arete of
all, in a city that contains one, is the tyrant. (...) The tyrant has become the most agathos and the most eleutheros, for
eleutheria is manifested in ruling over others and in not submitting to the rule of others oneself. (...) The tyrants seem
frequently to have risen to power by championing the cause of the kakoi”. Después de haber defendido una nobleza no
exclusivamente de cuna sino fruto, sobre todo, de una sobria educación en la pobreza, la imagen del vencedor, oriundo
del campo, asimilado a los kakoi e introducido en la fortaleza por los vítores de la ciudad, hace especialmente plausible
esta similitud. También en el régimen de gobierno democrático, kratos está unido a nikê, aunque esta relación trate de
neutralizarse a través de la persuasión. Cf. Loraux 1997: 19.
Recuérdense las palabras del propio Deífobo en el debate anterior a los juegos, fr. 9 (= 51 Nauck 2):      /
22 

        .


23 
Aun con las salvedades necesarias a la teoría de la competitividad y la colaboración desarrollada tiempo atrás por
Adkins, consideramos válidas algunas de sus observaciones como trasfondo explicativo. Cf., en este sentido, Adkins
1972: 70-71: “Competitive arete enjoins civil strife on anyone who suffers political defeat, for such defeat is aischron, and
shows one to be inferior, kakos. To remove such a stain any means are justified”.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 331


Lucía Romero Mariscal

Al unir estas consideraciones al estatuto de una naturaleza regia, su alcance queda,


cuando menos, limitado. Como se viene observando, el género de la tragedia suele
poner en cuestión algunos de los principios constitutivos de la ideología de la ciudad
antigua, exponiéndolos a representaciones imaginarias extremas y controvertidas,
pero suele también terminar siempre por sancionar la norma, aun haciéndonos ver
su carácter complejo24. El Alejandro de Eurípides no viene a demostrar que un kakos
se puede comportar como un agathos25, sino que un agathos se comporta siempre
como un agathos, a pesar de su apariencia; la condición natural de la nobleza se
impone sobre naturalezas inferiores y reclama sus derechos26. Con todo, el régimen
de vida resulta igualmente determinante con vistas a la excelencia 27.
La obra terminaba con las profecías de Casandra (y de Afrodita) sobre la ruina
de Troya en el momento del reconocimiento de Alejandro28. Al abandonar la vida
esforzada del campo, el nuevo príncipe mudará sus inclinaciones en el mundo de
la acción, corrompido por la vida de riqueza y placeres que en su hábito de pastor
despreciara 29. Un intermedio entre esta dualidad se propone, sin embargo, en la
tragedia a través de la voz colectiva del coro. En un canto con claras alusiones a
la ciudad de Atenas y a uno de los mitos más queridos de su identidad común, el
de la autoctonía [Texto 7], el poeta destaca la nobleza originaria compartida por
todos los humanos, nacidos de la tierra, nobleza a la que atribuye dos cualidades
peculiares: la inteligencia y la sensatez, características de un nuevo curso de acción
–el de la vida del espíritu– contemplado también en algunas otras piezas euripídeas
de la época.

24 
Así, Buxton 2002: 184, para quien “Through the medium of tragic myth, Athenian society was able to test the we-
aknesses in its own structures in such a way that, however terrifying the consequences within the dramatic frame, the
society which held that frame could continue to function”. Cf., también, Wohl 1998: xxiii-xxiv, xxvi y 186, nota 19,
donde concluye: “tragedy ultimately limits the openness of the questions it asks”. Más radical, aun admitiendo ciertas
críticas sensibles, es Citti 1978: 269-270, para quien la tragedia es un instrumento al servicio de la ideología del estado
y, por consiguiente, de la clase dominante, tanto en los fueros de la propiedad como de la política.
Se ha discutido sobre la influencia en el Alejandro de Eurípides del pensamiento de Antifonte y otros sofistas acerca
25 

de la igualdad entre libres y esclavos, pero, como concluyera Citti 1978: 206, “è estremamente significativo il fatto che
Euripide faccia enunciare sulla scena i principi di Antifonte, perché i fatti diano loro la più clamorosa smentita”. Cf.,
también, Scodel 1980: 88-89.
26 
Cf. Ober 1989: 251, quien, precisamente, señala: “The growth of democracy in the fifth century resulted in major
changes in the political role aristocrats were able to play in Athens (...) but some of the key concepts underpinning the
ideology of aristocracy –the belief in the inheritability of attributes, the association of inborn attributes with a distinc-
tive pattern of behavior, and the conviction that some individuals deserved special privileges as their birthright– were
extremely tenacious and survived into the fourth century and beyond. Consequently, there remained much that was
identifiably “aristocratic” in the political ideology of democratic Athens”. Sobre el “assorbimento culturale” de estos
principios en la tragedia, en general, y en Eurípides, en particular, vid., también, Citti 1978: 20-21 y 205.
27 
Como observara Scodel 1980: 89, “The argument of Paris is still valid, for his defeat of his brothers proves that his
early life has influenced him for better”.
28 
Hypothesis, ll. 27-28 y fr. *32 (= 935 Nauck 2), *33 (= 968 Nauck 2), **34 (= 414 adesp. Nauck 2) y, también, fr. *40 (=
1082 Nauck 2), ya sea pronunciado por Afrodita o por Casandra.
29 
Sobre la imagen de Alejandro como quintaesencia de , cf. Scodel 1980: 90.

332 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Contradicciones Trágicas

Texto 1: Hypothesis


       
      
   
 ± 11     

5  ± 9       
 ± 10     
     
         
  
            
10            
          
   
          
  
                
  ± 9
15   
         
         
                    
     . 1-2     
                
20 
 
             
     
 
    
   
 
       
25    
         
     
       
 
         
       
30            
    
         

Alejandro, cuyo principio es:


«[Esta de aquí es Troya] y la ilustre Ilión»
Y el argumento [es]:

[Debido a] unas visiones de Hécuba en un sueño [acerca de Paris, Príamo] en-

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 333


Lucía Romero Mariscal

tregó la criatura [a un pastor] para que fuera expuesta. [Pero un boyero lo encontró
y] lo crió como a un hijo, dándole por nombre Alejandro {Paris}. Hécuba, por su
parte, deplorando aquel día y, al mismo tiempo, considerándolo merecedor de una
compensación honorable, lloró, por un lado, al expósito y, por otro, convenció a
Príamo para que instituyera en su honor unos [muy espléndidos] juegos. Transcurri-
dos veinte años, el joven parecía de un natural [superior] al del boyero [que lo había
criado]. Los otros pastores, dado su soberbio trato, lo ataron y lo llevaron a presencia
de Príamo. Cuando fue interrogado ante el rey, [se defendió con facilidad], venció a
cada uno de sus injustos acusadores y se le permitió tomar parte en los juegos que se
estaban celebrando en su honor. En la carrera, en el pentatlón y en el pugilato [ven-
ció, por lo que] enfureció a Deífobo [y los suyos], quienes, al ver que habían sido
vencidos por un esclavo, juzgaron conveniente que Hécuba le diera muerte. Una
vez se hubo presentado Alejandro, Casandra, enloquecida, lo reconoció y se puso
a profetizar los acontecimientos venideros, y a Hécuba, cuando se disponía a darle
muerte, la detuvieron. Como hubiera comparecido el que lo crió, se vio forzado a
decir la verdad debido al peligro. Así pues, Hécuba reencontró a su hijo

Texto 2: Fr. *12 (= 976 Nauck 2)

  
 
   
<DEÍFOBO> Indisciplinados en el trato son los hijos de los esclavos.

Texto 3: Fr. 10 (= 49 Nauck 2)

      


 
  
<DEÍFOBO> Lo tengo comprobado: que así de villano es el linaje esclavo.
Vientre es todo él, y, no ve nada más allá.

Texto 4: Fr. 16 (= 54 Nauck 2)

    



  
 
  
     
 
 

<ALEJANDRO> Con vistas a la valentía, una mala decisión es para los hom-
bres la riqueza y los refinamientos en exceso; la pobreza, en cambio, es lamentable,
pero, con todo, nutre a hijos más esforzados y activos.

334 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Contradicciones Trágicas

Texto 5: Fr. 17 (= 55 Nauck 2)

      


 

<ALEJANDRO> Injusta es la riqueza, y muchas cosas hace de forma no correcta.

Texto 6: Fr. 23 (= 47 Nauck 2)

      


    
    
   
     
 

<MENSAJERO> Donde debías vencer, eres infortunado, señor;


y donde no debías, eres afortunado. Pues gracias a tus esclavos
vences, y no gracias a los libres.

Texto 7: Fr. 20 (= 52 Nauck 2)

     


   
    
    
5 
 
 
  
    
 

  
     
10      
  

CORO Vana palabrería es el discurso si la nobleza de nacimiento


de los mortales nos disponemos a elogiar.
Pues desde antiguo y desde el primer día en que nacimos
La tierra que nos dio a luz nos distinguió
5 cual mortales y a todos nos ha criado el suelo con
una misma apariencia. Nada propio teníamos,
una sola raza tanto lo noble
como lo innoble engendró,
mas por convención sanciona el tiempo ese orgullo.
10 La sensatez y la inteligencia son la nobleza,
[y] la concede la divinidad, no la riqueza...

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 335


Lucía Romero Mariscal

Bibliografía

Adkins 1972 = A. W. H. Adkins, Moral Values and Political Behaviour in An-


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336 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


R epresentação retórica da mulher
na tragédia grega

Vítor Ruas
U. Açores
vrua@notes.uac.pt

N a tragédia grega, podemos observar dois tipos antagónicos de caracteriza-


ção de figuras femininas. Surgem assim em cena, por um lado, figuras cuja
caracterização se enquadra perfeitamente no conceito que a tradição histórico-
literária nos dá da mulher ateniense1 e, por outro lado, outras figuras que parecem
contradizer esse mesmo conceito. Não deixa de ser significativo notar que estas
últimas são aquelas que mais famosas ficaram para a posteridade2, sendo aliás à
volta delas, ou com a sua forte participação, que os argumentos das tragédias são
urdidos. Entre estas, destacam-se, por exemplo, cinco grandes vultos femininos:
Clitemnestra, Antígona, Electra, Fedra e Medeia. As primeiras, de que é exemplo
Ismena, a irmã de Antígona, parecem figurar apenas para compor o cenário huma-
no feminino que dá corpo ao desenvolvimento das acções evocadas.
Além deste aspecto contraditório, as falas das figuras femininas mais proemi-
nentes também revelam uma certa dose de ambiguidade, particularmente nos mo-
1 
Na realidade, as fontes literárias colocam-nos grandes dificuldades em conhecer a vida real das mulheres do século V
ateniense. Poucos são os textos que relatam acontecimentos ocorridos no interior das casas atenienses, o lugar onde as
mulheres passavam a maior parte do seu tempo. Contudo, sabe-se que elas tinham uma participação activa em determi-
nados acontecimentos decorridos em espaços semi­‑públicos, tais como em casamentos, funerais e cerimónias religiosas.
Josine H. Blok traçou num mapa o território da cidade de Atenas onde as vozes de mulheres podiam ser ouvidas (cf.
“Virtual Voices: Toward a Choreography of Women’s Speech in Classical Athens”, in Lardinois, A. & McClure, L.
(eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature and Society, Princeton-Oxford, 2001, 95-116). Vide
também, da mesma autora, “Sexual Asymmetry: a Historiographical Essay”, in Blok, J. & Mason, P. (eds.), Sexual
Asymmetry: Studies in Ancient Society, Amsterdam, 1987, 1-57. Vide, ainda, Gould, J. P., “Law, custom and myth:
aspects of the social position of women in classical Athens”, Journal of Hellenic Studies 100 (1980): 35-59; Foley, H.
“The conception of women in classical Athens”, in eadem (ed.), Representations of Women in Antiquity, New York, 1981,
127-168; Cantarella, E., Pandora’s Daughters. The Role and Status of Women in Greek and Roman Antiquity (trans. by
Maureen B. Fant), Baltimore and London, 1986; Zeitlin, F., “Playing the other: theatre, theatricality and the feminine
in Greek drama”, in Winkler, J., Zeitlin, F. (eds.), Nothing to Do with Dionysos?, Princeton, 1990, 63-96; Lefkowitz,
M. R., Fant, M. B. (eds.), Women’s Life in Greece & Rome. A Sourcebook in Translation, Baltimore-London, 19922;
Fantham, E. et al., Women in the Classical World. Image and Text, Oxford, 1995; Hawley, R., Levick, B., Women in
Antiquity. New Assessments, London-New York, 1995; Seidensticker, B., “Women on the tragic stage”, in Goff, B.
(ed.), History, Tragedy, Theory: Dialogues on Athenian Drama, Austin, 1995, 151-173.
2 
Cf., entre muitos exemplos, Easterling, P. E. (ed.), The Cambridge Companion to Greek Tragedy, Cambridge, 1997
(“Part III: Reception”, 209-347). Vide, também, Capeloa Gil, I., Mitografias. Figurações de Antígona, Cassandra e Me-
deia no Drama de Expressão Alemã do Século XX (Diss. de Dout.), Lisboa, 2002. Relativamente a adaptações modernas
dos trágicos gregos, vide McDonald, M., Ancient Sun, Modern Light: Greek drama on the Modern Stage, New York,
1992; Colakis, M., The Classics in the American Theater of the 1960s and Early 1970s, New York, 1993; Green, A. S.,
The Revisionist Stage: American Directors Reinvent the Classics, New York, 1994; Hartigan, K., Greek Tragedy on the
American Stage: Ancient Drama in Commercial Theater, 1882-1994, Westport and London, 1995. Vide, ainda, o inven-
tário das representações de teatro de tema clássico grego e latino em Portugal, no século XX e primeiros anos do XXI, in
Silva, M. F. (coord.), Representações de Teatro Clássico no Portugal Contemporâneo: vol. I, Lisboa, 1998; vol. II, Lisboa,
2001; vol. III, Coimbra, 2004.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 337


Vítor Ruas

mentos em que estas heroínas tecem comentários acerca de questões do domínio


público e do domínio privado. Nestes comentários, são perceptíveis algumas tensões
existentes entre família e pólis, como teremos ocasião de observar adiante no estudo
de duas destacadas figuras femininas da tragédia grega, Clitemnestra e Antígona.
Na democracia ateniense, a identidade cívica masculina assentava, de forma
bastante significativa, no domínio do discurso elocutório para a defesa de causas
públicas e privadas, estando reservado às mulheres um registo discursivo diame-
tralmente oposto3. A voz pública das mulheres fazia-se ouvir através de lamentos,
geralmente associados a práticas religiosas ou fúnebres (olophyrmos, goos, thrēnos,
ialemos). A sua voz também podia ser ouvida em canções do ritual de casamento
(hymenaios), em coros de raparigas (partheneion) e de mulheres (ololygē). E, em am-
bientes privados, as mulheres entoavam canções de embalar (katabaukalēsis) e récitas
que acompanhavam a sua actividade de fiação (ioulos). Gracejos grotescos (aiskhro-
logia) e maledicências eram, de um modo geral, também registos discursivos asso-
ciados às mulheres; e tinham lugar cativo, por exemplo, por ocasião dos festivais
exclusivamente femininos em honra de Deméter. Na comédia de Aristófanes, em
As Mulheres que Celebram as Tesmofórias4, possuímos exemplos desta observaçã5o.
Há, no entanto, que assinalar que, nesta comédia, tal como em As Mulheres no Par-
lamento6, do mesmo autor, a representação de figuras femininas está perspectivada
segundo a óptica masculina. As mulheres postas em cena agem de acordo com as
características e preconceitos que o género masculino lhes atribui.
A mulher comum ateniense não desempenhava um papel destacado em termos
de participação activa na defesa de causas públicas e princípios éticos – aliás, as
mulheres nem sequer usufruíam do direito de voto7. A mulher grega estava excluída
da vida política e militar da sua cidade: não fazia parte da Assembleia; não cons-
tituía membro de júris; nem sequer podia falar em tribunal. A educação que lhe
era ministrada não a habilitava para desempenhar tais funções. A sua participação
pública estava limitada, quase em exclusivo, a actividades religiosas. No entanto, a
3 
Cf. McClure, L., “Gender and verbal Genres in Ancient Greece”, Spoken Like a Woman. Speech and Gender in Athe-
nian Drama, Princeton, 1999, 32-69; sobretudo, 38-40.
4 
Vide, em tradução portuguesa, Aristófanes, As Mulheres que Celebram as Tesmofórias (Introdução, versão do grego
e notas de Maria de Fátima de Sousa e Silva), Coimbra, 1978.
5 
Cf. McClure, L., “Obscenity, Gender, and Social Status in Aristophanes’Thesmophoriazusae and Ecclesiazusae”,
Spoken Like a Woman. Speech and Gender in Athenian Drama, 205-259; e O’Higgins, D. M., “Women’s Cultic Joking
and Mockery: Some Perspectives”, in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in
Greek Literature and Society, 137-160. Sobre a crítica de Aristófanes à tragédia euripidiana, vide Sousa e Silva, M. F.,
“Crítica ao Género Trágico. As Mulheres que Celebram as Tesmofórias”, Crítica do Teatro na Comédia Antiga, Lisboa,
1997 (reimpressão da edição do INIC de 1987), 105-155. Em relação à personalidade feminina na tragédia euripidiana,
escreve a autora: “Dentro da tragédia, é em Eurípides que vemos assimilado este interesse feminista da época. As figuras
femininas sucedem-se, numerosas, no seu teatro, de posse de uma inteligência que em nada desmerece da do homem”
(ibidem, 106). Cf., ainda, Lourenço, F., “Feminismo Prazenteiro nas Tesmofórias de Aristófanes” e “Obscenidade e
Mimese no Prólogo de Tesmofórias”, in Grécia Revisitada, Lisboa, 2004, 178-186 e 187-195, respectivamente.
6 
Vide, em tradução portuguesa, Aristófanes, As Mulheres no Parlamento (Introdução, versão do grego e notas de
Maria de Fátima de Sousa e Silva), Coimbra, 1988.
7 
Sobre a mulher ática, vide Patterson, C. B., “Hai Attikai: The Other Athenians”, Helios 13 (1986): 49-67.

338 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representação retórica da mulher na tragédia grega

voz silenciosa das mulheres gregas tornou-se pública em raros momentos da história
literária grega.8 Safo constitui um exemplo significativo da emergência de uma voz
feminina no contexto da lírica arcaica.
Na tragédia grega, a representação de papéis femininos proeminentes obedece a
um esquema complexo de referencialidade. Os discursos das heroínas mais proemi-
nentes são reveladores de uma mestria assinalável na arte elocutória própria dos ho-
mens de Estado. E estas heroínas fazem uso dessa mestria para desafiar e subverter o
poder instituído. Se atendermos ao facto de que a mulher ateniense não possuía um
poder público decisório, facilmente se perceberá que estas figuras femininas postas
em cena pelos poetas trágicos funcionam, pela sua heroicidade e espírito corajoso,
como veículos de alteridade. Através destas figuras, são aprofundados certos temas
dificilmente aceites por grande parte dos cidadãos atenienses num outro contexto
mais realístico, que não o da representação dramática9. Na tragédia grega, estas
heroínas transportam assim para cena, de forma camuflada, pensamentos inconfes-
sáveis, verdades difíceis de partilhar, que faziam parte do leque das preocupações
mais prementes de que se ocupavam os espíritos masculinos intelectualizados. As
questões por que estas heroínas mais se debatem revelam, por sua vez, um conflito
latente entre os deveres de família e os deveres de Estado.
Com efeito, a representação dramática criava um ambiente de liberdade extra-
ordinária para a problematização de inquietações latentes10. Dado o carácter nacio-
nal de que se revestiam as representações trágicas, pois a verdade é que faziam parte
de um conjunto de actividades promovidas pelo Estado, as preocupações levadas a
cena pela mão dos tragediógrafos eram assim transmitidas a um vasto público, que
certamente se aperceberia da estratégia retórica a que a representação dessas heroí-
nas obedecia. Estas preocupações eram, aliás, um tema recorrente na cena política
dominada pela longa crise da democracia ateniense, que perdurou até ao momento
em que Atenas ficou submetida ao poder de Filipe da Macedónia.
Nas histórias que colocaram em cena, os tragediógrafos gregos fizeram ouvir a
8 
Vide Lightman, M. & Lightman, B., Biographical Dictionary of Ancient Greek and Roman Women: Notable Women
from Sappho to Helena, New York, 2000.
9 
Segundo Froma Zeitlin, as heroínas trágicas surgem “as antimodels as well as hidden models for the masculine self ”
(in “Playing the other: theatre, theatricality and the feminine in Greek drama”, in Winkler, J. & Zeitlin, F. (eds.),
Nothing to Do with Dionysos? Athenian Drama in Its Social Context, 69). Sobre este mesmo assunto, escreve Judith Moss-
man: “I believe that the Greek tragedians did try to make their female characters sound, not like real women, but at least
like tragic women, as opposed to tragic men; that they did this because individuality is vital for tragedy and for Greeks
gender would have been a vital part of a character’s individuality; that they used a wide range of methods which inclu-
ded the adaptation of tragic language and rhetoric; and that the effect on their plays varied, because characterization can
be put to so many different purposes, but usually, in one way or another, made them considerably more complex and
challenging. I do not think that the fact that the plays were written by men, and acted by men for an audience composed
(largely or wholly) of men necessarily invalidates any of these answers” (in “Women’s Speech in Greek Tragedy: The
Case of Electra and Clytemnestra in Euripides’ Electra”, Classical Quarterly 51.2 (2001): 375).
10 
A este respeito, esclarece Mark Griffith: “Athenian tragedy provides an extraordinarily richly textured, and often
contradictory, babble of rival voices, as the various characters are embodied, masked, and endowed with speech by their
authors and actors. Dramatic impersonation is a form of contestation and pretension, of laying claim to and trying out
voices and roles that are not normally our own” (in “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in Greek Tragedy”,
in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature and Society, 135).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 339


Vítor Ruas

sua pedagogia através de um repertório extraordinário de figuras femininas pode-


rosas, que constituem um grupo actuante activo responsável por grande parte das
falas intervenientes na tragédia grega. De facto, um terço das falas existentes nas
tragédias que foram conservadas, incluindo as partes corais, é atribuído a figuras
femininas. E, em várias peças, mais de metade dos versos são atribuídos a vozes fe-
mininas, de que são exemplo As Suplicantes, As Coéforas e As Euménides, de Ésquilo;
Electra, de Sófocles; Medeia, Andrómaca e As Troianas, de Eurípides.
Não nos podemos, contudo, esquecer que os papéis femininos postos em cena
eram representados por homens. Quer na representação da trilogia, quer na do
drama satírico, os recursos humanos estavam restritos a dois ou três actores, a um
coro em número de doze ou quinze membros e a um número variável de figuras
sem fala. Todos os intervenientes na cena dramática eram figuras masculinas. As
distinções de género, idade e classe social eram apresentadas por meio do uso de
máscaras, perucas, vestes, postura e comportamento em cena. Numa mesma peça,
um actor representava mais do que um papel, incluindo os papéis femininos. E,
muitas vezes, disporia certamente de pouco tempo para mudar de adereços e voltar
a cena, encarnando uma personagem diferente daquela com que aparecera em cena
anterior. Daqui se pode inferir que não havia uma especialização para representar
papéis femininos.
Além disso, convém assinalar igualmente que tanto as figuras masculinas, como
as femininas se expressavam no mesmo metro e utilizavam formas linguísticas mais
ou menos semelhantes, sendo esporádicas pequenas diferenças de expressão. Por
exemplo, Creonte e Antígona, assim que entravam em cena, eram facilmente iden-
tificados como rei e princesa real, respectivamente, antes mesmo de terem pronun-
ciado uma só palavra. Os adereços, a pose e o seu comportamento em cena eram
denunciadores da personagem­‑tipo a que os actores davam vida11.
Ao nível do discurso, importa ter em conta as seguintes condicionantes: em pri-
meiro lugar, as convenções da estrutura discursiva do género trágico, isto é, a língua
da tragédia grega; em segundo, as características peculiares da língua grega; e, em
terceiro lugar, as regras da encenação trágica12. Sobre este último factor, já nos pro-
nunciámos acima. Em relação às características peculiares da língua grega, é impor-
tante referir que, no género trágico, a língua está condicionada ao estilo elevado da
poesia trágica. A respeito da estrutura discursiva do género trágico, convém lembrar
que a língua da tragédia grega está imbuída de um elevado grau de estilização13.
Seguindo de perto esta ordem de ideias, observemos agora como se equaciona a

11 
Para explicitar este aspecto caracterizador da tragédia grega, refere Mark Griffith o seguinte: “Training in use of
the body (with or without the voice) in performance of this or that social role, whether in play or in ritual (or even in
athletics and war), was second nature to most Greeks.” (ibidem, 119).
12 
Sobre este assunto, cf. McClure, L., “The City of Words: Speech in the Athenian Polis”, Spoken Like a Woman.
Speech and Gender in Athenian Drama, 15-19; Mossman, J., op. cit., 375.
13 
Vide, sobre estas questões, Goldhill, S., “The language of tragedy: rhetoric and communication”, in Easterling, P.
E. (ed.), The Cambridge Companion to Greek Tragedy, 127-150.

340 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representação retórica da mulher na tragédia grega

problemática família e pólis nas figuras de Clitemnestra e Antígona.

Clitemnestra
Na primeira peça da Oresteia de Ésquilo,14 em Agamémnon, podemos obser-
var na figura de Clitemnestra um exemplo do papel paradoxal e ambíguo que as
personagens femininas proeminentes assumem na tragédia grega. A forma como
esta heroína combina o discurso próprio dos homens de Estado com o discurso
geralmente associado às mulheres constitui o principal aspecto desta contradição. E
a ambiguidade da sua linguagem é representativa dos perigos que a arte elocutória
apresenta num momento de consolidação da democracia ateniense.
Em Agamémnon, Clitemnestra apresenta-se como uma figura pública, uma mu-
lher de Estado, cuja autoridade política (kratos) lhe advém do facto de o seu marido
se encontrar ausente, há dez anos, na guerra de Tróia, na qualidade de comandante
das tropas aqueias. Este estatuto confere-lhe uma “máscula vontade” (v. 11)15, como
assinala o vigia que, no tecto da sua casa, aguarda o sinal do facho anunciador da
queda de Tróia. O mesmo estatuto atribui a Clitemnestra a qualidade de porta-voz
da sua casa; e permite-lhe regular os meios de comunicação com o exterior, como se
pode verificar no conhecimento que a heroína exibe acerca da sequência geográfica
percorrida pelo fogo mensageiro (vv. 281-316)16.
Na ausência do marido, Clitemnestra associa-se politicamente a Egisto, acaban-
do por tornar-se sua amante. A ligação de Clitemnestra a Egisto é entendida como
a reunião de esforços para a consecução de um objectivo comum – fazer valer uma
dupla vingança que tem como alvo a mesma vítima, Agamémnon. Desta forma, o
poder de Clitemnestra surge apoiado por um homem que, na retaguarda, a auxilia
na função de comando da sua casa. A partilha do poder entre os dois aparece bem
clara nos últimos versos de Agamémnon, quando Clitemnestra intervém para pôr
fim à animosidade verbal travada entre Egisto e o Corifeu: “Deixa ladrar à vonta-
de: somos os senhores desta casa, connosco vai entrar tudo na ordem” (vv. 1672-
1673)17.
A expectativa de que algo vai mal na casa real surge, logo no início da peça, pela
boca do vigia, quando, já na posse da notícia do regresso do seu senhor, se decide a
dar a boa nova, rematando a sua fala nestes termos: “O resto calo: um grande boi
pesa sobre a minha língua. A própria casa, se tomasse voz, exprimir-se-ia muito cla-
ramente. Pela minha parte, falo de boa vontade com os que sabem; com os que não
sabem esqueço tudo.” (vv. 35-39)18. Estas palavras do vigia denunciam, de forma ve-

Cf., em tradução portuguesa, Ésquilo, Oresteia: Agamémnon, Coéforas, Euménides (tradução de Manuel de Oliveira
14 

Pulquério), Lisboa, Edições 70, 1992.


Servimo-nos, nesta transcrição, como nas seguintes, da tradução do Senhor Professor Doutor Manuel de Oliveira
15 

Pulquério (cf. nota anterior: verso 11, p. 26).


16 
Cf. op. cit., 37-38.
17 
Cf. op. cit., 100.
18 
Cf. op. cit., 27.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 341


Vítor Ruas

lada, a ligação amorosa que Clitemnestra mantém com Egisto, além contribuírem
para a conjugação de indícios de uma cilada iminente. Nesta atitude, Clitemnestra
contrasta, de modo significativo, com Penélope. A heroína de Ítaca aguardou pelo
regresso de Ulisses, defendendo-se, com estratagemas ardilosos, dos pretendentes
que com ela queriam partilhar o poder da sua casa. A obsessão de que Penélope teria
de escolher um de entre os pretendentes demonstra claramente que o poder só pode
ser usufruído por mulheres temporariamente. Assim, na consecução do seu acto
criminoso, Clitemnestra não age isoladamente. O apoio masculino garante que a
sua acção seja bem sucedida. Em face desta situação, o espectador ateniense teria
concluído que uma tal atrocidade infligida a Agamémnon apenas se tornou possível
graças à ajuda da acção masculina, sem a qual Clitemnestra não teria conseguido
realizar os seus intentos. E convém aqui lembrar que a própria Medeia cometeu os
seus crimes (matou Glauce e Creonte, bem como os filhos que tivera de Jasão) com
a ajuda dos seus dotes de feiticeira e com a garantia dada por Egeu de a acolher em
Atenas, se ela lhe desse descendentes.
Nos diálogos que entabula com o coro e com o seu próprio marido, Clitem-
nestra mostra-se deferente e cortês, fazendo eco das virtudes femininas que nela
seriam de esperar. Ao mesmo tempo, Clitemnestra mostra-se também persuasiva e
detentora de uma capacidade argumentativa que se poderia dizer ser fruto de uma
qualidade inata adestrada pelo exercício oratório, como convinha ser apanágio de
um homem de Estado da Atenas democrática. E, unindo sedução a persuasão, esta
heroína atinge o ponto mais elevado das suas potencialidades argumentativas no
momento em que convence o seu marido a pisar o tapete de púrpura (v. 910), fazen-
do-o incorrer num acto sacrílego, ao ser recebido em sua casa como um deus. Nas
falas que profere antes de cometer o seu crime, Clitemnestra mostra grande facili-
dade de dissimulação, sobretudo nos momentos em que as suas palavras veiculam
um certo encanto mágico19. Neste aspecto, a heroína encarna o tópos da persuasão
feminina que, de um modo geral, a tradição literária associa às mulheres20.
Por outro lado, a linguagem de Clitemnestra é polissémica. Nela abundam me-
táforas e ambiguidades, que têm como finalidade ludibriar os seus interlocutores
masculinos. Aliás, a característica mais digna de realce na actuação de Clitemnestra
consiste precisamente na habilidade que esta figura evidencia em combinar dois
tipos de registos elocutórios, um habitualmente associado ao género masculino,
outro ao género feminino. A respeito da dupla natureza do discurso feminino, A.
Bergren salienta que as mulheres gregas são capazes de produzir dois modos elocu-

O passo mais representativo deste encanto mágico compreende os versos 958-974. Para uma exposição pormenorizada
19 

sobre esta faculdade de Clitemnestra, vide McClure, L., “Logos Gunaikos: Speech and Gender in Aeschylus’Oresteia”,
Spoken Like a Woman. Speech and Gender in Athenian Drama, 80-92; e Foley, H., “Tragic Wives: Clytemnestras”,
Female Acts in Greek Tragedy, 207-211.
20 
Sobre este assunto, vide McClure, L., “Gender and verbal Genres in Ancient Greece”, Spoken Like a Woman. Speech
and Gender in Athenian Drama, 32-69; acerca da persuasão sedutora, vide, sobretudo, 62-68.

342 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representação retórica da mulher na tragédia grega

tórios contraditórios, o da profecia e o do ludíbrio21. O domínio ‘bilingue’ feminino


deriva de um duplo conhecimento que as mulheres gregas possuíam: o conhecimen-
to da sua cultura ‘segregária’ e o conhecimento do mundo dos homens22. Dando
mostras deste duplo conhecimento, Clitemnestra comporta-se dissimuladamente
como uma esposa fiel perante o coro, o mensageiro e o seu marido, mas abandona
o seu disfarce, logo que cumpriu o seu plano com sucesso. É por esta razão que se
pode afirmar que, na Oresteia, se assiste à passagem do discurso figurativo feminino
de Clitemnestra, em Agamémnon, para um discurso masculino e sancionado nos
tribunais, nas Euménides, procurando-se demonstrar como a astúcia verbal femi-
nina pode desestabilizar a ordem social. Por conseguinte, o que de mais feminino
aparece no discurso de Clitemnestra – o ludíbrio – é precisamente aquilo que pode
debilitar o poder masculino e, por extensão, os interesses da elite aristocrática.
Assim, o discurso híbrido de Clitemnestra deixa antever o perigo em que se
encontra a estabilidade política da casa de Agamémnon – o assassinato do rei de
Argos pelas mãos da sua própria esposa. Mas este perigo é percepcionado por todos
quantos assistiam à representação da peça, e por nós leitores, com a ajuda, é certo,
da voz da consciência interpretada pelo coro, que recorda a trágica história da casa
dos Atridas, e com a ajuda também de segundas palavras proferidas ocasionalmente
pelo vigia e pelo arauto. Contudo, a catástrofe iminente não se torna visível para
Agamémnon, a vítima da ira vingadora de Clitemnestra. Nem mesmo os acessos
de clareza profética veiculados por Cassandra podem valer a Agamémnon, uma vez
que ela é uma profetiza desacreditada.
Ora, é neste cenário que o espectador ateniense se dá conta do poder desmesu-
rado da arte da palavra. Clitemnestra aparece, deste modo, representada como uma
figura que, por meio da sua habilidade oratória, desafia e subverte as normas sociais
controladas pelos homens, e que são mantidas sob vigilância através das instituições
cívicas. O contraste entre Clitemnestra e Atena torna ainda mais visível a observa-
ção de que, na Oresteia de Ésquilo, avulta como tema dominante o poder que o
discurso possui na sociedade democrática ateniense. Se Clitemnestra representa a
atitude desafiadora do poder instituído, já Atena encarna o poder masculino que
tem a responsabilidade de sancionar e pôr fim à sequência de crimes perpetrados na
família dos Atridas. Na verdade, é a esta deusa que cabe, nas Euménides, a última
peça da trilogia, a presidência do tribunal, o areópago, constituído por homens
escolhidos pela própria deusa.
De forma alegórica, esta trilogia aborda o problema da persuasão num mo-
mento crítico da vida pública ateniense, como era o da constituição e consolida-

21 
Cf. “Language and the Female in Early Greek Thought”, Arethusa 16 (1983): 70.
22 
Sobre esta questão, vide Winkler, J. J., “Double Consciousness in Sappho’s Lyrics”, The Constraints of Desire. The
Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece, New York – London, 1990, 174-175. A seguinte passagem é esclarece-
dora: “Women in a male-prominent society are thus like a linguistic minority in a culture whose public actions are all
conducted in the majority language. To participate even passively in the public arena the minority must be bilingual;
the majority feels no such need to learn the minority’s language” (ibidem).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 343


Vítor Ruas

ção da democracia 23. As reformas democráticas, promovidas por Efialtes24, amigo


e assessor político de Péricles, tornaram necessário o desenvolvimento da arte da
argumentação para a defesa dos pontos de vista dos homens políticos. Este interesse
crescente pela retórica sofreu igualmente um grande impulso por intervenção da
actividade dos sofistas. Neste contexto, Clitemnestra representa um veículo perso-
nagístico, retirado da história mitológica, através do qual se expressa a preocupação
relativa ao papel privilegiado que o discurso possui na transmissão e consolidação
do poder político.

Antígona
Em Antígona de Sófocles,25 a heroína que dá o nome a esta tragédia viola os
estereótipos convencionais da obediência e submissão femininas. O confronto que
Antígona estabelece com o poder instituído vota-a ao isolamento no seio da sua co-
munidade e tem como derradeiro fim a sua própria morte. A coragem e determina-
ção de Antígona não se conjugam com o seu estatuto de parthénos, uma jovem sob
a alçada, para todos os efeitos, de um ser masculino. Esta figura trágica demonstra
igualmente uma conduta que a tipifica como agente de ordem moral. A obstinação
e poder decisório de Antígona são visíveis sobretudo ao nível do registo linguístico.
O seu discurso contrasta, de forma significativa, não só com o discurso de outras
figuras femininas colocadas em cena, mas também, e de modo ainda mais expres-
sivo, com o discurso de uma individualidade masculina que personaliza o exercício
do poder, Creonte26.
Antígona coloca as leis eternas e imutáveis dos deuses acima das determinações
humanas. Age de acordo com a sua consciência ética, não se subordinando às leis
que considera injustas ditadas pelos humanos. Prefere, assim, abandonar a vida,
quando tinha pela frente a força da sua juventude e a perspectiva do amor corres-
pondido, pois estava noiva de Hémon, o filho do rei. O isolamento a que se vota
Antígona é típico do herói sofocliano27. Ela mantém-se resoluta e fiel a um dever,
ainda que, por esse dever, tenha de pagar com o preço da vida. Aos olhos do espec-
23 
Esta é a posição de Laura McClure: “The trilogy thus demonstrates not only that women’s speech must be regulated
by the polis and kept out of the public sphere, but also that persuasion, if it is to benefit the democratic city, must be stri-
pped of deceptive, feminine guile, since this duplicitous speech potentially subverts normative social categories, catego-
ries that the masculine speech of the law court, and tragic drama, seek to produce and maintain.” (in “Logos Gunaikos:
Speech and Gender in Aeschylus’Oresteia”, Spoken Like a Woman. Speech and Gender in Athenian Drama, 72).
24 
Cf. Plutarco, Péricles, 16.
Cf., em tradução portuguesa, Sófocles, Antígona (introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha
25 

Pereira), Coimbra, 19872. Será esta tradução que, neste estudo, servirá para as transcrições feitas ao texto sofocliano.
26 
Em relação ao registo linguístico de Antígona, refere Mark Griffith: “Her voice is unusually individual and insis-
tent, and it carries with it associations that are both manly and feminine, dutiful and transgressive, enlightened and
narrow, typical and unique.” (in “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in Greek Tragedy”, in Lardinois, A.
& McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature and Society, 130).
Sobre o isolamento do herói sofocliano, vide Romilly, J., “Sófocles, ou a Tragédia do Herói Solitário”, A Tragédia
27 

Grega, Lisboa, 1999, 73-100; e, ainda, Pulquério, M. O., Problemática da Tragédia Sofocliana, Coimbra, 1968 e
Fialho, M. C., “Sobre o Trágico em Antígona de Sófocles”, in Jabouille, V. et alii, Estudos sobre Antígona, Mem
Martins, 2000, 29-50.

344 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representação retórica da mulher na tragédia grega

tador ateniense, era, desta forma, colocada em cena a oposição entre o individual e
o social, aparecendo, por conseguinte, a pólis como mediadora entre o indivíduo e
o mundo.
A defesa que Antígona apresenta para o seu acto de insubmissão ocorre em três
momentos cruciais da peça: no diálogo que Antígona entabula com a sua irmã, Is-
mena; na cena em que a heroína se justifica perante a autoridade política de Tebas,
encarnada na pessoa de Creonte; e no momento em que, perante o coro, e estando
ela prestes a ser levada para o seu túmulo abobadado, o seu pensamento é assaltado
por inúmeras interrogações.
A peça abre com um diálogo travado entre as duas irmãs, Antígona e Ismena,
através do qual o espectador fica imediatamente a par do argumento central da
peça. Neste diálogo, as duas irmãs defendem posições antagónicas: Antígona mos-
tra-se resoluta a desafiar a autoridade política, manifestando vontade de conceder
honras fúnebres ao seu irmão, Polinices; Ismena, por seu turno, tenta dissuadi-la
desse intento. Assim, Antígona surge como a virgem (parthénos) rebelde que ousa
obstinadamente confrontar o poder instituído, invocando, para justificar a sua ati-
tude, um dever a que se sente obrigada, não só para com os deuses, mas também
para com a sua progénie, ao passo que Ismena ilustra a virgem recatada e submissa
às directrizes do poder instituído, que ela considera ser pertença dos homens28. São
estes os argumentos de Ismena: “E agora, que só restamos nós as duas, vê lá de que
maneira ainda pior acabaremos, se, contra a lei, vamos transgredir o édito dos so-
beranos ou o seu poder. Pelo contrário, é preciso lembrarmo-nos de que nascemos
para ser mulheres, e não para combater com os homens; e, em seguida, que somos
governadas pelos mais poderosos, de modo que nos submetemos a isso, e a coisas
ainda mais dolorosas. Por isso eu rogo aos que estão debaixo da terra que tenham
mercê, visto que sou constrangida, e obedeço aos que caminham na senda do po-
der. Actuar em vão é coisa que não faz sentido.” (vv. 58-68)29.
Estas palavras de Ismena são reveladoras da sua posição comedida e ponderada
face à delicada situação com que é confrontada, sendo os argumentos que invoca
completamente consentâneos com o seu estatuto de parthénos, uma virgem sob a
alçada do seu tio, Creonte. A submissão de Ismena ao poder masculino deriva, não
só do facto de ser uma mulher, como também do facto de não possuir protecção
paterna, nem fraterna, uma vez que o seu pai e os seus irmãos se encontram mortos.
Neste sentido, Ismena aceita o seu destino com resignação; e, através de um com-
portamento submisso ao seu tutor, procura desligar­‑se dos males da sua progénie e
abrir caminho para um futuro mais feliz.
Em face dos argumentos da irmã, Antígona mostra-se concentrada num só e
28 
A colisão entre Antígona e Ismena leva Mark Griffith a concluir que, neste episódio, estamos perante “a single-
minded Antigone” uersus “a conventional-minded Ismene” (in “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in
Greek Tragedy”, in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature
and Society, 127).
29 
Cf. op. cit., 41.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 345


Vítor Ruas

único objectivo: honrar os deuses e a sua família, dando honras fúnebres a Polini-
ces. À medida que Ismena tenta dissuadi-la de desafiar o poder de Creonte, Antígo-
na não se preocupa em contrariar os argumentos da irmã. O que para ela é mais
importante é saber se pode contar com a sua ajuda. E, a partir do momento em que
verifica que terá de agir sozinha, rejeita por completo Ismena, abandonando-a ao
seu destino (vv. 69-70; 536-560). Ao proceder deste modo, Antígona demonstra que
lhe é impossível cortar os laços que a ligam à sua família, pois, segundo afirma, o
seu acto será exemplificativo da sua nobreza (vv. 37-38); e, não o realizar, será visto
como uma traição (v. 46). O seu acto é entendido como um crime sagrado (v. 74)
que conduzirá a uma morte nobre (v. 72; 96-97). No entender de Helene Foley,
a desobediência de Antígona demonstra que ela permanece phílē (amada) do seu
phílos (amado) Polinices.30
Como podemos verificar, Ismena encontra-se integrada na sua comunidade,
apesar da posição extremamente fragilizada que ocupa no seio da casa real de Tebas.
De forma inversa, Antígona exclui-se autonomamente da sua comunidade, manten-
do um elo de ligação biológico e psicológico à sua família. E, em defesa desse elo,
nada a detém, nem mesmo a própria morte.31
O contraste entre estas duas figuras femininas verifica-se igualmente ao nível
do registo linguístico. No diálogo travado entre as duas irmãs, abundam os termos
de afecto; faz-se uso do dual; e também são frequentes os pronomes possessivos.
Estas marcas linguísticas caracterizam o ambiente privado e o contexto familiar em
que a cena se desenrola.32 Contudo, cada uma destas duas personagens apresenta
uma rhēsis personalizada. No discurso de Ismena, abundam termos abstractos; e,
por isso mesmo, o seu discurso é feito de generalizações que deixam transparecer
a sua submissão aos poderosos e a sua obediência às leis vigentes. Esta observação
torna-se ainda mais visível particularmente na sua fala mais extensa (vv. 49-68), que
está repleta de construções sintácticas complexas, onde as modalizações potencial e
condicional adquirem um lugar de relevo.
Por oposição, o discurso de Antígona é marcado essencialmente por termos con-
cretos, que reflectem, de forma bastante nítida, a sua obstinação e poder decisório.
O vocabulário simples e incisivo, o emprego de frases pequenas e pouco complexas
e ainda as repetições insistentes contribuem, globalmente, para a identificação do
discurso de Antígona como sóbrio, mas consistente. Trata-se, de facto, de um regis-
to discursivo sólido, denunciador da firmeza e segurança desta figura trágica. Além
disso, é um discurso dotado de um elevado grau de efeito persuasivo, que tem como
30 
Cf. “Sacrificial Virgins: Antigone as Moral Agent”, Female Acts in Greek Tragedy, 174.
31 
Para comprovar o antagonismo entre as duas irmãs, Mark Griffith decifra os nomes destas duas figuras femini-
nas: Ismena significa ‘nativa de Tebas’, estando este nome relacionado com o ‘Hismeneus’, o rio tebano; por seu lado,
Antígona significa ‘de volta para nascer’, um nome que liga a heroína à sua progénie (cf. “Antigone and Her Sister(s):
Embodying Women in Greek Tragedy”, in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.), Making Silence Speak. Women’s Voices
in Greek Literature and Society, 132, n. 40).
32 
Sobre o contexto familiar deste episódio, refere Helene Foley que as duas irmãs se encontram, inicialmente, em
“close philia” (in “Sacrificial Virgins: Antigone as Moral Agent”, Female Acts in Greek Tragedy, 174).

346 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representação retórica da mulher na tragédia grega

objectivo cativar Ismena para a defesa da sua causa.


Em comparação com o discurso de Creonte, o de Antígona diferencia-se no
tratamento no feminino, visível sobretudo em adjectivos e particípios e na evocação
de determinadas realidades associadas às mulheres (vv. 442-582). Os princípios que
Antígona invoca colocam-na na posição de agente de ordem moral que se recusa a
obedecer a leis, que considera injustas, ditadas por humanos. Por seu turno, Cre-
onte mostra-se um governante que se rege por regras e hierarquias, defendendo o
controlo dos actos humanos por meio da instituição de leis33. No que diz respeito à
organização lógica e estrutura retórica do discurso, as falas de Antígona e Creonte
situam-se ao mesmo nível. A Antígona de Sófocles revela, deste modo, uma capa-
cidade argumentativa que a aproxima do discurso próprio dos homens e a afasta de
um tipo de discurso que nela seria de esperar, tendo em conta a sua condição de par-
thénos. É, por este motivo, que Creonte trata Antígona por mulher (gynē, vv. 525;
578-579; 648-649; 756), e não por parthénos, ou kórē, deixando bem claro que se
encontra na presença de um ser adulto e bem firme nas suas convicções. E Creonte
está ciente da força poderosa, masculinizada, que a sua sobrinha demonstra, como
se pode comprovar nestas suas palavras: “Esta soube bem ser insolente, quando
tripudiou sobre as leis estabelecidas. E depois de feito isso, comete nova insolência,
vangloriando-se da sua acção e rindo de a ter praticado. Porém é ela que será um
homem e não eu, se lhe deixo esta vitória impunemente” (vv. 480-485)34.
No agōn com Creonte, Antígona encontra-se num ambiente público, não sendo,
portanto, já visíveis marcas do contexto familiar que havia caracterizado o diálogo
entre as duas irmãs. Perante a autoridade política de Tebas, quando interrogada
sobre o seu acto, Antígona mostra-se veemente, ao confessar ter sido ela própria a
dar honras fúnebres ao cadáver de Polinices: “Afirmo que o pratiquei, e não nego
que o fizesse”35. E a sua ousadia vai ainda mais longe, ao declarar peremptoriamente
que agiu sabendo de antemão que havia um édito que proibia a sua acção: “Sabia.
Como não havia de sabê-lo? Era público”36. Mais adiante, lança ao seu interlo-
cutor uma máxima que, pelo seu valor aforístico, deixa Creonte completamente
desorientado: “Não nasci para odiar, mas sim para amar”37. Estas suas palavras
denunciam claramente o desafio que a heroína dirige a Creonte. No confronto com
a autoridade política de Tebas, Antígona deixa perfeitamente claro que não receia
a atitude (phronēma) dos mortais, mas sim a vingança dos deuses (vv. 458-460). A
este respeito, considera Mark Griffith que, em Antígona de Sófocles, apenas a voz
de Tirésias se equipara à de Antígona em termos de autoridade absoluta 38.
Cf. Trindade Santos, J. G., “A natureza e a lei: reflexos de uma polémica em três textos da Grécia Clássica”, in
33 

Jabouille, V. et alii, Estudos sobre Antígona, 77-111.


34 
Cf. op. cit., 57.
35 
Cf. op. cit., 56.
36 
Cf. ibidem.
37 
Cf. op. cit., 60.
38 
Cf. “Antigone and Her Sister(s): Embodying Women in Greek Tragedy”, in Lardinois, A. & McClure, L. (eds.),

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 347


Vítor Ruas

Na presença do coro (vv. 891-928), apesar de a cena se situar num contexto


público, o discurso de Antígona revela notoriamente uma intimidade de alguma
forma semelhante àquela em que decorrera o diálogo entre as duas irmãs. Este facto
não provoca qualquer estranheza, se tivermos em conta que o coro, nas suas inter-
venções líricas, demonstra compreender as razões invocadas pela heroína. Nesses
versos, Antígona lamenta não poder usufruir da felicidade terrena, uma vez que a
punição que lhe foi infligida não lhe permitirá casar-se com Hémon, o filho de Cre-
onte, de quem ela se encontrava noiva, nem lhe permitirá também ter filhos. Assal-
tada por inúmeras interrogações, a heroína acaba por confessar que não teria agido
da mesma forma, se, em vez de um irmão, se tratasse de um marido ou de um filho;
e refere ainda que um marido ou um filho são sempre substituíveis, ao passo que
um irmão, estando os pais mortos, é insubstituível. (vv. 904-920). Nesta afirmação
de Antígona, radica a diferença que existe entre os laços de sangue com a ascendên-
cia e os laços de família na descendência, como bem notou M. Neuberg39.
Ao manter uma ligação biológica e psicológica com a sua progénie, Antígona
recusa-se a cumprir os deveres próprios de uma parthénos, que são casar e ter filhos.
Se atendermos ao facto de que dar continuidade à família constituía a principal
função da mulher grega, então Antígona é apresentada ao público ateniense como
uma ‘virgem’ que se recusa a fazer o que a pólis dela espera.

As heroínas trágicas aparecem em cena no papel de agentes de ordem moral40,


recusando-se a obedecer sem contestação ao destino a que são votadas. Invocam
princípios éticos, para a consecução das suas acções; e demonstram também uma
forte capacidade para o cumprimento da aretê. A obstinação e poder decisório des-
tas heroínas são visíveis sobretudo ao nível da linguagem, onde predominam os
termos concretos. E, no que diz respeito à organização lógica e estrutura retórica do
discurso, não são significativas as diferenças entre os discursos que elas proferem e
os que são proferidos pelos homens poderosos.
Esta forma de actuação comporta necessariamente implicações políticas e so-
ciais, que, não devendo ser entendidas como prenúncio de uma mudança social,
que só viria a ocorrer nas sociedades modernas com o advento do ‘feminismo’,
indiciam, contudo, a existência de um debate crítico, que tem lugar no Teatro de
Dioniso, sobre problemas que afligiam os mais altos espíritos da cidade. Estas novas
incursões também se definem mais pelo seu carácter exploratório e interrogatório
do que pelo seu carácter afirmativo, uma vez que o efeito interrogatório é uma pe-
culiaridade que subjaz ao próprio modelo de representação trágica41.
Making Silence Speak. Women’s Voices in Greek Literature and Society, 133, n. 42.
39 
In “How Like a Woman: Antigone’s ‘Inconsistency’”, Classical Quarterly 40 (1990): 69.
40 
Cf. “Women as Moral Agents in Greek tragedy”, Female Acts in Greek Tragedy, 115-123.
Cf. Gill, C., “The Character-Personality Distinction”, in Pelling, C. (ed.), Characterization and Individuality in
41 

Greek Literature, Oxford, 1990, 18-19; Palmer, R. H., “The Circle of Inquiry”, Tragedy and Tragic Theory. An Analyti-

348 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Representação retórica da mulher na tragédia grega

Por conseguinte, os três grandes tragediógrafos que a tradição nos legou – És-
quilo, Sófocles e Eurípides – partilham a mesma estratégia, declaradamente retó-
rica, no que diz respeito ao modelo de representação das figuras femininas mais
proeminentes. É perfeitamente notória a atenção que estes poetas gregos colocam
na encenação de papéis femininos poderosos e subtis, para a exploração de verda-
des psicológicas profundas que eles procuram ver desveladas perante o público que
assistia às representações dramáticas, maioritariamente constituído por homens, se
não mesmo exclusivamente42. O recurso a figuras femininas, e não masculinas, com
uma forte personalidade e dotadas de atributos e competências originariamente
conferidos aos homens, permite a configuração de uma realidade conceptual, apa-
rentemente em pouco ou nada conforme à realidade vivencial da Atenas do século
V a. C. Desta forma, fica assegurada a aceitação por parte do público dessa mesma
realidade posta em cena, estimulando a sua curiosidade de ver tratados problemas
individuais ou políticos de grande gravidade, situados no contexto de um passado
remoto, que é o da história mitológica grega.
A escolha de figuras femininas extraídas do passado mitológico torna-se um
forte atractivo, constituindo um verdadeiro mecanismo de captatio beneuolentiae,
visto que essas figuras transportam consigo uma carga pesada de conhecimentos
que as tornam figuras exemplares e, por conseguinte, dignas de ser ouvidas. Ora, é
por esta razão que se pode, desde logo, antever que se tornam inevitáveis as implica-
ções sociais e políticas para a audiência masculina e detentora do poder, que, desta
forma, é chamada a reflectir sobre tensões e conflitos que estavam na ordem do dia
entre os espíritos intelectuais.

cal Guide, Westport, Connecticut – London, 1992, 105-131; e Sifakis, G. M., “The Function of Poetry”, Aristotle on
the Function of Tragic Poetry, Heracleion, 2001, 23-30. Segundo G. M. Sifakis, a poesia consiste na representação da
verdade sob a forma de generalizações, verdade essa que está relacionada com as crenças colectivas e ideologia de uma
sociedade histórica específica; assim, a tragédia grega, uma vez que está ligada ao nascimento da democracia ateniense,
apresenta um avanço significativo, menos convencional e mais empírico, da forma de perspectivar a vida humana (p.
30). Cf., ainda, Palmer, R. H., “Introduction: the Problem of Understanding Tragedy”, Tragedy and Tragic Theory. An
Analytical Guide, Westport – London, 1992, 1-14; Hall, E., “The sociology of Athenian tragedy”, in Easterling, P. E.
(ed.), The Cambridge Companion to Greek Tragedy, 93-126; e Serra, J. P., Pensar o trágico. Categorias da tragédia grega
(tese de dout.), Lisboa, 1998.
42 
Para alguns comentadores, esta questão parece não estar completamente esclarecida. Vide, sobre o assunto, Podle-
cki, A., “Could Women Attend the Theater in Ancient Athens?”, The Ancient World 21 (1990): 27-43; Henderson,
J. W., “Women and the Athenian Dramatic Festivals”, Transactions of the American Philological Association 121 (1991):
133-147; Goldhill, S., “Representing Democracy: Women at the Great Dionysia”, in Osborne, R. & Hornblower,
S. (eds.), Ritual, Finance, Politics: Athenian Democratic Accounts Presented to David Lewis, Oxford, 1994, 347-369. He-
lene Foley, por seu lado, considera que um número limitado de mulheres, provavelmente mais velhas e não-cidadãs,
assistia às representações dramáticas, bem como alguns metecos, estrangeiros e escravos (cf. “Introduction”, Female Acts
in Greek Tragedy, 3, n. 1).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 349


Veleyo: Nuevo Sistema de Valores
del Principado de Tiberio

Antonio Ruiz Castellanos


U. Cadiz
antonio.ruizcastellanos@uca.es

Introducción
No hace más de treinta años, se creía todavía que el castigo de Adán y Eva por
su pecado en el Paraíso había consistido en tener que trabajar con el sudor de nues-
tra frente. Hoy han cambiado tanto las cosas, que casi se podía decir: “¡dichoso pe-
cado!” (la misma paradoja que se dice, en otro sentido, ya que gracias a aquel pecado
vino Jesús a salvarnos). ¡Cuánto ha cambiado hoy nuestra valoración del trabajo!
El trabajo que nosotros sentíamos como algo penoso, en estos tiempos de la
posmodernidad se siente como un paraíso perdido: aquel trabajo nos daba indepen-
dencia, un status, una condición especial, una justificación moral, una legitimación
cívica que constituía una fuente de derechos, de seguridad social, de defensa contra
arbitrariedades, de capacidad de negociación, de solidaridad; le daba un sentido cu-
rricular a una vida seriamente concebida, nos anclaba en las instituciones: el matri-
monio, el consumo, la adquisición de una vivienda: el trabajo nos daba derechos.
Hoy lo que se reclama es sencillamente el derecho al trabajo, un trabajo es-
table como el de antes. El trabajo de hoy día, cuando se consigue (los índices de
paro son en mi país muy altos) es temporal, precario, irregular, deslocalizado,
sumergido=ilegal (falsas becas, falsos contratos en prácticas), muchas veces es servil
(servicio doméstico, repartidores, camareros, chóferes, ancianos, etc.), cambiante,
subcontratado... Así que un buen estudiante deja los estudios; le preguntamos -¿por
qué? –es que me ha salido un trabajo; he entrado en el ejército... y se ve lógico.
Lo digo para mostrar lo relativas que son nuestras valoraciones del trabajo,
según la época, y según la clase social. Porque, claro, que conste que también hoy
día hay buenos trabajos, más que buenos, excelentes, los contratos blindados, de
futbolistas, de minorías.
Pues ¿cómo fue en la antigüedad clásica? ¿En Roma?
Una foto fija nos dice que hay 3 tipos de trabajo, según la clase social, y tres
actitudes distintas:

- Está el trabajo manual, onus, labor, considerado como algo penoso: va acom-
pañado de aerumna et sudore. Este trabajo se impone como pena o condena: (con)
demnare ad metalla, ad opera publica. El trabajo manual es considerado como algo
servil, frente a la liberación relativa propia de los trabajos liberales y los solaces crea-
tivos del arte o la artesanía, que producen opera, manufacta.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 351


Antonio Ruiz Castellanos

- Pero el trabajo de las clases medias es otra cosa: negotium gerere, lo que “hace
que no nos oxidemos, lo que nos quita el moho” (según Catón), la gestión de nues-
tros asuntos, sobre todo si es sobre bienes muebles y comercio, está también llena
de cura = epimeleia, y está más o menos considerado según la época y según la
clase social a la que se pertenezca. Para un caballero, que vive y medra gracias a sus
negocios, la industria como diligencia, eficiencia y eficacia en la gestión es su mejor
virtud.

- Pero quizás para un aristócrata no sea así1. Es el (des)empeño público y el valor


guerrero constituyen la virtud por excelencia. No son sus negotia sino su virtus (en
principio, la valentía, la virilidad incluso, el arte de la guerra) lo que más se elogia.

Pues bien, a juicio de Veleyo Patérculo, se produce una transmutación de va-


lores en el Principado de Tiberio, de suerte que la auténtica virtus = industria: el
trabajo de gestión de los valores útiles y administrativos, del Estado y de la propia
casa, es la verdadera virtud; pero no sólo en el caso del ordo ecuestre, sino en el caso
de los gobernantes e incluso del Príncipe.

A. Veleyo Patérculo Historiador – Imagen y clave de interpreteción


Biografía: Veleyo es un historiador de la época de Tiberio, noble por línea ma-
terna y en su propio municipio (quizás Capua 2), pero en Roma un caballero, ya
que por línea paterna todos sus ascendientes son de orden ecuestre, y al ser además
extranjero, es un homo novus. Dedica su obra a M. Vinicio3, su patrono. Todo ex-
1 
El patricio romano también cuida de su patrimonio familar. Los negocios son familiares, no hay tantas sociedades
anónimas como hoy. El patricio no es un trabajador, ni rústico ni artesanal, sino un gerente que sí se preocupa de su pa-
trimonio. El rico propietario ama fundamentalmente las fincas rústicas: fundi, aspirando a convertirlas en latifundios,
trabajados por esclavos. Los latifundios distinguen al hacendado de siempre (patricio) del plebeyo (más bien urbanita)
del nuevo rico (homo novus), lo que hizo encareciera la tierra. El pater familias aristocrático no se jacta, aunque tampoco
desprecia los negocios: el comercio, la especulación y las rentas (usura). Lleva la gestión de su patrimonio (epimeleia o
cura), aunque para su administración se auxilie de esclavos y libertos. Lleva su contabilidad en un libro de cuentas (libe-
llus, rationes) y observa su kalendarium de vencimientos de los efectos.
2 
Veleyo estaba orgulloso de su familia, tanto paterna como materna. Entre éstos: un antepasado materno suyo, Decio
Magio (2.16.2: Campanorum princeps. Liv. 23.7.4), que después de la batalla de Cannas siguió fiel a Roma, fue hecho
prisionero por Aníbal. Un hijo de éste, Minacio Magio, participó en la Guerra Social del lado de los romanos, conquistó
Compsa, y obtuvo por eso la ciudadanía romana; sus dos hijos fueron pretores (2.16.2-3); uno de ellos fue el bisabuelo
de Veleyo. Su abuelo paterno, C. Veleyo, era del orden ecuestre, militó al lado de Ti. Claudio Nerón, a cuya derrota
en Perusia (40 ane.), sintiéndose ya inútil para ayudar a su hija, Livia, y a su pequeño Tiberio, el que sería en el futuro
emperador, a quien llevaba en los brazos, se suicidó. Pero ni su padre ni su tío fueron senatoriales. Su tío paterno, Ve-
leyo Capitón, denunció junto con Agripa a los asesinos de César (a. 43 ane. 2.69.5) y puede que acompañara a Tiberio
a España durante la Guerra de los Cántabros (Sumner p. 265, basándose en Suet. Aug. 20.1 y Tib. 9.1). Su padre fue
praefectus equitum (4 dne.). Un hermano del historiador, Magio Céler Velleianus, luchó al lado de Tiberio en la Guerra
de Dalmacia (9 dne.) y fue pretor el 15 dne. Incluso si sus antepasados por línea materna fueron nobiles en su propio
municipio, en Roma resultaban homines novi (en expresión de Cic. Cluent. 109, o de Sall. Cat. 17.4). Un extranjero como
Veleyo debía buscar el patrocinio de una familia romana de la nobilitas, tal como lo habían hecho Catón o Cicerón. Esa
relación de clientela es la que le unía a Veleyo con Tiberio y con M. Vinicio, a quien dedica sus Historias de Roma.
3 
El abuelo de M. Vinicio había recibido los ornamenta triumphalia (2.104.2) y fue amigo íntimo de Augusto (Suet. Aug.
71.2); en Oriente había tenido a sus órdenes al padre de Veleyo. El padre de M. Vinicio fue orador prestigioso, al que
Gneo Pisón le pidió lo defendiera como abogado cosa que él le rehusó (Tac. Ann.3.11.2). También M. Vinicio, nacido

352 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

tranjero ha de tener en Roma un patrono, como los tuvieron Catón y Cicerón.


Escribe Veleyo su obra Historia de Roma (HR) en el año 30 dne. una historia
universal, que hace de Italia el nudo de interconexión que une Roma con el mundo;
y es también una historia que aboca al Principado de Tiberio, la verdadera meta de
toda la obra.
Veleyo no es muy conocido en España: la primera traducción al español fue la
de D. Manuel Sueyro de 1787, Madrid. Desde entonces no se ha vuelto a traducir
ni a difundir hasta la de Mª Asunción Sánchez Manzano de Gredos, Madrid, 2001.
Mientras que la ed. Princeps de Beatus Rhenanus, a partir de un manuscrito descu-
bierto por él en Murbach en 1515, en Basilea, Froben, es de 1520, y desde entonces
ha tenido varias docenas de reediciones; ninguna en España; desconozco y me gus-
taría saber si acaso ha habido alguna en Portugal.
Además, quienes han oído hablar de Veleyo, quizás no lo estimen como histo-
riador. Voy a presentar tres cuestiones debatidas sobre este autor:

- Su adhesión al Principado y quizás su falta de objetividad.


- Su género biográfico en vez de histórico.
- El elogio que hace de Tiberio (caps. 126-131).

Se le acusa a Veleyo de ser demasiado elogioso del Principado de Tiberio.¿Sentía


un entusiasmo ciego por Tiberio?

- Desde luego no es en absoluto crítico con el régimen (a pesar de Woodmann,


p. 53 y sigs.; y de Kuntze, pp. 136-146: 149).

- El entusiasmo en parte estaría justificado. Los últimos 100 años republicanos


habían estado llenos de confrontaciones y guerras sociales y civiles; todo lo cual se
había disuelto con la pax Augusta. ¿“Quién quedaba, además, que hubiera conocido
la República”? Conocía además a Tiberio como militar exitoso.

Conoce de primera mano y detalla la historia del Tiberio militar: 30 caps.


Antes del gobierno de Tiberio, ya desde el año 23 a.C. en que ocupa el cargo de
cuestor. Muchos estudiosos valoran a Veleyo como fuente única para esta época,
a la sombra del principado de Augusto, ya que conoció por propia experiencia y
nos ofrece de primera mano, la época meritoria de Tiberio, el Tiberio militar (F.
Helbing). El es el primer testimonio del desastre de Varo, describiendo muchos
detalles sobre Arminio (E. Hohl, F.A. Marx); sobre Maroboduo (C. Jodry) y sobre
Dalmacia (Koestermann).
La Historia de Roma (HR) no cubre la información sobre el Principado de Ti-

en Calvi, era orador, y llegó a cónsul el 30 y en el 45 dne. Se casó incluso con Julia Livilla, hija de Germánico (Tac. Ann.
6.15), lo que lo introdujo en la familia imperial; a pesar de que los Vinicios eran también advenedizos en Roma.

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berio a partir de la muerte de Augusto; los últimos 16 años de Tiberio (años 14-30
dne, caps. 2.124-131 simplemente) tan sólo enumeran el nuevo sistema de valores
mientras se enumeran de forma sumaria los hechos. Cosa interesante de por sí (A.
DIHLE (1979). “La figure de Tibère chez Tacite et V.P.”, Mél. P. Wuilleumier, París,
B. Lettres, pp. 167-183)
Están excluidos de la HR los últimos años de Tiberio, el reino de terror tras la
conjura y caída de Sejano (31 p.C.) Ya que la HR fue concluida en el año 30. Son
años terribles (“Tiberio al Tíber”, Suet. Tib. 75.1) que dejaron a la posterioridad
una imagen de Tiberio como un monstruo, imagen que influye en los historiadores
posteriores: Tácito, Suetonio y Dion Casio.
B. Manuwaldt (“Herrscher und Historiker”) ha hecho ver cómo existen dos
Tiberios, uno anterior al 31 y otro posterior, apoyándose en Tac. Ann. 6.51: mo-
rum quoque tempora illi diversa. Tácito afirma también que en los tiempos en que
Tiberio estuvo bajo Augusto como privado o como general fue egregio: egregium
vita famaque quoad privatus vel in imperiis sub Augusto fuit. La bipartición de la vida
de Tiberio se puede ver también en Sen. Clem. 1.1.6; Suet. Cal. 6.2. Tib. 41-42.1;
Casio (57.7.1; 13.16; 19.1&8; 58.28.5).
Expresaba quizás Veleyo la vox publica? El propio Veleyo lo dice Id solum voce
publica dixisse satis habeo (2.124.2): “me conformaré tan sólo con eso, con expresar
la convicción general”, haciéndose así portavoz de la opinión pública de la época.
Vox publica no hay que confundirlo con la versión oficial, aunque todos sabemos la
influencia que el poder tiene sobre la “opinión pública”. Pero no es un propagandis-
ta: I. Lana ha escrito un libro: Velleio P. o della propaganda; como si Veleyo fuera un
autor al servicio del aparato de propaganda del Principado. Es dudoso que existiera
tal aparto de propaganda.
Veleyo ¿historiador falaz?: Incluso se ha ganado Veleyo la fama de ser un histo-
riador falaz. R. Syme, “The mendacity in Velleius”, A.J.Ph. XCIX, 1978, pp. 45-63.
Basándose en Syme, muchos críticos consideran globalmente su obra poco objetiva,
pero el caso es que constantemente lo usan como “una cantera de citas a pie de
página” (Ulrich Schmitzer). ¿Cómo puede mentir, si habla para sus coetáneos sobre
hechos contemporáneos?
Pienso que no hay que considerar a Veleyo ni como un admirador ciego del
Principado, ni como un historiador falaz, que mienta conscientemente sobre los
hechos. Lo más que puede hacer es organizar los hechos de forma retórica.
Veleyo es un admirador del Principado, no ingenuo, sino que elabora su mate-
rial retóricamente:

- Silencia y compendia en exceso cuando le conviene (así, la importancia de Agri-


pa queda desdibujada: su protagonismo en la guerra contra los cántabros –2.90.1-,
su doble tribunicia potestas –a.18&13 a.C.-; y tan sólo a su muerte se entera uno de
la adopción por Augusto de sus dos hijos, Lucio y César (habidos con Julia –2.96.1,
12 a.C.), y de su intervención en la G. Panónica; pero de forma que todo ello vie-

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Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

ne a parar en manos de Tiberio; el remate de la guerra y su esposa en ese capítulo


(silenciándose el divorcio previo respecto a la hija de Agripa, forzado por Augusto
–Suet. Aug. 63.2; Tib. 7; Dio 54.311 y sigs.).

- Desconecta causalmente o atribuye intenciones falsas a los hechos (como en el


caso del retiro de Tiberio a Rodas (2.99.1), pretendiendo que éste no quería ser un
obstáculo en la carrera de Lucio y César; lo que resulta increíble; callando además
los problemas que hubo en palacio y las dificultades que tuvo para reincorporarse
a la vida oficial. Muy al contrario, en 2.103.1&2, Nero reversus Rhodo incredibili
laetitia patriam repleverat. Non est diu cunctatus Caesar Augustus: “el retorno de Tib.
Nerón de Rodas... colmó de felicidad a su patria. César Augusto no dudó ya más,”
contra Suet. Tib. 10.2&5.

- También desordena los hechos. Así se alude a la muerte de Lucio y César in-
mediatamente antes del retorno de Tiberio a Roma (2.102.3), como si la llegada de
Tiberio hubiera compensado de su pérdida y con ello se cumpliera el plan sucesorio
de Augusto: Bernd Manuwald, “Herrscher und Historiker”, p. 22-25 ); siempre a
favor de la causa de Tiberio. Pero ¿con qué objetivo?

Veleyo sencillamente es un entusiasta e interesado seguidor del Principado de


Tiberio Veleyo es un seguidor de Tiberio que reconstruye de forma consciente la
historia de Roma desde un nuevo punto de vista y además, interesado:

- El haber sabido ver el pasado con una nueva mirada desde el hito que represen-
tó la apelación de Augusto en el año 31 a tota Italia antes de la Batalla de Accio.
- Y por otro lado, hacer ver la tradición en la Historia de Roma de la política de
Tiberio, quien supo atraer a las clases medias e itálicas a la administración.

Ese punto de vista lo venían encareciendo los intelectuales de final de la repúbli-


ca: Cicerón por doquier o Salustio en sus Epistulae ad Caesarem senem de re publica
2, 5, 7. Pero esa intuición la convierte Veleyo en “historia” en su HR. Y esa es la
clave para entender y juzgar a Veleyo. Su Historia de Roma (HR) es la historia de la
“construcción romana de Italia” (como dirá Salmon) e itálica de Roma, siendo Italia
a la vez alumna et parens, como dice Plinio, N.H. 3.539. Su punto de vista es el de
un italiano de clase alta (en su ciudad), pero que en Roma es un homo novus, civis
inquilinus, un inmigrante. Eso es lo que le hizo sensible a todos aquellos personajes
de la historia de Roma que llegaron de fuera y “se hicieron a sí mismos” al paso que
contribuían a la historia de Roma, como dice (Tac. Ann. 11.21) que dijo Tiberio de
Curcio Rufo: videtur mihi ex se natus: “Se ha hecho a sí mismo, creo”.
¿Y en qué se funda la intuición de Veleyo?

- En la nueva idea de Italia, en la concepción institucional que tuvo Augusto

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de Italia, a partir del llamamiento que hizo a tota Italia antes de la B. de Accio
(-31), convocando a los municipios itálicos como nación, para conjurar el peligro de
secesión del Oriente por parte de Antonio : iuravit in ver(ba) mea tota Italia sponte
sua et me bel(li) quo vici ad Actium ducem depoposcit, Aug. Res gestae 25: «Toda Ita-
lia, espontáneamente, juró fidelidad a mi persona, eligiéndome como general en la
Guerra que gané en Accio».
- Y en la nueva política de Tiberio de atracción de las clases medias e italianas.

Nueva situación política: el llamamiente de Augusto a toda Italia


Uds. Saben que Italia empieza a existir institucionalmente y como identidad
con Augusto. Nosotros damos por supuesto la existencia de Italia en la Antigüedad,
porque hemos leído la Eneida y el Ab urbe condita dejándonos llevar por sus leyen-
das, sin distanciarnos críticamente. Italia era ya, para Virgilio, 1200 años antes de
Augusto, la meta acariciada que perseguía Eneas:

Italiam… / hic amor haec patria est...


Verg. Aen. 4.346-347

Y sin embargo, no fue hasta Augusto cuando Italia tuvo una cierta unidad e
identidad. Lo que pasa es que «Augusto (Syme: 442) tuvo la inmensa suerte de
contar con un poeta épico que cantara a Italia, una persona cuyos versos y senti-
mientos se armonizaron tan fácilmente con sus propias ideas y su propia política.
En Virgilio, encontramos el llamamiento augústeo a Italia de forma espontánea y
maravillosa»

Salve, magna parens frugum, Saturnia tellus, magna virum,


Verg. Georg. 2.172-173.

«Salve, tierra espléndida de mieses, tierra de Saturno, grande por tus grandes
hombres».

Italia queda unificada por Virgilio gracias a los mitos fundadores de la Eneida,
como rica en tierras, rica en hombres, capaz de conquistar el mundo y unificada
entorno a Roma y al César Octavio. Nada menos que eso es lo que le ofreció Vir-
gilio a Augusto:

Sed fore qui gravidam imperiis belloque frementem


Italiam regeret, genus alto a sanguine Teucri
proderet, ac totum sub leges mitteret orbem.
Verg. Aen. 4.229 y sigs.

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Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

«Me prometió que gobernaría la Italia grávida de imperios y furiosa de gue-


rra, que propagaría la sangre de Teucro de quien procede, y que sometería a
sus leyes al orbe entero», dice el Todopoderoso Júpiter.

Pero realmente Italia como nación no existía. No existía (según dice Gabba,1978 :
24) conciencia nacional itálica en la Antigüedad, sino simplemente un cierto lazo
moral.

«…the concept of the nation-state did not exist in Republican Italy…» (Sal-
mon: 157).

El llamamiento antes de la batalla de Accio, trajo consigo y quizás implicó una


cierta unidad política de toda la península. «La pérdida de sus posesiones en Ul-
tramar habría sido catastrófica para Italia, que debía su prosperidad… al beneficio
que sacaba de la exportación de soldados, beneficios financieros y colocación de
sus élites en puestos del gobierno… Italia podía caer en la pobreza y en la humilla-
ción. Y esto produjo un orgullo nacional que la hizo levantarse» con la secesión de
Oriente (Syme: 277). «La política de Augusto respecto al Imperio a la larga reforzó
el sentido de identidad de los italianos entorno a Roma… El mundo romano estaba
siendo modificado por los italianos, ya no como socios tolerados, sino como part-
ners activos» (Salmon: 149)

Los Homines Novi y del Orden Ecuestre


Además, el Principado estaba a favor de los homines novi, del orden ecuestre y
de los advenedizos a Roma, de aquellos personajes que se habían hecho a sí mismos,
como dice Tiberio de Curcio Rufo. Eran la nueva clase dirigente, el recambio de la
nobleza romana4, constituían el consensus Italiae (R.Syme, R.R. p. 363). Esa polí-
4 
Veleyo se aprovechó de la “Revolución romana” que Augusto había producido: el acceso de los homines novi, equites
et Italici, a la nobilitas. «La concordia ordinum… était… un consensus Italiae car elle représentait une coalition de grandes
familles des municipes… qui maintenant regardaient… Rome comme leur capitale, le Princeps comme leur patron»
(Syme 344). ). « La classe des chevaliers constitue, en fait, la pièce essentielle de toute la structure sociale, militaire et
politique de l´État nouveau » (R. Syme : 336). El nacionalismo de Veleyo era interesado : « Des replis des Apennins et des
antiques tribus sabelliques sortent comme des reptiles les `monstres de petites villes´… qu´attirent l´ambition et l´avidité,
que pousse au grand jour l´appât d´un protecteur, ils s´abritent sous le vêtement et le couvert d´une vertu antique et d´une
indépendence virile, mais sont trop souvent rapaces, corrompus et serviles envers le purvoir » (Syme 341). Rodeaban a
Tiberio personas como M. Vinicio; Lucio Casio Longino, plebeyo; Elio Sejano de Volsini; Gayo Salustio Crisp,o caba-
llero, el que aconsejó a Livia, tras el asesinato de Agripa Póstumo que no lo divulgase ne arcana domus... vulgarentur;
Ateyo Capitón, el maestro de la escuela sabiniana a quien Tiberio le concedió el ius respondendi ex auctoritate principis
(Pomp. Dig. 1.2.2.48); Lucilio Longo también homo novus; Masurio Sabino caballero; Vesculario Flaco y Julio Marino,
que estuvieron a su lado en Rodas y Capri; Gayo Rubilio Blando caballero, a quien casó con una princesa; Curcio Ático
hispano; Brutedio Nigro, Junio Galión, Domicio Afro, todos ellos de origen modesto. Éllos constituían el círculo de
amigos de confianza. Entre los personajes de origen italiano o de origen plebeyo, exalta Veleyo a O Ti. Coruncanius,
que fue cónsul el 280 y pontifex maximus el 254 ane., que era originario de Túsculo, como Catón el Viejo (2.35.2), otro
ejemplo eximio de advenedizo. Igualmente a Espurio Carvilio, cónsul el 293. A Mario: (2.11.1), siete veces cónsul, pero
nacido en Arpino. A C. Laelio: cónsul en 190, pero de origen plebeyo. Su hijo, C. Lelio, cónsul en 140, fue amigo de Es-
cipión Emiliano y su lugarteniente en Cartago el 146 a.C. y en Numancia el 133 a.C. La familia Domicia, originalmente
plebeya, ha culminado con un miembro que formará parte de la imperial: Gneo Domicio Enobarbo, padre del futuro

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tica se continuará hasta Claudio, quien reconoce en la Tabla de Lyon (= Tac. Ann.
11.24) los antecedentes de esa política: “Es una medida nueva que adoptó mi abuelo
Augusto y que siguió mi tío Tiberio, el disponer que fueran senadores toda la flor de
las colonias y de los municipios, los más ricos y nobles de ellos”5.
En el caso de Tiberio parecía además que estuviera enojado con la aristocracia
romana, que se mostraba empeñada en el retorno de la República y que en todo
caso, apoyaba a la familia de Agripina y Germánico, que constituía la legítima
sucesión de Augusto y de la que credabaturque, si rerum potitus foret, libertatem
redditurus; unde Germanicum favor et spes eadem (Tac. Ann. 1.33).

El interás coincidente de veleyo: ¿Quién era veleyo?


Lógicamente Veleyo se identifica con el programa de promoción de los homi-
nes novi, de los italianos y de Italia. Veleyo Patérculo hace su carrera a la sombra
de Vinicio y de Tiberio, a quien acompaña a Germania como praefectus equitum
(2.104.3). En el 6 dne. fue nombrado legatus Augusti (2.111.3) y en el 13 dne. acom-
paña a Tiberio en su triunfo (2.121.3). Tras la muerte de Augusto es nombrado
pretor (15 dne. 2.124.4) y adquiere la dignidad senatorial. (2.111.3).
Veleyo estaba orgulloso de su cursus honorum, por lo que siente una gran sim-
patía por el nuevo régimen y por la familia Claudia, la cual promueve las clases
medias y a los homines novi.
Así se explica la posible falta de objetividad, por el interés y la identificación con
la causa del principado, especialmente en lo que le favorecía.

B. Disposito y Género de la obra Historia de Roma


Veleyo (libro I) sitúa en la leyenda el momento constitutivo de Italia y de Roma:
la Troya de Eneas y las migraciones griegas, que conectan el orbe con Roma a través
de sus distintas syngeneias con Italia. Y desde la fundación de Roma, como asylum
abierto por Rómulo a todo tipo de vagabundos, índice máximo de la capacidad de
integración que tuvo de siempre Roma (1.16).
Y después (libro II) sigue proyectando en el pasado los problemas de su época:
los derechos de las clases medias y los derechos civiles de los italianos. Despliega en
su historia una lucha épica de las clases medias e itálicas en defensa de sus intereses,
gracias a personajes como Mummio, los Gracos, Mario, Druso, Pompeyo, Julio
César (como demócrata), Cicerón, Balbo, Agripa, Augusto, Sejano y finalmente
Nerón. Estacilio Tauro, C. Asinio Polión, Lucio Arruncio (2.77.3 & 2.85.2), Vivio Postumo (2.116.5), Coso Cornelio
Léntulo (2.116.2), L. Apronio (2.116.3), Elio Lamia (2.116.3), Licinio Nerva Siliano (2.116.4). A la inversa, fustiga a
los nobles adúlteros que persiguieron a Julia: Sempronio Graco, Julo Antonio, Q. Crispino Sulpiciano, Apio Claudio,
Cornelio Escipión, ilustres familias donde las haya. También Varo, el del desastre de Teotoburgo, era de familia patricia
de toda la vida (2.117-120). Con Filipos habían desaparecido las mejores familias: Catón, Hortensio, Luculo, Varrón
(2.71.1-2). Actitud ante los distintos personajes.
5 
Sane novo m[ore] et divus Aug[ustus av]onculus m]eus et patruus Ti. Caesar omnem florem ubique coloniarum ac muni-
cipiorum, bonorum scilicet virorum ac locupletium, in hac curia esse voluit. Tabla de Lyon (= Tac. Ann. 11.24) “Es una
medida nueva que adoptó mi abuelo Augusto y que siguió mi tío Tiberio, el disponer que fueran senadores toda la flor
de las colonias y de los municipios, los más ricos y nobles de ellos”.

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Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

Tiberio.
Ve en esa lucha épica, en el devenir histórico de Roma, el genio que la define:
su capacidad de integración de extranjeros y de las clases medias.

Biografía
Por eso no tiene que extrañar que el tipo de micro-texto más abundante en la
Historia de Roma sea la biografía de estos personajes (Sauppe). Es verdad que en cada
episodio de la Historia de Roma suele cambiar el personaje principal. Casi siempre
es un personaje el que constituye la unidad temática de cada capítulo; otras veces
abarca dos y más capítulos; pero son los personajes y no las épocas, ni los procesos,
ni sus causas, los que van dando el tema a los diversos capítulos.
Pero esto se debe matizar, al menos para las partes que se conservan íntegras.
Así los doce primeros caps. del libro II desarrollan una tendencia cultural incluso
motivada por la caída de Cartago, que no es precisamente considerada un gran
triunfo de Roma; hay diversos conspectus sobre la colonizaciones romanas, la li-
teratura, etc. Y en las últimas partes del libro II, un personaje (y su antagonista)
suele protagonizar su época: Mario/Sila; Pompeyo/César, Augusto/M.Antonio, o
Tiberio. Pero de todas formas, predomina la biografía, ciertamente.
Esta forma de construcción biográfica, permite que por su Historia desfilen y
sean estudiadas personalidades como L. Mummio, que es puesto en parangón nada
menos que con Escipión, el destructor de Cartago, de cuya familia (2.1.1) dice: po-
tentiae Romanorum prior Scipio viam aperuerat, luxuriae posterior aperuit... También
los Gracos (que gozan de una gran simpatía aun no siendo Veleyo precisamente
un revolucionario), Mario, Druso. Pasa también Cicerón, por el que siente Veleyo
una gran admiración, por haberse hecho a sí mismo: qui omnia incrementa sua sibi
debuit, vir novitatis nobilissimae. O Cornelio Balbo el gaditano (2.51.3), o Ventidio
Baso, también hispano, que vivió dos triunfos, uno como cautivo y otro como
triunfante (2.65.3), y que llegó de muletero a cónsul; Marco Agripa, el ministro,
amigo y yerno de Augusto era también virtutis nobilissimae, y por su valor se hizo
acreedor de la más alta nobleza, pero labore, vigilia, periculo invictus, parendique,
sed uni, scientissimus, aliis sane imperandi cupidus et per omnia extra dilationes positus
consultisque facta coniungens: “Por sus cualidades era acreedor de la más alta noble-
za, invencible en lo que toca a esfuerzo, diligencia y asunción de riesgos; sabiendo
obedecer, aunque tan solo a uno; que a los demás le gustaba tenerlos a su servicio.
Nunca hubo nada que le impidiera llevar a cabo sus propósitos, ni soportó su dila-
ción”.

C. Un Ethos Nuevo
No se conforma Veleyo con proyectar sus intereses, los de su status y los de los
itálicos en la HR, sino que hace ver el ethos nuevo que comporta la nueva situación,
constituyéndola a base de dos valores fundamentales, que adquieren un signifi-
cado distinto del tradicional y que se articulan de distinta forma que en la época

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republicana: virtus et industria. Pasarán de constituirse en oposición a identificarse:


virtus=industria la solida veraque virtus lo será la utilitas.
Virtus en Veleyo viene a significar lo que significa hoy día: “valores que acom-
pañan a una personalidad”, “carácter”, “cualidades morales”, y no “valor guerrero”.
Virtus es usado por Veleyo en plural muchas veces, virtutibus: in qua civitate semper
virtutibus certatum erat, certabatur sceleribus (2.26.2). Werner Eisenhut, Virtus Ro-
mana, München, Fink, 1973, hace ver que ese “umfassende Bedeutung” comporta
un cambio de valores. No es la virtus el valor guerrero ni de los héroes. Ni siquiera
hay que derivarla de vir, como “hombría”, ya que Veleyo la aplica a las mujeres, así
a Calpurnia (2.26.3).

Tiberio Personifica la Virtud


¿Virtus como fortaleza?
Es verdad que a Tiberio se lo caracteriza como pleno de virtus: fuerza militar,
en su campaña contra Germania tras el desastre de Varo (2.121.1): penetrat interius,
aperit limites, vastat agros, urit domos, fundit obvios: “penetra hasta dentro, abre las
fronteras, devasta los campos, prende fuego a las casas, arrasa a quien se le pone
por delante”. Pero se elogia esa fuerza sobre todo por atenerse al valor utilitario más
que a la gloria militar: maximaque cum gloria: incolumi omnium quos transduxerat
numero in hiberna revertitur (2.120.2): “constituyó su mayor tilde de gloria el volver
al campamento con el mismo número de soldados con que había invadido”. Y en el
cap. siguiente (122) se hace ver su moderatio en el triunfo.

Carisma:
Tampoco descuida Veleyo el caracterizar a Tiberio como investido de excelsitud
carismática: tantaque unius viri maiestas (2.124.1): “la enorme majestad que carac-
terizaba a ese hombre”. Ya en el cap. 2.94.2 lo presenta con el porte de un príncipe:
Ti. Caesar... qui protinus quantus est sperari potuerat visuque praetulerat principem...
Lo compara con Augusto por la edad en que se inició su carrera (2.61.1): undevi-
cessimum annum ingressus, tal como se dice en Acta D.A. 1: annos undeviginti na-
tus. Nos lo presenta nutrido con preceptos divinos; en 2.94.2: innutritus caelestium
praeceptorum disciplinis, por haber sido educado en la casa de Augusto. Sus éxitos en
Armenia (2.94.4) preparan ya el aura carismática del futuro príncipe. La urbe y el
orbe sufren con su pérdida: sensit terrarum orbis digressum a custodia Neronem urbis
(2.100.1), y disfrutan con su retorno, que garantiza la eternidad del imperio: laetiti-
tiam illius diei concursumque civitatis et vota paene inserentium caelo manus spemque
conceptam perpetuae securitatis aeternitatisque Romani imperii (2.103.4). Por algo
Augusto en su adopción dijo: hoc, inquit, rei publicae causa facio (2.104.1). Mucho
de carismático tiene el cap. 2.104, en el que se describe la emoción de los soldados
en la presencia de Tiberio o la de aquel germano que lo toma por un dios (2.107). El
triunfo de Tiberio en Germania es tanto mayor cuando se lo compara con el fracaso
de Lolio o de Varo (2.122). Se le describe como asistido de la Fortuna.

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Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

El trabajo, endoxos douleia


Tiberio fue indudablemente un general de éxito y fue prestigioso en su política
exterior. Pero Tiberio carga sobre todo con el peso del imperio. Es como Julo, a
quien su padre Eneas le dice (Verg. '. 12.435):

disce, puer, virtutem ex me verumque laborem / Fortunam ex aliis.

Es también como Hércules, quien se ganó la ascensión al Olimpo por sus tra-
bajos. Quizás por eso no se ahorra Veleyo los aspectos negativos, las grandes difi-
cultades que tuvo Tiberio hasta alcanzar el poder y luego las traiciones, desengaños,
desagradecimientos, que sufrió (2.130.3-4).
Los cargos son cargas, o como reza la antítesis y paradoja clásica, la jefatura del
estado es una endoxos douleia, un “esfuerzo penoso lleno de honor”. Ya dice Cic. Pro
Sest. 139: que quienes buscan los honores aliis otium quaerere debent et voluptates,
non sibi. Sudandum est iis pro communibus commodis, adeundae inimicitiae, subeun-
dae saepe pro re publica tempestates.
Moles et onera son palabras que frecuentemente aparecen en Veleyo referidas al
príncipe.

Virtus = industria
Pero la virtud más auténtica de Tiberio va asociada a la utilidad: Veleyo dice
de Tiberio (2.114.1): o rem dictu non eminentem, sed solida veraque virtute atque
utilitate maximam, experientia suavissimam, humanitate singularem: “¿Qué cosa más
poco importante de relatar, pero más propia de una sólida y auténtica virtud y
provecho, sumamente agradable en la práctica e incomparable en su humanidad!”,
y se refiere a la institución de las ambulancias y del botiquín de campaña. Afirma
seguidamente: tanquam distractissimus ille tantorum onerum mole huic uni negotio
vacaret animus: “como si no tuviera otra cosa a la que prestar su atención, como si
estuviera libre del peso enorme de las obligaciones”. El peso de las preocupaciones
primordiales es parangonado con el de las ocupaciones más elementales. Se trata,
como se ve, del tópico de la cura ducis: la preocupación por las tropas, sus necesi-
dades y su salud.

“Elogio del Príncipe”


Veamos el denominado “elogio de Tiberio” (caps. 126-131), que tan estudiado
y discutido ha sido por los críticos: Woodman, Steffen; M. Merkel; Cl. Kuntze; B.
Massauer; Schmitzer, que presenta varios problemas, y que creemos puede resolver
nuestra interpretación de HR como puesta en valor de la moral de las clases me-
dias.
Se ha pretendido sacar de estos seis capítulos finales de la HR el carácter corte-
sano de Veleyo. Quizás se haya exagerado su contenido y estilo en exceso, y extra-

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 361


Antonio Ruiz Castellanos

polado desde de esta parte de la obra a la totalidad de la HR.


Precisamente en estos seis capítulos, a partir del cap. 2.126, se interrumpe la
narración de los hechos, una vez que Tiberio ha tomado el poder a la muerte de
Augusto y ha sido apaciguada la revuelta del ejército que siguió. De manera que la
narración de los hechos que abarcan desde el año 14 hasta el año 30, fecha de la
edición de la HR, es sustituida por una descripción del sistema de valores del nuevo
régimen, descripción que desgrana los tópicos de un elogio del Príncipe (Kuntze
Claudia, Zur Darstellung des Kaisers Tiberius und siner Zeit bei Velleius P., Frankfurt
am Main, Peter Lang, 1985): el Princeps como energetês, como garante de la justicia,
liberal, un ejemplo para los ciudadanos.
Aunque se hallen presentes estos tópicos, resaltan sobre todo los valores nue-
vos:
El cap. 126, de forma sumaria: proposita quasi universa principatus (2.129.1),
alude al tópico de la indecibilidad de los hechos de los últimos 16 años; ello y la
piedad de Tiberio, que ocupan el nº 1; pero los nºs 2&3 elogian su “buena ad-
ministración”, los aparatos ejecutivo (antes que nada), consultivo y judicial, que
funcionan optimamente: accessit magistratibus auctoritas, senatui maiestas, iudiciis
gravitas (2.126.2). Vuelve a funcionar el crédito: revocata in forum fides. La admi-
nistración se ha asegurado un programa de “despensa, higiene, ejecutivo y tutela”,
como diría nuestro regeneracionista Joaquín Costa: Quando annona moderatior?
quando pax laetior? Y finalmente, incluso las provincias se benefician de una buena
administración6.
El Principado asume un sistema de valores nuevo, el sistema propio de las clases
medias, donde se estima más la utilidad que la grandeza, y se conceden las mayores
dignidades a la tutela de las necesidades fundamentales: quod usu optimum intelle-
git, id in tutelam securitatis suae libenter advocet.
La seguridad es el valor primordial. El clamor por la seguridad era grande, cons-
tituyendo la justificación ideológica para el Principado; cosa que vemos también en
Hor. Od. 4.14.43-44: Ep. 2.1.2. Sen. Clem. 1.1.1&5. Plin. Paneg. 8.1; 10.52; 10.102;
27.1. Tac. A. 1.2.1; 1.12.1. Suet. Aug. 94.12; Tib. 6.1. Ya Augusto había ejercido una
tutela paternal sobre Roma: optime Romulae / custos gentis, ibidem 4.5.1 et sqq., el
guardián de Roma y de Italia: o tutela praesens / Italiae dominaeque Romae, ibidem
4.14.43 et sqq. Fue proclamado pater patriae: hic ames dici pater atque princeps, Hor.
Od. 1.2.50. Pero a la muerte de Augusto se vuelve a dar una situación de inseguri-
dad similar a las guerras que precedieron su principado: se temió una orbis ruinam
(2.124.1). La seguridad que representa Tiberio es celebrada como providentia; así en
Interamna en el año 32 d.C. (CIL XI 4170): Providentiae Ti. Caesaris Augusti nati
6 
La moderación de Tiberio (singularis moderatio Ti. Caesaris elucet atque eminet, 2.122.1) es otra de sus virtutes y
representa el contrapeso de la autocracia que comporta el Principado. Se ve en que se conforma con celebrar 3 de los 7
posibles triunfos que pudo celebrar. Lo que por otro lado recuerda los 3 de Augusto. Johannes Christes, “Tacitus und
die moderatio des Tiberius”, Gymanasium, 101, 1994, pp. 113-135, discute si su moderatio o modestia eran fingidas o
reales. La moderatio del régimen es puesta por Veleyo en parangón con la mediocritas (propia de las clases medias) y la
simplicitas. Sólo a posteriori puede Tacito dudar de la sinceridad de la moderatio de Tiberio.

362 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

ad aeternitatem Romani nominis. Pareciera que la secuencia hereditaria o dinástica


garantizaba la perpetuidad de Roma.
Este valor de la seguridad está en proporción inversa al de las libertades cívi-
cas. Es contrario a la democracia formal: Summota e foro seditio, ambitio campo,
discordia curia. El Foro, el Campo de Marte y la Curia son metonimias (Cic. De
or. 3.167) del Estado: el lugar donde se realizan las elecciones de las magistraturas:
las más elementales en el Foro; las superiores en el Campo de Marte, y la actividad
parlamentaria del Senado o Curia. Augusto ya proyectó esta reforma de Tiberio.
En 2.124.3 dice Veleyo: ordinatio comitiorum, quam manu sua scriptam divus Au-
gustus reliquerat. Como había señalado Salustio: pauci libertatem, pars magna iustos
dominos volunt, Hist. 4.69.18 M. La expresión de Veleyo es un eufemismo ideológi-
co, que pretende justificar la supresión de las elecciones hecha por Tiberio, ya que
junto con la seditio, ambitio y discordia se suprimía también la democracia. Lo único
que quedó libre fue el Senado, quien se vio incluso más dignificado al pasar a él la
elección de los magistrados, por más que el Príncipe tuviera poder de proponer y
para presionar el sentido de las votaciones: summota... discordia curia. Pero según
la expresión de Tac. Ann. 1.15.1: senatus largitionibus ac precibus sordidis exsolutus
libens tenuit.
Tiberio se cuida personalmente de la justicia: Cum quanta gravitate, ut senator
et iudex, non ut princeps causas... audit Tac. Ann. 1.75.1: Nec patrum cognitionibus
satiatus, iudiciis adsidebat in cornu tribunalis, ne praetorem curuli depelleret. Tam-
bién 2.57.3. Suet. Tib. 33. Dion C. 57.7.6. Pero la Justicia se traduce en un fun-
cionamiento mejor de los negocios y del crédito: sepultaeque ac situ obsitae iustitia,
aequitas, industria civitati redditae. El Príncipe se convierte en un modelo para la
ciudadanía: civis suos princeps optimus faciendo docet.

No un panegírico: Es cierto que el cap. 126 expresa la adicción del autor al


sistema de valores del Principado de Tiberio; pero no sé si eso lo convierte en un
panegírico, como suelen decir los críticos. Faltan aspectos propios del panegírico:
faltan los tópicos retóricos de Menandro el Rétor sobre el personaje (origen, edu-
cación, ascendencia...), no se usa la 2ª persona para apostrofar al elogiado (el único
apóstrofe va dirigido a Vinicio: 2.130.4), y ni tan siquiera tiene un estilo exclamati-
vo, al menos en este cap. 126.

Sejano: Se interrumpe el tema y se incluye en forma de enclave en los capítulos


siguientes (2.127&128) un nuevo tema: el de la tradición de los homines novi como
adiutores del príncipe, tradición que se repite en el caso de Sejano.
Se encarnan en Sejano los valores del homo novus: equestris ordinis patre natum,
que por su esfuerzo y méritos al servicio del Príncipe se ha ganado su confianza:
ipsum vero laboris ac fidei capacissimum; sufficienti etiam vigori animi compage cor-
poris, singularem principalium onerum adiutorem; virum... actu otiosis simillimum...
vultu vitaque tranquillum, animo exsomnem: “por su gran capacidad de trabajo y su

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 363


Antonio Ruiz Castellanos

gran fidelidad, por la energía de su carácter en correspondencia con la fortaleza de


su cuerpo, hombre... que en pleno trabajo parece ocioso... lleno de tranquilidad en
su aspecto y en su vida, pero realmente siempre en vela su mente”. Y elegido por su
eficiencia y eficacia en la función pública: quod optimum sit esse nobilissimum,
quod... summo cum sudore consequendum foret,... quod usu optumum intellegit,
id in tutelam securitatis suae libenter advocet: “lo que se consideraba más valioso
eso lo consideró también lo más noble, y lo que se tiene que conseguir con gran
sudor, lo que se consideró más útil para la propia seguridad, lo llamó a su servicio”
Tampoco es un elogio. El estilo no puede ser más frío, es una deducción
(cap.128, expresa la proposición/confirmación en el nº 129).
Vuelve Veleyo a TIBERIO (caps. 2.129 & 130.1-2) para enumerar algunos he-
chos (singula recenseamus) particulares, de los cuales unos son aciertos y los expre-
sa mediante exclamativas (la política exterior e imperial, su actividad judicial, la
educación de sus posibles sucesores: Druso y Germánico, su liberalidad, el castigo
de los enemigos y levantiscos, como Sacrovir y Tacfarinas, su munificencia y libe-
ralidad (otra vez), y sus procedimientos de levas). Pero otros en cambio (130.3-5)
enumeran las desgracias soportadas por Tiberio, de las que nuestro autor se queja
mediante interrogativas y exclamativas, incluso reprochándoselo a los dioses (audeo
cum deis queri: “me atrevo a quejarme ante los dioses”).
No es desde luego un himno: Son exageradas las descalificaciones que se han
hecho a esta parte de la obra (2.126-131), como la de U. Schmitzer, quien la cali-
fica de “hymnische Gesamptwürdigung” (p. 300), que desarrolla “das Bild eines
göttlichen Menschen, eines divinus” (p. 294), olvidándose de los fracasos que se
describen en 130-3-4, y de que el propio Tiberio estaba en contra de su divinización
(Tac. An. 5.2).

Conclusión
Por encima de los reproches a Veleyo de falta de objetividad, de abuso del géne-
ro biográfico, del elogio y hasta de la oración (el cap. 131 con que se cierra la obra),
hemos de reconocerle a Veleyo el mérito siguiente: el haber sabido leer en la historia
de Roma una constante, i.e., la tendencia integradora propia de la cultura romana.
Dice Hannah Arendt, De la historia a la acción, p. 41: “La historia aparece cada vez
que ocurre un acontecimiento lo suficientemente importante para iluminar su pa-
sado (en este caso, la apelación de Augusto a toda Italia). Entonces la masa caótica
de sucesos del pasado emerge como un relato... lo que el acontecimiento iluminador
revela es un comienzo en el pasado que hasta aquel momento estaba oculto... (cobra
un nuevo sentido la fundación de Roma, la leyenda de Eneas, las fundaciones grie-
gas de la Magna Grecia, la secuencia de homines novi)... la mirada del historiador
no es más que la mirada científicamente entrenada (y aquí interesada) de la com-
prensión humana”.
Veleyo detenta la perspectiva italiana; la perspectiva, no tanto del inmigrante
cuanto del hombre de negocios o de acción, que quiere la nacionalidad para par-

364 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio

ticipar con todo derecho en el comercio y en la política de la metrópolis en que se


incardina. ¿No nos recuerda esto a la Europa de los capitales? Otro civis inquilinus,
Cicerón, en su Pro Balbo 31, intentó justificar también mediante la proyección hacia
los orígenes el otorgamiento de la ciudadanía romana sin extrañamiento:

illud vero sine ulla dubitatione maxime nostrum fundavit imperium et populi Romani
nomen auxit, quod princeps ille creator huius urbis Romulus foedere Sabino docuit etiam
hostibus recipiendis augeri hanc civitatem oportere. Cuius auctoritate et exemplo nun-
quam est intermissa a maioribus nostris largitio et communicatio civitatis.
Ésa es la clave para explicar la Historia de Veleyo: su discutida objetividad, el
predominio de la biografía y el recurso en una obra de Historia al elogio. Y es que
Veleyo está inmerso en la realidad contemporánea del Principado, cuyo régimen le
“concede ogni possibilità di carriera e di gloria” (Lana: 60). El Principado le da la
espalda al régimen aristocrático republicano y a su política de botín, y da acceso al
gobierno a nuevas familias de extracción plebeya o extranjera, cuyos valores son el
trabajo y el servicio al Estado. Tácito (Ann. 3.55) lo reconoce con resentimiento:
“Hombres advenedizos procedentes de los municipios, de las colonias e incluso
de las provincias eran incluso reclamados para formar parte del Senado y aportaron
las riquezas de sus lugares de origen. Ellos llegaron gracias a su capacidad de ahorro
doméstico, y basándose en su riqueza y laboriosidad, a una vejez sumamente adine-
rada, conservando todavía su primitiva manera de pensar”.

BIBLIOGRAFÍA

HENANUS, Beatus (1520). Vellei Paterculi ad M. Vinitium. Basilea. Froben


SUEYRO, Manuel. (1787), Veleyo Patérculo. Madrid.
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dacity in Velleius”. A.J.Ph. XCIX, pp. 45-63.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 365


Gregos versus Egípcios na A lexandria Ptolomaica:
O CASO EXCEPCIONAL DO CULTO A SERÁPIS*

José das Candeias Sales


U. Aberta
jsales@oninetspeed.pt

V ivemos hoje, no limiar do séc. XXI e do III milénio d.C., num mundo mar-
cado por profundos conflitos de interesse e acentuadas oposições de toda a
espécie. Frequentemente, tomamos conhecimento através da comunicação social
da multiplicação de actos anti-semitas, anti-islâmicos ou anti-cristãos; somos in-
formados da profanação de locais sagrados de culto, de cemitérios, sinagogas, mes-
quitas ou igrejas; sabemos de agressões e injúrias de carácter racista contra alvos de
diferentes etnias, credos ou cores. Para muitos, trata-se da factura da globalização,
do preço a pagar pelo multiculturalismo e pela necessidade de coexistência de
grupos diferentes e, por vezes, antagónicos. Em muitos casos, o factor religioso é
apontado como a causa da conflitualidade, das incompreensões, do extremar de
posições.
Sem pretender retirar lições da história antiga, é por vezes extremamente esti-
mulante olhar o passado e verificar como as sociedades antigas lidaram com as suas
antíteses, com os seus diferentes grupos de interesses, com os antagonismos que
inevitavelmente albergaram no seu seio.
O exemplo da antiga cidade cosmopolita de Alexandria é um dos mais fasci-
nantes e interessantes estudos de caso, pela multiplicidade de tensões que conhe-
ceu, nomeadamente no período ptolomaico, e pela forma, eu diria original, como
superou algumas. No início da dominação ptolomaica, na viragem do séc. IV a.C.,
a forte antítese entre greco-macedónios imigrados e egípcios autóctones colocou re-
almente novos problemas e novos desafios ao poder político, geneticamente oriundo
da Macedónia, mas residente no Egipto.
Fundada em 331 a.C. por Alexandre Magno, no Delta ocidental, intencional-
mente voltada para a bacia mediterrânica, numa zona calcária pouco elevada, em
frente da ilha de Faros, Alexandrea ad Aegyptum está, pelo seu nome e pela sua
glória como grande cidade do mundo antigo – foi capital político-cultural durante
cerca de 1000 anos1 –, indelevelmente vinculada à figura daquele que lhe deu o
nome e que foi o seu fundador.
Na escolha do local, com o auxílio dos seus conselheiros, Alexandre Magno
teria considerado, sobretudo, as enormes possibilidades estratégicas oferecidas pelo
*
O essencial deste artigo foi igualmente publicado, com outro título, na Revista Lusófona de Ciências das Religiões, Ano
VI, 2007, nº 12.
1 
Capital política do Egipto desde o fim do século IV a.C. até ao século VII d.C., isto é, durante cerca de mil anos,
Alexandria manteria, no fundo, a sua importância comercial e cultural até à Idade Média. O seu declínio iniciar-se-ia,
a partir de 646, com a conquista árabe, mas só seria efectivo com o estabelecimento definitivo do Cairo como capital e
centro cultural, em 968.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 367


José das Candeias Sales

lugar (em contraste, por exemplo, com Canopo ou Pelúsio), mau grado o desafio ge-
ográfico que tal empresa constituía (face à inóspita e perigosa costa e às deficientes
características da terra para a agricultura)2. Daí o seu directo envolvimento nas ceri-
mónias de fundação que os escritores antigos mencionam (ex.: Plutarco3, Arriano4 e
Quinto Cúrcio5). Estes autores referem-se também à forma de clâmide que a cidade
apresentava, com os 6 Km no sentido este-oeste e menos de 2 no eixo norte-sul6.
Seria, contudo, com Ptolomeu I Sóter (305-285 a.C.), o fundador da dinastia
Lágida, que Alexandria cresceria, em termos geográficos e demográficos, e se im-
plantaria como primeira cidade cosmopolita do seu tempo, atraindo Gregos e Per-
sas, Macedónios e Judeus, Indianos e Africanos, Sírios e Anatólios, Mesopotâmicos
e Gauleses, a «desnorteante variedade» de povos e de culturas, tão típica do período
helenístico pós-Alexandre, a que, por exemplo, Maria Helena Rocha Pereira faz
alusão7.
Capital dos Lágidas e do Egipto Greco-romano, cidade de militares, funcio-
nários, negociantes, intelectuais e artistas, centro urbano e monetário de enorme
pujança, Alexandria viria a tornar-se, como sabemos, no maior centro comercial,
industrial e cultural-científico do mundo helenístico civilizado. A cidade não era
só um autêntico empório do mundo da época, aonde afluía todo o tipo de bens e
mercadorias, de praticamente todas as proveniências geográficas, como inclusive
substituiu Atenas como principal centro de irradiação do helenismo.
Os Ptolomeus referiam-se a Alexandria como estando não no Egipto, mas «junto
do Egipto», Alexándreia pròs Aigyptôi8. Esta terminologia de referência testemunha,
portanto, a situação excepcional de Alexandria: a cidade era, simultaneamente, por
um lado, o local de residência real e a capital do reino ptolomaico – e, dessa forma,
obrigatoriamente, parte integrante do território geográfico do Egipto – e, por outro
2 
Cf. André Bernand, Alexandrie la grande, Paris, Hachette, 1996, pp. 27-37.
3 
Plutarco, 26.
4 
Arriano, III, 2, 1-2.
5 
Q. Cúrcio, IV, 8, 6.
6 
A concepção do plano da cidade é atribuída ao arquitecto Dinócrates de Rodes que seria assim o responsável pelas
larguíssimas ruas principais que se cruzavam (retícula hipodâmica) e que durante toda a Antiguidade tanto surpreen-
deram todos os visitantes da cidade (Cf. Estrabão, XVII, 1, 8). A cidade estava dividida em cinco secções ou bairros,
claramente diferenciados consoante a população que os habitava, designados, como indica Fílon de Alexandria (século
I), pelas cinco primeiras letras do alfabeto grego, de α (alfa) a ε (épsilon). O bairro mais importante da cidade era,
logicamente, aquele onde se situava o palácio real, na zona do Grande Porto, entre o mar e a Via Canópica, a principal
rua que a atravessava de leste a oeste.
7 
Cf. M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica. I Volume. Cultura Grega, 7ª ed., Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 522.
8 
Como já escrevemos, toda e qualquer tentativa de reconstituição imaginária da antiga Alexandria, além da referência
obrigatória ao centro cultural ímpar que a cidade sempre foi, tem que considerar um primeiro indício das suas particu-
lares e excepcionais condições e privilégios que é o seu próprio nome Alexándreia pròs Aigyptôi, isto é, «Alexandria junto
do Egipto». No período romano, as nomenclaturas Alexandrea ad Aegyptum, Alexandrea apud Aegyptum, Alexandria in
Aegypto ou Alexandrea quae est in Aegypto consubstanciavam a mesma realidade e o próprio título do prefeito romano
do Egipto era sintomático desta dicotomia: praefectus Alexandreae et Aegypti, «prefeito de Alexandria e do Egipto» (Cf.
José das Candeias Sales, «Alexandrea ad Aegyptum. Protótipo de metrópole universal» in Discursos. Língua, Cultura e
Sociedade, II Série, nº 5. O Imaginário da cidade, Lisboa, Universidade Aberta, Dezembro 2003, pp. 83-105).

368 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Gregos versus Egípcios na Alexandria Ptolomaica

lado, um mundo à parte, separado e distinto, do país real, da província, do mundo


rural (chôra). Geograficamente, o lago Mareótis separava naturalmente a capital do
resto do Egipto tradicional e só com o estabelecimento de canais artificiais se fez a
sua ligação ao Nilo (a multissecular via de comunicação do Egipto dos faraós anti-
gos) e através deste com o resto do país provincial e principalmente com Mênfis e
Tebas, as antigas capitais faraónicas.
Além deste afastamento, digamos assim, geográfico entre a capital ptolomaica
e a chôra havia duas outras importantes características que segregavam a cidade: 1)
era a única fundação urbana de significado do reino ptolomaico9 e 2) apresentava
uma população cosmopolita em que os Egípcios não eram, de todo, o grupo social
dominante. O seu meio milhão de habitantes comportava cerca de 300.000 ha-
bitantes livres10. Embora as aspirações de prosperidade e de sucesso social fossem
partilhadas por todos, havia uma manifesta facilidade de acesso aos cargos públicos
e uma clara superioridade da população «colonial» imigrada, a elite burocrático-
administrativa, falante de grego.
No confronto político-social com os imigrantes greco-macedónios, os nativos
egípcios saíam claramente prejudicados11. Na expressão de Claude Vial, «les deux
populations étaient dans le même pays mais ne vivaient pas exactement dans le même
espace»12. A opção política dos Lágidas de não generalizar o sistema urbano ao ter-
ritório egípcio impossibilitou a efectiva helenização da chôra13 e, de certa forma,
estimulou as clivagens socio-étnicas das comunidades um pouco por todo o lado,
mas com particular incidência em Alexandria.
Isto significa que a feição urbana e cosmopolita da cidade-capital favoreceu, sob
patrocínio da administração central, sobretudo, os imigrantes greco-macedónios.
Os reis ptolomaicos fomentaram mesmo a vinda de estrangeiros para a capital (lem-
bremos, apenas a título de exemplo, os inúmeros estudiosos provenientes de todo
o mundo mediterrânico). O dualismo ou confronto étnico autóctones-ocupantes
estrangeiros manifestava-se sob várias dimensões: na língua, na cultura, nas cren-
9 
Durante os cerca de três séculos de dominação lágida, a única cidade fundada pelos Ptolomeus no território pro-
priamente do Egipto foi Ptolemais Hermeiu, no Alto Egipto (criação de Ptolomeu I Sóter), destinada a ser o centro do
novo regime no sul, como Alexandria o era no norte. Com os seus 50.000 habitantes, era a maior cidade da Tebaida,
superiorizando-se mesmo à mítica Tebas (Cf. Estrabão, XVII, I, 42; 46). Náucratis, antiga colónia milésia, era, de certa
forma, uma herança do passado helénico e foi perdendo o seu estatuto de primeiro porto comercial até cair numa relativa
obscuridade, toldado por Alexandria. Alexandria era uma herança de Alexandre e apenas Ptolemais era uma criação lá-
gida (Cf. André Bernand, Leçon de civilisation, Paris, Fayard, 1994, p. 234, 235, e Jane Rowlandson, «Ville et campagne
dans l’Égypte ptolémaïque» in Andrew Erskine (Dir.), Le monde hellénistique. Espaces, sociètés, cultures. 323-31 av. J.-C.,
Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2004, pp. 329, 333).
10 
Cf. Diodoro, XVII, 52, 6.
O conflito com os imigrantes não se confinava aos Gregos ou aos grupos helenizados (ex.: Trácios, Lícios e Cários),
11 

mas incluía também os Sírios, os Judeus, os Samaritanos e outros imigrantes semitas provenientes dos quatro cantos do
império ptolomaico além-mar (Cf. J. Rowlandson, Ob. Cit., p. 335).
12 
Claude Vial, Les Grecs de la paix d’Apamée à la bataille d’ Actium, 188-31, Paris, Éditions du Seuil, 1995, p. 24.
Cf. Jean Ducat, «Grecs et égyptiens dans l’Égypte dans l’Égypte lagide: hellénisation et résistance à l’Hellénisme» in
13 

Entre Égypte et Grèce. Actes du colloque du 6-9 Octobre 1994, Paris, Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1995,
pp. 72,73.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 369


José das Candeias Sales

ças, nos costumes, nas instituições, na arquitectura e na auto-consciência que cada


grupo social tinha da sua importância14. Os grupos sociais indígenas, a maioria
demográfica do país, ocupavam os subúrbios da cidade e tinham, por isso, um usu-
fruto mitigado dos direitos de cidadania. Periferia urbana era, neste caso, sinónimo
de periferia político-social-administrativa.
Com o seu sui generis melting pot of all nations, Alexandria foi, portanto, no
período ptolomaico, a terra das oportunidades, particularmente para os Gregos da
Hélade que anelavam uma recompensadora carreira administrativa e/ ou comercial-
financeira15.
Situada geográfica e historicamente na charneira de dois mundos, a Alexandria
do Egipto possuía um clima eminentemente propício às fortes antíteses étnico-po-
lítico-sociais, mas, simultaneamente, essa condição era favorável ao aparecimento,
por exemplo, de deuses de carácter «universal». Foi, efectivamente, em Alexandria,
no século III a.C., que se elaborou uma imagem diferente, complexa e subtil dos
antigos deuses egípcios, nascida do encontro entre a religião tradicional egípcia e as
técnicas e modos de expressão oriundos da Grécia16.
O poder político procurou criar condições para que os imigrantes tivessem um
centro de interesse religioso na sua nova residência que não lhes fosse estranho
(como seriam, por exemplo, as divindades zoomorfas da religião faraónica), mas
familiar (com destaque para o aspecto antropomorfo dos seus deuses), ao mesmo
tempo que procurava satisfazer o profundo sentimento de religiosidade dos nativos,
habitualmente muito voltados para as noções de vida eterna e de magia.
O caso mais relevante desta justaposição religiosa deu-se com o deus Serápis,
criado pelos primeiros Ptolomeus, que, sob iconografia helénica, congregava a es-
sência teológica egípcia. De facto, na nova divindade inventada convergiam traços
do touro egípcio Ápis que ao morrer se assimilava a Osíris, bem como semelhanças
físicas, qualidades e poderes dos deuses gregos Zeus, Hélio, Dioniso, Hades, Posí-
don e Asclépio. Os aspectos de soberania eram-lhe conferidos pelos deuses solares
Zeus e Hélio e também por Posídon. De Dioniso, Ápis e Osíris recebia os vecto-
res de fertilidade agrícola do mundo natural. Hades, Asclépio e também Osíris
forneciam-lhe os elementos funerários, associados à vida no Além, à medicina e à
magia. Serápis reunia, portanto, consistentes caracteres ctónicos e solares, presentes
nos plasmas culturais das populações helénicas e egípcias17.
14 
Cf. Barbara Anagnostou-Canas, «Rapports de dependance coloniale dans l’Égypte Ptolémaïque I. L’appareil militai-
re» in Bulletino del’Istituto di Diritto Romano Vitorio Scialoja (BIDR), Vol. XXXI-XXXII, 1989-90, pp. 166, 167.
15 
As excepcionais possibilidades de enriquecimento na vida comercial ou de estabilidade socio-económica pela entra-
da na hierarquia burocrática do Estado lágida eram os principais factores de atracção da cidade de Alexandria sobre
os estrangeiros, particularmente sobre os Gregos e os Macedónios: «l’immigrant grec, venu en Égypte dans le but de
s’enrichir ou de faire carrière, trouvait là, en sa faveur, une politique pro-hellène telle que l’ont développée les premiers
Lagides» (Florence Doyen, Rene Preys, «La présence grecque en Égypte ptolémaïque: les traces d’une rencontre» in
L’atelier de orfèvre. Mélanges offerts à Ph., Leuven, Peeters, 1992, pp. 63-85).
16 
Daí o significativo título de glória que a cidade granjeou como «a cidade amada dos deuses».
17 
Cf. José das Candeias Sales, As divindades egípcias. Uma chave para a compreensão do Egipto antigo, Lisboa, Editorial

370 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Gregos versus Egípcios na Alexandria Ptolomaica

A sua representação iconográfico-cultual típica era a de um homem maduro


com farta barba frisada, bigode e longos cabelos encaracolados (com cinco mechas
no alto da fronte), por vezes sentado «em majestade», vestindo uma típica túnica
helenística plissada (chiton) e um manto (himation), calçando sandálias e usando na
cabeça um modius (cesto ou vaso semelhante a um moderno vaso de flores, usado
como medida de cereais), também chamado calathos, como símbolo da prosperida-
de e fertilidade agrícola, que faz dele uma divindade dispensadora da abundância18
(Fig.1).
Por vezes, o deus Serápis é também figurado com a cabeça rodeada de brilhantes
raios solares, evocando, neste caso, a sua assimilação a Hélio. Há também testemu-
nhos iconográficos em que aparece segurando um ceptro e pousando a outra mão
sobre a cabeça de um monstro tricéfalo (assimilação do cão Cerberus, guardião do
Inferno). Esta figuração faz dele também o senhor do tempo e da eternidade. Será-
pis foi também frequentemente representado apenas em busto19.
Embora não seja a sua representação típica, é de referir aquela em que surge
com dois cornos de carneiro curvados, retorcidos: trata-se da sua associação com o
antigo deus egípcio Amon que assumia a forma do carneiro da espécie ovis platyura
aegyptiaca. Já Alexandre Magno convocara essa simbologia para as suas emissões
monetárias para estabelecer a sua ligação à tradição e à cultura egípcia.
A Época Helenística conheceu ainda um outro tipo artístico de Serápis greco-
egípcio: referimo-nos aos monumentos figurados de Serápis em pé20. Este protó-
tipo de pé, com características dionisíacas, tornou-se relativamente célebre, como
comprovam as várias cópias do século II a.C. Nestas representações de pé segura
uma cornucópia na mão esquerda, o que enfatiza as mesmas ideias de prosperidade,
abundância e riqueza do calathos.

Presença, 1999, pp. 363-364.


18 
No templo de Alexandria encontrava-se uma famosa estátua de culto realizada pelo escultor Briáxis, aí colocada
cerca de 286 a.C. (ainda reinado de Ptolomeu I). Esta estátua, de tamanho majestoso mas numa escala mais humana
do que a de Zeus de Olímpia, tem levantado um curioso debate quanto à disposição do cabelo: teria já as celebrizadas
cinco mechas na testa ou risco ao meio, repartindo o cabelo pelos dois lados da cabeça? Embora não conferindo com os
testemunhos literários, há elementos que apontam para o escultor Cárion (segunda metade do séc. IV a.C.) como «pai»
da estátua original de Serápis.
19 
No Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, há um bronze e duas terracotas de Serápis (Cf. Antiguidades Egípcias,
Vol. I, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 1993, pp. 354, 376, 378 e 379).
Sobre as variantes do tipo de Serápis em pé, vide V. Tran Tam Tinh, Sérapis debout. Corpus des monuments de Sérapis
20 

debout et étude iconographique, EPRO 94, Leiden, E. J. Brill, 1983, pp. 2 e ss.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 371


José das Candeias Sales

Fig.1 - Representação-tipo de Serápis (Busto em mármore; Museu Greco-romano de Alexandria).

Entre as razões que justificam a criação e a elevação do culto de Serápis a deus


principal de Alexandria parece ter estado a necessidade de promover uma coexistên-
cia pacífica e salutar entre os grupos étnicos greco-macedónio e egípcio. Através de
uma divindade híbrida tentou-se a superação das diferentes crenças dos diferentes
grupos étnico-culturais. O Serapeum de Alexandria instituiu-se em santuário mul-
ticultural, assente precisamente na justaposição das devoções com o objectivo de
alcançar uma espécie de conciliação e concórdia religioso-social21.
Ao estabelecer Serápis na colina de Rakotis, Ra-Ked em egípcio (actual Amud
es-Sawari), Ptolomeu I pensava, certamente, na Acrópole de Atenas e seguia, ao
mesmo tempo, o conselho de Aristóteles, para quem o deus principal devia ser
instalado numa localização mais elevada: tal como Atena superintendia a Atenas,
Serápis dominava Alexandria. Alexandria era, também deste ponto de vista, a «nova
Atenas» (Fig. 2).

21 
A Serápis foram consagrados inúmeros templos (Serapeum ou Serapeion) por todo o território egípcio. Os mais co-
nhecidos são, indubitavelmente, os de Alexandria e de Mênfis. O de Alexandria, situado no bairro sudoeste de Rakotis,
na tradicional zona residencial dos Egípcios, a pouca distância do centro cívico, era realmente um autêntico santuário
multicultural: segundo dois rituais distintos, havia dois cleros a oficiar, um grego e outro egípcio. Ao que parece, a fun-
dação do templo data dos reinados de Ptolomeu III (246-221 a.C.) e de Ptolomeu IV (221-204 a.C.), embora se admita
que o local já estava dotado de sacralidade desde os primeiros tempos da cidade.

372 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Gregos versus Egípcios na Alexandria Ptolomaica

Fig. 2 - Alexandria, com a Via Canópica em destaque. Ao fundo, à esquerda, na parte mais elevada
a oeste da cidade (a colina de Rakotis), vê-se o Serapeum, no enfiamento do Porto Eunostos e do Magnus
Portus da capital lágida.

Admite-se como «período possível» para a introdução do culto de Serápis em


Alexandria a última década de Ptolomeu I Sóter, servindo as datas de 308/ 306 a.C.
e 291 a.C. como balizas cronológicas, embora alguns autores não rejeitem também
como plausível o início do reinado de Ptolomeu II Filadelfo22. Independentemente
do momento preciso em que o culto foi introduzido – sempre, porém, na viragem
dos séculos IV/ III a.C. –, o que é relevante é que os primeiros reis lágidas tentaram
judiciosamente realizar a integração das etnias cultuais da cidade através do impul-
so da religião, quando a recusavam noutros planos (por exemplo, nos casamentos
mistos).
O culto a Serápis tornou-se o principal culto «nacional» da dinastia reinante no
território egípcio e, em resultado das novas construções sagradas realizadas pelos
Lágidas nas suas possessões exteriores, acabou por se difundir rapidamente por toda
a bacia mediterrânica, numa diáspora que alcançaria a Península Ibérica e as ilhas
22 
Cf. J. E. Stambaugh, Sarapis under the early Ptolemies, EPRO 25, Leiden, E. J. Brill, 1972, p. 6. P. M. Fraser opta pelo
período entre 286 e 278 a.C., ou seja, final do reinado de Sóter/ inícios do de Filadelfo, para a instalação e dedicação da
estátua de culto (Cf. P. M. Fraser, Ptolemaic Alexandria, Vol. 1, Oxford, The Clarendon Press, 1972, p. 267).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 373


José das Candeias Sales

britânicas.
O mítico e primevo casal Osíris-Ísis da tradição faraónica cedeu lugar nos mo-
numentos helenísticos à inseparável dupla Serápis-Ísis. O novo casal divino mar-
caria todo o período ptolomaico. O culto a Ísis, como expressão da antiga religião
egípcia, foi também sempre alvo da política religiosa dos Lágidas23. Em Alexandria,
a antiga deusa egípcia assumiria funções completamente inusitadas no âmbito dos
seus atributos, como protectora da navegação e dos marinheiros (Ísis Pharia, «Ísis,
senhora do mar»; Ísis Pelagia, «Ísis, deusa do mar» e Ísis Euploia, «Ísis da feliz nave-
gação»),. Esta «nova» Ísis de Alexandria foi representada ora com roupagens gregas
(chiton ou peplos e himation), ora com vestes de origem egípcia, embora sob reinter-
pretação «à grega»24. O seu renovado guarda-roupa atestava o novo período e fulgor
da sua existência e o profundo processo de helenização a que foi sujeita (Fig. 3).
Durante os Ptolomeus, em Alexandria, a «carreira» de Ísis decorrerá sempre um
pouco à sombra de Serápis25. Na chôra (a «terra natal» de Ísis, por assim dizer), no
entanto, Serápis nunca alcançaria a devoção popular dedicada à antiga deusa Ísis,
pelo menos por parte da população indígena – a maioria demográfica do país, não
esqueçamos. Não é, por isso, de estranhar que haja muito mais estátuas de Ísis do
que há de Serápis26. Ainda assim, há inúmeros testemunhos do culto serapiano,
quer ex-votos, quer estátuas de diversos tipos (talhas, candeias, terracotas, bustos em
mármore, grandes estátuas de madeira, etc.), que assinalam o seu relativo sucesso
popular, sobretudo em Alexandria.

23 
Cf. F. Dunand, Le culte d’Isis dans le bassin oriental de la Méditerranée. I. Le culte d’Isis et les Ptolémées, EPRO 26,
Leiden, E. J. Brill, 1973. p. 27.
24 
Em relação às vestes e aos símbolos distintivos de Ísis, vide Iside. Il mito. Il misterio. La magia, Milão, Electa, 1997,
pp. 86, 98, 108 e 111. A antiga deusa egípcia conservará, porém, alguns dos seus antigos atributos: coroa, sistro, sítula
e nó isíaco nas vestes.
25 
Também em Canopo, Ísis estava ligada a Serápis, sendo venerada como «a condutora das Musas» (Cf. A. Bernand,
Alexandrie des Ptolémées, Paris, CNRS, 1995, p. 84; Id., Alexandrie la grande, p. 132).
26 
Além das representações sob forma antropomórfica, Serápis e Ísis são também figurados, sobretudo no período roma-
no, sob forma animal: duas serpentes coroadas com os seus respectivos atributos, evocando o aspecto de «bons génios»
e garantes da prosperidade e fertilidade do solo.

374 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Gregos versus Egípcios na Alexandria Ptolomaica

Fig. 3 - Estatueta em bronze de Ísis (alt.: 27 cm) enquanto deusa do porto de Alexandria. Séculos II-I
a.C. (Ägyptischen Museum, de Berlim).

Com Ptolomeu IV Filopator (221-204 a.C.), dá-se a integração do deus Hor-


pakhered ou Harpócrates, o «Hórus criança», como filho de Serápis e de Ísis, a
exemplo do esquema familiar da tradicional tríade egípcia Osíris/ Ísis/ Hórus, be-
neficiando de um santuário no recinto do Serapeum27 (Fig.4). A nova tríade hele-
nística, que dominará a vida cultual alexandrina, convidará ainda Anúbis, o deus
psicopompo, um outro deus de relevo do antigo ciclo osiriano, cujo culto se passou
a celebrar também no Serapeum de Alexandria. Os quatro deuses «alexandrinos» ou
do «panteão alexandrino» partirão juntos para a diáspora mediterrânica 28. O antigo

27 
O jovem Harpócrates alexandrino era representado de pé, nu ou com uma simples clâmide no braço esquerdo, um
pouco desengonçado, segurando o corno da abundância, insígnia da prosperidade do reino. Os elementos que recordam
a sua origem indígena são a coroa pschent (a dupla coroa branca e vermelha da antiga realeza egípcia) e o dedo indicador
na boca (gesto típico dos antigos deuses-criança egípcios). Este gesto incitou os imigrantes gregos a identificarem-no
como deus do silêncio. Nas emissões monetárias romanas, Harpócrates surgirá coroado com a pschent, com o uraeus,
a serpente fêmea protectora de divindades e faraós, ou, então, emergindo de uma flor de lótus, referência ancestral da
tradição mitológica egípcia para o nascimento dos deuses-criança, designadamente no âmbito cosmogónico hermopo-
litano. Esta última iconografia está também presente em terracotas e em numerosos relevos de templos ptolomaico-
romanos.
28 
No período romano, na função de deus dos mortos e da mumificação, Anúbis surge representado nos túmulos de
Alexandria (ex.: catacumbas de Kom el-Shugafa). Era o equivalente egípcio de Hermes e chegou a ser honrado sob a
forma de Hermanúbis, cujo nome mais não é do que a contracção da onomástica das duas deidades. Hermanúbis foi a
segunda divindade autenticamente helenística, isto é, criada no apogeu do alexandrinismo.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 375


José das Candeias Sales

«círculo osiriano» transferiu-se, portanto, quase integralmente para o círculo «fa-


miliar» do deus Serápis, o que constituiu um elemento suplementar de apelo para
os devotos egípcios e resultou da atenção do poder político pela camada cultural
indígena.

Fig.4 - Forma helenizada do deus Harpócrates, «O Hórus criança», considerado em Alexandria


filho de Serápis e de Ísis (bronze; alt.: 25 cm; Museu Egípcio do Cairo).

Quando o faraó Ptolomeu I Sóter criou Serápis, um deus artificial, inventado,


mas de enorme acolhimento universal29, sincrético por natureza, procurou, simul-
taneamente, evitar que os seus súbditos gregos se mostrassem excessivamente per-
meáveis aos cultos tradicionais egípcios e que se conservassem, no essencial, dentro
do espírito da interpretatio graeca, isto é, do antropomorfismo das representações
plástico-artísticas e da simbologia imanente do mundo helénico ou helenizado.
Neste sentido, a criação do culto serapiano contraria a tese da liberalidade dos pri-
meiros Lágidas em relação à religião tradicional egípcia 30.
Paul Petit e André Laronde consideram-no mesmo «le premier dieu dont l’audience fut universelle» (Paul Petit, André
29 

Laronde, La Civilisation Hellénistique, 7ª ed., Paris, PUF, 1996, p. 78).


30 
Cf. Françoise Dunand, Christiane Zivie-Coche, Dieux et hommes en Egypte. 3000 av.J.-C. - 395 apr. J.-C. Anthropo-
logie religieuse, Paris, Armand Colin Éditeur, 1991, p. 214.

376 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Gregos versus Egípcios na Alexandria Ptolomaica

Como deus tutelar de Alexandria, pretendia-se que Serápis funcionasse como


elo agregador das populações helénicas e egípcias, étnico e culturalmente bastante
heterogéneas. Esse era, com efeito, um dos intuitos iniciais dos procedimentos pto-
lomaicos: realizar a conciliação funcional da história política e cultural do jovem
mundo helenístico e da história cultural e política do velho mundo egípcio. A re-
ligião constituiu então um território particularmente estimulante e profícuo para
o encontro das etnias e das culturas existentes no Egipto. Somente os Judeus de
Alexandria escapavam às atracções do sincretismo politeísta.
Nascido de uma justaposição de ideias e de concepções egípcias e gregas, o culto
ao deus Serápis de Alexandria é o testemunho paradigmático da inegável influência
exercida pelo Egipto sobre os Gregos, em geral, e sobre os Gregos imigrados, em
particular.
A introdução do culto de Serápis na cidade capital dos Ptolomeus respondeu à
necessidade de harmonização intercultural dos dois mais importantes agrupamen-
tos populacionais de Alexandria e constituiu um factor de superação das antíteses
vencidos/ vencedores, antigos/ modernos, autóctones/ estrangeiros entretanto de-
senvolvidas com a ocupação grega do Egipto e que eram, na viragem do séc. IV
a.C., um dos maiores problemas colocados ao poder político.
O recurso à religião, neste caso à criação ex-nihilo de um novo deus, como
agente moderador e modelador da realidade social e resposta pragmática e eficaz à
complexidade étnica e cultural da sociedade alexandrina, foi um facto de profundo
significado ideológico, justamente numa época, como foi a época helenística, mar-
cada pelos sincretismos e pelas simbioses culturais-religiosas e numa cidade como
Alexandria caracterizada pelo seu forte pendor cosmopolita. Podemos dizer que a
criação do novo deus reflectia a originalidade da situação de Alexandria: cidade
de origem grega dirigindo um país diferente, como o Egipto, cheio de história e
tradição.
O sucesso do novo deus no encontro – não na fusão ou osmose – cultural
e civilizacional das populações urbanas resultou do respeito pelos seus caracteres
multiculturais e favoreceu simultaneamente a preservação das memórias e das iden-
tidades das duas culturas e a nova dimensão social nascida da sua obrigatória coe-
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Grandeza e Pequenez nas R epresentações de Eros
na Literatura e na A rte

Maria Leonor Santa Bárbara


U. Nova de Lisboa
leosantabarbara@hotmail.com

1. Eros enquanto divindade primordial


De um modo geral, quando pensamos na figura de Eros, associamo-la imedia-
tamente ao deus do amor e, por inerência, a Cupido, a criança alada, armada de
arco e flechas, capaz das maiores travessuras. É, afinal, essa a divindade que encon-
tramos representada inúmeras vezes, como por exemplo, nas tapeçarias do século
XVI, nos Livros de Emblemas ou ainda na conhecida estátua de Piccadilly Circus.
No entanto, não só este deus nem sempre foi representado desta forma, mas
também a associação entre as duas divindades não será tão exacta como inicialmen-
te se poderá julgar1. Kitto, por exemplo, salienta essas diferenças ao afirmar, a pro-
pósito do Ájax, que “Eros é qualquer coisa que faz vibrar todos os nervos.”2. E desta
forma apresenta aquilo que considera como mais um traço específico dos Gregos.
O que me move neste momento é a questão de como os Gregos viam Eros: seria
uma simples divindade do amor, como Cupido, ou poderia ter outra função? É a
esta pergunta que pretendo responder, sobretudo com base na literatura, em detri-
mento da arte referida no título.
Uma das mais antigas referências a Eros é a de Hesíodo3 ao incluir Eros entre
as divindades primordiais:

“E Eros, o mais belo dos deuses imortais, aquele que enfraquece os mem-
bros, aquele que, no peito de todos os deuses e de todos os homens, domina
o espírito e a vontade sábia.”

O poeta põe-nos, assim, perante uma entidade que, juntamente com a Terra,

1 
Embora não seja esta a minha intenção neste momento, é sempre possível comparar as duas designações – a grega e a
latina – e os respectivos sentidos para se perceber que logo aí nos deparamos com algumas diferenças. Enquanto œrwj
indicava, a par de amor ou de desejo apaixonado por uma pessoa ou por um objecto, uma alegria apaixonada, cupido
tinha as acepções (para além de paixão ou desejo apaixonado) de desejo, inveja, cupidez, ambição desmedida. Por outro
lado, há toda uma família de palavras que lhes estão associadas que nos confirmam essa diferença semântica entre o
termo grego e o latino.
2 
Cf. H. D. F. Kitto, Os Gregos (tradução e prefácio de José Manuel Coutinho e Castro, revisão de Maria Helena da
Rocha Pereira), Coimbra, Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1980, pág. 417.
Hesíodo, Teogonia, 120-122: ºd’ ”Eroj, Öj k£llistoj ™n ¢qan£toisi qeo‹si, / lusimel»j, p£ntwn d
3 

qeîn p£ntwn t’ ¢nqrèpwn / d£mnatai ™n st»qessin nÒon ™p…frona boul»n.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 383


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teria nascido do Caos primordial, num plano concomitantemente cosmogónico e


teogónico. Eros é a divindade que tudo domina, homens e deuses, com um poder
invencível. É, ainda, a entidade que personifica a força geradora, o impulso que
contribui para a geração de novos seres, que tem a função de reunir os elementos da
matéria, para que eles se unam originando o conjunto dos seres.
Hesíodo, como sabemos, não é caso único: nos poetas líricos e nos trágicos
volta a surgir como entidade primordial. Nas Danaides (fr. 44), Ésquilo apresenta-o
como a divindade que origina a união do Céu e da Terra; esta, fecundada pela
chuva, gera cereais para os homens e erva para os rebanhos. O mesmo autor, na An-
tígona, apresenta Eros como um poder abstracto, invencível, dominador de todos
os seres vivos existentes sobre a terra4. Claro que aqui já encontramos a associação
a Afrodite e ao instinto sexual encarnado por esta deusa, o que se compreende pelo
facto de na tragédia ática ser ele o deus da paixão amorosa.
Também na cosmogonia órfica Eros teria nascido do Ovo primordial, engen-
drado pela Noite, cujas duas metades constituem a Terra e o Céu5. Nesta versão de
Aristófanes Eros, filho da Noite, é o ser alado que se une ao Caos para originar uma
nova raça, conservando a sua função fecundante.

2. Eros adolescente
Esta não é, contudo, a representação mais conhecida do deus. Frequentemente
é associado ao Amor e a Afrodite, que diversos autores consideram como sua mãe6.
E é este o aspecto que pretendo abordar mais desenvolvidamente.
Ainda em Hesíodo, podemos constatar um traço que une ambos os deuses: tal
como Eros é um princípio de vida, capaz de promover a fecundidade e de vivificar
a natureza, também Afrodite, filha de Úrano, o é, estendendo-se o seu poder a to-
4 
Cf. Ésquilo, Antígona, vv. 781-800 (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, INIC, 19872): “Eros invencível
no combate, / Eros que as riquezas destróis, / que estás de vigília às faces tenras / da donzela, / vagueias sobre o mar e
nos campos! / Não te evitou nenhum dos deuses / nem dos humanos de curta vida: / quem te possui / enlouquece. /
Tu desvias dos justos o ânimo, / fá-los injustos para o seu mal, / tu, que excitaste esta contenda / nos parentes; / vence,
porém, da formosa noiva / a luz brilhante do seu olhar, / das grandes leis par no poder; ri-se, / invencível, / Afrodite.”.
5 
Cf. Aristófanes, Aves, vv. 693-699, que parodia esta versão: “No princípio era o Caos e a Noite e o negro Érebo e o
vasto Tártaro; mas não existiam a terra, o ar e o céu; no seio infinito do Érebo, logo de início, a Noite de asas negras
gerou um ovo vazio, do qual, com o correr das estações, surgiu Eros, o desejado, as costas brilhando com asas douradas,
como turbilhões de vento. Ele, unindo-se ao Caos alado, durante a noite, no vasto Tártaro, originou nossa raça [a das
aves] e, a primeira, conduziu-a para a luz.” (C£oj Ãn kaˆ NÝx ”ErebÒj te mšlan prîton kaˆ T£rtaroj eÙrÚj:
/ gÁ d’ oÙd’ ¢¾r oÙd’ oÙranÕj Ãn: ‘Eršbouj d’ ™n ¢pe…rosi kÒlpoij / t…ktei prètiston Øphnšmion
NÝx ¹ melanÒpteroj òÒn, / ™x oá peritellomšnaij éraij œblasten ”Erwj Ð poqeinÒj, / st…lbwn
nîton pterÚgoin crusa‹n, e„këj ¢nemèkesi d…naij. / Oátoj dš C£ei pterÒenti migeˆj nÚcioj kat¦
T£rtaron eÙrÝn / ™neÒttwsen gšnoj ¹mšteron, kaˆ prîton ¢n»gagen e„j fîj.).
6 
A genealogia do deus é bastante discutível entre os poetas gregos. Para Alceu, Eros é filho de Íris e de Zéfiro; Acusilau
(segundo um escólio de Teócrito) apresentava-o como sendo filho do Éter e da Noite; Eurípides (de acordo com o mesmo
escólio e como se pode ver no Hipólito, vv. 530-534) atribui-lhe Zeus como pai; Sócrates, no Banquete 203 cd, apresenta
para o deus dois progenitores alegóricos, Pénia e Poros. Já antes, no mesmo diálogo de Platão, Fedro (178 bc) afirmara
que Eros não tinha pais. No entanto, a questão da atribuição da maternidade a Afrodite parece ser bastante antiga: Safo,
por exemplo, já o considera filho de Afrodite e de Úrano (embora o referido escólio de Teócrito apresente a versão de que
seria filho da Terra e de Úrano). Na arte, é sobretudo a partir do século III a. C. que Eros é representado como filho da
deusa, aparecendo ambos como mãe e filho nas pinturas de vasos por volta de 380 a. C.

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Grandeza e Pequenez nas Representações de Eros na Literatura e na Arte

dos os seres vivos – homens, animais e plantas. E é por associação de sentido que
estas divindades assumem a função de protectoras do amor, dada a ligação estreita
existente entre este e a fecundidade. No entanto, até aqui há uma diferença na sua
concepção: Eros, transformado em deus do amor, é uma força invencível, difícil de
suportar, cria tensão e desejo, embora não personifique o amor físico, que pertence
ao domínio de Afrodite.
Para melhor compreender a relação entre os dois convém referir a existência de
duas Afrodites, a Urânia e a Pandémia, resultantes de duas tradições distintas7. O
facto de existirem duas Afrodites pressupõe a existência de dois Eros – um é um
deus, filho de Afrodite Urânia e, tal como a mãe, afastado da Matéria; o outro é
uma divindade, o Amor universal, associado à Alma universal. É deste último que
dependem todos os Amores. Além disto, Eros era simultaneamente companheiro
da deusa e princípio cosmogónico que presidia à perpetuação da geração.
Do mesmo modo, na literatura e na arte ambas as divindades se encontram
associadas, podendo ser representadas de formas bastante distintas. Em Safo, Eros
surge como uma divindade cósmica pertencente ao séquito de Afrodite, embora se
reconhecesse que ele possuía um determinado prestígio de que estavam desprovi-
das todas as outras divindades que acompanhavam a deusa. Eurípides8 apresenta-o
como guarda de Afrodite. É uma divindade que não recebe qualquer tipo de ve-
neração, mas que possui um terrível poder sobre os homens, provocando-lhes uma
série de desgraças. Afinal foi a ele que foram confiadas as chaves dos prazeres da
deusa! Aliás, mais adiante, o Coro acentua o poder de Eros sobre o coração dos seres
vivos9, um poder partilhado com Afrodite.
Nesta passagem encontramos já um dos traços mais constantes das represen-
tações de Eros: as suas asas. Elas estão presentes nas mais diversas obras literárias,
mas também na arte. Esta apresenta-o frequentemente como um jovem, filho de
Afrodite, implicante e travesso, quase sempre alado e carregando um arco e a aljava
de flechas. As asas têm grande importância na representação do deus, recordando as
antigas divindades da natureza e sugerindo a ideia da força e do impulso do amor.
Esta figuração faz de Eros, simultaneamente, uma força oculta e monstruosa, uma
potência cósmica que penetra o universo, mas também o amor amargo-doce, capaz
de confundir sentimentos e lamentos10.
7 
Estas baseiam-se nas versões de Hesíodo e dos poemas homéricos. Enquanto Hesíodo afirma que Afrodite nasceu da
espuma do mar, devido à emasculação de Úrano, a tradição homérica apresentava-a como filha de Zeus e Dione, que
teria casado com Hefesto. Com base nestas duas genealogias Platão (Banquete 180 d) estabeleceu a distinção entre duas
Afrodites – a Pandémia, filha de Zeus e Dione, seria uma simples divindade do prazer, enquanto a Urânia reflectia o ca-
rácter nobre e sagrado do amor conjugal. Também Plotino distinguiu entre duas Afrodites, considerando a Urânia como
a Alma celeste, filha da Inteligência divina e, como tal, totalmente separada da matéria, e a Pandémia como a Alma do
mundo, que continha todas as almas e todas as Afrodites (cf. Plotino, II. 2, 3; III. 9, 9; V. 8, 13).
8 
Cf. Eurípides, Hipólito, vv. 538 ss.
9 
Cf. Idem, Ibidem, vv. 1269 ss. (trad. de Frederico Lourenço, Lisboa, Edições Colibri, 1993): “e contigo o das asas
brilhantes e variegadas, que os abrange com um rapidíssimo bater de asa. Ele voa sobre a terra e sobre o marulhante mar
salgado. Eros enfeitiça aqueles em cujo coração desvairado irrompe, alado e fulgente de ouro.”.
10 
Esta figuração de Eros alado já se encontra em poetas arcaicos, como Anacreonte, que alude às suas asas brilhantes

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 385


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Regressando à associação das duas divindades, as representações na arte mos-


tram que o surgimento do antropomorfismo veio alterar também a figuração de
Eros e Afrodite. O deus adquiriu um aspecto mais humano e foi-se transformando,
tanto na poesia como na arte, num efebo cuja acção se aliava à da deusa. É, aliás,
como efebo que o deus está representado no friso do Pártenon, junto de Afrodite,
embora aqui numa figuração aparentemente mais afastada da antiga visão do deus
dominador e com um aspecto mais delicado. Esta associação, contudo, não foi du-
radoira: os testemunhos mostram-nos que entre finais do século VI e inícios do V
a. C., os dois deuses não aparecem juntos, sendo a maioria dos vasos em que ambos
aparecem na companhia um do outro posteriores ao século IV a. C.11. Seria no
período helenístico que esta associação entre as duas divindades iria encontrar uma
maior difusão, coincidindo com uma nova figuração de Eros, precisamente aquela
que iria perdurar até aos nossos dias – a representação do deus do amor como uma
criança alada.

3. Eros criança
Provavelmente uma das mais conhecidas alusões a Eros, neste período, será a
de Apolónio de Rodes12, nos Argonautas, quando Afrodite procura o filho a fim de
lhe pedir que atinja Medeia com uma das suas flechas, para que esta se apaixone
por Jasão. E aqui já estamos perante uma criança, que brinca com Ganimedes no
Olimpo. E ao mesmo tempo uma figura de contrastes: se, por um lado, tem poder
para gerar o amor em alguém, por outro, faz batota para ganhar a Ganimedes. E é
também uma criança rebelde e esperta, que negoceia com a mãe as vantagens que
retirará do favor que lhe vai prestar.
Mas não é a única. A Antologia Grega oferece-nos uma recolha de epigramas
(sobretudo nos livros V e XII da Antologia Palatina, onde se centram os epigramas
amorosos) onde Eros, o deus do amor, é representado como uma criança alígera,
armada de arco e flechas, sempre pronta a ferir o coração de qualquer ser vivo, seja
mortal ou imortal. Apesar de ser normalmente uma criança travessa, um dos epí-
tetos que a qualifica é o de doce (glukÚj), como no epigrama fúnebre de Asclepí-
ades13. E isto é acompanhado por versões em que a pequenez do deus é associada à
graça, como no seguinte epigrama do livro IX:

“Não te indignes com as coisas pequenas: a graça acompanha-as; também o

como o ouro. Sobre a interpretação das asas nas representações de Eros como potência da natureza, veja-se Silvana Fasce,
Eros. La figura e il culto (Genova, Istituto de Filologia Classica e medievale, 1977), que o associa ao vento.
11 
A este respeito veja-se Silvana Fasce, op. cit. e Antoine Hermaris, Hélène Cassimatis e Rainer Vollkommer, s. v.
“Eros”, in Lexicon Iconographicum Mythologiæ Classicæ, III/1: Atherion-Eros, Zürich und München, Artemis Verlag,
1986, pp. 917-922.
12 
Cf. Apolónio de Rodes, Argonautas, III. 95 ss.; 114-154.
13 
Cf. Ant.. Pal., VII. 217, 2.

386 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Grandeza e Pequenez nas Representações de Eros na Literatura e na Arte

jovem Eros, filho da deusa de Pafos, era pequeno.”14

Como podemos ver, o seu tamanho, o facto de ser pequeno, faz com que seja
acompanhado pela graça, em concordância com a tendência helenística para as
coisas pequenas. No entanto, esta faceta agradável do deus não é a mais apresenta-
da pelos poetas. Árquias, por exemplo, lamenta-se porque esta criança o maltrata,
lançando contra ele as suas flechas15. Esta mesma ideia é expressa no epigrama 176,
do mesmo livro, ou no 157 do livro IV, que nos apresentam Eros como uma criança
terrível, capaz das piores acções: a rir faz correr sangue humano; armado de uma
espada é responsável por várias mortes; além disso, diverte-se com o sofrimento
alheio e com os insultos que lhe lançam. Aliás, Meléagro é insistente nas censuras
que faz ao deus, que representa como uma criança insolente, travessa, selvagem,
sem respeito por ninguém e cujo maior prazer é ferir os outros16. No entanto, esta
criança, ao saber que pretendem vendê-la, chora e o seu choro comove os que pre-
tendiam vendê-la.
É um ser de contrastes: por um lado, é tão terrível que ninguém assume a sua
paternidade. O mesmo Meléagro afirma que “o pai não é este nem aquele”17; isto ao
mesmo tempo que lhe atribui uma filiação materna, com alusões à Odisseia – a mãe
é mulher de Hefesto e amante de Ares; a avó materna é o mar. Ou seja, Meléagro
fá-lo descender duplamente de Afrodite, como mãe aquela cuja representação foi
associada à Pandémia e como avó a Afrodite primeira, primordial, a Urânia. Mas
Eros é também uma criança inocente, que gosta de brincar e de dormir. A dormir
parece ser incapaz de atormentar quem quer que seja. Isto fica bem patente em
epigramas como o de Mariano, o Escoliasta ou o de Platão, o Jovem18. Em ambos
os epigramas, o deus dorme suavemente, sem armas. Mariano qualifica o seu sono
como ‘suave’, Platão mostra-o dormindo a sorrir, entre botões de rosas, tão calmo
que até as abelhas se passeavam nos seus lábios.
E este contraste entre a criança terrível e a criança calma mantém-se como uma
constante. Paralelamente a Mariano ou a Platão, outros poetas, como Alfeu ou Es-
tatílio Flaco, receiam que o deus, mesmo enquanto dorme, lhes prepare um sonho
amargo19. Também quando brinca o deus é temido. Meléagro queixa-se de que o

14 
Ant. Pal., IX. 784: M¾ nemšsa baio‹si: c£rij baio‹sin Ñphde‹: / baiÕj kaˆ Paf…hj œpleto koàroj
”Erwj.
15 
Cf. Ant. Pal., V. 58.
Cf. Ant. Pal., V. 178, sobretudo vv. 3-7 (“Nasceu travesso e alado; faz feridas profundas com as unhas; muitas vezes,
16 

no meio do choro, ri. Além de uma constante impassibilidade, é conversador, de olhar penetrante, selvagem, nem mes-
mo para a mãe é afável: é em tudo um monstro.”).
Ant. Pal., V. 180, 6. Já em V. 177, 5-6 o poeta afirmava que nem Céu, nem Terra, nem Oceano pretendem ter gerado
17 

um ser tão insolente.


18 
Cf. Ant. Pal., IX. 627 e Ant. Plan., 210, respectivamente.
19 
Cf. Ant. Plan., 212 e 211, respectivamente. Alfeu é mais insistente na ideia (“Mas, mesmo assim, tenho medo de ti,
tecelão de dolos, medo que me encubras alguma coisa e que durante o sono me prepares um sonho amargo.”).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 387


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deus joga à bola com o seu coração 20, ou de que joga aos dados com a sua vida 21,
num claro desrespeito pelos sentimentos alheios.
É um ser de tal modo terrível que Mosco de Siracusa construiu um epigrama
em que Afrodite o procura designando-o como escravo fugitivo22. Vale a pena a sua
leitura, pois constitui uma das melhores descrições do deus:

“A pele não é branca, mas como o fogo; os olhos penetrantes e de fogo; mau
coração, doce conversa, porque não pensa como fala. A voz é de mel, mas de
fel o seu pensamento, quando se irrita. É um vigarista que não diz a verdade,
uma criança enganadora que brinca de forma cruel. Na cabeça tem belas
madeixas, mas na face tem atrevimento. As mãozitas são pequeninas, mas
ferem ao longe; ferem até ao Aqueronte e ao reino de Hades. Tem o corpo
nu, mas o espírito está bem escondido. Com asas, como um pássaro, voa
para uns e para outros, homens ou mulheres, e repousa nos corações. Tem
um arco muito pequeno e sobre ele um dardo; este, embora pequeno, chega
até ao céu. Tem uma aljava de ouro nas costas, onde estão as flechas ponte-
agudas com que muitas vezes me fere. Tudo é selvagem, tudo, mas o que é
pior é uma pequena chama com que inflama o próprio sol. Se o apanhares,
prende-o para mo trazeres; se o vires chorar, cuidado!, para que não te enga-
ne, se rir, então amarra-o; e se quiser abraçar-te, foge: o seu beijo é perigoso,
os seus lábios, veneno. Se disser ‘toma, ofereço-te todas as minhas armas’,
não toques as ofertas enganadoras: as armas foram temperadas no fogo.”

Estamos, como já disse, perante uma descrição que reúne os principais dados
da caracterização de Eros: uma criança com pele cor de fogo, belas madeixas, face
atrevida, olhos penetrantes; corpo nu, mas nas costas um par de asas e uma aljava
cheia de flechas; um arco e um dardo. É, com todos estes atributos, uma criança pe-
rigosa, que alia os traços infantis às armas que possui e que dispara sobre qualquer.
É também enganadora: tem uma conversa e uma voz doces, mas um mau coração
e um pensamento de fel; é vigarista, selvagem, brinca de forma cruel. Até os lábios
são venenosos e o seu beijo perigoso. Ou seja, estamos perante um ser cheio de
contrastes, em que beleza, suavidade, doçura, se opõem à maldade, à crueldade, ao
pensamento enganador.
E é tentador despender mais tempo com este epigrama, que nos reaproxima
do tema do colóquio (embora menos do título desta comunicação). Vejamos mais
pormenorizadamente as oposições aqui presentes: o branco, próprio das crianças e
da sua inocência, por oposição ao fogo, da pele e do olhar, que caracteriza Eros. É
o primeiro sinal negativo, neste epigrama, relativamente ao deus. Aliás, o poema dá

20 
Cf. Ant. Pal., V. 214.
21 
Cf. Ant. Pal., XII. 47.
22 
Ant. Pal., IX. 440.

388 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Grandeza e Pequenez nas Representações de Eros na Literatura e na Arte

grande relevância ao fogo; para além dos olhos e das faces, ele possui a chama que
pode inflamar o sol e todas as suas armas foram temperadas no fogo. Sobretudo este
último aspecto é passível de ser associado ao epigrama já referido de Meléagro que
nos diz que a mãe era mulher de Hefesto. Mas há o outro aspecto do amor – as suas
conotações no campo amoroso. Realmente, Eros é constantemente associado ao
fogo. Além das associações feitas neste epigrama, ainda podemos acrescentar as de
que queima a alma, é ardente como o fogo, ou de que possui uma tocha. Tudo isto
é facilmente relacionável com a simbologia do fogo, associado às paixões, principal-
mente o amor e a cólera. O fogo é também símbolo de renovação e de regeneração
periódica, podendo ter um significado sexual. Mas é, por outro lado, uma forma
de purificação e de iluminação, um fogo espiritualizante, associado a ritos de inci-
neração, ao sol, que transmite uma intenção de espiritualização e de luz. Ou seja, a
comparação com o fogo nada tem de secundário no epigrama; pelo contrário, é um
dos atributos do deus que contribui para conservar a ligação à divindade primordial
de Hesíodo, o poder forte, capaz de dominar tudo e todos e, simultaneamente, a
força fecundante, reprodutora. E esta simbologia é mais um dos contrastes deste
epigrama, em que Afrodite procura o filho chamando-lhe escravo fugitivo. Ao po-
der inerente ao deus, contrapõe-se a escravatura, a falta de direitos, que já se vira, até
certo ponto, em autores anteriores, como Eurípides ou Safo, que se referiram a Eros
como sendo o “guarda do quarto nupcial de Afrodite”, ou seu serviçal.
Poderíamos supor que a este tipo de representação estará subjacente uma depen-
dência de Eros relativamente a Afrodite: dado que ambos eram divindades tutelares
do amor, não implicaria isso que um tivesse a supremacia? Como estabelecê-la? A
resposta de alguns estudiosos, nomeadamente dos alegoristas, prende-se com a no-
ção de Afrodite como Urânia, a deusa dos amores castos e a quem se opunha Eros,
ficando assim dependente da deusa, o que parece ser claro por comparação com o
conto de Amor e Psique, em que esta também é designada por Afrodite como sendo
sua escrava.
Há, ainda, o tamanho: Eros é uma criança. E esse aspecto é acentuado pelo
poeta de várias formas: não só pelo própria caracterização como criança, mas pelas
mãos. O poeta usa o diminutivo (mãozitas), tal como faz com o adjectivo – peque-
ninas em vez de pequenas. Esta insistência no diminutivo reforça a pequenez do
deus. Os seus acessórios também são pequenos: o arco e o dardo. Além disso, tem
realmente comportamento de criança: o atrevimento, o brincar, o chorar, o abraçar
e o beijar são características associadas às crianças. Contudo, não é por ser uma
criança pequena, por possuir acessórios igualmente pequenos, que o deus se torna
menos perigoso. Pelo contrário: as mãos são pequenas, como as suas armas, mas
têm um grande alcance. Atingem locais tão afastados como o Aqueronte, o Hades,
o céu. É uma criança, mas cruel nas brincadeiras e enganadora, o que é reforçado
pelas antíteses beijo/perigo e lábios/veneno.
Além disto, há outras antíteses no epigrama: o mau coração opõe-se à doce con-
versa; a voz de mel ao pensamento de fel; a nudez do corpo à ocultação do espírito.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 389


Maria Leonor Santa Bárbara

O deus mostra os seus aspectos mais sedutores e é a mãe que chama a atenção para
os outros. Seduz para atrevidamente magoar, ferir, enganar.
E isto traz contrapartidas para o deus. Como criança que é, recebe o tratamento
adequado; mas como ser cruel que também é, vê-se vítima de atitudes mais duras.
Aludi já ao epigrama de Meléagro em que o poeta pretende vender o deus, acaban-
do por se deixar comover pelas suas lágrimas. Há aqui um misto entre a atitude que
se tem para com a criança e para com alguém mais velho. No entanto, outros poetas
há que lhe dão maior punição: estou a referir-me a três epigramas da Antologia de
Planudes, em que o deus nos aparece como prisioneiro23. Para dois dos poetas – Mé-
cio e Crinágoras – esta nova faceta é uma forma de impedir que o deus atormente os
mortais. “Para os mortais as tuas cadeias são o descanso do sofrimento, terror; (...).
Vê a chama que ateavas nos corações mortais, agora extinta pelas tuas lágrimas”,
diz Mécio. Crinágoras insiste noutro aspecto – é um castigo merecido, já que tanto
magoou os homens. Por isso, é escusado esperar piedade, porque não haverá quem
o liberte24. Mas aqui temos nova antítese: Sátiro considera que não vale de nada
prender o deus, pois quem o prendeu estava já prisioneiro do deus25. São, na verda-
de, duas antíteses: o contraste entre o epigrama de Sátiro e os outros dois e o jogo
de palavras que faz do prisioneiro alguém que por sua vez prende os outros.
Mas este grupo de epigramas revela-nos uma outra característica de Eros: tam-
bém é ladrão. Mécio, entre outros vocativos, usa o de “ladrão de corações”, que a
qualquer leitor parece perfeitamente natural. No entanto, num epigrama da Anto-
logia Palatina, Diófanes de Mirina considera que Eros deveria ser chamado triplo
ladrão, com base nos argumentos de que não dorme, é insolente e está sempre
pronto para despojar os outros. Principalmente o último aspecto é corroborado por
um outro epigrama que nos conta que Eros roubou as roupas das Cárites26, muito
embora este episódio esteja mais próximo da criança traquinas e irreverente, cujo
objectivo é assustar ou envergonhar os outros.
Eros, porém, não é sempre um ladrão bem sucedido. Um poema de Mosco
mostra-nos como o deus pode ser atingido da mesma forma que atinge. É o caso
deste poema, em que Eros, estando a roubar mel de uma colmeia, foi picado por
uma abelha:

“Certa vez, estando Eros, armado em ladrão, a roubar cera dos cortiços,

23 
Veja-se Ant. Plan., 195, 198, 199, respectivamente da autoria de Sátiro, Mécio e Crinágoras.
24 
Ant. Plan., 199: “Chora e geme apertando os músculos das mãos, traidor; mereces isto. Não há quem te venha liber-
tar; não olhes implorando piedade. Tu mesmo desfizeste em lágrimas os olhos dos outros, espetaste no coração setas
amargas e destilaste o veneno dos desejos inevitáveis, Eros. As dores dos mortais são para ti risíveis; és afectado por
aquilo que fazes. É justo.”.
25 
Ant. Plan., 195: “Quem reteve assim o deus alado? Quem reteve com cadeias o fogo rápido? Quem tocou a aljava
ardente e amarrou as mãos apertadas, de tiro rápido, prendendo-as a uma sólida coluna? Isto é um vão consolo para os
homens; este mesmo prisioneiro não prendera já a sua alma?”
26 
Cf. Ant. Pal., IX. 616: “Um dia, quando as Cárites se banhavam aqui, o pequeno Eros roubou as vestes divinas e
fugiu; deixou-as nuas, envergonhadas de aparecerem fora da porta.”.

390 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Grandeza e Pequenez nas Representações de Eros na Literatura e na Arte

uma abelha furiosa picou-lhe a ponta do dedo, arranhando-o. Porque estava


aflito, soprou a mão, feriu a terra com golpes, saltou e, mostrando a Afrodite
a sua dor, queixou-se-lhe que a abelha era um animal pequeno, mas que fazia
feridas pungentes. Então a mãe riu-se: «O quê? Não és tu igual às abelhas?
Pequeno como és provocas feridas lancinantes.»”.27

É a comparação de Eros com a abelha, não apenas pelo tamanho, mas também
pelo tipo de dor que ambos são capazes de provocar nos outros: do mesmo modo
que Eros é uma criança meiga e doce, também a abelha é um animal minúscu-
lo, mas ambos são capazes de provocar sofrimentos terríveis. Ao mesmo tempo,
deparamo-nos com um meio excelente para punir esta criança insolente e atrevida
– ferindo-a com o mesmo tipo de armas de que ela se serve para atingir os outros.
É, aliás, o mesmo tipo de punição que encontramos no epigrama 251 da Antologia
de Planudes, em que Eros acaba por ser castigado pelas próprias armas que usa, visto
que Némesis criou um segundo Eros.
Mas a figura de Eros é cheia de contrastes. Tal como é um ser irrequieto e im-
pertinente, pode surgir a nossos olhos também como um ser útil, capaz de auxiliar
quem precisa. Eros é, por exemplo, cocheiro do carro da beleza, tarefa que não só
é referida num epigrama de Meléagro, como está atestada em representações de
arte. É possível confirmá-lo pela referência feita a uma ametista em que se encontra
gravada uma representação de Eros, montando um cavalo-marinho e conduzindo-o
com as rédeas, ou ainda por uma moeda de Siracusa, de finais do século V a. C.,
que representa o deus conduzindo a galope uma quadriga, onde se encontra uma
Nice que o coroa.
Outras actividades são atribuídas a Eros, principalmente as que implicam um
maior contacto com a natureza. É assim que nos deparamos com epigramas onde o
deus realiza tarefas de pastor, lavrador ou jardineiro. O poeta Mirino28, por exem-
plo, dá-nos a conhecer um Eros pastor, que guarda o rebanho de Tírsis, enquanto
este dorme à sombra de um pinheiro. Por seu turno, Mosco mostra-nos um Eros
lavrador que, pousando as suas armas, atrela os touros ao jugo para semear trigo29.
Aliás, na mesma Antologia, temos um epigrama em que o próprio deus se vangloria
de ser um camponês modesto, nascido de uma ninfa das redondezas, que apenas
se ocupa dos jardins30. É, aliás, este o mesmo Eros, amigo dos jardins, que encon-
tramos em Dáfnis e Cloe, quando Filetas descreve a criança que encontrou no seu
jardim31: um rapazinho branco como o leite, dourado como o fogo, que, nu e só,
brincava como se o jardim lhe pertencesse. Com uma rapidez incrível, esta criança

27 
Mosco, XIX (in Bucolici Græci, recensuit A.S.F. Gow, Oxford, O.C.T, University Press, 1958.
28 
Cf. Ant. Pal., VII. 703.
29 
Cf. Ant. Plan., 200.
30 
Cf. Ant. Plan., 202.
31 
Cf. Longo, Dáfnis e Cloe, II. 3-7.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 391


Maria Leonor Santa Bárbara

escapulia-se das mãos de Filetas, sempre que este corria atrás dele, receoso de que
lhe estragasse o jardim. Tem um sorriso doce e encanta qualquer pessoa com a
maior facilidade; e uma voz mais suave do que o canto do rouxinol e da andorinha.
O seu ar de criança, contudo, é enganador, como ele mesmo deixa claro ao dizer a
Filetas que não é realmente uma criança, mas que é mais velho do que Crono. É a
associação entre duas divindades – o deus primordial de Hesíodo e o do Amor, que
estava presente quando Filetas, na juventude, cantava e tocava para a sua amada
Amarílis. É o mesmo deus que pretende unir Dáfnis e Cloe.
Mas esta relação com o trabalho, este carácter auxiliador do deus, está também
sujeita a controvérsia. Meléagro apresenta-o como “pescador” de almas, numa fun-
ção – a de pescador – que também está documentada na arte, seja a pescar à linha,
seja, num barco à vela, um grupo de quatro Eros, em que dois remam, enquanto os
outros dois pescam. No entanto, no epigrama de Meléagro, o que parece ser salien-
tado é a sua função de divindade do amor, que apanha as pessoas para o sofrimento
que lhe é inerente.
Por fim, e associado a este aspecto, gostaria de me referir à ligação de Eros com
a natureza e que terá contribuído para que fosse considerado uma força fecundante.
Já fiz referência a um epigrama em que o deus dorme entre botões de rosas, ou à
sombra de plátanos. Mas há também aqueles que comparam com ele um jardim32,
estabelecendo o contraste entre o facto de ser pequeno, mas gracioso. Não é o tama-
nho que torna um deus mais atractivo para os outros, tal como não faz um jardim
melhor, mais encantador. O mesmo se pode dizer dos bosques, frequentemente
associados ao deus. Não desconhecendo que nalgumas regiões da Grécia, o culto de
Eros era realizado em bosques sagrados (como em Atenas ou Leuctras, por exem-
plo), Mariano, o Escoliasta, alude ao bosque de Eros33, fazendo dele uma descrição
maravilhosa: para além das árvores, agitadas por um ‘suave Zéfiro’, possui ainda
um prado orvalhado, flores que brilham por todo o lado, uma cascata de água, uvas
e azeitonas e nele é também possível ouvir o rouxinol e a cigarra. É claramente Eros
como deus da fecundação que aqui está, realçando assim todo o carácter multifa-
cetado deste deus.
Além de tudo isto, e para terminar, Eros é a divindade dominadora. Ao mesmo
tempo que se queixam dos sofrimentos que lhes são causados por este deus, os po-
etas referem também o sofrimento que ele causa aos outros deuses34, ou as ameaças
que lhes faz. Chega, por exemplo, a ameaçar o próprio Zeus, ou a responder-lhe se
se sente ameaçado pelo pai dos deuses. Não será de espantar, pois, que o deus reaja
da mesma forma com outras divindades.

32 
Cf. Ant. Pal., IX. 666.
33 
Cf. Ant. Pal., IX. 668.
34 
Perfeitamente esclarecedor do domínio que o deus exerce sobre mortais e imortais é o oráculo de Apolo, que Apuleio
nos oferece no conto de Amor e Psique, onde o deus é caracterizado como sendo “um monstro cruel, feroz e viperino que,
voando pelo ar, atormenta e fere cada um com fogo e ferro, que faz tremer o próprio Júpiter, por quem as divindades são
assustadas e os rios e as trevas do Estige ficam aterrados.” (Apuleio, Metamorfoses, IV. 33. 1-2).

392 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Grandeza e Pequenez nas Representações de Eros na Literatura e na Arte

Há, porém, um epigrama que gostaria de referir, pois apresenta, a par do seu
domínio da natureza, mais um exemplo de uma antítese. É o epigrama de Marco
Argentário que nos mostra o deus montando um leão35:

“Vejo, na pedra talhada, o inevitável Eros conduzindo pelas mãos um vigo-


roso leão: com uma dá-lhe chicotadas na nuca, com a outra segura as rédeas;
um grande encanto nasce à volta. Tremo com aquele que é funesto aos mor-
tais: de facto, quem subjuga um animal selvagem não será complacente com
uns quantos seres efémeros.”

Para além de estar bem patente o domínio que o deus exerce sobre o rei da selva,
o que comprova a capacidade de Eros para dominar qualquer outro ser mais frágil,
mais efémero, o que me parece ser de realçar neste momento é a oposição entre o
deus, a sua caracterização como criança, e o seu poder, o domínio que consegue
exercer sobre qualquer ser vivo, independentemente da sua condição.
Julgo que é evidente que nas representações de Eros encontramos vários tipos
de antíteses: entre as próprias representações do deus – a divindade primordial de
Hesíodo, o efebo da época clássica ou a criança do período helenístico que tão
facilmente se popularizou. Mas também, dentro de um mesmo tipo de representa-
ção, entre os vários modos como é caracterizado, ou as suas diversas qualidades e
capacidades.

35 
Ant. Pal., IX. 221.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 393


Figuras de A ntígona : do texto à encenação

Ana Clara Santos


Universidade do Algarve
avsantos@ualg .pt

Não nasci para odiar, mas sim para amar


Antígona

F alar de Antígona é falar desse fascínio que dura há quase 2500 anos, no mun-
do literário e artístico, por esta figura criada por Sófocles no teatro grego em
meados do século V a.C. Não temos, como é evidente, a pretensão de estabelecer
aqui, neste curto espaço de tempo que nos foi atribuído, o historial da sua recepção
no mundo das letras ocidental, mas tão somente fixar algumas das suas linhas de
força da sua recepção no teatro europeu e, muito particularmente, no teatro por-
tuguês do século XX.
Propomo-nos pois partir dos traços delineados pelo seu criador e das principais
etapas que marcam a sua actuação enquanto personagem trágica para assim veri-
ficar os pontos de contacto e/ou os pontos de ruptura que as sucessivas reinterpre-
tações face ao hipertexto consagraram em diferentes momentos da nossa história
cultural.
Ao estudar o mito, Simone Fraisse1 distingue na Antígona de Sófocles seis mi-
temas que nos ajudarão a relembrar as principais sequências do enredo e a melhor
delimitar as inúmeras figuras e funções de que se reveste a personagem grega.

MITEMAS FIGURAS de ANTÍGONA


1. Discussão acesa entre as duas irmãs I. Filha e Irmã dedicada
Obstinação, ousadia, coragem
2. Comparência de Antígona perante Creonte e a sua II. Mulher resistente à tirania
profissão de fé Defensora das leis naturais
3. Plaidoirie de Hémon perante o Rei de Tebas, seu pai III. Princesa a quem o amor é negado
Mulher insubmissa
4. Lamentações de Antígona perante a condenação à IV. Ser solitário
morte Isolamento, vazio, morte, liberdade
5. Profecia de Tirésias

1 
Simone Fraisse, Le mythe d’Antigone, Paris, A. Colin, 1974.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 395


Ana Clara Santos
6. Esforços inúteis de Creonte para sair da tragédia

É certo que a estes mitemas predefinidos no quadro que se segue correspondem


diferentes figuras de Antígona, assumindo sucessivamente ora um papel ora outro.

O primeiro mitema revelar-se-á a ilustração de um dos recursos de caracteriza-


ção mais usados na tragédia pelo dramaturgo grego: o confronto de caracteres ou
o recurso à antítese. Com efeito, o carácter de Antígona só se afirma, nos dois pri-
meiros mitemas, perante o confronto com a irmã, Ismena e o rei de Tebas, Creonte.
Deste primeiro mitema sairá a figura de uma filha e irmã dedicada à família até à
morte marcada pela determinação, auto-confiança, obstinação, ousadia e coragem
que marcam o contraste com uma Ismena, tímida, apreensiva, obediente e respeita-
dora da lei e sem forças suficientes para lutar pelas suas convicções.

Do segundo mitema, resultará a figura de uma mulher resistente à tirania capaz


de defender as leis não escritas (as leis naturais e morais) e combater as leis injustas
da polis (as leis humanas) em nome dos valores morais e familiares, devidos à me-
mória de um pai e dos irmãos e, por extensão, de todos os mortos.

Do terceiro mitema, emergirá a figura de uma princesa, pura e virgem, a quem


o amor é negado por não se cingir ao papel de mulher submissa, cumpridora das
regras que regem uma sociedade onde vigora o paterfamilias.

Do quarto mitema, nascerá a figura de um ser solitário determinado pelo isola-


mento e o vazio, com a predisposição para o sentimento da beleza da morte, passa-
gem obrigatória para o mundo do heroísmo e da eterna liberdade.

Pela sua solidão face aos acontecimentos trágicos, graças à sua obstinação e à sua
reivindicação de uma liberdade total, Antígona opera a sua passagem de modelo he-
lénico à consagração de uma figura incontornável do teatro moderno. Até ao século
XIX, o teatro italiano, francês e alemão souberam desvendar os mistérios do texto
de Sófocles através da circulação das inúmeras traduções de Antígona. Da primeira
manifestação em italiano __ estou a referir-me à tradução de Luigi Alamanni em
1533 __ às reproduções em francês de Calvy de la Fontaine em 1542 2 ou de Antoine
de Baïf em 1573 à tradução alemã de Hölderlin em 1804 ou ao drama de Frohne
em 1852, o caminho estava aberto na definição de uma trajectória ascendente rumo
à apropriação e remodelação das sucessivas figuras antigónicas estabelecidas, como
vimos, pelo modelo helénico. Os finais do século XVI coincidirão com o início
daquilo a que alguns chamaram a “cristianização do mito”3. Com efeito, a peça

2 
Tradução inédita conservada na biblioteca municipal de Soissons.
3 
Retomamos aqui a expressão de Simone Fraisse, op. cit, p. 37.

396 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Figuras de Antígona : do texto à encenação

de Robert Garnier, Antigone ou la Piété 4, escrita em 1580, exaltará antes de mais


o carácter piedoso da heroína de forma a elevá-la ao modelo de virtude e devoção
cristã. A multiplicação das representações das traduções teatrais da peça de Sófocles
no limiar do século XIX e até mesmo antes5 e as representações musicadas da auto-
ria de Mendelssohn em Potsdam (1841), Berlim, Dresde e Covent Garden (1845),
tocaram a sensibilidade do espírito romântico arrancando à heroína grega uma nova
dimensão reforçado o seu carácter patético que a conduzirá a uma nova figura tipi-
camente romântica: a figura da mártir cristã. Maurice Barrès não ficará indiferente
diante da actuação da actriz Júlia Bartet quando esta desempenhou, no dia 21 de
Novembro de 1893 e durante o mês de Agosto do ano seguinte em Orange, o papel
de Antígona:

Esta virgem pagã, firme no seu rochedo da agonia, é a irmã das nossas irmãs
que, todas as noites, nas suas celas, rezam pela absolvição de todos os culpa-
dos do universo.6

Anos mais tarde, Júlia Bartet dá-nos conta, nas páginas que escreve sobre esta
actuação, do seu fascínio pela heroína grega. Vale a pena escutarmos as suas pala-
vras que reflectem o seu percurso no processo de criação desta personagem. Após
breves considerações sobre aquilo que denomina “criação espontânea”, a actriz não
pode deixar de realçar dois aspectos que lhe parecem essenciais na personagem gre-
ga: o culto da família e o culto dos mortos:

Quando a Comédia Francesa edificou o espectáculo da Antígona de Sófo-


cles, traduzida por Paul Meurice e Auguste Vacquerie, durante o Outono de
1893, o papel de Antígona foi-me atribuído (…) Esperei então que Antígona
me aparecesse e questionei, como se evoca uma sombra, essa rapariga devota
e violenta com a qual eu tinha agora que me assimilar (…) Nascida nessa
família maldita, Antígona incarnou sozinha a virtude que mais falta aos ou-
tros: o amor pelos seus (…) O poeta compôs esta alma de rapariga com tudo
aquilo que encontrou de mais terno e de mais forte, de mais delicado e de
mais nobre (…) Antígona é profundamente piedosa, caracterizada por essa
devoção que consistia sobretudo no culto dos mortos. Preciso pois de pousar
um olhar sobre o mundo do além, tal como o imaginavam os antigos e tal
como o representava a heroína que vou personificar. Os antigos acreditavam
que os mortos continuam a viver enquanto sombras…7

4 
A peça viria a ser representada em 1944 no teatro Charles-de-Rochefort e, no ano seguinte, no teatro do Vieux-
Colombier numa adaptação de Thierry Maulnier.
5 
Pensamos aqui muito particularmente na tradução de Vittorio Alfieri datada de 1776 e representada em Roma em
1782.
6 
Maurice Barrès, Le voyage de Sparte, 1906, p.101.
7 
Júlia Bartet, “Quand j’étais Antigone”, Comédie Française, 16e année, 5e Liv., p. 457; 460-461.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 397


Ana Clara Santos

Ora é sobretudo este último aspecto que, segundo a actriz, representa a essência
do mito de Antígona:

É aí que reside todo o tema de Antígona. Creonte, que concedeu os últimos


deveres a Etéocles, recusou-os a Polinices, condenando assim a sombra do
infortunado ao horror eterno… Deixarei eu, sua irmã, cumprir o sacrilégio?
O que há de mais profundo em mim, a crença acumulada e fortificada pela
piedade das gerações, revolta-se e protesta. Eu darei ao pobre morto essas
honras que lhe recusam (…) Serei presa, condenada à morte, enterrada viva.
Mas nunca me esconderei. Proclamarei antes a minha resolução. Enfrento
o suplício… e há em mim esse entusiasmo místico que move os mártires a
testemunhar a sua fé, a sofrer e a morrer por ela.
Não é bela esta bravura de Antígona? Não há aqui um sentimento que ilumi-
na o seu papel por inteiro já que à devoção que a anima, junta-se a esperança
da glória? 8

O heroísmo de Antígona, aliado à sua sensibilidade feminina, fará da heroína


grega, segundo a actriz, um modelo de glorificação do sublime e da grandeza hu-
mana:

É justamente porque ela é mulher que ela só escuta o seu coração e procede
por intuição. Ora, ao escutar o seu coração, pensando apenas na sua ternura
pelo seu irmão, ela fez a maior descoberta moral da antiguidade: descobriu
a consciência (…) Ao personificar Antígona, nunca antes tinha tido tanto a
sensação de dizer as palavras que valem para todos os tempos e de consagrar
a modéstia dos meus esforços a uma criação concebida sob o aspecto da
eternidade.9

No prolongamento deste modelo da devoção feminina, a assimilação de duas


figuras tão distintas como Antígona e Jeanne d’Arc contribuirá, ainda nos finais do
século XIX francês, para a valorização da figura nº II10, tão marcante na obra de
Sófocles mas não menos evidenciada até então acentuando assim a função política
e patriótica da figura antigónica.
O teatro do século XX, atento às lições do passado, saberá encontrar os cami-
nhos necessários para o reforço desta figura e da cena do confronto entre Antígona e
Creonte, ou seja, dessas forças antagónicas de dois ideais políticos extremos. Por um
lado, a razão de estado de Creonte que o sujeita à injustiça e o distancia da anarquia

8 
Idem, Ibidem, p.462.
9 
Idem, Ibidem, p. 464.
10 
Referimo-nos à figura da mulher resistente à tirania definida no início deste trabalho.

398 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Figuras de Antígona : do texto à encenação

e, por outro, o culto da família por parte de Antígona que a conduz à revolta contra
a lei civil, contra o abuso de poder, contra toda e qualquer forma de tirania. Quan-
do, em plena ocupação alemã, a Antígona de Jean Anouilh é representada no teatro
de l’Atelier em Paris (4 de Fevereiro de 1944), um passo decisivo é dado naquilo a
que chamamos a “politização do mito”. A figura de Antígona auto-proclamou-se
a voz da Resistência, a voz daqueles que ousam dizer “não” a qualquer forma de
opressão política num olhar renovador sobre o mito e sobre a teatralidade:

Atentai! Estas personagens vão representar a história de Antígona. Antígona


é aquela rapariga magra que está sentada, ao fundo, e que não diz nada. Olha
em frente. Pensa. Pensa que dentro de momentos vai ser Antígona, que vai
surgir, de repente, da magra rapariga morena e ensimesmada que a família
não toma a sério; e erguer-se só em face do mundo, em face de Creonte, seu
tio, que é o rei. Pensa que vai morrer, que é nova e que bem gostaria de viver.
Mas não há nada a fazer! Chama-se Antígona e é necessário que desempenhe
o seu papel até ao fim…11

É esta figura de rebelião contra o despotismo que será transportada para o tea-
tro português de forma a servir, como em França, o teatro e a política.
António Sérgio, à imagem de Jean Anouilh, fará da sua “obrinha”, como dizia,
desse “estudo social em forma dialogada”, posta a circular clandestinamente em
1931 como “manifesto-drama”, a proclamação dos “direitos da livre consciência
humana e da lei racional, a que se leva o espírito, eterna e imprescritível”12. O
autor português soube acompanhar a evolução do olhar sobre o mito fazendo com
que este ascenda ao plano mais trágico das acções, o plano da consciência:

O que lhe interessa é o debate de casos de consciência: a consciência moral


do Homem é o verdadeiro palco da tragédia (…) sim, a tragédia passa-se na
consciência.13

Anos mais tarde, a Antígona de Júlio Dantas, representada pela Companhia Rey
Colaço-Robles Monteiro no Teatro D. Maria II a 20 de Abril de 1946, marca mais
uma etapa na edificação da figura política de Antígona. Suspeita de conspiração
contra o rei, o autor coloca a figura feminina dotada de um forte sentido político.
Ao “revoltar-se contra a injustiça dos fortes”14 em nome do cumprimento do dever
11 
Jean Anouilh, Antígona, tradução de Manuel Breda Simões, Lisboa, Ed. Presença, 1965, p. 17.
12 
António Sérgio, Pátio das Comédias, das Palestras e das Pregações. Jornada Primeira-Jornada Sexta, Jornada Sexta,
Lisboa Inquérito, 1958, 28.
13 
A. Campos Matos, Diálogo com António Sérgio, Lisboa, Ed. Presença, 1989, pp. 23-24.
14 
Júlio Dantas, Antígona, Peça em 5 actos, inspirada na obra dos poetas trágicos gregos e, em especial na Antígona, de

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 399


Ana Clara Santos

e ao defender que “ninguém deve obediência às leis injustas”15, Antígona coloca


não só a questão tradicional da injustiça das leis cívicas como evidencia sobretudo
o mutismo de um povo, resignado e silenciado. O sucesso da peça permitirá a sua
representação, não só por parte da companhia teatral do Teatro D. Maria II no mês
de Outubro seguinte no Teatro Rivoli no Porto e uma década mais tarde (1956) no
festival Teatro Português, como a sua encenação por António Moura de Magalhães
(19.09.1953) e Emídio Fernandes no Teatro Sá da Bandeira a 27 de Agosto de 1959.
A alusão aos tempos difíceis da ditadura militar que se vivia em Portugal está, com
certeza, na origem destas reminiscências do tema grego entre nós e que permitem à
Antígona portuguesa afirmar com paixão, nos anos 50, no texto de António Pedro:
“só o impossível é que vale a pena”16 numa obra explicitamente definida no prólogo
como “a tragédia de quem se recusa a obedecer à lei em nome duma lei que é supe-
rior aos homens / que é superior às circunstâncias em que os homens fazem certas
leis / a tragédia da liberdade”17.
Com efeito, a Antígona de António Pedro não fará senão reiterar, ao longo da
sua presença em cena, esta dimensão trágica da personagem sofocliana acentuada
desde o século passado :

Nenhuma lei me proibirá de fazer o que o coração e o dever me ditam como


obrigação (Primeiro Acto).

Não confesso. Declaro que o fiz, como me mandava a consciência. […]


Todos nós nascemos condenados à morte. Todos nós nascemos para morrer.
Fazê-lo, mais cedo ou mais tarde, não tem importância que se compare ao de
viver bem com a nossa própria consciência (Segundo Acto).18

A esta nova consciência assim reabilitada pelo texto dramático português alia-
se, do ponto de vista da representação, a questão da teatralidade. Tal como Jean
Anouilh o tinha perfeitamente conseguido no palco francês, também António Pe-
dro, melhor que ninguém, soube trazer esta problemática para a luz da ribalta,
numa tomada de consciência de que aquilo que se observa é a própria vida que se
quer imitar e apreender, alinhando, no palco, ilusão e realidade:

No teatro, ao menos, somos o Hamlet que se interroga, a Ofélia que se sui-


cida, o Tartufo que se disfarça… e os portas falam pela nossa boca, que é
a dos actores, uma linguagem que nos serve, e a esses sentimentos, melhor

Sófocles, Lisboa, Livraria Bertrand, p. 19.


15 
Idem, p. 49.
16 
António Pedro, Antígona. Glosa Nova da Antígona de Sófocles em 3 actos e 1 prólogo incluído no 1º acto, Lisboa, Biblio-
teca Nacional, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Série Autores Portugueses dos Séculos XIX e XX, 1981, p. 271.
17 
Idem, pp. 260-261.
18 
Ibidem, p.270; 292; 294.

400 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Figuras de Antígona : do texto à encenação

que a nossa própria voz […] Vão entrar Antígona e Isménia que, como Po-
linices e Etéocles, são filhos de Édipo e de Jocasta que era sua mãe e foi sua
mulher. O pai arrancou os olhos quando soube do incesto em que vivera. A
mãe enforcou-se no cinto da sua própria túnica. Tudo o que fizeram, tudo
o que vão fazer, excede a medida quase sempre miserável do homem. Por
isso o comovem. Não são gente: são personagens de tragédia. Dá a luz toda
aqui à frente. Não, não! Vermelho deste lado e verde daquele para as figuras
contrastarem bem.19

Dada a sua universalidade, o mito permite assim a introdução de uma nova


reflexão sobre a criação teatral perante a qual se privilegia o espectáculo, a arte da
encenação como fonte de significação do texto dramático na passagem da “palavra”
à “dicção exacta” e às “situações” recriadas nas quais as personagens se confundem
com as funções que lhe são atribuídas pelo poeta. A título de exemplo, Antígona e
Isménia deixam de ser as duas irmãs em conflito para representarem apenas, como
dirá o encenador, “dois modos de sofrer a tirania”20.
Da sua estreia no Teatro S. João no Porto a 18 de Fevereiro de 1854 até à sua
representação mais recente numa encenação de Norberto Barroca no Teatro Expe-
rimental do Porto (Auditório Municipal de Gaia a 24 de Maio de 2003), a peça de
António Pedro é, sem dúvida, aquela que sofreu o maior número de representações
e de reposições no palco nacional. Para além das representações dadas pelo grupo
do T.E.P. que percorreram o país do Porto (Teatro S. João a 19.02.1954; Teatro Sá
da Bandeira a 9-10.04.1954; Teatro da Algibeira a 16.11.1956) a Lisboa (Teatro
da Trindade a 19-22.02 1957) passando por Braga, Guimarães, Viana do Castelo,
Aveiro e Coimbra de Março a Abril de 1954, a peça de António Pedro foi alvo de
diferentes encenações, sobretudo no âmbito do teatro amador, das quais devemos
destacar aquelas que integraram o concurso de Arte Dramática das Colectividades
de Cultura e Recreio que se realizou no Teatro Sá da Bandeira e no Teatro da Trin-
dade em 1959 e 196921.
A reedificação da figura ou das figuras de Antígona no teatro português, ao
longo do século XX, culmina num justo equilíbrio entre tradição teatral e inovação
do espectáculo face à emergência de novos valores e de novas formas de os conceber
num olhar renovador de acolhimento da herança cultural da Antiguidade fazendo,
como dirá Eduardo Lourenço, do “fenómeno literário a tradução simbólica de um
desajustamento dos homens às realidades que os cercam”22.
Segundo Carlos Morais “duas tendências […] marcaram a leitura dramatúrgica
do mito no séc. XX português a dos que […] haviam privilegiado a vertente política
19 
Idem,Ibidem, p. 257; 262-263.
20 
Idem, bidem, p. 261.
21 
Para mais pormenores consultar a tabela apresentada em anexo no fim deste trabalho.
22 
Eduardo Lourenço, Labirinto da Saudade, “Da literatura como interpretação de Portugal”, Lisboa, Dom Quixote,
1988, p. 91.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 401


Ana Clara Santos

do tema, não se afastando da estrutura do modelo sofocliano; e a dos que […] da-
riam primazia à visão da Antígona-mulher, rompendo com a estrutura referencial”23.
Nesse sentido, não poderíamos terminar sem uma breve mas necessária referência à
visão feminina que, nos anos 50, emergiu em Portugal e que, em jeito de antítese, se
sobrepôs a esta visão masculina, viril e heróica de Antígona. Hélia Correia afirmará
a propósito da criação sua heroína em Perdição – exercício sobre Antígona :

Não quis degradar a dimensão heróica de Antígona, mas dei-lhe mais uma
humanidade, até porque a tomei na infância e acompanhei o seu crescimento
doloroso, o que implica uma aproximação mais afectiva à personagem.24

Ao reforçar o carácter etimológico da personagem Anti-goné, aquela que não


existe, aquela que não pertence nem ao mundo dos vivos, nem ao mundo dos mor-
tos, a autora portuguesa, num texto a duas dimensões, edifica uma nova heroína,
dolorosa, capaz de sustentar um destino impossível, trazendo à luz da nossa cons-
ciência a nossa secreta complexidade: As palavras sábias de Tirésias que encerram a
peça são disso a ilustração:

Eis pois que os mortos se recolherão para sempre e não mais poderão ser
vistos nem ouvidos.
Também as malhas do destino estão abertas. Já não prendem ninguém.
Como Antígona e a Ama no seu túmulo, como Creonte no seu torno, os
homens estão a partir de agora completamente sós. Ignorarão as outras lin-
guagens. Sentirão o pavor, o frio do Inverno, e nada nem ninguém lhes há-de
responder.
Hão-de ser cavalgados pelo orgulho e pelo desespero. Pararão a um passo
dos abismos. E ficarão a vida inteira a perguntar-se como teria sido se ousas-
sem e perdessem. Como a pequena Antígona.25

Lição extrema de idealização da figura antigónica. À luz da imortalização da


heroína grega a morte de Antígona não se dignifica nas trevas mas sim na luz do
Espírito e da Liberdade que se eternizará no sonho de resistência ao governo déspota
na materialização do despertar de consciências adormecidas num exemplum exacer-
bado de empenhamento cívico, de cidadania diríamos nós hoje.
Juntemos a nossa voz à voz de Georges Steiner que nos anos 80 afirmava:

A Antígona de Sófocles não é um texto qualquer, constituindo um marco


duradouro e indelével da história da nossa consciência filosófica, literária e

23 
Carlos Morais, Máscaras portuguesas de Antígona, Univesidade de Aveiro, colecção Ágora-Suplemento, 2001, p. 10.
24 
Jornal de Letras, 21.9.1993, p. 25.
25 
Hélia Correia, Perdição – exercício sobre Antígona, Florbela. Teatro, Lisboa, D. Quixote, 1991, p. 58.

402 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Figuras de Antígona : do texto à encenação

política, dando forma ao sentido da nossa própria existência e do mundo. 26

Relembremos as palavras do encenador na peça de António Pedro:

Todos nós vamos ao teatro para assistir a um milagre: ao milagre da trans-


posição de toda a obra de arte. Este sofre, aquele ri, duma angústia ou duma
alegria que só são nossas porque as adaptamos ao nosso pobre romance quo-
tidiano, em que a farsa e a tragédia, nos seus limites, apenas se esboçam
debaixo do selo corriqueiro, na vida insossa de cada um […] esta convenção
admirável que faz abrir-se o pano e passarmos a viver outra vida, que é a da
poesia, em que a nossa se esclarece e se ilumina, eis o milagre do teatro cuja
encantação já tem, pelo menos, uns três mil anos de frescura.27

É esta encantação e esta frescura que espero que encontrem no espectáculo


desta noite encenado pela Companhia Acta, na peça Tumba de Antígona num olhar
atento e permanente que o encenador Luís Vicente soube evidenciar sobre as suces-
sivas figuras de Antígona que nos foram oferecidas do texto de Sófocles ao texto de
Maria Zambrano.

Encenações de Antígona em Portugal no século XX 28

Jean Anouilh, Antígona

Data Teatro Encenação Companhia


Junho1945 Embaixada França Jean Marchat Comédiens de Paris
18.10.1946 Teatro Trindade Jean Marchat Comédiens de Paris
16.03. 1957 Clube Estefânia Jacinto Ramos T.E.Lisboa
26.03.1965 Teatro Villaret Jacinto Ramos Teatro Nosso Tempo
17.06.1969 Algès Armando Caldas Primeiro Acto
31.05.1971 Sá da Bandeira José Cayolla Ass.Recr.Os Plebeus Avintenses
08.07.1972 Paço d’Arcos Domingos Lobo G. E. Teatro Paço d’Arcos
1976 S. Drama. Carnide G. T. Carnide
08.04.1994 Ext. Manuel de Mello - Barreiro Jorge Cardoso Arte Viva
25.02.2003 T-Estúdio Almada Anabela Neves G. E.Teatral O Grito

26 
Georges Steiner, Antígonas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, prefácio.
27 
António Pedro, op. cit., a voz do encenador, pp. 257-258.
28 
Apresentamos aqui uma listagem das estreias (e não de todas as representações), nas diferentes salas de espectáculo
portuguesas, das peças dramáticas que põem em cena a personagem de Antígona a nível do teatro profissional e amador.
Baseamo-nos, para o efeito, sobretudo na obra coordenada pela prof.ª Maria de Fátima Sousa e Silva, Representações de
Teatro Clássico no Portugal contemporâneo, Edições Colibri-Facudade de Letras da Universidade de Coimbra, 1998, na
qual poderão encontrar dados complementares relativos ao teatro lírico e escolar, entre outros.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 403


Ana Clara Santos

Júlio Dantas, Antígona

Data Teatro Encenação Companhia


20.04.1946 D. Maria II Amélia Rey-Colaço Rey-Colaço e Robles Monteiro
28.10.1946. Rivoli Amélia Rey-Colaço Rey-Colaço e Robles Monteiro
19.09.1953 Castanheiro do Norte António M. de Magalhães Grupo amador
Reprise novo elenco - Festival
1956 Amélia Rey-Colaço Rey-Colaço e Robles Monteiro
Teatro Português
27.08.1959 Sá da Bandeira Emídio Fernandes Ass. Rocha Silvestre

António Pedro, Antígona

Data Teatro Encenação Companhia


18.02.1954 S. João António Pedro T:E.Porto
09.03.1954 Teatro-Circo Braga António Pedro T.E.Porto
10.03.1954 Jordão-Guimarães António Pedro T:E.Porto
Sá de Miranda Viana do
12.03.1954 António Pedro T:E.Porto
Castelo
03.1954 Aveiro António Pedro T:E.Porto
03.1954 Lisboa António Pedro T:E.Porto
05.04.1954 Coimbra António Pedro T:E.Porto
09.04.1954 Sá da Bandeira António Pedro T:E.Porto
16.11.1956 T-Algibeira Porto António Pedro T.E.P.
19.02.1957 Trindade Aantónio Pedro T.E.P.
14.08.1959 Matosinhos Aníbal Pina Juventude Operaria Católica
G.T Centro Ramalho
26.08.1959 Sá da Bandeira Jayme Valverde
OrtigãoGTMod Fenianos
24.9.1959 Trindade Jayme Valverde G.T C. Ramalho Ortigão
01.06.1960 Rivoli Jayme Valverde G.T C. Ramalho Ortigão
23.05.1969 S. João José Brás GEInt. Industrial Porto
22.08.1969 Sá da Bandeira José Brás GEInt. Industrial Porto
16.10.1969 Trindade José Brás GEInt. Industrial Porto
28.06.1969 Teatro do Bolso Rui de Matos C.N.Navegação
20.07.1970 Estufa Fria Augusto Figueiredo C.T.Popular Lisboa
15.01.1996 Bar Novo FLUL Marcantónio-Del-Carlo GTFL-Artec
21.05.1999 Aula Magna F.Filosofia-Braga José A. Pinto G.A.T.A.
24.05.2003 Auditório M. Gaia Norberto Barroca T.E.P.

404 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Figuras de Antígona : do texto à encenação

Sófocles, Antígona

Data Teatro Encenação Companhia


15.04.1959 Teatro Avenida Paulo Quintela T.E.U.C. (Univ. Coimbra)
Seiva Troupe
16.05.1988 Cooperativa Povo Portuense Júlio Cardoso
11º ed. F.I. T. Exp. Ibérica
Seiva Troupe
13.07.1988 S. Filarmónica Almadense Júlio Cardoso
5ª ed. Festival Int. Almada
28.11.1995 Teatro Gil Vicente Rogério de Carvalho T.E.U.C.
TN Eslovénia Drama
09.09.1995 F. C. Gulbenkian Meta Hocevar
Liubliana
30.01.1997 Imagine Teatro Fernando Casaca Auditório Ed. Arrábida
15.02.1997 Fábrica Moagens Harmonia João Paulo Costa Aramá Grupo de Teatro
N.C.T. (Núcleo de Criação
25.04.2001 T. Helena Sá e Costa Nuno Cardoso
Teatral)
11.05.2001 Liceu Camões Mário Trigo Teatro Focus
Comp. Francesa : Théâtre du
02.10.2001 Queimódromo Porto Tr. Friedrich Hölderlin
Radeau
03.11.2001 Armazém Ferro A. Costa C.T. Sensurround 1
Lúcia Sigalho
Cabral
C.T. Sensurround: ciclo
17.01.2002 S. João Lúcia Sigalho
Sophia de Mello B. Andersen
31.01.2003 F. C. Gulbenkian E.P.A.O.E.
23.10.2004 Teatro Ibérico José Blanco Gil T. Ibérico
05.11. 2004 Teatro Lethes Luís Vicente Acta 2

Eduarda Dionísio, Antes que a noite venha

13.3.1992 Bairro Alto Adriano Luz T Cornucópia

Hélia Correia, Perdição – exercício sobre Antígona

18.9.1993 Comuna João Mota Comuna Teatro de Pesquisa

1 
O espectáculo intitulado Viagem à Grécia: fragmentos e Antígona incluía, para além do texto de Sófocles, excertos de
Sophia de Mello Breyner Andersen.
2 
O espectáculo produzido pela companhia do Algarve ACTA teve por título A Tumba de Antígona e teve em digressão
por Portimão, Albufeira, Tavira, Loulé, Vila Real de Santo António e Almada, de Novembro a Janeiro de 2005.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 405


Falácias, A ntíteses e Paradoxos em Torno de
“Ser” e “Existir”
José Trindade Santos
U. Lisboa
trindad@mail.telepac.pt

1. É sabido por todos os helenistas que o verbo “ser”, em Grego clássico, einai, é
correntemente usado com quatro sentidos, para nós totalmente distintos:

1. predicativo – A é B;
2. existencial – A existe;
3. identitativo – A é A;
4. veritativo – A é verdade.

M as aquilo de que nem todos se aperceberam é das dificuldades que esta


ambiguidade do verbo grego causaram a incontáveis gerações de estudio-
sos, particularmente filósofos e tradutores. Vou tentar dar-vos uma pálida imagem
deste quadro.
A tese que vou defender não é modesta. É a de que a ambiguidade de einai
constitui o problema em torno do qual gira a metafísica ocidental. O drama, ou
talvez tragédia, começa com Parménides. No poema Da natureza, o Eleata coloca
na boca de uma deusa um complexo argumento do qual ressalta a unidade lógica,
epistemológica e ontológica de uma entidade englobante a que chama “Ser”. Com
ela, funda uma única realidade/verdade, correspondente a um único pensamento,
ou a uma única “coisa”1 pensada e dita: o ser. Esta unidade e identidade acha-se
cunhada no fragmento 3 do Poema: “O mesmo é pensar e ser2”.
1.1 O argumento não é difícil de seguir, apesar de a sua interpretação ser con-
troversa. Só se pode pensar: “é” e “não é” (Parménides 2.2); porque negando um
se chega ao outro e negando este se regressa àquele (2.3b, 5b). Mas, [como] “não é”
não pode ser pensado nem apontado (2.7-8), por não ser informativo (2.6), “Ser” e
“pensar” são o mesmo (3). Daqui se segue ser necessário que “ser”, “dizer” e “pen-
sar” sejam [o mesmo] (6.1a), porque são possíveis (6.1b); [pelo contrário] o nada não
é (6.2a).
Ora os mortais ignoram esta oposição, confundindo ser e não ser (ou seja, afir-
1 
Que, a par de outros verbos gregos com o mesmo sentido, a seguir aparecerá na forma participial to eon. A língua grega
exprime esta entidade abstracta antepondo o artigo neutro – to – à forma do infinitivo, ou do particípio do verbo: “o”
pensar, “o ser”, “o dizer”, etc.
2 
Vide 6.1-2, 8. 34-35. Uma tradução literal do frgm. 3, arcaizante e excessivamente áspera, em português, seria “O mes-
mo é para pensar e ser”. Mas há um curioso paralelo metafórico em Empédocles: poros esti noêsai – “vias para o pensar”
DK31B3.13. Ver ainda C. Kahn The Verb ‘Be’ and its Synonyms Dordrecht/Boston 1966, 292-296 (a obra é fundamental
para o conhecimento dos usos do verbo, a partir de Homero).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 407


José Trindade Santos

mando e negando “é”: 6.3-9), forçados pelo “hábito dos olhos, ouvidos e língua”
(7.3-5a). Por isso, não compreendem que o ser:

1. é ingénito e indestrutível (8.3), compacto, inabalável, sem fim (8.4), eter-


namente presente, homogéneo, uno, contínuo (8.5-6a), pois não tem origem,
nem razão de ser no nada (8.6b-10);
2. a) é único (8.11-13a), não nasce, nem morre (8.13b-14), é ou não é; b)
pois “não é” é impensável e inexprimível (8.17-18), enquanto “é” é autên-
tico (8.19): não nasce, nem morre (8.19); não era, nem vem a ser, pois “é”
(8.20);
3. é indivisível (8.22a), homogéneo, contínuo, cheio, consigo (.22b-25);
4. é imóvel/imutável (8.26), sem princípio nem fim (8.27), pois é ingénito e
indestrutível (8.27b-28): o mesmo, imóvel e firme (8.29)
5. não é incompleto (8.32), pois de nada carece, enquanto o nada carece de
tudo (8.33), sendo limitado, logo, completo (8.42), equilibrado como uma
esfera (8.43-45), invariável, inviolável, igualmente nos limites (8.46-49).

Consequentemente, que o mesmo é o pensamento e a “causa-fim” do pensa-


mento [o ser] (8.34), pois sem o ser não há pensar (8.35-36); que só o ser é: inteiro
e imóvel (8.36-38a) e a ele se referem os vários nomes postos pelos mortais, iludidos
(8.38b-41).
Perante a evidência da acumulação dos sentidos de einai, que o texto expressa,
podemos perguntar se a complexa teoria metafísica que o argumento expõe repre-
senta mais do que uma tentativa de disciplinar os sentidos do verbo. Na prática, a
deusa está a dizer aos homens que da afirmação “é” decorre a impossibilidade de
“dizer não é” (afirmando “o não ser”), como faz quem tenta pensar e dizer o que os
sentidos lhes mostram.
Esta fase refutativa do argumento (frgs. 2-7) dá lugar ao conjunto de “sinais do
ser”, acima apontados (1-5, sintetizados em 6), sendo nestes que a ambiguidade de
einai é notável: 1, 3, 4-5 exprimem diversos aspectos da identidade; 2a) a unidade,
2b) a verdade.
A tese é brilhante e fecunda, mas a ambiguidade do verbo dá origem a interpre-
tações divergentes. Veja-se o fragmento 3: “O mesmo é pensar e ser” tanto afirma
que só realidade pode ser pensada3, quanto permite que àquilo que alguém diga
seja, ipso facto, conferida realidade, inviabilizando qualquer forma de contradição4.
Mas este é apenas o início de uma parte do problema, pois as dificuldades pos-

3 
Aquilo que Platão expressará pela identificação do ser e das Formas com o saber.
4 
Se o digo, é porque é (constituindo o discurso como uma outra realidade); se é, é verdade e existe, com os atributos que
lhe são conferidos: vide Eutidemo 283e-284c, passim; Crátilo 429d-430a; Teeteto 167a. O diálogo platónico Eutidemo,
bem como o tratado aristotélico Refutações sofísticas, são dedicados ao inventário das inúmeras falácias a que os sofistas
recorriam para exibirem a sua perícia em disputas verbais.

408 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Falácias, Antíteses e Paradoxos em Torno de “Ser” e “Existir”

tas por einai não se manifestam no nosso verbo “ser”, residindo na fusão5 dos quatro
sentidos do verbo grego, de forma a nenhum deles emergir separado, originando
confusões e falácias, já na Antiguidade exploradas pelos sofistas. Veja-se o seguinte
trecho do frg. 3a, de Górgias:

“Pois, se o não ser (to mê einai) é(1)6 não ser, o não ser (to mê on) é(2) não
menos que o ser (tou ontos). Pois, o não ser (to mê on) é(3) não ser e o ser ser;
de modo a as coisas (ta pragmata) serem(4) (einai) nada mais do que não
são(5).”

Para além de as repetições tornarem o texto incompreensível ao ouvinte grego,


e ainda mais ao leitor que tenha diante de si umas linhas manuscritas, com vogais
não acentuadas, sem sinais de pontuação e espaços a separarem as palavras, é nítido
que o argumento visa deliberadamente confundi-lo.
E, no entanto, a conclusão de que as coisas tanto são, quanto não são, é per-
feitamente pacífica: por exemplo, um cavalo é um cavalo e não é um boi7; existem
cavalos, mas não cavalos alados. Para um ouvinte ou leitor grego, o paradoxo nasce
no modo como as diversas leituras do verbo convivem umas com as outras, nos
textos acima.
Primeiro, da identidade afirmada por é(1), é deduzida a existência e predicação,
expressas por é(2); tal como, a seguir, da identidade de é(3) é deduzida a existência e
predicação de é(4)(5). O raciocínio é ainda complicado pelo equívoco entre a leitura
da negação como contradição, no sentido existencial, e como diferença, nos senti-
dos predicativo e identitativo, além do da sua aposição ao verbo ou ao predicado
(“X ~é”=“~X é”).
São estes dois últimos equívocos que precipitam os paradoxos, pois, como é que
ser e não ser podem ambos ser, se são contrários um ao outro? Enquanto, no sentido
identitativo, ser e não ser são, a existência do ser e das coisas implica a inexistência
do não ser8 e das “não coisas”9, dissolvendo a diferença na contradição.
O paradoxo começa com a fusão da leitura predicativa com a identitativa –
nada pode ser idêntico, se for diferente10 – para culminar na aporia da manifestação

5
  A metáfora da fusão foi cunhada por M. Furth, “Elements of Eleatic Ontology”, Journal of the History of Philosophy
6, 1968, 111-132. O problema da “fusão” não se reduz ao da “confusão”, como pretende J. Barnes (), mas na nossa
incapacidade de a compreender.
6
  As traduções de einai foram numeradas para facilitar a referência.
7 
Foi para resolver problemas destes que a Teoria das Formas terá sido concebida: vide Parm. 129a-130a.
8 
Se os encararmos como nomes das classes das coisas “que são” e “que não são”, além de propriedades pelas quais as
coisas “são” e “não são” (Parménides 2.7, 3, 6.1-2 passim).
9 
Ou seja, coisas que não existem, que não são o que são (porque mudam), que não são outras.
10 
Foi para evitar este paradoxo que, supõe-se, Antístenes, ou um pensador anónimo, interditou toda a predicação não
identitativa (Platão Sof. 251b-c; Aristóteles Met. V 1024b32-33). O interdito abole ainda o equívoco da leitura da ne-
gação, como contradição e diferença: “Um cavalo não é um boi”, logo, não é um cavalo e não existe (vide Plat. Eutid.
297d-298e, na tradução de Adriana Nogueira para Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de 1999).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 409


José Trindade Santos

da existência, como predicado separado: o que quer que não seja, predicativa ou iden-
titativamente, não poderá existir (porque “só o ser pode ser, enquanto o nada não
é”: Parménides 6.1b-2a).

2. Na obra de Platão encontramos dois momentos do afrontamento destas ir-


redutíveis concepções do real e do discurso. Num, é exposta a teoria das Formas
como o suporte doutrinal da estratégia dialéctica, pensada para refutar as confusões
dos sofistas11, condensando os sentidos do ser eleático na noção de Forma12:

1. a realidade epistemológica: “o mais cognoscível”;


2. a existência ontológica: “o perfeitamente existente”;
3. a identidade metafísica: “o idêntico a si mesmo” (imutável);
4. a verdade lógica: “o infalível”, “o irrefutável”.

Os dois últimos expressam os sentidos identitativo e veriditivo de einai, mas os


dois primeiros estão longe de ser evidentes. A maior dificuldade resulta da própria
ambivalência da noção de Forma, que consubstancia os perfeitos sujeito e predicado
(o único sujeito que exibe o predicado ao qual dá o nome). Quanto à leitura exis-
tencial, dificilmente poderá emergir separada, resultando antes da fusão dos outros
sentidos.
2.1 Como disse atrás, a teoria tenta erradicar as falácias provocadas pela ex-
ploração da ambiguidade de einai. Mas o próprio Platão não deixa também de
ser vítima delas. A mais profunda acha-se expressa na fusão do sujeito e predica-
do, manifestando-se na duplicidade de sentidos em que o particípio pode ser lido.
Como vimos, “o ser” – bem como qualquer das Formas – tanto pode ser exprimir
o sujeito – nome da classe das coisas que são –, como o predicado: propriedade, co-
mum a todos os indivíduos incluídos nessa classe.
Resultam destas ambiguidades fórmulas de difícil tradução e impossível com-
preensão por quem não tiver conhecimentos de Grego e de filosofia grega clássica13.
Em particular, o substantivo ousia, formado partir da forma feminina do particípio,
ousa, apresenta as maiores dificuldades, exprimindo a entidade “que é” e “é aquilo
que é”, no sentido predicativo, que, portanto “existe” e “é verdade”. Por isso, a ambi-
guidade do termo e a correspondente abrangência dão origem a uma multiplicidade
de traduções. Dele deriva a “substância” aristotélica14 e a partir desta uma série de
termos aparentados, que a tradição se esforçará por distinguir: “ser”, “essência”,
11 
Outros pensadores antigos se dedicaram à tarefa de disciplinar os usos de einai: vide Aristóteles Física I 185b27-28.
12 
Ou seja, a Forma será o único “ente” no qual converge a totalidade das leituras de einai.
Por exemplo, ousia ontôs ousa (Fedro 247c) pode ser traduzido por “ser realmente existente”, “a essência verdadeira-
13 

mente existente”, “ser que realmente é”, ou semelhantes. Todavia, sejam quais forem os termos escolhidos, o sentido da
expressão não pode ser captado pelo leitor, se ignorar a problemática que a justifica.
O anacronismo é só aparente, pois a terminologia filosófica da tradição forma-se a partir da obra de Aristóteles,
14 

muito mais do que da de Platão. Aliás, a compreensão global e crítica da teoria das Formas acha-se expressa na obra do
Estagirita, não nos diálogos platónicos.

410 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Falácias, Antíteses e Paradoxos em Torno de “Ser” e “Existir”

“entidade”, “realidade”, “natureza”, “existência”, até “propriedade”.


2.2 É impossível saber se Platão se terá dado conta destas dificuldades. Mas o
certo é que as afronta no Sofista. Primeiro, da oposição do movimento ao repouso
decorre a coexistência de ambos no ser. Depois, da existência de cada um deles, o
facto de cada um ser o mesmo, em relação a si próprio, e outro, em relação aos res-
tantes. Finalmente, se em si todos eles são, relativamente aos outros, cada um deles,
e todos colectivamente, não são.
São assim definidos cinco sumos géneros: Ser, Movimento, Repouso, Mesmo e
Outro, acrescendo que, por não se confundirem quer com o Ser, quer com nenhum
dos restantes, os quatro últimos constituem o Não Ser. Esta relação entre os sumos
géneros reformula a leitura da negativa, como contradição, em alteridade (257b-c).
Todavia, na medida em que a oposição da afirmação à negação só pode exprimir
uma contradição, a relação paralela, entre verdade e falsidade, é assumida como
função proposicional, ou seja, propriedade de proposições (Sof. 263b).

3. Sintetizando. Parménides é responsável por uma concepção abrangente do


Ser, dominada pelas leituras identitativa e veriditiva de einai. A oposição desta à
mutabilidade acrítica da doxa funda uma “teoria de dois mundos”, onto-episte-
mologicamente incomunicantes. Na obra platónica, esta herança é submetida a
profundas transformações, condensadas em duas propostas onto-epistemológicas
complementares.
A chamada “versão canónica” da teoria das Formas tenta compatibilizar a leitu-
ra predicativa com a identitativa/veriditiva, encarando a Forma como o sujeito que
instancia o predicado perfeito. Mas não consegue explicar como pode um ente ser
igual a si mesmo e exibir predicados mutáveis, que com ele se não confundem. Este
é o problema da participação, que exige a desambiguação das leituras de einai.
A solução é proposta no Sofista. Enquanto os sentidos identitativo e predicativo
são suportados pelo Mesmo e pelo Outro, o existencial começa a emergir no Ser, do
qual todos os outros participam para poderem “existir”. Ao reformular a contradi-
ção em alteridade, a natureza relativa do Outro acaba por abolir o interdito eleático:
nunca dirás “que são as coisas que não são”. Todavia, para que esta reformulação da
negativa não elimine a contradição entre verdade e falsidade há que encarar cada
uma delas como propriedades das proposições, cancelando o sentido ontológico da
verdade, expresso pela leitura veriditiva.
A solução seria perfeita, se nela não persistisse já referida ambiguidade do parti-
cípio, notada por Aristóteles: como é que o ser (as Formas) pode auto-predicar-se (p.
ex. “A justiça é justa”)? A proposição é falaciosa, por tomar “justiça” equivocamente,
como um indivíduo, uma classe e a propriedade comum aos membros desta. A so-
lução aristotélica consiste em distinguir “substância primeira” (sujeito individual),
de “substância segunda” (predicado universal). Falta tempo para a aprofundar aqui.
Mas é inegável que toda a metafísica ocidental irá, durante séculos, oscilar entre
Platão e Aristóteles, com ocasionais recaídas em Parménides.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 411


José Trindade Santos

4. Um último ponto. Como se viu, a relevância da leitura existencial para a re-


solução do problema do Ser, é nula antes de Aristóteles. Com o Estagirita, a situação
começa a mudar. Mas é a partir da Idade Média que a questão da existência assume
uma importância capital, a ponto de já no séc. XVIII se ter tornado impossível a
compreensão da metafísica grega sem uma posição clara sobre ela15. Este aspecto da
questão tem de ser levado em conta.

15 
A questão é a da distinção do “é” da existência do da predicação (Mill, Logic I.IV.I; vide C. Kahn, “The Greek Verb
“To Be” and the Concept of Being” Foundations of Language 2, 1966, 245-265; The Verb ‘Be’ and its synonyms, The
Verb ‘Be’ in Ancient Greek Dordrecht/Boston 1966. Mas evidentemente não poderemos esquecer a discussão kantiana
sobre a existência, como predicado. Para o debate sobre o “é” existencial, no Sofista, vide G. Owen, “Plato on not-being”
Plato I, G. Vlastos (ed.), Garden City 1971, 223-265) e a crítica de Lesley Brown, “Being in the Sophist: a Syntactical
Enquiry” Oxford Studies in Anc. Ph. 4, 1986, 49-70.

412 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A ntinomias nas Odes Corais Senequianas
Ândrea Seiça
ISLA

D o corpus da produção trágica senequiana constam, chegadas até nós, nove


tragédias, se exceptuarmos uma décima, a quem os estudiosos contemporâ-
neos atribuem autoria incerta: a tragédia Octauia. Porém, neste estudo destacam-
se duas peças, Tiestes e Agamémnon, uma vez que possuem entre si um núcleo te-
mático comum, respeitante ao drama da Casa dos Atridas. Na verdade, a conexão
entre as duas peças é de tal maneira intensa e profunda que a acção dramática de
Agamémnon (cuja data de produção se estima situar-se entre 61 e 62 d. C.) se afi-
gura como a obra de continuidade de Tiestes.
A escolha dos mythoi com vista à elaboração de peças de valor profundamente
estético e ideológico revela todo um manancial adveniente da herança dos trágicos
atenienses do séc. V a. C., já que são utilizados os mitos que originaram as gran-
des produções da tragédia ática; de facto, Eurípides surge como o tragediógrafo
ateniense que mais contribuiu, com a sua influência, para o despontar do grande
homem de teatro que foi Séneca.
No entanto, apesar da força esmagadora resultante de influência tão grandiosa,
a obra teatral deste homem com profundas ligações à política e à filosofia mantém
toda a sua originalidade, facto este proporcionado, indubitavelmente, pelo próprio
contexto social e, além disso, pela tradição trágica romana, da qual Séneca soube
retirar proveito com alguma mestria. Sabemos que a influência dos três tragedió-
grafos da época arcaica da literatura latina foram motivo de inspiração para o poeta
cordovês, revelando-se, desta forma, fontes de importância extrema, sobretudo em
termos ideológicos. Todo o titanismo com que se caracteriza a obra de Ácio ou o
expressionismo de Pacúvio ou ainda de Énio acabaram por marcar indelevelmente a
tragédia senequiana, que acaba por se assumir como a expressão da infeliz condição
humana.
São as suas composições trágicas que revelam, incessantemente, a frágil cami-
nhada do Homem rumo à sua destruição; os mythoi a que Séneca recorre funcio-
nam, deste modo, como uma evidente alegoria de uma sociedade prestes a assistir
à sua própria derrocada. Neles, os homens encarnam os defeitos censurados pelo
poeta e são conduzidos, por sua própria mão, a um destino sombrio que os afasta
da salvação.
A esta auto-destruição assiste um elemento muito peculiar: o Coro. Ainda que
se afirme que esta entidade colectiva se possa manter distante face ao desenrolar dos
acontecimentos, torna-se manifesto que assim não acontece, uma vez que os temas
abordados nos seus cantos em tudo dizem respeito à acção trágica.
O Coro surge, portanto, como um elemento colectivo que demonstra uma cer-
ta superioridade face às restantes personagens, devido, em parte, à enorme evolução

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 413


Ândrea Seiça

de que foi alvo desde o século do florescimento do género literário em questão até
à Época Imperial.
Assim, o coro em Séneca proporciona momentos especialmente interligados
com a acção dramática, apesar de muitas vezes se revelar desconhecedor do rumo
da acção, tal como acontece no início da segunda ode coral de Tiestes. Efectivamen-
te, o coro não é apenas um entremez com a funcionalidade de fazer a separação dos
cinco actos canónicos. Prova disso mesmo é o tratamento feito de temas muitas
vezes explorados, essencialmente, pelos poetas líricos e elegíacos latinos da Época
Clássica. Numa sequência bastante linear da tradição literária, Séneca herda temas
e motivos – que acabam por se transformar em topoi – também já característicos
da produção literária dos poetas arcaicos gregos, como Safo, Alceu, ou mesmo,
Arquíloco.
Temas como o perfil e actividades do rei ideal, o otium, a ataraxia, assim como
a instabilidade e fragilidade da existência humana, topoi expressos no motivo maior
que é a breuitas uitae, ou ainda a saudade ou nostalgia da mítica Idade do Ouro
adquirem significações diversas daquelas que detinham em épocas anteriores, facto
bem espelhado ao longo de algumas odes corais de Tiestes e Agamémnon.
De entre os temas anteriormente referidos, surge um que justifica a sua impor-
tância pela grande actualidade que em si encerra: os privilégios do poder real e o
perfil do governante ideal.
Sendo este um tema que ocorre em algumas odes corais senequianas, destaca-se
a reflexão feita sobre ele na segunda intervenção do Coro em Tiestes, onde é ma-
nifestada a crença de que as qualidades de um bom Rei não são mensuráveis em
termos materiais, mas, única e exclusivamente com base em critérios e propriedades
morais. Por isso, os versos 348 a 368 permitem a enumeração dos verdadeiros va-
lores pelos quais se deve reger, constantemente, o governante ideal; destes valores
indispensáveis na conduta do bom Rei destacam-se aqueles que permitem que o
governante enverede pelo caminho da bona mens e que, simultaneamente, possa
ser comparado a um sábio estóico. Por oposição, são referidos nos versos anteriores
(versos 345 a 347) os elementos cuja posse deve o rei ideal desprezar, pois não são
eles os símbolos de uma verdadeira realeza1; a riqueza e as possessões materiais não
têm importância e valor, quando comparadas com elementos tão essenciais quanto
os elementos de foro moral e relacionados com valores que devem ser cultivados no
1
  Regem non faciunt opes,
non uestis Tyriae color,
non frontis nota regia,
non auro nitidae trabes :
vv. 344-347

Não são as riquezas que fazem o Rei,


nem as vestes de púrpura da Tíria,
nem o diadema régio na sua fronte,
nem as resplandecentes moradas de ouro:

414 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Antinomias nas Odes Corais Senequianas

seio de uma sociedade justa e correcta.


Apesar de, inicialmente, o Coro parecer desconhecer os intuitos de vingança de
Atreu, a temática escolhida funciona como a perfeita antítese entre uma situação
ideal de governação (de cariz estóico) e aquela que é vivida em Micenas, tendo Atreu
por tyrannus.
Séneca mostra, portanto, que é a bona mens que deve reger o bom governante,
levando a que este tome como essenciais qualidades tão imprescindíveis quanto a
coragem, ou a resistência ao medo, ou ainda a falta de ambição e de desejos violen-
tos.
Para exemplificar as perturbações ou desejos que nos atingem ao longo de toda
a nossa vivência, Séneca recorre, como é frequente, a imagens de teor marítimo que
ajudem a comprovar um clima de instabilidade latente. A alusão a mares revoltos
sugere os conflitos interiores diante dos quais o ser humano se prostra; a imagem
dos mares tocados pelos ventos identifica-se, num domínio estritamente metafóri-
co, com a imagem da mente humana que balança e hesita, sofrendo a influência do
furor e permanecendo desprovida da ratio própria dos estóicos.
As imagens directamente relacionadas com a agitação do oceano, bem como
com a acção destruidora e implacável por parte dos ventos são realçadas enquanto
símbolo máximo da instabilidade psíquica e emocional, facto que não é inédito, já
que também os poetas líricos se serviram da imagem marítima com os mesmos pro-
pósitos. Tanto o segundo de Coro de Tiestes como o terceiro Coro de Agamémnon
assumem esta ligação entre a incerteza da Natureza com a instabilidade da mente
humana, que o sábio estóico deve rejeitar com segurança. Para tal, deve ser oposta
a uma vida de incertezas e de desvarios – provocados pelos deveres governativos e
mesmo pelo furor regni – uma atitude filosófica apologista de uma vivência serena,
alheia aos tormentos próprios da mente humana.
Bom rei é, portanto, aquele que, através da quietude de espírito, evita a contur-
bação e o alvoroço próprios da governação. Nas palavras do Coro na sua segunda
ode, em Tiestes, a felicidade não se concentra no acto de governar mas sim no que é
designado de dulcis quies2.

2
  Me dulcis saturet quies,
Obscuro positus loco
Leni perfruar otio,
Nullis nota Quiritibus
Aetas per tacitum fluat.
Sic, cum transierint mei
Nullo cum strepitu dies,
plebeius moriar senex.
vv. 393-400

Uma doce quietude me satisfaça a mim,


Colocado em local obscuro
Desfrutarei do calmo ócio
E não conhecida por nenhum dos Quirites
Fluirá em silêncio a minha vida.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 415


Ândrea Seiça

A associação do exercício do poder por parte do governante a uma atitude plena


de serenidade, pejada de influências filosóficas estóicas e epicuristas e, muitas vezes,
conseguida pelo afastamento da vida pública parece ser antitética, já que parece não
haver meio de conciliação entre o empenhamento na vida activa e uma atitude de
afastamento e quietude, que tão correntemente designamos de otium. De facto, o
comportamento de Tiestes no terceiro Acto da obra homónima parece assinalar o
paradoxo decorrente da impossibilidade de ligação entre duas actividades, à partida,
tão distintas e contraditórias, já que, para o ancião, governar e levar uma existência
privada de agitações excluem-se mutuamente.
No entanto, esta ligação dicotómica entre o exercício do poder e um muito
ciceroniano otium cum dignitate surge de forma natural e plenamente conciliável,
já que as perturbações próprias da governação são erradicadas da mente humana
por intermédio de uma atitude serena. Assim, o rei virtuoso encerra em si o ideal
de sábio estóico, já que renuncia a um tipo de poder que causa agitação em termos
morais e preconiza na sua vivência um ambiente de paz decorrente do otium que
não lhe traz inquietação, sendo responsável, sim, pelo triunfo da bona mens e pela
assunção do governante estóico como um uir imperturbabilis, que se opõe, de forma
terminante, à imagem do tyrannus profundamente marcado pelos seus desejos e
ambições.
A importância do governante ideal cuja acção é regida, ainda possa parecer
contraditório, por uma forma de estar na vida que invalida as paixões (no sentido
negativo da palavra) reporta a um tema profusamente ilustrado pela obra horacia-
na e que se relaciona intimamente com uma vivência pautada pela simplicidade
e moderação, que ajuda, certamente, à aproximação do ideal de sapiens estóico3.
Falamos, evidentemente, da aurea mediocritas, enquanto modelo de vida pautado
pela inexistência de excessos de qualquer espécie, que deve ser buscado por todo
o ser humano e, especificamente, pelo bom governante. De facto, o bom rei não
deve ceder às ambições e desejos nefastos intrínsecos, por vezes, aos meandros do
poder. Deve, contudo, pautar a sua existência pela moderação, ainda que, no devido
momento, consiga exercer todas as capacidades de liderança a ele atribuídas. Há,
portanto, uma antinomia que ultrapassa o campo literário para se instalar na reali-
dade constatada pelo próprio poeta; o ideal de rei que concilia o acto de governar a
uma existência marcadamente serena e mediana não encontra expressão na figura
máxima do Império, de tal modo que o quarto momento coral de Tiestes assinala

Assim, quando tiverem passado os meus dias


Sem nenhum tumulto,
Hei-de morrer como um ancião do povo.

3 
Cf. Garcia Fuentes, M.ª Cruz, «Presencia Horaciana en los coros de Séneca», pág. 93: «Ambos presentan muchos
puntos en común a lo largo de su existencia: son poetas, están cercados de poder, sus protectores les obsequian con todo
tipo de dádivas, pregonan y practican la ética y la moralidad estoica; detestan la ambición, el afán de acumular riquezas;
aconsejan a disfrutar del presente sin preocuparse por el futuro y se inclinan por la áurea mediania.»

416 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Antinomias nas Odes Corais Senequianas

uma desordem cósmica4 que essa, sim, encontra paralelo na vida real.
Perante a nefasta sympatheia tôn olôn dos elementos naturais face aos crimes
perpetrados5, o Coro assume um tom pessimista que acaba por dominar a produção
trágica senequiana. Na verdade, a tragicidade dos coros senequianos é veiculada
pelo pessimismo incutido aos topoi da literatura latina a que recorreu Séneca.
Temas como a brevidade da vida, a fragilidade da condição humana, o ideal da
ataraxia, ou ainda a fruição do dia que passa sob o olhar atento do destino que rege
a vida humana são motivos literários extremamente explorados pelos autores líricos
da época Augusta, em quem Séneca bebe toda a sua influência. No entanto, ao lon-
go das odes entoadas pelo Coro, quer em Tiestes, quer em Agamémnon, os temas são
aproveitados de uma forma bastante distinta, se tivermos em conta o simbolismo
que estes mesmos adquiriam na produção poética do século I d.C.
Com Séneca, os topoi literários abordados distanciam-se já da ideologia que
tinham adquirido durante o áureo período da Pax Augusta. A Idade da perfei-
ção, tantas vezes cantada pelos poetas alexandrinistas e muitas vezes louvada por
Horácio e Virgílio (como constatamos na Bucólica I) não passa de uma miragem,
quase como se nunca houvesse existido. A referência ao cataclismo universal, bem
como à ingente desordem cósmica por ele provocada, alude bem à impossibilidade
de retorno a uma idade que parece ter tido a sua expressão máxima no Século de
Augusto. É a diferença existente entre Séneca e os líricos: estes últimos tomaram
contacto com a Idade do Ouro propriamente dita, enquanto Séneca apenas pode
ansiar nostalgicamente por essa era mítica.
A degradação, em termos de valores e princípios, implicitamente tratada pelos
temas corais, reflecte-se num tema fulcral e de grande importância para a compre-
ensão de uma época: o ideal de governante.
Este tema surge disseminado ao longo das duas tragédias – nomeadamente no
terceiro Coro de Agamémnon e no segundo de Tiestes – demonstrando, desta forma,
as concepções filosóficas, estóicas e epicuristas, que presidem à definição de um
governante correcto e justo, do qual não foram representantes Agamémnon, nem
tão pouco Atreu, seu pai.
Pretende-se, portanto, através da reflexão profunda em relação a este tema, uma
abertura simultânea à reflexão sobre os meandros do poder na época coeva a Séneca.
A tirania, situação política que Séneca vive intensamente, é duramente repudiada e
posta em contraste supremo com a forma de governo ansiada para a grande cidade
de Roma; a corrupção de costumes é fortemente criticada, tal como acontecia no
décimo sexto Epodo horaciano, através do qual o povo romano era severamente

Os versos 830 a 874 de Tiestes reflectem o conjunto de premonições feitas pelo Coro, em relação ao que se irá suceder
4 

no plano cósmico, depois da subversão da ordem natural provocada pelos crimes hediondos cometidos por Atreu.
5 
A alusão ao desvio do olhar de Febo Apolo, símbolo do abandono a que a luz solar expôs os seres humanos, faz denotar
a conspurcação de que é alvo o cosmos, após os crimes perpetrados. A recusa dos elementos naturais em participarem
no sangrento banquete estende-se, por consequência, aos elementos do Coro; efectivamente, o horror e incredibilidade
sentidos são expressão da repulsa e do intento de alheamento perante os nefastos acontecimentos.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 417


Ândrea Seiça

condenado6.
Por isso, os temas sobre os quais reflecte nas suas odes não são mais do que pro-
jecções gerais dos problemas encontrados na sua própria sociedade, bem como das
soluções que se lhe afiguram como as mais acertadas e correctas moralmente.
Temas que tinham sido anteriormente abordados pelos líricos como reflexo po-
sitivo de uma época de prosperidade em termos políticos e sociais passam a ser
conotados de uma forma pessimista. A aurea mediocritas, a brevidade e fragilidade
da vida, enquanto topoi, passam a ser vistas como o símbolo da decadência de uma
época, por contraste com a perspectiva extremamente positiva a que foram associa-
das, por intermédio da produção literária doa autores líricos da época Augusta.
Assim, os coros revelam, na sua estrutura, uma fundamental antinomia latente
entre ócio e vida pública que, apesar da aparente contradição, podem ser concilia-
dos e, num plano mais abrangente, funcionam como contraste face à sociedade e
época da produção dramática.
Com Séneca surge uma alteração no âmbito da tradição literária e os topoi, tão
frequentemente postos ao dispor da literatura Latina, alteram-se de modo conse-
quente, para demonstrar a degradação vivida na sua época e personificada, paradig-
maticamente, pela figura máxima do Império: Nero.
Desta forma, os coros senequianos evidenciam-se como a forma mais eficaz e
velada de preconizar um grito de revolta contra os excessos vividos pela sociedade
romana, tão contrário ao sentido moral e filosófico do poeta.

BIBLIOGRAFIA

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Vols. Paris, Les Belles Lettres, 1999.

SÉNECA, Tragedias. Introducciones, traducción y notas de Jesús Luque Moreno.


Madrid, Gredos, 1980.

SÉNECA, Tiestes. Introdução, tradução do Latim e notas de J. A. Segurado e Cam-


pos. Lisboa, Verbo, 1996.

HORACE, Odes et Épodes. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris,
Les Belles Lettres, 22002.

Altera iam teritur bellis ciuilibus aetas,


6 

suis et ipsa Roma uiribus ruit.

Uma outra era é consumida pelas discórdias civis,


e a própria Roma desaba pelas suas forças.
vv. 1-2

418 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Antinomias nas Odes Corais Senequianas

ARMISEN-MARCHETTI, Mireille, Sapientia Facies: Étude sur les Images de Sé-


nèque. Paris, Les Belles Lettres, 1989.

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GRIMAL, Pierre, «L Image du Pouvoir Royal dans les Tragédies de Sénéque»,


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ca», Paideia LII. 1-6 (1997), pp. 209-235.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 419


Vida e morte na Helena de Eurípides1
Maria de Fátima Silva
U. Coimbra
fanp@fl.uc.pt

E ntre os estudiosos modernos, a Helena de Eurípides tem sido muitas vezes


relegada para um segundo plano e incluída entre aquelas peças que, por es-
caparem a um padrão tradicional de tragédia, têm sido apelidadas de romanescas
ou aventurosas e consideradas bastardas dentro do género a que pertencem. O que
lhes falta em densidade dramática, contenção estrutural e emotividade sobeja-lhes
em leveza, ritmo e variedade de acção. Ao lado de Helena, a Ifigénia entre os Tauros
e Andrómeda integram um padrão que cativou o interesse de Eurípides na década
de vinte do séc. V a. C. Mas de entre as várias criações que correspondem a este
modelo, a Helena será sem dúvida, tanto quanto os textos conservados nos permi-
tem avaliar, a mais subtil no desenvolvimento do plano, mais ou menos conven-
cional, que a configura. Assente num movimento contrário ao esquema habitual,
que progride da felicidade para o desastre, a tragédia de aventuras começa numa
situação de risco para desfechar num inevitável happy end. Tem por agentes um
herói em perigo, atirado para um roteiro longo e ausente em território exótico e
distante, e uma heroína, sentimentalmente ligada ao herói, que com ele partilha
o entusiasmo do reencontro e as apreensões da aventura; até que um plano de
fuga, congeminado e concretizado por ambos, lhes rasgue diante o caminho da
salvação. Sem fugir às linhas gerais deste padrão, a Helena patenteia, no entanto,
aquela que é a sua natureza específica, a de uma peça onde à emoção se substitui
a intelectualidade, manifestada por uma especulação sobre conceitos e discussões
contemporâneos que se cruzam no seu desenvolvimento. A marca da sofística,
motivadora de uma série de debates académicos, é nela permanente, expressa num
jogo de antíteses que trazem à consideração, de personagens e de público, a refle-
xão sobre questões filosóficas em voga no momento. Conhecimento / ignorância,
verdade / aparência, vigor físico / inteligência são apenas algumas das dicotomias
mais óbvias da peça, para além daquela que constitui o objecto central desta re-
flexão, a oposição entre vida e morte. Na opinião expandida por B. B. Powell, no
seu artigo ‘Narrative pattern in the Homeric tale of Menelaus’2, este tema ligado
1 
A bibliografia específica sobre este tema engloba estudos como: W. G. Arnott, “Euripides’ newfangled Helen” ,
Antichthon 24 (1990) 1-18; A. Burnett, Catastrophe survived: Euripides’ plays of mixed reversal (Oxford 1971) 76-100;
E. M. Blaiklock, The male characters of Euripides (Wellington 1952); D. J. Conacher, Euripidean drama: Myth, theme
amd structure (Toronto 1967); J. G. Griffith, “Some thoughts on the ‘Helena’ of Euripides”, JHS 73 (1953) 36-41;
I. E. Holmberg, “Euripides’ Helen: most noble and most chaste”, AJPh 116 (1995) 19-42; G. Karsai, “Teucros dans
l’Hélène d’Euripide”, Pallas 38 (1992) 217-226; G. S. Meltzer, “Where is the glory of Troy? Kleos in Euripides’ Helen’,
Classical Antiquity 13 (25) (1994) 234-255; D. G. Papi, “Victors and sufferers in Euripides’ Helen”, AJPh 108 (1987)
27-40; Ch. Segal, “Les deux mondes de l’Hélène d’Euripide”, REG 85 (1972) 293-311; Ch. Wolff, “On Euripides’
Helen” , HSPh 77 (1973) 61-84.
2 
TAPhA 101 (1970) 419-431.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 421


Maria de Fátima Silva

à saga de Menelau partilha a ideia de morte e de renascimento com o destino de


Ulisses, um paralelo já consagrado no relato homérico (cf. Odisseia 3. 254-328,
4. 235-592). Nas suas linhas gerais, o modelo comporta a ideia de um herói dado
por morto, que, finda a guerra, regressa a casa e, no caminho, se defronta a cada
passo com a morte: prometida por monstros com que se depara nos portos de es-
cala, concretizada no desaparecimento dos companheiros, ou mesmo directamente
abordada no episódio limite de uma catábase. Um último risco o aguarda ainda
na derradeira aventura que experimenta, o combate contra os rivais no amor de
uma esposa distante, que é condição para a sua reintegração na família, na pátria
e mesmo na própria existência. É com a morte que o herói tem de travar uma luta
constante, até assumir a identidade perdida; logo nostos e anagnorisis representam
uma espécie de etapas de ressurreição.
Esta mesma estrutura de ressonâncias épicas é retomada por Eurípides na sua
Helena, com algumas correcções de fundo: em primeiro lugar, a substituição da
fantasia pelo racionalismo, que se exprime pela exclusão de monstros compensada
pela valorização dos perigos da barbárie; como não menos significativa é a nitidez
conferida à heroína, que não se limita a esperar, numa atitude passiva, a acção do
salvador; ao lado do herói, ela intervém e compete, correndo riscos e partilhando
estratégias de salvação. A alternância vida / morte duplica-se por efeito de um cru-
zamento de dois destinos, que seguem linhas ora de distanciamento, ora de conflu-
ência; sem, no entanto, que o curso tradicional da acção se perca, de modo a que às
sucessivas ciladas da sorte se suceda a ressurreição para a vida e para a normalidade.
Esta é, na sua simbologia mais profunda, a eterna história da existência humana,
à procura de um objectivo de realização e em luta sem tréguas pela sobrevivência,
contra todas as naturais contingências da vida.
A primeira evidência desta antítese, que desde logo decide de todo o progresso
da acção, é visualmente determinada antes mesmo que a primeira palavra do texto
se faça ouvir. Revela-se desde logo a partir do quadro que o cenário projecta no mo-
mento da abertura. Em cena, as atenções concentram-se sobre o túmulo de Proteu,
fronteiro ao palácio do faraó egípcio, onde se refugia uma Helena fugitiva e em pe-
rigo. Esse mesmo Proteu, que a heroína desde logo recorda (4) como ‘tendo sido, em
vida, o senhor desta terra’, esconde-se agora sob as trevas da morte, nas profundezas
insondáveis de um túmulo. Foi à guarda de Proteu que os deuses, conhecedores da
sua piedade e poder, outrora confiaram a beleza e a virtude de Helena, durante a
longa ausência do marido em Tróia. Mas agora que a morte o afastou do convívio
dos vivos e abrandou a autoridade da sua mão protectora, é Helena quem, pela sú-
plica, implora da sua memória a mesma protecção que salva, vida e honra, de uma
heroína em perigo (60-65). Desta forma, a marca de morte inevitável num túmulo,
representa, por paradoxo, para Helena – como mais tarde para Menelau – a única
esperança de vida e de salvação. Morto, Proteu mantém ou mesmo sublima um
ascendente e um prestígio que uma existência digna lhe granjeara e que lhe reforça,
por efeito do próprio distanciamento, a autoridade.

422 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Vida e morte na Helena de Eurípides

Neste quadro de abertura, Helena, viva, é a imagem impotente da vítima de


uma perseguição que, à distância, a ameaça. Ela que, no exílio egípcio, se devia
manter a salvo das dores do combate e da carnificina, vê afinal a sua honra em peri-
go e teme perante vagos ecos de morte. Não sem que a recordação, em que a heroína
se espraia, do passado faça da perseguida de agora um carrasco de morte para os que
a cercavam. Na terra, esta Helena fraca e abandonada foi usada pelos deuses como
fonte de um equilíbrio que o excedente da população humana exigia (36-40), através
do aniquilamento que uma guerra paradigmática provoca. Desejosos de zelar pela
ordem universal, os deuses encontraram na dicotomia morte / vida, num sentido
alargado e colectivo, um factor de moderação, de que a beleza de Helena não passou
do instrumento involuntário. Numa só criatura confluíram, em estranho paradoxo,
as forças poderosas do cosmos: a beleza e o poder criativo de Afrodite e Eros, como
também a destruição que essas mesmas forças acarretam. Durante uma boa parte
da peça, o amor intervém, de facto, como um princípio de sinal negativo. Foi Cípris
que usou Helena e a paixão que ela era capaz de provocar para obter a vitória no
julgamento das deusas, desencadeando assim a guerra de Tróia. Da atitude da deusa
adveio, como funesta consequência, a má reputação para Helena e o aniquilamento
para Menelau. Mas o mesmo amor que destrói pode também salvar; porque afinal
os grandes movimentos da peça, o nostos e a anagnorisis do par, que lhe garantem
salvação, são ditados pelo mesmo poder divino. Foi por imposição olímpica que a
rainha de Esparta empenhou a vida a distribuir morte em sua volta, entre homens e
heróis (52-56), conservando, após o efeito pernicioso da sua paradoxal intervenção,
uma única perplexidade (57): ‘Mas porque estou eu ainda viva, afinal?’ É este o tom
que o quadro cénico e o monólogo de abertura deixam a pairar: a situação de uma
mulher sobrevivente, mas causadora de muitas mortes, que se refugia à protecção
de um morto para tentar ainda preservar a dignidade e a vida.
É dentro deste contexto que Teucro vai fazer a sua entrada, ele que, mais do
que uma memória, é a imagem viva de um passado que agora renasce em toda a sua
crueza e sofrimento. Ele é o náufrago e o exilado, fugitivo por milagre dos deuses de
uma morte a que a guerra provocada por Helena condenou muitos heróis. Ressen-
tido contra a causadora de tanta dor, o príncipe de Salamina traz na boca ameaças
de morte contra a filha de Zeus, essa Helena maldita que o acaso lhe colocou diante
(71-77) e que foi motivo de aniquilamento para Aqueus e Troianos. Mas apesar de
ter sobrevivido ao poder mortífero de Helena, Teucro sofre perseguido pela memória
de um morto. Porque se há mortos que protegem e salvam, como Proteu, outros há
que deixam atrás de si um lastro de condenação para os que lhes sobrevivem. Assim
sucedeu com Ájax, que deixou como herança a seu irmão Teucro o ódio familiar,
pelo simples facto de lhe ter sobrevivido (90-94, 103-104). No caso do herdeiro de
Salamina, à philia paterna repugnava a arbitrariedade do destino, que distribuíra a
um dos seus filhos uma morte precoce e ao outro a vida. Mas Teucro não é apenas a
primeira vítima da guerra de Tróia a aportar ao Egipto nesta peça, para documentar
ao vivo o alcance tremendo do desastre causado por Helena; com as notícias de que

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 423


Maria de Fátima Silva

é portador, o herói alarga o quadro de destruição, de modo a afectar agora direc-


tamente a própria aniquiladora. É ele o mensageiro de um boato sobre a provável
morte de Menelau (132), o guerreiro e o marido. Através do Atrida, o movimento
aniquilador alarga-se, do plano colectivo e público, para o familiar. Para além do
marido, também a mãe, Leda, mergulhou nas trevas da morte. Helena destrói antes
de mais pela beleza, disputada pelos homens; mas mata também pela desonra, que
condena a um suicídio redentor aqueles que, no círculo familiar, lhe não toleram
o opróbrio (133-136)3. Sorte semelhante parece ter vitimado igualmente os irmãos
da filha de Zeus, os Dioscuros, ainda que neste caso os testemunhos apontem para
versões contraditórias (137-142): ou a morte significou para eles redenção e lhes
conferiu o estatuto de eternidade, sob a forma do resplendor dos astros em que se
transformaram; como mais negra é a versão que lhes destina uma sorte semelhante
à de Leda, ofuscados pela sombra da vergonha da irmã.
Mas da distância do passado, a cena de Teucro produz o transporte da acção
para o presente, quando Helena previne o náufrago grego dos perigos que o esprei-
tam no Egipto. É que o filho de Proteu, o novo faraó Teoclímeno, ao contrário do
pai, gosta de sangue e de morte (151-155), ele que encontra na caça e na chacina
dos animais o seu desporto favorito. Mas não fica pelos limites de um passatempo,
ainda que cruel, a atracção do sangue a que não resiste. O faraó mata também seres
humanos, todos os Gregos que aportem ao seu território, e fá-lo, de acordo com as
tendências de um bárbaro, por amor, para evitar a concorrência de rivais à mão da
mulher que o fascina, a bela Helena. De novo a causadora da guerra de Tróia é mo-
tivo de morte para homens, sobretudo gregos, neste seu outro exílio no Egipto.
As intervenções líricas que põem termo ao prólogo, de Helena e do coro, cele-
bram e valorizam, num outro tom, o sentido de morte que dominou na abertura da
peça. As Sereias e Perséfone trazem o símbolo mítico do negrume em cena. Os can-
tos que as mulheres entoam são fúnebres, e ressoam como uma homenagem devida
a todas as vítimas de Helena, que é, nesta primeira parte da tragédia, uma deusa de
morte. Vulgares na sua identidade e experiência, as mulheres do coro projectam, no
momento da entrada, um incómodo raio de luz sobre as trevas reinantes. Do fulgor
esplendoroso de um dia de sol, que as iluminava na tarefa fresca e saudável de lavar
a roupa (179-190), mergulharam, por efeito do grito doloroso da sua senhora, na
escuridão da morte, que se fecha sobre elas. Mas, apesar de fúnebre, o canto que
entoam é também de uma certa forma redentor, porque uma nova luz de inocência
é lançada sobre aquela que, até este momento, era apenas um factor de destruição.
Sobreposta à antítese morte / vida aviva-se outra contradição poderosa na peça, a
que opõe onoma a soma, o nome à própria pessoa. Porque só o nome de Helena é
destruidor, por semântica4 e pelos efeitos dolorosamente comprovados que produz
(198-199). A compensar este argumento de desculpa, de forma a que se não quebre
3 
Eurípides é o único poeta a referir-se ao suicídio de Leda, o que é significativo para o sentido do papel de Helena como
fada de morte nesta tragédia.
4 
Cf. Ésquilo, Agamémnon 687-689.

424 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Vida e morte na Helena de Eurípides

ainda o sabor a trevas instalado na cena, Helena repete, com arroubos de lirismo,
o luto familiar, transformando até, por efeito da emoção, as dúvidas em certezas. A
morte de Menelau, que Teucro mencionara como apenas um boato, é agora lamen-
tada como um golpe efectivo a penalizar uma Helena na realidade inocente (203-
211, 277-279). E a somar ao rol de vítimas que, por seu intermédio ainda que contra
sua vontade, partiram deste mundo, a suposta viúva de Menelau acrescenta-se, à
lista das suas vítimas, ela que ‘para todos os efeitos está morta, mesmo se em vida’
(285-286). Mata-lhe a alma a consciência do seu papel aniquilador; mas morta está
também Helena para todos aqueles que dela apenas conhecem o fantasma de opró-
brio que, em Tróia, oculta a realidade honesta e sofredora da verdadeira Helena.
A ideia de que Menelau está morto, que a heroína elabora e acentua, permite
algumas breves e interessantes reflexões sobre a morte e a incidência que tem entre
os philoi. A sorte de uma viúva, compelida ao abandono ou a uma nova aliança que
repugna, repõe a questão antes suscitada por Teucro do efeito que sobre os vivos im-
primem os que deixam a vida. Algo se desenraíza na existência de um ser humano,
quando os que lhe são próximos se lhe antecipam no caminho do Hades. Sente-o
Helena na dor de uma vida onde o elo que a unia ao marido se quebrou (293-299);
do mesmo modo que o experimenta Teucro, exilado da pátria e da família pela
morte do irmão. Suicídio é, por isso, uma ideia que sobrevém, para redimir uma
vida sem sentido e, quem sabe, para proporcionar à sua vítima um lastro de glória.
Quando à forca, uma solução vergonhosa e inaceitável, Helena prefere a dignidade
do golpe de uma espada (299-302), a memória de Ájax, o irmão de Teucro, regressa
ao nosso espírito (94-102). Nesta conclusão sobre o desaparecimento de parentes
que conduz ao aniquilamento dos que lhes sobrevivem, como que se encerra um
primeiro movimento da peça, que impõe a rainha de Esparta como um agente de
irremediável condenação.
Atingido este ponto extremo, o coro lança uma tábua de salvação que permite
o início de uma caminhada ascendente em direcção à luz. Quem sabe se afinal o
boato que chegou da morte de Menelau é falso e o herói e marido não está, apesar
das aparências, vivo … (306-307). Aqui começa uma espécie de ressurreição para
o Atrida, como também para Helena, que se alongará em sucessivas etapas até à
redenção total. As dúvidas que o coro levanta justificam uma consulta à profetisa
Teónoe; e, por vistosa consequência, Menelau em pessoa e a resposta tranquili-
zadora da sacerdotisa chegam ao mesmo tempo. Inverte-se por completo o negro
pressuposto anterior: Menelau está vivo. Mas nem por isso a salvação e o restabe-
lecimento do herói no curso normal da existência são imediatos. Porque, antes de
mais, Menelau vive para sofrer um novo processo de perigo e de ameaças de morte.
Neste sentido, o Egipto funciona para o Atrida como uma segunda Tróia, de onde,
com todos os riscos, vai tentar outra vez resgatar Helena.
É através de uma velha porteira que lhe chega o eco dos primeiros perigos (439-
440). Impotente em si mesma, a velha dispõe apenas de um azedume agressivo
para transmitir uma tremenda mensagem: há perigo de morte para os Gregos, no

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 425


Maria de Fátima Silva

Egipto, e esse vem de Teoclímeno, o filho de Proteu (479-480). Ao contrário de seu


pai, que mesmo morto garante a vida aos que no seu túmulo se refugiam, o jovem
faraó, caçador e amigo do sangue, promete morte. E não é só a violência natural no
bárbaro que o determina, mas sobretudo um sentimento, de paixão sem freio por
Helena, como a própria, mais adiante, virá a esclarecer (780-788). Eis a rainha de
Esparta de novo no centro de uma polémica que separa Gregos de bárbaros, que
suscita violência entre os homens, em luta por um troféu de amor e de beleza, ao
preço da morte e da destruição. Teoclímeno herda de Páris o papel de raptor apai-
xonado, perante o qual Menelau terá de ensaiar uma nova conquista de Helena.
Nesta reciclagem da famosa história, Eurípides coloca lado a lado as duas víti-
mas da perseguição, Menelau e Helena, como cúmplices nesta aventura de fuga e
de regresso. A certeza de que Menelau está vivo e próximo, transmitida pelo coro
(517-522) e logo reiterada por Helena (530-531) com base na revelação autorizada
de Teónoe, confronta-se com a presença inesperada do náufrago em cena. Mas a
corrida de Helena a refugiar-se uma vez mais no túmulo de Proteu manifesta desde
logo que a aproximação do par só poderá ser difícil e progressiva, nunca imediata.
Está apenas aberto um processo penoso de reencontro e de reconhecimento. O
esgrimir habilidoso das armas convencionais de uma anagnorisis – coincidências
de origem, a filiação, semelhanças físicas, elos de parentesco – não bastam, mau
grado todas as evidências, para abrir os braços de Menelau ao afecto de Helena. O
Atrida resiste-lhes, mais inclinado a aceitar como verdadeiro o fantasma que trouxe
de Tróia do que a verdadeira heroína que se oferece aos seus olhos e lhe desafia o
raciocínio. A solução deste impasse de conhecimento só acontece por milagre dos
deuses. É preciso que o fantasma desapareça nas alturas do éter, para que enfim
Helena ressuscite livre da sombra do espectro de si mesma. A morte de um passado
de vergonha é condição para o retomar de uma vida de honradez e de felicidade. Só
então a heroína, recuperada para a vida, está em condições de seguir o marido e de
colaborar na ressurreição do senhor de Esparta a partir da humilhante condição de
mendigo. Esta metamorfose acompanha para ambos o processo de salvação.
Mal a expansão emotiva do reencontro findava e já novo impasse se impunha
ao curso da aventura: a ameaça de morte que Teoclímeno representava. Para lhe
fazer frente, Menelau conta desta vez com uma arma nova, o talento e a imaginação
da sua cúmplice, a própria Helena. Entre ambos discute-se um plano de fuga para
a vida, que é um jogo onde morte alterna com sobrevivência. A fuga de Menelau
sozinho é uma jogada possível, que livra o campião de Tróia convertido em herói
náufrago de morrer, agora de verdade, pela mulher que ama (805-807). A esta pro-
posta que repugna a um código militar e másculo, o Atrida contrapõe a resistência
activa (814) pela tentativa de enfrentarem e liquidarem o adversário (809), o que,
no entanto, as circunstâncias não consentem. A impotência sugere então o suicídio
como prova suprema de amor e de fidelidade (836-841). Um belo quadro romântico
reúne, na hora do desespero, os dois apaixonados, onde as juras de amor eterno se
selam sob o patrocínio da morte. Sobre o túmulo de Proteu, tomado por testemu-

426 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Vida e morte na Helena de Eurípides

nha e aliado, Menelau proclama as regras que o orientam como um verdadeiro


herói numa carreira que quer de glória; somando as exigências das duas aventuras
que Eurípides lhe atribui na peça – a de resgatar Helena de Tróia e mais tarde do
Egipto -, de face épica e logo romântica, o senhor de Esparta reconhece (847-854):
‘Eu, a quem Tétis deve a morte de Aquiles, que vi perecer Ájax, filho de Télamon,
eu enfim que privei do seu filho o filho de Neleu, não haveria de ser capaz de mor-
rer, eu mesmo, pela mulher que amo? Claro que sim, que eu seria capaz de morrer
por ela. Porque aos seres superiores, caídos em mãos inimigas, os deuses na sua
sabedoria dão-lhes por mortalha uma terra leve, enquanto aos cobardes reservam
um terreno pedregoso’.
Ao desespero da situação, o destino responde com a esperança, que nasce sem
dúvida da memória justa e benfazeja de Proteu, representada pela presença viva e
colaborante de Teónoe. A execução bem sucedida do regresso progride, na peça,
através de duas etapas, a da súplica perante a princesa egípcia e a do dolo diante da
autoridade do país, o faraó. Em ambos os momentos, o véu da morte vela o sucesso
da estratégia. Cabe a Helena, em primeiro lugar, esgrimir na súplica os argumentos
mais persuasivos; e o seu apelo essencial vai para o compromisso outrora assumido
por Proteu de proteger a exilada, para a devolver, em tempo próprio, ao marido.
Agora que enfim essa hora chegou, como será possível satisfazer a missão do velho
senhor do Egipto sem preservar a vida do herói viajante (912-913)? Exige portanto
a justiça que os herdeiros do poder de Proteu o sejam também da palavra dada por
seu pai. Eis que, nas palavras de Helena, Proteu ganha de novo vida e uma força
decisiva na solução da crise. Menelau, por sua vez, vai mais longe, passando das
palavras aos actos: porque é abraçado ao túmulo do faraó que faz os seus apelos
(961-968). A mesma prece que a rainha de Esparta dirigira directamente a Teónoe,
repete-a Menelau endereçada ao morto, de modo a tornar mais presente a sua auto-
ridade e a influência que possa ter na decisão de Teónoe: ‘A tua filha, no momento
em que eu invoco o seu pai do mundo das trevas, não poderá suportar que o nome
dele, até agora impoluto, seja difamado’. Mas Menelau vai ainda mais fundo na
sua evocação, partindo de Proteu para demover os vivos, como dele também para
cativar o próprio Hades. Porque é ao deus dos ínferos que se dirige a seguir na sua
evocação. De Hades, o Atrida não espera bondade nem tolerância, mas tão somente
retribuição pelo tributo imenso que os mortos em Tróia representaram para o deus
da morte (969-974); com a divindade dos infernos Menelau negoceia, pago que foi,
com generosidade, o resgate da vida de Helena. Num eterno jogo argumentativo
entre morte e vida, Menelau dispõe-se por fim a disputar, do cativeiro egípcio, a
sua amada Helena num duelo de morte, onde ela será o desejado troféu de vitória
(977-979). É o duelo com Páris que se renova na imaginação do guerreiro de Tróia.
Sem deixar de valorizar o poder de Proteu numa decisão favorável, seguindo a linha
de súplica de Helena, Menelau dá, no entanto, à sua argumentação um colorido
másculo que resulta da permanente remissão para os feitos de Ílion. Mas o herói da
tragédia oscila entre o épico e o romanesco, pelo que o seu raciocínio regressa, no

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 427


Maria de Fátima Silva

limite, à ideia de suicídio, esse belo quadro de aniquilamento romântico que une
para sempre dois amantes desesperados à sombra do túmulo, sempre sob o patro-
cínio compadecido de Proteu (982-987). A caminho da vida e da felicidade, ou da
morte e da pacificação final, Menelau não abdica do seu papel de salvador de He-
lena da ameaça de rivais indesejados (989-990). Toda esta crise faz da iminência da
morte a senhora da cena. Mas a morte não é, no contexto de uma peça de aventuras,
portadora de pena e de terror, como entidade punitiva ou fatalmente destruidora.
Por trás das sombras que a moldam oculta-se o brilho da racionalidade, que a torna
numa alternativa de vida e num argumento poderoso de salvação.
Não surpreende, portanto, que, quando obtida a anuência de Teónoe os dois
fugitivos passam à execução do dolo do faraó, a morte simulada apenas em palavras
‘seja o seu recurso principal: que Menelau, vivo, consinta em ser declarado morto’
(1050) é a chave de um plano de que Helena é o cérebro. A Helena que sofrera dos
males da duplicidade é a mesma que agora receita o desdobramento de personali-
dade como caminho de salvação. Coniventes na estratégia, os dois compõem nos
pormenores um quadro convincente de morte, a que não faltem prantos e trenos,
o cortejo fúnebre do náufrago sobre as próprias ondas que o vitimaram, a presença
dolorosa da viúva e dos companheiros enlutados. A Menelau cabe, no drama que se
encena, um duplo e contraditório papel: o de, em vida, se tornar mensageiro da pró-
pria morte. A caminho da redenção, Menelau completa um trajecto que a peça tinha
anunciado desde o princípio: dado como morto na mensagem de Teucro, o senhor
de Esparta pisa vivo o solo egípcio; mas para que, além da vida, possa recuperar o
status de soberano e de herói, bem como as prerrogativas de marido, é preciso liqui-
dar o náufrago, para que o verdadeiro Menelau renasça enfim das próprias cinzas.
No contraste entre os véus de viúva que revestem Helena com os trajos condignos
que finalmente envolvem Menelau (1087-1089, 1186-1190, 1281-1283, 1383-1384),
Eurípides dá ao seu público o efeito visual de uma espécie de rito de passagem que
redime e traz de volta à luz uma alma ensombrada. Funeral e bodas conhecem,
num grande momento de teatro, uma paradoxal harmonia. Helena, por seu lado,
demite-se do papel de fada de destruição para, sob as cores do luto, se assumir como
talento protector. Cada um dos heróis acaba, portanto, de cumprir o seu destino,
para ganhar, por mérito próprio e por generosidade divina, o tão desejado regresso
à normalidade e à vida. O último obstáculo, a paixão de Teoclímeno por Helena,
vence-se com facilidade, porque o dolo vai ao encontro dos anseios mais profundos
do faraó: a cedência da amada e a morte de Menelau. Morte e amor ganham, nesta
ficção enganadora, uma expressão de ironia vistosa, que usada com mestria pelos
senhores de Esparta lhes garante vida e fuga bem sucedida. Para trás ficou uma rota
de sofrimento, ditado pelos caprichos de um acaso que tem prerrogativas de um
verdadeiro deus (711-715): “Como a divindade é coisa insondável, flutuante e vária.
É ela quem revolve a seu bel prazer, conduzindo-o de um lado para o outro, o nosso
destino. É um que sofre, outro que escapa durante um tempo para logo mergulhar
na desgraça. Porque impossível é gozar uma ventura estável durante a vida inteira” –

428 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Vida e morte na Helena de Eurípides

assim concluía sabiamente, na sua lucidez de homem comum e racional, um simples


mensageiro, colocado diante do estranho paradoxo da existência.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 429


A construção de modelos educativos na Antiguidade:
Pais e Mães das Histórias de Heródoto

Carmen Soares
U. Coimbra
carmensoares@iol.pt

C ompostas para um destinatário grego, reflectindo sobre a temática do(s)


retrato(s) da alteridade, as Histórias propiciam, ainda presentemente, um esti-
mulante debate sobre antíteses culturais da mais variada ordem. A perspectiva que
procuraremos abordar não incide no tradicional, e abundantemente testemunhado
pelo historiador, confronto entre realidades díspares – a dos Helenos vs. a dos Bár-
baros. A nossa interrogação coloca-se para um domínio da vivência humana em
que, independentemente da origem do indivíduo, se verifica uma dualidade, mais
ou menos antitética, de formas de pensar e agir: a educação dos filhos. Tal como
hoje, ser homem ou mulher, pai ou mãe, não era indiferente nem para os Gregos
nem para os ‘Outros’ – todos os que não comungavam da cultura helénica. Co-
munidades com uma nítida distinção entre as competências sociais dos dois sexos
derivam de e produzem códigos ético-comportamentais distintos. A formação de
uma criança ou jovem assenta nos valores que lhe são incutidos pelos seus mais di-
rectos educadores, os pais. O sucesso dessa tarefa depende, pelo menos em grande
medida, dos exemplos de vida dos progenitores. Sobre este tema da educação per
exemplum, a obra de Heródoto oferece matéria para vasta reflexão. No entanto,
por uma questão de exequibilidade do actual estudo, estabelecemos uma delimi-
tação de princípio: considerar apenas as situações formativas que dizem respeito
ao relacionamento entre pais e filhos. Assim, o nosso objectivo consistirá, neste
momento, em apresentar de forma sintéctica algumas das que nos parecem ser as
linhas centrais do assunto.
Para chegarmos a uma avaliação de tópicos essenciais do tema da educação nas
Histórias, partimos de uma série de perguntas: os modelos paternos e maternos são
sempre diferentes ou convergem em determinados valores e/ou atitudes? O Autor
apresenta apenas exempla construtivos ou também ilustra tipos a rejeitar? Os com-
portamentos têm uma relação directa com a origem cultural dos indivíduos? Ou
seja, ser Grego ou Bárbaro determina retratos de mães e pais forçosamente distin-
tos?
Em resposta a estas questões, estruturaremos a nossa análise segundo os valores/
atitudes, indiferentemente do sexo e da cultura dos indivíduos. As situações de crise,
que envolvem o risco de morte da descendência, afiguram-se-nos, neste contexto, as
mais significativas. Em todos esses episódios, a encenação do drama depende de um
jogo de forças idêntico: a vida dos filhos depende sempre de um poder superior ao
paterno ou materno. As motivações e o resultado dos esforços para contrariar seme-
lhante vantagem é que variam. Assim, tanto pais como mães, quando confrontados

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 431


Carmen Soares

com a morte iminente de filhos, assumem-se como seus protectores-salvadores. O


desígnio de subtrair à morte o ente querido fracassa na mão dos pais, mas é bem su-
cedido na das mães. Não nos parece, não obstante a evidência acabada de enunciar,
ser denfensável que Heródoto condicionou o desenvolvimento dos episódios em
apreço a preconceitos do tipo: enquanto elemento do casal que dá à luz, a mulher
só pode agir com sucesso na salvação dos filhos. A actuação da esposa do faraó Se-
sóstris (II 107), como veremos mais adiante, contraria mesmo tal leitura. Se Creso
da Lídia não consegue evitar a morte de Átis (I 34-41), nem Eobazo (IV 84) e Pítio
(VII 38-39) a de um dos seus filhos é por razões que nada têm a ver com o seu sexo.
Contudo, quando confrontado com as salvações conseguidas por Labda de Corinto
(V 92) e pela mulher do boieiro Mitradates (I 112-113), o público das Histórias não
deixa de construir padrões de agir distintos para pais e mães.
Comecemos pelo monarca lídio. A insolência de se considerar o mais feliz de
todos os homens (I 34, 1), contra as provas em sentido contrário apresentadas pelo
sábio Ateniense, Sólon (I 30-33), leva Creso ao pagamento da mais elevada factura.
Vãos foram os esforços para lutar contra as determinações inflexíveis da tyche. O
destino não se ilude com manobras ingénuas. Impedir o filho de tocar em armas e
mandar escondê-las da sua vista foram as primeiras medidas tomadas para evitar a
morte que os sonhos lhe anunciavam: o trespasse pela ponta de um ferro. Afastado
da guerra, confinado às exigências domésticas de um casamento recente, Átis pare-
cia não correr perigo. E mesmo quando, persuadido pelos argumentos desse filho,
atingido na sua virilidade pela privação da prática do combate e da caça, Creso o
autorizar a pegar de novo em armas, há dois factores que o tranquilizam. Um javali,
o animal a abater, não possui a malfadada ponta de ferro. A protecção que habitual-
mente lhe dá em casa ficaria assegurada através de uma terceira pessoa, um hóspede
com uma dívida de gratidão por cumprir. Atingido, no entanto, de forma fatal pelo
dardo que o seu protector destinava à fera, Átis acabará por morrer. Cumpre-se o
fado. Do ponto de vista que nos interessa sublinhar, o de pai, Creso esforçou-se
por preservar a vida do filho, respeitando o comportamento exigido pelo código
de valores da philia paterna1. Mas o soberano possuía um outro descendente, que,
por ser surdo-mudo de nascença, nada significava para ele (I 38, 2). O repúdio de
descendência imperfeita era uma prática habitual, mas não universalmente aceite.
De facto a história narrada por Heródoto, da salvação de Creso por intervenção do
filho inepto, é um exemplo literário, discreto é certo, da necessidade de reequacio-
nar o papel dessas pessoas na sociedade. Demonstra, pois, o destino de Creso que
um pai não deve discriminar o afecto pelos filhos com base em critérios de natureza
física.

1 
Sobre a noção de  , tradicionalmente traduzida por ‘amizade’, indicamos apenas alguns títulos bibliográficos
de referência: F. Oliveira, “O conceito de filia de Homero a Aristóteles”, Humanitas 25-26 (1973-74) 217-35; M.
Scott, “Philos, philotês and xenia” AC 25 (1982) 1-19; M. W. Blundell, Helping friends and harming enemies. A study
in Sophocles and Greek ethics (Cambridge 1989); D. Konstan, Friendship in the classical world (Cambridge 1997) e “Re-
ciprocity and friendship”, in G. Gill et alii, edd., ' (Oxford 1998) 279-301.

432 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A construção de modelos educativos na Antiguidade

Consideremos ainda outras duas circunstâncias em que os pais se preocupam


em salvar toda a progénie ou, na impossibilidade de cumprir semelhante desejo,
tentam assegurar pelo menos a vida de um filho. Por ocasião da mobilização ge-
ral dos homens para a guerra, dois súbditos dos monarcas persas Dario e Xerxes
solicitam junto do seu senhor a isenção de combater para um jovem. Mais cruel
na sua deliberação, Dario manda imolar os três filhos de Eobazo, destruindo as
falsas expectativas inicialmente criadas no suplicante (IV 84). Na verdade, prome-
tera deixar-lhe os filhos na Pérsia, o que cumpriu, pois estes, apesar de sem vida,
permaneceram em solo pátrio. Não há, neste passo, quaisquer indicações dos mo-
tivos que levaram o pai a interceder apenas pela vida de um filho, quando possuía
três. Para além da razão óbvia do maior grau de probabilidade de sucesso de uma
súplica mais modesta ser atendida, outras haveria por certo. O episódio que conta
a desventura de Pítio revela-se, neste domínio, mais rico em informações. De idade
avançada, o antigo hóspede da casa real persa procurou suscitar a benevolência de
Xerxes por uma via diversa da de Eobazo. Apelando à compaixão pela sua situação
pessoal (a de ancião na iminência de total desamparo, devido à integração dos seus
cinco filhos nas falanges do rei), Pítio pede a desmobilização do filho primogénito,
natural sucessor e, ao que se deduz das indignadas palavras de Xerxes, o seu favorito
(VII 39, 2). Nem uma palavra sobre o afecto pelos filhos, sobre a tragédia da morte
na flor da idade. Envoltos num contexto de guerra e dirigidos ao chefe supremo do
exército, quaisquer argumentos de misericórdia pela vida dos seus soldados seriam
encarados pelo soberano como ofensivos. A resposta dada às súplicas de Pítio evi-
dencia a insolência de que se revestia um tal pedido, uma vez que o próprio Xerxes,
não obstante o estatuto de senhor dos outros, partia para a luta – ou seja para uma
eventual morte – acompanhado não só pelos filhos, mas também por irmãos e ou-
tros familiares.
Quer por intervenção pessoal (Eobazo e Pítio) quer indirecta (Creso), nenhum
dos pais acabados de considerar é bem sucedido na salvação dos filhos em risco.
Sorte diferente têm filhos que contam com a aliança materna. Não todos, é certo!
Analisemos, antes de mais, precisamente estes.
O já aludido caso dos filhos do faraó Sesóstris (II 107) ilustra bem situações-
tipo, isto é, que se repetem nas Histórias: a da mulher/mãe engenhosa, a dos proge-
nitores salvadores e filicidas e a da luta no acesso ao poder, causa de atentado contra
a vida de infantes, potenciais rivais do homicida. Ausente em campanha, Sesóstris
vira-se forçado a deixar o governo do Egipto confiado ao irmão. A ambição deste,
porém, levou-o a pôr em prática um plano de eliminação de toda a família do legíti-
mo suserano: queimá-los vivos no interior de uma casa. Traído de forma inesperada,
numa situação de crise aguda –a morte iminente– Sesóstris toma conselho junto da
mulher. Tal como sucede em muitos outros passos, o elemento feminino aparece
com um nítido ascendente intelectual sobre o masculino2. Cabe à mãe conceber o

2 
De que os mais célebres exemplos são os casos da esposa de Candaules, da rainha Masságeta, Tómiris, de Artemísia de

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 433


Carmen Soares

plano de salvação do marido e de apenas quatro dos seis filhos que possuía, uma
vez que os outros dois serviram de passadiço colocado sobre o brasido que rodeava a
casa em chamas. No entanto a motivação destas mortes, sublinhe-se, é de natureza
altruísta, factor que, de alguma forma, retira ao filicídio os contornos de crime he-
diondo. De reter também a expressão clara de uma aliança de esforços maternos e
paternos, cabendo à mãe conceber o plano e ao pai tomar a deliberação de executá-
lo (nítida distinção dos papéis diversos reconhecidos a cada um dos educadores).
Na mesma linha de construção narrativa insere-se o episódio da salvação de
Ciro recém-nascido, futuro rei dos Medo-Persas (I 111-113). Atemorizado por uma
possível usurpação do trono, anunciada em sonhos (I 107), Astíages, senhor da
Média e avô de Ciro, ordena a exposição do bebé às feras. A boa estrela do infante
quis, no entanto, que não fosse essa a sua sorte3. Entregue por Hárpago, homem de
confiança do monarca, às mãos de um boieiro, o filho de Mandane escapou à morte
graças à sábia intervenção da que veio a ser a sua mãe adoptiva, a esposa do refe-
rido boieiro. Desta feita trata-se de uma inteligência astuta, materializada no dolo
da substituição de Ciro pelo seu filho nado-morto. Vestido com os atavios reais, o
bebé do humilde Mitradates passava na perfeição pela criança condenada. Executar
o plano delineado pela mulher oferecia, julgamos nós, ao boieiro a vantagem acres-
cida de prover a sua casa de descendência e de não incorrer no crime reprovável de
matar um inocente (I 112, 3).
Ao embuste terá igualmente que recorrer uma mãe grega, Labda de Corinto,
para salvar a vida do seu filho, o anunciado usurpador do poder da cidade. Temen-
do o cumprimento do oráculo, a família da progenitora, os Baquíadas, delibera a
morte à nascença do futuro governante, Cípselo (V 92 ). Tal como sucedera na
empresa de Creso para preservar a vida de Átis, também aqui a tyche comanda os
destinos humanos. Contemporânea da obra de Heródoto, a tragédia grega do séc.
V a. C tinha como ingrediente obrigatório do pathos dramático a determinação
inflexível do Destino. Os mortais, se bem que subjugados aos deuses e à Moira, não
se reduzem, porém, ao papel de espectadores passivos do teatro da vida humana. Há
os que lutam inutilmente contra as decisões do fado – como Creso, pela salvação
de Átis – e os que – como Labda – contam com a colaboração da ‘Sorte dos deuses’
(  , V 92  3). Num primeiro momento foi esta o agente da salvação,
uma vez que, com um sorriso inesperado, a criança desarmou dos seus propósitos
o algoz. Quebrando o pacto anteriormente firmado com os restantes membros da
pseudo-embaixada de felicitações aos pais do infante, o visitante que primeiro segu-
rou nos braços o menino não o lançou de imediato ao chão. Já no exterior da casa,
os dez enviados acusam-se mutuamente do fracasso da missão, decidindo voltar
atrás para terminar o serviço. É então que a progenitora, astutamente colocada à es-
cuta, arquitecta a forma de ludibriar os assassinos. Escondendo o filho no sítio mais
Halicarnasso, conselheira militar de Xerxes, e de Améstris, esposa deste mesmo soberano.
3 
Como dirá Astíages ao neto, no momento do seu reconhecimento no filho do boieiro: é graças ao teu destino que te
encontras vivo (I 121).

434 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A construção de modelos educativos na Antiguidade

improvável de ser encontrado, uma colmeia desactivada, que se julga ladeada por
outras em funcionamento, Labda contribui para o sucesso que o destino reservava
ao seu rebento. Diferentemente do sucedido com Ciro, na presente situação coube
em exclusivo à mãe a elaboração e a execução do plano de salvamento do recém-
nascido em perigo.
Com o modelo do progenitor-salvador mal sucedido prende-se a atitude de
vingança. O assassinato de um filho desperta, tanto na figura paterna como na
materna, a mais profunda mágoa, justificativa mesmo de cruéis ajustes de contas.
Do lado bárbaro é a rainha viúva dos Masságetas quem protagoniza a aviltante hu-
milhação do responsável pela morte do seu filho (I 212-214). Coberto de vergonha,
devido à captura por Ciro do seu contingente embriagado, o príncipe Espargápises
tomara a única decisão honrosa à luz do código guerreiro: suicidar-se4. Aos títulos
de suserana poderosa, estratega excelente e combatente exímia, soma o de mãe vin-
gativa. Derrotados os Persas na mais violenta das batalhas travadas entre Bárbaros
(I 214,1), a rainha presta homenagem à memória do filho, ultrajando o cadáver
do inimigo através da imersão da sua cabeça num odre de sangue. Por ser viúva,
Tómiris está de alguma forma constrangida a somar ao seu tradicional papel de
referência materna o de referência paterna. Se juntarmos a essa contingência o facto
de Tómiris pertencer a uma das etnias bárbaras mais primitivas, a dos Masságetas,
mais verosímil se torna para o destinatário grego das Histórias este retrato de mãe,
vingadora implacável.
O padrão social helénico não reconhece à mãe um tal poder, que mais a apro-
xima do código masculino do que do feminino. É certo que Tómiris não é um
exemplo de uma mãe comum, nem mesmo Bárbara. Contudo era no seio de uma
comunidade não grega que ainda se podiam encontrar mulheres guerreiras, descen-
dentes das Amazonas, as Saurómatas (IV 110-117). Era também do conhecimento
do público contemporâneo de Heródoto que, no âmbito do mito e da literatura trá-
gica, figuravam mães portentosas, basta lembrar uma Clitemnestra (Grega) e uma
Hécuba (Troiana). Heródoto, através do retrato de Feretima de Cirene, demonstra
ainda que, mesmo ao nível da realidade histórica, não há uma distinção absoluta
entre uma soberana bárbara e uma grega. É verdade que Feretima vê recusado o
pedido de oferta de um exército, solicitado ao tirano de Salamina de Chipre. Quem
lhe vai proporcionar os meios para tirar desforço armado do assassinato do filho é
um Persa. Semelhante colaboração, para além de proporcionar ao Bárbaro o pre-
texto para atacar mais uma população grega, não provoca nenhuma fricção com o
código social feminino do seu país. Como anota Heródoto já para o final da sua
obra, a oferta de um exército a uma mulher constitui um presente tipicamente persa
(IX 109, 3). Aliás, a saga da vingança da mãe do ex-tirano da colónia grega norte-
africana remata com a confirmação do que poderíamos chamar de “barbarização”

4 
Vd. A. J. L. van Hooff: “espera-se que um chefe, se for derrotado, ponha termo à vida” (From autothanasia to suicide.
Self-killing in classical antiquity, London 1990, 108).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 435


Carmen Soares

da personagem feminina. Tomada a cidade do sogro, Barca, Feretima assume a


deliberação do castigo a aplicar aos responsáveis pela morte do filho: empalar os
corpos e cortar os seios das suas esposas, guarnecendo com eles as muralhas. Por
outra referência nas Histórias, sabemos que tais práticas eram tidas não só como
próprias de Bárbaros, mas até mesmo censuradas pelos Gregos5.
Contudo, há situações em que o ascendente político-social do homicida sobre
o pai do jovem morto leva a que a vingança chegue por vias mais diplomáticas.
Braço direito de Astíages, um soberano capaz de mandar executar o próprio neto,
Hárpago procura incutir no seu filho um valor indispensável a uma boa posição
na corte: a obediência (I 119, 2). Ao receptor das Histórias não passa despercebida
a incongruência entre as palavras deste pai e as suas acções. Ele, que não cumprira
a promessa feita ao seu senhor de aniquilar Ciro, procura agora redimir-se da falta
cometida. No desejo de desfazer eventuais dúvidas que ainda pairassem no espírito
de Astíages quanto à sua fidelidade, não hesita, antes se regozija, em satisfazer-lhe
uma nova exigência. De facto envia-lhe o único descendente que tinha, confiante,
incapaz de questionar, como fizera anteriormente, as intenções que se escondiam
por detrás de semelhante pedido. Dando uma vez mais provas da sua crueldade, o
rei da Média manda esquartejar e cozinhar as carnes do jovem, servindo-as num
banquete ao próprio pai. Revelada a composição do menu, Hárpago retira-se, co-
locando, uma vez mais, a máscara da hipocrisia: jura obediência aos desígnios do
monarca, sem demostrar o mínimo sinal de perturbação. A passividade do Medo é,
no entanto, falsa, produto de uma estratégia pensada. Para se vingar do homicida
do filho, seu senhor absoluto, não podia mostrar-se hostil. Havia que ganhar a con-
fiança necessária para poder pôr em prática um plano eficaz de punição. À galeria
das mães inteligentes e vingativas – como Tómiris e Feretima– soma-se a de um pai
com iguais atributos. A maior vingança que poderia alcançar seria retirar a Astíages
o seu mais querido tesouro, a governação. Firmando a ocultas uma aliança com
Ciro, ajuda-o a conquistar o território do avô, contribuindo, assim, para o cumpri-
mento dos Fados, que faziam do príncipe senhor incontestável de Medos e Persas
(I 123-129). Em suma, a lição que Hárpago transmite é a seguinte: a obediência à
autoridade é um princípio basilar, mas admite trangressões, desde que moralmente
justificadas.
Também os filhos devem, em princípio, obedecer às ordens dos pais, aliás a
primeira referência de autoridade nas suas vidas. Assim se comporta a filha do faraó
Rampsinito, aceitando sem qualquer discussão prostituir-se, até ouvir do parceiro
a confissão de ser o ladrão do tesouro real. Aliás, relatar o feito mais inteligente e
ímpio era a única condição para os frequentadores do bordel poderem disfrutar do

5 
Em IV 43 indica-se a empalação como o castigo recebido por um sobrinho de Dario, punido desta forma pelo seu cri-
me de violação de uma nobre persa (IV 43). Também Polícrates, tirano de Samos, será morto e empalado por um persa,
Oretes (III 125, 3). Quanto à condenação da prática de empalar os vencidos, leiam-se as seguintes palavras do general
Pausânias: Semelhante comportamento convém mais a Bárbaros do que a Gregos; todavia, mesmo àqueles, censuramo-lo (IX
79, 1).

436 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


A construção de modelos educativos na Antiguidade

corpo da princesa. O texto grego, no que toca à atitude da jovem, é claro: trata-se
de ordens ( ) que se limita a executar ( , II 121 e 3).
Embora não aceite pela moral grega, o comércio do corpo de mulheres livres é uma
prática que, em vários passos da obra, Heródoto deixa perceber como característica
da alteridade do Bárbaro6.
Nem sempre, contudo, um descendente é tão submisso como a filha de Ramp-
sinito. Magoado com o homicídio de uma das pessoas que, provavelmente, mais
amava, a mãe, Lícofron de Corinto corta relações com o responsável pelo crime, o
pai (III 50). A forma como Periandro reage ao mutismo e total indiferença do filho
espelha o perfil de um progenitor autoritário, incapaz de assumir uma atitude afec-
tiva. Essa incapacidade percebe-se pelo facto de ser apenas com argumentos e razões
de natureza político-social que empreende esforços sucessivos para reconduzir ao
lar Lícofron. A expulsão por si decretada não passara de uma reacção impulsiva ao
alheamento deliberado do jovem. Porém, privado por decreto do pai e por vontade
própria de todo o apoio de conhecidos e amigos, Lícofron em breve se vê reduzido
à condição miserável de mendigo. Esta pareceu ao tirano de Corinto a ocasião
perfeita para chamar o filho à “sua” razão. Bastava-lhe submeter-se à vontade do
pai. E, em troca, receberia o quê? O poder e o património paternos. Estes são os
valores, exclusivamente materiais, que Periandro pode oferecer ao filho. Fracassada
uma primeira aproximação, só a velhice levará o tirano a uma nova tentativa de
reconciliação. As palavras que lhe atribui Heródoto não escondem quaisquer laivos
de arrependimento, o que significaria uma revisão dos valores comungados por este
pai. Acima de tudo, Periandro mantém-se inflexível até ao fim, uma vez que o mo-
tivo que o leva a trazer o filho a Corinto é de natureza política e não emotiva, i. e.,
resume-se à sua incapacidade para continuar a controlar e a administrar os assuntos
do estado (III 53, 1). À imagem do sucedido com outros pais bárbaros acima men-
cionados –Creso, Hárpago, Eobazo e Pítio– também este Grego acaba por perder o
filho em quem depositava todas as esperanças7. Uma vez mais coube à descendência
pagar com a vida a culpa dos progenitores.
Para o fim do nosso estudo guardámos um episódio que harmoniza o conflito
que se pode gerar entre a philia familiar e a política. Não raro, como vimos acima,
as relações mútuas de solidariedade entre pais e filhos vêem-se comprometidas pelo
apoio ou obediência de um dependente ao seu senhor. Em tais circunstâncias a per-
da da geração constitui para os progenitores um dano insuportável, transmitindo-se
ao receptor das Histórias uma mensagem clara de lamento do infortúnio doméstico.
6 
Vejam-se os casos das raparigas lídias solteiras, obrigadas a prostituirem-se para angariarem o próprio dote (I 93, 4
e 94, 1), o das Líbias Gindanes (cujo mérito era avaliado pelo número de homens que as possuíram, IV 176), o uso da
partilha comunitária dos serviços sexuais das mulheres entre os Masságetas (I 216, 1), os Agatirsos (IV 104) e os Nasa-
mões (IV 172, 2) e a prostituição sagrada, praticada na Babilónia (que consistia em que todas as mulheres tivessem de
vender o seu corpo, uma vez na vida, no interior do templo da deusa do amor, Milita, entregando à divindade o soldo
obtido, IV 199).
7 
Tal como o rei da Lídia, o outro filho varão que possuía tinha uma enfermidade, desta feita do foro mental, que não
o habilitava à governação (III 53, 1).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 437


Carmen Soares

O exemplo do persa Boges (III 107) oferece a particularidade de, (pelo menos) aos
olhos da mentalidade do seu povo e na opinião de Heródoto, ilustrar como o sa-
crifício da vida dos filhos pode ser enquadrado na glorificação do pai. Realmente,
conforme já vimos para o caso do príncipe Masságeta, no contexto de uma derrota
militar, o código de honra do guerreiro autorizava o suicídio, evitando, dessa forma,
a humilhação da captura. Diante da incapacidade de sobreviver ao cerco dos Ate-
nienses, essa foi a via por que optou o sátrapa persa. Esgotados os víveres da cidade,
ergueu uma pira, sobre a qual colocou, depois de os imolar, filhos, mulher, concu-
binas e criados. A unidade que em vida devia ser a família traduz-se na inseparabi-
lidade na morte, daí que o Persa, ateado o fogo, se lance às chamas8. O texto não
deixa dúvidas quanto à motivação sócio-política deste acto. O receio de manchar a
imagem de guerreiro excelente e fiel servidor do rei determinou a sua decisão. Boges
vê-se, assim, elevado ao estatuto de herói nacional, admirado mesmo pelos Gregos,
conforme se depreende das palavras com que o historiador encerra o episódio: É pois
com justiça que, ainda hoje, por essa razão é elogiado pelos Persas (VII 107, 2).
Em resposta às interrogações de abertura da nossa análise, podemos tirar várias
conclusões. Heródoto, por meio dos seus retratos de pais e mães protagonistas de
episódios maiores das Histórias, contribui para a construção, na Antiguidade, e para
a percepção, no presente, de vários modelos educativos. Tanto apresenta situações
de convergência de atitudes e valores paternos e maternos (protecção e salvação da
vida dos filhos e vingança das suas mortes), como revela uma distinção nítida entre
as competências reconhecidas a cada uma das partes (com a mãe a pensar e o pai
a agir). Embora não haja no texto indicação expressa de repúdio de determinado
comportamento paterno ou materno, a verdade é que o desfecho das histórias de
Creso/Átis e Periandro/Lícofron ilustram que, quer do lado bárbaro quer do grego,
se encontram educadores com falhas graves de carácter. A permissividade do rei
lídio contrasta flagrantemente com a inflexibilidade do tirano de Corinto. Nem um
pai que avalie superficialmente os problemas nem um outro obstinado em demasia
parecem poder ser modelos de formação recomendáveis. Quanto à influência da
origem étnica dos progenitores na sua forma de pensar e agir, verifica-se não haver
contrastes de fundo em qualquer um dos sexos.
Em suma, ultrapassadas diferenças funcionais de pormenor, a mensagem que
perdura é a de unidade familiar. Pais, mães e filhos constituem um todo, cujo pa-
radigma máximo de integridade se espelha no sacrifício colectivo perpetrado pelo
persa Boges. Por certo que o conteúdo trágico e a grandeza ética do quadro, ainda
que pintado com as cores exóticas do universo bárbaro, permaneceram no imagi-
nário contemporâneo da obra e hão-de perdurar no posterior como dignum laude
exemplum.

8 
A. J. L. van Hooff inventaria vários exemplos posteriores a Heródoto de generais ou cidades inteiras que optam por
um fim honroso entre as chamas, em vez da rendição vergonhosa (cf. op. cit., 57-9).

438 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


R eminiscências de R itos Agrários Romanos em
Festividades Cíclicas no A lgarve
Lina Soares
E. Sec / U. Nova de Lisboa
linasoares3@hotmail.com

D esde sempre, o homem viu no alimento a fonte da vida, aliado a forças divi-
nas, às quais seria necessário agradar, oferecendo os mais variados sacrifícios,
para que elas lhe fossem favoráveis. Por essa razão, o tempo não era gasto apenas
no trabalho, havia momentos de pausa para honrar a divindade. Eram esses mo-
mentos de descanso, de otium, em que se cantava, dançava, comia e bebia, que
perpetuavam as suas crenças do passado.
O homem aprendeu então a conhecer o ciclo da Natureza, as estações coman-
dadas pelos equinócios e solstícios, a reparar que nos campos tudo morria mas, um
tempo mais tarde, voltava a nascer com os primeiros raios do sol crescente. Começou
a adorar a Tellus Mater que lhe dava em cada renovação do ciclo, o necessário para
a sua subsistência. Mas essa relação tinha de ser recíproca, a vida era-lhe concedida,
em contrapartida deveria honrar a divindade, para que esta não lha resgatasse. E é
deste contrato dádiva - promessa que nascem as primeiras formas de culto: a dança,
o canto, as oferendas em cereais, frutos, flores, o sacrifício de animais e, entre povos
mais selváticos, imolações de humanos. Assim nascem as primeiras manifestações
religiosas (do latim religare, a ligação do homem com a divindade) que, praticadas
por uma comunidade, tomam o nome de festas, cerimónias, festividades.
O vocábulo festa tanto se pode referir a uma celebração religiosa, em família,
como é o Natal, a uma diversão como é o Carnaval, ou a uma comemoração, de
uma empresa por exemplo, mas o que é comum em todas elas é o carácter de rup-
tura em relação à vida quotidiana, “é um momento de loucura, de transgressão.”1
Assim, classificam-se em festas religiosas, cristianizadas, como o Natal e a Páscoa;
festas sociais, familiares (casamentos, baptismos, funerais) ou nacionais (um evento
histórico, por exemplo); e as ligadas ao trabalho, à faina agrícola, como a vindima,
ou marítima, como o baptismo e lançamento de um barco novo à água. Uma outra
distinção há ainda a fazer entre festas oficiais (decretadas pelo governo, por exemplo
o 10 de Junho) e festas populares (organizadas pelo povo).
Ernesto Veiga de Oliveira denomina festividades cíclicas as festas que estão
directamente relacionadas com estações do ano e, na maioria, relacionadas com
os trabalhos dos campos. Quanto a Rocha Peixoto, outra autoridade no campo da
etnografia portuguesa, afirma que “as festas populares de hoje têm, de ordinário, a
origem nos cultos naturalistas de outrora (...) Aí está, entre muitos, o simbolismo

1 
Festas e Celebrações Cristãs, pp. 9/10

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 439


Lina Soares

litúrgico da vinha e do trigo, alimentos principais do homem, passando do mistério


eleusiniano ao sacrifício cristão; o Natal, que é a solenidade do solstício do Inverno;
as Maias, no mês em que triunfa o verão, estação procriadora e fecundante, do In-
verno, parado e estéril” 2

O calendário litúrgico católico classifica as festas em fixas e móveis. Fixas são o


Natal e a Epifania, por altura do solstício de Inverno; as festas juninas, no solstício
de Verão, e o culto dos mortos, com os Santos e os Finados, entre o equinócio do
Outono e o solstício invernal. Como festas móveis, celebra-se, próximo do equinó-
cio da Primavera, o Carnaval, época desregrada, seguido imediatamente do período
antagónico, de abstinência física e espiritual, a Quaresma; o Pentecostes e a Ascen-
são, todos ditados pelo calendário da Páscoa, sendo o Carnaval no sétimo domingo
anterior ao domingo de Páscoa, e as outras consequentes.

A. Festividades Romanas Pré-Cristãs


Entre os romanos pré-cristãos, as festividades eram de igual modo fixas e mó-
veis. As fixas (as stativae) eram 52 por ano, em todos os meses excepto Setembro.
Entre elas as Saturnalia, instituídas por Jano ao deus Saturno, em meados de De-
zembro; as Januaria, em honra a Jano que deu o nome ao mês; as Lupercalia, em
Fevereiro, em honra ao deus-lobo Luperco e a Pã, o protector dos rebanhos, e ainda
em Fevereiro as festas em honra ao deus Febro, deus dos enfermos e dos mortos, ce-
rimónias fúnebres, portanto; as Vestalia, em Março; as Cerealia, em honra a Ceres,
em Abril; as Floralia e as Maias no mês de Maio; as Vinalia e as Bacanalia, sucesso-
ras das Dionisíacas gregas, em Novembro. As móveis dividiam-se em Conceptivas,
determinadas pelos sacerdotes, como:
- as feriae, em honra de Júpiter;
- as Pagalia, celebradas nas aldeias em honra de Ceres e da Terra;
- as Sementinae, pela prosperidade das sementeiras.
E as Imperativas, decretadas pelo governo para celebrar as vitórias e o nasci-
mento dos filhos do imperador, como:
- as Ambarvalia, em que se passeava pelo campo o animal destinado ao sacrifí-
cio, afim de alcançar dos deuses boas colheitas;
- as Parentalia, em que todos os familiares do defunto se reuniam na sua casa,
durante nove dias, davam esmolas, repartiam pelos vizinhos carne crua (o viscera-
tio). O defunto era cremado em piras e a cinza recolhida em urnas;
- as Supplicationes, espécie de preces públicas;
- as Denicalia, que se celebravam dez dias depois da morte de alguém, para
purificar a casa.
O ano era dividido em 10 meses, e começado em Março (o equinócio da Prima-
vera, ligado à renovação da Natureza). Os dias dividiam-se em festi (festivos, con-
sagrados aos deuses), intercisi (meia festa, só se trabalhava algumas horas) e profesti

2 
Rocha Peixoto, Etnografia Portuguesa, p.51.

440 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Reminiscências de Ritos Agrários Romanos em Festividades Cíclicas no Algarve

(de trabalho ou negotium).


Dado que o presente trabalho se refere a algumas festividades cíclicas do Algar-
ve e à sua ligação a cerimónias da Roma pré-cristã, dentre o calendário das festivi-
dades que ainda hoje são celebradas no Sul do país, passaremos a focar, na ordem
do ciclo da Natureza, duas festas móveis, dependentes da fixação da Páscoa - o Car-
naval, talvez a maior reminiscência dos ritos agrários antigos, realizados no período
da renovação do ano, e a Ascensão, ou, como se diz no Sul, o Dia da Espiga. Como
festas fixas, trataremos o São João, ou festa do solstício estival, e ainda o período
que engloba o culto dos Santos, o dos Finados e o São Martinho, celebrados no mês
de Novembro, e o Natal juntamente com o Dia de Reis, a anunciar o Novo Ano.
Muito variado é o leque de divindades greco-romanas associadas a cultos agrá-
rios, mas é sobretudo Dioniso/Baco, Jano e Deméter/Ceres os que lideram as ceri-
mónias cíclicas. Talvez seja essa a razão da sua presença, se bem que “camuflada”
nas festividades cristãs dos nossos dias.
Jano, o deus bifronte, com uma face virada para o passado e outra para o fu-
turo, está presente nas festas dos dois solstícios, o São João Baptista estival, o que
anuncia a vinda de Cristo, e portanto uma nova Era, aquele que traz a Luz através
do Baptismo, e símbolo do dia mais longo do ano; e o São João Evangelista, último
profeta do Novo Testamento, que prepara a segunda vinda do Salvador, como re-
generador do Velho num Novo Mundo, depois do dia mais curto do ano (solstício
invernal). São inegáveis as semelhanças dos cultos antigos com os cultos cristãos,
quer na festa junina, quer na festa de São João Evangelista, em Dezembro.
Em relação a Dioniso, Baco entre os romanos, a divindade que presidia às ma-
nifestações de alegria, cortejos, folia desregrada, correrias e danças, embriaguez até,
ou, numa vertente mais séria, penetrando no mundo dos mortos, parece ter persis-
tido até aos nossos tempos, nos festejos carnavalescos, nos manjares cerimoniais do
vinho, ou ainda na descida ao mundo das almas. Ei-lo, pois, reinante no Carnaval,
nos Santos e Finados e no São Martinho.
Já Homero, na Ilíada, o refere como deus, filho de Zeus, e Eurípedes, nas Ba-
cantes, fala da perseguição a este deus. Heráclito já dizia que Hades e Dioniso são
um único e mesmo deus, pela sua ligação aos mortos celebrada nas Antestérias, em
Fevereiro-Março . 3

Baco e Ceres surgem, em Virgílio, nas Bucólicas V, 9 e nas Geórgicas I, 7, como


as principais divindades agrárias. Nas Bacantes, 279, Deméter e Dioniso são postos
em paralelo:”Uma, inventando o trigo e o pão, o outro, inventando a vinha e o vi-
nho, introduziram entre os homens aquilo que os fez passar da vida selvagem para
a vida culta” . 4

E é nesse limite entre a vida selvagem e a vida dita culta, que encontramos algo
que integra qualquer dos cultos referidos- a música, manifestando-se no canto e

3 
Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas,p.206.
4 
Jean-Pierre Vernant, Figuras, Ídolos, Máscaras, p.184

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 441


Lina Soares

na dança, algo inato, na opinião de estudiosos, como Ken Dowden, que afirma
que “Dance is not something that was invented, but is found everywhere and is part
of human nature” , corroborando com uma citação de Quintiliano, em Educação do
5

Orador: “Cantar e dançar existe em todas as nações sob qualquer forma” . 6

B. Festividades Cíclicas Cristãs


Primavera / Verão
- O Carnaval
Muitas têm sido as tentativas de atribuir uma origem à palavra Carnaval. Para
uns terá derivado de “currus navalis”, ou “carrus navalis”, os carros que, na Anti-
guidade Greco-Romana, se faziam desfilar, com forma de barcos, em honra a Ísis,
a deusa importada do Nilo e que era considerada universal, deusa da fecundidade
e renascimento; ou então a barca que lançavam ao mar, com oferendas, para que
a deusa abençoasse as terras, estando todos os que participavam dessa cerimónia
mascarados.
Uma outra versão, já da era cristã, relaciona a palavra com Carnis Valerium, o
adeus à carne, dada a proximidade da Quaresma, em que era proibido comer carne.
Philippe Walter recusa esta hipótese alegando que o adeus à carne era mesmo só
7

na Quaresma, atribuindo a origem do vocábulo a “Une ancienne divinité italique,


antérieure au christianisme: la déesse Carna.” , evocada nos Fastos, de Ovídio, que
8

embora festejada nos primeiros dias de Junho, tinha o culto associado ao de seu pai,
o deus Helerno, celebrado a 13 de Fevereiro, pelos Fábios.
Quanto à proveniência da cerimónia, são inúmeras as semelhanças com ritos
agrários da Antiguidade Clássica.
As Dionisíacas Campestres, celebradas em Dezembro, eram festas de aldeia,
com desfile de máscaras, seguindo em procissão um enorme falo. Dioniso era o
deus portador de máscara. Nas Bacantes, Penteu não reconhece Dioniso devido à
máscara que ele usa, antropomorfizada, apresentando-se com a fisionomia de um
jovem estrangeiro, lídio . Nas Grandes Dionisíacas, celebradas em Março-Abril,
9

transportavam-se os tonéis ao santuário de Dioniso, em cortejo, em que a Rainha,


mulher do Arconte-Rei, se juntava ao deus para entrar no templo.
As Lupercalia, a 13, 14, e 15 de Fevereiro, originariamente eram cerimónias de
purificação campestres, em honra ao deus da fecundidade Fauno, mas depressa se
estenderam ao meio urbano, honrando o deus lobo Luperco, comportando desfiles
carnavalescos e onde os seus fiéis, os lupercos, corriam à volta do Palatino, de tron-
co nu, banhados em sangue do animal imolado, com as ancas cobertas de peles de

5 
Ken Dowden, European Paganism, p. 178.
6 
Idem, p.178
7 
Philippe Walter, Mythologie Chretienne- Rites et Mythes du Moyen Age, p. 39
8 
Idem, p. 43
9 
Idem, p.177

442 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Reminiscências de Ritos Agrários Romanos em Festividades Cíclicas no Algarve

cabra.
As Saturnalia romanas celebravam o triunfo da Primavera sobre o Inverno, da
vida sobre a morte, a igualdade entre os homens no tempo em que Saturno habitara
o Lácio, escravos mascarando-se com os objectos dos seus senhores e vice-versa.
Ora, o Cristianismo vai adaptar essas festividades às práticas religiosas cristãs,
permitindo os comportamentos desregrados desse período carnavalesco por um
curto espaço de tempo, até porque antecede, de imediato, o jejum da Quaresma,
como preparação para um período profundamente religioso como é o da Páscoa.
O actual Carnaval terá derivado das saturnais romanas que se realizavam por
altura do início do ano, não esquecendo que o ano, anteriormente ao calendário
fixado por Júlio César, começava em Março. Com o novo calendário instituído, a
data fixou-se em meados de Dezembro. Assim, o renascer do novo ano, e esse cele-
brado nas Saturnais, seria por altura de Fevereiro ou Março, que, citando Ernesto
de Oliveira, seria “um período de completa liberdade licenciosa(...) a festa e a orgia
eram permanentes, e desaparecia a distinção entre senhores e escravos” 10

Hoje comemora-se em alguns países da Europa, onde os mais afamados são o


de Nice e o de Veneza, e, chegado ao outro lado do Atlântico, tornou-se o do Rio
de Janeiro o maior do mundo. Em Portugal, muitas são as cidades e vilas que se
orgulham do seu Carnaval e, no Algarve, o de Loulé é Rei.
Até ao século XIX, o Carnaval tornava-se desagradável com tanta sujidade pelas
ruas, atirada a quem passava, composta por ovos, pó de carvão, e por vezes, pro-
jécteis bem mais desagradáveis, até que se resolveu terminar com a quadra. Mas
em 1906, o louletano José Guerreiro, tendo assistido aos festejos carnavalescos em
França, com a ajuda dos conterrâneos, apresentou o primeiro corso carnavalesco,
com carros alegóricos, e no lugar das sujidades, atirava-se agora serpentinas e bom-
bons, agradando de tal forma a todos os da terra, que perdurou até aos nossos dias,
hoje complementado com desfile de mascarados e vários espectáculos.

- Dia da espiga
Trata-se da celebração da ascensão de Jesus Cristo ao Céu.
Em Salir, a festa do Dia da Espiga iniciou-se em 23 de Maio de 1968, sendo
actualmente este dia o feriado municipal. Proveniente de ritos agrários antigos,
ela marca o início da época das colheitas, aliás demonstrado no cortejo pela rua
principal, representando a actividade agrícola e o artesanato, com alfaias agrícolas
e produtos da região, onde não falta o medronho, a amêndoa, a alfarroba, nem os
raminhos tradicionais de espiga, simbolizando a união entre o profano e o religioso,
comuns a outras partes do país, constituídos por, além da espiga de trigo, que signi-
fica abundância, tronquinhos de oliveira (a paz), papoilas (a alegria), malmequeres
brancos (a prata), e malmequeres amarelos (o ouro). Também nesse dia, acordando
ao troar de foguetes, Salir apresenta arraial popular, as ruas ornadas de flores que

10 
Ernesto de Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, p.38

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 443


Lina Soares

nos fazem pensar nas festas romanas em honra a Flora, mãe da Primavera, a deusa
dos campos floridos.

- As Maias (1 de Maio)
Embora Ernesto Veiga de Oliveira não encontre ligação das Maias às festas
em honra a Flora, as Floralia, não deveremos excluir esta hipótese. No templo do
Quirinal, uma das sete colinas onde foi erigida Roma, em que a deusa era venerada
pelos Sabinos antes da fundação de Roma, que a ornamentavam com grinaldas
de flores, realizavam-se festas para celebrar o renascer da vida, na Primavera, com
jogos e danças praticadas por mulheres desnudadas, que, com o tempo deu lugar a
meninas enfeitadas com flores. No nosso tempo, ainda se vêem raminhos de gies-
tas- as maias- sobre portas e janelas No que diz respeito a manjares cerimoniais que
acompanhavam os festejos, no Algarve ainda são tradição os queijinhos de Maio, de
figo seco e amêndoa, denominado em Monchique de “bolo do tacho”.

- O São João (24 de Junho)


Como foi já referido, o São João (Baptista) integra as festas juninas, mais po-
pulares nos meios urbanos, e mais religiosas no interior, com práticas de carácter
profano que reportam ao culto solar dos Antigos. São as fogueiras, símbolo dos
fogos celestes, que os jovens saltam ou atiram alcachofras ou papelinhos com no-
mes de possíveis noivos (as sortes) na noite de 23, ou se defumam plantas sagradas,
profilácticas ou afrodisíacas, como o alecrim, o rosmaninho, o funcho, o loureiro,
a amendoeira (esta a planta sagrada dos hebreus, por ser a primeira planta a florir)
e tantos outros, junto a mastros de verduras, como os que se fazem no Algarve, to-
mando o nome de charolas, por conter no topo um nicho com a imagem do santo
feito em massa de pão. São as águas bentas das fontes e ribeiros, reminiscentes das
Fontinalia, em honra à deusa Fons, com as fontes engalanadas de flores a 13 de
Outubro; ou do mar, onde gentes e animais até há uns anos, se banhavam nessa
noite, com fins profilácticos. É de facto a noite mais mágica do imaginário popular,
crendo mesmo ouvir-se mouras encantadas, em certos locais, como Silves.

Outono/Inverno
Depois de cultos solares, reflectindo a vida na Natureza, surge agora o culto dos
mortos, com o declínio da Natureza. Tal como Perséfone, também Dioniso visita o
mundo subterrâneo, simbolizando a morte de tudo o que vive, para renascer depois,
na Primavera.

- Dia de Todos os Santos (1 de Novembro)


Sabemos que a maioria dos cultos e dos templos antigos não foram destruídos
pelo cristianismo, mas apropriados, sendo, por vezes, apenas mudado o nome das
divindades. Foi o que aconteceu, em 609, com o Panteão do Campo de Júpiter, que
o Papa Bonifácio IV consagrou ao culto da Virgem Maria e de todos os cristãos

444 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Reminiscências de Ritos Agrários Romanos em Festividades Cíclicas no Algarve

canonizados até então. No ano seguinte é realizada a primeira cerimónia litúrgica


em honra aos Santos, sendo fixada a sua data, passados duzentos e vinte cinco anos,
em 1 de Novembro.
No Algarve, neste dia, acompanhado com água-pé, come-se o tradicional bolo
dos Santos, aromatizado com erva-doce. Em Algezur, é uma broa de milho com
mel, e em Lagos tem uma forma achatada, como uma grande bolacha.
Em Marmelete, realiza-se a Festa da Castanha, proporcionado pela junta de
Freguesia local, com música, comes e bebes, e venda de filhós. Aqui, o magusto
tem a particularidade de as castanhas serem colocadas numa cova, tapadas, sobre as
quais se faz uma fogueira. Este costume vem de épocas remotas, em que abundava
o castanheiro na zona, que depois, extinguindo-se a pouco e pouco, o seu fruto veio
a ser substituído por bata-doce, a que o povo chama castanhas da terra.
Trata-se sem dúvida de resquícios de ritos agrários, de manjares em honra a
divindades dos campos, mas pela sua proximidade do dia de Finados, poderá estar
ligado também a cultos fúnebres, não esquecendo que nestes, outrora, se faziam
autênticos banquetes em honra aos mortos.

- Dia de Finados (2 de Novembro)


Tempo de chorar os mortos. Tempo de contacto com a morte, de reflexão sobre
o destino das almas.
Desde tempos imemoráveis que o Homem chora a partida dos entes queri-
dos, cuida das suas sepulturas, ora aos deuses que os encaminhe no outro mundo.
Ou chora a morte da própria divindade no final de cada ciclo. Afirma José Maria
Blázquez que na Grécia Antiga, “ las fiestas de Adónis eran un ritual fúnebre(...) en el
que las mujeres lloraban la muerte del favorito de Afrodita. (...) En la Atenas del siglo
V a. c. las mujeres celebraban estos mismos rituales fúnebres com ofrendas de frutas;
colocaban los jardines de Adónis sobre los tejados, donde lloraban la muerte del dios y
también danzaban” 11

Na Roma Antiga, havia associações funerárias, as Columbaria, que realizavam


rituais fúnebres. O nome vem de Columbários, nichos subterrâneos onde se coloca-
vam as urnas funerárias com as cinzas dos defuntos incinerados. Entre os romanos
pré-cristãos, faziam-se sacrifícios com os defuntos, incinerando-se os corpos em
piras. Só com o cristianismo se começou a enterrar os mortos, nas catacumbas,
inicialmente pedreiras abandonadas.
Nas cerimónias fúnebres pagãs, acendiam-se velas e os chamados fogos sim-
bólicos, os februare (de Febro, o deus dos mortos). Mais tarde, entre os cristãos,
colocavam-se oferendas de natureza alimentar sobre as sepulturas dos mártires e dos
santos. Talvez venha daí o “pão por Deus”, o mamphula dos romanos, que ainda
hoje no nosso país, ouvimos as crianças pedir neste dia, a quem se dá doces, fruta
ou dinheiro. Pelo menos em muitos lugares, persiste e crença de que cada “bolo ou

11 
José Maria Blázquez, Primitivas religiones Ibéricas, II, p. 49.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 445


Lina Soares

pão” comido pelos defuntos, é uma alma que se livra do Purgatório.


Outro ritual que persistiu, é o das romagens aos cemitérios, neste dia, para se
orar pelas almas, colocando-se velas e flores sobre as campas.

- O São Martinho (11 de Novembro)


Em quase todo o país toma o nome de Magusto, por ter, como elemento prin-
cipal das refeições cerimoniais, a castanha assada, acompanhada de vinho, jeropiga
ou água-pé, se bem que em certas regiões se festeje pelos Santos, referido anterior-
mente, como é o caso de Monchique, e em que as castanhas são acompanhadas de
aguardente de medronho da serra.
Certas formas de celebração desta quadra, como a degustação dos vinhos, por
vezes em quantidades excessivas que extravasam os limites da consciência, ou as
corridas que até há pouco tempo se faziam nas noites de 11, 12 13 de Novembro,
por homens vestidos de peles de cabra ou de ovelha, que lembram os Lupercos, com
chocalhos e búzios, em correrias desenfreadas que mais parecem as loucas danças
das festas da Antiguidade, em honra a Dioniso, executadas pelas Bacantes. A pró-
pria prova do vinho, é ela também reminiscência de rituais dionisíacos realizados
nesses tempos, em inícios de Outubro.
Como já foi referido, neste dia, é prática mais profana que religiosa, os magus-
tos por esse país fora, que quase se arrastam ao dia 22, o de Santa Bebiana, patrona
das “mulheres embriagadas”, cultuada no Norte do país. Por esta altura, abrem-se
as pipas do vinho novo, tal como se fazia nas festas greco-romanas em honra a Dio-
niso/Baco, a 9 de Outubro, as Grandes Dionisíacas, em que se representavam autos
dramáticos durante as vindimas.
É também pelo São Martinho que em muitos lugares se faz a matança do porco,
em que se reúnem familiares e amigos, para ajudar e degustar um manjar feito à
base de carnes e miudezas da vítima, costume vigorado no Algarve, onde não fal-
tam as filhós e o medronho.

- O Natal (25 de Dezembro)


Nesta data, honrava-se o deus Sol (Natalis Solis Invicti), culto sírio importado
para Roma pelo imperador Heliogábalo (218-222 d.c.), semelhante a um outro an-
teriormente importado, no século I a.C., o de Mitra, celebrado também no dia do
solstício do Inverno, em que se acendiam fogueiras, e que persistem, substituídas
em alguns lugares pela queima do madeiro.
Os símbolos que hoje utilizamos, são os mesmos de outrora,
- nas Saturnalia, meados de Dezembro, próximo do solstício invernal, portanto,
em que senhores e escravos invertiam os papéis, ofereciam-se presentes, as strenas
romanas.
- o presépio, com as figuras alusivas ao nascimento do Menino Jesus, foi ins-
tituído somente na Idade Média, por São Francisco de Assis. Mas o presépio ca-
racterístico do Algarve apresenta-se de forma diferente: trata-se de um trono onde

446 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Reminiscências de Ritos Agrários Romanos em Festividades Cíclicas no Algarve

se coloca o Menino, rodeado de vasos com verduras, que parecem cabeleiras e que
se semeiam uns meses antes, as “searinhas” referidas por José Duarte . Também 12

em Olhão, ainda se usa semear-se várias plantas em vasos com o pedido de boas
colheitas.
- a missa do galo na noite de 24 para 25, sendo o galo símbolo solar em religiões
pagãs.
- a árvore de Natal: outrora, no solstício de Inverno, decorava-se casas e templos
com verduras e maçãs.
- a consoada: em todo o país se junta a família, para partilhar o manjar, na noi-
te de 24, com o tradicional bacalhau, couves, polvo, filhós de abóbora (a abóbora
desde sempre foi vista como purificadora, excomungando as forças maléficas), e no
Algarve degusta-se as deliciosas azevias de batata-doce.

- Os Reis – Epifania (6 de Janeiro)


Decretado em 1164 como dia da adoração dos Três Reis Magos Pagãos, simbo-
liza a homenagem de todos os povos do mundo ao Deus Menino, como os presentes
que Lhe trazem, ouro, incenso e mirra, simbolizam riqueza e sabedoria.
Em todo o país se festeja esta quadra com o tradicional Bolo-rei, um bolo de
frutos secos e cristalizados; entre eles, e deve-se fazer reparo, as passas de uva, o figo
e a abóbora, onde são visíveis reminiscências do bolo que os romanos ofertavam
a Jano, com estes mesmos frutos, nas festas do primeiro dia do Ano Novo, a que
juntavam um ramo de verdura, chegando até nós através do azevinho, símbolo de
renovação vegetal.
No Algarve, fazem-se as charolas, espécie de andor com verdura, com uma
imagem de um santo no interior, mas também se dá esse nome a danças e cantigas
tradicionais que hoje “a charola natalícia já não tem dança mas os charoleiros ainda
entoam cânticos tradicionais” . A região de Faro, possui as charolas mais conhe-
13

cidas. Se remontarmos a Homero, constatamos que na Ilíada refere que rapazes e


raparigas, transportando coroas de flores na cabeça, cantavam, davam as mãos e
dançavam.
Por toda a parte do país, neste dia, se cantam as Janeiras, semelhantes às Cha-
rolas.

12 
DUARTE, Pe José da Cunha, Natal no Algarve- Raízes Medievais, p.112: “As searinhas, colocadas junto ao menino
testemunham que, com a vinda do Messias, vai germinar na terra uma vida nova”
13 
DUARTE, Pe José da Cunha, Natal no Algarve- Raízes Medievais, p.228

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 447


Lina Soares

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www.terrasportugal.com

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 449


Da A ntiguidade ao R enascimento:
A Antinomia Mulher - Homem na Obra de Camões

Maria Luísa de Castro Soares


UTAD
lsoares@utad.pt

«A cordeira gentil
que enterneceu Camões
foi decerto a mulher
única que o amou
e que amoravelmente remendou
suas roupas de pobre vagabundo
repartido em pedaços pelo mundo».
VIEIRA, Afonso Lopes, «Diname», «Para um recital camoneano»,
in Resistência, Revista de Cultura e Crítica, Lisboa, 1977, p. 25.

Q uase sempre, na diacronia da história, a mulher vê relegada sua condição para


segundo plano em relação ao homem, que sempre dominou. A reivindicação
da igualdade de direitos, a possibilidade de decidir livremente as suas orientações
essenciais é ainda hoje, em muitos países, considerada escandalosa1.
Dos tempos remotos da era cristã até ao século XVI - que nos cumpre tratar
– aceita-se bem o facto de reconhecer à mulher, tal como ao homem, uma alma,
redimida pelo sangue de Cristo. Isto trata-se de uma verdade da fé, mas não lhe é
reconhecida ainda uma igualdade em relação à natureza.
Na Antiguidade Clássica greco-romana, a situação da mulher é de completa
subordinação ao homem, a ponto de este ter sobre ela o direito de vida e de morte.
Uma tal posição, que aproxima a sua situação da dos escravos2, obsta-lhe o acesso
a cargos e exclui-lhe a possibilidade de participação na vida pública e civil. As pró-
prias noções de pessoa e de liberdade de consciência são desconhecidas da Antigui-
dade Clássica, que identifica o indivíduo com o cidadão, célula do corpo social, sem
a noção da autonomia das almas.
Na Idade Média, atenuam-se as dialécticas, porque a criatura é sintetizada no
Criador. A noção quantitativa do homem absorvido nos quadros da cidade e do clã
do mundo Antigo, dá lugar na mundividência medieval a uma noção qualitativa:
1 
SOUSA, António Francisco de, A posição jurídica da mulher na sociedade islâmica. Sep. do Boletim do Ministério da
Justiça, Documentação e Direito Comparado, nº 24 (1985), pp. 193-212.
2 
Cf., FIORENZA, E., Schussler, En mémoire d’elle , Paris, Cerf, 1986, p. 358. No início da era cristã, no tempo do
Império romano, a matrona auferia de grande prestígio: orientava a casa, a educação dos filhos, nos primeiros anos da
infância e influenciava os maridos na conduta da política. Esta melhoria da condição feminina cinge-se apenas à alta
aristocracia e trata-se de um costume, uma prática que contradiz a lei. Além disso, autores houve, como Plutarco, cuja
obra representa uma defesa e uma dignificação feminina.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 451


Maria Luísa de Castro Soares

descobre-se em todo o ser humano, homem ou mulher, um carácter sagrado e uma


alma imortal.
Com a filosofia do Renascimento3, que se traduz num enaltecimento da vida
activa e seus valores essenciais, com a expansão do mundo4 e do próprio homem,
dissolvem-se as sínteses acolhedoras medievais. Não apenas a lição da Antiguidade,
mas também o avanço da ciência e da técnica abrem espaço à dialéctica da grandeza
e pequenez do homem5. Assistimos, assim, ao retorno de verdadeiras antíteses6, de
que nos dá conta a obra de Camões7 e que marcam, além de um sistema de pen-
samento dialéctico, uma «crise de racionalidade no poeta8» ou a existência de uma
«razão oscilante9».
No caso da antinomia mulher/ homem, esta tem de ser vista como a súmula de
pressupostos com fundamento na Antiguidade Clássica e na Bíblia, modelos que
estão na base do pensamento ocidental, recuperados no Renascimento pelos vultos
da época, nomeadamente, Camões.
No mundo Antigo pagão, a antinomia mulher/ homem e a supremacia mas-
culina são verdades indesmentíveis10, sendo a mulher praticamente reduzida a um
objecto11. A filosofia grega não só favorece este pensar como institui as suas perma-
nência e racionalização. Pitágoras considera haver dois princípios; um bom e outro
mau. O primeiro teria criado a ordem, a luz e o homem, o segundo teria criado o
caos, as trevas e a mulher.
3 
Sobre a mundividência na Idade Média e no Renascimento, vide e.g. BURKE, Peter (The Italian Renaissance culture
and society in Italy, Cambridge, 31987, pp 196-198); HUIZINGA, J., Le déclin du Moyen Âge (trad. fr. de J. Bastin),
Paris, 1948, cap IV, e.g. pp 78-90; CURTIUS, E. R., Literatura europea y Edad Media latina, 2 vols, México, 1981: I,
e.g., p 260 e sqq.
4 
O maior contributo português para o Renascimento foram os Descobrimentos, a expansão e o saber experimental daí
resultante. Cf., FRAGA, Maria Tereza de, Humanismo e experimentalismo na cultura do século XVI, Coimbra, Almedina,
1976.
5 
Pelo alargamento de horizontes, assistimos, por um lado, à confiança nas potencialidades do homem em conhecer
sempre mais e dominar o universo em que se inscreve, por outro, gera-se no indivíduo o sentimento da sua insigni-
ficância. Esta dialéctica abre campo ao regresso de oposições como fé e razão, fé e ciência, cidade e campo, alma e
corpo, política de expansão e política de fixação, de que nos dão conta os vários autores quinhentistas, de entre os quais
salientamos Camões. Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, «Debate ideológico e ficção poética em Sá de Miranda e no
epos camoniano», in Biblos. Estudos em Homenagem a Salvador Dias Arnaut, Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra , Coimbra, (2002), pp 601- 619.
6 
ANDRÉ, Carlos Ascenso, «Luz e penumbra na literatura humanista dos Descobrimentos», in Humanismo português
na época dos Descobrimentos. Congresso Internacional, (Actas), Coimbra, (1993), pp.217-256.
7 
Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, «A ideologia bipolar d’ Os Lusíadas: o Velho do Restelo e o Herói Gama», in
Revista Portuguesa de Humanidades, 6, Faculdade de Filosofia da U.C.P., Braga, (2002), pp 283-298.
Cf. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e, Colóquio Letras, nº 55, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio, 1980,
8 

p 42.
9 
Cf. LOURENÇO, Eduardo, «Camões ou le temps de la raison oscillante». In Camões 1525-1580. Le temps de Camões
par Vasco Graça Moura; Camões et le temps par Eduardo Lourenço, Bordeaux, L’Escampette, 1994, p 41.
10 
Cf., AUBERT, Jean-Marie, La femme – antiféminisme et christianisme, Paris, Cerf, 1975, pp.14 sqq ; 29 sqq.
Na sociedade ateniense, por exemplo, o papel da mulher limitava-se ao espaço do lar, sendo portanto alheia à vida
11 

política e social, ainda que a cortesã exercesse um papel importante na vida cultural. Em Esparta, o âmbito de afirmação
da mulher era mais amplo, mas só o humanismo estóico nos dá uma concepção elevada da mulher (que todavia não se
compara à posição do homem que gozava de uma liberdade ilimitada). Cf. Idem, ibidem, pp 14 e sqq. 

452 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

Os dois bastiões filosóficos revitalizados no Renascimento não são mais anima-


dores. Platão, ao agradecer aos deuses as benesses concedidas, não esquece o facto
de ter nascido livre e, seguidamente, o de ter sido criado homem. Aristóteles amplia
e teoriza o pensamento, ao considerar a mulher como um homem incompleto, um
ser secundário ou um «homem falhado» (vir occasionatus12). No seu tratado sobre
a Política, alude à mulher como ser inferior por natureza, razão pela qual deve
subordinar-se ao homem:

«É natural e útil ao corpo ser governado pela alma, e a sensibilidade pelo


intelecto – a parte de nós próprios que possui a razão – como seria nefasto
em qualquer caso que estas duas partes estivessem no mesmo plano ou em
posição inversa (…). O mesmo se passa entre os sexos: o macho é por natu-
reza superior e a fêmea, inferior; o macho é o soberano e a fêmea, o súbdito.
Assim deve ser em relação à humanidade em geral13»

Na Idade Média - e animado por este pressuposto filosófico- S. Tomás de Aqui-


no define ainda a mulher como criatura «deficiente»: «Mulier est aliquid deficiens14».
Mas o Cristianismo promulga, em geral e em termos inequívocos, uma dignifica-
ção feminina15. Do ponto de vista literário, salientamos o culto mariano e a valori-
zação dada à mulher, nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X. Ou as cantigas de
amor, onde a suserania poética da dama é inversamente proporcional à vassalagem
amorosa do trovador. Ou a imagem da donna angalicata - de Dante e dos prati-
cantes do dolce stil nuovo - que, sendo reverbera e impalpável, é objecto de culto,
motivo de auto-revelação e ascese para o poeta. Ou, na voz do primeiro humanista
12 
Esta expressão vir occasionatus, extraída do livro sobre os animais e traduzida e interpretada na Idade Média por
«homem falhado», parece não corresponder rigorosamente ao pensamento aristotélico. Todavia, uma tal concepção
marcou indubitavelmente o pensamento ocidental. Cf., a propósito, WINANDY, J., «La femme un homme manqué?»,
in Nouvelle Revue Théologique, Paris, (1977), pp. 865- 870.
13 
ARISTÓTELES, Política I, 1254 b. Mais adiante, o filósofo acrescenta: «Há, consequentemente, por natureza, di-
versas classes de governantes e governados: o que é livre governa o escravo; o macho, a fêmea; o homem adulto, a criança.
Isto de formas diferentes. Todos possuem os diversos atributos da alma, mas possuem-nos de forma diferente. Assim, o
escravo não possui a mínima parte deliberativa; a mulher possui uma parte, mas sem autoridade completa; enquanto que
a criança a possui, mas de forma ainda não desenvolvida». (Ibidem, 1260). Cf, a propósito, FIORENZA, E. Schussler,
En mémoire d’elle, Paris, Cerf, 1986, p 358 ; WINANDY, J., «La femme un homme manqué?», in op. cit., pp 865-870.
14 
S. TOMÁS, Summa Theologica, II. II, 9.149, a. 4.
15 
A mensagem de Cristo e o anúncio do Seu reino tinha como destinatários privilegiados os mais desfavorecidos, em
que se incluíam os doentes, os pobres, as crianças e as mulheres. A unidade e a afirmação da identidade por natureza
entre homem e mulher são expressas, de modo lapidar, na Bíblia: «Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à
sua mulher e os dois passarão a ser uma só carne. Portanto já não são dois mas uma só carne.» (Mc 10, 6-12). E, neste
passo, é também estabelecida a igualdade no casamento: «Quem repudiar a mulher e casar com outra comete adultério.
E se a mulher repudiar o marido e casar com outro comete adultério» ( Ibidem). A propósito, cf., e.g., (Mt 19,9). Muitas
e controversas são, entretanto, as ideas em torno da atitude de São Paulo face à condição da mulher, na sua Primeira
Epístola aos Coríntios (11, 3-16) e na Carta aos Efésios (5, 21-33; 6 1-9) e no conjunto total da sua escrita. Cf., HUBY,
J., Saint Paul. Première Épître aux Corinthiens, Paris, 1946, p. 247 ; AUBERT, Jean-Marie, La femme – antiféminisme
et christianisme, op. cit. pp.33 sqq. ; ANJOS, Amador dos, S. Paulo e a condição da mulher, Porto, ed. Salesianas, 1990 ;
DUBARLE, A. M., «Paul et l’antiféminisme» in Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, nº 2, (1976), pp.262-
280.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 453


Maria Luísa de Castro Soares

– Petrarca-, o retrato de Laura. Possuidora de um nome e com contornos físicos já


evidentes, a amada petrarquiana é uma figura de mulher distante, superior, ideali-
zada, cuja beleza física é mero reflexo de uma superior beleza moral.
Na fonte destas correntes de idealização feminina, bebeu o espírito eclético
de Camões que não rejeita aquilo que considera susceptível de ser recriado, sendo
que a sua obra se pauta entre o paragramatismo e a originalidade. É de facto usual,
na lírica de Camões, a plasmação de outros textos e a conciliação instrumental de
termos filosóficos e de temas literários com origem heterogénea para exprimir a seu
mito pessoal16 . As suas Rimas surgem como um resultado final dos debates internos
do poeta, dos «seus esquemas prevalentes de visão e sentimento17», sempre inerentes
a uma cultura, a uma sociedade, a uma época e a um credo. As várias vertentes
ideológicas divulgadas nos poemas tradutoras da complexidade do real, essa dia-
léctica essencial18 fazem da lírica camoniana canto problematizante entre a euforia
e a disforia do amorosa, entre a mundividência neo-platónica e a sua questionação,
antinomias necessárias a todo o progresso humano.19
A própria mulher é visionada no quadro de uma «dialéctica do desejo20» que a
opõe ao homem e simultaneamente é, enquanto mulher, encarada de forma anti-
tética como criatura dual. Esta, para Camões, «tanto pode revestir a aparência de
Laura como as roupagens de Vénus»21 e esta dupla possibilidade - que o distingue
de Petrarca – encontramo-la na lírica como n’Os Lusíadas. Assim, na epopeia, nos
episódios relativos à «Formosíssima Maria 22» e a Inês de Castro23, a mulher que
aí se desenha é Laura, criatura angelical, idealizada, «formosíssima 24», de postura
recatada e graciosa, sossegada 25, delicada 26. É inspiradora de admiração e de culto
do sujeito poético:

16 
Cf., a propósito, MENDES, João, Teoria Literária, Lisboa, Verbo, 1986, pp. 18-20.
17 
Idem, ibidem, p. 19
18 
A complexidade do real é expressa em Camões por uma dualidade tradutora das várias faces da cultura. Além da líri-
ca, Os Lusíadas combinam binómios como, por exemplo, a ambição como motora da acção versus a recusa da ambição,
motivo de injustiças e traições; o elogio do monarca vs a crítica e denúncia da sua conduta; a exaltação pelo canto do
«peito ilustre lusitano» vs a constatação de que a pátria está povoada de «gente surda e endurecida»; o espírito de aventura
vs a política de fixação; o herói Gama vs o Velho do Restelo, etc. Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, «A ideologia
bipolar d’Os Lusíadas: O Velho do Restelo e o Herói Gama», in, op. cit., pp 281-298.
A obra camoniana é, no dizer de Óscar Lopes, «meditação original e efabulada acerca do destino humano, onde se
19 

encontram já imaginativamente delineadas as antinomias irredutíveis de qualquer progresso humano». Cf. LOPES,
Óscar, «Camões como poeta das antinomias do progresso». In Camões, 1, Lisboa, Caminho, 1980, p 10.
Cf., a propósito, CUNHA, Maria Helena Ribeiro da, A dialéctica do desejo em Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-
20 

Casa da Moeda, 1989.


21 
Cf., SARAIVA, António José, Luís de Camões. Estudo e Antologia, Lisboa, Bertrand, s/d., pp. 59-61.
22 
Cf. CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 3. 102-106.
23 
Idem, 3. 118 - 135.
24 
Idem, 3. 120.
25 
Idem, ibidem.
26 
Idem, 3. 123.

454 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

«Estava a formosíssima Maria


pelos paternais paços sublimados,
lindo o gesto, mas fora de alegria,
e os seus olhos em lágrimas banhados.
Os cabelos angélicos trazia
pelos ebúrneos ombros espalhados27»

Nestas figuras da «formosíssima Maria» e da «linda Inês28», de «colo de alabas-


tro29», as notações físicas – que evidenciam a beleza do rosto, os «cabelos angélicos»,
a brancura da pele – estão ao serviço de um retrato moral, que se caracteriza por
uma superior virtude e dignidade.
E se o amor não é a voz prevalecente na epopeia, desenha-se porém com rara
felicidade na lírica de Camões, onde o fulcro polarizador do prazer e da dor é a mu-
lher. Ela tanto é objecto de culto como motivo de desejo ou de culpa. Inspiradora
de amor espiritual ou sensual, a mulher é o ponto de partida e o ponto de chegada
de todo o discurso poético, seja ela um ser carnal ou ideal.
A reelaboração camoniana do amor edificante pela donna angelicata e o opti-
mismo espiritual, que encontramos – por exemplo- em alguns sonetos, têm matriz
stilnuovística, pelas isotopias do retrato físico e moral, pela ênfase por acumulação
e pelo efeito de suspensão contemplativa:

«Um mover d’olhos brando e piedoso,


sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso

um despejo quieto e vergonhoso;


um repouso gravíssimo e modesto;
ua pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso30»

Este retrato - que quase prescinde das convencionais metáforas petrarquistas


- constrói uma figura puramente moral de mulher. Com contornos físicos mais
evidentes, mas ainda e sempre idealizada, a amada é enaltecida num soneto, onde a
alquimia petrarquista é respeitada:
27 
Idem, 3.102.
28 
Idem, 3.120.
Idem, 3.132. É claro que estes dois episódios, no contexto da epopeia, não são simples retratos mas «verdades históri-
29 

cas» embelezadas pelo lirismo. No primeiro episódio, D. Maria, filha de Afonso IV de Portugal e rainha de Castela por
casamento, vem pedir auxílio ao pai na luta contra os mouros. O segundo episódio é a «história», que é mito, dos amores
de D. Pedro por Inês e do trágico assassinato desta, que «Aquele depois de morta (...) fez rainha», (idem, 3.132)
30 
CAMÕES, Luís de, Rimas, (Texto estabelecido e prefaciado por A. J. Costa Pimpão), Coimbra, Atlântida, 1973, p
161.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 455


Maria Luísa de Castro Soares

«Ondados fios de ouro reluzente


que agora da mão bela recolhidos,
agora sobre as rosas estendidos,
fazeis que sua beleza se acrescente
(...)
Honesto riso, que entre a mor fineza
de perlas e corais nasce e parece,
se n’alma em doces ecos não o ouvisse31»

Esta exaltação da beleza da amada pela imaginação culmina, em chave de ouro,


com o desejo de a ver, aqui associado a um certo êxtase contemplativo:

«S’imaginando só tanta beleza


de si, em nova glória, a alma s’ esquece,
que fará quando a vir? Ah! Quem a visse!32 »

A figura de mulher idealizada e o amor a ela dedicado são ainda causadores de


desejo carnal, de dor ou de insatisfação amorosa, ideário camoniano que remonta a
Petrarca, com derivações33 até à corrosão (labilidade, desengano) deste paradigma.
O esquema dual de representação feminina ou amorosa camoniano não dissol-
ve a dialéctica. O amor e o desejo são o eixo em torno do qual gravitam os demais
binómios.34 E porque a dualidade sistemática nunca se encaminha para uma solu-
ção, dessa questão permanentemente inconclusa, nasce a dramática reflexão entre o
real e o ideal. Daqui resulta a insatisfação, a angústia, o pathos amoroso e existencial
próximo do dos poetas modernos35, ainda que vinculado ao ideário quinhentista.
Ao lado da figura idealizada de Laura, Camões retrata, na epopeia e nas Rimas,
a mulher sensual com contornos físicos evidentes, que atrai o olhar e enlouquece de
desejo quem dela se enamora. N’Os Lusíadas, surge representada na figura de diver-
sas ninfas, no episódio da «Ilha dos Amores», quer ainda no retrato de Vénus:

«Os crespos fios de ouro se esparziam

31 
Idem, p 164.
32 
Idem, ibidem.
33 
Por prolongamento, o amor correlaciona-se com o tema da saudade, da insatisfação, com o arquitema da separação
física dos amantes como motivo de dor («Aquela triste e leda madrugada», p 157) ou da separação irreversível pela morte
da amada, que a memória e o canto perpetuam e em relação a quem o eu lírico veicula o desejo de realização transcen-
dente: («Alma minha gentil, que te partiste», p 156; «Ah! Minha Dinamene ! Assi deixaste», p 167; «Quando de minhas
mágoas a comprida», p 166).
34 
Cf. CUNHA, Maria Helena Ribeiro da, cit., maxime, pp 31-38. As dialécticas camonianas decorrentes da temática
do Amor são, segundo a autora: «razão e sentidos, o material e o metafísico, o “vivo e puro amor” e a “baixeza”», p 30.
35 
SARAIVA, António José, cit., p 61

456 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

pelo colo que a neve escurecia;


andando as lácteas tetas lhe tremiam,
com quem Amor brincava, e não se via;
da alva petrina flamas lhe saíam,
onde o minino as alma acendia.
Polas lisa colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre


de quem vergonha é natural reparo;
porém nem tudo esconde nem descobre
o véu, de roxos lírios pouco avaro;
mas pera que o desejo acenda e dobre
lhe põe diante aquele objecto raro36.»

A erótica hedonista, a pansensualidade radiosa e a euforia naturalista presentes


neste retrato feminino também encontra eco na lírica camoniana, na ode XI «Na-
quele tempo brando37» e em sonetos como «Se as penas com que Amor tão mal me
trata38» e «Está-se a Primavera trasladando39».
Na ode XI, o erotismo é levado ao paroxismo, num passo que vai até à sugestão
da fisiologia do desejo masculino, sendo praticamente uma figuração40. O locus
amoenus conjuga-se nesta ode com o canto do desejo. O amor de Peleu por Tétis é
encarado como força poderosa, lei natural da vida, que contribui para a realização
do homem. Este, quando dominado por um tal sentimento, fica «cego e mudo/
contra as forças do Amor, que tudo pode 41.»
Nos sonetos, a euforia naturalista e o apelo à fruição sensual correlacionam-se
com o tema da brevidade da vida:

«Está-se a Primavera trasladando


em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando42.»

Cumulada de todas as bênçãos da natureza, a mulher- identificada à Primavera


e espécie de sobrevivência daquela linha pictural de Boticelli- é um conjunto de flo-
36 
CAMÔES, Luís de, Os Lusíadas, 2. 36 - 37.
37 
CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., p 279.
38 
Idem, p 124.
39 
Idem,p 128.
40 
Idem, p 281.
41 
Idem, p 281.
42 
Idem, p 128.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 457


Maria Luísa de Castro Soares

res e deve dar o fruto ao poeta, no presente, enquanto é bela e jovem, pois a vida é
breve e garantida a velhice. Daí a ameaça do conquistador ou a «mentira» de amor,
o carpe diem, em aliança com o colligo, virgo, rosas:

«Se agora não quereis que quem vos ama


possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos43.»

Ao invés de tomar uma atitude infinitamente reverente em relação à amada, o


poeta neste soneto tenta dialogar com ela. Se a mulher é natural, in natura se deve
fruir dela, pois se é flor que não dá fruto, produzirá espinhos:

«Porque pouco aproveita, linda Dama,


que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos44.»

A comunhão da mulher com a natureza da qual participa e onde o seu vulto


se espraia é, por vezes, envoltura para se exprimir um poeta modelado em noções
filosóficas como a problemática do desejo, a dialéctica do relativo e do absoluto, do
real e do ideal. O achado poético camoniano em «Transforma-se o amador na cousa
amada» de que até «o vivo e puro amor45» ideal e neoplatónico procura realizar-se,
objectivar-se em «forma46» é uma tentativa malograda do sujeito conglomerar em si
as duas faces antagónicas duma mulher:

«Mas esta linda e pura semi deia


Que como o acidente em seu sujeito
Assi c’oa minha alma se conforma47»

A mulher é alma, porque é pura e deusa, mas é também corpo, porque é linda e
semi. A tese admite a antítese. A mulher é, na sua própria definição, a comunhão dos
dois termos: Vénus e Laura. Erigida em tal base definitória, a sua funcionalidade na
relação com o homem é a de envolvê-lo igualmente numa contradição fundamen-
tal. E o paradoxo consiste precisamente em retomar a teoria do «estado incerto»
petrarquista ajustada à sua experiência pessoal povoada de irrealização, engano,
tormento, enfim, desconcerto:

43 
Idem, p 128.
44 
Idem, p 128.
45 
Idem, p.126.
46 
Idem, p.126.
47 
Idem, p.126.

458 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

«Tanto de meu estado me acho incerto,


que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;


da alma um fogo me sai, da vista um rio;48 »

E, a fechar, surge a causa de tais efeitos: «...só porque vos vi, minha Senho-
ra49.»
O desconcerto individual ou psicológico resulta não só da visão de uma figura
de mulher como ainda do entendimento do amor como campo de contradição, tal
como é definido em «Amor é um fogo que arde sem se ver50». Essa abordagem do
enamoramento e suas derivações na análise subjectiva, na visão paradoxal do amor
e na mundividência do eu lírico revelam, sem dúvida, um progressivo afastamento
da vivência do amor como modelo ideal: a expressão dialéctica do mundo que se
sonha e do mundo que se tem51. Na verdade, as concepções optimistas nas Rimas
são o resultado de uma confiança no homem52 em harmonia com o amor, com a
mulher e com a natureza53, que é vector minoritário da lírica camoniana. Além dis-
so, traduzem uma concepção da relação homem - mulher em Camões, sendo que o
homem é sempre o agente e o (in)feliz beneficiário.
Para um poeta que «em várias flamas variamente ardia54», em verdade, pouco
importam as mulheres, que foram muitas; importa a «firmeza» do mesmo Amor, na
diversidade das mulheres amadas:
«Que estas foram várias é - no dizer de António Sérgio- coisa evidente; e tam-
bém evidente, supomos nós que da maior diversidade no sensível (desde a Dama
48 
Idem, p.118.
49 
Idem, p.118.
50 
Idem, p 119. A própria construção do soneto, com base nas figuras da oposição, busca inspiração no referido modelo
de Petrarca. (Itálicos nossos).
51 
A condição agónica do homem, a reflexão inquieta sobre a responsabilização pela desventura existencial e a exaspe-
ração emocional como única resposta começam, de facto, já a desenhar-se em sonetos de feição petrarquista, em que é
perceptível um debate íntimo sobre o erotismo, isto é, um encaminhamento maneirista. Disso são exemplos, o soneto
«Pede o desejo, Dama, que vos veja» (Idem, p 120) e a canção «Fermosa e gentil Dama, quando vejo» (Idem, p 203).
52 
No caso português, basta lembrar os Descobrimentos e uma euforia nacional quase generalizada deles resultante, que
se exprime nos textos dos mais diversos géneros. A confiança de domínio do mundo é vivida por literatos, pelo povo
português em geral e mesmo pelos monarcas. Este ideário é revelador de um optimismo antropológico e duma euforia
naturalista próprios da mundividência renascentista. Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, Dimensão profética e idealis-
mo humano de dois poetas da espiritualidade portuguesa, Vila Real, UTAD, 1999, pp 31-35; 90-93. Sobre a ambiência dos
Descobrimentos e o seu enquadramento sócio-cultural e histórico-literário, cf. Idem, «Vida áulica e ideal do cortesão no
Renascimento e em Damião de Góis», in Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, Publicações da Faculdade
de Filosofia da UCP, (2003), pp 553-564.
53 
Sobre o sentido naturalista do Renascimento português, vide CIDADE, Hernâni, O conceito de poesia como expressão
da cultura. Sua evolução através das literaturas portuguesa e brasileira, Coimbra, Coimbra editora, 1957, pp 89-90.
54 
CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., p 166.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 459


Maria Luísa de Castro Soares

loira que ficou em Lisboa até à pretidão da Bárbara escrava); e que a todas elas
atribui o poeta o mesmo carácter psicológico – o mesmo tom moral- parece-nos
também incontestável55».
A mulher é um mero objecto, ou «quase mais não é do que um pretexto. O que
importa é “sofrer” o amor – a sua insatisfação, o seu desejo56». O amor não depende
da mulher amada, mas revela-se antes como um estado inerente ao sujeito: perma-
nece em questão o homem. Este, enquanto eu lírico, assume mesmo, por vezes, a hi-
pertrofia do eu pela singularidade do seu sofrimento, ao conceber-se como o «mais
desgraçado que jamais se viu57». Do divórcio entre o sujeito lírico e a vida marcada
pelo erro, pela Fatalidade irremediável e pelo amor58, resta-lhe afirmar a sua supe-
rioridade na dor, a sua nobreza perante o sofrimento infligido: «O [tormento] que
para ninguém se consentiu,/ Para mim só mandou que se inventasse59.»
Na epopeia Os Lusíadas, a humildade do eu empírico, que o enquadramento
no estrato social da pequena nobreza não favorece60 («Mas eu que falo, humilde,
baixo e rudo, / De vós não conhecido nem sonhado?61 »), conjuga-se com a superio-
ridade e a missão do homem culto:

«Nem me falta na
vida honesto estudo,
com longa experiência misturado,
nem engenho, que aqui vereis presente,
cousas que juntas se acham raramente62»

55 
SÉRGIO, António, «Questão prévia dum ignorante aos prefaciadores da lírica de Camões» in Ensaios, IV, Lisboa, Sá
da Costa, 1972, p 20.
56 
MATOS, Maria Vitalina Leal de, «Auto-retrato de Camões: a hipertrofia do eu», in Colóquio-Letras, 20, Lisboa,
(1974), p16.
57 
CAMÕES, Rimas, op. cit., p 182. Este verso, que é a chave de ouro do soneto «O dia em que eu nasci moura e pereça»,
surge como como uma dupla justificação dada à «gente temerosa»: a da razão de recusa do dia do seu nascimento e a
do cenário de violência e apocalipse desejado pelo poeta. Sobre as relações paragramáticas intertextuais do soneto com
a Bíblia, cap. III do Livro de Job e enquadramento do poema na apocalíptica, Cf., SOARES, Maria Luísa de Castro,
Dimensão profética e idealismo humano de dois poetas da espiritualidade portuguesa, op. cit. pp 51-52.
58 
Cf., e. g. «Erros meus, má fortuna, amor ardente/ em minha perdição se conjuraram». CAMÕES, Rimas, cit.
59 
Idem, p 163.
60 
FERNANDES, Rogério (op. cit.) faz notar que: «os pequenos nobres, os fidalgos pobres, a camada mais baixa da
fidalguia que, vivendo do desempenho de cargos administrativos e militares (...), já não pertencia verdadeiramente à
classe senhorial se não pela mentalidade e por alguns traços ideológicos». E o mesmo autor salienta que estes estratos
vêem a sua situação «agravada brutalmente», quer pela «alta dos preços e as exacções fiscais», quer pela «corrupção e
desorganização da administração pública, do crescente endividamento externo, das dissipações ostentatórias da alta
nobreza e do carácter parasitário da sua actividade» (p. 382). Sobre a situação económica, social, cultural e ideológica
do tempo de Camões, Vide CASTRO, Armando, Camões e a sociedade do seu tempo, Lisboa, Ed. Caminho, 1980, pp.
42-75; 91-98; 105-108, 116-125.
61 
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10.154.
Idem,10.154 Note-se, nestes versos, a tríade educativa clássica (natura, ars, studium, – natureza (engenho), instrução
62 

(honesto estudo) e exercício (experiência) – que surge, no século XVI, nos diferentes autores. Esta tríade remonta aos
pré-socráticos e conhece grande divulgação entre os sofistas e, sobretudo, a partir deles (vide Platão, Fedro 269 d e
Leis 792 e; Aristóteles, Política 1132 a 39; 1137 a 1; Ética a Nicómaco, 1179 b 20; Retórica,1410b 6-7).

460 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

Sob o fingimento poético, está velada uma «falsa» humildade ou o orgulho do


vate que merece ser «prezado» pelo próprio rei: «Só me falece ser a vós aceito,/ de
quem virtude deve ser prezada63».
Ao propósito camoniano de exaltação e eternização dos feitos portugueses na
epopeia subjaz, na verdade, o sentimento de grandeza nacional, mas também a
confiança na dignidade cívica do poeta. É que, com o Renascimento, o conceito de
lirismo sofre uma mudança relativamente à Idade Média, em que se retomam os
princípios da Antiguidade. À consciência da superioridade do vate – ser egrégio que
transcende o homem comum e a pequenez de si próprio – alia-se o reconhecimento
do valor da poesia, tradutora de uma visão do homem ideal, que cumpre ao poeta
imortalizar pela escrita. Essa ambição de moldar um canto glorificador dos heróis,
que seja motivo de orgulho e estímulo para os vindouros, é geradora de uma con-
cepção de homem português, que é modelo e exemplo do homem universal.
N’ Os Lusíadas, o homem - sob as facetas do poeta, do herói (povo português)
ou do monarca- é o agente, o «assinalado» e a meta do discurso. Da viagem ou evo-
lução na epopeia camoniana sobressai, assim, uma imagem do homem que tende
para a perfeição. O poeta não se dispõe apenas a desenvolver nele as qualidades nos
limites da sua natureza, esforça-se por igualá-lo a Deus. Consciente das doutrinas
do evemerismo, transmutar o herói em Deus constituiria uma verdadeira apoteose,
no sentido etimológico do termo.
É claro que esta elevação do homem na epopeia é exaltação da moral heróica e
tudo se passa no plano mitológico; é Baco64 quem teme a divinização dos «humanos
...atrevidos»65:

«Vistes que, com grandíssima ousadia,


foram já cometer o Céu supremo;
Vistes aquela insana fantasia
de tentarem o mar com vela e remo;
vistes e ainda vemos cada dia
soberbas e insolências tais, que temo
que do Mar e do Céu, em poucos anos,
venham Deuses a ser, e nós humanos66.»

O próprio poeta se defende de uma tal heterodoxia, quando destrói a máquina


mitológica do poema, ao afirmar que os deuses apenas serviram ficcionalmente para

63 
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10.155.
64 
Este deus − a um tempo, representante das forças da Natureza e dos próprios interesses de Venezianos e Mouros, que
os portugueses vão eclipsar − é um oponente à audácia dos heróis e temeroso da sua divinização.
65 
Idem, 6. 28.
66 
Idem, 6. 29.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 461


Maria Luísa de Castro Soares

«fazer versos deleitosos67» e ao dar-lhes um significado cristão. Júpiter, adaptado à


sua crença de entusiasta católico, é a «santa Providência68» e o homem bom, homem
eleito e herói português, é instrumento de Deus. O alargamento da fé e do Impé-
rio, ideal missionário e messiânico cumpre-se, sob a força do Espírito de Deus no
homem:

«Ensina-o a profética ciência


em muitos dos exemplos que apresenta:
os que são bons, guiando, favorecem;
os maus, em quanto podem, nos empecem69»

Todavia o Criador, «o Sumo Deus, que por segundas / causas obra no mundo,
tudo manda70» é inacessível à criatura, «vista cega e mente vil71». Apenas a capacida-
de infinita de Deus pode abranger o Infinito que é Deus72. É, porém, surpreendente
verificar o paradoxo camoniano ou o mistério da incompreensão de Deus a par da
Sua percepção, pois que a Providência a tudo assiste e «tudo manda73»; tudo são
«Obras da mão divina veneranda74».
Transcendência divina, de modo algum significa exterioridade em relação à his-
tória e ao homem português. O herói camoniano não é avassalado pelo espírito de
Deus, mas também não é abandonado unicamente aos seus recursos. Deus solicita
o homem sem o forçar e respeitando a sua liberdade. A expansão da «Fé e do Impé-
rio75» é o dever e a Vontade divina, espécie de obrigação que se apodera do homem
interior, mas sem o coagir ou violentar. Com isto, o espírito de Deus é distinto do
homem, que pelo seu corpo está vinculado à matéria e pela sua alma se ergue ao
Divino, procurando transcender a sua zoologia, conforme o enunciado pelo credo
67 
Idem, 10.82: «Aqui, só verdadeiros, gloriosos/Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,/ Júpiter e Juno, fomos fabulosos/
fingidos de mortal e algo engano./ Só para fazer versos deleitosos/Servimos (...)» (Itálicos nossos). Note-se, porém, que o
mito não é «jogo puro, senão figuração transcendente do real» (Cf. CIDADE, Hernâni, «O Significado e o Valor Es-
tético d’Os Lusíadas», in: «Prefácio» a Os Lusíadas, op. cit., p. XLV). António José SARAIVA, com idêntica ideologia,
afirma que «Camões não via na mitologia uma mera alegoria, mas a manifestação de uma verdade profunda». E ao
interrogar-se «sobre o grau e a qualidade da crença que Camões conferia» ao espírito cavaleiresco que glorifica no seu
poema, conclui: «O espírito cavaleiresco é, pois, para Camões, a ideologia louca, a ideologia crida como crença, mas não
como verdade» (Cf. SARAIVA, António José, «Os Lusíadas, o Quixote e o problema da ideologia oca» in Vértice, Junho
de 1961. Reproduzido in: Para a História da Cultura em Portugal, vol. II, Porto, Publicações Europa-América, 1972, p.
178 e p. 183, respectivamente).
68 
Júpiter representa o próprio Deus de católicos: «Por espíritos mil que têm prudência,/governa o mundo todo que
sustenta» Cf. CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10. 83.
69 
Idem, 10. 83.
70 
Idem, 10. 85.
71 
Idem, 10. 81.
Cf. as explicações à estrofe 81 (canto 10) feitas por CIDADE, Hernâni (Os Lusíadas, ed. cit., p. 225), as quais consi-
72 

deramos de superior valia.


73 
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10. 85.
74 
Idem, 10. 85.
75 
Idem, 1. 2.

462 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

religioso camoniano e no manifesto do humanismo, Oratio de hominis dignitate, de


Pico della Mirandola:

«Se temos liberdade de fazer a nossa própria escolha, só há um objectivo dig-


no de nós. Desprezemos o que é mundano, como muitos nos disseram que
fizéssemos. Procuremos o que é celestial e transcende o mundo e em nada
sejamos inferiores aos anjos. Matando tudo o que é físico, alcançaremos a
pura espiritualidade e encontraremos o repouso e a paz celestiais, talvez até
enquanto continuamos a viver aqui na terra76».

Eco da palavra de S. Paulo, o homem camoniano é igualmente o âmago da cria-


ção e o seu senhor; tudo lhe foi confiado: «tudo é vosso: o mundo, a vida, a morte,
o presente e o futuro, tudo é vosso e vós de Cristo77». Do ponto de vista material,
plantas, animais o domínio dos elementos, tudo a ele está sujeito. Do ponto de vista
espiritual, é igualmente senhor da sua pessoa, da sua vida, dos seus erros e das suas
virtudes:

«As obras, que são boas, e o desvio,


está nas mãos dos homens cometê-las
Mas nas de Deus está o sucesso delas78»

Em plena liberdade de acção, dotado de livre arbítrio, tudo aponta no sentido


do optimismo antropológico, quando nos referimos à epopeia. Porém, na lírica,
o homem que se desenha encontra-se na insegurança do universo vulnerável ma-
neirista, em busca de porto seguro, que só Deus pode oferecer. A autonomia sem
reservas do homem em todas as suas acções, condu-lo à vivência do drama de uma
consciência pessoal, porque o Espírito de Deus a tudo assiste, mas nem sempre in-
tervém79. Daí a necessidade da crença no Ser Necessário: «mas o milhor de tudo é
crer em Cristo80»
O homem camoniano é antitético: por um lado, desenha-se na epopeia segun-
do a linha da Antiguidade pagã ou mitológica da divinização do herói; por outro,
figura na lírica segundo a linha cristã como homo viator, cuja evolução se exprime
na tendência do corpo para a alma e no almejo da felicidade que se visiona na posse
mística de Deus81. Ainda e sempre, é bem perceptível, na épica e na lírica, uma ima-

MIRANDOLA, Pico della, Oratio de hominis dignitate,(Discurso sobre a dignidade do homem - Trad. parcial), in
76 

DRESDEN, Sem, O Humanismo no Renascimento, Porto, ed. Inova, s/d., p 15.


77 
I Ep. aos Coríntios, III, 22.
78 
CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., p. 294.
Sobre o Deus absconditus. Cf. «Correm turvas as águas deste rio». CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., p. 168: «Tem o
79 

tempo sua ordem, já sabida;/ O mundo, não; mas ainda tão confuso,/ que parece que dele Deus se esquece».
80 
Idem, p. 199.
81 
Na linha de Santo Agostinho (que retoma a «teoria das Ideias» platónica, ajustando-a à filosofia cristã), Camões reto-

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 463


Maria Luísa de Castro Soares

gem do homem como um ser perpetuamente visitado por um desejo de plenitude.


A equação equilibrada entre o corpo e a alma que é o homem delineado pelo Re-
nascimento, conforme à epopeia, tende na lírica camoniana a reduzir-se ao segundo
termo. O equilíbrio estático corpo-alma tende ao desequilíbrio ou movimento82 do
corpo para a alma. Sonho acalentado em «Sôbolos rios que vão», amplia-se até à
ideia de realização definitiva na posse do céu, novo equilíbrio, além do tempo e do
espaço.
No poema considerado como suma da lírica camoniana83, o eu lírico renuncia
ao canto profano do passado. Inicia, assim, um processo de superação metafísico-
religiosa que passa pela dissociação de valores, pela palinódia, pelo combate cristão
e auxílio da Graça até à exaltação do canto ao divino e à antevisão da plenitude
escatológica celestial:

«Ó tu, divino aposento,


Minha pátria singular!
Se só com te imaginar
Tanto sobe o entendimento,
Que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir


Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente
Que, depois de a ti subir
Lá descanse eternamente84.»

A ideia homem como ser superior que abarca o mundo e constrói a história, de-
fendida por Camões épico, transmuta, no lírico, para a noção de homem como o ser
que dialecticamente se faz e se revela apenas no além-de-si ou totalidade realizada,
sob a forma de Transcendência.
Na epopeia, congrega-se no homem o progresso contínuo e a sua realização
definitiva. Na dinâmica textual, surge uma visão do homem que se transforma, em

ma a doutrina da iluminação agostiniana. Para Santo Agostinho as ideias existem em Deus, de onde o homem as colhe
por uma espécie de iluminação, a que Camões chamou «graça» divina («Sôbolos rios»). O que importa salientar é que a
via do ascetismo platónico se orientou para a via da corrente mística agostiniana. Segundo esta, o crente pode entrar em
comunhão com Deus, pela vida contemplativa e pelo êxtase.
82 
A quebra do equilíbrio, a expressão do movimento encontra-se, aliás, em outras formas de arte, nomeadamente, a
escultórica.
83 
Da importância do poema nos dão conta as considerações da crítica. Cf. O modelo de tripartição das redondilhas
«Sôbolos rios que vão», proposto por JÚNIOR, A. Salgado («Camões e “Sôbolos rios”. Ensaio de interpretação destas
redondilhas», in Labor, Sep. do vol. X, Aveiro, 1935, pp 1-68) ; as interpretações posteriores do poema; as limitações das
leituras temporais e políticas da simbologia de «Sôbolos rios»; os modelos de bipartição e a versão do poema no Cancio-
neiro de Cristóvão Borges e, por fim, a nova tripartição das redondilhas, no quadro de uma «estética arquitectónica». Cf.
MATOS, Maria Vitalina Leal de, Introdução à poesia de Luís de Camões, Lisboa, ICALP,1980, pp 81-95, maxime, p 85.
84 
CAMÕES, Rimas, cit, p114.

464 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

virtude das vicissitudes que enfrenta; progride através de uma gesta de realização
universal de valores sobre-humanos. A epopeia de Camões, cujo propósito é o de
cantar «o peito ilustre lusitano» vem defender a ideia de que os Portugueses foram
feitos para dominar. Mais do que um povo feito de homens reais, é do Ser ideal que
o poeta fala: é daquilo que o poeta gostaria que o homem fosse85.
A saudade de Deus que caracteriza o sujeito de «Babel e Sião», nas Rimas, tem
como contrapólo o herói activo e empreendedor d’ Os Lusíadas. Este define-se pelo
dinamismo, pela consciência de que tudo está sujeito a uma evolução, a uma força
propulsiva cujo climax é, a nível textual, o episódio da Ilha dos Amores, prémio para
os nautas, estímulo para os heróis, promessa de eternização e espaço de humani-
dade futurante, porquanto constitui profecia de advento de um homem português
ideal86.
Tentar conciliar o providencialismo histórico com o evemerismo do homem
divinizado: eis o ideal camoniano do homem, na epopeia. Um tal paradoxo é po-
rém, resolvido no teísmo − através dos conceitos de ficção e realidade, ou melhor, de
falsidade dos deuses mitológicos ao serviço de uma Verdade: a fé.
No que à mulher diz respeito, a dualidade alma/ corpo (ideal/ sensual) per-
petua-se sempre, uma vez que o poeta preconiza o seu existir simultaneamente e
de modo duplo. Trata-se, afinal, de duas faces duma mesma e complexa realidade
humana.
Uma vez abordadas as antinomias inerentes à mulher e ao homem encarados
individualmente, retomamos no nosso discurso a questão de saber o grau de opo-
sição e de identidade entre ambos os sexos que já começa a ficar delineada. Existe
uma diferença efectiva entre a mulher e o homem na obra de Camões. Encarada
dentro dos moldes da mística feminina ancestral, a primeira é sempre visionada, de
acordo com a sua relação com o homem, a quem cabe a responsabilidade e a acção.
Porém, o homem não é apenas o principal foco de interesse do nosso autor, mas de
85 
Camões, como ninguém, soube ver os sinais iniludíveis da decadência na metrópole como na Índia, reconhecer os
sintomas da desagregação do país causada pelas incompetência, ambição, adulação de funcionários, capitães e gover-
nadores capazes de negarem o rei, a pátria e o próprio Deus. Vários autores se debruçaram sobre as críticas tecidas por
Camões às classes detentoras do poder n´Os Lusíadas. E são unânimes em considerar que elas visam, além do rei, as
classes privilegiadas, desde religiosos à alta nobreza ostentatória. As críticas tecidas por Camões aos Portugueses, no-
meadamente às classes privilegiadas detentoras do poder, são múltiplas. Sobre aquelas dirigidas ao rei, seus ministros
e favoritos, vide: SÉRGIO, António, Em torno das ideias políticas... cit., pp. 31-46; FERNANDES, Rogério (op. cit.).
Críticas ao monarca (p. 388), à classe senhorial ou nobre (pp. 385-386 e 394); aos homens de religião (387 e 389); VE-
LOZO, Francisco José, «Um soneto de Camões contra D. João III», Garcia de Orta, 1972, p. 25. Sobre as ideias políticas
na obra de Camões, e contendo uma perspectivação do poeta sobre os vários estratos sociais, também são inúmeros os
estudos. Entre eles, lembramos SÉRGIO, António, Em torno das ideias políticas de Camões. Seguido de Camões panfletá-
rio [Camões e Dom Sebastião], Lisboa, 1977; ALBUQUERQUE, Martim de, A expressão do poder em Luís de Camões,
Lisboa, 1988; CALMON, Pedro, O Estado e o Direito n’Os Lusíadas, Lisboa-Rio de Janeiro, Dois Mundos, 1945; BEAU,
Eduard Albin, «A realeza na poesia medieval e renascentista portuguesa», Boletim de Filologia, XV (1954-1955), 306 e
sqq.; XVI (1957), 176 e sqq.; XVII (1965), 72 e sqq.; LÁFER, Celso, «O problema dos valores n’Os Lusíadas. Subsídios
para o estudo da cultura portuguesa do séc. XVI», Revista Camoniana, S. Paulo, 2, 1965, p. 72 e sqq.; RIBEIRO, José
Silvestre, Estudo moral e político sobre Os Lusíadas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853.
86 
Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, Camões e Pascoaes. Dimensão profética e idealismo humano de dois poetas da
espiritualidade portuguesa, cit., pp 207-217.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 465


Maria Luísa de Castro Soares

todo o pensamento desde Bíblia. No livro por excelência do profetismo, como na


obra de Camões, é o homem na sua relação com o mundo, com a mulher e com
Deus o centro da perspectiva. É unicamente em função do homem que se define a
natureza, os valores e a sociedade. O Evangelho de Cristo e o evangelho dos mares87
são, no seu conjunto, um apelo à grandeza e ao heroísmo88, na repugnância pela me-
diocridade, seja ela de origem feminina ou masculina. Essa mesma ideia é defendida
em «Carta de Luiz (de) Camões a um seu amigo89», quando, ao referir-se à falsidade
do ambiente citadino, declara que os homens

«Na paz mostram coração,


na guerra mostram as costas,
porque aqui torce a porca o rabo90.»

E dá um exemplo de mulher oportunista, «em comparação [da qual] (...) creou


Nosso Senhor o camaleão na arte de qualquer logar onde o põem91».
Com uma nota nacionalista inegável, o homem camoniano, sendo português, é
também mulher ou um modelo que comunga do homem total, com os seus temores
e esperanças, angústias e alegrias, hesitações e certezas.
Homo sum; Humani nihil a me alienum puto92, dizia Terêncio no seu programa
de desenvolvimento integral do homem, num tempo de visão geocêntrica.
Ideal retomado por Camões é, porém, do ponto de vista do homem, isto é, de
modo mais profundamente humano que encara aquela divisa. Assim, na demanda
de uma mesma finalidade, são múltiplas as formas e os meios de a alcançar. Aquele
optimismo antropológico da Antiguidade Clássica − retomado pelo Renascimento
− em Camões, dá provas de menor segurança. É nele um humanismo que confere
ao homem dignidade superior e superior miséria. É um humanismo mais verdadei-
ramente humano. É a defesa do homem que, explorando a natureza e aumentando
o seu valor, sabe ultrapassar o interesse imediato, na atracção profunda pela heroi-
cidade. Trata-se do homem em acção; agente e actor, vivendo os conflitos da sua
situação epocal, a fim de encontrar a supra-humana harmonia.
A euforia naturalista da epopeia, onde se afirma a evidência do real, a sabedo-
ria do experimentado, a apologia do «peito ilustre lusitano» não se alheia de uma

Assim considera Pascoaes a epopeia d’Os Lusíadas, quando afirma acerca «do Poema, que é o próprio mar feito verbo.»
87 

Cf. PASCOAES, Teixeira de, Os Poetas Lusíadas, Lisboa Assírio & Alvim, 1987, p. 82.
88 
Cf. o conceito de «moral heróica» de ALBUQUERQUE, Martim de, «O Valor Politológico do Sebastianismo», in: op.
cit., p. 291. E ainda a sua tese acerca do «antimaquiavelismo» peninsular que o crítico caracteriza pelo «proceder fidalgo»
contrastante com o «actuar maquiavélico»: «À moral utilitária − diz-nos − (...) contrapõe-se a acção fidalga, baseada na
virtude e na acção esforçada, não no resultado e no êxito» (Idem, ibidem, p. 269).
89 
Citamos a Carta, depois de posta «em leitura nova e correntia» (p. 23) pelo seu comentador Xavier da Cunha.
90 
Idem, ibidem, p. 27.
91 
Idem, ibidem, p.24.
Verso de Terêncio, O homem que se puniu a si mesmo, I, 1, 25. (Trad.: «Sou homem e penso que nada do que é humano
92 

me é estranho».

466 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

oposição genérica de Camões à ambição e à vileza que se reconhecem93. Permane-


ce, porém, no épico, a elevada estima pela natureza humana, aliada à ambição de
realizá-la no tipo ideal. É esse o sentido da viagem para a «Ilha dos Amores» camo-
niana; é essa a ultrapassagem do inseguro e «fraco humano», do «bicho da terra tão
pequeno94». É ainda a fé no homem a radicação da ideia de «supra-humanidade»,
contida na profecia da «progénie forte e bela», resultante da união dos nautas com
as ninfas na ilha deleitosa.
A radição nacionalista e lusocêntrica já anterior a Camões95, com ele, na «Ilha
dos Amores», angaria o estatuto de profecia humanista: é o homem português que,
na serena posse e usufruto da sua natureza, na perfeita exploração das suas quali-
dades, devassa o mistério e alcança a felicidade suprema, não exterior a si, mas em
si próprio como deo-humanidade. Este sonho do homem, que se equaciona em
termos de peregrinação vital, é a arte de cumprir a vida. Esta culmina − chegado
o herói português ao termo da viagem − na elevação a uma condição superior, em
obediência a si próprio, à vontade divina e unido amorosamente à mulher. A «Ilha
dos Amores» constitui, de facto, o prémio do herói, a perfeita comunhão entre os
marinheiros e as divindades96, a ascese dos portugueses ao plano dos deuses. Nela,
Vasco da Gama, pela mão de Tétis, poderá colocar-se no lugar de Deus e contem-
plar a sua obra97.
Entre o homem na lírica e na epopeia, além da diversidade, há uma verdadeira
identidade. Ambos partem da realidade para a Transcendência, ambos devassam o
mistério da vida, ambos ultrapassam os «vedados términos98» do mundo material,
sejam eles o Adamastor da epopeia ou o desconcerto psicológico, social ou ontoló-
gico, muito além do confessionalismo lírico.
A mulher (ou o Amor) é complemento do homem; motivo de culpa, objecto de
culto. Ponto de partida para as congeminações do poeta, pouco importa que seja a
amada loura que deixou em Lisboa, a mulher chinesa, Bárbara escrava ou as figuras
ficcionais das ninfas e de Vénus. O que importa é que a mulher é o ser em torno do
qual se engendra todo o sentir do eu poético: a saudade, a insatisfação, a dor pela
separação física e irreversível pela morte da amada 99 ou ainda, na epopeia, a paixão
93 
Cf. SOARES, Maria Luísa de Castro, Dimensão profética e idealismo humano de dois poetas da espiritualidade portu-
guesa, op. cit. pp 139-146.
94 
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 1.105-106.
Cf., respectivamente, a lição profética e nacionalista de Bandarra e do cronista Fernão Lopes, cuja escrita, preten-
95 

samente histórica, é tendenciosamente nacional e lusocêntrica. Vide, e.g.: Crónica de D. João I (Textos Escolhidos,
Editorial Verbo, Lisboa, 1971, p. 31 e sqq.).
96 
CAMÕES, Os Lusíadas, 10. 2-5.
97 
Idem, 10. 76-141. A subida ao monte que Tétis convida Gama a fazer pode relacionar-se com o percurso ascético, fun-
damental para se atingir o estado de heroicidade. Recorde-se que a montanha goza do simbolismo da transcendência:
“...ela é alta, vertical, elevada, próxima do céu, [...] o encontro do céu e da terra, morada dos deuses e termo da ascensão
humana” Dicionário de Símbolos.
98 
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 5. 41.
Cf., CAMÕES, Luís de, Rimas, op. cit., «Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste» (p.167); «Alma minha gentil, que te
99 

partiste» (p. 156); «Quando de minhas mágoas a comprida» (p. 166).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 467


Maria Luísa de Castro Soares

infeliz ou triunfante100. Além disso - e na época de Camões estamos muito longe


da igualdade de direitos e de oportunidades – a dignificação feminina radicada em
Cristo e o culto Mariano cristãos introduzem uma nota positiva na imagem da mu-
lher que se reflecte em Camões e que faltava aos seus longínquos modelos de imita-
ção da Antiguidade. Do culto feminino nos falam muitos dos versos camonianos,
sobretudo aqueles de teor neo-platónico, em que o amor é iniciação e ascese. Disso
é exemplo a ode «Pode um desejo imenso101», em que a mulher surge como imagem
ou reflexo da «divina formosura»:

«vêm logo a graça pura


a luz alta e serena
que é raio da divina formosura102.»

Ou as redondilhas «Sôbolos rios», onde o neo-platonismo amoroso se conjuga


com o cristianismo, na linha de Santo Agostinho. A mulher é ideal, inteligível e
meio de ascese para o sujeito que dela se enamora:

«E aquela humana figura,


que cá me pôde alterar,
não é quem se há-de buscar:
é raio de Fermosura,
que só se deve de amar103»

À mulher, em literatura104, especificamente na obra de Camões, não lhe carece


nada de ser deusa, mas no plano legal e social a marcha é lenta. Se é verdade que,
em Portugal, a promoção da cultura, a sua laicização e o acesso dela à mulher se
vem anunciando105, ao longo do século XVI, ainda estamos longe da igualdade
de direitos e de oportunidades. O ensino - outrora dependente do clero - com D.
João III passa a ser laico e administrado por um funcionário do rei, o que introduz
modificações sociais profundas, no que respeita ao seu acesso e aos seus destinatá-
rios106. Quanto à mulher, deixa de ser simples objecto de vassalagem e passa a ser
100 
Referimo-nos aos episódios de Inês de Castro e da Ilha dos Amores, respectivamente.
101 
Camões, Rimas, cit., pp. 269-271.
102 
Idem, p 270.
103 
Idem, p 110.
104 
Sobre as imagens da mulher (o corpo, a aparência, a sexualidade) no discurso literário e a sua envolvência social e
política, cf. História das Mulheres (sob a direcção de DUBY, Georges, PERROT, Michelle, 6 vols.) Do Renascimento à
Idade Moderna, vol. 3, (sob a direcção de DAVIS, Natalie Zemon, FARGE, Arlette), Lisboa, ed. Afrontamento, 1994;
GUILLERM, J.- P. , GUILLERM, Luce, HORDOIR, Laurence, PIÉJUS, Marie-Françoise, Le Miroir des Femmes.
Moralistes et polémistes au XVI siècle, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1983.
105 
Estes factores são notórios desde os reinados de D. João II, de D. Manuel e ampliam-se com D. João III.
106 
D. João III é notável como mecenas e grande patrocinador da cultura humanista em Portugal. Com ele, foi muito
intenso o movimento de escolares portugueses no estrangeiro, que frequentavam como bolseiros do rei as Universidades

468 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

agente de cultura. Lembramos a corte de D. Maria e suas aias, de que é exemplo


a poliglota, humanista e escritora Luísa Sigeia107 ou a figura de Paula Vicente...
Mas são excepções, que confirmam a regra. Na verdade, há ainda um fosso entre
as elites e o povo, entre a mulher e o seu companheiro masculino108. Este, sedento
e apaixonado pelas ciências e pelo conhecimento, instruído, viajante ou mareante
até aos confins de um mundo – cujos limites se ampliam a cada momento – é pere-
grino da Antiguidade Clássica redescoberta e exegeta de uma cultura universal que
valoriza a humanitas, cada vez mais dependente do saber adquirido pelo «honesto
estudo109», de que nos fala Camões. Esta dignitas hominis - inspirada em Cícero, e
que pode entender-se como aquilo que define o homem e o liga solidariamente aos
seus semelhantes e pela busca de retorno à paideia helenística – imprime o culto do
individualismo, o qual chega a suplantar a própria paixão intersexual110 .
Excluída das viagens das descobertas e das explorações, a mulher é também
genericamente excluída da escolarização. A educação não é só privilégio social, mas
masculino, uma vez que a maioria da população feminina a ela não tem acesso,
mesmo nas classes dominantes. Desprovida de todos os direitos face à própria lei,
resta à mulher a beleza, eternizada pela pena dos poetas.
De Itália, chegam-nos as artes plásticas, a pintura, a escultura, a arquitectura, a
literatura e, através delas, o culto da beleza feminina. Numa imitação clara de ideais
que floresciam em Itália, havia já dois séculos (Petrarca terá sido o primeiro huma-
nista – século XIV), em Portugal, expandem-se na tela, na pedra e, sobretudo, pela
escrita, rostos e corpos femininos. Sob a forma de ninfa no banho, de «Vénus» ou
de «Laura» - conforme os retratos são mais ou menos idolatria do corpo feminino
- apresentada sob a forma de divindade mitológica ou como imagem da donna an-
gelicata virginal, criatura delineada física e moralmente, a mulher perde o carácter
humano. Pela perfeição dos seus traços, o ser retratado revela também da parte do
artista uma certa intransigência estética, um elitismo na adoração. Codificada nos
poemas de todos os autores do século XVI, é ainda uma mulher sem infância, sem
velhice, sem defeitos, sem inteligência, sem consciência: o eterno feminino. Para

de Florença, Salamanca, Oxford, Lovaina e Paris. A esta convivência internacional veio juntar-se o convite à leccio-
nação, em Portugal, de mestres estrangeiros e medidas culturais como a reforma das Universidades e a fundação do
Colégio das Artes.
107 
Salientamos a obra da escritora, em latim, SIGEIA, Luísa, Colloquium habitum apud Villam inter Flaminiam Ro-
amanam, et Blesillam Senesem, (...) Ulissiponae, ano Salutis MDLII (trad. francesa de SAUVAGE, Odette, Dialogue de
Deux jeunes filles. Sur la vie de Cour et la vie de retraite, Paris, Presses Universitaires de France, Fondation Calouste
Gulbenkian, 1970). A acção da obra passa-se em três dias e consiste num diálogo entre duas personagens femininas,
sendo que uma delas defende a vida rústica e a outra a vida de corte. No seu debate, muito é dito sobre as qualidades e
defeitos que caracterizam os príncipes, os cortesãos, as mulheres na corte, em particular, e a mundividência do séc. XVI
português, em geral. Cf. pp. 82 e sqq.
108 
Cf. SARDE, Michelle, «Le temps de la chair : Renaissance… pour les hommes seulement», in Regard sur les Fran-
çaises, Paris, 1989, pp 318-346.
109 
CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, 10. 154. Sobre a cultura e a educação, cf. GARIN, Eugenio, L’Éducation de l’ homme
moderne, 1400 –1600, trad. Francesa, Paris, 1968, pp 89 e sqq.
110 
Cf. SARDE, Michelle, «Le temps de la chair : Renaissance… pour les hommes seulement», in op. cit., p 318.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 469


Maria Luísa de Castro Soares

superar todas estas carências não faltam, porém, as palavras elogiosas a defini-la:
a graça, a doçura, «aquele não sei quê/ que espira não sei como»111 e toda uma
terminologia epocal, que Camões segue mas não servilmente. De infracções aos
cânones petrarquistas vigentes dão-nos conta as endechas a Bárbara escrava, onde
são elogiados não os cabelos louros, nem os olhos claros, nem a tez nívea, mas uma
beleza invulgar:

«Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde a opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor112.»

O eu lírico sabe, porém, que o privilégio da beleza – o único, na época, conce-


dido à mulher – se revela bem frágil e condenado a desaparecer:

«E se o tempo, que tudo desbarata,


secar as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando a linda cor das tranças belas
mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado


o pensamento e a aspereza vossa,
quando não sirva já sua mudança113»

Do privilégio que é a beleza, a mulher jovem nutre a sua aspiração à felicidade


e à harmonia. Quando toma consciência da efemeridade desse privilégio, é dema-
siado tarde, pois a sua velhice é associada à degradação. A vingança pela não corres-
pondência, o poeta encontrá-la-á no terror da amada em declinar:

«Suspirareis então pelo passado,


em tempo quando executar-se possa
em vosso arrepender minha vingança114»

111 
CAMÕES, Luis de, Rimas, op. cit., p 271.
112 
Idem, p 89.
113 
Idem, p 124.
114 
Idem, ibidem.

470 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Da Antiguidade ao Renascimento

O Renascimento, que leva ao apogeu o culto da juventude e da beleza femini-


na, igualmente se revela intolerante com o seu contrapolo (a velhice, a degradação),
excluído de todas as formas de arte clássica.
E porque a beleza é fugaz, pois o tempo a faz naufragar, o século XVI não é
um século de ouro para a mulher, mas de derrota: derrota face à beleza das deusas
petrificadas ou eternizadas em verso; derrota face ao homem, porque a ciência, a
medicina, enfim, o conhecimento lhe escapa.
Dominada pela autoridade parental em solteira e pela autoridade marital no
casamento, depois de passada a beleza, deverá declinar no não ser. Com o envelhe-
cimento, terá que passar da adoração frágil ao desprezo total, restando-lhe apenas o
amor, essa força poderosa e lei natural da vida humana que contribui para a realiza-
ção e unificação de homem e mulher:
«Que a tudo Amor obriga, e vence tudo115»

115 
Idem, p 280.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 471


Otium e Negotium no quinhentismo português
Nair Castro Soares
U. Coimbra
ncastrosoares@gmail.com

O ra et labora ditara, no século VI, a Regra de S. Bento, patrono da Europa


— outra forma de exprimir, em termos cristãos, os conceitos herdados da
Antiguidade.
Esta Regra, que conheceu tão grande difusão no Império carolíngio, e é seguida
por Beneditinos, Cistercienses, Camáldulos e outras congregações modernas, foi
traduzida no século XIV, em Alcobaça, e por Frei João Álvares, capelão, secretário
e biógrafo de D. Fernando, o Infante Santo.
Através desta tradução da Regra de S. Bento e de uma série de escritos ascéticos,
entre eles o livro I da Imitação de Cristo de Thomas Kempis, ainda vivo, que Frei
João Álvares enviou aos monges de Paços de Sousa, esteve Portugal em contacto
com o lema beneditino e com a espiritualidade da devotio moderna que viria a ins-
pirar mais directamente a obra de Erasmo, “o educador da Europa”1.
Para apreendermos o verdadeiro significado do ideal de vida, do otium et ne-
gotium no Renascimento, é indispensável considerar, primeiramente, a fundamen-
tação teórica, filosófica, jurídica, política e social, a mundividência que serve de
suporte à concepção do homem desta época e a maneira de a traduzir, sem deixar
de ter em conta a realidade circunstancial portuguesa e a sua especificidade.
Os alvores da Idade moderna trazem consigo novas perspectivas culturais: o
espírito cívico e o ideal educativo renascentistas.
A Idade Média não tinha conhecido a República de Platão: o pensamento do
filósofo era divulgado apenas através de Compendia. A descoberta da Política de
Aristóteles dá-se no séc. XIII. A obra de Diógenes Laércio, que ilustra todas as esco-
las filosóficas antigas, é encontrada nos primeiros anos de Quatrocentos2.
Os humanistas do primeiro Renascimento abandonam o Aristóteles lógico e
físico, símbolo da barbárie estilística medieval3, e procuram na filosofia uma fina-
lidade profundamente humana e um conteúdo mais vasto, que abarcasse motivos
político-morais e os problemas da vida concreta da sociedade do tempo. Este dis-
tanciamento do formalismo escolástico coincide com a reabilitação do neoplatonis-
mo. É sem dúvida através do platonismo, configurado com o cristianismo, a ética
aristotélica, ou mesmo com a tradição hermética e cabalística que os conceitos do

1 
J. - C. margolin, Érasme précepteur de l’Europe, Paris, 1995.
2 
Sobre a vulgarização desta obra em Portugal, vide JOAQUIM DE CARVALHO, Estudos sobre a cultura portuguesa do
séc. XV. I, Coimbra, 1949, pp. 17-18.
3 
Petrarca, o primeiro humanista, principalmente no De sui ipsius et multorum ignorantia (1367), exprime a sua aversão
ao formalismo escolástico dominado por Aristóteles e Averróis e invoca o pensamento de Platão, Cícero e Santo Agos-
tinho.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 473


Nair Castro Soares

saber medieval vão ser alvo de renovação.


No que se refere ao humanismo cívico, aspecto que nos interessa aqui pôr em
relevo, não pode deixar de ser referida a influência do platonismo em personalida-
des como Petrarca, pioneiro do movimento humanista, ou Pier Paolo Vergerio. Este
autor, no início de Quatrocentos entrega-se ao estudo de Platão, com intuitos ético-
pedagógicos4. Marsílio Ficino traduz a obra de Platão.
Concede-se então o maior relevo ao pensamento moral e político do Estagiris-
ta, conciliado com a doutrina platónica, contida especialmente na República e nas
Leis.
Os dois mestres da Antiguidade — em torno dos quais se gerou a polémi-
ca da sua superioridade relativa5 — vão ser lidos no original e compreendidos na
profunda substância do seu pensamento: Leonardo Bruni Aretino traduz a Ética,
a Política e o Económico de Aristóteles. Sucedem-se os comentários à obra do Es-
tagirita, de primordial importância na difusão do seu pensamento político-moral,
desde o Quattrocento italiano ao Quinhentismo Europeu, por parte de humanistas
como Francesco Filelfo, Donaldo Acciaioli, Ermolao Barbaro, Francesco Piccolo-
mini, Alessandro Piccolomini, Jacques Lefèvre d’Étaples, Melanchton, John Case,
Sebastian Fox Morcillo6.
O interesse que o direito romano suscitava na Europa, a partir da primeira
metade do séc. XII, de que foram intérpretes os primeiros humanistas, foi um dos
aspectos essenciais na evolução do processo histórico. A Idade Média aparecia con-
cretizada aos olhos da Renascença como época que vivera o direito romano justi-
nianeu, na sua interpretação lentamente destilada por glosadores e comentadores.
Caberá aos humanistas iniciar a restitutio do Corpus Iuris 7.
A communis opinio, que se impunha aos juristas medievais como critério de ver-
dade, é substituída pela perícia interpretativa dos humanistas, com base no conhe-
cimento das bonae litterae e no uso da ciência dialéctica. Em Itália, Lorenzo Valla,
e a seguir Policiano, são os primeiros a aplicar o método filológico na interpretação
do direito justinianeu, cheio de incoerências e aspectos nebulosos. Não é de admi-
rar por isso, como observa Walter Ullmann, que praticamente todos os primeiros

4 
Vide E. GARIN, “Ricerche sulle traduzioni di Platone nella prima metà del XV secolo”, Medioevo e Rinascimento
Studi in onore di B. Nardi. Firenze, 1955, p. 339-374, maxime, p. 345-346; IDEM, Storia della filosofia italiana, I, II
parte, caps. II e III, Torino, 1966.
5 
A violenta disputa que, em meados do século XV envolveu vários humanistas, entre eles Giorgio Gemisto Pletone e
Giorgio de Trebisonda, encontrou vitalidade ainda no séc. XVI, aquando da polémica que opôs Pierre de la Ramée, no
seu ataque aos esquemas da lógica aristotélica, ao famoso jurista português António de Gouveia (Cf. deste autor o seu
Pro Aristotele responsio adversus Petri Rami calumnias Paris, 1545).
6 
Vide P. O. KRISTELLER, “The moral thought of Renaissance humanism”, Chapters in Western civilization, I, Co-
lumbia, 31961, p. 302 e 308-309.
7 
WALTER ULLMANN, Radici del Rinascimento (tra. ital.), Roma-Bari, 1980, p. 31-35; 52-72; 136-137; 208-209;
222-225; FRANCESCO COLASSO, ‘Umanesimo giuridico’, Umanesimo e Scienza politica (Atti del Congresso In-
ternazionale di Studi Umanistici, Roma-Firenze, 1949), a cura di Enrico Castelli, Milano, 1951, p. 57-58; NUNO J.
ESPINOSA GOMES DA SILVA, Humanismo e direito em Portugal no séc. XVI. Lisboa, 1964, p. 31 e sqq.

474 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

humanistas fossem juristas8.


Foi o direito romano um dos primeiros factores a favorecer a secularização, de
par com o bartolismo, o aristotelismo político, o laicismo que implicaram a evolu-
ção do conceito de Estado e da função dos governantes, reis ou homens notáveis na
condução dos destinos dos povos.
A concepção teocrática do homem medieval vai progressivamente dar lugar ao
modelo “umanizzato”, em que é de sobremaneira valorizada a preparação intelec-
tual, a formação humanística, de acordo com a lição e os paradigmas do mundo
antigo.
O debate sobre a “vita solitaria” e a “vita civile”, sobre a vida contemplativa e a
vida activa surge desde o Primeiro Humanismo Italiano — desde Francesco Petrar-
ca a Coluccio Salutati, de Leon Battista Alberti a Cristoforo Landino.
Petrarca (Familiares, III, 12) ilustra a discussão sobre este tema, com a exegese,
ao modo agostiniano, da passagem evangélica sobre Marta e Maria (Luc. 10, 38-
40).
O neoplatonismo florentino recorre ao mito de Jano e à bifrontalidade das al-
mas com dois rostos, um que se volta para o céu e outro para a terra.
Esta reflexão sobre as duas formas de vida não se faz à margem da vivência
monacal, tão difundida desde a Idade Média. Landino — autor de um diálogo
filosófico De uera nobilitate, tema de tão larga fortuna no Humanismo europeu e
português — intitula o primeiro livro das suas Disputationes Camaldulenses “Vita
contemplativa e vita activa”9. Este apresenta um diálogo que tem lugar no mosteiro
de Camaldoli e que apresenta o ideal de vida do primeiro humanismo florentino
civil e político, assente no neoplatonismo.
Se não se pode duvidar que os autores desta época acentuam a excelência da
“vita solitaria”, da vida contemplativa, não há dúvida de que todos são unânimes
em considerar a vida activa, essencial ao progresso, à vida e ao governo das cidades,
à “vita civile”.
A descoberta de Petrarca das Epistulae ad Atticum (1345), seguida da de Coluc-
cio Salutati das Epistulae familiares, além de provocarem a controvérsia humanística
sobre imperium e respublica — a glorificação de César ou de Bruto —, levam à
discussão da figura histórica de Cícero, pensador e cidadão romano10. O próprio Pe-
trarca, que viu em Cícero um modelo de renúncia às paixões que dominam na vida
pública, escreveu a famosa carta de acusação à sua sombra no Hades11. Esta carta,
que suscitou a defesa de Cícero por Coluccio Salutati em 1392, teve uma réplica em
1394 de Pier Paolo Vergerio que, em nome do próprio Cícero, defende o seu espírito

8 
W. Ullmann, Radici, p. 137.
9 
Cf. Prosattori latini del Quattrocento, a cura di E. Garin, Milano-Napoli, 1952, p. 716-791.
Vide HANS BARON, La crisi del primo Rinascimento italiano. Firenze, 1970, cap. VI, maxime, p. 135-143; PETER
10 

BURKE, The italian Renaissance culture and society in Italy, Cambridge, 31987, p. 38.
11 
PETRARCA, Epistolae familiares, Ep. XXIV, 3. Ed. V. ROSSI, vol. IV, Firenze, 1942, p. 226 e sqq.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 475


Nair Castro Soares

cívico e empenhamento político12.


O sábio estóico das Tusculanae disputationes, que prendera a atenção da Idade
Média, dá lugar ao homem político e ao enaltecimento da uita actiua ciuilis, que
tanto cativou os humanistas do primeiro humanismo italiano.
Notável, neste sentido, é a figura de Leon Battista Alberti, considerado o grande
paladino da dignificação do homo faber, arquitecto da sua cidade — autor do céle-
bre tratado De re aedificatoria —, e responsável também pelo seu património fami-
liar, como documentam os dois últimos dos quatro Libri della famiglia, inspirados
nos Económicos de Xenofonte, traduzidos por Leonado Bruni13.
Coluccio Salutati — autor de um De saeculo et religione, uma exortação calorosa
à vida monacal que no seu tempo foi considerado, ao modo do Fédon, uma exor-
tação à morte — ascende a chanceler Florentino e torna-se o principal pioneiro na
defesa da vida activa e do comprometimento dos humanistas na vida civil.
No seu De nobilitate legum et medicinae, Salutati vai reflectir, dentro dos prín-
cipios da ortodoxia, sobre o papel das leis na sociedade. Para Salutati14, a jurispru-
dência tinha como objecto a perfectibilidade do homem na sociedade. O estado era
o quadro normal e necessário à actividade humana. As leis traduziam os valores
supremos que deviam orientar essa mesma actividade. Assim, o universo moral
confundia-se, na sua própria fonte, com o universo legal. A superioridade da vida
activa sobre a contemplativa, defendida nesta obra, aparecia ligada a uma visão
verdadeiramente política da vida humana. A exaltação da vida da ciuitas, que as leis
ordenavam ao bem comum, pertencem à tradição aristotélico-tomista que dominou
a política de inspiração cristã característica deste período. Além disso, a convergên-
cia do pensamento moral de Aristóteles com a doutrina platónica, defendida já por
Giovanni Pico della Mirandola, é bem manifesta na obra de Salutati, significativa
na orientação ideológica humanista. Sob o signo do franciscanismo e do scotismo,
Salutati será o pregoeiro do ideal de vida activa e integrará com Leonardo Bruni e
Leon Battista Alberti a primeira geração do humanismo civil italiano.
A discussão da excelência relativa das duas vias da conduta humana esbate-se ao
longo do Renascimento. Vida contemplativa e vida activa não se colocam já como
graus e momentos sucessivos de perfeição, mas como vivências paralelas oferecidas
a cada indivíduo, na sua ânsia de realização, temporal e espiritual. Já não existe
conflito entre vida consagrada à meditação e aos estudos e a dirigida à participação
na acção e nos negotia, implícita no conceito de societas.
Os estudos humanísticos concedem preparação fundamental para o exercício
responsável da vida activa. Assim, na sua complementaridade, o otium prolonga-se
no negotium, que é dele resultado.
12 
Vide Epistolario di Pier Paolo Vergerio. Ed. L. SMITH, Fonti per la storia d’ Italia, vol. 74, Roma, 1934, p. 436-445.
Nair de nazaré castro soares, O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório, Coimbra,
13 

1994, p. 100-116.
14 
Cf. B. L. ULLMAN, The humanism of Coluccio Salutati. Padova, 1963, p. 28 e sqq.; W. ULLMANN, Radici, cit.,
p. 209 e sqq.

476 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

Este desabrochar para uma nova era vem acompanhado de um enorme interesse
pela educação e pela formação de uma sociedade renovada. O espírito cívico é assim
indissociável do ideal educativo renascentista.
A defesa de uma formação individual, moral e física, a designada educação
moderna — que torna o homem formado nas humaniores litterae, mais livre, mais
humano, capaz de dirigir a sociedade civil — é a reivindicação da autonomia da
cultura, como guia moral da humanidade.
É neste contexto que o ideal do príncipe perfeito do Renascimento vai ter ori-
gem. Ao próprio Petrarca cabe a primeira formulação deste ideal no seu De repu-
blica optime administranda liber, seguido de um De officio et uirtutibus imperatoriis
liber15. Petrarca, na verdade, “aveva stabilito un modelo umanistico con uno spechio
per i principi, dedicado a Francesco il Vecchio Da Carrara nel 1373”16.
Na dinastia de Avis, a leitura de Regimentos de príncipes era considerada essen-
cial à formação do governante, como no-lo dá a entender o passo da carta dirigida
pelo infante D. Pedro a D. Duarte, por ocasião da sua subida ao trono17:

«e como quer, Senhor, que visse muitos Livros com singulares doctrinas aos
Reys e Princepes quaes deveem seer, e vós delles tenhaaes muytos, porem
porque me parece que fallam geeralmente das virtudes que a todo homem
perteence, eu antre a todas escolherey aquellas que ante Deos, e os que ver-
dadeiramente julgam fazem ho Rey mais glorioso».

A presença de vários destes Regimentos de príncipes na relação dos livros perten-


centes à biblioteca do rei D. Duarte18, mostra o verdadeiro significado das palavras
do infante D. Pedro, acima transcritas, e é reveladora do papel que o monarca lhes
reconhece.
Se o hábito da leitura de obras adequadas ao ofício real, a lectio studiosa, era
uma das preocupações básicas da formação do príncipe da Idade Média, é inegável
a abertura da corte de Avis a uma nova forma mentis de dimensão europeia.
O pensamento moral de Petrarca desde cedo teve entre nós uma enorme im-
portância — a maior parte do texto do Boosco deleitoso considera-se uma tradução
do seu De uita solitaria19. Todavia no aspecto pedagógico e, diremos mesmo, peda-

15 
Vide FRANCISCI PETRARCHAE FLORENTINI Opera. Basileae, per Sebastianum Henricpetri, 1581. Tomo I, De
republica optime administranda liber (p. 372 e sqq.) seguida de De officio et uirtutibus Imperatoriis liber (p. 386 e sqq.),
(cota da B. N. Paris: Z 565).
16 
Cf. HANS BARON, La crisi cit., p. 146.
Cf. Carta inserta por RUI DE PINA, Chronica do Senhor Rey D. Duarte, cap. IV. Vide Crónicas de Rui de Pina. Intro-
17 

dução e revisão de M. Lopes de Almeida. Porto, 1977, p. 496:


18 
Vide Memória dos livros do uso del Rey D. Duarte, in D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, Provas da História
genealógica da casa real portuguesa, coimbra, 1946-1954, tomo I, liv. III, cit., p. 257-259.
19 
Vide o estudo de Mário Martins, comprovativo desta fonte, Estudos de Literatura Medieval, Braga, 1956, p. 131-143.
Cf. a edição de AUGUSTO MAGNE, Boosco deleitoso. Edição do texto de 1515, com introdução, anotações e glossário,
I: texto crítico. Rio de Janeiro, 1950. Segundo J. Leite de Vasconcelos, a linguagem desta obra “representa uma fase

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 477


Nair Castro Soares

gógico-político é mais significativa a obra de Pier Paolo Vergerio, o seu De ingenuis


moribus et liberalibus studiis adulescentiae, que compôs para o filho de Francesco
Novello, Ubertino de Carrara, de quem teria sido preceptor.
Esta obra, que defende a nobilitação do homem pela cultura humanística, foi
traduzida para a dinastia de Avis por Vasco Fernandes de Lucena — autor de um
Tratado das virtudes que pertencem a um príncipe, dedicado a D. Afonso V —, a
pedido do infante D. Pedro, que conhecera Vergerio em Itália 20.
As ideias inovadoras do humanista italiano e a sua visão clara e precisa do espí-
rito civil romano asseguraram a grande popularidade da obra, que marca o rumo
da tratadística pedagógica do Renascimento e apresenta o verdadeiro conceito de
educação liberal.
Esta crença do autor do Livro da Virtuosa Benfeitoria na instrução-educação
«que tira o homem de malfazer» leva-o à criação na corte de Avis de uma verdadeira
escola de tradutores de obras de filosofia moral, designadamente de Cícero e Séneca,
de tratados de arte de governar e de estratégia militar21.
São estas traduções de autores clássicos um prenúncio de humanismo entre nós
e representam um primeiro passo na progressiva laicização do estado, facilitada aliás
pela nova estrutura social, ocasionada pelas regalias e favores concedidos ao povo e
pela ascedência à nobreza por mérito individual e dedicação à causa pública.
A produção literária dos príncipes de Avis, mesclada de citações da Sagrada Es-
critura e de autoridades do mundo antigo ou medieval, mostra bem a importância
da parénese na formação do espírito cívico dessa nova “geração de gente”, que, no
dizer de Fernão Lopes, iniciava a “sétima idade do mundo”. Além disso, ao apresen-
tar-nos os próprios príncipes e reis — D. Pedro no tratado da Virtuosa benfeitoria,
que dedica a seu irmão D. Duarte, e este monarca no Leal Conselheiro — a reflec-
tirem nos valores humanos, requeridos a todo o cidadão, e na própria condição
da realeza, como outrora fizera Marco Aurélio, esta literatura revela-nos de forma
inequívoca a verdadeira concepção do governante, a sua cultura, a sua preocupação
devota de a pôr ao serviço do bem comum do reino.
Esta ânsia de serviço da comunidade levou os ínclitos infantes ou o escol inte-
lectual do país a verterem os autores clássicos de latim em linguagem «por aprovei-
tar aos portugueses amadores de virtude que nom som, ou ao diante nom forem
latinados»22 .

muito mais antiga”, de fins do séc. XIV ou começos do séc. XV (J. Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia portuguesa,
Lisboa, 21926, p. 136).
20 
Sobre “a preferência da gente culta portuguesa de Quatrocentos pelo humanismo florentino, de que Vergério foi um
dos representantes”, vide JOAQUIM DE CARVALHO, Estudos sobre a cultura portuguesa do séc. XV, I, Coimbra, 1949,
p. 158; Cf. também M. GONÇALVES CEREJEIRA, O Renascimento em Portugal, I, Coimbra, 1917, p. 57 e sqq.
21 
Vide Nair de Nazaré Castro Soares, ‘A Virtuosa Benfeitoria, o primeiro tratado de educação de príncipes
em português’, Biblos 69 (1993) -Actas do Congresso Comemorativo do 6º Centenário do Infante D. Pedro (Coimbra, de 25
a 27 de Novembro de1992), Coimbra, 1993, p. 289-314. Entre as traduções levadas a cabo na corte de Avis, refiram-se
o Panegírico de Trajano de Plínio-o Jovem, e o De re militari de Vegécio.
22 
Vide a carta dedicatória do Infante D. Pedro, que introduz a sua versão do Livro dos oficios: Infante Dom Pedro, Livro

478 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

Ao próprio D. Pedro se deve a tradução do De officiis, o “Tratado dos deveres”,


testamento moral de Cícero, dedicado a seu filho, onde o Arpinate faz a conciliação
do utile e do honestum, do otium cum dignitate e do negotium.
Num proto-humanismo ideológico — onde se acentua a preocupação pela for-
mação, dignificação e nobilitação do homem pelas letras, através da lição dos auto-
res da Antiguidade — se estabelece, no nosso século XV, a harmonização perfeita
entre o otium e o negotium, tornando-se verdadeiro topos a conciliação da antinomia
armas e letras.
A sociedade portuguesa, estruturada até então segundo o modelo da hierarquia
eclesiástica 23, inicia uma renovatio, nos vários domínios da cultura, que pretendia
garantir a consolidação da consciência nacional, de acordo com as solicitações do
mundo civilizado de então24.
No início do séc. XV, Portugal gerou a mais profunda revolução da sua vida
histórica; destruíram-se interesses fortemente enraizados, renovou-se a vida pública,
a começar pela própria dinastia, ascenderam a posições dirigentes pessoas até então
obscuras, a nação tomou consciência do seu destino”25. Caberá ao Renascimento
sintetizar e desenvolver muitos dos princípios, latentes já no final da Idade Média.
Enquanto nesta época se considerava o direito como emanação de uma lei natu-
ral, identificada com a vontade divina, e se sujeitava o estado aos ditames universa-
lísticos dessa lei, no Renascimento é a vida, são as exigências do estado que vão levar
à sua formulação26. A concepção teocêntrica medieval vai cedendo terreno à visão
antropocêntrica da vida, sem que a ortodoxia religiosa seja posta em causa.
Às funções de carácter militar e judicial, primordiais no ministério régio medie-
val, acrescentam-se ainda, entre outras, as de carácter legislativo. O poder legislativo
do rei aumenta de forma significativa à medida que as estruturas centralizadoras e
administrativas da monarquia se consolidam. A realização concreta do princípio do
soberano depositário de todos os poderes e fontes do direito, decorrente da profun-
da romanização jurídica da vida privada e pública europeia, leva mesmo à necessi-
dade da recolha das leis para as tornar acessíveis aos súbditos.
dos oficios de Marco Tullio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro, duque de Coimbra. Edição, com
introdução e comentários de j. m. piel, Coimbra, 1948, p. 1-2.
23 
Vide o ordenamento social das classes, estabelecido nas Ordenações Afonsinas in DAMIÃO PERES, História de Por-
tugal, II, Porto, 1952, p. 271. Sobre o conceito da nossa realeza medieval o artigo de PAULO MERÊA, ‘Organização
social e administração pública’, in História de Portugal. Coimbra, 1929. vol. II, terceira parte, p.461, col.2; JOHAN
HUIZINGA, Le déclin du Moyen Âge (tr. fr. ), Paris, 1948, cap. III, sintetiza de forma bem elucidativa a concepção
teológica e política da hierarquizada sociedade medieval.
24 
Sobre a importância cultural da corte de Borgonha, a partir da segunda metade do séc. XV, e o papel da sua duquesa,
a Infanta D. Isabel, filha do nosso rei D. João I, e de figuras de destaque que integraram o seu séquito, como é o caso
do português Vasco de Lucena (tradutor de Quinto Cúrcio - que supre habilmente as lacunas do original com a ajuda
de outros livros, de Plutarco, em particular, e da Ciropedia de Xenofonte — esta, a partir da versão latina de Poggio),
vide: C. BRONNE, ‘Le grand siècle du Portugal et de la Bourgogne’, Synthèses, 7, Juillet (1952), 44 e sqq.; CH. C.
WILLARD, ‘Isabel of Portugal, patroness of Humanism?’, in Miscellanea di studi e ricerche sul Quattrocento francese, a
cura di Franco Simone. Torino, 1967, p. 517-544.
25 
Cf. JOAQUIM DE CARVALHO, Estudos sobre a cultura portuguesa do séc. XVI, I, Coimbra, 1947, p. 7-8.
26 
Vide CABRAL MONCADA, Filosofia do direito e do estado, I, Coimbra, A. Amado, 1947, p. 89-92.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 479


Nair Castro Soares

Comprovam -no as Ordenações régias, pela primeira vez publicadas em meados


do séc. XV (1446-1448), no reinado de D. Afonso V, que, a partir de então, assu-
mem um papel de relevo na estrutura governativa portuguesa. Além disso, as cortes
começaram a ser convocadas cada vez menos frequentemente, sobretudo a partir
de D. João II, o que comprova a progressiva centralização de poderes e entre eles o
poder legislativo na pessoa do rei27.
É sobretudo no tempo de D. João II que a cultura jurídica de formação italiana
conhece grande prestígio, entre nós.
No seu fascínio pela Itália, o nossa monarca estabelece relações com a corte de
Médicis e com Policiano, representante máximo da cultura do tempo, a quem seria
confiada, se a morte o não ceifasse antes, a narração em latim da gesta lusitana.
Convida para preceptor de D. Jorge, seu filho bastardo, Cataldo Parísio Sículo,
“o educador da nobreza”, apesar do tradicionalismo dos métodos pedagógicos que
emprega e aconselha 28. Manda os primeiros bolseiros portugueses estudar às uni-
versidades italianas, onde a ciência jurídica concorria com a cultura das letras29: os
filhos de João Teixeira, dos quais se distinguiu como notável jurisconsulto e homem
de letras Luís Teixeira, que foi mestre de D. João III, Henrique Caiado, Martinho
de Figueiredo, Gaspar Vaz, entre os principais. Eles abririam caminho a muitos ou-
tros que, ajudados por D. Manuel e D. João III se viriam a formar nas escolas mais
famosas de então30. São estes juristas entusiastas decididos da renovação humanista
em Portugal, seguidores dos métodos interpretativos de Valla e Angelo Policiano, e
ainda intérpretes do espírito cívico, que impregnou a sensibilidade dos homens do
Quattrocento italiano31.
Curioso é que, entre os bolseiros do rei, seja precisamente o poeta Henrique
Caiado — que troca o estudo das leis pelas letras e ataca, nas suas Eclogae, a sedi-
tiosa cohors de causídicos que Reges diuitiis superent32 — o autor de uma oração em
louvor da jurisprudência.
27 
D. João I, eleito por vontade popular, convocou as cortes vinte e cinco vezes; D. Duarte, no seu breve reinado de
seis anos, quatro; D. Afonso V, vinte e duas; D. João II, quatro. D. Manuel, durante um reinado de vinte e seis anos,
convocou-as quatro vezes; e D. João III, que reinou durante trinta e um anos, apenas três vezes.
28 
Vide Nair de Nazaré Castro Soares, ‘Cataldo e Resende: da pedagogia humanista de Quatrocentos à influência de
Erasmo’, In Actas do Congresso Internacional do Humanismo português: Cataldo e André de Resende (Lisboa, Centro de
Estudos Clássicos, 2002) 311-340.
29 
VIRGÍNIA RAU, ‘Italianismo na cultura jurídica portuguesa do séc. XV’, Revista portuguesa de História, XII, 1
(1969), 185-201.
30 
Vide N. J. ESPINOSA GOMES DA SILVA, Humanismo e direito em Portugal no séc. XVI, Lisboa, 1964, p. 125 e
sqq.
31 
Se Bártolo, Baldo e Acúrsio continuam a ser autoridades entre nós, no século XVI, como diria André de Resende com
verdade, mas talvez despeito —, por ter sido preterido no preceptorado do então jovem D. João III —, o certo é que o
método jurídico medieval tinha sido ultrapassado. Prova-o, neste particular, o Regimento da Instituta de 17 de Setembro
de 1539, em que D. João III impõe ao ensino das leis na sua Academia a razão acima das autoridades, a opinião reflectida
e avisada do jurista acima da communis opinio, escamoteada por glosadores e comentadores da época precedente.
32 
ANDRÉ DE RESENDE, De uita aulica, composta em 1535 e publicado em Lovaina em 1544 com dedicatória a Da-
mião de Góis. Cf. Notícias da Vida de André de Resende pelo Beneficiado Francisco Leitão Ferreira, publicadas, anotadas
e editadas por A. BRAANCAMP FREIRE, Lisboa, 1916, p. 142.

480 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

Esta obra tem para nós o interesse de revelar Caiado como um fiel discípulo do
ideal cívico do humanismo italiano. Como Petrarca e Salutati faz a exaltação da vida
activa, do facere subordinado à ratio e ao consilium, a apologia da interpenetração
do ius e da ciuitas, da indispensabilidade do direito à rei publicae gubernatio.
Em Portugal, além das Ordenações régias, há todo um conjunto de leis decor-
rentes da função legislativa dos soberanos, que adquirem valor de direito positivo e
são recolhidas, a pedido do rei, em colectâneas ou compilações33.
A valorização intelectual do governante e o seu poder legislativo, que a trata-
dística medieval descurava, prendem-se ambos com a consolidação do conceito de
soberania no séc. XVI, apoiado por uma corrente de nacionalismo jurídico, que
exalta a personalidade régia e suas funções.
A laicização progressiva da cultura nacional está bem reflectida nos tratados de
pedagogia e parénese ético-política, documentos privilegiados, a par dos Livros de
Horas, do ideal humano do Renascimento.
A elaboração teórica do modelo de governante no humanismo renascentista
português não é alheia às novas concepções filosóficas do mundo, do direito e do
estado34 e prende-se também necessariamente com a nossa realidade histórica. Esta
é, pode afirmar-se, a principal marca de originalidade do modelo de príncipe no
humanismo português.
Frei António de Beja, na sua Breve doutrina e ensinança de príncipes, dividido
em três partes, correspondentes às virtudes sabedoria, justiça e prudência, abre com
longas transcrições do De hominis dignitate de Giovanni Pico della Mirandola 35.
É precisamente na obra de Cataldo, que marca, com a sua vinda de Itália para
Portugal, em 1485, o início do Humanismo Renascentista entre nós, que vamos
encontrar os primeiros elogios de feição humanista, onde as letras, a formação, a
cultura das figuras retratadas nas suas composições, precedem todos os outros pre-
dicados. E Cataldo ocupa-se nem só de figuras masculinas, mas de mulheres da alta
nobreza, a quem, indiscriminadamente, intitula de Sibilas, pelo sua cultura, pelo
seu saber.
Por ser deveras expressivo, refiro o elogio que Cataldo faz de João Rodrigues Sá
de Meneses — o famoso tradutor, em verso, de três Heroides de Ovídio, no Can-
cioneiro Geral —, em carta dirigida ao seu aluno D. Pedro de Meneses, conde de
Alcoutim36:
33 
Vide e.g. as Leis extravagantes collegidas e relatadas pelo licenciado Duarte Nunes de Lião, per mandado do muito
alto e muito poderoso rei Dom Sebastião nosso Senhor. Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1796.Sobre o
que se passa nos vários estados italianos, em Espanha, França, vide o artigo de V. PIANO-MONTANI, ‘Problèmes des
États de la Renaissance’, Pouvoir et institutions en Europe au XVIème Siècle (XXVII Colloque International de Tours),
Paris, 1987, p. 8-11.
34 
Vide CABRAL MONCADA, Filosofia do direito e do estado. Vol. I, Coimbra, 1947, p. 90.
35 
Vide JOSÉ V. DE PINA MARTINS ‘Frei António de Beja, discípulo de Pico della Mirandola’, Revista da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, III série n. 8 (1964), 91-142. MÁRIO TAVARES DIAS, Introdução e notas à sua
edição do tratado de Frei António de Beja, Breve doutrina e ensinança de príncipes, p. 28, 103 e sqq.
36 
A. Costa Ramalho, Latim Renascentista em Portugal (Antologia), Coimbra, 1994 (1ª ed. 1985), p. 56-59.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 481


Nair Castro Soares

«E não posso, mesmo contra vontade, passar em silêncio [...], João Rodri-
gues, de quem eu não sei dizer em que mais se distingue, se na bela aparência
física ou se no talento, boas maneiras e óptimos costumes, se na eloquência
suave e na experiência dos negócios. [ ] E não se contenta com as riquezas
paternas e dos antepassados, como é usual em quase todos os nobres nos
tempos que correm, mas dedica-se às letras com tal persistência, quer lendo,
quer escrevendo, quer interrogando os mais conhecedores, como se por elas
tivesse que ganhar a vida.»

Também as crónicas quinhentistas dão à educação régia e aristocrática, ao enal-


tecimento das virtudes humanas, à cultura, à urbanitas, um relevo até então desco-
nhecido, próprio da valorização do homem centro e motor da vida activa.
O alargamento do regis officium e a incapacidade de o rei abarcar sozinho a
ingente tarefa da governação favoreceu a ascensão ao poder de homens notáveis.
Assiste-se à formação de várias dependências estatais, sobretudo num país como o
nosso, que se estendia até aos confins da Índia37. Surgem alusões à grande máquina
do estado, comparada a um relógio e suas engrenagens38 .
Jerónimo Osório, no livro VI do De regis institutione et disciplina, pronuncia-se,
a este propósito, desta forma39:

‘...Portanto o rei que deseja com louvor desempenhar o seu cargo deve ter
vários reis, companheiros de ofício, pois de outra forma perderá em vão o
seu esforço, a sua dedicação e até a própria vida na governação do reino. Reis
é o que eu chamo àqueles que são dotados de virtude régia, ainda que não
possuam qualquer reino’.

A política missional, a da expansão oceânica, propiciou uma verdadeira “civili-


zação luso-tropical”40. A própria constituição de um sistema organizado de relações
comerciais entre a metrópole e as várias possessões, que dela distavam milhares de
léguas, não excluía os interesses regionais destes territórios, tão diversos do centro
do Império, geridos por governadores, administradores do rei41.

37 
Vide Hieronymi Osorii Lvsitani, Episcopi Algarbiensis Opera omnia [...] in Quattuor uolumina distributa,
Romae, MDXCII. D. JERÓNIMO OSÓRIO, no início do livro IV do seu De regis institutione et disciplina (I, 356, 10),
ao aludir à dignidade do nome de rei e à definição do seu munus exprime a complexidade do seu desempenho, na pátria
portuguesa, tão ampla e diversificada:
38 
IDEM, De regis institutione et disciplina , livro VIII (Opera Omnia, I, 538-4-19).
39 
IDEM, De regis institutione et disciplina , livro VI (Opera Omnia, I. 425. 62 - 426. 7: Rex igitur, qui munere suo cum
laude perfungi cupit, multos Reges muneris socios habeat necesse est: aliter enim frustra studium, & industriam, atque adeo
uitam in Regno tuendo consumet. Reges autem appello, qui uirtute Regia ornati sunt, quamuis Regnum minime possideant.
40 
DAVIDE BIGALLI, Immagini del principi. Ricerche su politica e umanesimo nel Portogallo e nella Spagna del Cinque-
cento. Milano, 1985, p. 27.
41 
Cf. VITORINO MAGALHÃES GODINHO, L’ économie de l’empire portugais au XVème et XVIème siècles. Paris,

482 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

Assim se compreende que seja dada grande importância ao papel dos cortesãos,
dos conselheiros do rei, que se pretende sejam prudentes no conselho, experimen-
tados na arte de governar e na condução da guerra. O papel político destes conse-
lheiros ultrapassa em muito a simples ajuda do rei, pelo que deveriam ser educados
e instruídos de forma idêntica ao soberano, para poderem sobressair em virtude e
em competência, na prossecução do bem comum, afirma D. Jerónimo Osório, em
longas considerações42.
A complexidade da máquina administrativa do estado, causada pela expansão
em África e no Oriente, vai fazer ascender aos altos cargos civis e militares um ele-
vado número de homens especializados, provenientes em grande parte da burguesia
endinheirada e cultivada. Entre eles, ocuparam papel de relevo os juristas: foi esta
uma das causas que levou grande parte da população estudantil a cursar direito.
Assim se compreende a grande concorrência existente entre os muitos juristas sa-
ídos das universidades, que foi causa da sua má reputação, a de “causíficos”, que
complicavam o direito e instigavam a demandas, com intenções lucrativas43. A no-
breza acorre à corte para poder realizar as suas aspirações de classe privilegiada. Os
membros do clero enxameiam o paço como confessores, pregadores, capelães, aios
e preceptores de príncipes. A nobreza rural, no entanto, continua a lutar com sérias
dificuldades e sente diminuídas as suas prerrogativas. Os lavradores e os mesteirais
vivem em situação desfavorecida, num país onde a agricultura é desprezada e não
há fontes de produção, a não ser o comércio dos produtos orientais que se esvaem
na troca de bens de primeira necessidade.
É esta situação da política interna um dos factores da ambição, da inveja, da
adulação e da hipocrisia da corte, que é retratada e criticada em profusão nas obras
literárias do nosso século de ouro.
Podemos afirmar com Gioacchino Paparelli, tendo em conta a realidade portu-
guesa, que poucas épocas históricas apresentam, como o Renascimento, duas face-
tas tão nitidamente distintas44.
Por um lado, a torre de marfim, as academias, o petrarquismo de corte, o gosto
do idílio e da beata solitudo, a tratadística moral que parte da realidade concreta
para a preceptística ideal.
Por outro lado a “realtà effettuale”: as guerras, as violentas lutas de poder, a obra
de Maquiavel com a ruptura da moral e da política, a afirmação da ciência política
com Jean Bodin; a actividade económica; as ciências naturais, as invenções e as
descobertas geográficas.
Inadequado seria caracterizar a época do Renascimento por qualquer destes as-

1969, p. 833; DAVIDE BIGALLI, ibidem.


42 
Vide e. g. livro VIII do De regis institutione et disciplina (H. Osori, Opera omnia, I, 516.27- 524.34)
43 
Vide AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, ‘Causíficos e humanistas’, Humanitas, 33-34 (1981-1982), 232-235,
reimpresso em Para a História do Humanismo em Portugal, Coimbra, 1988, p. 185-189.
44 
Gioachino Paparelli, Feritas, humanitas, diuinitas. L’essenza umanistica del Rinascimento, Napoli, 1973, p.
131.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 483


Nair Castro Soares

pectos, sem lhes indagar uma linha de continuidade e um fundo comum, espacial,
temporal e material.
O otium, o uiuere sibi et Musis, típico da cultura do Renascimento que vai ao
encontro do Odi profanum uulgus et arceo horaciano (Carm. 3.1.1), encontra entre
nós cultores como António Ferreira e Sá de Miranda.
Paralelamente, assiste-se ao gosto de viver na corte. É grande a atracção que esta
representa no século de Ouro europeu como promessa de segurança e bem-estar, de
riqueza e de honras terrenas, do otium como ideal cortesanesco.
Mas é essa corte, em contrapartida, muitas vezes, fonte de desilusões: os autores
quinhentistas exprimem sempre o propósito de se retirarem para a vida privada,
de se contentarem com o bastante para viver decorosamente, sem aborrecimentos,
intrigas e iniquidades. O De curialium miseriis de Enea Silvio Piccolomini empresta
múltiplos argumentos que se tornaram verdadeiros tópoi, nos nossos humanistas, de
Luísa Sigeia a D. Jerónimo Osório, de Sá de Miranda a André de Resende.
Luísa Sigeia é mesmo o exemplo de menina da Corte, que integra a já designda
Academia feminina da Infanta D. Maria que, inspirando-se sobretudo em Petrarca,
nas Tusculanas de Cícero, em Tertuliano e Plutarco escreve um Diálogo latino entre
duas jovens sobre a vida de corte e a vida solitária, Duarum uirginum colloquium de
uita aulica et priuata (1552)45.
É ainda a corte, ponto de encontro e ao mesmo tempo de fricção entre dois ide-
ais opostos de solitudo e de societas, de otium e de vita civile, que está na origem de
uma literatura de fundo idílico-pastoril, com grande representação entre nós.
A “Arcadia”, locus amoenus, surge como estado de alma e como categoria perene
do espírito humano — a ânsia de evasão do real e do viver procul negotiis que San-
nazzaro modelarmente exprime46.
Mas os poetas do Renascimento italiano, Petrarca, Bembo, Ariosto, Sannazaro
— conhecidos em Portugal e em toda a Europa —, e os autores clássicos, Virgílio,
Horácio, Lucrécio, Ovídio e os elegíacos latinos, na sua espiritualidade e na sua
sensualidade, foram fonte de inspiração da expressão poética quinhentista47.
O traço que mais parece afligir os poetas desta época é o da profunda insegu-
rança, provocada pela rápida sucessão dos acontecimentos, pela mudança que o ho-
mem não pode controlar e sofre passivamente, pela existência de uma ordem divina,
perfeita e verdadeira, mas inacessível e velada aos homens, sujeitos por isso ao poder
da Fortuna48. Por contraste à insegurança e instabilidade do quotidiano, surgem
as idealizações da repousada vida no campo, da vida afortunada dos lavradores, de

Odette Sauvage, Luísa Sigeia. Dialogue de deux jeunes filles sur la vie de retraite (1552). Présenté, traduit et
45 

annoté, Paris, 1970.


46 
Gioachino Paparelli, Feritas cit., p. 139.
Vide, a este propósito, Carlos Ascenso André, Mal de ausência. O canto do exílio na lírica do humanismo português,
47 

Coimbra, 1992.
48 
Cf. eg. Luís de Camões, Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por A. J. Costa Pimpão. Coimbra, Atlântida,
1973, p. 199.

484 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

fonte virgiliana, ou da horaciana aurea mediocritas, de quem tranquilamente colhe


o dia que passa, tão ao gosto da poesia coeva, neolatina e em vulgar.
É esta, contudo, uma literatura tipicamente refinada, cortesã, ao modo de Il
cortegiano de Baldassare Castiglione, que sai a lume em 1528, com dedicatória a
um português D. Miguel da Silva, bispo de Viseu, residente na cúria romana, que
considera modelo de urbanidade49.
O sentido da urbanitas que as humaniores litterae conferiam e o talento poético
dos diversos autores eram postos ao serviço do ideal de cortesania que os tratados de
educação de príncipes, um género europeu, largamente justificavam.
Na verdade, enquanto os livros de educação régia, nos seus aspectos técnicos,
são obras de ciência política, sob o ponto de vista estritamente profissional, corres-
pondem às que se ocupam dos conselheiros, secretários e ministros. Aliás, no que se
refere aos costumes de todo um grupo social, que de alguma maneira participa no
poder, estas obras ligam-se a toda uma literatura cortesã que vai desde Il cortegiano
de Baldassare Castiglione e Il Galateo de Giovanni della Casa ao tratado de La civile
conversazione de Stefano Guazzo. Destas obras, os tratados portugueses conservam
o espírito, sobretudo no que diz respeito à nobilitas morum, apesar de a matéria ser
adaptada à realidade do nosso século XVI.
É que este ideal de cortesania, na época áurea das cortes europeias, integra-se
na mundividência cultural, filosófica e literária do Renascimento, como as obras de
diferentes géneros, em poesia e em prosa, o documentam.
A corte, afirma Sá de Miranda, requer “cavalleros blandos i enseñados” e é sen-
tida como meio ideal para a realização das virtudes humanas50.
Já antes dera viva voz a este sentimento Garcia de Resende, no “Prólogo” ao
Cancioneiro Geral, publicado em 1516, oferecendo-nos uma imagem modelar desse
mundo, ilustração perfeita dos ideais de cortesania, onde têm lugar «muitos e mui
grandes feitos de guerra, paz e vertudes, de ciencia, manhas e gentileza»51.
A maioria dos jovens fidalgos da pequena nobreza daquele tempo foi sensível ao
jogo de forças políticas no interior do estado e sua implicação com os anseios corte-
sanescos — alvo da sátira literária em todos os géneros da literatura de então52.
Camões, por exemplo, era um homem do seu tempo, um perfeito cortesão que
aprendeu a amar, pelo menos em poesia, ‘de forma diferente do profano vulgo’

49 
Vide Sylvie Deswarte, Il ‘perfetto cortegiano’ D. Miguel da Silva, Roma, 1989.
Veja-se a dedicatória do Epitalâmio pastoril a António de Sá no casamento de sua filha, in Poesias de Francico de Sá de
50 

Miranda. Edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Halle, 1885, p. 501; vide ainda, a este propósito, a carta de Antó-
nio Pereira Marramaque a Diogo de Castro, referida por Eugenio Asensio, Estudios Portugueses, Paris, 1974, p. 168.
Garcia de Resende, Cancioneiro geral. Fixação do texto e estudo por Aida Dias. Lisboa, Imprensa Nacional,
51 

Casa da Moeda, 1990-1993, 4 vols: vol. I, prólogo.


52 
Cf. e. g. a poesia de Sá de Miranda, a epístola em verso De uita aulica de André de Resende, dirigida a Damião de Góis,
a Ropicapnefma de João de Barros, as comédias Aulegrafia e Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Também as re-
presentações dramáticas escolares não são alheias a esta tendência moralizadora e interventiva, de que é exemplo a tragé-
dia Sedecias, composta pelo Pe. Luís da Cruz, para ser representada em Coimbra, por ocasião da visita de D. Sebastião.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 485


Nair Castro Soares

— fuor della consuetudine del profano vulgo, como postulava Il cortegiano53 —, que
exprimiu admiravelmente os contrastes do sentimento amoroso, o debate passional,
em termos de petrarquismo e neoplatonismo, segundo a sensibilidade e os cânones
literários do seu tempo54. Assim cantou o amor nos mais diversos tons, dando ex-
pressão às dicotomias espírito-sentidos, alma-corpo, verdade-ilusão, que têm por
eixo a estrutura binária do amor, a espiritual e a sensual55.
Ficino, através da versão latina do Corpus Platonicum e dos importantes e ex-
tensos comentários ao Banquete de Platão, o De amore, e às Enneades de Plotino
— figura cimeira do neoplatonismo, no século III d.C. —, torna‑se o principal
responsável pela difusão na cultura europeia do neoplatonismo e pelo proliferar de
grande número de diálogos e tratados sobre o amor, de que são exemplo Gli Asolani
de Bembo, já conhecidos de Sá de Miranda, e os Dialoghi d’ amore do português
Leão Hebreu.
No tempo em que alvorecia a modernidade e se reconhecia à vida activa um pa-
pel superior ao da vida contemplativa, a temática amorosa e a visão secularizante do
amor invadem todos os géneros literários, desde a novela sentimental ao romance
de cavalaria, desde a poesia lírica à arte dramática, à epopeia.
Se a obra de Platão ou os tratados neoplatónicos renascentistas fornecem aos
poetas do século XVI, a trama metafísica da doutrina do amor platónico, é sobretu-
do Petrarca quem faz a síntese admirável de todas as componentes líricas, fornecidas
pela tradição.
É através de antíteses abstractas, de uma sugestiva imagética da interioridade e
de metáforas conceituosas, capazes de exprimirem a dialéctica amorosa, que o poeta
de Arezzo impõe à literatura europeia um verdadeiro código poético, o petrarquis-
mo, ou dá o tom petrarquizante à expressão do amor cortesanesco56.
Portugal, intervindo no debate teológico-filosófico sobre a vida contemplativa e
a vida activa com o discurso retórico de autores como Luísa Sigeia, João de Barros,
D. Jerónimo Osório e Frei Heitor Pinto, vai ser palco da expansão ultramarina e
conciliar, na sua política de dilatação da fé e do império, as antinomias clássicas
otium/negotium e arma/toga, definidoras do ideal humano desse tempo.
Apesar de toda uma literatura de carácter moralista e parenético se editar em
Portugal no século XVI, é sobretudo o negotium, a vida activa, que a gesta lusa
53 
Baldassare Castiglione, Il Libro del Cortegiano. Introduzione di A. Quondam, Milano, Garzanti, 1981:
Lib. IV, Cap. LXI, p. 439. Neste mesmo Lib. IV, no cap. LI, p. 426-427, Castiglione, pela boca do interlocutor Pietro
Bembo, define “o que é o amor e em que consiste a felicidade, que podem ter os enamorados”, como “o desejo de fruir a
beleza” e de ascender, através da particular beleza da amada, à Divindade, fonte universal de beleza, bondade, sabedoria.
Sobre os graus deste processo intelectivo do amor platónico, cf. ainda Lib. IV, maxime caps. LXVII- LXX, p. 446­‑452.
54 
Refiram-se, a título de exemplo: o soneto de Camões representativo do seu neoplatonismo, Transforma-se o amador
na cousa amada ; e os sonetos expressivos do seu petrarquismo Amor é um fogo que arde sem se ver, cheio de antíteses e
oximoros, e Alma minha gentil, que te partiste, onde surge o tema da separação dos amantes pela morte da amada.
55 
Vide Maria Helena Ribeiro da Cunha, A dialéctica do desejo em Camões, Lisboa, 1989, p. 30.
56 
Vide Rita Marnoto, O petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, cit., cap.II, 3: «O petrarquismo
face à tradição cortesanesca», p. 208-230; cap. III, 4; «Processos de interferência sígnica», 443-504; e cap. IV, 2: «A
revitalização da poesia cortesanesca», p. 545-556.

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Otium et Negotium no quinhentismo português

ilustra, que define a especificidade de um povo e a sua cultura.


As palavras de Cícero no De officiis (1.6) poderiam servir de lema à acção lusa:
Tota enim uirtutis laus in actione consistit.
Há toda uma literatura, no século XVI, em latim e em vernáculo, que se pode
incluir no já designado Humanismo Imperial. Os comentários e as cartas de Afon-
so de Albuquerque, as crónicas de Fernão Lopes de Castanheda, de João de Barros,
de D. Jerónimo Osório, de damião de Góis, Gaspar Correia e Diogo do Couto, a
história monográfica de André de Resende, Diogo de Teive e Damião de Góis. As
cartas dos jesuítas no Oriente e no Brasil, os roteiros de viagem, a história trágico-
marítima, as obras de geografia, de ciências da natureza, de etnografia, de astrono-
mia de um Pacheco Pereira, D. João de Castro, Garcia de Orta, Pedro Nunes. Uma
literatura imensa em prosa e em poesia que ilustra a gesta do povo luso ao serviço do
rei e da pátria amada — povo esse que, no dizer de Sá de Miranda, traz «no meio
dos corações, esculpidas vossas quinas»57. Esta literatura é a expressão animada do
compromisso entre o otium e o negotium, o pensamento e a acção. Nela se descobre
a mundividência desta época e o empenhamento cívico dos diversos autores, em
comunicar, em partilhar com a intenção de docere, mouere et delectare58.
Entre esta produção literária podem apresentar-se duas obras em prosa e em
verso que são a expressão acabada de empenhamento cívico, do humanismo civil
dos seus autores: a epopeia de Camões e o tratado de D. Jerónimo Osório De regis
institutione et disciplina, ‘Sobre a educação e a instrução do rei ’, saídos a lume no
mesmo ano de 1572, ambos com licença de Frei Bartolomeu Ferreira, obras que
apresentam afinidades de carácter conceptual e doutrinário que foram já objecto
do nosso estudo59.
Os dois autores revelam coincidência de atitudes, de preocupações e ansiedades,
quer a nível político e social, quer a nível espiritual e pedagógico, de que não estão
ausentes a crítica à realidade nacional.
As afinidades entre as obras de Camões e Osório, na sua diferenciação genoló-
gica, são decorrentes quer de idênticas posturas filosóficas e ético-políticas, quer de
uma mentalidade tipicamente humanista, que privilegia os mesmos valores viven-
ciais, de acordo com a sua formação cultural e literária.
O tratado pedagógico de Osório inicia com um exórdio, que, com linguagem
lapidar e cadência rítmica oratória, se debruça sobre a ambição de reinar60, tema que
57 
«Carta a D. João III», in Obras Completas, II, Lisboa, 1977, p. 49.
São estes os objectivos da retórica, ‘ensinar, persuadir, agradar’, docere, mouere, delectare, cf. Cícero, De orat., 2. 27,
58 

115, Brut. 185; Quintiliano, 12. 10, 59.


‘ Nair de nazaré castro soares, ‘Pedagogia, parénese e Humanismo em Camões e D. Jerónimo Osório’,
59 

in Actas do VI Forum Camoniano — «Os mares de Camões» — Centro Internacional de Estudos Camonianos da
Associação para a Reconstrução da Casa-Memória de Camões (Constância, 30 e 31 de Julho de 1998), Lisboa, 2000,
pp. 41-54.
60 
Vide H. OSORII, Opera omnia, I, 253.1-254.39 (as citações que surgem no corpo do texto deste artigo, são feitas
pelos Opera omnia, volume I, e apresentam sempre só os números das colunas e das linhas em que se inclui o passo
referido).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 487


Nair Castro Soares

se prende estreitamente à natureza do argumento e à intenção principal da obra:


era necessário limar os excessos da natureza de um rei fogoso de glória e confiante
no seu valor pessoal, que com a sua intrepidez punha em risco a estabilidade na-
cional.
Esta mesma temática surge, com toda a imagética e carga simbólica, n’Os Lusía-
das, no episódio do Velho do Restelo, no canto IV61, associada à empresa marítima
dos Portugueses e, em veemente apóstrofe contra a classe dominante e sua degrada-
ção moral, no canto nono62. Isto sem esquecer que Camões, Osório e outros autores
do tempo se não recusam a ver os interesses económicos como estímulo da acção,
e reconhecem mesmo, sem preconceitos, que no comércio marítimo se fundam os
alicerces de uma nova cultura económica. Prova-o a fala de Vasco da Gama ao Sa-
morim de Calecut63, bem como as considerações de Osório sobre a protecção que o
rei deve dar ao comércio e aos mercadores64.
Em ambas as dedicatórias, d’Os Lusíadas e do De regis institutione et disciplina
se traçam os seus objectivos e se valoriza o proveito e exemplo que delas tirará o seu
destinatário65.
Tem-se vindo a observar a visível intencionalidade pedagógica de certos passos
da epopeia camoniana, à semelhança dos Poemas Homéricos, verdadeiro manual de
educação aristocrática.
Camões acredita na utilidade e na função social do seu canto e faz da sua epo-
peia a glorificação da pátria e dos seus heróis.
A finalidade da sua poesia é, em última análise, estímulo e admoestação, emu-
lação e ensinamento, a união do utile dulci, ou ainda do aut prodesse aut delectare,
no dizer de Horácio que confina com os objectivos essenciais da retórica66.
Esta é também a intenção do tratado pedagógico, em diálogo, De regis institu-
tione et disciplina, de D. Jerónimo Osório que assenta a sua estrutura retórica na
antinomia otium/ negotium.
61 
Cf. Lus., IV, 95-97.
62 
Cf. Lus., IX, 93. Paralelo perfeito se pode estabelecer entre este passo e as considerações que Osório tece — pedindo
licença aos interlocutores para se dirigir directamente ao rei — sobre a situação política, social e económica do país: H.
OSORII, Opera omnia, I, 434.15-437.15. Sobre os problemas económicos decorrentes da expansão ultramarina, que se
reflectiam sobretudo nas camadas inferiores da nobreza, e nas classes populares, enquanto se impunha uma verdadeira
classe senhorial, parasitéria e ostentatória, apoiada em privilégios de sangue, que tanto Camões como Osório denuncia-
ram, vide Armando de Castro, Camões e a sociedade do seu tempo. Lisboa, 1980.
63 
Cf. Lus., VII, 62: «E se queres com pactos e lianças/ de paz e de amizade, sacra e nua,/ comércio consentir das abon-
danças/ das fazendas da terra sua e tua,/ por que cresçam as rendas e abastanças/ (por quem a gente mais trabalha e sua)/
de vossos reinos, será certamente/ de ti proveito, e dele glória ingente».
64 
Vide H. OSORII, De regis institutione et disciplina , livro VII (Opera omnia, I, 486.29-44). Uma nova mundiviência
económica, motivada pelos Descobrimentos — João de Barros, nas Décadas da Ásia, publicadas a partir de 1552, afirma
que o comércio é o principal factor de riqueza de um Estado —, vai dar origem a um novo tipo de literatura regulamen-
tar e jurídica, destinada a dar reposta às necessidades práticas de uma época. Entre elas, além deve ser referido o Tratado
de Seguros de Pedro de Santarém (Veneza, 1552), sem esquecer as obras sobre Direito internacional, designadamente dos
teólogos-juristas espanhóis, a partir de Francisco Vitória e Domingo Sotto.
65 
Nair de nazaré castro soares, O príncipe ideal no século XVI cit., p. 336-338.
66 
Horácio, Ars poetica, vv. 343 e 333. Sobre os objectivos da retórica, cf. supra, n. 58.

488 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

Inicia esta obra, logo no primeiro livro (263.51), com um ataque à filosofia —
enaltecida nas Tusculanas de Cícero67 — encarada do ponto de vista dos seus de-
tractores como mera especulação teórica, na linha dos filósofos naturalistas, como
Tales e Arquimedes, apresentados como exemplos significativos de alheamento do
mundo. A apresentação desta vertente negativa da filosofia e do filósofo, negligente,
afastado das realidades, distante dos homens e dos seus costumes, de que a comédia
aristofânica é a principal fonte de transmissão, cabe a Lourenço Pires de Távora
(263.51-277.21). Embaixador da corte portuguesa em Roma, distingue-se não só na
carreira diplomática, que lhe mereceu louvores e consideração, mas também pelas
qualidades militares, manifestadas nos cargos que desempenhou quase até ao fim
da vida. É ele que fala em nome da facção política portuguesa — multorum opinio
— que era a favor das armas, em detrimento das letras (I. 264.4-18).
As cortes de 1562 tinham-se pronunciado neste sentido. O cap. 24º destas cor-
tes revela eloquentemente o estado de espírito do povo e a sua exaltação patriótica,
despertada pelo cerco de Mazagão: «Que os Estudos de Coimbra se desfação por
serem prejudiciaes ao Reyno, e a renda se applique para a guerra, e quem quizer
aprender vá a Salamanca, ou a Pariz e não haverá tanto Letrado sobejo, nem tantas
demandas»68.
Osório, para conferir verosimilhança ao seu diálogo, não pode deixar de dar
expressão a esta mentalidade. Assim se defende, para se rebater cabalmente ao longo
do diálogo, a educação cavaleiresca, a educação medieval, que dava grande impor-
tância à arte militar, aos exercícios da guerra.
Curiosa é a forma como o autor, neste primeiro livro, associa a educação ca-
valeiresca e o ataque à filosofia. Surge deste modo naturalmente o topos “armas e
letras”, que o Pro Archia ciceroniano divulgou, onde é evidente a intencional ligação
com a realidade portuguesa.
A diatribe contra a filosofia e as letras em geral, identificadas com a inacção e
a ociosidade (I. 264.26-265.30) — o otium no sentido literal e não o otium cum
dignitate louvado por Cícero —, sustenta toda a argumentação de Távora.
A crença na possibilidade de a virtude ser ensinada (272.42-50), não de forma
teórica, mas prática, de par com o enaltecimento da vida activa e operativa, que
conduz ao progresso, leva Távora a concluir pela inutilidade, e mesmo prejuízo, da
dedicação à filosofia (273.44-46). Defende o princípio de que a malícia adornada
da cultura e das mais nobres disciplinas, sobretudo da eloquência (273.56 e sqq.),
conduziram à ruína de florescentes repúblicas. Aliás, a perda dos maiores impérios
deve-se a homens eruditos — Péricles, Alcibíades, Crítias e Demóstenes — que
tiveram por mestres filósofos como Anaxágoras, Sócrates, Platão.
A evocação de aspectos negativos de personalidades que desempenharam um
papel de relevo no desenvolvimento da democracia ateniense é por si só reveladora
67 
CÍCERO, Tusc. e.g. 5.5.; cf. também Off. 3.5. Este passo das Tusculanas, em que Cícero define a filosofia e suas
virtualidades é com frequência citado ou imitado pelos humanistas.
68 
Vide QUEIROZ VELLOSO, D. Sebastião (1554-1578) Lisboa, 1945, p. 62-63.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 489


Nair Castro Soares

da argumentação falaciosa, que se liga, em última análise, com o debate ético que
surgiu na época helenística sobre a importância do saber prático ou da sabedoria
contemplativa.
A aliança da erudição à eloquência tendenciosa (274.34 e sqq.) e o papel desta
na destruição da república é um sofisma que se prende com argumentos colhidos no
Diálogo dos oradores — atribuído a Tácito, que estabelece uma ligação entre o fim
da república e o florescimento da arte oratória69.
Como resposta a Távora, no que respeita à filosofia e sua utilidade, o sentido da
palavra filosofia clarifica-se no desenvolvimento da argumentação como conheci-
mento global enciclopédico, como sabedoria. No livro VI (444.53 - 447.3) afirma-
se que esta se adquire com a ajuda das letras (449. 50-53) a que o príncipe dedicará
‘o tempo indispensável à formação do carácter, à aquisição do saber régio’ (449.
57-58). Estas palavras incluem uma refutação aos argumentos de Lourenço Pires
de Távora, traduzidos também nos próprios exemplos de figuras notáveis da cena
política ateniensa por ele criticadas no livro I.
A terminar, o De regis institutione et disciplina dá resposta cabal às considerações
do livro I: a filosofia que deve ornamentar a república não é a que Távora identifica
com a ociosidade, nem a ostentação do saber dos sofistas, mas a uigilantiae magistra
— do livro V das Tusculanas de Cícero — que leva ao amor da salvação pública
(532.34-44).
E, além disso, podemos concluir, a proposta de uma educação cavaleiresca e o
enaltecimento da vida activa, que dispensa o estudo reflectido, punham em causa
o labor do filósofo, do teólogo, do homem de letras, enfim, a essência da própria
cultura humanista que era necessário defender.
Osório vai provar a necessidade de firmes apoios na formação régia. Entre eles
avulta o cultivo das letras que é tanto mais imprescindível quanto maior é a condi-
ção social. A temática horaciana, retomada pela tragédia de Séneca, da maior expo-
sição e vulnerabilidade dos lugares mais altos serve de suporte à ideia da necessidade
da maior diligência posta na educação dos reis.
No entanto, o gosto de D. Jerónimo Osório pela vida militar, que o seu bió-
grafo e sobrinho testemunha70, revela-se bem em palavras cheias de entusiasmo e
ardor pelo culto das armas, de acordo com o sentimento nacional: os soldados, que
cobrem de glória o seu príncipe e arriscam a vida pela protecção da república, de-
vem merecer a maior gratificação e reconhecimento do príncipe pela sua coragem e
magnanimidade (489.23-490.25). O tom crítico das palavras de Osório à realidade
portuguesa transparece nas longas considerações que faz a este respeito (490.25-
491.13).
Uma nova ordem de considerações se apresenta: cabe ao rei, no desempenho do
seu ofício, não só exercitar os homens de armas, mas também moderá-los e instruí-
69 
O Diálogo dos oradores foi descoberto em 1425 e obteve larga divulgação no séc. XVI.
H. OSORII, Op. omnia, I, p. 2: Multa enim ad militiam excitabant; maiorum scilicet exempla, animi magnitudo sin-
70 

gularis, et eximia totius corporis constitutio.

490 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Otium et Negotium no quinhentismo português

los em ordem à mansidão, à brandura do espírito (493.45-48), a fim de prevenir a


arrogância e a temeridade. O culto da uerecundia (493.48-494.11) e do mos maio-
rum (494.11-43) opõe-se aos costumes corrompidos da sociedade actual, tais como
a prática corrente do duelo ou a ociosidade dos aristocratas, que consideram ignóbil
qualquer actividade em que possam ganhar a vida.
Os deveres dos homens de guerra abrangem tudo o que é honesto (494.47-50).
A fides, a caritas patriae, a religio, o pudor tornam os soldados disciplinados e o exér-
cito invencível, pois na guerra é importante a valentia, mas mais ainda a ordem, a
moderação, a táctica, a disciplina (495.36-40). Os exemplos da antiguidade romana
revelam o valor da força, aliado à moderação e disciplina (496.1-43).
Porém, para que um estado permaneça rico e abundante de todos os seus bens,
deve ser fortalecido não só pela força das armas, mas pela justiça. A força das armas,
traduzida não só na valentia dos soldados, como na sua modestia e humanitas — a
verdadeira fortitudo, magnanimitas — deve ser ajudada pela força das leis (497.61-
65). Segue-se o elogio das leis, a par de considerações sobre a moralização do cargo
de juiz, com base no livro XI das Leis de Platão (498.64-499.16). A crítica à subtile-
za do direito, topos humanista, remonta, segundo Osório, à tradição bíblica (499.18-
21). Para se opor a ela, é conveniente que as leis não sejam em grande número nem
difíceis de interpretar (499.37-41). Ao rei compete eleger os melhores juízes, para
não vir a sofrer as graves consequências da sua incúria (503.58-504.19).
Depois de se ter ocupado das leis e julgamentos, refere Osório que o rei se não
deve ocupar apenas em promulgar leis que curem os males da república, mas que
de preferência os previnam (504.19-34).
Esta medicina curativa reside na educação. Os pais devem educar conveniente-
mente os filhos e não devem ter a liberdade — se é que merece tal nome (504.51-
52) —, a permissividade de negligenciar esse imperativo. Se tal acontecer, o corpo
político da república ficará afectado, a lei natural, que antepõe o bem colectivo ao
bem particular (505.9-11), será desprezado. Curiosa é a prosopopeia, apresentada
neste final de livro, em que a mãe-pátria se dirige aos seus cidadãos, descuidados na
educação dos filhos e os adverte dos males que lhe causam (506.8-58).
Osório aconselha o rei a que nomeie oficiais que olhem pelos costumes, os mo-
rum praefecti, que devem punir com severidade os pais negligentes na educação dos
filhos (509.38-41). A eles caberia também castigar os ociosos, como se fazia entre os
Egípcios ou em Atenas, segundo a lei de Drácon. Este excurso sobre a ociosidade,
liga-se directamente à questão de definir qual será o ofício dos nobres (510.9-10).
A crítica à vida ociosa e de prazer, que a aristocracia leva, une-se à exortação do
rei para que intervenha na sua formação, de modo a que não seja obrigado a malba-
ratar a sua liberalidade ou a recompensar a falta de mérito (511.23-512.12). O tom
interventivo não abandona nunca o discurso de Osório.
Os exempla clássicos provam as vantagens da boa educação e formação dos
nobres, nas virtudes humanas e divinas, adquiridas pela emulação e imitação de um
rei magnânimo e virtuoso (512.12-514.44).

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 491


Nair Castro Soares

Numa palavra, a abundância de bens, proporcionada pela força de trabalho,


pela magnanimidade dos homens de armas e a equidade na aplicação da justiça
exigem a integridade de costumes e uma boa educação de todos os cidadãos (515.17-
47).
É a rebater a temática apresentada no livro I, sobretudo nos dois últimos livros
do tratado, nos livros VII e VIII (469.1 e sqq.), que se tratam desenvolvidamente
aspectos essenciais às funções concretas do rei, no cabal desempenho do seu ofício
como: rex artifex, et moderator, et dux, et architectus (536. 53-54).
É dentro deste quadro retórico que a imagem do príncipe ideal, o rei filósofo de
Platão (557.9-25), se envolve numa auréola de espiritualidade própria da philosophia
Christi que estava de acordo com a transcendência dos finais do De republica de
Cícero e da República de Platão.
Poderemos mesmo afirmar que Osório, apoiado na antinomia estrutural otium/
negotium, deu à sua obra, reflexo da forma mentis da época e da realidade da nação
lusa no terceiro quartel do século XVI, a dimensão do humanismo português e
universal71.

71 
Nair de nazaré castro soares, O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório cit., p.
326.

492 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Between E arth and Underworld:
The Case of A ristophanes’ Frogs
John Thorburn
Baylor U.
john_thorburn@baylor.edu

A ntithesis is a cornerstone of Aristophanic comedy. Male versus female, young


versus old, sophisticated versus boorish, and war versus peace are all common
antitheses in Aristophanes’ plays. Aristophanes’ Frogs, which appeared less than a
year after the battle of Arginusae and the deaths of Euripides and Sophocles and
which won first prize at the Lenaea of 405 B.C.E., also relies on antithesis. In
Frogs, Aristophanes offers both humor and instruction through opposites such as
slave and free, god and mortal, Dionysiac and Heraclean,1 what is useful (chrês-
ton) for Athens and what is not useful, and the values and education of an older
generation of Athenians, represented by Aeschylus, and the younger generation,
represented by Euripides.
Another prominent antithesis in Frogs is that of underworld and earth. In the
play, Dionysus travels to the underworld to bring back a tragedian to Athens, where
the tragic art has suffered because Aeschylus, Sophocles, and Euripides are now
deceased. Frogs was not the first Aristophanic comedy in which the playwright
brought inhabitants of the upper and lower worlds into contact; both his Heroes
and Gerytades, both of which predated the Frogs, also may have dealt with contact
between Athens and the underworld.2 In these two plays, however, living mortals
may have raised dead mortals. In Frogs, a god descends to the underworld to raise
a mortal.3 Much of the more recent scholarship on Frogs has rightly focused on
Dionysus’ development as a character in the course of his journey.4 This paper,
however, examines place rather than person by studying the antithesis of earth
and underworld. “From Athens to Heaven or Hell is the matter of a few word

See Ismene Lada-Richards, Initiating Dionysus: Ritual and Theatre in Aristophanes’ Frogs (Oxford: Clarendon Press,
1 

1999): 17-44.
2 
Hooker (1980: 178) dates the Gerytades to 408 B.C.E. Aristophanes’ plays dealing with contact between inhabitants
of the upper and lower worlds were undoubtedly influenced, at least to some extent, by Eupolis’ Dêmoi, “which brought
back to life Solon, Miltiades, Aristides, and Pericles.” See Thomas K. Hubbard, The Mask of Comedy (Ithaca: Cornell
University Press, 1991): 200; see also Kenneth J. Reckford, Aristophanes’ Old-and-New Comedy (Chapel Hill: University
of North Carolina Press, 1987): 408.
3 
Albeit a mortal who may take on divine qualities, as Lada-Richards (1999: 327) points out.
4 
See especially Charles P. Segal, “The Character and Cults of Dionysus and the Unity of the Frogs,” HSPh 65 (1961):
207-242; P. Epstein, “Dionysus’ journey of self-discovery in the Frogs of Aristophanes,” Dionysius 9 (1985): 19-36;
Richard F. Moorton, “Rites of Passage in Aristophanes’ Frogs,” CJ 84 (1988-1989): 308-324; Mark Padilla, “The Hera-
clean Dionysus: Theatrical and Social Renewal in Aristophanes’s Frogs,” Arethusa 25 (1992): 359-384; Steven Forde,
“The Comic Poet, the City, and the Gods: Dionysus’ katabasis in the Frogs of Aristophanes,” Interpretation 21 (1993-
1994): 275-286; Lada-Richards 1999: passim.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 493


John Thorburn

and gestures” in Aristophanes, writes John Vaio.5 In Frogs, Aristophanes takes his
Athenian audience to visit the underworld, but in the course of their imaginary
journey they discover that the customs and inhabitants of the underworld bear
many similarities to those of Athens. Thus, the comic poet blurs the distinctions
between the upper and lower worlds. This not only creates humor, but also points
out the deterioration of his city and its citizens.
As the play opens, Dionysus, dressed like Heracles, goes to the real Heracles
home to seek advice about a journey to the underworld. One intersection in this
episode between the customs of Athens and the underworld occurs when Dionysus,
upon learning from Heracles that he will have to pay Charon two obols to be fer-
ried to the underworld, notes the power of two obols in the upper world (141). As
Moorton notes, two obols was “a comic inflation of the legendary obol for Charon,”
but two obols may also have been the price of admission to the play the Athenians
were watching.6 By having entrance into both Hades and the theater in Athens cost
the same price, Aristophanes blurs the distinction between Athens and underworld.
Heracles additional detail that the Athenian hero Theseus brought down the obols
adds a further link between the underworld and Athens.
A similar intertwining of customs appears in the subsequent meeting with
Charon, who tells Xanthias that he will not allow slaves on his boat unless they
fought at Arginusae (190-91), after which Athenian slave combatants were freed
and granted citizenship.7 While Xanthias cannot enjoy the privileges granted to
Athenian slaves after Arginusae, Dionysus also appears rather un-Athenian as he
reveals his inexperience in rowing and with the sea (204).8 Dionysus education in
becoming more Athenian begins as he rows across the lake and hears “the ghosts of
frogs which once lived at Athens” (215-219).9 Not only is the fee to enter the under-
world an Athenian one, but also the frogs in the underworld are Athenian.

John Vaio, “On the Thematic Structure of Aristophanes’ Frogs,” In Hypatia: Essays in Classics, Comparative Literature
5 

and Philosophy Presented to Hazel E. Barnes on her Seventieth Birthday. Edited by William M. Calder III, Ulrich K.
Goldsmith, and Phyllis B. Kenevan (Boulder, Co.: Colorado Associated University Press, 1985): 91.
Moorton 1989: 311. For the two-obol admission fee and uncertainty regarding its history, see Arthur Pickard-Cam-
6 

bridge, The Dramatic Festivals of Athens (Oxford: Clarendon Press, 1953): 270-73.
7 
For more on this subject, see B. Baldwin, “Medical grounds for exemptions from military service at Athens,” CPh
62 (1967): 42-43; W. B. Stanford, Aristophanes: Frogs (London: Bristol Classical Press, 1958): 132; Dover 1993: 279;
Sommerstein 1996: 217. The citizenship granted to the slaves after Arginusae may have had some sort of limitations
placed upon it.
8 
The characterization of Dionysus as un-Athenian is not consistent, however, because in the beginning of the play, for
example, Dionysus was well-aware of the sort of jokes Athenian comic poets employed to make the audience laugh.
Contrast Segal (1961: 228), who describes Dionysus in the Frogs as “a peculiarly Attic god.” Segal, however, is thinking
of Aristophanic Dionysus in comparison with Euripides portrait of Dionysus in Bacchae. For Aristophanes’ inspiration
for the rowing scene, see A. M. Wilson, “A Eupolidean Precedent for the Rowing Scene in Aristophanes’ Frogs,” CQ 24
(1974): 250-252 and the same author’s “Addendum to ‘A Eupolidean Precedent for the Rowing Scene in Aristophanes’
Frogs,’” CQ 26 (1976): 318.
9 
Dover 1993: 223. Moorton (1989: 312) notes, “scholars are divided over whether the frogs are dead or alive, and inhab-
iting the underworld or upper world.” Sommerstein (1996: 177) agrees with Dover that the frogs Dionysus encounters
are the spirits of Athenian frogs.

494 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Between Earth and Underworld: The Case of Aristophones’ Frogs

After Dionysus’ encounter with the frogs, Aristophanes continues to link Ath-
ens and the underworld. Upon being reunited with Xanthias, Dionysus asks his
slave if he “saw those father-beaters and perjurers.” Xanthias answers affirmatively
and then asks, “Why, didn’t you?” Dionysus responds, “Yes, by Poseidon, I did
and I can still see them now!” (276). Dionysus’ remark refers to Aristophanes’
audience. Aristophanes both breaks down the barrier between actor and audience
and eliminates the distinction between his real audience and the inhabitants of the
underworld. Such a remark transports the spectators to the underworld and links
Aristophanes’ fellow Athenians with some of the underworld’s notorious inhabit-
ants. We note also that father-beaters (patraloiai) are connected to the intellectual
movement that Aristophanes associates with Socrates and Euripides. In Clouds,
Pheidippides becomes a patraloias (1327) after being educated at Socrates’ school.
Later in Frogs (773), Pluto’s slave mentions the patraloiai as being enthralled with
Euripides’ poetry after his arrival in the underworld.10
In addition to Aristophanes linking his audience with some of the underworld’s
most notorious inhabitants, the playwright even brings Dionysus’ own priest into
the underworld. At line 297, Dionysus, terrified by the image of Empusa, runs to
the front of the orchestra and begs the priest of Dionysus, who would have been
sitting in the front row, “Priest, keep me safe, so I can come to your party [after the
performance].”11 Here, Aristophanes turns “religion topsy-turvy” as “a god begs a
human for protection,” as well as, in some sense, places Dionysus’ Athenian priest
in a netherworld version of the theater.12
Another link between the underworld and Athens emerges during the parodos
of the second chorus, who, like the frogs, have an Athenian connection, as they are
initiates to the mysteries at Eleusis (part of Athenian territory). By the time of the
initiates’ delivery of the parabasis (686), Aristophanes has substantially blurred the
antithesis between Athens and underworld. This clears the way for him to establish
and explore the most important (in this writer’s opinion) antithesis in the play:
what is useful (chrêston) for Athens and what is not useful.
At lines 727-33, the initiates complain that Athens is turning its back on the
“well-born, virtuous, honest, fine, upstanding men, reared in wrestling-schools and
choruses and culture” and is embracing “men of base metal, aliens, redheads, low
fellows of low ancestry, johnny-come-very latelys, whom formerly the city wouldn
t have used… even as scapegoats” (727-33). The initiates in the underworld con-
clude by urging the audience of the upper world to “honour the honest again”
(chrêsthe tois chrêstoisin authis, 735).

10 
See also Birds 1337 ff., where a patraloias tries to enter the city in the clouds and is rejected.
11 
Stanford 1958: 98; Dover 1993: 230; Sommerstein 1996: 181.
Sommerstein 1996: 181; Niall Slater, Spectator Politics: Metatheatre and Performance in Aristophanes (Philadelphia:
12 

University of Pennsylvania Press, 2002): 186. See also Niall Slater, “The Lenaean Theatre,” ZPE 66 (1986): 263. In
this article, Slater makes the case for the Lenaea’s productions being held at a theater in the precinct of Dionysus at
Limnais.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 495


John Thorburn

While at first glance the initiates’ remarks may seem out of place with what has
come before and what will follow, the two groups of citizens just described resem-
ble those who embrace the poetry of Aeschylus and Euripides. Those in Aeschylus
audience were virtuous old coinage, while Euripides’ audience members are char-
acterized as base coinage.
After the parabasis, an unnamed slave of Pluto tells Xanthias how Euripides be-
came popular in the underworld. He explains that when the most skillful person in
a profession on earth dies and descends to the underworld, that person is rewarded
with, among other things, maintenance in the Prytaneum (764). Note again the
similarity between Athens and the underworld. Not only does the underworld have
a Prytaneum, but also the underworld’s inhabitants have a custom similar to the
Athenians, who rewarded their “victors in the panhellenic games” with mainte-
nance in the Prytaneum.13
A further elimination of the antithesis between Athens and underworld oc-
curs when Xanthias hears that the crowd of evildoers in the underworld embraced
Euripides as their champion. Accordingly, Pluto’s slave laments that “the honest
(chrêston) are few” (783) both in the underworld and on earth.14 In making this
comment, Pluto’s slave shatters the dramatic illusion “as he waves [his] hand toward
the audience”, as the Greek words hôsper enthade indicate.15 Note also that the slave
s use of the word chrêston recalls the parabasis, in which the initiates’ final injunc-
tion to the audience was to “honor the honest” (chrêsthe tois chrêstoisin, 735).
As the episode ends, Xanthias learns that Dionysus will judge the contest be-
cause, among other reasons, Aeschylus regarded the Athenians as villains (toichôru-
chous, 808). The use of the noun toichôruchous echoes its only other occurrence in
the play (line 773), where Pluto’s slave mentioned the toichôruchoi as part of the
crowd in the underworld who were enthralled with Euripides’ poetry. As Slater
notes, “If we needed any further assurance that Hades is just another version of
Athens, this dialogue [between Xanthias and the slave] provides it.”16 The toichôru-
choi in the underworld love Euripides and the toichôruchoi in Athens would un-
doubtedly judge him as their champion. As for the fictional Aeschylus’ rejection of
the Athenians as judges in the contest, this deviates from the real Aeschylus’ own
choice in his Eumenides, in which his fellow Athenians served as jurors for Orestes’
trial. In the five decades since the Eumenides was first staged, Aristophanes has
Aeschylus lose confidence in the Athenians’ ability to judge.
After the episode between the two slaves concludes, preparations for the contest
begin as Dionysus, Aeschylus, and Euripides take the stage. Pluto is also present,
but he does not speak until the play’s conclusion (line 1414). While the contest oc-

13 
Dover 1993: 287. See also Stanford 1958: 138; Sommerstein 1996: 222-23.
14 
The translation of chrêston as “honest” is my translation.
15 
Dover 1993: 288.
16 
Slater 2002: 192.

496 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Between Earth and Underworld: The Case of Aristophones’ Frogs

curs in the fictional underworld, the subject matter focuses on real concerns in the
upper world, namely what sort of instruction a playwright should provide for citi-
zens. Thus, the contest that Dionysus will judge is not merely between Aeschylus
and Euripides, but a contest over the Athens of old and the Athens of Aristophanes
own time. Aristophanes spent the first half of the play blurring the distinction be-
tween upper world and underworld, but now he returns to the very clear antithesis
he established in the parabasis, the antithesis between the current citizens of Athens
(represented by Euripides) and its citizens of old (represented by Aeschylus).
After some initial verbal sparring between the two poets, the formal analysis
of poetry begins at line 1120. With respect to this paper’s thesis, the three main
critical contests that follow are good fun, but have little concern with the antithesis
of earth and underworld. At lines 1119-1250, the two playwrights criticize each
other’s prologues. At lines 1261-1363, the tragedians parody each other’s lyrics. At
lines 1364-1413, the pair compete to determine who composes the heaviest lyrics.
The final contest between the two tragedians returns to issues that concern the
Athenian polis. At line 1411-13, Dionysus indicates to Pluto that he has not made
up his mind between the two poets because “One of them I consider to be a re-
ally great [sophon] poet, and the other I enjoy [hêdomai]!” In the first half of Frogs,
Dionysus had disguised himself as Heracles in imitation of that hero’s journey to
the underworld. At the play’s conclusion, Dionysus may have set aside the costume,
but the choice he must now make recalls a parable about Heracles attributed to
Prodicus of Ceos, who may have been one of Euripides’ teachers and with whom
Aristophanes was also familiar.17 The so-called “Choice of Heracles,” partially pre-
served in Xenophon’s Memorabilia (2.1.21), relates how Heracles encountered the
personifications of Aretê and Kakia and had to choose which of them to follow.
Thus, in a manner reminiscent of Prodicus’ Heracles, Dionysus, at the crucial
juncture of his “journey of self-discovery” as Epstein calls it, must choose between
Aeschylus and Euripides.18 When crossing into the underworld, Dionysus had ap-
peared rather un-Athenian, describing himself as un-Salaminian and admitting
that he had little knowledge of seamanship. By the play’s end, however, Dionysus
appears more Athenian as he challenges the two playwrights to comment on what
Athens should do about Alcibiades.19 As Epstein points out, Dionysus is becom-
ing less concerned with his own interests and more concerned with the interests of
Athens. Hooker, holding a similar view, finds that Aristophanes “makes his opin-
ion clear by setting two attitudes in stark opposition to each other: the public and
communal versus the private and selfish.”20 The concern with Athens is clear as the
words polis and politês occur eleven and three times respectively in the play’s last

17 
See Clouds 361, Birds 692, Fragment 490 Kock.
18 
Compare Segal (1961: 227), who describes Dionysus’ journey as a “rebirth or rediscovery of himself.”
19 
On Dionysus’ growth as a character, see also Slater 2002: 183.
20 
Hooker 1980: 171; see also Lada-Richards 1999: 109.

Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 497


John Thorburn

125 lines.21 At lines 1420-21, Dionysus returns to the antithesis of chrêston versus
achrêston established earlier when he gives the two playwrights their final chal-
lenge:

I came down here for a poet; and why? So that the City [polis] may survive
and go on holding her choral festivals. So whichever of you is going to give
some good [chrêston] advice to the City, that is the one that I think I’ll be
taking back with me.

After the playwrights speak, Dionysus again recalls Prodicus’ Heracles. At lines
1433-34, Dionysus remarks, “By Zeus the Saviour, I can’t make up my mind. One
of them has spoken intelligently [sophôs] and the other intelligibly [saphôs]!” Faced
with the antithesis of intelligence (Aeschylus) versus intelligibility (Euripides), Di-
onysus focuses on the welfare of the polis and urges the playwrights, “Just give me
one more suggestion each about a way...for the City to secure her survival” (1436).
After Euripides’ proposal, Aeschylus, echoing Aristophanes’ injunction in the
parabasis for the Athenians to “honour the honest again” (chrêsthe tois chrêstoisin
authis, 735), questions Dionysus before making his suggestion (1454-55): “Well,
first tell me about the City, who does she honour [chrêtai]? Is it the honest [chrês-
tois]? When Dionysus informs him that the polis “takes pleasure in villains [ponêr-
ois, 1456],” Aeschylus wonders how such a city can be saved. Dionysus responds,
“You’d better find a way, if you want to rise to earth again” (1460). Aeschylus,
perhaps alluding to the character of Sisyphus from one of his own plays the de-
ceased Sisyphus tricked Pluto into allowing him to return to the upper world , tries
to trick Dionysus by saying that he will give his advice when they reach the upper
world, but Dionysus orders him to offer his advice from the underworld (1461-62).
Aristophanes blurred the distinction between earth and underworld throughout
the play, but Dionysus establishes very clear boundaries for Aeschylus here. Because
Aeschylus has the opportunity to gain a reward even greater than Homeric Achilles
longed for not only to return to the upper world, but also return to his previous
station in life , the playwright offers his advice.22
After Pluto urges Dionysus to make a decision, Aeschylus is chosen. Although
Aristophanes blurs the antithesis between earth and underworld in Frogs, in the
end the playwright does not have Dionysus choose Euripides, whose poetry blurred
the distinction between existence upon the earth and existence in the underworld.
At lines 1477-78, Dionysus concludes his rejection of Euripides by quoting one
of the tragedian’s own lines to him: “Who knows if life is truly death”, a remark
adapted from Euripides’ Polyidus (638 Nauck) and/or his Phrixus (833.1).23
21 
See polis at 1419, 1420, 1423, 1429, 1431a and b, 1436, 1454, 1458, 1501, 1530; politês at 1427, 1446, 1487.
For a comparison of Aristophanic Aeschylus and Achilles, see T. A. Tarkow, “Achilles and the Ghost of Aeschylus in
22 

Aristophanes’ Frogs,” Traditio 38 (1982): 1-16.


23 
Dover 1993: 379.

498 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade


Between Earth and Underworld: The Case of Aristophones’ Frogs

After Pluto, Dionysus, and Aeschylus return to Pluto’s house for some enter-
tainment before their departure, the chorus praise Aeschylus for his intelligence
and wisdom and condemn Euripides for ruining tragedy by infusing his plays with
Socratic nonsense (1491-95). When Pluto returns with Dionysus and Aeschylus,
Aristophanes continues to blur the distinction between Athens and the underworld
as he has Pluto urge the playwright to “Save our [my italics] city” (1501).24 Pluto also
brings Aristophanes’ audience into the underworld as he tells Aeschylus to “educate
the foolish [anoêtousa] folk there, many as they are” (1502-3).
Aeschylus’ return to the upper world holds the expectation that both tragedy
and Athens will benefit. Moreover, Aeschylus, ensuring that similar pedagogical in-
tegrity will exist in the underworld, tells Pluto to give his chair as master of tragedy
to Sophocles. Thus, even at the play’s conclusion, Aristophanes blurs the antithesis
between upper and lower worlds as he establishes as heads of the tragic arts in both
realms two poets who will provide the inhabitants with good instruction.25 Ae-
schylus will establish “communal order” in the upper world, while Sophocles will
establish it in the underworld.26

Slater (2002: 205) notes that Aristophanes’ use of the possessive “our” may be “a compliment to Athens, but it may
24 

be a dire warning: Pluto was not a divinity much honored with worship or gladly acknowledged in ancient Greece.”
As Dover (1993: 382) notes, Scaliger rejected the reading hêmeteran because “the god is not an Athenian.” Our thesis
that Aristophanes continually blurs the antithesis between Athens and underworld obviously supports the reading of
hêmeteran.
25 
For a pessimistic view of Aeschylus’ return to Athens, see C. H. Whitman, Aristophanes and the Comic Hero (Cam-
bridge: Harvard University Press, 1964): 256.
26 
On Dionysus establishment of “communal order,” see Segal 1961: 215-16.

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