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Seria a Torah cruel com os escravos?

A Parashá Mishpatimtraz uma porção bastante polêmica:


“Se alguém ferir a seu servo, ou a sua serva, com pau, e morrer debaixo da sua mão,
certamente será castigado; Porém se sobreviver por um ou dois dias, não será
castigado, porque é dinheiro seu.” (Shemot/Êxodo 21:20-21)
À primeira vista, parece complicado conciliar a passagem supracitada com o caráter e a
natureza de Elohim, que é amoroso e misericordioso.
Como pode a Bíblia não apenas aceitar a escravidão como ainda por cima permitir que
um dono de escravo o espanque até deixá-lo à beira da morte, desde que não o mate
de imediato?
É preciso compreendermos que nem sempre as traduções revelam tudo o que está por
detrás da situação. A primeira coisa a compreender é que a escravidão bíblica,
conforme já vimos em outros estudos, não é a mesma coisa que o conceito de
“escravidão” moderno.
Segundo a Torah, uma pessoa que estivesse endividada além das condições de arcar
com suas dívidas poderia se oferecer para trabalhar gratuitamente para alguém durante
um período de até 7 anos. Durante esse período, o sustento e a responsabilidade pela
família da pessoa em dívida recaíam sobre os seus senhores.

Será mesmo que esses escravos dos tempos bíblicos eram mal tratados? Será que
Elohim é cúmplice de injustiça?
Para estudarmos a questão, vamos olhar para os tempos bíblicos e compará-los com
os tempos atuais. Abaixo, um quadro comparativo entre o que era a escravidão bíblica,
versus o que ocorre hoje em dia se, por exemplo, nos endividamos junto a bancos.

A “Escravidão” Bíblica O Endividamento Moderno

Uma pessoa vendia seu trabalho e quitava O trabalho de uma pessoa pode não ser
todas as suas dívidas (Lv. 25:39) suficiente para quitar suas dívidas

O período máximo desse trabalho era de 7 Não há período máximo, e muitas vezes
anos, após o qual as dívidas eram as pessoas trabalham pelo resto das suas
anuladas. (Ex. 21:2) vidas para pagarem dívidas.

O ano do Yovel (Jubileu) poderia antecipar Não há nenhum tipo de antecipação da


a saída do escravo. (Lv. 25:40) saída.

Não poderiam ser explorados Praticamente não há limites do que a


(Lv. 25:39-43) pessoa precisa fazer para se livrar das
dívidas

Ganhavam uma generosa porção de Nada ganham por pagar suas dívidas.
recompensa, se o trabalho tivesse feito
prosperar o seu senhor. (Dt. 15:12)

Era proibido que à sua dívida se Muitas vezes, os juros ultrapassam em


somassem juros (Lv. 25:35-37) muito as dívidas.

Terras produtivas que fossem vendidas Nada do que for pago será jamais
retornavam aos seus donos no Yovel restituído.
(Jubileu), quer ao proprietário inicial, quer
aos seus descendentes. (Lv. 25:29)

Não é difícil perceber que a Bíblia era bem mais justa do que a sociedade atual, e bem mais branda para com os endividados. Ocorre apenas
que a tradução do termo como “escravo” dá uma falsa impressão de que os israelitas mais pobres eram oprimidos com o aval de Elohim.
Mas ainda não temos a resposta à nossa indagação: Como poderia um senhor matar ao seu escravo e ficar livre?
Na realidade, a Torah diz que se o senhor sequer ferir o seu escravo, este imediatamente se tornará livre:
“E quando alguém ferir o olho do seu servo, ou o olho da sua serva, e o danificar, o deixará ir livre pelo seu olho. E se tirar o dente do seu
servo, ou o dente da sua serva, o deixará ir livre pelo seu dente.” (Shemot/Êxodo 21:26-27)

Além disso, deveria pagar compensação adequada por aquilo que feriu:
“Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.” (Shemot/Êxodo 21:24)
À exceção dos tsedukim (saduceus), a interpretação comum do passuk (versículo) acima sempre foi a de que a Torah se refere a valores
compensatórios, e não ao ferir de volta o agressor.
Mas, então, como podemos entender a passagem inicial? É simples: A passagem inicial deixa claro que a pessoa que assassinar o seu servo
será responsabilizada:
“Se alguém ferir a seu servo, ou a sua serva, com pau, e morrer debaixo da sua mão, certamente será castigado.” (Shemot/Êxodo 21:20)

Porém, a situação é relativamente delicada, pois a punição para o assassinato era a morte. A Torah portanto se preocupa com a situação de
um servo morrer de causas naturais, e o seu senhor ser responsabilizado pela morte do servo.
Por isso a Torah diz: “Porém se sobreviver por um ou dois dias, não será castigado, porque é dinheiro seu.”

A última frase é chave para a compreensão: “porque é dinheiro seu.” Em outras palavras: por que um senhor mataria a um servo, e
prejudicaria a si mesmo? O trabalho do servo era de sua posse, e portanto o servo era “seu dinheiro”. Assim sendo, não se pode partir do
pressuposto de que o servo necessariamente morreu por maus tratos. O servo pode ter morrido de causas naturais.
A Torah não está determinando um prazo máximo para que a família do servo assassinado veja a sua retribuição. Por isso mesmo a Torah
não diz “um dia” ou “dois dias”, e sim “um ou dois dias”. Em outras palavras, se morrer muito tempo depois de ter sido supostamente
agredido, o seu senhor pode até ser responsabilizado pelo ferimento, mas não se pode partir do pressuposto de que a morte foi causada pelo
senhor.
O que podemos concluir disso? Que até mesmo aqueles que são réus perante a Torah merecem ser tratados com justiça. Uma pessoa não
pode, nem deve, ser punida de forma excessiva, e sem que se tenha o devido cuidado para verificar até onde vai a extensão da culpa.
Que podemos extrair de lição sobre isso na prática? Muitas vezes quando uma pessoa comete ato contra outra, nossa tendência é de nos
solidarizarmos com o que foi prejudicado. Se nós fomos os prejudicados, então, nos sentimos no direito de querermos ver a ruína do outro.
Todavia, a Torah nos ensina que devemos tomar cuidado para não cometermos injustiça em nossas reações.
Rapidamente, uma situação pode se inverter e, caso a justiça não seja equilibrada, um réu pode se tornar vítima de uma punição desmedida.

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