You are on page 1of 22

Teatro

Eu avec você

Rogério Viana

Curitiba – Paraná
Dezembro de 2009

(todos os direitos reservados)

1
Eu avec você

Personagens

Gabriel – autor de teatro, mora numa grande cidade ao sul do Brasil, tem cerca de 60 anos.

Susana – autora e professora de teatro, mora em Paris, tem cerca de 60 anos.

O fuso horário entre Brasil e França apresenta uma diferença de 3 horas. Quando aqui são 11h00,
lá já são14h00. Quando estamos iniciando o almoço, lá eles já almoçaram. Quando vamos dormir,
eles já estão em sono profundo. Quando acordamos, eles já estão em plenas atividades do seu dia a
dia. Estamos sempre atrás dos franceses no que estamos fazendo. São três horas de diferença no
fuso horário. Aqui é mais cedo, lá é mais tarde. Aqui tudo para fazer, lá as coisas já foram feitas.
Tantas diferenças, três horas apenas. Lá em Paris, aqui, ao sul da América Latina e em outros
lugares o tempo não para. Avança. O tempo se mistura, independe do fuso – uma formalidade
técnica. Os personagens, dentro ou fora de seus fusos espaciais, temporais, sempre encontram
caminhos para uma comunicação que não se dá, muitas vezes, apenas pela palavra. Se comunicar
é se aproximar, mesmo distantes, improváveis, impossíveis e utópicos, alguns encontros acontecem
mesmo sobre uma folha de papel, ou várias. Apenas lá. Desligue o ventilador e fechem as janelas.
Os ventos, ah, os ventos...

2
Eu avec você sonhos mais ambiciosos, minha filha. Sonho em
vender um dos meus roteiros para uma grande
Cenário: Um pequeno apartamento é utilizado companhia de teatro aqui, talvez no exterior
simultaneamente por personagem numa grande também. Sabe, aquele roteiro de cinema que
cidade do sul do Brasil e outra personagem em escrevi e que está há anos na gaveta... Quem
Paris. Dois relógios de parede destacam os sabe um desses diretores queira filmá-lo.
horários diferentes entre Brasil e França (são Quanto? Eu queria 300 mil para a compra de
três horas de diferença do fuso horário entre o um apartamento. Há algo que o senhor poderia
Brasil e a França). Em comum, livros, mesa fazer, mas não me parece interessado em sair do
com computador, telefone, cadeiras, objetos e seu mundinho, não é? Não precisa responder,
vidas. pai.

Susana – Agora mesmo, enquanto estou


1 – Longe daqui, aqui mesmo escrevendo aqui, penso em minha terra. Na
minha infância. Como foi que você chegou
aqui? Foi mesmo um prêmio que a trouxe para
Gabriel – Recebi um e-mail de minha filha. Sei cá, Catharina? Você não sente saudade daquele
que ela anda preocupada com minha saúde. Ela vento gelado batendo forte no seu rosto? Seus
não disse, não foi isto que ela escreveu. Mas é o cabelos loiros voavam para todas as direções
que sinto. Também sei que ela, a esta altura de que os ventos pamperos levavam... Não, hoje,
nossas vidas, queria que eu tivesse alguns bens vez ou outra tenho necessidade e eu me
– que não tenho mesmo! Queria que você não contento com o perfumado vento Mistral, lá na
morasse nem de favor, nem de aluguel. Talvez Provence... Mas é tão diferente! Um vento
um apartamentozinho, pai. Um lugar onde o ancestral, que a liga a sua terra. Outro, um
senhor pudesse acomodar seus livros, suas vento mítico. Tudo foi sonho. Não sei como é
coisas. Já está na hora de sossegar, não é pai? sentir isto tudo agora. Vou abrir a janela, posso,
Catharina?
Susana – Um sinal vermelho acendeu diante
dele. Antes, piscou algumas vezes aquela luz Gabriel – Tem certas horas que as palavras não
amarela. Atenção. A mudança não é sempre chegam até mim. Fica difícil encontrá-las.
lenta, como o passar dos anos. Ela, quando Juntá-las, então, mais complicado. Você se
menos esperamos, vem. Aparece. Não dá mais sente perdido num redemoinho de papel picado,
para esperar. Vamos. O relógio não para. São não é? Em plena ventania. Você junta os
alguns segundos. Vai... Ficou vermelho, pequenos papéis, cada um com uma palavra,
percebeu? O coração sempre fica acelerado uma palavra escolhida a dedo. Fui lá no
quando sinto que uma mudança está para dicionário mais grosso, mais completo, mais
acontecer. Ele só acelera. Prenuncia algo. Você indecifrável. Peguei pequenas palavras,
também sente? O que me diz? Não sei, diga enormes vocábulos. Outras jamais ouvidas.
você o que é isso. Juntou, fui escrevendo em cada pedacinho de
papel. Pequenos papéis, palavras grandes,
Gabriel – Sei que você sonha que eu possa grandes papéis, palavras pequenas, mas
ganhar na Loteria. Não um premiozinho desconhecidas. Assim fica mais fácil você
mixuruca, sei. Você queria que eu fosse o identificar. E vem o vento. Forte. Ah, cuidado
ganhador da maior bolada jamais paga a um só com a janela. Hoje disseram na TV que deve ter
acertador daqueles seis números que fogem de tempestade. Sim, sempre no final da tarde. Ou
mim a cada semana. Mas nem jogar todas as quando já chega a noite e não podemos ficar
semanas ele se dá o direito. Assim, ele joga sem luz. Árvores abatidas. Ventou forte. Foram
quando a bolada é grande, quando ficam tantas árvores abatidas. Faltou energia. E eu
acumulados os prêmios de vários sorteios senti vontade de ligar o ventilador. Você sabe,
seguidos. Eu sei. Eu também sonho, mas tenho aqui, quando a primavera é quente, faz mais

3
calor que no verão dos tempos normais. O vento pelo demônio. Estressada que só ela!
esparramou tudo, pai? Deu para juntar? Estressada? Vá se ferrar! Kada koisa!
Estavam numeradas todas as 535 páginas? Que
trabalhão, hein? Uma voou pela janela? Sei, Susana – Todo tempo difícil passa. Pode
sei... Recuperou? Que bom! Nem sempre eu demorar, eu sei, eu sei... Quando a gente menos
consigo recuperar o verbo que fugiu pela janela. espera o sinal não fica só no vermelho, nem o
Fugiu. Deixou-me aqui em desalento. amarelo fica sinalizando atenção, atenção,
atenção... Vem o verde, fica intenso, ali no alto.
Susana – A menina, aos olhos dos seus pais, Algumas vezes eu não gosto de lembrar de um
não poderia sofrer os ventos daqueles anos que certo tom de verde. Aquele tom de verde que
ninguém quer relembrar. Muito menos vivê-los. tanto se manchou de vermelho. Catharina, como
A mudança para o outro lado da fronteira. As foi sua prova? Foi mesmo tudo escrito em
ondas no grande rio. O barco que ia em direção francês? Que maravilha! Pai, pai... acho que
a outro porto, outros ares. Demora a travessia? posso concorrer a uma bolsa de estudos no
O senhor acha mesmo que lá é mais seguro? exterior. Sim, na França? Na França? Tão
Demora um pouco, mas a certeza é que longe! Catharina, estou pensando no seu tio, no
chegaremos em segurança. Ninguém vai seu avô. Aquele “Adiós, nonino” não me sai da
procurá-lo, eu sei, eu sei, meu querido. cabeça! Paris, tango. Nossa! Nossa menina vai
Ninguém vai aparecer a noite, bater à nossa mesmo para Paris. Tenha cuidado com tango e
porta. A menina podia respirar um pouco mais manteiga, está bem, querida? Muito cuidado se
de calma. Não que tivesse sido atingida o cara for mais velho. Nunca se sabe...
diretamente por aqueles terríveis ventos. Talvez
o vento fosse benfazejo. Numa nova terra, Gabriel – Recuperei algumas coisas que o
outros costumes. Ah, tem água quente para o tempo tratou de espalhar em diversas caixas
mate. Sim, eu quero. Pode servir. Catharina, não empoeiradas como joias preciosas dentro dos
esqueça de colocar seu capuz azul, aquele onde meus pequenos armários. Poucas roupas, muitos
bordei nosso sol de verão e liberdade. papéis. Coisas inúteis cuidadas como se fossem
importantes. Lembranças desbotadas. Todas.
Gabriel – Outro e-mail. Será que não é um Nem todas as lembranças a gente deve
cavalo-de-troia? Ainda bem que meu amigo desprezar. Nem jogar fora. Há muitas delas que
instalou um anti-vírus potente. Ainda bem! Se nos fazem vivos. Não vá mudar por completo o
aparecer algo errado, ele vai disparar um sinal seu jeito de ser, está me entendendo? Mude o
sonoro. Não, não será preciso fazer nada. Deixe que sente que pode sustentar. Mude aos poucos.
em quarentena. Se quiser, simplesmente exclua Mas a gente, nem sempre, se dá conta de que as
o arquivo. As pastas estão em ordem. Agora um mudanças aconteceram mesmo. Há outras que a
dos Hds foi destinado apenas para os gente só sente quando alguém nos diz. Ou até
programas. O outro, maior, foi formatado e só quando olhamos mais demoradamente no
tem seus arquivos. Eu não sei bem lidar com espelho de cada manhã e vemos. Cara! Você
essas coisas. Poxa, você é mesmo desatento nas está tão bem! Quanto tempo! O tempo foi
questões de informática, não é? Tem vezes que camarada com você, não é? Ainda bem que
eu penso que meu computador é uma mulher você me chamou. Eu não ia reconhecê-lo com
em permanente TPM. Como? O que você disse? quinze quilos a mais. Quanto? Já se passaram
Foi o que entendi? A gente nunca sabe qual será vinte anos? Parece que foi ontem!
a reação dela. Fica teimoso. Elas ficam
teimosas, sensíveis. Ela gritava sempre. Outras, Susana – Quando relembro estes trinta anos
não aceita palavras que começam com “C”. aqui, me vem à memória um turbilhão de
Karo amigo, dá para kuidar dessa koisa? Viu só, emoções. Sim, você é uma pessoa que se
foi somente assim que ele viu que eu não estava movimenta com muita competência no meio de
falando besteiras sobre a TPM do meu tanto desatino. Você foi mesmo treinada – treino
computador! Ela ficava cega. Parecia tomada involuntário, claro – a não se deixar levar por

4
coisas que o tempo aponta como pequenas, de costas para o oceano azul esverdeado e de
nenhuma importância. Eu havia escrito um frente para a indominável cordilheira azul e
pequeno conto. Escrevi direto em francês. Nada branca. Os que estão mais a leste, onde o sol
complicado. Dois bons dicionários me ajudaram nasce, também não enxergam como nós
muito. Você sabe, Catharina! Você sabe! Eu não enxergávamos os platôs andinos. Os ventos
sou do tipo que se deixa abater por pequenas calmos que sopram por lá movimentam as
questões do dia a dia. As grandes questões, ah... areias de corpos morenos, de gente mulata.
eu sei... Não mexem com você? Não, você não Aqui, por esse lado do Sena eu posso enxergar
me parece uma mulher fria. Muito pelo um monumento universal. Veja só, Catharina.
contrário. Eu sei que você se importa sim com Aquela torre. Para o que ela aponta mesmo?
sua história. Não é isso que você vive fazendo Diga lá, Catharina: Você dançou mesmo sua
com seus escritos? Está lá. Em cada página há primeira valsa com um rapaz que tinha a cara
uma referência. Veja bem, quando a temporada do John Lennon? É mesmo? Bem, eu não
de adaptação passou, eu tinha a vida real. Aqui cheguei a pedir um autógrafo. Eu só o vi de
há coisas bem diferentes do que as vividas ao longe. Também, como eu ia conseguir pagar por
norte do rio da Prata. Aqui tem o Sena. Rio um lugar mais próximo do palco? Mas eu vi
manso, rio que pouco transborda. Rio de todos os quatros rapazes cabeludos. E era uma
margens bem definidas. Que segue seu milenar gritaria só. Minha voz sumiu por quase quinze
leito. As águas do meu passado seguem sempre dias. Muito tempo. Muito tempo...
em direção ao Atlântico. Antes, doce, depois,
misturadas com lágrimas. Um volume de água Gabriel – Eu pensei que você, ou teria sido seu
que eu nunca poderei me esquecer. Seria um irmão Matheus, ou foi com o Mathias? Bem, eu
pedaço de mar aquele imenso rio prateado? pensei que um de vocês pudesse ter sido preso,
naquela época... Não foi ele. Quem foi vou lhe
Gabriel – Mas você pensa que são apenas vinte contar. O que aconteceu é que eu me envolvera
anos. São quase quarenta, caro Martin. São com um jornal, lá na faculdade de agronomia.
quase quarenta! Pensando bem, uns anos além Sabe, eu queria ser jornalista, mas minha
de quarenta... É mesmo. Você tem razão. As família achava que não iria dar certo ser
horas passaram rápido e eu nem percebi. jornalista naquela época. Devia fazer filosofia,
sei lá. Não, não tinha estômago para ser médico.
Susana – As veias da América Latina, ainda Que nada, faltou-lhe foi culhão, eu sei. Eu sei!
bem, são irrigadas por uma água doce que vem Não, cara, ela veio e pediu para ajudá-la com
do lado nordeste da grande cordilheira. Ainda um texto. Ela era avançada demais para aqueles
bem que elas chegam até nós, que passam por tempos. Quando percebi, depois de terminar o
terras e lugares tão distintos. Que dão a beber a primeiro parágrafo, ela estava cavalgando em
gente tão especial e tão diversa! Ah, não sei mim com suas palavras de ordem, com seu
mais cantar nada em português! Meu francês espírito indômito, com sua vontade e fé cegas.
tenta apagar até meu espanhol. Ele é forte, Já sei, você fez todo o texto, com um português
resiste. Rire, rage et resistance. Mas o correto, não foi? E ela? Ela gozou e eu também.
português, ainda uma língua indecifrável, veio Fiquei até assustado do jeito que foi. Então,
até mim em pequenas levas. Antigas canções. meu caro Martin, foi você mesmo quem foi
Belas vozes. Tinha mais alegria que nosso dia a preso lá em Ibiúna? E o avião da Vasp que foi
dia portenho. Isso tinha mesmo! Nada que me desviado para Cuba? Quem? Vai me contar...
fizesse dominar centenas de palavras. Mas a Conte. É mesmo, você conhecia o rapaz de
música daqueles anos distantes ainda ecoam na Paranavaí que era o comissário de bordo? Sim,
memória do velho rádio fronteiriço entre Ademar, se não me engano. E ela? Ela... me
tangos, tragédias, boleros, bossa nova e levou. Me cooptou para sua causa. Me cooptou,
baionetas. Quanta raiva, quanta raiva! Era seduzindo, fazendo-me gozar e escrever e
preciso resistir a tudo. Além do mais, além do escrever enquanto gozava. Quando as coisas se
mar, também, temos muita gente que vive de misturam, você sabe. O que acontece, o que

5
aconteceu não foi diferente do que você sabe... você, minha filha. Vou comprar até um para sua
A prisão, nem cheguei a ser pego. Mas ela foi. mãe, sabia? Pai, não acredito que o senhor
Nunca mais a vi. Só naquelas fotos daqueles esteja falando isso... Não acredito! Posso
cartazes que se espalhavam por aí. Ela, lá. continuar sonhado?

Susana – Você se lembra de cada coisa, não é Susana – Quando foi que você voltou para o
Catharina? Talvez a lembrança venha do seu Uruguai? Deu para chegar até Buenos Ayres?
próprio nome. Minha avó também era Como foi? Mexeu muito com você, pelo visto.
Catharina? A minha, do lado paterno, era
Julietta. Romântica como o nome pode sugerir. Gabriel – Você devia não ter ido direto para
A do lado da mãe, de origem judaica, se Cuba. Se fosse para o Chile, talvez lá as coisas
chamava Chloé. Segunda filha, depois de um fossem diferentes. Sabe... O Allende estava com
irmão. Segunda menina, depois da Catharina. A a bola toda! Você voltou para cá e foi para o
tradição na minha família é que todas as Chile, depois? Não me diga! É mesmo? Sim, foi
primeiras mulheres deviam se chamar esse o meu caminho. Foi pesado por lá aqueles
Catharina. Todas. Meu avô dizia que um tempos. Eles entraram chutando tudo. Com
parente dele havia sido o carpinteiro predileto aquelas botas. Havia sangue naquelas botas.
da Catharina, a grande, lá na Rússia, de onde Muito sangue. Eles chegaram. Não foram direto
eles vieram. Como homenagem para a mulher até mim. Não era a mim que eles estavam
que o tratava com tanto cuidado, pelos belos procurando. Eles queriam o Darcy. Sim. Ele.
móveis que ele criava. Não era um simples Atiraram nele e na namorada. Não deu nem
carpinteiro. Era um artista, um escultor que para tentar proteger o rosto com as mãos. Uns
fazia móveis como se faz obras de arte. Era vinte tiros de metralhadora. Cortaram ele em
mesmo um protegido da grande Catharina... pedaços. Ela havia falado que estava grávida.
tinha que agradecê-la por mantê-lo vivo e a seus Só ouvi os tiros. Muitos ainda ecoam em minha
filhos, mulher... Uma justa homenagem. Uma memória. Enquanto uns atiravam os outros
homenagem que nos trouxe para estes lados da colocaram capuzes em nossas cabeças. Jo soy
América Latina, anos depois. Após a primeira brasileño. Jo no soy terrorista! Adiantava? Você
grande guerra. É mesmo, Catharina, é mesmo... acha que ia adiantar alguma coisa, Martin?
Seu povo foi salvo. O meu veio nos navios Como me fazer entender em espanhol diante de
como mão de obra sem maiores qualificações. várias metralhadoras? Eu confundia tudo, as
Mas o lado romântico daquela Julietta era um palavras não saiam. Foi um vento muito forte,
lado de pessoas que estudavam muito e que esparramou todos os meus papéis. Foi difícil
escreviam como ninguém... Talvez tenha sido juntá-los. Difícil recuperar uns que eram
daí... Não sei. O que você acha? importantes. Documentos, então... Sabe, Martin.
Eu sempre me “caguei” de medo de me meter
Gabriel – Martin, meu caro Martin. Ainda bem neste tipo de acontecimento. Eu, quando mais
que você sobreviveu a tudo, meu caro amigo. jovem, havia pintado um quadro reproduzindo o
Eu me lembro de você correndo pelo corredor Che Guevara que saíra na capa da velha revista
da escola. Depois, indo levar papel sulfite para “Realidade”. Você se lembra, aquela foto tão
a sala do mimeógrafo para imprimir seu conhecida. Eu me cagava todo. Meu pai tinha
jornalzinho... “O Selenita”, não era? Estão vários livros que eram considerados proibidos
marcadas em mim estas lembranças, meu caro. pela maldita, que tiveram coragem de chamar
Pai, o senhor está tomando seus medicamentos de redentora. Redentora é a puta que pariu! Ele
certinho? Tem comprado, tem conseguido não disse para a gente esconder os livros do
comprar? Se precisar, me avise que eu mando Graciliano Ramos, por exemplo. Mas eu me
dinheiro para o senhor pelo banco. Sabia que “cagava” todo de medo. E escondi. Mas eu
agora pode sacar o dinheiro em qualquer casa estava fascinado pelo Che Guevara. Meu
lotérica? É mesmo? Ah, se eu ganhar na loteria, vizinho, o Balestra, vivia falando das boas
vou comprar um apartamento bem grande para coisas que Fidel realizava em Cuba. Ele ouvia

6
as notícias num radinho. Ficava eufórico, o parece que fez de minha casa sua sala de
Balestra naqueles distantes anos. Mas eu me... pesquisas... Do meu coração, seu oráculo.
bem, o que fiz foi que fugi com a namorada. Eu, Parece que você instalou em cada canto onde
com 19 anos incompletos. Ela, com dezessete. habito uma câmara que acompanha e registra
Volver a los diecesiete!... Tempos depois... na tudo. Que até tem o poder de interferir com
vitrola, a canção de Mercedes Sosa me fez questionamentos, com indagações, com
relembrar aqueles tempos. Quanta ingenuidade intromissões fora de hora. Saia de minha
de nossa parte. Quanta. Quantos sonhos. Para cabeça, saia! Não me leve a mal, querida. Não
transar, só casando antes. Embarquei nessa. Fui me leve a mal. Apenas eu a conheço o
fundo, Martin. Fui fundo. Comigo foi diferente, suficiente para saber quando seu coração bate
você sabe. Eu transei foi pela necessidade, mas mais forte, quando suas pernas ainda tremem
engravidei-me de revolução. Não dava para por alguém que você quer a todo custo. E ele?
abortar um filho em gestação de ideais... Não
dava!
2 – Amigo de fé, meu irmão camarada
Susana – Eu só voltei para Buenos Ayres 20
anos depois de estar em Paris. Fui direto.
Depois é que eu passei por Montevidéu. Revi Gabriel – Se depender de mim você vai para
velhos camaradas. Amigas minhas, hoje, todas Paris, sim. Se depender de minha vontade, você
profissionais respeitadas lá. E você, Catharina? vai. Mas como eu posso levá-lo para Paris se eu
Como chegou até aqui? Como, em minhas mal consigo sobreviver aqui neste pequeno
lembranças você sempre tem aparecido? É isso quarto onde a cortina é uma velha canga que
mesmo? Mas eu não havia pensado muito em alguém esqueceu lá na praia? Como? Você vai
você por este lado. Eu a via como uma grande pedir para que eu me esforce mais, não vai?
atriz. Fabulosa atriz, por sinal. Como, Acha mesmo que eu podia ganhar uma graninha
Catharina? Não, não tinha a pretensão de me fazendo textos para publicidade? Mas, cara,
tornar uma escritora de teatro. Nem de dirigir veja bem!!! Eu pensei que poderia arrumar um
tantas peças. Não. Eu queria dominar o francês. emprego como porteiro de algum edifício de
E o teatro me capturou, sem que eu pudesse dar luxo. Você sabe. Mas o cara olhou para mim e
nenhuma prova de resistência contra ele. Fui disse, assim, na lata: nós já dispensamos o
levada. Sabe. Parece que foi assim comigo antigo porteiro porque ele era velho. Eu tentei
também. Colocaram vendas em mim. E eu argumentar, dizendo: Mas ele sabia escrever
estava naquele palco. Naquele louco palco. cartas de amor? Quem sabe o que o cara
Dizendo coisas, até hoje eu as considero sem pensou, não é mesmo? Mas eu prometo, se eu
sentido. Mas eu também fui para o mesmo ganhar na loteria... na semana que vem o
palco. Disse, também, as mesmas coisas sem prêmio vai estar acumulado e será uma bolada...
sentido. Hoje, vejo que fora importante ter dito Eu prometo, se eu ganhar, eu não levo você para
tudo aquilo. Mas, não sei se teria coragem de Paris. Eu vou junto com você. Prometo. Vamos
repetir a mesma dose de insensatez. Você acha de primeira classe. Para botar banca! Nós dois.
que foi coragem? Pode ser... Coragem lá era Em Paris, cara, em Paris! Dá para parar de
sinônimo de irresponsabilidade. Pode ser, sim. sonhar, pai? Que coisa! Sempre nessa!

Gabriel – Nunca se sabe, nunca se sabe! Susana – Foi então que ela, a título de mera
especulação, disse para o antigo professor de
Susana -Você voltaria a repetir as mesmas francês. O senhor acredita que eu possa ganhar
experiências? Catharina... Catharina, parece que a bolsa de estudo com um conto bem escrito? O
você andou se apaixonando de novo! Quem é o professor não era daquelas pessoas que diziam
escolhido? Vai me dizer que ele tem sangue as coisas apenas para agradar. Disse: sim. Você
latino correndo pelas veias? O moreno? Você tem todas as condições de escrever um belo
vive adivinhando meus pensamentos. Até conto e poderá, sim, eu tenho certeza, ganhar o

7
prêmio. A bolsa de estudos. Não esperei nada. racionalizar algumas coisas. O Uruguai de
Enfiei-me no quarto durante três dias. Minha minha adolescência estava ficando cada vez
mãe e meu pai, bem eles sabiam que quando eu mais longe. Os velhos camaradas, também.
queria uma coisa eu ia atrás. Não ficava Você se lembra, tão bem, não é Catharina? Que
esperando que caísse do céu. Fui na biblioteca, memória!
peguei dois dicionários de espanhol-francês. Ela
sabia mesmo que o que o professor falara – o Gabriel – Ele disse em voz bem alta! Tio é a
nome dele era Benjamin. Parece-me que puta que pariu! O homem não sabia o que dizer.
também era judeu, assim como o outro Todos lá na agência de empregos começaram a
professor, um montenegrino, me parece, que rir. O véio ficou puto, não é, carinha? Também,
falava sete idiomas. Ele era iugoslavo, mas era ser chamado de véio assim! Tô achando o maior
da região de Montenegro. Falava quase sem barato isso de procurar emprego numa agência!
sotaque quase todas as línguas. As sete. Quais? E você, troxe seu currículo? Tá onde? Como,
Vai querer mesmo saber? assim? Currículo? Vai precisar de currículo
mermo?
Gabriel – Daquele dia em diante ele foi ficando
cada vez mais abatido. Ficou umas duas Susana – Quando eu olhei para ele, assim de
semanas em estado de total alienação. Não fazia cara, percebi que ele só poderia me trazer
mais a barba, não tomou banho, pelo menos por dissabores. Mulher tem disso, você sabe. Mas,
uns três dias. Ficou caidaço. Se afundou mesmo ao mesmo tempo, não dava para não arriscar.
numa depressão. O cara foi cruel ao negar a ele Um pouco, pelo menos, dava para arriscar. O
a única oportunidade de ganhar um salário. Tio, que teria a perder? A gente sempre ganha
o senhor já tentou guardar carros lá no centro da experiência, mesmo quando tudo dá errado,
cidade? O senhor é bom de briga? Vão querer quando tudo não vai na direção certa, quanto
disputar o espaço a tapa, ah... vão mesmo! tudo pode conspirar contra nossos sonhos. Diga,
Claro, ele não ia ficar mais que uma semana no Catharina... você viu mesmo que ele não tinha
emprego. Claro. Não ia aguentar, mesmo potencial? Vai me dizer que pensou tudo isso na
sabendo que o dinheiro serviria, pelo menos, hora? Ou somente, tempos depois, já calejada
para pagar quinze dias na pensão onde estava pela vida é que você revê o passado e diz: Não
morando. Em péssimas condições. O que fora devia ter aceitado morar com ele. Não mesmo!
um grande e importante hotel, tinha virado uma Será que não dava para você ter investigado
pensão. Tudo lá estava corroído pelo tempo. melhor a vida dele. Ele, pelo que me disseram,
Tudo estava mofando. Ele, inclusive. Ele tinha não tinha um currículo assim tão ruim, não é?
opção? Você acha que ele teve opção? Catharina, você sempre crédula, mas tão
inteligente e articulada... Como, me diz como?
Susana – Foi há tanto tempo, mas tudo está
vivo aqui em mim. O carteiro entregou o Gabriel – Martin, estou respondendo um e-mail
telegrama. Premiada com louvor. Faça contato para minha filha. Você me espera um pouco? É
com Mirrelle na embaixada francesa. Catharina, rapidinho, falta apenas um parágrafo. Está bem?
você se lembra quando foi que teve o primeiro Veja, eu já fiz alguns jogos. Nada muito
orgasmo? É mesmo? Aquele momento, foi mais especial, pensado. Sabe aquilo de pegar os
ou menos assim. Eu não cheguei a ficar com a números aleatórios que o vento esparrama em
calcinha molhada, isso não. Mas eu tive mesmo um monte de papel picado, os próprios números
que tomar um banho depois da dor de barriga do papel onde a gente faz os jogos...? Sabe?
que me deu. Nossa! Nada romântico e bonito Cortei, cuidadosamente, os números dos jogos.
você comemorar uma conquista com uma Juntei e liguei o ventilador. Os números que
disenteria, não é mesmo? Pois é. Também fiquei foram para o lado direito, eu descartei. Ficaram
menstruada na hora. Tanto desejo dá nisso! Não números, poucos números pelo lado esquerdo.
fomos feitos para viver uma emoção tão forte Eu peguei, aleatoriamente, doze números e fiz
assim. Bem, depois do banho deu para tentar dois jogos na Mega e dois jogos eu pedi para a

8
moça fazer ela mesma. Joguei com a maior fé. mesmas frases já repetidas tantas vezes antes.
O senhor tem mesmo fé? O quê? Não deu nada. Você não fez sempre assim, fez, Martin?
Não? Não deu? O senhor quer repetir os jogos? Também insistia naquilo que você tinha
Está acumulado de novo! Cada vez estou absoluta certeza? Insistia no que, lá no fundo,
ficando mais experiente em receber a notícia de via que era a mais absoluta perda de tempo?
que não foi desta vez. Martin, você acredita que Tinha consciência disso, Martin? Ou foi depois,
a gente fique muito experiente e que a muito depois que você se olhava no espelho e
experiência acumulada nos dê alguma vantagem via refletida aquela mesma imagem de homem
quando sempre fomos perdedores? Uma vez, derrotado? Agora, quando eu digo isto para
numa entrevista coletiva do grande Éder Jofre, você é que eu me dou conta de como tivemos
aquele peso galo do nosso boxe que foi uma aventura pela vida muito parecida. Diria,
campeão mundial... Uma vez eu perguntei a ele quase sem nenhum erro, que somos tão
se era melhor ganhar depois de ter apanhado um parecidos que deveríamos ser irmãos. Não
pouco. Não, não mesmo. Tem que bater sempre. desses que nascem do mesmo pai filho da puta e
Bater logo no começo. Não pare de bater. Aí o da mesma mãe que todos acreditam que seja
cara cai. Bater sempre. Sair batendo. Não parar uma puta. Não falo desses. Falo de irmão que
de bater. Martin, será que o que ele me disse é o nasceram em épocas diferentes, de pais
que você entendeu também? Estou todo diferentes, mães diferentes, mas que são irmãos
dolorido. Acho que não aprendi a lição. Mas eu pelo simples fato de comungarem de ideias e
também nem lutar boxe eu sei... ideais com a mesma intensidade e força. Sabe,
irmãos de fé, sobretudo. Camaradas. Depois
Susana – Meu pai me disse que eu iria você me diz se estou com uma certa razão ao
conhecer o Brasil antes da viagem para a reclamar que tratam a mim e aos meus sonhos
França. Era por questão da passagem mais como sem a mínima importância. Não posso
barata que ele comprara. A gente morava perto aceitar que meu sonho não tenha um valor. Eu
da fronteira com o Brasil. Mas o Brasil mesmo, sobrevivo dos meus sonhos, não foi isso que
eu não conhecia. Tinha muita curiosidade de tenho falado? Não sobrevivemos por teimosia,
conhecer o Brasil. Sabe, a música. A voz da Elis nem por termos dinheiro, ou boa saúde. Ou até,
Regina. Tinha o Chico Buarque, o Toquinho. Eu por termos pessoas que nos amam. Se hoje eu
me lembro dos arranjos vocais do MPB4 e do sobrevivo é porque sou teimoso. Por continuar
Quarteto em Cy. Cada música interessante. acreditando que um dia, não sei quando, mas
Lindas. Muitas eu não entendia direito, mas o um dia, com toda a certeza eu serei reconhecido
ouvido a gente vai afinando. Depois, a música em alguma coisa que eu venha a fazer. Ah, não
nos ensina tanto. Catharina, você também sei não. Toda essa fé eu não tenho! Não dá para
entende bem o português? Não sei, mas tenho ser assim tão dedicado a nossos sonhos, caro
um amigo que diz sempre que os uruguaios têm amigo. Não dá. Veja bem, veja bem. Não o
mais capacidade de entender o português que os estou recriminando, longe de mim fazer isso.
argentinos. Eu sou argentina, mas passei mais Você é meu camarada, claro que é. Mas... Só
parte do meu tempo dentro da língua espanhola esperar que os sonhos nos tragam um tipo de
no Uruguai. Vai ver que é por isso que eu iluminação é meio ir longe demais, você não
entenda melhor o português. Não, mas não sei acha? Se a gente fica só sonhando já indica que
cantar mais nada. Não dava para aprender só dormimos. Ninguém sonha acordado.
cantar em francês, sem ter que desaprender um Acordado a gente cria, inventa. Sonho, sonho
pouco o português. Ainda gosto de ouvir as mesmo, só tenho quando consigo dormir. Além
velhas canções da Elis Regina. Mas não me do mais, o médico me disse que o tal Rivotril
arrisco a cantar nada. Também desafino. pode me deixar dependente. É tarja preta,
potente. Aos poucos eu tenho dormido melhor,
Gabriel – Tenho sempre batido na mesma tecla. mais horas. E quando durmo profundamente eu
Repetido os mesmos erros. Repetidas vezes eu sonho. Sonhar me faz viver de um jeito
me vejo repetindo as mesmas palavras. As diferente, melhor. Sei lá, mas nunca sonhei com

9
números. Ah, só com as contas atrasadas. que foi numa daquelas aventuras pelos lados do
Muitas. Quanto? É muito, pode acreditar. Araguaia. Dizem. Não tenho certeza e não tive
coragem de perguntar a ele. Só sei que fiquei
Susana – Nos últimos dias, não sei bem quando sabendo que o Martin tinha perdido a namorada
foi, eu me lembrei da ida ao Brasil. Saímos de num acidente de carro e que ela, grávida,
ônibus de Montevidéu e viemos direto para sofrera uma forte hemorragia. Morrera antes de
Curitiba. Meu pai queria que eu conhecesse chegar ao hospital. Foi por absoluta falta de
Curitiba. É uma cidade que me lembrou, um recursos no socorro. Foram alguns tiros, muitos
pouco, uma cidade europeia. Não tenho mais deles dados na cara e na barriga grávida de seis
referências. Faz tanto tempo, Catharina! Tanto, meses. Foram tiros na cara do bebê. Tiros na
tempo! Ficamos três dias e, depois, foi daqui minha esperança!
que peguei o voo para o Rio de Janeiro. Saí bem
cedo, num voo bem cedo mesmo. Fiquei o resto Susana – O rosto daquele rapaz eu nunca vou
da tarde no aeroporto do Rio. Direto de lá para poder esquecer. Você se esqueceria de alguém
Paris. Então, eu vim e demorei a voltar. Não que fosse tão impactante em sua vida,
tem, porém, um dia, que eu não me lembre de Catharina? Seria? Não, o rosto dele eu não vou
algumas pessoas que eu vi naquele aeroporto esquecer mesmo, nunca! Eu não esqueci, você
brasileiro. Não falo do aeroporto do Rio, não. esquece fácil? É isso? Apaga. Passou, não tem
Falo do aeroporto de Curitiba. Um aeroporto mais importância. Você sabe.
muito acanhado, por sinal. Fazia frio, muito
frio. Um frio que eu não esperava viver no Gabriel – Mas barba era um tipo de disfarce
Brasil, naquela cidade brasileira. E tinha um que não enganava ninguém. Como você
rapaz que parecia não se incomodar com nada. conseguiu sair, deixar o país, usando uma barba
Vestia uma roupa descuidada, uma roupa daquela? Sabe que eu usei a barba não como
simples. Uma simples malha por cima de uma disfarce, mas como provocação. Minha barba
camisa que mostrava uma gola amarela. Meu eu deixei crescer como forma de protesto.
pai observou primeiro. Minha mãe disse: Será Sempre tive o rosto lisinho, nem bigode eu
que ele não está sentindo frio? Sim, eles ficaram gostava de usar. Eu queria, em lugares públicos,
comigo em Curitiba aqueles dias e foi de lá que que as pessoas olhassem para mim e se
eles se despediram de mim. O rapaz de roupa sentissem, de algum modo, ameaçadas pela
descuidada não parecia mesmo sentir frio. Ele minha barba. Não pela minha figura. Só pela
tinha, porém, um ar de autenticidade. Sabe, ele minha barba. Eu deixei a barba para provocar
sim não era um simples personagem. Ele era nas pessoas algum tipo de reação bem negativa.
real vestido daquele jeito. Não era um Queria mesmo que alguém me visse como um
personagem que poderia mostrar ter medo, ou terrorista, como um ativista político igual aos
estar se sujeitando a enfrentar o frio apenas por que estavam em milhares de cartazes
alguma circunstância. Não, nada disso. Aquele esparramados pelas cidades. Teria sido
rapaz, que devia ter a minha idade, estava ali e inconsciente essa atitude, você acha mesmo?
se mantinha ali com alguma força muito Eles estavam colados aí naquela loja, naquele
especial. Seu rosto, porém, estava encoberto por banco, na bilheteria da velha rodoviária. Como
uma espessa barba. Não sei se ele tinha saído de foi, então, que você, assim, ostensivamente
algum convento de padres franciscanos, mas ele querendo se entregar não levantou suspeita
estava ali se sentindo muito livre e feliz com nenhuma? Como não pediram seus documentos,
sua roupa pobre e sua barba desafiadora. como? Você acha que não chegaram a pedir
meus documentos? Acha mesmo que todo
Gabriel – Foi naquela época que Martin aquele meu jeito agressivo não iria levantar
perdera a namorada. Ele não contou nunca que nenhuma suspeita? O guarda chegou e
ela morrera vítima da perseguição política. Ele perguntou: vai viajar? Vou, vou sim. Vai para
não falava disso mesmo. Mas ela morrera, sim, onde? Tem documentos? Tenho sim. O senhor
numa emboscada com outros camaradas. Dizem quer vê-los? Um outro veio de lado. Um

10
terceiro ficou só me observando com a mão brasileiro. E me formei na Universidade Federal
numa pistola. Um quarto, eu vi de relance. Se do Paraná... sou engenheiro agrônomo
escondia atrás de um dos pilares do prédio. Eu especializado em grandes barragens. É o meu
acabara de chegar no Rio. Foi logo no mestrado. Falei um pouco de francês com ele.
desembarque. Achei que ia dar merda, sabe Passei segurança. Livrei a minha cara, na maior.
como é? Achei mesmo que ia dar merda.
Susana – O que queriam saber? Você e suas
Susana – Qual a importância que a gente dá aventuras por aí, não é Catharina? O que
para pessoas que temos certeza nunca mais queriam? Aquele rapaz tinha um olhar que
veremos? Conte, Catharina, conte como foi... ainda, até hoje eu não me esqueço. Quem seria
Lá vem você de novo querendo que eu repita a ele. Não vi, não vi. Deu vontade de vomitar.
velha história, não é? De novo, não dá. Não dá. Vomitei mesmo. Sei lá, como posso saber. Ele
Estou cansada. Diria mesmo que estou enjoada sentou ao meu lado no voo para Paris. Só sei
de repetir tudo de novo. O que o senhor quer disso. Não me lembro de nada. Como eu
mesmo saber? Como? Refaça a pergunta. Estou poderia saber mais sobre alguém que por um
ouvindo sim, mas é que eu já contei tantas acaso sentou-se ao meu lado no voo para cá?
vezes que estou ficando com uma certa vontade Como foi que você viu que os documentos dele
de vomitar. Posso? estavam na sua bolsa? Como? Eu dormi. Ele
deve ter colocado os documentos lá enquanto eu
Gabriel – Vai viajar? Cadê seus documentos? dormia. O senhor pode entender isso? O cara
Antes que o segundo se aproximasse eu pedi podia ser um terrorista? E é a mim que vocês
para que ele segurasse minha pasta e a abrisse. vão cobrar isso? Eu sou uma atriz. Viajei a
O terceiro fez sinal para o quarto e foi este trabalho para o Brasil. Sim, fui participar de um
quem se aproximou e abriu a pasta que o outro filme lá no Brasil. Nem cheguei a conversar
segurava. Toda a documentação estava ali. Eu com ele, pois ele dormiu muito e eu também.
era mesmo um engenheiro agrônomo. Estava Quando desembarcamos ele saiu pelo outro
voltando da região de Foz do Iguaçu. Tinha lado. Vocês não o viram por aí? Catharina, essa
trabalhado no levantamento de todas as terras sua história sempre me encantou. Que aventura!
que seriam inundadas pelo grande lago da usina Uma grande aventura!
de Itaipu. Estava tudo nos meus documentos.
Eu ia para a França, a trabalho. Eu ia levar os Gabriel – Depois que desembarquei fui direto
estudos geológicos da região para um para uma barbearia improvisada dentro de um
especialista calcular alguns impactos sobre o furgão que me esperava no Aeroporto de Orly.
meio ambiente. O senhor ainda trabalha para o Martin, saber isso agora me deixa até com o
governo brasileiro? Sim, sou do Ministério do coração em sobressalto. Como viveu isso tudo e
Planejamento. Os documentos estão todos aí. conta assim com tamanha tranquilidade. Foi o
Pode vê-los. E essa barba? Finalmente vinha a que aconteceu. Fiz a barba no furgão. E já não
pergunta... A barba? Eu sou muçulmano, é era mais o Martin. Nem árabe eu era. O filho da
minha religião. O senhor sabe. Tenho um dona Eunice, enfim, ganhava novo nome.
compromisso com minha religião e devo usar
barba como parte da religião. Espero que o Susana – Você chegou a vê-lo no Aeroporto
senhor entenda. É por causa de minha religião antes de descobrir os documentos que ele
muçulmana. Mas você não tem nada de árabe, deixou na sua bolsa? Como pode deixar que
nem de longe, Martin! Os documentos não isso acontecesse. Eu não sei, aconteceu. Mas
diziam isso, não é? Estava tudo lá, direitinho... passou, nem vivo me lembrando mais daquilo.
Badr Al Hassan. Filiação, local de nascimento. Você vive me cutucando para eu contar mais,
Eu nascera na Palestina. Mas vim com meus não é? Fica toda interessada quando eu conto
pais para a fronteira do Paraguai com o Brasil minhas aventuras.
aos seis meses. Meu pai queria que eu fosse
brasileiro. Então... Virei brasileiro. Sou Gabriel – Não sei o que aconteceu com aquela

11
moça. Ele foi perfeita dentro dos planos que Gabriel – Foram dez longos anos em Paris. O
tive que montar quando já voava para a França. curso de mestrado, depois veio o doutorado.
Estudei muito, viajei muito. Integrei comissões
Susana – Ele disse alguma coisa? da ONU. Fui para a África. Cheguei a ir ao
México. O máximo que fiz de estar próximo do
Gabriel – Falei apenas o trivial. Acho que meu Brasil. Vi jogos da Seleção na Copa de 86. Os
francês foi convincente. Ela nem me olhou franceses que estavam no mesmo hotel não
direito. Parecia muito mais preocupada em entendiam como eu podia torcer para o Brasil,
dormir que outra coisa. Foi o que também fiz. E sendo francês. Tem como explicar isso? Já vem
dormindo todo o plano veio como uma você de novo com suas histórias. Chorou muito
indicação divina. De quem? De Alá, Maomé, quando o Zico e o Sócrates perderam aqueles
Jesus, Buda, sei lá. A solução veio e foi pênaltis ridículos? Sabe, eu nunca mais me
perfeitamente aplicada. Nos mínimos detalhes. envolvi em política. Nunca mais. A experiência
Deu certo? Claro, olha eu aqui de volta ao foi demais traumática para mim, para minha
Brasil. Acho que tive muita sorte. Ah, você, família. Recuperar minha real identidade
sim, eu... quem me dera... demorou tanto tempo. Hoje, quem eu sou? Um
novo nome, uma mesma história, tantos
Susana – Nunca mais a polícia a procurou, passaportes e documentos diferentes. Tantas
Catharina? Tempos depois fui chamada para um nacionalidades assumidas. Tanta identidade que
novo depoimento. Só relatei o que havia nada havia em comum comigo. Tanta, tanto...
acontecido. Não precisei repetir outras vezes. Vai ver que você é mesmo muçulmano e que
Por onde será que anda aquele terrorista de veio ao Brasil para explodir alguma barragem
olhos verdes? Por onde anda aquele rapaz que por aí... Nunca se sabe... Você não me
me impressionou pela barba desafiadora? Mas reconhece? Não sabe que eu sou mesmo o filho
ele não tinha cara de muçulmano. Não tinha da dona Eunice. Sim, que a gente era vizinho lá
mesmo. Mas a barba era igualzinha a de um na rua Pernambuco, em Paranavaí. Que fomos
muçulmano, sim. Isso era! Por onde ele tem juntos pela primeira levar o amigo Balestra na
andando, o que fez da vida desde então? zona? O resto é história que teve que ser
inventada para permitir que eu pudesse estar
Gabriel – Fui matriculado num curso de hoje ao seu lado. Sim, estou e sou real, pode
adaptação do meu currículo. Essas coisas são acreditar.
fáceis quando trata-se de refugiado político.
Tem tratamento especial e não ficam Susana – A dimensão do meu tempo, hoje, aqui
perguntando isso ou aquilo. Eu cheguei como onde estou também é real. Sim, estou e sou real
eu. No corpo de um novo eu. Você sabe. Eu era aqui. Existo mesmo no quarto. Estou aqui, sou
um outro eu lá na França. E podia recomeçar a uma escritora e toda a história que você contar,
vida sem ter que prestar contas para ninguém. um dia, quem sabe, eu não aproveite para
colocar nas minhas peças, nos meus
Susana – Você se arrependeu de não ter personagens... Cuidado... sim é com muito
conversado com ele? Não ficou curiosa de saber cuidado que eu terei que conversar com você,
mais sobre ele? Eu queria saber sim quem era o sabe Catharina? Muito cuidado mesmo. Mas até
rapaz de barba e que usava uma roupa tão que gostei quando você escreveu sobre os atores
simples. Eu queria. Mas nunca a gente realiza que ficavam transando no quarto escuro no
todos os nossos desejos, não é, Catharina? Você intervalo dos ensaios. Mas a gente transava era
se casou quanto tempo depois? Eu, ah... não durante o ensaio mesmo. Se dava tempo. Não
resisti ao meu professor na escola de teatro. sei como não engravidei... Não sei! Mas não
Mas já era mais experiente quando nos vieram tantos personagens, não vieram? Então,
casamos. Já era francesa também. Já tinha 27 são seus filhos, são meus filhos também. Filhos
anos quando me casei com o Jean-Pierre. do coração. Filhos que nasceram do lado de cá
da Cordilheira dos Andes, que escorreram para

12
o lado sul ou o lado norte do continente sul sim. Carne. Caaarrrnnnneee. Credo!
americano.
Gabriel – Eu posso fazer com que meus
Gabriel – Minha filha de novo. Agora está no personagens se comuniquem em qualquer
MSN. De vez em quando ela me daí um oi. Vem língua. Não é porque eu sou um pobre brasileiro
e me pede a sugestão para algum novo projeto que não posso fazer com que todos me
dela. Felizmente ela vive também de sonhos, entendam. Você, meu querido Martin. Você é
como eu. Felizmente. Mas felizmente, como? um exemplo poderoso de como eu pude fazê-lo
Como é isso de felizmente? Ela não quer que se expressar com precisão em francês sem ter
você compre um apartamento de 300 mil para sido obrigado a escrever com correção uma só
ela? Se ela não tem um apartamento, nem de palavra em francês. Mas você se expressou, no
100 mil, como pode ser feliz assim? Ah, tem momento certo, em outra língua. Está
coisas que a gente não dá valor apenas pelo que lembrado? Você se expressou com força, muita
é real, palpável, que existe. Eu, ela e tantas força e veemência em espanhol e se “cagava”
outras pessoas espalhadas pelo mundo ainda todo de medo, não é? E se cagava todo em
acreditamos em sonhos. Mesmo naqueles português, hablando su español...
sonhos que não existem, que são irreais e
irrealizáveis. Sabe como é? Não? Pois bem, Susana – Nossas línguas são parentes. O
felizmente ela ainda pode sonhar em ter, quando espanhol e o português são mesmo línguas
ela sabe que ser é o que importa. O ter é sempre irmãs. Já o francês vem de outra linha. São
tão condicionado a certas circunstâncias. Você parentes distantes, eu diria. Então, de alguma
pensa assim? Sou mais pragmático. Tive que forma, somos mesmo parentes, não é minha
aprender a ser pragmático por força da minha querida Catharina? Um parentesco um tanto
passagem pela luta política. Pelas armas. Mas conturbado, mas parente sempre é parente, não
você, pelo que me contou nunca deu um tiro. importa o grau de proximidade que tenham. Há
Nunca teve que matar ninguém. Eu mato gente filhos que são tão afastados dos pais quando
a torto e a direito. Basta ler meus contos e ver ficam adultos que contrastam enormemente
quanta gente eu faço morrer. Gente jovem, com pessoas tão próximas e que, muitas vezes,
gente mais velha. Até gente que nem chegou a se conheceram há tão pouco tempo. Não é o
nascer eu posso matar. tempo nem o sangue que faz alguém ser
próximo, ser filho, ser mãe, pai ou irmão. O que
Susana – Meus filhos não nasceram na França. faz as pessoas se aproximarem e se
Nem no Uruguai ou na Argentina. Meus filhos identificarem umas com as outras são as
são cidadãos do mundo. Nasceram em todos os circunstâncias. As ocasiões, os episódios, as
lugares possíveis e imagináveis. Vieram de tramas, os afetos. Você me trata como se eu
países distantes do leste europeu. Vieram da fosse sua filha. Eu teria mesmo idade para ser
África. Há muitos negros que são meus filhos. sua filha. Você, sim, você pode ser minha mãe.
São muitos hispânicos. Alguns brasileiros, Mas não é? Não teria sido possível que você
também. Há suiços, alemães, romenos. Como fosse minha mãe, embora em questão de tempo,
são engraçados os romenos. Eu sempre os a possibilidade fosse real. Mas você não amaria
imaginei parentes do Conde Drácula. Coisa da o meu pai a ponto de deixar que ele fizesse um
minha imaginação, lógico! Eles tem uma língua filho em você. Assim, eu não seria mesmo sua
que é tão próxima do italiano e do português. filha. Mas eu poderia ter sido sua mãe. Se o
Certas palavras em romeno são ditas como se tempo que vivemos fosse em algum modo
diz em português, em espanhol também: carne, modificado. Nossos laços de sangue talvez, lá
por exemplo. Carne é carne, em português, em pelos lados do leste europeu, na Ucrânia ou na
espanhol e em romeno. Talvez com uma Rússia, na Polônia, talvez. Talvez nossos laços
pequena diferença na entonação, mas as letras de sangue estejam ligados lá. O nosso sangue
são iguais e se fala mesmo carne. Como é judaico. Algumas mesmas crenças. Nossas
mesmo que você fala carne, Catharina? Carne, certezas e a inquietude de que todos ainda nos

13
perseguem, isso é muito nosso. Do nosso povo. distintos continentes e nações, não é possível
Mas eu não sou de origem judaica. Eu tenho que não seja possível estabelecer a concórdia, o
sangue espanhol que corre em minhas veias. entendimento. Não é possível! Tem que haver
Talvez tenha sangue mouro. Cigano, é bem uma voz que se sobressaia sobre as demais e
provável. Cristão novo eu seria se as origens de que, sem impor posições hegemônicas, venha a
minha família fosse pelo lado português que nos indicar caminhos. Não venha a indicar
não conheço. Tudo fica como mera suposição. atalhos ou saídas milagrosas, espetaculares.
Mas você, Catharina, tem mesmo sangue e é na Caminhar por sendas seguras. Sem percalços.
essência uma mulher com fortes características Sem tribulações. Sem atropelos. Não é isso o
de ser judia. Até pela história que contou de que você quer para sua vida, Catharina? Não é
seus antepassados, um protegido marceneiro na isso que sempre tem buscado na sua
corte de Catharina, a Grande. Virá mesmo da peregrinação por palcos e papeis expressivos?
Rússia esse sangue judeu? Vá com calma em sua análise, está bem? Mais
calma. Não é por uma razão assim tão focada na
3 – Dos almas questão das identidades culturais que vamos
divergir. Há questões históricas, eu sei.
Gabriel – Talvez eu tenha sangue judeu e você Questões filosóficas, teosóficas. Tudo isso
seja mesmo de origem árabe. Mas é importante contempla uma discussão mais abrangente. Mas
a gente se preocupar com questões tão agora é isso mesmo o que você quer discutir aqui?
sem importância como sermos ou não irmãos ou Você se esqueceu que a todo custo eu quero
inimigos? O que nos separaria não seria nossas saber que fim deu aquele rapaz de barba
crenças, nem nossos passados. O que nos desafiadora lá no aeroporto brasileiro? Este, me
separaria poderia até ser a língua, mas é parece, é meu atual propósito. O seu, bem...
possível acreditar que quando se tem afinidades você se enamorou ultimamente de um rapaz
a língua é a menos importante, não é? Não moreno. Foi o que contou. Sempre teve uma
tenho como comentar. Preciso pensar mais a queda por homens morenos. Escuros, também.
respeito. Nunca me ocorreu isso, nem quando De sangue africano, sim. Eles todos. Se são
estive em um momento de que isso exigia diferentes de você, se sente atraída. Se a atração
minha real preocupação. Sou latino americano, é forte, você não pensa. Deixa-se levar. É de sua
tenho origens, claro, no solo europeu. Mas não natureza agir assim. Pensa bem melhor quando
é de onde vieram meus antepassados que conta está apaixonada. Se sou usada, se sinto-me
aqui. O que aqui conta e isso tenho absoluta usada de vez em quando? Ah, quem não é?
certa é que minha alma teve sempre um passado Você, por exemplo, não se sentiu usada em
incerto. Passeou por aí, viveu outras épocas. nenhuma época de sua vida? Nunca mesmo?
Sentiu o que nem posso imaginar. Mas ela se
apossou do meu corpo. A sua, bem, a sua Gabriel – Nem sempre tudo isso deve ser
também não deve ter tido um caminho em levado em consideração. Tudo, sempre, é tão
brancas e calmas nuvens. Todas as almas, aqui pouco. Tudo é, na maioria das vezes, uma parte
presentes, pagam agora o que ao longo do onde se evidencia uma discriminação latente.
tempo acumularam de pecados e de Que em algum momento vai aflorar nos vários
contradições. Não, não sou herói. Nem me discursos. Tudo é nada. Nada, no entanto, me
ocupo com isso. Nem sou um marginal. faz acreditar que sejamos mesmos frutos de
Tampouco me considero alguém totalmente condições favoráveis. Que somos escolhidos ou
desprezível de reais sentimentos e de uma vida que somos detentores de todas as qualidades
que ainda está em construção. Sou um homem que nos fizeram vencer a noção do tempo e do
do meu tempo. Você, também. Somos almas em espaço e permanecermos inabaláveis aqui. Você
busca de paz de espírito, não é? é quem diz isso. Eu não. Eu não digo nada
sobre tempo e espaço. Eu vivo, eu apareço
Susana – Em tempos tão conturbados como os quando me é possível, quando, alguém me faz
agora vividos por uma série de povos, em ganhar corpo e voz. Sou um pensamento em

14
construção, não é mesmo? Meu discurso, insólito episódio, não é? Mas, e sempre há um
sempre é precedido por um vazio. O que vem mas, um porém... Mas eu não controlo o que
em seguida, também é um vazio. E é sobre o vem até mim com essa força que me arrebata e
vazio que devemos construir um entendimento. me põe contra a parede exigindo de mim uma
Completar os espaços, as lacunas devem ser força que penso não mais possuir. Estou
observadas atentamente. Nada de se opor ao reagindo, Catharina. Estou aprendendo a reagir
que está lá para ser completado. Pense, reaja, e a usar dessa força em mim aparentemente
ofereça alternativa. Construa, saia da mesmice, morta e inexistente. Venha, ajude-me a levantar
meu caro Martin. As dificuldades que você tudo isso que está escrito e que precisa, com
pode viver, não foram de todo tão más assim. uma urgência sem limites, de ganhar a amplidão
Fizeram você ganhar corpo, deram voz, deram do espaço cênico. No mundo da linguagem,
vez. Vez ou outra, também, está claro para mim, qual a linguagem mais capaz? O pensamento
eu me deixo levar pelas aparências. Claro, pode não ser exato, ter tantas imperfeições, mas
ninguém é perfeito. Mas se é na busca de você há de concordar, minha cara Catharina,
entendimento a perfeição deve ser uma meta, que a linguagem poética é imbatível. Nas
não uma utopia. O local é aqui, então, vamos pequenas construções, nas frases longas,
tentar nos fazer entender e deixar de transigir reflexivas até. Se há poesia ela sobrevive e se
sobre o real, o factual, o imagético, o narrativo, sobressai sobre as demais. A poesia é expressão
o dramático, o épico, o lírico. Cada coisa ao seu de vida. E se não podemos viver sem a poesia,
tempo. Então, há tempo de imaginar. Há tempo deixamos de existir mesmo.
de representar. Há tempo de opor-se ao
imaginado e há tempo para não representar Gabriel – Quando eu lhe escrevi naquela tarde,
assim tudo tão rasteiro, tão desprovido de dor aqui tão longe, tão perto eu senti você. Não
ou de sentimento. Venha, caminhe sobre o fio você, pois não sabia nem como você era agora.
da navalha. É pouco o espaço a percorrer? Ou como fora se construindo ao longo de seus
Aumente para o fio de uma faca. Também acha quase 60 anos. Eu me construí tão fragilmente e
pouco. Desembainhe uma espada sarracena. Ela essa fragilidade me deu tanta força que você
não será mais desafiadora? Ah, meu caro pode até não acreditar. Foi com uma aparência
Martin. Quanto eu não daria para ir com você frágil, inconstante, que se fez a força em mim.
para Paris? Mas dar como? Nada tenho, nada Mas você, ocupada nos seus afazeres, nas suas
possuo. Nada posso tirar de onde nada existe. aulas, nos seus intermináveis encontros aqui, lá,
De onde? Você me atribui assim tanta em todo o território onde eu jamais estive vivia
capacidade de improvisar? Mas tenho que outras dimensões do nosso sonho. Cada um no
confessar que ando meio cheio de tanto jogo de seu turno de vigília. Quando eu acordava, você
cintura, está sabendo? Não dá, não dá mesmo ainda iniciava seu sonho. Quando eu sonhava,
para ficar assim sempre projetando coisas que você estava na ativa. Descompassos temporais.
nunca se transformam em pequenas coisas reais Espaciais, também. Eu, aqui, você aí. Nós, onde
e necessárias! Tem horas que quero jogar a mesmo nós, esses nós que poderiam nos ligar,
toalha. Dizer chega. Não suporto mais levar nos unir, onde eles estavam? Há nós em nós?
tanta porrada! Não aguento mais ter que me Temos que desamarrar tantos, temos que atar os
subordinar a questões tão mesquinhas. Sou um indispensáveis. Como diz minha neta, de quatro
pensamento vivo. Ganho voz se você me anos: É suficiente vô, é suficiente. Será que eu
permitir que eu use o seu corpo para me algum dia soube mesmo o que seria suficiente
expressar. Assim é como eu vivo! em tantas coisas de minha vida? Ela, uma
menininha dizia com tanta convicção: É
Susana – Eu olho para o que você me escreve e suficiente! E para ela passou a ser mesmo. Eu
me vem um sentimento diferente. Eu nunca aprendi uma grande lição com aquela
imaginei que duas almas tão distintas um dia, menininha que carrega o meu sangue.
uma certa noite em Paris, pudessem se conectar
pelo que a gente tem que concordar como Susana – Foi surpreendente, confesso, ter

15
recebido seu e-mail e com ele a tradução de crime premeditado. Nem poderei ser julgado
minha peça. Surpreendi pois o Brasil, a língua por cometer um crime por dolo ou por
portuguesa, não estava nos meus planos. Nem imperícia. Tenho me esforçado e muito para
remotamente eu pensava que o que eu escrevera merecer o perdão das palavras mal usadas.
em francês, traduzira para o espanhol – minha Talvez queiram ser mais duros comigo. Vai que
língua de origem – pudesse ganhar uma voz o crime seja considerado culposo mesmo? Que
brasileira. Não é português, como aqui na joguem sobre mim todas as culpas pelo uso
Europa costumamos ouvir de pessoas que nos indevido de certas palavras. Não, a poesia que
servem em tantos lugares. Eu vi meus teime agora em não me consolar não vai
personagens falando como os brasileiros falam. abandonar-me. Eu sei. Como é difícil dominar,
Pude ouvir, nas falas deles, as palavras que um pouco só, o que é poético e encanta. Vai me
tanto me encantaram quando ligava meu rádio faltar apoio, talvez. Talvez eu tenha
fronteiriço. Sim, cara Catharina. Há uma comprometido todo um trabalho, mas, você,
fronteira que separava meu rádio da realidade e poesia, vem ao meu encontro. Socorra-me!
da vida que é inventada em cada palavra. Assim, desesperado ele pediu para ser ajudado.
Assim, como agora, há uma fronteira bem nítida Eu não poderia ajudá-lo. Não sou alguém com
que separa o que estamos vivendo e o que se um mínimo de conhecimento para ajudar
vislumbra como real. O sonho, sim, o sonho. alguém num momento de dor e angústia. E
Mas ele, para mim, se apresenta apenas para o você, pode ajudar-me. Pode ajudá-lo. Pode
outro lado do Atlântico onde disse certo poeta ajudar-nos agora? Vem, deixe-se invadir por um
que recentemente conheci. Sim, para o lado sentimento de compaixão. Você, meu querido
onde canta o sabiá. Não é? “Minha terra tem Martin, tem conhecimento do quanto é
palmeiras onde canta o sabiá...” Sabe, nem sei importante para mim dar a você uma voz com a
como deve ser um sabiá. Mas se é cantado pela poesia que os loucos e os sonhadores devem
voz do poeta, deve ser um pássaro de voz ter? A mesma voz que um apaixonado e um
inigualável. Como? É turdus rufiventris? Um idealista tanto procura? Não, não tenho forças
pássaro de ventre vermelho, alaranjado. Sim, o para ajudá-lo. Reconheço aqui toda a minha
que você tem aí chama-se sabiá laranjeira? Que fraqueza e incapacidade. Mas aprendi a
lindo! Um sabiá com a cor de uma fruta que acreditar que sempre há esperança no coração
adoro! Você se liga nesta coisas ligadas a canto de quem sofre. Levanta sua voz! Acredite! Viva
de passarinhos? Diga, Catharina. Qual o canto com intensidade os momentos em que uma
do seu pássaro preferido? É o canto de uma pequena chama de amor e paz invadiu seu
cotovia? Ah, Shakespeare não a deixa sem outra coração. Deixe-se dominar por esse fogo que
opção? Não vou comparar a cotovia da não se apaga. Sinta o calor novamente
deslumbrante Julieta com o sabiá do meu amigo invadindo todo o seu ser. Seja você, apenas
brasileiro. Não há como comparar! Mas, ambos você.
os cantos trazem uma enorme carga de poesia.
De tristeza, de lembranças. Canta a cotovia, nas Susana – O que pode um coração crédulo
cercanias do bosque medieval. O sabiá, ah, o negar? Como negar o que possa ser sua última,
sabiá canta aqui nos pinheirais. Muitos com a a derradeira esperança? Levante-se. É chegada a
mesma idade que o velho bardo inglês! Não foi hora de um novo caminhar. Viu, Catharina
o que você me disse? como é difícil dar voz para o amor, para a
esperança e para alguém apaixonado? Assim
Gabriel – Há tantas vozes que eu gostaria de também é difícil fazer sair dentro de quem
evocar aqui para falar sobre a poesia que ainda sofre, a dor, o desalento e o desamparo. Como é
não existe no que escrevo que peço para que difícil, eu sei. Eu sei e você, dando voz a mim,
você me desculpe, antecipadamente. Quero ter abre a possibilidade para que outras vozes
de você um salvo conduto, um habeas corpus nasçam e evoquem o poder de multiplicar em
para eventuais crimes contra a palavra exata que milhares, em milhões de outras vozes que serão
eu possa estar cometendo. Não, não será um ouvidas em momento de prece. Catharina, tudo

16
isso por você. Você está disposta a seguir em aconteceu antes. Ou não. Dá para afirmar ter
frente e ir de encontro ao que do outro lado do tido certas experiências sem ter tido certos tipos
Atlântico a espera? de dor, de alegria, de medo, de dúvida ou... Ou,
não venha com ou... venha com mais. Medo,
4 – Ne me quitte pas dúvida... sim, mais desalento, indiferença,
esquecimento. Mais nada que virá depois pode
Gabriel – Quanto medo eu tenho de morrer se desconectar do que veio antes. Assim, numa
sozinho. Não de estar sozinho, mas de morrer cadeia interminável, o que sinto agora tem
sem que alguém possa avisar alguém que eu mesmo uma intrincada ligação com o que
tenha morrido. Sabe, aquela sensação de que estava lá, num cantinho qualquer da minha
pode morrer a qualquer instante e... ninguém história. Ou da sua também. Da minha? Minha
dar por sua falta, ninguém reclamar de sua história ainda está em construção, Catharina.
ausência, ninguém avisar o porteiro do seu Ainda está. Você sabe. Há muitas páginas ainda
prédio que há dias o rádio está ligado e que não para sempre completadas com datas, fatos,
ouve barulho nenhum dentro do seu pequeno pessoas, sentimentos, desejos, desafios. Você
mundinho... Pai, o senhor tem cada ideia! Isso teme cruzar mesmo o Atlântico? Do leste para o
não vai acontecer, não vai! Mas você não se oeste? Fazer uma viagem de volta. Tenho
lembra de um colega seu de trabalho cujo pai pensado que sempre a gente faz viagens de
morreu sentado com a cara mergulhada num volta, retornando a alguma lugar que parecia
simples prato de arroz e feijão? Somente três não mais existir para nós. Fisicamente não nos
dias depois alguém sentiu um cheiro forte... Ah, damos conta de que isso sempre acontece.
mas não é para o senhor ficar pensando Catharina, vou lhe contar. Um dia, não me
besteira! Felizmente o senhor tem uma boa lembro exatamente quando foi, eu passei por
saúde. Felizmente, sei como é. Ela não sabe uma rua em La Defénse, por onde eu nunca
nada mesmo sobre mim. É o que eu vivo tinha passado. Quando o carro virou na rua
dizendo, Martin, meu caro e inestimável Martin. Carnot eu me vi transportada para um tempo
Não sei o que teria sido de mim se eu não o muito antigo. Não tive forças para controlar
tivesse reencontrado. Eu nunca o abandonei. aquele sentimento. Era algo que eu vivia, com
Você é que não notava minha presença. Eu tanta força, com tanta clareza que pensei estar
estava sempre tão próximo. Bastaria você olhar sonhando. Foram segundos, tenho certeza, os
direito. Eu sei, eu sei... mas tem horas que a olhos fecharam rapidamente. E todo um
gente fica tão distraído e tão apegado a coisas sentimento de amor, de alegria e de esperança,
sem importância que esquecemos de olhar para de prazer, quanto prazer, quanto prazer! Em
outros lugares imprescindíveis para nós. Foi seguida, um grito, uma dor insuportável
difícil você olhar para dentro de si mesmo? Foi? começou a dominar-me. Depois, uma luz, uma
Como foi? Martin, não me negue esta paz. Novamente eu abri os olhos e vi um rosto
informação, sim? Dá para contar o que eu ainda sorrindo para mim. Ouvi um choro de bebê.
não sei se sei? Várias pessoas estavam ao meu lado. Alguém
tossiu, outra pessoa começou a rir timidamente.
Susana – Sua voz, vez ou outra, ganha um tom Depois, uma mulher, de cabelos ruivos com
nostálgico, umas notas agudas de tristeza ficam uma linda toca bordada sobre a cabeça,
abafadas, como se houvesse necessidade de se começou a aplaudir, aplaudia... todos também
gritar, mas algo a impede. Não, Catharina, não é deram risadas... e aplaudiram freneticamente. O
isso o que você está pensando sobre mim. Não choro do bebê diminuiu. Senti, mesmo
pode ser que, ainda, você não domine mais seu fechando os olhos novamente, que um suave
repertório sobre as vozes que sempre consegui beijo foi me dado nos lábios. O carro fez a
representar. Não se fala em tristeza, quando se curva e entrou na avenida Gambetta. Acordei
pensa em esperança. Nem pode-se afirmar, com uma alegria tão grande, senti uma paz tão
categoricamente, que isso passa ou que não é forte. Madame, madame, desculpe-me, mas os
possível acontecer. Tudo passa e, se passa, policiais indicaram que devia retomar a

17
Gambetta. Vai dar tempo, não se preocupe. colégio novo e o professor Emílio não foi mais
Temos tempo suficiente. Olhei e vi que uma meu professor. Anos depois, muito depois, é
ambulância estava parada e uma mulher era que eu fui reencontrá-lo. Conversamos e
retirada de um carro e colocada numa maca. tomamos uma cerveja numa festa. Eu e ele. Eu
Um policial segurava nos braços, um bebê. Um já tinha uma filha. Ele mantinha o mesmo
jovem, muito jovem, aflito, era contido por sorriso e os mesmos olhos claros e bonitos. Eu
outro policial. Ele abraçou o policial e o beijou olhava para o rosto daquele homem e me sentia
várias vezes no rosto. Foi incrível! igual a ele. Talvez uns 40 ou mais anos de
diferença entre nós. Mas ali, na mesa daquele
Gabriel – Vida e morte. Nascimento e bar eu e ele éramos homens. Não havia na
desaparecimento. Dia e noite. De um para o minha frente o professor, o poliglota, mas um
outro são poucos segundos, milionésimos de homem que falava coisas do nosso dia a dia, da
segundos. Se eu estivesse, agora, em Paris, política, da situação econômica do país, daquela
talvez não fosse assaltado por pensamentos festa agropecuária, das escolhas. Sem lições,
assim. Talvez, alguém lá em Paris, se estivesse nem tarefas. Como pessoas normais. Até hoje
aqui, caminhando por estas nossas ruas, não se eu, não sei, mas eu queria perguntar se ele tinha
sentiria tão abandonado. Mas eu é que me sinto sido feliz como meu professor ou como o
abandonado aqui, andando em nossas ruas e não professor de todos nós. Eu pago, professor. Eu
é em Paris onde me chegam ideias e pago. Afinal, nunca tirei nota menor que 8 com
sentimentos tão desalentadores. Tem o senhor. Ele deu uma gargalhada. E voltou a
importância o lugar onde a gente está? Ou o que colocar a carteira no bolso. Não me lembro de
importa é o tempo. O espaço ou as horas? O tê-lo abraçado. Mas eu ainda sinto que alguma
território ou aquele instante antes do tiro ou do pergunta eu devia ter feito e que, certamente,
grito de gol? Quando falo com você, meu caro alguma resposta ele me daria e que, também,
Martin, eu me vejo ainda menino mas olhando o me seria útil futuramente. O que poderia ter
mundo e tudo maior a minha volta, com outros perguntado?
olhos, vendo tudo de uma perspectiva tão mais
serena e tranquila. Nada de sentir-me assustado Susana – Minha curiosidade para aprender o
com o que poderia vir. O que eu via grande, eu ofício de atriz, depois como professora, diretora
vejo com sua real dimensão. O que eu via de algumas peças de teatro e, mais
intransponível, eu vejo como uma etapa a mais recentemente como autora, sempre me obrigou
que venci. O que eu via como inalcançável, a focar em perguntas. Mas eu também não
bem... cheguei até aqui, não cheguei. Se aqui saberia o que perguntar para aquele jovem pai
estou não foi apenas por uma questão de sorte. que estava alegre com a chegada do seu filho.
Ou de azar, pode ser. Quando você divaga assim Nem eu sei, nem eu sei. Tem certas coisas que a
eu me lembro que certo dia, correndo com gente pergunta como que desejando ter uma
algumas folhas de papel sulfite nas mãos, cruzei simples confirmação do que ali se apresenta,
com o professor Emílio, sim aquele nosso não é, querida Catharina? Parece que a pergunta
professor que falava tantos idiomas e era de já foi feita e a observação do que acontece já é
uma doçura impar. Sim, eu passei por ele e me uma forma de termos alguma resposta bem
vendo tão ansioso, disse: Guarde umas folhas clara. Não vinha pensando assim. Não vinha.
desse papel para contar a sua história. Eu olhei Talvez eu tivesse fechado meus olhos para não
para ele, que sorria. E fiquei sem uma resposta. querer enxergar ou entender o que é cristalino.
Talvez eu tenha sorrido também. Mas lembro- Límpido. Definitivo. Você sabe, Catharina, você
me muito bem que entrei na secretaria da escola deve saber. Tudo a seu tempo. Quando menos
e alguém me disse. Não vai precisar das suas nos damos conta, aconteceu. Não como a gente
folhas. Temos papel suficiente para nosso pode ter imaginado ou sonhado, mas aconteceu
jornalzinho. Pode guardar o que você trouxe. O e é tão bom. Outro dia, pensando na morte de
que será que isso possa ter de importância em um querido amigo, eu pensei. Poxa, não estive
minha vida? Meses depois eu fui estudar no ao lado dele nos momentos finais da sua vida,

18
mas eu e ele vivemos momentos tão segundos antes de atingir o chão, eu pensei.
importantes que nenhum momento de extrema Agora, já foi. Não dá para voltar. É se segurar
tristeza poderá apagar o que foi intensamente para o baque ou, seja lá o que deus quiser... Não
construído nos vários anos em que convivemos. foi tão traumático saltar daquele trem que
Claro que chorei pelo desaparecimento dele, teimava em passar sempre pelos menos lugares.
claro! Mas eu tinha que louvar pelo que de Claro, não era uma viagem curta, era uma
fundamental em minha hoje ele me ensinou, viagem longa que se repetia, que se repetia, ano
não como professor, mas como pessoa, como após anos e eu lá, aboletado, sentado num
amigo, como um ser que esteve ao meu lado banco desconfortável, mas só olhando a
apenas para me mostrar certos caminhos. Vai, é paisagem e não participando dela. Eu não
por aqui. Não, não se deixe levar pela queria ser algo que aparece na paisagem e
mesquinhez dos pobres de espírito. Até onde desaparece, em seguida. Nem queria me fazer
chegamos, não é Catharina? Até onde... apenas como a moldura, da janela do trem, ou
do espaço de uma das fotografias que fiz ao
Gabriel – Nunca parei para somar todos os longo da vida. Eu não queria estar atrás daquela
afetos que foram importantes em minha vida. máquina de fotografia como o homem que
Não parei. Aliás, essa coisa de somar, dividir, dispara o obturador e registra algumas imagens
multiplicar... Essas coisas que envolvem interessantes. Que roubas cenas com seu olhar e
quantificação, porcentagem, precisão... Bem seu dedo preciso. Nem queria, também, sentado
nunca fui um homem que tivesse uma afinidade diante de antigas máquinas de escrever, das
maior com os números. Com a matemática, Olivettis ou Remingtons – eu adorava uma
então, nem se fala! Como era difícil tirar notas Lettera verde oliva que eu tinha – ou, agora,
mínimas nas provas do professor Raul. Como é diante deste teclado e do monitor que me deixa
difícil, até hoje, eu entender o que pode ser com os olhos cansados, ter que escrever apenas
mesmo o tal teorema de Pitágoras. Bem, dos as mesmas coisas, preencher os mesmos
gregos, se os números não me atraíram, deles, formulários, redigir os mesmos obituários, as
bem depois, já maduro, é que pude me mesmas notícias de vitórias, de derrotas, os
aproximar, ainda timidamente, reconheço, da mesmos editoriais que ninguém nunca leu ou
arte da dramaturgia. Mas os gregos são um deu atenção. Muito menos escrever a minha
referencial histórico, sendo teórico, claro! O história sobre a perspectiva caolha e calhorda de
que me tem atraído muito e nisso você pode mim mesmo. Não. Eu não quero ser meu
acreditar como a mais absoluta expressão da próprio autor, nem meu próprio biógrafo. Quero
verdade que vivo hoje, é que encontrei um ser outros. Outros, você está me entendendo,
caminho. O caminho sempre esteve, de variadas meu caro Martin? Ou a conversa o está
formas, ao meu lado. É como se eu estivesse deixando novamente com sono? Posso
andando em um trem e não tinha coragem de continuar divagando comigo mesmo... Aliás, é
saltar numa pequena estação e seguir viagem minha especialidade, se é que você não sabia.
por aquela trilha onde eu via pessoas, vacas,
plantações e poeira. Eu também poderia dizer Susana – Esta noite sonhei que tinha aparecido
que o caminho, o que estou agora percorrendo, um iceberg na minha praia. Não um pedaço de
só ficou claro para mim quando alguém, dentro gelo de alguns metros, mas uma montanha de
do túnel acendeu o farol do trem, apitou e gelo. Azul. De sua imensa parede frontal
indicou: Estação Pirambóia, estação desprendiam imensos blocos. Alguns já
Pirambóia... Ou fica dentro ou fica de fora... chegavam até a areia da praia. Dois ou três
Estação Pirambóia, ou fica dentro ou … Resolvi ursos polares tiveram que ser abatidos pela
saltar, antes mesmo que alguém gritasse dentro polícia. Quem ia conseguir segurar aqueles
do trem que havia uma estação depois da animais enfurecidos pelo calor e pela falta de
próxima curva, atrás daquela montanha. Nem comida? Será que saiu na televisão? Nem
sei bem como foi que criei coragem para saltar. sempre notícias reais são mostradas pelas TVs.
Sabe, quando estava ainda no ar, naqueles Talvez eles não queiram alarmar a população.

19
Alguém com juízo deveria se posicionar. Falar a onde, também tenha o mesmo sonho? Será que
verdade, não é Catharina? Você sempre tem isso tem a ver com Freud ou com Jung? Você
falado a verdade? Eu, como assim? Não, não deve saber que os sonhos foram estudados pelo
me venha com este jogo. Não gosto muito desta Freud, claro. Mas a questão da sincronicidade é
brincadeira, não. Não mesmo. Vamos mudar de mesmo parte da teoria junguiana. Já ocorreu a
assunto? Eu falava de um sonho. Os sonhos, você pensar numa pessoa e, assim, como num
quase sempre, são uma projeção da verdade que passe de mágica ela ligar para você ou até tocar
vai ou está acontecendo sem que a gente a campainha de sua casa? Nem te conto, nem te
perceba. Quando menos se espera. É só ler a conto. Um dia, eu usava uma camiseta que eu
manchete: Ursos polares abatidos em Mar Del ganhara de um amigo artista plástico. Ele
Plata. Você sonhou mesmo ou está inventando? morava num bairro bem afastado do meu. Fui
Você deve ter visto muito aquele filme do Al num supermercado e, não sei porque, imaginei
Gore, não é? Quem, o vice do Clinton? Não me encontrar com esse amigo. Quando eu descia a
meto mais com políticos. Depois da experiência escada rolante, dei de cara com ele. Nós
com o secretário de finanças, nunca mais eu levamos o maior susto. Você aqui? Sim...viu
quis conhecer ninguém que esteja no poder. E que estou usando seu presente? Vem sempre
seu professor do curso de teatro, como foi aqui? Lembrei que ia para uma festa e que não
mesmo que vocês acabaram indo para a cama? tinha comprado um presente para o
Como? Lá vem você de novo... Sim, como aniversariante. Parei no shopping ao lado e vim
aconteceu, Catharina? E você acha que eu sou até aqui para comprar cerveja... Aniversário? É
dessas que vive revelando seus segredos? Não, mesmo? Conheço? Acho que não... vou
eu sou uma mulher discretíssima. Se alguém presentear-lhe com uma camiseta muito bonita.
insinuar alguma coisa eu não deixo que Não sei onde, mas parece que eu já vi essa
alimentem os tabloides sensacionalistas. Mas camiseta com alguém... Não é incrível? Se você
aqui, entre nós, nada vai sair além dessas não fosse meu amigo eu não ia acreditar na
paredes. Como? Você pensa que não. O que tem história. Você está com sono? Não, acabei de
de gente atenta e maliciosa, não é minha acordar. Eu ia mesmo responder ao seu e-mail.
querida? Vamos encerrar o tema. Depois que os Antes li um pouco. Tenho um trabalho para
ursos foram abatidos o governo decidiu não entregar amanhã. Vou participar de uma palestra
mais permitir que icebergs aportem em nossas sobre dramaturgia. Ah, você vai assistir? Com
praias. Baixaram uma lei e rapidinho a quem? Não, serei eu mesmo. O quê? Eu vou dar
regulamentaram. Acho que foi mesmo uma a palestra, mas estou sem assunto. Será que
medida sensata. O quê, você deve estar louca! você pode me ajudar, Martin? Tem alguma
Que coisa mais insensata é essa! Ninguém pode sugestão? Logo eu? Você sabe, deixei de ser
agir assim de forma tão arbitrária contra as leis escritor e fui ser apenas um técnico em
da natureza. Dia mais, dia menos, os icebergs barragens, será que você se esqueceu? Técnico
vão invadir nossas praias mesmo. Espere e em grandes barragens, tipo Itaipu assim... Ah, é
verá! mesmo? Mas como eles conseguem reter tanta
água assim? Como? Não é perigoso uma
Gabriel – Estive pensando nos sonhos que barragem dessa romper e inundar e matar e
estão me incomodando também. Os sonhos destruir e acabar com tudo que existe abaixo do
estão se repetindo, mas, a cada noite parece que vertedouro? Sabe, pensando em barragem, você
vem um novo capítulo. Está difícil dar uma acabou me dando uma excelente ideia. Estou
sequência lógica para eles. Algumas manhãs pensando em escrever um texto onde eu vou
quando eu acordo tento me lembrar, mas não contar sobre como um autor pode se inspirar em
me ocorre nada. Na noite seguinte, o sonho se fatos do nosso dia a dia. Se ele ler jornais,
repete e traz algo novo. Aí eu percebo que tudo consultar os sites noticiosos ou, até, ficar atento
foi sonhado numa noite só. Não é muito ao que houve em bares, restaurantes, conversas
estranho isso acontecer, Martin? É mesmo esparsas que ouve enquanto anda de metrô ou
possível que eu sonhe algo e alguém, não sei de ônibus. Mas o que tem de inspirador eu citar

20
uma barragem e você falar no tema de sua escala. Primeira classe, já pensou? E quando
palestra? Ah, meu caro Martin, uma barragem é você vai? No sábado a noite. Vou sair do Rio de
como se fosse a vida. Está tudo ali, retido, Janeiro. Vai me dizer que é pela mesma
armazenado, naquele imenso e profundo companhia cujo avião caiu no mar? Não... um
espelho d´água, preste a mover turbinas, a gerar raio nunca cai no mesmo lugar. Nem um avião,
energia, a sair pelo outro lado, a irrigar outras sabia? Eu já contei para você que um avião
terras, a lavar outros corpos, a saciar a sede, a quase caiu sobre minha casa quando eu era
levar mágoas e sujeiras. Uma barragem é sua criança? É mesmo? Você viu? Vi e ouvi. Foi
própria vida, percebeu? Se você não usar essa como se eu estivesse dentro de um filme de
imensa energia que está retida, um dia ela pode guerra. E o que aconteceu? O piloto morreu
explodir. Não em ideias, mas pode explodir é queimado e quase destruiu a casa da minha
mesmo sua cabeça. Acho que agora entendi. vizinha. Sorte dela é que o avião caiu num
Talvez eu tenha entendido. Vai ser hoje ou terreno vazio entre as duas casas lá na esquina.
amanhã? Depois, eu fui brincar dentro da ferragem do
pequeno avião queimado. Sentei até nas molas
Susana – Esperei por uma resposta sua. Devia do banco onde o piloto estava. Tudo retorcido,
ter esperado mais antes de escrever-lhe preto. Tinha até um cheiro de churrasco
novamente? Sim, seus compromissos. Eu sei. queimado. Um cheiro muito estranho. Só sei
Eu entendo. Também estou assoberbada com que me fizeram sair correndo de lá. Antes que
minha agenda maluca. Não tenho mais folga carregassem aquele monte de metal retorcido.
para nada. Mas você sabe que é muito Onde você vai ficar hospedado? Ah, eu vou
importante para mim saber qual é sua opinião ficar num hotel bem charmoso que não é muito
sobre o tema que lhe enviei para meu novo caro, lá em Montparnasse, perto daquele prédio
espetáculo. É bom a gente ter os comentários de imenso, a Tour Maine-Montparnasse. Vou ficar
pessoas com as quais a gente não tem contato na Boulevard de Vaugirard. Não fica longe do
muito próximo. Quem está de fora, muitas Jardim de Luxemburgo, você sabia? Eu... não
vezes, vê com olhos mais atentos e enxerga o sabia mesmo, aliás, pouco sei sobre Paris.
que os amigos mais próximos deixam passar Nunca fui para Paris. Não! É mesmo? Pensei...
sem se darem conta do que é mesmo óbvio. Só conheço Paris pelos filmes, livros e fotos
Entendeu por que estou pedindo que me que alguns amigos me mostraram. Tenho muita
responda? Você estava me respondendo? Acha vontade de ir a Paris, mas, para falar a verdade,
melhor que eu não o interrompa agora? Que antes eu gostaria de conhecer Nova York.
bom. Vou esperar seus comentários, ok? Fique Depois eu iria a Paris. Primeiro quero ir a Nova
bem. Catharina, nem te conto o que aconteceu! York. Sim. Mas Paris... você não sabe o que
Mas você de novo com essa ideia de viajar para está perdendo. Eu posso imaginar. Mas o que
o Brasil? foi que você mais gostou na França, Martin? O
filho de uma amiga minha quando eu perguntei
Gabriel – Eu devia ter comprado as passagens isso me disse com todas as letras: Eu gostei da
na semana passada. Não comprei. E hoje, para Disney. Mãe não quero ir de novo em museus,
minha surpresa... O que você não comprou está bem? E eu perguntei para ele o que ele
ainda? Não... Acho que... Mas, veja bem, eu havia mais gostado de comer em Paris. E para
devia ter comprado antes e não deu. Hoje minha surpresa ele não disse que era do
quando autorizei a compra pela minha agência MacDonalds de lá... Eu adorei comer pato.
de viagens, veio a surpresa... O que? Não tinha Pato, como? Ah, sim... Confit de canard... É
mais lugar? O voo estava lotado? Nem hotel? uma delícia. E não custa tão caro, pois tem esse
Nada disso. Escute. O dólar caiu tanto, mas caiu prato por toda Paris. As crianças sempre nos
tanto que vai dar para ir de primeira classe, surpreendendo, não é? Logo eu...
pagando apenas um pouquinho mais do que eu
imaginava pagar indo na classe executiva. Susana – Já comprou as passagens? Vai
Primeira classe. Vou direto para Paris. Sem mesmo? Quando?

21
Gabriel – Eu quero conhecer Paris. Quero Susana – Bom dia...
muito. Sim, depois que for a Nova York. Acho
que está claro. Quando? Está tudo anotado aí. Gabriel – Quem?

Susana – Viajo daqui quinze dias. Você vai para Susana – Catharina...
Montevidéu também? E a Buenos Ayres?
Gabriel – Catharina?
Gabriel – A previsão é de neve este ano. Não
neva em Nova York há dois Natais. Susana – Martin?

Susana – Depois de tantos anos quero sentir Gabriel – Martin?


calor, muito calor, no meu Reveillon...
Susana – O quê?
Gabriel – Será que vou precisar comprar mais
roupas pesadas? Gabriel – O quê?

Susana – Andar de vestido florido. Um sapato Susana – Ontem?


bem leve...
Gabriel – Ontem?
Gabriel – A mesma roupa que usar em Nova
York vou poder usar em Paris? Susana – Como?

Susana – Direto para o Rio de Janeiro. Uma Gabriel – Como?


semana. Depois vou para Florianópolis. Um
resort maravilhoso me indicou... Susana – Não me diga...

Gabriel – Quantos dias lá? Dez dias e depois Gabriel – Não me diga...
outros 10 na França. É suficiente? Vô, eu já
disse... é suficiente, vô. Susana – Quando?

Susana – Trinta e seis graus. É a previsão. Já Gabriel – Quando?


sentiu calor assim?
Susana – Será que vai dar tempo?
Gabriel – Uns 10 ou 12 graus negativos. Nem
imagino como deve ser... Gabriel – Ela chegou tarde demais, Martin!

Susana – Será que meu amigo brasileiro vai


acreditar quando eu chegar?

Gabriel – Ela não sabe que eu vou para lá...

Susana – Nunca fiz uma surpresa dessas...


FIM
Gabriel – Será uma imensa surpresa para ela,
acredito. Curitiba, 7 de dezembro de 2009.

Susana – Vou ligar... Estou aqui! Amanheceu nublado, já fez sol e voltou a
nublar. Acho que vai chover e fazer frio.
Gabriel – Vou tocar a campainha.

22

You might also like