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MICHELET: A MULHER E A OPERÁRIA

Visões sobre a Mulher do Século XIX

Rafael D. Oliveira

2 mil mulheres e moças passaram pelas ruas cantando hinos – um espetáculo

surpreendente e singular – chegando às raias do sublime. Assustadoramente

famintas, devoravam uma bisnaga de pão com indescritível sofreguidão, e se o

pedaço de pão estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente devorado

com avidez.

John Bright1

O relato de John Bright, parlamentar na Inglaterra de 1843, traz à tona a cruel

realidade a que os operários da primeira metade do século XIX estavam submetidos, e

que já foi amplamente estudada por importantes historiadores como Hobsbawm e E. P.

Thompson em seus estudos sobre a dupla revolução2 e a formação da classe operária.

John Brigh, entretanto, não fala dos operários, de maneira generalizada. Em sua

pequena frase é possível identificar a presença de um gênero de trabalhador bem

específico: a mulher. Este pequeno texto pretende lançar mão de breves reflexões sobre

a configuração da mulher como mulher operária, principalmente nos anos que

antecedem as revoluções de 1848. Dessa forma, localizamos nossa análise nas questões

relativas ao trabalho e indústria na virada do século XVIII para o XIX.

1
apud HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.
287.
2
Maneira pela qual Hobsbawm caracteriza os processos desencadeados pela Revolução Industrial
Inglesa e a Revolução Francesa, que segundo ele são responsáveis por gestar as especificidades políticas,
econômicas e sociais do séc. XIX.
1
Debruçaremo-nos sobre os escritos de Jules Michelet, mais precisamente em um

trecho da introdução de sua obra “A Mulher” intitulado A Operária, e que oferece uma

abordagem diferente daquela com a qual os historiadores, sobretudo os que se

preocupam com as questões políticas, estão habituados. Michelet (1798-1874) faz parte

do enorme grupo de historiadores franceses considerados peças-chave na construção da

disciplina histórica, pois combinou em seus escritos reflexões sobre o passado ao

mesmo tempo em que enxergava a História como uma maneira de “transformar

mentalidades através de estruturas do Imaginário”3. O tempo presente era, pois, o

grande palco onde Michelet travava seus debates, muitas vezes considerados pelos seus

sucessores como altamente controversos. Não é nossa intenção realizar uma análise

apurada da obra de Michelet, mas como necessidade de situar nossas discussões em sua

obra, cabe destacar o fato de Michelet ser considerado um dos memorialistas da História

de França, e durante algum tempo, um ícone da História de seu povo. A obra que

analisaremos, porém, faz parte de um grupo de escritos do autor considerados por

nossos contemporâneos como marginalizados, e ligados às discussões de Gênero e

naturalismos. ….

Publicada em novembro de 1859, A Mulher logo se torna centro da crítica da

época e alvo de acolorados debates. A preocupação do círculo do escritor era o fato de

que suas últimas obras estavam abandonando o campo da História e estavam mais

concentradas nos questionamentos erotômicos, às paixões. Essa crítica funda-se com a

publicação da obra que precede A Mulher, intitulada O Amor. A relação entre os dois

livros é evidente: em O Amor, Michelet demonstra que as mulheres não ficaram alheias

3
MOREAU, Thérèse. “A Bela é a fera”. Prefácio. In MICHELET, Jules. A Mulher. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. XVII
2
à batalha política; muitas delas haviam participado dos acontecimentos de 1848. O

historiador tece suas reflexões analisando a ideia que move o “homem de sociedade”,

através da insatisfação das mulheres em relação a este. O Amor apresenta-se como um

remédio para os males sociais, sobretudo para o fracasso de 1848. Como possibilidade

de oferecer sentido prático às suas teses, Michelet apresenta A Mulher como uma

possibilidade de educar o povo, através de seus costumes e concepções de Mundo, rumo

à uma realidade que possui por base a célula familiar estrita.

Fica bem claro ao leitor de A Mulher, que sua obra se transmuta em uma

meditação sobre a educação das mulheres e sobre a necessidade de uma literatura para o

povo. Daí a escolha de um trecho deste seu livro para se pensar a mulher operária no

século XIX. Mais do que isso, perceber a construção de um discurso que não enxerga

com bons olhos a inserção da mulher no mundo insdustrial.

O capítulo 2 de sua introdução é inciado com um Michelet pasmado diante de

sua realidade. O autor da caracterização da palavra operária como uma palavra “ímpia”

e “sórdida”4 é pessimista ao idealizar o futuro feito por mulheres que trabalham nas

fábricas como o futuro de um mundo desprovido de qualquer coisa que seja boa. Não é

que a mulher deva ficar ociosa. Ela pode, ao contrário, trabalhar muito, “mas variando a

atitude, como faz em sua casa, indo e vindo. Cumpre que tenha uma casa. Cumpre que

seja casada.”5 O historiador empenha-se, então, a encontrar as causas da saída (forçada)

da mulher do núcleo familiar e sua inserção no mundo industrial. Sua resposta não

ultrapassa aquela que concentra suas atenções na lógica do capitalismo, qual seja aquela

da ambição:

4
A Mulher, p. 14
5
A Mulher, p. 23
3
Quando os fabricantes ingleses, imensamente enriquecidos pelas máquinas

recentes, vieram queixar-se a Pitt e disseram: “Não aguentamos mais, não

estamos ganhando o suficiente!”, e ele deu uma resposta pavorosa que pesa

contra a sua memória: “pegai as crianças.” Quão mais culpáveis ainda são

aqueles que empregaram as mulheres […] Barbárie do nosso Ocidente!6

Para Michelet, foi a ambição de enriquecer que fez com que os patrões

conclamassem as mulheres – e também as crianças - para o espaço industrial. E de fato,

a Revolução Industrial marcou a introdução da família na engrenagem de produção,

tranformou a mulher em força de trabalho e fez dela um operária.

A máquina, criada para render o máximo, acabou por tirar a mulher de dentro de

casa, incorporando-a ao seio da classe operária. Como diz Marx em O Capital (Vol.1),

A maquinaria, ao tornar inútil a força do músculo, permite empregar

trabalhadores sem força muscular ou sem um desenvolvimento físico completo,

que possuem, no entanto, uma grande flexibilidade em seus membros. O

trabalho da mulher e da criança foi, ortanto, o primeiro grito da aplicação

capitalista da maquinaria.7

A mulher e a máquina chegam juntas e são o diferencial da indústria moderna

em relação à manufatura. A mão-de-obra feminina é convocada para aumentar o

rendimento da máquina, ou do capital constante, fazendo baixar o nível salarial da

classe trabalhadora. A chegada da mulher causa uma baixa salarial gigantesca, já que

cresce o número de operários. Michelet, portanto, vê na mulher uma figura

“corrompida”, porque também corrompe. Entretanto, como causadora de maior

6
A Mulher, p. 14
7
Marx, O Capital, Vol. 1, cap. 13.
4
exploração, é também explorada. E como fruto deste processo, pode-se perceber a

miséria e a pobreza expressas na epígrafe no início do texto. Hobsbawm demonstra

quais estratégias os novos pobres industrializados e urbanos lançavam mão para

sobreviverem à cruel realidade a que estavam submetidos, através de “distorções do

comportamento social”:

A bebida não era o único sinal desta moralização. O infanticídio, a prostituição,

o suicídio e a demência tem sido relacionados com este cataclismo econômico e

social […]. Eram tentativas de escapar do destino de ser um trabalhador pobre

ou, na melhor das hipóteses, de aceitar ou de esquecer a pobreza e a

humilhação.8

Michelet já percebia isso, quando disse que para completar a quantidade de

dinheiro suficiente para manter-se, a mulher deveria sair à noite, prostituir-se. A

diferença é que o historiador do XIX encarava o fato como uma necessidade imposta à

mulher. Hosbawm enxerga isso como “fuga”. Seja qual for a mais próxima da

“realidade”, o ato torna-se um roubo. Um roubo da vida e da dignidade humana.

O capital arrancou a mulher do seio da família e não deu a contrapartida

necessária para suprir o vazio que nela deixava. Nas famílias trabalhadoras, esse vazio

era concreto e dramático: quem se encarregria das tarefas domésticas? Quem tomaria

conta das crianças pequenas? Quem, ora, faria o papel de mãe? Ao homem do séc. XIX

essas eram questões que se colocavam, e que estão também presentes em Michelet. A

mulher é pura graça, é pura alegria, e dentre muitas funções, a principal é exercer o

papel de mãe, mãe daquele que será antes de seu filho, o futuro “homem da sociedade”.

8
HOBSBAWM, ibidem, p. 284-285.
5
Ela é produtora de homens, do Homem, aquele a quem tudo deve convergir. O filho-

homem é a pedra fundamental da humanidade, aquela sobre a qual a sociedade está

alicerdada. Por isso “a mãe ensina ao filho apenas o que o filho deve ter-lhe ensinado

primeiro”.9

Para Michelet, falar em mulher é falar em criança, principalmente quando

estes dois seres devem ir para a fábrica. Observemos o caso inglês, segundo Thompson.

O trabalho infantil não era algo novo para o industrialismo. Entretanto ele é

reconfigurado após o crescimento das indústrias. Estas, porém, irão repetir a prática de

exploração doméstica. Para Thompson, “o crime do sistema fabril consistiu em herdar

as piores feições do sistema doméstico”10. Assim, eram nas atividades têxteis que as

crianças viviam sua infância. Fiar e costurar, inclusive, eram atividades que foram

desapropriadas das mulheres e meninas com o aparecimento das máquinas de tecer e

costurar. Para Michelet, as meninas deveriam ser educadas para tornarem-se fiandeiras e

costureiras: eis a boa moça, e futuramente a boa esposa. Entretanto, agora que deixava

de ser a protagonista da ação de fiar e tornava-se coadjuvante da máquina, a mulher

estava fadada a tornar-se um ser falido, com a saúde debilitada, dona de abortos. Como

já dissemos: a corrompida e corruptível.

Iniciadas as reflexões, devemos prosseguir para uma conclusão que não

pretende-se “conclusiva”, no sentido de finalizadora. A mulher é vista por Michelet

como o “domingo do homem”, isto é, sua propriedade e, portanto, seu momento de fuga

da realidade cruel a que os operários estão submetidos. Porém, o domingo do homem

deve estar em casa, cuidando de seu corpo e de sua saúde, que para ele, é frágil por

9
A Mulher, p. 63
10
THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa II. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 207
6
natureza “graças” à dádiva da menstruação. Em contrapartida, a realidade econômica,

como foi exposto através de Marx e dos historiadores Hobsbawm e Thompson, impele a

mulher a ir ao encontro da indústria, a tornar-se operária. Michelet não aceita essa

realidade, e utiliza sua obra como um veículo de transformação das mentalidades de sua

época, uma tentativa de realizar o “retorno da mulher ao lar”.

Evidencia-se que uma discussão que antes estava no campo econômico,

transita também na abordagem de Gênero da História, isto é, o papel da mulher

enquanto ser gestado socialmente, no mundo do trabalho.

Seja como for, fica claro que Michelet como um importante historiador do seu

tempo, é também responsável por certa visão discriminatória da mulher como operária,

como trabalhadora. O importante é perceber que as questões de classe, esbarram-se

também em questões subjacentes, como as de gênero, por exemplo. E essa é a maior

contribuição que um estudo sobre este assunto pode ter para uma reformulação do

século XIX como matriz de análise, qual seja uma reformulação que ofereça espaços de

atuação para outros personagens políticos, que até então, estavam à margem da História.

7
Fonte analisada:

MICHELET, Jules. “A Operária” In _______. A Mulher. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 14-25.

Referências Bibliográficas

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977

MARX, Karl. O Capital, Vol 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006

THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa II. São Paulo: Paz e Terra, 1988

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