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FORÇA VIVA
LYNN V. ANDREWS
Tradução de
DIOGO BORGES
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Título original: Medicine Woman
ISBN 85-85091-40-1
Andrews, Lynn V,
A581f Força viva / Lynn V. Andrews; tradução de Diogo Borges. — São
Paulo ; Best Seller, 1987.
CDD-299.7
87-1490 -615.89909701
-970-1
10 9 8 7 6 5 4 3 2 1
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FORCA VIVA
LYNN V. ANDREWS
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Este livro é dedicado a David Carson,
aquele que é verdadeiramente invisível.
Agradecimentos
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Não existem curandeiros sem curandeiras. Um
curandeiro recebe o poder de uma mulher, e sempre foi assim.
O curandeiro substitui o cachorro. Não passa de instrumento
de uma mulher. Hoje em dia não parece mais ser assim, mas é
verdade.
— Agnes Alce-Que-Assovia
Uma lua amarela surgiu por trás das colinas, a distância. O céu era belo,
imenso, e ouviam-se os coiotes entoar sua canção lamentosa.
Eu estava sentada diante de uma fogueira ao ar livre, na companhia de
uma velha índia. Seu rosto, tão enrugado quanto um fruto amadurecido, tinha
maçãs salientes, e suas longas trancas caíam bem abaixo dos ombros. No
pescoço, um colar de contas, destinado à cura, por cima da blusa verde xadrez.
— Sua vida é um caminho — afirmou e, no início, era difícil entender o
sotaque carregado. — Sabendo, ou não, você tem andando em busca de uma
visão. É bom ter uma visão, um sonho.
Existia naquela criatura algo que se impunha. Sua personalidade parecia
modificar-se de um momento para outro. Embora sentisse dificuldade em
exprimir em inglês os pensamentos mais simples, era tão erudita quanto
qualquer outra pessoa que eu conhecia, além de possuir grande dignidade.
— A mulher é o máximo — afirmou. — A mãe terra pertence à mulher,
não ao homem. Ela carrega o vazio.
Foram as palavras que me dirigiu antes de me tornar sua aprendiz. É uma
curandeira ou heyoka. Estava destinada a segui-la durante sete anos. Este livro é
um registro de minha jornada através de seus domínios, estranhos e belos. É
uma comemoração do poder da mulher, tal como ela me fez enxergar esse poder.
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Estou caminhando através de uma paragem distante. A
pradaria está recoberta de vegetação rasteira, esparsa, e de cedros que
se concentram em alguns pontos. Penso num vale solitário, numa
cratera da lua. Em meio àquele silêncio, estranho e vasto, deparo com
um armário todo esculpido. Seu artesanato é notável. Consigo
enxergar através de suas portas translúcidas. A esquerda, por detrás
do vidro, um rosto de mulher me encara. E o de uma antiga índia
americana. À direita, vejo um corvo de um negro azulado. A cena
recorda-me um quadro de Magritte.
A cabeça da mulher, de repente, começa a cair para trás e para
a frente, em movimentos ritmados, como um metrânomo.
— Quantas vezes preciso dizer — ela me repreende, sem
interromper o movimento da cabeça — que o cesto de casamento não
está à venda? Você precisa conquistá-lo.
Enquanto estou sendo admoestada, minha atenção desvia-se
para o olho brilhante do corvo. Seu corpo gira e ela encara a cabeça da
mulher, movimentando-se na mesma batida de um metrânomo.
Fico assustada. O corvo começa a imitar a fala da velha. As
duas vozes não se confundem e são tão belicosas que estremeço.
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Vi apenas um cesto de casamento em toda minha vida.
Sei, porém, que o cesto ainda existe. Onde, ignoro,
— Hyemeyohsts Tempestade
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Que é a voz de uma mulher senão a voz da katchina?
— Agnes Alce-Que-Assovia
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Ninguém é feiticeiro em todos os momentos do dia.
Como seria possível viver assim?
— Pablo Picasso
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É a lei que todas as coisas devem nascer na mulher, até
mesmo as coisas inventadas pelos homens.
— Agnes Alce-Que-Assovia
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São os bebês mortos que ainda não nasceram. Estão dentro
de você, chorando sem parar. Choram há mil anos, lá onde as rodas
da escuridão giram para sempre.
— Ruby-Muitos-Chefes
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Os guerreiros do céu sorriam quando ura grande
guerreiro roubava o poder.
— Agnes Alce-Que-Assovia
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A finalidade do feitiço é o poder.
— Agnes Alce-Que-Assovia
— Quero que você faça uma boneca loba — disse Agnes no dia seguinte.
Eu estava sentada à mesa e tomava chá de artemísia.
— Uma boneca loba? Algo assim como um fetiche?
— Você pode fazer disso o que bem entender, contanto que seja loba e
boneca. Poderá fazê-la de barro, capim seco, lascas de madeira, pedaços de
couro ou qualquer outra coisa. Se quiser, poderá até mesmo entalhá-la.
— E de que tamanho será? — perguntei, excitada diante da perspectiva de
fazer meu próprio fetiche.
— Poderá ser tão grande ou tão pequena quanto você quiser. Ela a ajudará
de muitos modos. Você deverá lembrar-se constantemente da dança para seu
feitiço. Existem poderes maternos, dos quais tomou conhecimento, e certos
poderes agora precisam de sua proteção. O conhecimento veio até você sob a
forma de sonhos. As sonhadoras sonharam com você acordadas. Agora ponha
esses sonhos e poderes numa forma tangível. Poderá usá-los e eles lhe dirão
muita coisa. Faça uma boneca loba, que será sua intérprete quando quiser lançar
uma ponte entre os vários mundos. Quando terminar, mostre-me seu trabalho.
Agnes afastou-se, dando nosso diálogo por encerrado. Imagens de
bonecas índias que eu havia colecionado e vendido surgiram em minha mente.
Peguei uma faca, algo para comer e enveredei pela trilha, à procura de Pintada.
Pensava em seu comprido rabo negro. Era um dia úmido e nevoado, um dia
perfeito para dar forma aos meus sonhos. Subi rapidamente a encosta de uma
colina. Os vultos das pedras e do capim alto me rodeavam. A picada que levava
ao pasto do sul foi embaralhada pelas" formas móveis das árvores, que surgiam
no meio do nevoeiro e não me eram mais familiares. Ouvi asas ruflando, nos
galhos que pendiam.
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Cheguei ao pasto, que a neblina cobria como se fosse um manto, e
encontrei Pintada. Seus cascos desapareciam nas alvas camadas que se
estendiam a perder de vista.
Cortei um pedaço de seu rabo, para com ele fazer a boneca loba, e
perambulei pelos campos enevoados o resto do dia. Cavouquei o chão, trepei nas
árvores, à procura de penas, cascas, pedaços de pele, qualquer coisa que fosse
apropriada e fora do comum. Descobri um galho de madeira bastante macia,
perto do riacho do Homem-Morto, e que sugeria vagamente o corpo de um lobo.
Tinha cerca de 25 centímetros de comprimento e, em uma das extremidades,
surgiu uma cara que uivava, quando acabei de o entalhar. Peguei pedaços de
artemísia, pele e outras coisas e fiz uma pequena trouxa, amarrando-a na barriga
da loba. Os pêlos da égua serviram de rabo e entalhei em seu dorso símbolos que
representavam a águia noturna e o urso. Como tinha encontrado cola e um
pedaço de espelho na cabana de Agnes, utilizei a primeira para fixar pedaços de
conchas quebradas na boca e que imitavam dentes ameaçadores. Dois
pedacinhos de espelho serviram de olhos. Esmaguei algumas amoras do mato e
com seu suco vermelho, que parecia sangue, esfreguei a boneca. As unhas de
pássaros serviram perfeitamente de garras. A medida que eu desbastava a
madeira, colava e infundia poder no novo animal, ele começou a exibir uma
presença atemorizante. Enquanto trabalhava, surpreendi-me entoando uma
estranha canção. Eu a repetira várias vezes, antes de me dar conta do que fazia.
Era, para mim, uma canção saída de um sonho.
Meu boneco lobo estava terminado, quando o crepúsculo chegou. Tinha a
atitude de um animal feroz, que uivava, mas, ao mesmo tempo, havia nele
qualquer coisa de pássaro, por mais estranho que isso pudesse parecer. Isso
significava que ele conseguia voar entre os mundos, que se sentia à vontade
tanto na terra quanto no céu. Não sei por que o chamava de "ele", mas me
parecia masculino, talvez por ser feroz e anguloso. Admirei-o durante alguns
instantes, embalei-o em meus braços e, a passos largos, voltei para a cabana de
Agnes.
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— Deixe-me ver — disse ela, antes que eu tivesse a oportunidade de abrir
a boca. — Ponha-o em cima da mesa.
Fiz o que ela mandava e o lobo pareceu dominar na sala. Agnes andou em
volta dele, acenando com a cabeça, e seus olhos tinham um brilho misterioso.
— O que pode me dizer sobre a pessoa que o fez? — perguntou.
— Fui eu quem fiz.
— O que pode ver e perceber, se não o tivesse feito? Quando olho para
algo assim, sei quem o fez. Nesse caso, foi você e, portanto, é um espelho
perfeito de sua própria percepção.
— Mas não passa de um boneco!
— Não, não é apenas um boneco. Percebo quem o fez. Se jamais tivesse
visto você antes, saberia que a pessoa que entalhou este lobo é do sexo feminino.
É branca e possui um conhecimento muito limitado dos lobos e da vida animal.
Quando você o fez, estava me mostrando sua verdadeira natureza. Você é uma
mulher de muitas máscaras. Não tem motivos para fingir, em se tratando de
mim.
— Mas não estou fingindo!
— Está, sim. Está fingindo que me respeita, pois deseja algo que posso
lhe dar. No fundo, acha que eu não combinaria com seu mundo, na Califórnia.
— Agnes, com efeito!
— Sim, é o que você pensa de mim, no fundo. Está imaginando quanto
tudo isto irá lhe custar. Está imaginando se vou lhe fazer telefonemas
interurbanos a cobrar, lá no terminal rodoviário. Considera-se boa demais para
nós.
— Agnes, se você acha isso de mim, por que me deixa ficar com você?
— Não penso isso de você. Sei que é assim. Você espera que eu não
apareça na porta de sua casa porque não sabe como poderia me explicar para
seus amigos. Acha que eu não conseguiria acompanhar sua vida de diversões,
repleta de gente elegante, não é mesmo?
— Bem, creio que muitas dessas coisas me passaram pela cabeça.
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— Receia que eu não me impressione suficientemente ou saiba o que seu
estilo de vida representa. Sente vergonha de minhas roupas, minha pobreza,
meus modos, de tudo, enfim.
— Agnes, não me parece justo que você diga essas coisas a meu respeito.
— Esta boneca me conta tudo que preciso saber. Tem medo de me
magoar, caso você mesma o diga? Precisa desse objeto-lobo para agir em seu
lugar.
— Tudo o que você está dizendo não passa de um palpite. Acho
impossível que enxergue tanta coisa assim. .
— Você gosta de comida fina. Aprecia colecionar, por razões estéticas. E
fácil de adivinhar. Essa charada a gente mata num segundo. Você tem senso de
humor. Isso também é fácil de perceber. Gosta de viver em ambientes que
considera belos. Mal pode esperar o momento de regressar àquilo que considera
uma terra familiar. Mal suporta a vontade de retornar para um lugar onde possa
comprar coisas — conforto, comida, serviços.
— Mas o que há de errado nisto?
— Nada, mas aqui você tem de trabalhar para conseguir o que quer.
— O que mais você enxerga no lobo, Agnes?
— Vou lhe dizer algo que a deixará intrigada. Está vendo como o couro
envolve a trouxa, amarrada na barriga do lobo?
— Sim. — Examinei-a bem de perto.
— A partir disso, será que você consegue me dizer algo?
— Não tenho certeza.
— Quem fez a trouxa usou a mão direita, pois ela foi enrolada no sentido
horário. A pessoa também é uma perfeccionista, pois a trouxa foi amarrada
muitas vezes. Por falar nisso, por que você cortou os pêlos da cauda, em vez da
crina?
Fiquei espantada de ver que Agnes tinha conhecimento disso.
— Não sei. Pareceu-me o lugar apropriado.
— Foi o que pensei — disse Agnes, rindo. — Você procede como uma
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verdadeira heyoka.
Eu também ri, mas não entendi completamente o humor.
— Esta boneca conta-me algo de suas ilusões, daquilo que lhe parece
importante e significativo e as coisas pelas quais se dispõe a morrer. Você nada
entende de comida ou do ato de romper uma boa amizade com dignidade. A
boneca me fala de seu modo de posicionar-se no mundo. Conta-me o que você
quer e o que você não quer. Você não enxerga sua morte e não vai para ela de
modo completo, como boa filha do universo. A caçadora jamais se desculpa
perante a morte. Existem apenas duas escolhas na vida. Você pode morrer como
uma meretriz assustada ou pode viver como uma caçadora corajosa e morrer
assim. Quando seu olhar se cruzar com o da maior das caçadoras, poderá dizer:
"Estou pronta. Quando a caça se realizava, mostrei-me valente. Rondei minha
presa e a matei de modo apropriado. Fui uma boa provedora para meu
acampamento, comi minha caça e a distribuí com respeito. Agi em seu nome e a
representei bem. Percebo que vivi de você e que agora sou sua carne. Estamos,
você e eu, em harmonia. Sinto-me pronta para ir caçar com você no mundo dos
espíritos".
— Você me vê como uma covarde? — perguntei.
— Você não é uma mulher perigosa. Sob certos aspectos é como uma ave
que bate as asas sem propósito. Vejo uma mulher que necessita de muito mais
vontade e coragem, verdadeira coragem. Você não é absolutamente simples
como parece. A coisa mais triste que percebo é que gosta de se imaginar
importante. Quanto a mim, prefiro ser importante a me iludir.
— E como a gente se torna importante?
— Conheça sua morte.
— Espere aí. Sinto-me totalmente confusa. Você quer que eu morra?
— Essa foi boa! — disse Agnes, rindo alto. — Não posso impedi-la de
morrer. Jogue fora esses olhos de trapaceira e veja aquilo que é real. As pessoas
podem lhe parecer importantes, por vários motivos. Você as receia, pois elas
parecem ter algum tipo de poder. Se, porém, tivesse conhecimento de sua morte,
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seria capaz de distinguir quem goza realmente de poder e existem poucas
pessoas assim. Você só pode ser perigosa quando aceita sua morte. Então torna-
se perigosa, a despeito de tudo. Precisa aprender a enxergar aqueles que estão
despertos. Uma mulher perigosa pode fazer o que quiser, pois fará tudo. Uma
mulher perigosa fará o impensável, pois o impensável lhe pertence. Tudo lhe
pertence e tudo é possível. Ela consegue rastrear sua visão e matá-la, fazendo-a
tornar-se realidade.
— O que você está sugerindo? Vai me ensinar tudo o que se refere à
morte, para que eu possa roubar o cesto de casamento?
— Vou começar a ensiná-la a caçar, de tal modo que, quando você iniciar
sua busca, possa ter condições de ser bem-sucedida. Não haverá de querer andar
por aí, sem objetivo, sem saber o que está fazendo. Você caça a comida, a fim de
se nutrir e compartilhá-la com os outros. Se eu for bem-sucedida, você será
terrivelmente perigosa.
— Por que quis que eu fizesse uma boneca lobo?
— Quis deixar claro para você que nada surge sem que haja uma boa
razão para isso. As coisas feitas de propósito são espelhos que refletem muito
bem aqueles que as fizeram. Você pode desenvolver sua percepção examinando
tudo com muita atenção. Examinado como se deve, um objeto se desvendará a
você. Quando tiver suficiente conhecimento, saberá muito sobre uma pessoa só
pelo modo como ela segura um copo ou um lápis. Conseguirá ver milhares de
coisas em ação. Poderá perceber tudo, em relação a um caçador, só pelo modo
como ele constrói uma fogueira, do mesmo modo que conhece um pássaro pelo
modo como ele constrói seu ninho. Quando contempla um objeto, você
consegue perceber o quanto ele tem de centro. Um verdadeiro objeto de poder
possuí um centro. Você é atraída por essas coisas e nem sequer sabe por quê.
— Mas o que tem tudo isso a ver com o cesto de casamento?
— Direta e indiretamente temos falado muito sobre o ato de roubar. Você
aprendeu isso antes de poder roubar efetivamente. Deve ser uma guerreira. Será
que não percebe?
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— Sim, lembro-me...
— Antes de ser uma guerreira eficaz, deve tornar-se uma caçadora exímia,
pois a grande guerreira foi, antes de tudo, uma grande caçadora.
— E o que devo saber, para ser uma caçadora exímia? Agnes pôs-se a rir
como uma criança.
— Tantas coisas, e mesmo então não poderá saber tudo. Está vendo que
ser uma caçadora é muito complicado. Ouça, existem muitas criaturas para se
caçar. Você poderá caçar um espírito e aprisioná-lo numa armadilha, se souber
como. Poderá fazer armadilhas para os espíritos, bem como armadilhas para
pegar os nenês da água, e mesmo nesse caso precisará saber como preparar a
comida deles. No momento, os espíritos estão escondidos de você. Julga que
nasceram em sua imaginação, mas ela pode voltar-se contra você e matá-la, se
não souber como encará-la de frente. Uma coisa é caçar um coelho, mas caçar
um urso pardo é algo inteiramente diverso. O coelho e o urso pardo são dois
tipos de caça. Jamais pense que o coelho é inofensivo. Verifique que os coelhos
podem matar um homem com toda facilidade. Felizmente até mesmo os bons
caçadores raras vezes encontram um coelho assim. Se você tentasse matar essa
espécie de coelho, ele golpearia com as patas traseiras, o mundo desapareceria
para você e então morreria. O urso pardo não é um empreendimento para um
caçador tolo. Jamais subestime o caribu. Dizem que alguns deles conseguem
projetar a mente a tais distâncias que, um dia, o caçador poderá enlouquecer. Se
é carne o que você está caçando, não deve desperdiçá-la de modo algum, nem
mesmo os ossos. A carne caçada tem um espírito, um grande espírito que a
tornará forte. A carne adocicada dos animais escravos não contém nada de
revigorante para você. Seu gosto é doce, mas ela a torna gorda e indolente. Você
precisa ter equilíbrio no mundo espiritual. Essas duas espécies de equilíbrio, por
sua vez, têm de ser novamente equilibradas.
— E pode-se adquirir esse duplo equilíbrio através do alimento que se
come? — perguntei, tentando desesperadamente acompanhar a lógica do
pensamento de Agnes.
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— Em parte. Se você comer carne escrava, não imagina que alguém é
capaz de obrigá-la a fazer o que quer que seja. Esses animais escravos tinham
armadilhas ao seu redor, e você também, se os comer. A gente pode perceber
uma pessoa através do que ela come. Uma nação de escravos nada sabe a
respeito de si mesma ou de quem quer que seja. Existem tantas espécies de
alimento... Alimento para o coração, para o corpo e para o cérebro.
— E é preciso comer carne?
— Não. Tente se alimentar com comida mágica, comida com espírito. Se
você também for comida, os chefes dos mundos das plantas e dos animais
falarão com você e lhe dirão quais são suas dietas apropriadas.
— E é possível comprar esse tipo de comida numa mercearia?
— Sim, a maior parte deles, mas é preciso saber muito mais a respeito da
comida desperta. Por exemplo, que comida sofreu e que comida desfez-se de sua
integridade.
— Não entendo.
— Sei disso. Vamos tomar sopa.
Agnes não disse muita coisa mais, após a refeição. Era óbvio que estava
cansada de falar. Resolvi deitar-me.
Enquanto eu me despia, Agnes pegou o boneco e o sacudiu várias vezes,
segurando-lhe o cangote. Latiu para ele e saltou em torno dele. Eu não tinha a
menor idéia do que ela estava fazendo e resolvi achar que tudo aquilo não
passava de uma brincadeira.
Na manhã seguinte, assim que clareou, segui Agnes, quando ela saiu da
cabana. Apontou para vários insetos e contou-me que animais e pássaros os
comiam. Mostrou-me em seguida as plantas, indicando quais os animais que
tinham preferência por cada uma delas. Pediu-me para repetir o que dizia. Eu,
evidentemente, iria estabelecer um relacionamento direto e pragmático com o
conhecimento que ela desejava transmitir. Agnes quis saber se eu enxergava
alguma caça.
— Não, nada — respondi.
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— Está vendo os galos silvestres logo adiante? Aquela árvore está repleta
de esquilos. Por detrás daquelas pedras pastam veados. As codornas estão
naquela direção e, era breve, os patos voarão por cima de nossas cabeças.
Eu não vira nenhum dos animais ou aves mencionados por Agnes, mas, ao
observar com cuidado, notei que eles, de fato, se encontravam lá.
— Sim, agora estou vendo — disse, excitada. — Jamais teria reparado em
nenhum deles se você não os tivesse mostrado. Agnes, como é que você
consegue enxergar desse jeito?
— Sei onde devo olhar. É preciso desenvolver olhos famintos, olhos que
ficam com fome antes do estômago. Para ser uma caçadora, é necessário ter
conhecimento do que você está caçando. E aí que a caça começa. A gente
começa a aprender como um animal age. Você tem de perceber a caça quando os
outros não têm essa condição. Um bom caçador sempre consegue fazer isso. Vi
acontecer com muita freqüência. Um caçador detecta a caça e outro, não. Se
você não consegue enxergar a caça, precisa saber onde ela se encontra, a fim de
a levantar. O importante de se lembrar é que é necessário atingir a caça com um
golpe certeiro. Como é possível disparar uma flecha sem primeiro ver a caça?
Aprender a matar um homem exige um tempo ainda maior. Para caçar um
homem que tenha poder, você precisa recorrer a toda a sua habilidade e fazer o
que puder para não ser lograda.
— Você está se referindo a Cão-Vermelho?
— Sim, mas, no momento, você não pode pensar em caçar um ser tão
poderoso. A maior parte das criaturas executam ações impensadas. Aprenda a
caçar esse tipo de gente em primeiro lugar. Uma vez que conseguir caçar com
facilidade uma criatura assim, poderá aventurar-se e cercar uma caça mais
perigosa. É preciso, porém, ter sempre consciência dos poderes do caçado.
Todas as criaturas agem de diversas maneiras. Algumas cobrem suas pistas e
outras não. Algumas não deixam o menor rastro, a menor folhinha de capim fora
do lugar. Algumas deixam trilhas espalhafatosas, que te levarão de volta para
suas próprias armadilhas. Quanto mais conseguir enxergar, mais poderá saber o
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que os outros seres farão e mais chances terá de se tornar uma caçadora bem-
sucedida. Existem dias bons e dias ruins para se caçar. Normalmente algum tipo
de caça está presente em qualquer lugar. Uma parte dela é boa, outra parte nem
vale a pena matar. Evidentemente você terá de ir aos lugares favoráveis, para
conseguir a caça que quer. Como caçadora, jamais poderá hesitar. Deve primeiro
analisar e, em seguida, arremeter. Para fazer isso com eficiência, é preciso
conhecer a própria força, assim, como a fraqueza. Não cometa nenhuma tolice.
Seja a caçadora decidida, furtiva. A boa caçadora não tem, a respeito de si
mesma, uma opinião desavisada. A boa caçadora mata. O que significa ficar
inchada de orgulho e deixar sua caça escapar? E um insulto a quem é caçado. A
caça que não foi atingida tem o direito de comparecer à casa do espírito e pedir
que seja enviado um espírito para caçar você. Ele poderá matá-la ou enlouquecê-
la. Sabemos, em nosso íntimo, onde está a caça, e nossa tarefa é matá-la.
Certifique-se sempre de que você é a caçadora e não a caçada. O caminho do
caçador é sagrado. Não mate o que quer que seja impensadamente, nem mesmo
um carrapato. Imagine só se algo pesado a esmagasse impensadamente! Mate
apenas a caça que tiver condições de matar e não invada o território da caça que
é mais esperta do que você. Aproxime-se sempre de sua presa com reverência.
— Isso vale também para Cão-Vermelho?
— Mas é claro! Ele tem o que você quer e conhece todas essas coisas.
Aproxime-se da caça com reverência, agradecida por ser a caçadora e não aquela
que irá tombar.
Eu desejava saber mais coisas a respeito da caça, mas Agnes tinha
chegado ao fim.
— Para que você seja eficiente, preciso lhe dar poder e não idéias que
você conhece, a partir de sua voz interior. O conhecimento de segunda mão não
lhe serve. Você quer ter capacidade, não é mesmo? Pois então saiba que não
conseguirá convencer um animal a morrer.
Agnes ordenou-me que começasse a olhar, a "enxergar o que está
escondido no mato", conforme dizia.
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Nos dias que se seguiram não fiz outra coisa, a não ser perambular. No
fim de cada dia eu devia dar conta a Agnes dos vários animais que vira. Os
pensamentos estavam banidos e eu não deveria ser conduzida por qualquer outra
coisa que não fossem meus olhos. Ela me disse para não focalizar nada, mas
para me preparar para "dicas" que me levariam até onde eu devesse ir. Quando
chegou o quarto dia, consegui localizar faisões, agindo dessa maneira. Agnes
ficou feliz.
— Isso é que é o poder — observou.
Eu também me sentia feliz com minha nova capacidade. Comecei a ficar
receptiva a todos os tipos de animais. Vi veados, alces, antílopes, gambás e
coelhos. Percebi perus selvagens e outras aves de caça, tais como tinamus e
galos selvagens. Vi um castor, dois bisões e fiquei surpreendida, certa vez, ao
deparar com um lobo. Depois de nos encararmos por alguns minutos, corri para
a cabana de Agnes, a fim de contar nosso encontro.
— Isso revela muita coisa. E sinal de cura, uma grande bênção para você.
De todos os animais do mato, o lobo é o mais difícil de se ver e é virtualmente
impossível prender um deles. Você tem de cortar uma mecha de seus cabelos e
voltar para o lugar onde viu o lobo. Deixe-a exatamente lá. O lobo, de modo
algum, tinha de deixar você vê-lo. Sabia que você está desenvolvendo o poder e
veio ajudá-la!
Durante esse período, Agnes parecia bem reservada. Interrompia-me com
freqüência, quando eu contava algo.
— Ouça a si mesma. Já estou cansada de te ouvir.
Eu me sentia abandonada. Certa noite, após o jantar, vangloriei-me.
— Se eu for caçar com meus amigos, eles ficarão surpreendidos por eu
conseguir localizar tanta caça.
— Não quero ouvir falar desses assassinos! — declarou Agnes.
— Assassinos! Mas são caçadores como você! Algumas pessoas apreciam
caçar animais selvagens.
— Pois repito que são assassinos! Não existe um caçador sequer entre
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eles. Já vi isso se repetir muitas vezes. Eles vêm até aqui e saem dando tiros por
todos os lados. Não têm o menor respeito pela aves, que nesse momento fazem
seus ninhos. Para eles, caçar é assassinar. Não sentem o menor respeito pela
vida. Acuam os coiotes e os cavalos selvagens por meio de helicópteros e os
matam sem nenhuma dignidade. Você deveria explicar a essa gente, que se
considera melhor do que os animais que caçam, que um dia eles também
morrerão. No além, o primeiro lugar para onde esse tipo de assassino vai é uma
clareira. Os espíritos de todos os animais que matou o cercam, quaisquer que
sejam: patos, gatos, ursos. Os espíritos perguntam: "Por que você nos matou
deslealmente?" É melhor aquele idiota, filho da mãe, ter uma boa resposta, ou os
animais o reduzirão a frangalhos, até recuperarem sua dignidade.
— Agnes, você é louca. Inventou essa história!
— Verá se inventei ou não quando chegar seu momento. Estou lhe
dizendo algo que sei com toda certeza. Já lhe disse mais de uma vez que nada
existe sem uma razão. A justiça não falha. Talvez ela não se faça imediatamente,
mas o Grande Espírito tem de aplicá-la para sempre. Nós, humanos, vivemos
apenas um curto período de tempo, até sucumbirmos. Quero passar meus dias
como guerreira e reconhecer a beleza em todas as coisas. Um animal é filho do
universo, como você e eu. Tirar a vida de um animal livre e selvagem é algo que
deve ser feito com a compreensão de nossa própria morte. Caso contrário, deixe-
o em paz. O surpreendente é que esses assassinos sequer sabem o suficiente para
se sentirem constrangidos.
— E o que é que estou tentando aprender a fazer? — perguntei,
exasperada.
— Está aprendendo a abater caça perigosa, a fazê-lo com coragem,
bravura e honra. Está indo para além disso e aprendendo como roubar o poder.
Se eu enxergasse aquele tipo de crime em seu coração, a mandaria embora e
esperaria que comparecesse rapidamente perante seus antepassados.
Gostaria de poder relatar tudo o que me foi ensinado nos dias que se
seguiram. Para isso seriam necessários vários livros e, enquanto viver, aqueles
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momentos não sairão de meus pensamentos.
Certo dia Agnes me mostrou os rastros de um corvo no campo.
— É possível rastrear as aves no céu. Os grandes rastreadores conseguiam
fazer isso. Até mesmo o céu deixa uma imagem.
Enquanto ela falava, eu, até certo ponto, apaguei o rastro, pois pisava nele.
Agnes lançou-me um olhar glacial.
— Desculpe. Não foi por querer.
— No mundo da cura, não existem acidentes — ela disse, furiosa. —
Toda ação tem um significado. Será que não percebe? É esse o significado do
ato de rastrear. Acidente é uma palavra nascida de confusão. Significa que não
nos compreendemos o suficiente para saber por que agimos assim ou assado. Se
você escorregar e cortar o dedo, existe uma razão para ter agido assim. Alguém,
na sua cabana da lua, quis que você fizesse isso. Se você soubesse ouvir os
chefes que estão dentro de sua cabana da lua, jamais agiria com tamanha
insensatez. Uma pessoa, ligada à cura, jamais comete erros. A curandeira sabe
como enviar, lá de sua cabana da lua, os observadores que tudo perceberão.
Quando chega ao lugar para onde vai, sabe o que deve esperar, pois seus
mensageiros já estiveram lá e lhe contaram tudo.
— Mas eu não tive a intenção de pisar no rastro!
— Teve, sim. A palavra acidente me faz rir. Jamais existiu confusão nos
sonhos dos antepassados sagrados. Acidente é um modo de se subtrair às
responsabilidades por suas ações e pedir a outra pessoa que as assuma. Se eu a
esbofeteasse até não conseguir mais me ouvir, é claro que não gostaria. Foi
exatamente o que você fez e eu também não gosto.
Jamais tinha brigado com Agnes, mas naquele dia senti vontade. A
questão se complicava pelo fato de que, sempre que eu duvidava do que Agnes
dissera e examinava o que havia de mais profundo em mim, descobria
invariavelmente que ela tinha razão.
Quanto mais conhecimento me era transmitido, menos eficiente eu parecia
me tornar. Percebi-me agindo com hesitação. Por exemplo: minhas tentativas de
149
preparar armadilhas eram muito inábeis. A maior parte do tempo elas se
fechavam sozinhas, ou então não funcionavam, mesmo que um tanque passasse
por cima delas.
— Quero que você coloque uma armadilha no bebedouro, lá no riacho do
Homem-Morto — disse Agnes, observando cada movimento. — O que você
está fazendo de errado? — perguntou-me, à medida que nos aproximávamos do
bebedouro.
— Não sei — respondi, após breve reflexão.
— De que lado sopra o vento? Você deve aproximar-se do bebedouro de
tal modo que seu cheiro não se espalhe pela trilha, a favor do vento.
Percorremos a trilha do lado errado.
— Mas os animais conseguem farejar tão bem assim, Agnes?
— As pessoas fedem. Os animais daqui são capazes de sentir bem de
verdade o cheiro dos humanos.
Agnes e eu passamos o riacho. Pus a armadilha na beira da água e Agnes
me fez esfregar folhas de cheiro forte no couro cru.
— Espero que essas folhas consigam disfarçar seu cheiro — disse Agnes.
— Qual é a isca?
— A água?
— Sim, para esta armadilha. Será que esta armadilha pegaria alguma
coisa?
— Não sei.
— Não pegaria, não. A laçada é grande demais e não prenderia nada. Se
tivesse sido feita de modo apropriado, você ainda teria uma chance. Aqui jamais
conseguiria pegar um coiote velho, qualquer que fosse a armadilha. Eles são
espertos e sabem o que os aguarda. Esses animais fingirão correr até um curso
de água. O animal mais jovem, ao ver o animal mais velho agir, corre na frente,
movido pela ambição, e cai na armadilha. A coisa mais importante, em qualquer
armadilha, é a isca. Quando você usar a água como isca, lembre-se de que é a
sede que atrai a caça. Se conhecer a isca apropriada, poderá aprisionar qualquer
150
criatura, mas somente se souber como lidar com a isca correta. Descubra o
verdadeiro caráter de um animal ou de uma coisa antes de caçar.
Aprender a caçar e todas suas implicações, tais como classificar e
reconhecer as diversas qualidades de animais, foi uma ocupação que tomou todo
meu tempo. Agnes possuía um conhecimento infinito da vida selvagem e da
caça, e tinha métodos árduos de comunicar esse conhecimento. Obrigou-me a
atravessar o alpendre na ponta dos pés, até eu lhe mostrar que conseguia fazê-lo
sem provocar o menor ruído. Executar essa tarefa à perfeição exigiu-me três dias
de tremendo esforço e, no final, eu conhecia cada centímetro do alpendre.
Finalmente tive condições de o percorrer inteiro, em várias direções, sem fazer
nenhum barulho.
Agnes disse que eu era contemplativa demais. Teria de aprender a ser
mais agressiva. Eu passava a maior parte do tempo fora da cabana, a não ser à
noite. De vez em quando, Agnes parecia me experimentar, mais do que me
ensinar. Certos dias ela me privava de água e de comida e me obrigava a cortar
lenha ou carregar pedras sem nenhuma razão aparente. A conversa era reduzida
a breves ordens. Eu jamais discutia e tornei-me uma discípula completa. Tentei
absorver o máximo de conhecimentos que podia.
Certa noite, durante esse período, entrei precipitadamente na cabana e dei
de cara com Hyemeyohsts Tempestade. Fiquei espantada de o encontrar naquele
lugar.
A mesa estava coberta com uma manta de chefe e, em cima dela,
encontrava-se um escudo grande, o mais belo que eu vira até então. Um cocar de
penas de falcão, que se combinavam com perfeição, estendia-se pela mesa, dela
pendia e quase encostava no chão. Agnes estava sentada de pernas cruzadas,
junto à mesa, e examinava as penas do cocar.
— Não é possível! O que você está fazendo aqui, Tempestade?
— Estava mostrando um escudo de cura para Agnes. Queria o conselho
dela. Agnes é como uma avó para mim. Será que não tenho o direito de visitar
minha própria família?
151
Muito desapontada, balbuciei qualquer coisa.
— Gosta do escudo? — perguntou-me.
— Não sabia que os escudos eram feitos desse jeito. Nunca vi nada tão
magnífico.
— Outrora havia muitos escudos como este — disse Agnes —, mas foram
escondidos ou destruídos. Muito pouca gente tem o privilégio de ver um
verdadeiro escudo de cura.
No centro do escudo havia pintada uma grande águia azul. O couro estava
esticado. Possivelmente era de antílope e, nas bordas, viam-se penas de águia. A
cauda de pena de falcão tinha quase um metro e meio de comprimento, com
penas de ambos os lados. Conseguia-se sentir o poder que emanava daquela
peça.
Tempestade pegou o escudo com todo cuidado e o pôs em cima da cama.
Tomamos café e conversamos durante alguns instantes. Ele mostrou a Agnes
várias rodas de cura, cobertas de miçangas, de várias cores e desenhos. Agnes as
movimentou em cima do manto de chefe e de maneiras diversas. Tais
movimentos, pelo visto, tinham um significado oculto,
— Se você olhar para os círculos, começará a perceber o grande círculo
da cura — observou Tempestade. — Os círculos menores são seus
ensinamentos. As rodas de cura também são como escudos.
Agnes pegou uma das rodas e apertou-a de encontro ao peito, pondo-a
novamente em cima da mesa, ao lado das demais.
— Estas rodas de cura são círculos que têm um significado, caso você
saiba como usar seus olhos — prosseguiu ele. — Vistas em conjunto, são peças
de um quebra-cabeça. Como a grande serpente de cura, que come a própria
cauda, sonharão com você. São segmentos na mandala de nossas vidas, Se
alguma vez conseguir encaixar os círculos de tal forma que possam refletir o
grande círculo de cura, você se livrará da ilusão. Terá desempenhado um ato de
poder, seu verdadeiro propósito na vida. No interior desse ato encontra-se sua
morte, e, em sua morte, você encontrará seu verdadeiro círculo. Não está,
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porém, pronta para esses ensinamentos.
Agnes me fez realizar algumas tarefas dentro da cabana e, mais tarde,
senti-me tão cansada que enrodilhei-me na cama, perto do belo escudo, e dormi
até de manhã. Quando acordei, vi que Tempestade tinha me coberto com a
manta, mas o escudo não se encontrava mais lá e ele também não.
Tantos dias se passaram que perdi a conta. Desconfiava que Agnes não
estava satisfeita com meu progresso. Certa noite, após passar o dia inteiro
rastreando um veado, estávamos sentadas, contemplando o pôr-do-sol, ambas
caladas, diante da grandeza do espetáculo.
— Amanhã de manhã — disse Agnes de repente — você verá se é
suficientemente furtiva para roubar o cesto. Pode ir até onde se encontra Cão-
Vermelho e tentar.
Fiquei atônita, sobretudo por achar que tinha conseguido aprender apenas
uma pequeníssima parcela do que Agnes vinha tentando me ensinar. Achava que
talvez tivesse de passar anos como sua iniciada. Sentia que precisava de mais
tempo. Tentei dizer algo, mas nada me ocorreu.
— Não, você ainda não está pronta, mas não sei o que mais posso fazer.
Não posso ficar para sempre ensinando-lhe coisas. As sonhadoras acham que
você tem poder e chegou o momento de verificar se elas têm razão — disse
Agnes.
— Agnes — eu disse, angustiada —, agora sinto-me mais confusa do que
quando comecei. Como serei capaz de realizar o que devo sem saber ainda
mais? Ainda desconheço a primeira coisa que você está me ensinando.
— Você sabe mais do que imagina. Estou ensinando-a a ser uma criatura
furtiva.
— Mas o que é isso?
— Uma criatura furtiva é uma criatura de confiança, mas você não
reconheceria essa criatura, se a visse. É assim que gostamos que seja.
— Agnes, você pode achar minha pergunta tola, mas você é uma criatura
furtiva?
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— Não é uma pergunta tola, já que você não consegue perceber que sou
essa criatura. Uma criatura furtiva pode entrar numa sala e fazer o que ela bem
entender. Pode sair dela quando quiser. A maior parte das criaturas que entram
numa sala são conduzidas, confusas. Uma criatura furtiva, pode, porém, entrar e
sair de qualquer sala que quiser. Uma criatura dessas golpeou você e apoderou-
se do que bem entendeu. Ela é perigosa e não sente medo de atacar. Essa criatura
move-se de um jeito diferente do que você possa imaginar, a menos que você
também seja uma. Uma criatura assim conhece a própria morte.
— E eu estaria a ponto de me tornar uma criatura furtiva? Nunca vi Agnes
rir com tamanho espalhafato. Seu rosto ficou molhado de lágrimas e ela me deu
um tapa nas costas.
— Fiz o que pude — disse ela finalmente. — É por isso que você está
aqui. Se conseguisse roubar o cesto, seria um ato furtivo, o ato de uma grande
guerreira. Quanto melhor for a caçadora, mais perigosa a caça. Um homem
como Cão-Vermelho é mais perigoso do que quase todos os espíritos. Imagine,
caçar um homem como Cão-Vermelho e, em seguida, saquear seu covil... eu
diria que, se você for capaz disso, estará muito próxima de se tornar uma
criatura furtiva.
— Mas não agora, não é mesmo?
— Não. Ainda não. Esta região, coberta pelo cerrado, ainda é nova para
você. Ser furtivo significa ter poder e você ainda está dando os primeiros passos.
Um trapalhão que prepara armadilhas raramente faz uma boa caçada. Os
trapalhões fazem outros trapalhões caírem em suas armadilhas. Os seres
estúpidos vivem uns às custas dos outros, mas não deixe que isso a iluda. Os
seres furtivos podem estar em qualquer lugar, a qualquer momento. Você pode
aguardar uma criatura furtiva para sempre e jamais enxergá-la. Somente uma
criatura furtiva consegue ver outra criatura como ela, e tem sonhos que são reais.
Nenhuma barreira deterá um ser furtivo. No ponto em que o rastro de um
ser furtivo começa a desaparecer, vê-se um corvo, um balão ou uma águia, mas,
na verdade, o que se vê é uma criatura furtiva levitando. O problema com os
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seres incapazes é que eles jamais olham as múltiplas partes das trilhas
emaranhadas. Não possuem conhecimento, o que é bom. Não saberiam o que
fazer com ele, se o tivessem.
Depois de uma pausa, Agnes prosseguiu:
— De vez em quando seres incapazes encontram peças importantes do
quebra-cabeça. Cuidado quando isso acontecer. Eles dizem: "Ah, é tão
simples!". Isso se dá quando você se encontra na trilha que leva ao poder e pega
do chão a primeira coisa reluzente que enxerga. Quando você segue a trilha que
a levará a ser uma criatura furtiva e vê coisas brilhando, deve erguer os olhos
para o céu e passar reto por elas. Quando um ser incapaz faz uma descoberta
cintilante e pega a coisa que brilha, tudo acabou para ele. Está amaldiçoado. A
poeira se levanta em torno dele, em fortes turbilhões, e ele ouve vozes do além.
Não é um caçador completo. Parece humilde, mas se torna obcecado com a
própria importância. Outros seres vêem a criatura incapaz que fez a descoberta
cintilante e ficam fascinados.
Segundo Agnes, o mais provável é que a criatura incapaz provoque
estragos e devastação.
— Ela sai por aí, abrindo caminho onde quer que vá, mas não é furtiva.
Tem o poder de um jovem touro e pode tornar-se rei, chefe ou então líder
religioso, mas jamais é o caçador completo. Somente pode conduzi-lo até o
ponto a que chegou e por que não o faria? Acredita que a descoberta cintilante é
tudo o que existe. Segura-a de encontro ao peito e sai apregoando seu achado.
Todo mundo aproxima-se, olha e se suja com aquela falsa pintura. Todos se
revestem do manto dele, bordado com miçangas, e o seguem até serem
destruídos. Você provavelmente acha que não seguiria um ser incapaz, mas não
ria. Agora mesmo eu poderia mandá-la embora com uma descoberta cintilante.
Poderia conseguir todos os grandes cestos que jamais existiram, com exceção de
um só. Ou então eu poderia trapacear e dizer que estou lhe dando o cesto de
casamento. Você partiria feliz, mas não o teria. No lugar dele, existiria apenas
um disfarce. Não desistirei, porém, de a ensinar. Não a enganaria, em relação a
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isso. Quero que tenha aquilo que a trouxe até aqui. Mais do que tudo, quero que
consiga o cesto de casamento. Agora provavelmente ele se tornou mais
importante para mim do que para você.
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Antes de mais nada você precisa entender que corre perigo.
— A autora
Tudo começou.
Enquanto eu espiava, uma cerração acinzentada envolveu a cabana de
Cão-Vermelho. Estava deitada de bruços, num bosquete de amoreiras, coberta
de folhas, com o rosto enegrecido pela lama do rio. O cheiro da terra penetrava
em minhas narinas. Esperei, tensa. Formigas passeavam por mim e ao redor, à
procura de comida. Era insuportável, mas eu não ousava me mexer. Estava lá
havia dois dias.
E o palácio mágico do Cão-Vermelho, pensei. Como era possível que
alguém, dotado de poder suficiente para me matar e se apoderar do cesto de
casamento, vivesse daquele jeito? A cabana era retangular e atarracada. Parecia
muito malcuidada. Placas de lama e jornais velhos calafetavam as frinchas das
paredes feitas de troncos. O teto de zinco estava enferrujado e cheio de buracos,
tapados com papel alcatroado verde e vermelho. As pequenas janelas eram tão
gordurosas que não se conseguia enxergar através delas. Um galo e algumas
galinhas cacarejavam por detrás da cabana, em torno do puxado onde se
guardavam ferramentas, e que parecia estar parcialmente enterrado no chão
sólido e ondulante.
Ben e Tambor entravam e saíam do puxado, cuja pesada porta abriam com
dificuldade e onde se demoraram alguns minutos. Eu ouvia o barulho de algo
tinindo, raspando, batendo. Ben, parado na entrada, fazia comentários
sarcásticos.
— Tambor, você sabe o que deve fazer para usar um prego, não é mesmo?
— perguntava, jogando no chão um cigarro aceso e pisando nele. — Não vá se
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matar de trabalhar, ouviu?
Tambor saiu do puxado com ferramentas, pedaços de corda e percorreu o
terreno à procura de certos objetos, enquanto Ben o seguia, como se estivesse
supervisionando o que fazia. Recolheram pedaços de maquinaria enferrujada,
cavaram buracos e puseram neles algo que parecia lixo. De vez em quando se
davam socos, de brincadeira, e faziam piadas. Ambos davam a impressão de que
estavam dispostos a trabalhar o menos possível.
A privada era uma construção das mais precárias, cuja porta, de gonzos
enferrujados, abria-se e se fechava, impelida pelo vento, com irritante
persistência. Batizei a cabana de Cão-Vermelho com o nome de O Monturo,
pois tudo que era objeto enferrujado, desconjuntado, apodrecido, se espalhava
em torno dela ou estava socado na terra, como se tivesse sido plantado lá há
mais de quarenta anos. Um velho arado que, nos bons tempos devia ter sido cor
de bronze, estava jogado no chão, bocejando para o céu. Viam-se pilhas altas de
pneus velhos, que o galo escalava e de onde cantava a plenos pulmões. Era o
senhor do Monturo e fazia questão de que todo mundo soubesse disso.
A direita, por detrás de uma cerca precária, que despencava, estavam duas
vacas magras e os ossos das cadeiras quase lhes furavam a pele. Pareciam estar
atacadas de pelada, os úberes, pelo visto, haviam secado, e as sinetas que lhes
pendiam do pescoço tiniam, enquanto elas comiam seu precário alimento.
Um velho Ford estava tombado de lado, desprovido de tudo, inclusive do
eixo. Uma rede esburacada atava-se às extremidades do pára-choque traseiro do
carro.
Quando Ben e Tambor abriram com escarcéu a porta da cabana,
estremeci, assustada. Saíram para ir à privada ou urinar diante do alpendre, mas,
pelo visto, Cão-Vermelho não sentia necessidade de se aliviar. Não o vi sequer
uma vez e nem mesmo tinha certeza de que se encontrava lá. Durante dois dias,
os únicos barulhos que ouvi foram as sinetas das vacas, as galinhas e as batidas
das portas da cabana e da privada.
Quase no fim da tarde do segundo dia um uivo enlouquecido se fez ouvir
158
dentro da cabana. Fiquei de cabelo em pé, toda arrepiada. Primeiro percebi um
som esganiçado, como se fosse o pio de uma coruja, que se repetiu várias vezes,
e, em seguida, algo que lembrava o lamento de uma criatura pré-histórica. Daí a
instantes um gemido estridente foi seguido de um rosnado baixo. Esses sons se
prolongaram durante muito tempo, mas não vi a fonte de onde provinham.
De repente tudo se calou. Eu ouvia apenas o farfalhar das árvores e o
vento que soprava no platô. Estava para fechar os olhos e tirar uma soneca
quando chegou até mim um estrondo e o barulho de pés que batiam no chão. Vi
um rato cinzento sair correndo por debaixo da porta da cabana. Saiu em
disparada pelo alpendre e refugiou-se por detrás de uma grande pedra. A porta
se escancarou e Tambor, seguido de Ben, apareceu e olhou em torno de si.
— Onde foi que ele se meteu? — perguntou Tambor.
— Lá está ele.
Ben e Tambor perseguiram o rato quintal afora, tentando acuá-lo. O
animal trepou numa árvore, saltou para o teto de zinco e desceu por um esteio.
Era veloz, astucioso e Ben e Tambor não conseguiam se aproximar o suficiente
para pegá-lo. Quando tudo indicava que ele estava perdido, recorria à mais
inesperada das manobras, surgia em algum outro lugar e guinchava, triunfante.
— Ele está daquele lado! — gritou Ben.
Os dois saíram correndo em direção a um ponto do quintal onde o rato
surgira. O bicho esperou até eles chegarem bem perto e pôs-se a correr
novamente. Aquela minúscula criatura levava a melhor sobre os marmanjos.
De repente o rato cometeu o que parecia ser um engano fatal, pois entrou
dentro de uma lata enferrujada. Tambor precipitou-se sobre ela e tapou-a com a
mão.
— Peguei! Peguei!
— Deixa eu ver. Deixa eu ver, Tambor!
Tambor afastou os dedos o suficiente para que se pudesse enxergar e
sacudiu a cabeça.
— Está aí dentro?
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— Tem que estar, pois eu vi! — Tambor voltou a espiar e chacoalhou a
lata. — Ora essa! O rato devia estar aí dentro, mas não o estou vendo.
— O bicho fugiu — disse Ben. — Não tem jeito de pegar ele. Tambor
voltou a agitar a lata, cada vez com mais violência e emborcou-a, como se
quisesse esvaziá-la.
— É, aqui ele não está — disse, desapontado.
Nesse exato momento o rato caiu da lata e saiu em disparada. Tambor e
Ben gritaram e a caça recomeçou. O bicho correu pela lateral da cabana, em
direção à privada, deu meia-volta e passou por entre as pernas de Ben. Este deu
um pulo para trás, fingindo estar apavorado. O rato correu até onde se erguiam
as árvores e aguardou.
— Foda-se! — gritou Tambor.
— É isso mesmo! Foda-se! — repetiu Ben.
O rato agitou a cabeça e os encarou com seus olhinhos negros.
Aproximou-se, com toda calma, do puxado, e passou por debaixo da porta.
— De lá ele não consegue sair, Tambor — disse Ben. — Agora está
preso.
Os dois voaram em direção ao puxado e entraram.
— Tape a porta! — ouvi Ben ordenar.
De repente ouviu-se um barulho como eu jamais ouvira, semelhante ao
rugido de um demônio. Ben e Tambor saíram aos trancos e barrancos da cabana
e se afastaram correndo, como se tivessem acabado de ver o próprio diabo. O
rato apareceu e voltou para a cabana, mas se passou quase meia hora antes que
os dois voltassem.
Mais tarde, embora não houvesse o menor ruído na cabana, notei uma
pálida luz alaranjada brilhando através da janela. Tímidos raios do sol que se
punha incidiram sobre a parede. Ainda não havia o menor sinal de Cão-
Vermelho, mas eu não estava disposta a agir enquanto não tivesse certeza de que
ele não se encontrava mais lá.
A luz da cabana se apagou, a porta abriu e Ben e Tambor ficaram
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conversando em voz baixa, no alpendre tomado pelas sombras. Daí a pouco
enveredaram pela trilha, cantando. Observei suas silhuetas desaparecer por
detrás da colina e suas vozes já não se ouviam mais. Eu sentia frio e estava
tensa. Pareceu-me que, se a vela ainda estava acesa, é porque havia alguém
dentro da cabana. Era o momento que tanto aguardara. Agora eu poderia ir até lá
e roubar o cesto. Enquanto estivera observando a cabana, Cão-Vermelho nem
sequer se encontrava lá! Como fui tola!
Não se ouvia o menor barulho, a não ser o rangido da porta da privada.
Até mesmo as galinhas se mantinham em silêncio. Esfreguei as coxas e estiquei
os dedos, para ativar a circulação. Sentia-me emperrada. Enquanto o vento
soprava em meu rosto, arrastei-me lentamente, sem fazer o menor barulho.
Comecei a tremer. Consegui dar conta dos quase cem metros que me separavam
da cabana e deitei-me de bruços, bem rente à parede. Senti o cheiro
característico do querosene. Escurecia cada vez mais e sombras sem formas
definidas, de tamanhos irregulares, se avolumavam. Prestei atenção por alguns
minutos, segui adiante e voltei a esperar, ouvindo e observando. A ansiedade se
apoderou de mim. Tinha a sensação de que estava na iminência de ser morta.
Encostada na parede, minhas mãos percorreram a áspera superfície da
madeira, em direção à janela. Levantei-me um pouco, coloquei as mãos no
peitoril da janela, sentindo-o, tentando perceber o que havia dentro da cabana,
mas em vão. Repeti a ação e, mais uma vez, olhei pela janela. As vidraças
estavam sujas, embaçadas, e refletiam o céu. Com a manga da camiseta
esfreguei o vidro, protegi os olhos com as mãos e tentei enxergar. A escuridão
era total. Procurei focalizar o olhar, mas não consegui ver nada. Se Cão-
Vermelho estivesse lá, perceberia que eu entraria na cabana daí a momentos.
Reuni toda minha força de vontade e fui até a porta, pensando unicamente no
cesto de casamento. Girei lentamente a maçaneta e a porta se abriu, rangendo.
Eu tremia, aterrorizada.
Da estrada vinha o latido enlouquecido de um cachorro, que me pareceu
algo muito selvagem. Fechei a porta tão silenciosamente quanto a abri e entrei
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em pânico. Sem fazer o menor barulho, saí correndo, atravessei o quintal, de
volta às árvores e arbustos. Deitei-me de bruços e me ocultei entre as folhagens.
O cachorro estava no alpendre, rosnando e mostrando os dentes. Ouvi
então passos caninos. Via os olhos do animal, enquanto ele farejava, vindo em
minha direção, sem parar de rosnar. Fiquei absolutamente imóvel. A voz de
Tambor rompeu o silêncio.
— Cala a boca, Magrela!
— Quem sabe acuou um gambá — disse Ben.
— Não quero nem saber. Não agüento esse maldito barulho. Vai acabar
acordando Cão-Vermelho e daí... sai da frente! Estamos fritos.
— Passa já pra cá, Magrela — ordenou Ben.
Ambos assoviaram e o cachorro, que já se preparava para me morder, deu
meia-volta, com muita relutância, e voltou para a cabana, latindo mais uma vez.
— Seus cretinos! Amarrem esse vira-lata antes que eu mate ele! Eu quero
dormir!
Era a voz de Cão-Vermelho, que vinha de dentro da cabana. Na verdade
encontrava-se lá o tempo todo.
A partir daí se fez o mais completo silêncio e, no dia seguinte, nada
incomodou a paz da cabana. Nem mesmo as galinhas cacarejaram.
No final da tarde o tambor começou a tocar. A batida era irritante e não
lembrava de modo algum o jeito como Agnes e Ruby tocavam. O som parecia
esparramar-se pela região em torno da cabana e concentrar-se em determinados
pontos. Dava a sensação de não ter objetivo algum, a não ser atordoar. As
batidas prosseguiram durante algum tempo e eu tive a impressão de que ouvia
um asno zurrar. Subitamente o terreno em volta da cabana estremeceu, escutei o
barulho de cascos golpeando as pranchas da cabana e fez-se uma algazarra
infernal. Logo em seguida os zurros e o tambor calaram-se, a porta da cabana
abriu-se lentamente e, parado na soleira, estava Cão-Vermelho.
Ele tinha a aparência de um homem que tivesse se refugiado numa
montanha, durante muitos anos, e seus cabelos se apresentavam na mais
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completa desordem. Usava calças velhas, de cor caqui, e uma desleixada jaqueta
verde-oliva. O cabelo ruivo batia pelo ombro e tinha uma comprida barba. Os
olhos possuíam o mesmo brilho penetrante dos de uma águia. Eu tremia. Seria
minha imaginação ou conseguia sentir a força dele a distância?
Ele segurava um objeto prateado, que brilhava como uma faca, à luz do
sol que se punha. Fechou a porta da cabana, foi até a beira do alpendre e sentou-
se. Apesar das botas pesadas, não fez o menor barulho. Meu olhar se fixou
naquelas enormes botas e dirigiu-se para a faca que ele levava à boca, como se
estivesse lambendo algo, em sua lâmina. Percebi que a faca era, na realidade,
uma flauta. Ele a manteve de encontro aos lábios por um momento e, em
seguida, ouviu-se uma música suave e delicada. Comecei a relaxar, Cão-
Vermelho jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e tocou com abandono. O
mundo de todos os dias desapareceu em torno de mim, enquanto eu ouvia.
Cerrei os olhos e os abri rapidamente, a fim de enxergar com clareza.
Mais uma vez notei aquelas botas tão chamativas. Eram de uma estranha
tonalidade de marrom e tinha uma textura quase frágil. Davam a impressão de
que estavam se rasgando. Percebi que, abaixo dos joelhos, as pernas estavam
cobertas por penas.
Cão-Vermelho se levantou e ficou com as pernas bem afastadas. A flauta
tocava mais alto e tornara-se ainda mais melodiosa. Demonstrando grande
energia, ele deu um salto e era como se estivesse rompendo os laços que o
prendiam à terra. Endireitou a cabeça, inclinou-se até a cintura, girou e, de certa
forma, tornou-se a imagem de Kokopelli, o cruel espírito katchina. Em sua
enorme cabeça, semelhante a uma máscara, havia uma listra branca, pintada até
o centro. O resto da cara, com exceção dos círculos brancos acima dos olhos, era
negra. Penas vermelhas e brancas coroavam-lhe a fronte e um nariz fálico
projetava-se como um bico, em minha direção. Um colar que lembrava uma
gorda cobra branca e preta enrolava-se em torno de seu pescoço. Percebi de
relance um saco que ele usava a tiracolo.
Durante um breve momento não consegui olhar para ele. Cão-Vermelho, à
163
luz do dia que findava, apresentava-se corcunda e grotesco, ao mesmo tempo
medonho e belo. Seu chocalho azul brilhava e a flauta soltava seus trinos. Ele
pulou em torno da cabana, girando e dançando. Saltou para o telhado, deu mais
um pulo, que o aproximava perigosamente de mim, e me cercou. Percebi que, o
tempo todo, ele sabia que eu me encontrava ali. Sorriu para mim e era um
arrogante sorriso de amor. Tirou do saco um anel e o ofereceu a mim,
provocando-me, pulando animadamente de um lado para outro, estendendo-me
o braço pintado. Eu estava sendo enfeitiçada. Ele se inclinou para frente e
consegui sentir seu hálito quente. Eu o adorava. Ele encarnava o espírito de
todos os katckinas. Acenou e agora me provocava, girando seu corpo sensual
lentamente, de tal modo que eu senti vontade de estender a mão e tocá-lo. A
música me seduzia e percebi que soltava suspiros abafados. Senti também um
calor opressivo. Estávamos dentro de um círculo de luz e sombras.
— Irei com você — murmurei, começando a me levantar. Dei um passo,
mas, de repente, uma mão me agarrou o braço, com um gesto vigoroso e eu me
voltei para trás, aterrorizada. Diante de mim estava o olhar furioso de Agnes.
— Venha comigo — ela exigiu, sibilando as palavras em meu ouvido.
— Não! — gritei.
Eu estava enlouquecida de paixão. Debati-me por um momento, tentando
dar um pontapé em Agnes e livrar-me de seu domínio. Aflita, olhei em torno de
mim, procurando Kokopelli, mas percebi apenas Cão-Vermelho sentado no
alpendre, com suas roupas caqui, exatamente como surgira pela primeira vez.
Fiquei histérica, chutei Agnes e arranhei seu rosto. Ela girou e tocou em mim.
Acordei deitada em sua cama, na cabana. O que me despertou foram meus
gemidos e lamentos. Minha cabeça estava inchada e doía no ponto em que
Agnes me tocou, fazendo-me desmaiar. Ela estava debruçada sobre mim, com
uma expressão de profundo desdém em seu rosto enrugado. Os olhos fuzilavam
e ela bateu com o pé no chão, impaciente.
— Você não usou o brinco — gritou. Estendeu a mão e mostrou-me a
jóia. — Você quase foi seduzida e poderia ter morrido. Se tivesse seguido
164
aquela miragem, Cão-Vermelho teria escapulido com seu espírito.
— Tive a intenção de usar o brinco, só que esqueci — gaguejei.
— Espero que você não morra. E agora, minha jovem, terá de enfrentar as
paixões de Cão-Vermelho.
165
As feiticeiras nunca matam ninguém. Fazem as pessoas
se matarem.
—Agnes Alce-Que-Assovia
173
O que são suas visões noturnas ou sua dor senão o
fracasso de sua vontade?
— Hyemeyohsts Tempestade
185
Todos os verdadeiros feiticeiros sabem como
roubar o poder.
— Agnes Alce-Que-Assovia
Minha felicidade durou pouco. Acordei antes do sol nascer, tendo diante
de mim imagens fugazes de minha morte nas mãos de Cão-Vermelho.
— Agnes — murmurei. — Agnes.
Ela não respondeu. Era a primeira vez que eu despertava antes dela. Uma
luz cinza e tênue começou a pôr sombras sobre o chão de tábuas e uma neblina
esgarçada envolvia as árvores. Pairava o mais completo silêncio. Meu saco de
dormir estava úmido e eu tinha a sensação de que meu corpo estava protegido
por chumaços de material isolante. Sentia-me deprimida. Sabia que jamais
conseguiria aprender o que quer que fosse. Jamais teria condições de roubar o
cesto de casamento. E como poderia voltar a ser feliz, vivendo aquela mesma
vida de sempre? Minha perspectiva se modificara totalmente e, no em tanto, o
mundo da cura achava-se fora de meu alcance. Esse mundo era violento demais
e eu jamais conseguiria aprender tudo o que Agnes queria que eu aprendesse.
Comecei a soluçar no travesseiro.
— Por que a Pobre-Vaca chora tão cedo? — perguntou Agnes, virando de
lado e apoiando-se no cotovelo.
— Agnes, jamais terei condições de roubar o cesto de Cão-Vermelho —
falei, entre lágrimas. — Perdi meu tempo e ele me destruirá.
— Que mais?
— Sou tão estúpida...
— Mais alguma coisa?
186
— Não consigo imaginar como fui me meter nesta confusão. Mal posso
acreditar.
Agnes levantou-se e abriu a janela, para deixar a neblina entrar. Em
seguida aqueceu um pouco de água.
— Lynn, pare de sentir pena de si mesma e ouça-me. Você tem muito o
que aprender hoje. Não dispomos de muito tempo, portanto preste atenção. Não
precisa dizer mais nada, Pobre-Vaca. Morra para suas recordações. Beba a água
daquele lugar onde o grande lince sonolento fareja sua presa, à luz da lua.
Esqueça que alguém lhe deu poder. Então os nenês d'água surgirão e lhe
perguntarão: "Onde foi que você conseguiu esses poderes que permitem a
iluminação?"
Enxuguei minhas lágrimas e cobri os ombros com a manta.
— Agnes, não consigo entender o que você fala a maior parte do tempo.
A que está se referindo agora? Por que, de repente, começa a me chamar de
Pobre-Vaca?
Meu nariz pingava e observei o nevoeiro entrar pela janela aberta. Agnes
sentou-se e me olhou atentamente. De repente estendeu o braço e afastou os
dedos, como se fosse atirar algo em meu rosto.
— A isto se chama jogar areia nos olhos de um búfalo antes de matá-lo,
Pobre-Vaca. Você não há de querer que o búfalo perceba a manobra.
— Mas o que quer dizer com isso e por que voltou a me chamar de Pobre-
Vaca?
— Porque você não entende a manobra.
— Quem foi Pobre-Vaca?
— Foi um homem, mas o fato de pertencer ao sexo masculino não tem
importância. Ele poderia ter sido uma mulher. Esta manhã ele é você. Percorria a
aldeia e sentia pena de todo mundo. "Oh, Pardal-Escuro não tem mocassins. Oh,
coitado do Touro-Jovem, não tem uma manta quente. Oh, pobre Olhos-
Amarelos, manca da perna. Oh, coitado de mim, sou tão infeliz..." Pobre-Vaca
encontrou-se com Coiotes-Gêmeos, o curandeiro. Ainda continuava a achar que
187
todo mundo era digno de pena. Em todas as direções para onde seu olhar se
dirigia, Pobre-Vaca via algo de muito triste. Coiotes-Gêmeos perguntou: "Ei,
Pobre-Vaca, onde está sua sombra?" Ele olhou para os pés e não viu sombra
alguma projetada no chão. Ela simplesmente não se encontrava lá. Pobre-Vaca
havia perdido a própria sombra. ' 'Não tenho sombra", disse. "Você não acha que
deveria encontrá-la?", perguntou Coiotes-Gêmeos. "Sim, acho", disse Pobre-
Vaca. "Não quero andar por aí sem sombra. Quero encontrá-la." Eu ouvia tudo,
sem entender muito bem.
— Pobre-Vaca perambulou pela aldeia à procura da sombra perdida.
Procurou em todas as cabanas, com muita pena de si mesmo. Não conseguiu
encontrá-la em lugar algum. Coiotes-Gêmeos viu-o certo dia e perguntou: "Ei,
Pobre-Vaca, encontrou sua sombra?" "Não, não consegui encontrá-la", foi a
resposta. "Desisto." "Por acaso tentou a Cabana de Transpiração?", perguntou
Coiotes-Gêmeos. "Quem sabe você tomou um suadouro e deixou sua sombra
lá." "Pois então vou olhar", disse Pobre-Vaca, que saiu correndo em direção à
Cabana de Transpiração. Entrou nela e encontrou sua sombra. No final, um
arauto percorreu a aldeia. "Boas notícias! Pobre-Vaca encontrou sua sombra na
Cabana de Transpiração. Pobre-Vaca morreu".
— Mas por que você me contou esta história? — indaguei.
— Porque você é parecida com Pobre-Vaca. Nota tantas coisas
desprovidas de importância e não repara naquelas que são importantes.
— Tem razão. Sou Pobre-Vaca, não é mesmo? Com muita freqüência
sinto pena de mim e do mundo inteiro.
A depressão se acumulava. Levantei-me, comi um pedaço de pão e
algumas nozes. Tomei um gole de chá e fiquei pensativa por alguns instantes.
— Você aprendeu muita coisa sobre seu inimigo e também sobre seu
adversário. As forças que existem em Beverly Hills são as mesmas que
encontrou no pequeno lago. No mundo em que você vive, chamam a isso
loucura e morte.
— Adversários e inimigos não são a mesma coisa?
188
— Bem, você tem muitos inimigos a sua volta: câncer, doenças, as coisas
a que tem de resistir, como, por exemplo, gente má, decidida a tudo destruir. Ter
um adversário é, porém, uma grande coisa.
— Como assim?
— Digamos que você seja uma escritora e resolveu escolher como
adversária digna de consideração Anaïs Nin, aquela escritora com quem
conversou certa vez. Tenta derrotá-la no plano da criatividade e das idéias. Num
certo sentido, você a usa para enxergar-se. Não quer que ela falhe, pois, nesse
caso, perderia seu modelo. E o que uma pessoa que cura quer que você faça?
Deseja revelar-lhe todos os seus segredos, até você alcançar o poder e tornar-se
uma adversária digna de combater outro guerreiro valoroso.
— Mas como a competição se relaciona com as forças que se opõem?
— Acabo de lhe dizer que o mundo se assemelha bastante, onde quer que
se vá. A competição é a irmã feia da oposição. Na verdadeira oposição não
existe nada a se ganhar ou perder. A gente pode apenas se beneficiar. Se
começar a pensar que você e a oposição se sustentam mutuamente, então poderá
perder bastante. Não pode confiar em seu oponente, mas apenas em si mesma,
pois ninguém irá salvá-la. Ao contrário, um heyoka vê o mundo como oposição
e não aprende a separar a cabana interna da lua da cabana externa do sol. Não se
pode competir com o que quer que seja.
— Pode-se competir com a morte?
— Não, pode-se apenas opor-se a ela. A competição é auto-centrada, mas
a oposição enobrece. — Agnes fez uma pausa. Encarou-me e seus olhos
brilharam. — Como é que você irá competir com o inverno?
— Não é possível.
— Mas pode opor-se ao inverno, por exemplo, e de modo muito
meritório. Isso nos leva de volta aos espíritos. Um sujeito sonha em inventar um
aparelho de televisão. Todo mundo compete para fazer o melhor aparelho
possível, mas ninguém pára a fim de honrar a singularidade desse sonho. Posso
ficar sentada durante dias, tentando passar-lhe uma metáfora da verdade,
189
tentando, o tempo todo, despertá-la. Você, porém, deve se dispor a comer e
beber a terra, o sol, o universo, para saber que essas coisas todas existem dentro
de sua pessoa.
Agnes sacudiu a cabeça. Minha depressão passou. Eu sentia vontade de
não fazer nada o dia inteiro e refletir tudo o que me dissera, mas Agnes não
permitiu.
— Vamos, vista este suéter. Caminharemos um pouco. Comecei a
protestar.
— Levante-se — ela insistiu, obrigando-me a ficar de pé. Peguei o suéter
que Agnes me oferecia.
— Aonde vamos? — perguntei, ao sairmos da cabana. Ela fez um breve
gesto com a cabeça e eu a segui pela trilha que levava ao Riacho do Homem-
Morto.
O ar era fresco, revigorante, e a floresta ainda estava recoberta de neblina.
Pinheiros novos cresciam à sombra das árvores mais velhas. Agnes saiu da
trilha, aproximou-se de um pequenino freixo, dobrou-o com delicadeza e fez um
gesto, indicando-me que o olhasse.
— Normalmente é o tipo de broto que procuramos, mas como está não
serve, pois leva de uma a duas semanas para secar.
— E qual é a utilidade desta árvore? Dela se faz um arco ou um escudo?
— Um cachimbo. E será você quem o fará.
Não conseguia me imaginar talhando um cachimbo e disse isso a Agnes.
— Limite-se a prestar muita atenção. — Agnes parecia estar impaciente.
Segui-a quando ela voltou rapidamente para a cabana através do nevoeiro.
Antes de entrarmos, pegou um ramo de pinheiro novo e seco que estava apoiado
na parede da cabana. Parecia com aquele que tinha acabado de me mostrar, só
que fora aparado e desbastado. Entramos e ela o pôs em cima da mesa.
— Sente-se — ordenou, muito formal. Remexeu em suas coisas, sempre
de costas para mim, voltou-se rapidamente e atirou em minha direção uma faca
de caça. Esta cravou-se na mesa, a uns trinta centímetros de minha mão.
190
Encolhi-me toda.
— Você não está prestando atenção. Desbaste o resto da casca. Trabalhe
por igual e use a lâmina.
Eu receava dizer o que quer que fosse e minha mão tremia, enquanto
empunhava a faca e começava a entalhar. A casca desprendeu-se com facilidade.
— Ótimo. Agora pode entalhar um pequeno círculo nesta extremidade,
assim. — Após cortar ela me devolveu a faca. — Prossiga, enquanto eu
esquento a água e faço um chá para nós.
Agnes observou-me durante cerca de vinte minutos enquanto eu
trabalhava, dando instruções de vez em quando. Foi então até uma prateleira,
tirou um belo bocal cinza para o cachimbo e mostrou-me como encaixá-lo na
haste.
— Agora, Lynn, estique este pedaço de arame. Trabalhei o arame durante
dez minutos com um alicate e a sola de meu tênis, até ele ficar bem esticado,
mostrando em seguida o resultado a Agnes.
— Aqueça-o no fogão, até ficar vermelho.
Fiz o que ela dizia, segurando o arame com uma toalha. Quando o metal
ficou incandescente, retirei-o, imaginando qual seria a finalidade daquilo.
— Agora pegue a haste do cachimbo, empurre o arame até o centro e
queime a polpa. Isso mesmo. Veja só como entra fácil. É porque está muito
quente.
De fato, o arame perfurou a haste sem maiores dificuldades.
— ótimo. Pode pôr o arame de lado. Sente-se e apare a haste, para deixá-
la mais achatada.
Agnes sorria e ambas estávamos contentes. Ela colocou diante de mim um
pequenino tear e vários potes com contas coloridas, além de pedaços de couro,
correias, plumas e penas.
— Quando terminar, pegue estas contas e faça um desenho no tear. Cubra
alguns centímetros da haste com elas. Escolha as plumas ou penas que desejar,
para enfeitá-la.
191
Eu me senti encantada com a tarefa e esqueci o tempo, executando-a.
Decidi fazer o desenho de um relâmpago em turquesa, amarelo e vermelho, com
as bordas em contas azul-escuras. Só me desliguei do que fazia bem tarde,
quando o dia chegava ao fim. Nesse momento alguns sons de flauta penetraram
pela janela parcialmente aberta. Daí a pouco Ruby entrou abruptamente pela
porta da cabana.
— July está passando muito mal — ela disse para Agnes, ignorando-me
completamente.
A música que se ouvia fora da cabana era muito fraca. Levantei-me e saí
rapidamente. July estava sentada, com as costas apoiadas na parede do alpendre.
Parecia meio morta e sua aparência era tão assustadora quanto a de Ruby.
Disparei para dentro da cabana, acuada entre uma velha louca e uma jovem
quase morta.
— Não posso fazer nada por ela? — perguntei, assustada.
— Pode ficar com o espírito dela. É tudo o que resta — disse Ruby, no
auge da agressividade.
— Vamos, Ruby, não fique desse jeito — interveio Agnes, pondo a mão
em seu ombro, num gesto amigo. — De nada adiantará enfurecer-se. Está na
hora de nos divertirmos um pouco. Vista sua jaqueta, Lynn. Vamos dar um
grande pontapé no traseiro de Cão-Vermelho. Faça exatamente tudo o que eu lhe
disser e procure não atrapalhar.
Deixamos July com um prato de comida e água e seguimos rapidamente
pela trilha. As duas velhas corriam como se fossem jovens. De repente ocorreu-
me que iríamos, de algum modo, confrontar Cão-Vermelho.
— Oh, meu Deus! — gritei. — Cão-Vermelho! Agnes e Ruby pararam,
bem adiante, e eu as alcancei.
— O que estamos fazendo? — perguntei.
— Silêncio, sua idiota! — disse Agnes. — Quer que sua voz ecoe a cem
quilômetros de distância, anunciando a Cão-Vermelho nossa chegada?
— Não — murmurei, assustada.
192
Ruby e Agnes lançaram-me olhares indignados. Ruby chegou até mesmo
a beliscar meu braço.
— Não fale nunca — ordenou. — Apenas saiba o que está fazendo e
ataque.
Senti tanta dor que cheguei até a recuar.
Recomeçamos a corrida e só paramos quando estávamos a uns cem
metros da cabana de Cão-Vermelho. Pusemo-nos a andar e procuramos um lugar
onde nos abrigarmos.
— Você e eu nos esconderemos detrás destas árvores — cochichou Agnes
no meu ouvido. — Não mexa um músculo sequer enquanto eu não ordenar.
Agora estávamos a uns trinta metros de distância. Agnes assinalou algo a
Ruby. Abrigada detrás de uma árvore, fiquei olhando, enquanto Ruby
aproximava-se da cabana, abaixava e pegava um punhado de pedras. Hesitou por
alguns instantes e começou a jogá-las em cima do teto de zinco. A medida que o
atingiam, provocavam um barulho estrondoso. A cabeça de Cão-Vermelho
surgiu na porta entreaberta.
— Quem está fazendo esta algazarra infernal? — gritou. Ruby não fez a
menor questão de se esconder. Começou a emitir sons histéricos, guturais,
semelhantes aos de um peru, pavoneando-se no terreiro.
Cão-Vermelho deu dois passos adiante, todo descabelado. Ainda usava a
calça caqui e a jaqueta verde-oliva. Ben e Tambor surgiram na porta e espiaram
com muita cautela. Percebi o pêlo vermelho que cobria o peito de Cão-
Vermelho. Examinei o que sentia por ele e nada permanecia, a não ser o
desprezo.
— Ruby, vá dando o fora de minha casa! — ele berrou. Sua voz enregelou
a floresta.
Ruby jogou mais uma pedra no telhado e o barulho era igual ao de alguém
que estivesse batendo numa lata de lixo.
— Você tem sorte de eu não tocar fogo em sua cabana — gritou Ruby,
pegando uma prancha e arrebentando-a em cima do velho arado enferrujado. —
193
Você roubou minha tesoura de cortar arame e não adianta mentir.
— Não roubei coisa nenhuma, sua bruxa velha! Não quero mais ver você
na minha frente!
— Vai se arrepender, seu filho da mãe. Vou chamar a polícia indígena e
eles vão pegar minha tesoura de volta.
— Pois faça isso e verá o que acontece. Contarei para eles o que você
anda aprontando.
— Você não ousaria — gritou Ruby jogando mais uma pedra que, dessa
vez, atingiu a janela. Ela bateu no parapeito e ricocheteou, estilhaçando a
vidraça. — Eu te ensino a roubar tesouras que não te pertencem!
Eu mal podia acreditar no que acontecia diante de mim. Lá estavam um
poderoso feiticeiro e uma curandeira discutindo por causa de uma tesoura. Não
fazia o menor sentido.
Ruby pegou uma garrafa de bebida gasosa, vazia, e arremeteu-a. Ela caiu
bem junto do alpendre, atingiu uma laje e explodiu. O gás espalhou-se em todas
as direções. Cão-Vermelho deu um pulo para trás. Ben e Tambor desapareceram
dentro da cabana.
Ruby era extraordinária. Embora cega, de certa forma sabia qual era a
distância entre o lugar onde estava e as pedras empoeiradas que compunham os
precários alicerces do alpendre de Cão-Vermelho. Os fragmentos da garrafa
dispuseram-se em semicírculos e não chegavam a tocar nos pés de Cão-
Vermelho. Tanta precisão não era apenas uma coincidência. Ruby, de modo
algum, era incapacitada pela cegueira. Voltou um pouco a cabeça de lado, como
um velho corvo. Seus olhos opacos, que nunca se dirigiam diretamente a Cão-
Vermelho, eram frios e não brilhavam.
— Sei que você está pretendendo alguma coisa, Ruby — berrou Cão-
Vermelho. — Já lhe disse para dar o fora daqui. — Ele voltou para a cabana e
bateu a porta com toda força.
Ruby começou então a aprontar uma algazarra dos diabos. Começou a
emitir sons estridentes, que se assemelhavam a pios e cacarejos, e voltou a
194
pavonear-se como um peru. Continuava a jogar uma pedra atrás da outra no
telhado de zinco. A porta finalmente se escancarou e Cão-Vermelho voltou,
furioso. Seu rosto estava visivelmente ameaçador. A barba e os pêlos vermelhos
arrepiavam-se e projetavam-se em todas as direções. Apesar de estar bem
escondida, eu tremia. Agnes confundia-se com a árvore por trás da qual se
ocultava.
— Isto aqui é propriedade minha, Ruby — disse Cão-Vermelho com voz
esganiçada. — Acho melhor você parar com isso de uma vez por todas!
— Pois sim! E o que você está fazendo aqui na reserva? Por que não vai
morar com os outros brancos? Nenhum índio te suporta. Você fede, seu wasichu
sujo.
— Onde eu moro não é de sua conta! Fique sabendo que moro onde bem
entender!
— Devolva minha tesoura!
— Não devolveria, mesmo que estivesse comigo.
— Pois então queimo esta cabana!
— Tente, se tiver coragem! Você sairá daqui morta!
Ben e Tambor, escondidos por trás de Cão-Vermelho, concordavam com
tudo o que ele dizia, sacudindo a cabeça. Cão Vermelho estava enfurecido, e
Ruby, pelo visto, não ficava atrás.
— Dê o fora daqui, Ruby — ele gritou. — Todo mundo sabe que você é
completamente louca.
— Vá tomar no eu! — rugiu Ruby.
Ela precipitou-se para a lateral da cabana e escancarou a porta do puxado
onde se guardavam as ferramentas. Entrou e começou a provocar um rebuliço
infernal. Os homens, tendo Cão-Vermelho à frente, deram alguns passos em sua
direção.
— Eu sabia! Eu sabia! Encontrei minha tesoura. Ela voltou para o quintal,
brandindo a ferramenta.
— Esta tesoura é minha! — protestou Cão-Vermelho. — Comprei-a em
195
Brandon, no último verão, numa liquidação. Não foi roubada. — Ele deu ura
passo adiante, mas sem sair do alpendre. — Sua velha estúpida, isso não é
tesoura, mas torniquete! Tambor, estou certo ou não?
— E isso mesmo! E um torniquete, com toda certeza. Me lembro muito
bem do dia em que comprou.
— Tenha um pouco de respeito por mim — gritou Ruby.
— Não sou tão simplória assim. Pouco me importa o que é isso. E meu e
pronto!
— E o que uma velha como você quer com uma tesoura de cortar cerca?
— Quero construir um cercado enorme em torno de minha cabana, para
afastar ladrões como você.
— Devolva esta tesoura ou então eu...
— Você o quê?
— Eu pego ela de volta!
— Só mesmo um crápula como você para pegar de volta algo que roubou
de uma velha cega.
— Sua... — Cão-Vermelho gritou, bateu com o pé no chão e esmurrou a
parede da cabana.
Ruby deu-lhe as costas e começou a andar em direção à estrada, num
gesto de desafio. Bamboleava as cadeiras, erguendo bem alto o torniquete.
— Mexam-se! — gritou Cão-Vermelho para Tambor e Ben.
— Não podemos deixar esta velha fazer o que bem entende! — Seu rosto
estava ainda mais vermelho e seus olhos lançavam chispas. — Vamos pegá-la!
Os três saíram correndo atrás de Ruby. Berravam a ponto de quase perder
o fôlego. Enquanto isso a porta da cabana estava escancarada.
Voltei-me para Agnes, disposta a perguntar se não deveríamos ir ajudar
Ruby. Ela estava parada e, de repente, não a vi mais. Voltei-me novamente e a
vi entrar na cabana. Era como se tivesse dado um salto de trinta metros,
aterrissando no alpendre sem fazer o menor barulho.
Voltou a aparecer daí a pouco e dava a impressão de que atravessava uma
196
parte da porta. Sorria, matreira, e segurava uma cabaça. Tive a impressão de que
ela pulava para a frente e, quando eu menos esperava, estava novamente junto de
mim.
Eu fiquei tão assustada que meu estômago doeu. Tive ímpetos de me
dobrar para a frente, mas, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, Agnes
estapeou-me.
— Isso de nada adianta. Seja uma guerreira — ela ordenou. Corremos em
direção à cabana de Agnes e com uma rapidez que eu desconhecia até então.
Quando menos esperávamos, Ruby, de repente, corria ao nosso lado. Aquilo
aconteceu de forma tão inusitada que eu me aterrorizei.
— Conseguiu? — perguntou Ruby a Agnes.
— Sim — ela disse, quase sem fôlego, tocando-a com a pequena cabaça,
recoberta de miçangas.
A risada diabólica das duas velhas ecoou na trilha estreita. Ao chegarmos
ao quintal de Agnes, deitamos e rolamos no chão. Eu ria histericamente.
— Você deveria ter visto a cara de Cão-Vermelho quando ele começou a
te perseguir! — disse Agnes a Ruby. — Você é mesmo muito esperta! — Ela
caiu novamente na gargalhada.
Ambas se deram tapinhas amistosos, se parabenizaram, pularam, caíram e
rolaram mais um pouco no chão.
— Ruby, como foi que você fez para escapar deles? — perguntei, parando
de rir.
— Deixei aqueles três pensar que tinham me assustado. Derrubei o
torniquete e saí correndo.
— Mas Cão-Vermelho não virá saquear sua cabana? — indaguei,
alarmada.
— Não, isso seria um tremendo engano — declarou Ruby, pensativa. —
Lá não existe nada que possa interessá-lo. Eu jamais saquearia a cabana de Cão-
Vermelho. Não sou esse tipo de gente.
— É, mas foi o que você fez hoje.
197
— Não — afirmou Ruby. — Estamos apenas devolvendo algo que
pertence a July. O espírito de uma criatura pertence a ela.
— Todo confronto com Cão-Vermelho é um desafio a seu poder pessoal,
Lynn — afirmou Agnes.
— Não sei, não, mas, de vez em quando, isso chega a se tornar tedioso.
Eu me sentia completamente confusa, mas recomecei a rir.
Todas nos tornamos conscientes da presença de July, ao mesmo tempo.
Voltamo-nos e olhamos para ela. Ainda estava sentada no mesmo lugar, mas
tinha revirado o prato com a comida e o copo de água. Tocava a flauta com um
resto de fôlego e seus olhos estavam mortiços.
— Precisamos dar-lhe de volta aquilo que ela perdeu e despertar a pintura
refletida.
Ruby e Agnes debruçaram-se sobre July e a levaram para o centro do
quintal. A jovem se mostrou muito dócil.
Ruby voltou o rosto dela para o ocidente. O sol estava bem baixo, na linha
do horizonte, mas ainda havia claridade no Armamento. Abraçando-a pela
cintura, Ruby a fez ficar parada em determinado lugar e Agnes caminhava logo
atrás.
As duas agiam com decisão, mas sem se apressarem. Quando tudo parecia
estar em ordem, Ruby acenou para Agnes e esta ergueu a cabaça sobre a cabeça
de July. Ruby apertou a barriga da jovem, Agnes esfregou as mãos na cabaça e
ouvi um som seco, um estalo, semelhante a um tiro de revólver. Uma pequena
nuvem de fumaça rodopiou em torno da cabeça de July e deu a impressão de que
era sugada para dentro dela, por meio de um fio de prata. Pela segunda vez
aquela noite, dobrei-me para a frente, sentindo dor.
— Vá buscar uma manta para July — gritou Agnes.
Fui cambaleando até a cabana e voltei com uma manta da cama de Agnes.
Ruby cobriu os ombros da jovem e as duas a ampararam e a obrigaram a
caminhar de um lado para outro do quintal, encorajando-a por meio de
murmúrios.
198
— O que aconteceu? — perguntei.
— July deu um grande passo — disse Agnes com toda simplicidade.
— Não permita nunca mais que aquele maldito Cão Vermelho a engane
— disse Ruby, dirigindo-se a July com muita energia.
Ela segurava a cabeça com as mãos. Não era mais a mesma pessoa e
soluçava baixinho. Seus olhos mudaram de expressão e ela começou a sorrir.
— Eu não conseguia mais voltar. Não tem nada aí para eu comer?
— Lynn, vá buscar um pouco de carne de veado para ela — ordenou
Agnes.
Caminhamos em direção à cabana.
— O que esta flauta está fazendo aqui? — perguntou July pegando do
chão o instrumento abandonado.
— Oh, essa não! — exclamou Ruby. Arrebatou a flauta das mãos da
jovem, apoiou-a no joelho, partiu-a em dois, jogando-a fora.
De repente ouviu-se o ruflar de asas e um corvo pousou no ombro de July,
crocitando bem alto em seu ouvido.
— Corvo tem voado por aí, à procura do espírito perdido de July — disse
Agnes, voltando-se para mim. — Esta ave pertence a ela. Agora voltaram a se
unir, Todas devemos ficar muito felizes.
Depois que entramos na cabana, July comeu com um apetite invejável.
Quando terminou, fomos apresentadas. Senti que ela sabia muitas coisas que eu
ainda teria de aprender.
Mais tarde, depois que Ruby e July partiram, permaneci em silêncio no
meu saco de dormir, imaginando o que aconteceria em seguida. Nada parecia
fazer muito sentido. A única coisa de que eu tinha plena certeza é que ainda
desejava o cesto de casamento.
199
Deixo-a no interior do espelho da criatividade, tocando
o círculo do mundo.
— Hyemeyohsts Tempestade
218
Regressei a Bervely Hills, após as experiências narradas neste livro. Revi
meus velhos amigos e fui aos lugares que tanto conhecia, mas me pareceram
meras sombras, em comparação com a lembrança que tinha deles.
Voltei a me inserir naquela rotina durante algumas semanas, até não
conseguir mais suportá-la. Sem comunicar nada a ninguém, tomei um avião de
volta para o Canadá, a fim de ver Agnes. Quando entrei na cabana sem me
anunciar, ela estava sentada no chão e fiquei bem na sua frente. Dei-lhe uma
caixa de cigarros americanos. Ela pegou-a, sem dizer nada, e colocou a seu lado.
Parecia estar me esperando.
— Tudo mudou — tentei explicar. — Não sei o que fazer. Quero voltar
para seu mundo. Quero que você continue a me ensinar.
— Não — ela disse, olhando-me muito atenta. Havia grande firmeza em
sua voz. — Ainda não é tempo.
— Agnes, você me disse que tudo o que eu aprendi é sagrado e secreto. É
verdade?
— Sim, é verdade.
— Não posso contar a ninguém, discutir isso com ninguém?
— Não.
— Mas então o que devo fazer?
Agnes encarou-me com altivez durante alguns momentos. Estendeu os
braços rigidamente, diante dela, paralelos ao chão, com os punhos cerrados.
Esticou lentamente as mãos, mantendo-as na mesma posição, mas com os dedos
apontados para cima.
— Sabe o que isto significa?
— Você está se exprimindo através de sinais?
— Sim. Quando você abrir os dedos desse jeito, significa duas coisas. Os
dedos simbolizam as pessoas e abri-los quer dizer desfazer-se de algo. Estou lhe
219
dizendo para comunicar a seu povo o mundo espiritual. Deixe sua mensagem
voar. Deixe a águia voar.
— O que isso significa?
— Você viu muita coisa, sabe muita coisa, mas não basta. Disse-lhe que
chegaria um tempo em que se veria forçada a escolher sua morte. Esse tempo
chegou. Escreva um livro e passe adiante tudo o que aprendeu. Então poderá
voltar para junto de mim.
Enquanto me afastava de Agnes, seguindo a estrada esburacada, repeti
sem parar um poema de Robinson Jeffers:
Fim
220
LYNN V. ANDREWS vive no sul da Califórnia, onde se dedica a
produção de filmes, estudos de arte e movimentos feministas. Após a incrível
experiência relatada neste livro, tem seguido as instruções da índia Agnes Alce-
Que-Assovia: "Comunique ao seu povo o mundo espiritual... transmita o que
aprendeu". Assim, ela já preparou O VÔO DA SÉTIMA LUA e outros livros
que vão dar seqüência à história aqui iniciada.
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