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FORÇA VIVA
LYNN V. ANDREWS

Tradução de
DIOGO BORGES

EDITORA BEST SELLER

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Título original: Medicine Woman

Copyright © Lynn V. Andrews, 1981


Publicado sob licença de Warner Books Inc., New York

ISBN 85-85091-40-1

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Andrews, Lynn V,
A581f Força viva / Lynn V. Andrews; tradução de Diogo Borges. — São
Paulo ; Best Seller, 1987.

1. Índios da América do Norte - Medicina


2. Índios da América do Norte - Religião e mitologia I. Título.

CDD-299.7
87-1490 -615.89909701
-970-1

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FORCA VIVA
LYNN V. ANDREWS

Esta é a história de uma iniciação, de um aprendizado feito por caminhos


difíceis e por vezes inusitados. Em busca de um cesto de casamento, peça do
artesanato indígena, a autora entra em contato com Agnes Alce-Que-Assovia,
uma velha índia cree da região de Manitoba, espécie de curandeira e líder
espiritual a quem ela vai seguir por sete anos. Desde então, Lynn V. Andrews se
defronta com estranhas visões, acontecimentos inexplicáveis e encontros
perigosos, até obter seus próprios poderes mágicos.
Ao mesmo tempo que evoca a dimensão do sagrado na cultura dos índios
norte-americanos, FORÇA VIVA celebra o papel essencial da mulher naquela
sociedade, simbolizado na curandeira ansiosa por transmitir seus densos
conhecimentos, que constituem uma nova proposta de vida.
A luz desta odisséia, pode-se perguntar se Carlos Castañeda e Lynn V.
Andrews não fundaram um novo gênero de literatura: a autobiografia visionária.
***

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Este livro é dedicado a David Carson,
aquele que é verdadeiramente invisível.

Agradecimentos

Confesso-me profundamente grata a D. H. Latimer, estrela-guia de tantos


escritores. A gratidão e o respeito que sinto por meu editor, Clayton Carlson,
falam por si. Obrigada a Rosalyn Bruyere, verdadeira irmã, que conhece a
própria sombra.
Agradecimentos especiais às minhas doces mestras curandeiras. Sem elas
este livro jamais poderia ter sido escrito.

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Não existem curandeiros sem curandeiras. Um
curandeiro recebe o poder de uma mulher, e sempre foi assim.
O curandeiro substitui o cachorro. Não passa de instrumento
de uma mulher. Hoje em dia não parece mais ser assim, mas é
verdade.
— Agnes Alce-Que-Assovia

Uma lua amarela surgiu por trás das colinas, a distância. O céu era belo,
imenso, e ouviam-se os coiotes entoar sua canção lamentosa.
Eu estava sentada diante de uma fogueira ao ar livre, na companhia de
uma velha índia. Seu rosto, tão enrugado quanto um fruto amadurecido, tinha
maçãs salientes, e suas longas trancas caíam bem abaixo dos ombros. No
pescoço, um colar de contas, destinado à cura, por cima da blusa verde xadrez.
— Sua vida é um caminho — afirmou e, no início, era difícil entender o
sotaque carregado. — Sabendo, ou não, você tem andando em busca de uma
visão. É bom ter uma visão, um sonho.
Existia naquela criatura algo que se impunha. Sua personalidade parecia
modificar-se de um momento para outro. Embora sentisse dificuldade em
exprimir em inglês os pensamentos mais simples, era tão erudita quanto
qualquer outra pessoa que eu conhecia, além de possuir grande dignidade.
— A mulher é o máximo — afirmou. — A mãe terra pertence à mulher,
não ao homem. Ela carrega o vazio.
Foram as palavras que me dirigiu antes de me tornar sua aprendiz. É uma
curandeira ou heyoka. Estava destinada a segui-la durante sete anos. Este livro é
um registro de minha jornada através de seus domínios, estranhos e belos. É
uma comemoração do poder da mulher, tal como ela me fez enxergar esse poder.
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Estou caminhando através de uma paragem distante. A
pradaria está recoberta de vegetação rasteira, esparsa, e de cedros que
se concentram em alguns pontos. Penso num vale solitário, numa
cratera da lua. Em meio àquele silêncio, estranho e vasto, deparo com
um armário todo esculpido. Seu artesanato é notável. Consigo
enxergar através de suas portas translúcidas. A esquerda, por detrás
do vidro, um rosto de mulher me encara. E o de uma antiga índia
americana. À direita, vejo um corvo de um negro azulado. A cena
recorda-me um quadro de Magritte.
A cabeça da mulher, de repente, começa a cair para trás e para
a frente, em movimentos ritmados, como um metrânomo.
— Quantas vezes preciso dizer — ela me repreende, sem
interromper o movimento da cabeça — que o cesto de casamento não
está à venda? Você precisa conquistá-lo.
Enquanto estou sendo admoestada, minha atenção desvia-se
para o olho brilhante do corvo. Seu corpo gira e ela encara a cabeça da
mulher, movimentando-se na mesma batida de um metrânomo.
Fico assustada. O corvo começa a imitar a fala da velha. As
duas vozes não se confundem e são tão belicosas que estremeço.

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Vi apenas um cesto de casamento em toda minha vida.
Sei, porém, que o cesto ainda existe. Onde, ignoro,
— Hyemeyohsts Tempestade

— Você está pronta? — perguntou Ivan, ansioso por ir embora.


— Ainda não — respondi. — Acredite se quiser, mas acho que descobri
algo interessante.
Eu tinha ido à Grover Gallery assistir à inauguração de uma exposição de
fotos de Stieglitz na companhia do dr. Ivan Demetriev, um psiquiatra meu
amigo. A galeria estava repleta e nela se viam os habituais patrocinadores da
arte e os pretendentes à cultura, mas era o que eu esperava. Não era isso o que
me incomodava, mas sim a exposição, estática, sem a menor graça.
Era o que achava antes de ver aquela foto.
— Um momento, Ivan, não pode ser de Stieglitz — disse eu, puxando-o
pela manga. Paramos diante da foto de um velho cesto de índios americanos.
Ivan olhou-o com má vontade, entediado, insistindo para irmos embora.
— O formato é fascinante — disse eu, examinando a foto mais de perto
—, porém não se parece de modo algum com o trabalho de Stieglitz. —
Continuei encarando o cesto, que me intrigava. Tinha um desenho intricado, que
se assemelhava a um delfim com uma cobra ou ao relâmpago. Embora
colecionadora de arte indígena americana, jamais tinha visto algo que se lhe
pudesse comparar. Quanto à trama, ela também tinha alguma coisa inusitada. Eu
não conseguia distinguir se era espiralada ou trançada. Senti-me tomada por sua
perfeição. Não tinha como localizar sua procedência, mas sabia que ela já
ocupava um espaço em meu subconsciente. Ivan não disfarçava seu desagrado e
não parava de olhar para a saída. A foto, que media uns 30 x 40 cm, em sépia,
possuía uma qualidade mística que eu jamais associaria a Stieglitz. Fiquei a
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imaginar em que estágio de seu trabalho ele a teria feito. Meus olhos
percorreram a legenda datilografada ao pé da foto e procurei a data. Lá estava
ela, juntamente com o título, "O Cesto de Casamento", mas outra surpresa me
aguardava. O nome do fotógrafo era McKuinley, uma ilha solitária num oceano
de fotos de Stieglitz. Ivan me encarava com impaciência.
— O nome deste fotógrafo, McKinnley, lhe diz alguma coisa? —
perguntei.
— Não, não o reconheço — respondeu ele, puxando-me pelo braço —,
mas sou perfeitamente capaz de reconhecer um bando de vigaristas e pseudo-
intelectuais quando bato o olho neles. Vamos embora tomar um drinque.
— Mas eu quero aquela foto!
— Volte amanhã e a adquira sem pressa — disse Ivan, encaminhando-se
bruscamente para a porta de saída.
— Pelo menos deixe-me anotar o nome — pedi, afobada, à procura de
uma caneta. Vasculhei a bolsa e, quando olhei, lá estava Ivan acenando para
mim do lado de fora. Com um suspiro, decidi que conseguiria me lembrar de
"Cesto de Casamento" e "McKinnley". Saí correndo para alcançá-lo.
Naquela mesma noite comecei a ter estranhos sonhos. Primeiro, não
conseguia dormir. Uma coruja agourenta piava, empoleirada numa nogueira,
perto de meu quarto. Puxei as cobertas em torno do rosto e procurei permanecer
em silêncio, sem fazer nenhum movimento. Quando comecei a mergulhar no
sono, imagens do cesto de casamento, escuro e misterioso, surgiram em minha
mente. O sonho implodiu em um zumbido selvagem, na minha consciência.
Despertei, assustada, e sentei-me na cama, de olhos arregalados, com medo.
Afastei as cobertas, irritada, e fui correndo ao banheiro. Acendi a luz e mexi
ruidosamente no armário de remédios, olhando com desconfiança os espelhos,
esperando ver vultos ou sombras furtivas. Um vidro com comprimidos caiu no
chão e partiu-se em pedaços. Abaixei-me para juntar os comprimidos e os
estilhaços e bati com a cabeça.
— Que ódio!
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Tomei um calmante e, cambaleando, voltei para a cama. O quarto estava
escuro, e réstias de luar me iluminavam o rosto. Pensei naquele conto de Anais
Nin, no qual a heroína se deleitava à luz da lua, virava-se e tremia diante daquele
brilho perturbador e, lentamente, perdia a alma. Quando, por fim, ia adormecer,
a coruja piou novamente e o cesto surgiu mais uma vez na minha frente, só que
agora uma velha índia, com olhos que pareciam espelhos polidos, o segurava
com um gesto que não prenunciava nada de bom. A visão continuou a aparecer,
até eu cair no sono, tamanha minha exaustão.
Quando percebi, o telefone tocava e era de manhã.
— Alô! — Ainda não estava de todo acordada.
— Quero falar com Lynn Andrews, por favor. Aqui é da Grover Gallery.
Recebemos seu recado — disse uma voz de mulher, jovial.
— Sim, sou eu. Deixei um recado na secretária eletrônica à noite passada.
É sobre uma foto de um cesto de casamento, que vi na exposição de Stieglitz.
Quer fazer o favor de reservá-la para mim?
— Um cesto de casamento?
— Sim, um cesto de casamento de índios americanos, fotografado por
McKinnley, acho. Não tenho certeza. Penso que era de McKinnley.
— McKinnley?
— Sim... não... Era uma foto velha, tirada por um fotógrafo qualquer.
— Vou verificar, senhorita Andrews.
Desliguei e fiquei à espera. Levei a mão à cabeça, que doía muito. Daí a
pouco o telefone voltou a tocar.
— Senhorita Andrews?
— Sim.
— Não temos nenhuma foto como a que pediu, listada no nome de
McKinnley ou de qualquer outro fotógrafo.
— Como assim, não tem a foto? — Sentei-me com a rapidez de um raio,
subitamente muito alerta.
— Em nosso arquivo não consta o registro da foto de um cesto de
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casamento de índios americanos, senhorita Andrews. — A voz revelava
impaciência.
— Mas é impossível! Quero dizer, deve haver um erro. Estou indo para aí.
Obrigada.
Fiquei estranhamente obcecada, quase frenética.

Fui até a galeria, no Boulevard La Cienega, fisicamente exausta devido à


noite anterior, aturdida com a confusão que o telefonema provocara e irritada
com a falta de eficiência da galeria em manter organizado um simples fichário.
Estacionei em frente ao prédio e entrei, muito empertigada. A vasta extensão de
paredes brancas, a colisão de fotos dependuradas ao nível do olho, em todas as
direções, revoltou-me, bem como aquele ambiente tão artístico, tão "in". O
proprietário da galeria aproximou-se, após dar uma olhada em meu Jaguar
estacionado à porta e à minha velha bolsa Gucci. O homem tinha traços
marcados, era rígido, com um ar pretensioso.
— Senhorita Andrews?
— Sim. Telefonei a respeito da foto do cesto de casamento. Eu a vi aqui,
ontem à noite. Era da autoria de McKinnley. — Minha voz soava tensa e eu a
estranhei.
— Permita-me interrompê-la, senhorita. Antes de mais nada, sente-se, por
favor. Vamos tomar um chá. Prefere creme ou açúcar? Muito bem. — Ele
retirou-se sem esperar minha resposta.
Sentei-me no único móvel da galeria, um sofá redondo, ultra-estofado,
com um pedestal alto no meio. Era coberto de pêlo falso, cor de laranja, e
concebido de tal modo que se tornava impossível desfrutar de qualquer conforto.
O homem voltou com duas xícaras de chá e entregou-me uma, sentando-se.
Permanecemos num silêncio incômodo, tomando chá. Começava a me
convencer de que ele estava escondendo o retrato para pedir um preço alto.
— Senhorita Andrews, deve haver algum engano. Procuramos em nosso
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arquivo e temos apenas uma foto de McKinnley. — Ele fez uma pausa e me
encarou, estendendo o pescoço, muito rígido.
— Pois então faça-me o favor de me deixar ver essa foto.
Ele deu de ombros, ergueu os olhos para o teto e saiu novamente da sala
de exposições. Ficou lá dentro durante um período de tempo interminável e eu
me convenci de que ele se preparava para pedir uma quantia astronômica pela
produção. Com gestos nervosos, comecei a fazer bolinhas no pêlo do sofá,
olhando para as fotos dependuradas nas paredes. Máscaras ameaçadoras
devolviam meu olhar e eram ecos em branco e preto de meus pesadelos recentes.
Levantei-me e comecei a andar de um lado para outro. Ele voltou com uma
pequena pasta, lançou-me um olhar penetrante e manifestou-se com uma
suavidade que tinha tudo de incongruente.
— Aqui está, senhorita Andrews.
O dono da galeria colocou a pasta em cima do sofá e a abriu, mostrando
uma velha foto em sépia, no Little Big Horn, datada de 1850, mais ou menos.
Agarrei a foto, procurando furiosamente a imagem do cesto de casamento. A
pasta estava vazia.
— O senhor está mentindo — disse.
O homenzinho empertigou-se todo e reagiu no ato.
— Já lhe disse que não temos a foto e, tanto quanto saiba, jamais tivemos.
Com efeito, senhorita Andrews, acho que a coisa está indo um pouco longe
demais.
Ao me dar conta de minha imprudência, meus maus modos e minha
absoluta falta de controle, desculpei-me e saí da galeria. Desci às pressas o
Boulevard La Cienega e voltei para Beverly Hills. Ao chegar em casa, preparei
mais uma xícara de chá e afundei no sofá, pondo os pés para cima, pois estavam
gelados. Peguei o telefone e disquei o número de Ivan.
— Consultório do doutor Demetriev — disse a secretária. — Em que
posso ajudá-la?
— Quero falar com Ivan, por favor. E Lynn Andrews.
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— O doutor está em consulta. Dê-me o número de seu telefone e ele a
chamará assim que puder.
— Mas é urgente. Diga-lhe que estou na linha. — Ela me fez esperar.
— Alô! — disse Ivan bruscamente.
— Ivan, lembra-se daquele cesto de casamento que vi ontem à noite? Qual
era mesmo nome do fotógrafo?
— Que cesto de casamento? Que fotógrafo? Estou atendendo alguém em
plena depressão, que pode suicidar-se. Fale rápido, Lynn.
— Desculpe-me interrompê-lo, mas preciso de informações sobre aquela
foto específica, que estava ontem à noite na galeria. Não se lembra?
— Não me lembro de nenhuma foto de cesto — declarou ele, com a
evidente intenção de pôr um ponto final no assunto. — E foi uma exposição de
Stieglitz. Não estou gostando nada de ser interrompido.
— Mas eu a mostrei, no momento em que nos retirávamos!
— Lynn, acho melhor você falar com minha secretária e marcar uma hora
— disse ele, implicante. — Garanto que você não me mostrou a foto de que está
falando.
— Ivan, você tem certeza absoluta? É muito importante. Trata-se de uma
velha cópia em sépia e tinha pelo menos setenta anos. Me parece que o autor era
McKinnley.
— Tenho certeza de que você não me mostrou essa tal foto. Telefonarei
mais tarde. — Ivan desligou.
Minha cabeça rodava. Eu sabia que tinha visto aquela maldita foto.
Toquei-a com minhas mãos e a vira em meu sonho. O que estava acontecendo?
De repente senti-me muito cansada.
Olhei em torno de mim, na sala de estar. Era como estar sentada no centro
da combinação de uma aldeia africana com um museu de índios americanos. Ao
longo dos anos, eu, munida de paciência, formara uma coleção muito valiosa de
estatuetas ancestrais congolesas, fetiches mágicos e deuses da guerra, mantas
navajo e cestos de toda a América do Norte e Guatemala. A sala parecia mágica,
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repleta de poesia, poder e antigas tradições primitivas. Os cestos, simétricos e
perfeitos, alinhados nas paredes, eram meus preferidos. E aquele cesto de
casamento, impregnado de magia... Jamais me sentira tão compelida a adquirir
um objeto.
Recostei-me na poltrona, tentando ficar à vontade e, olhando para o outro
lado da sala, reparei numa antiga obsessão, uma faixa de fertilidade da
Guatemala, branca e preta, tecida à mão. Estava dependurada na parede, junto a
uma foto do templo maia do Grande Jaguar, tirada por mim em Tikal,
Guatemala, há uns dois meses. Recordei as dificuldades que atravessei, pois para
encontrar a faixa demorei um mês.
Aluguei um jipe na Cidade da Guatemala e fui em direção a
Chichicastenego, um antigo mercado índio, onde encontraria a faixa que estava
decidida a adquirir. A paisagem era de tirar o fôlego. As terras cultivadas
pareciam uma colcha de retalhos, e uma rede muito elaborada de canaletas de
irrigação percorria as encostas das colinas. Os guatemaltecos maias praticavam a
irrigação há séculos. A terra era fértil e verdejante. Eu sentia o cheiro forte da
terra e da fumaça, proveniente da lenha que queimava dentro das casas de teto
de palha. Quando o sol estava bem alto, a estrada começou a subir em direção a
Chichicastenego. A antiga aldeia se situava num altiplano e a estrada era
perigosa, mesmo para um jipe. Quando cheguei mais ou menos na metade da
estrada muito estreita, em ziguezague, o tráfego em ambas as direções foi
interrompido e tive de parar. Um enorme caminhão de circo, transportando uma
aliá e seu filhote, ao tentar fazer uma curva se atravessara na estrada e quase
caíra no abismo. A estrada, evidentemente, estava bloqueada havia horas.
Desliguei o motor e desci. Bandos de pássaros excitados arruinavam na
grande catedral de árvores, cujas copas se cruzavam, bem no alto. A engrenagem
de marcha a ré do caminhão se quebrara e, a cada movimento dos dois elefantes,
o veículo rangia e gemia. Um carro após outro parou. Guatemaltecos furiosos
berravam insultos e aconselhavam em altos brados o chofer do caminhão, que
àquela altura estava vermelho como um pimentão.
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A confusão aumentou. A aliá e seu filhote continuavam a balançar o
caminhão para trás e para frente. As velhas tábuas das grades laterais
começaram a estalar. O caminhão oscilava precariamente, a apenas pouco mais
de meio metro de um abismo profundíssimo. O que se seguiu foi o caos
completo. Nesse exato momento um comprido ônibus, repleto de circenses,
apareceu.
Anões deformados, com correntes enferrujadas nas costas, gordas
senhoras e homens calvos e tatuados, com alavancas e roldanas, desciam do
ônibus aos magotes. Funâmbulos, acrobatas e dançarinas do ventre, todos
guatemaltecos, baixotes e morenos, berravam com os turistas para que lhes
abrissem caminho.
Os elefantes soltavam berros aterrorizados, que soavam como trombetas, e
o caminhão oscilava perigosamente, junto ao abismo, que representava morte
certa para os animais. Os anões rastejavam por debaixo do caminhão, gritando
palavrões. Cinqüenta pessoas ou mais contemplavam o espetáculo. Eram turistas
vestidos de bermudas, guatemaltecos, índias com seus compridos vestidos
tradicionais e huipiles, equilibrando nas cabeças cestos com que se dirigiam ao
mercado. Mal conseguíamos respirar.
Um dos anões passou a corrente em torno do eixo do caminhão e outra
pessoa amarrou-a no pára-choque do ônibus. O chofer do caminhão ligou o
motor em marcha neutra e o motor do ônibus também foi ligado. Era difícil
acreditar que o pára-choque conseguisse resistir, isso para não falar da velha
corrente enferrujada. À medida que o caminhão começou a andar para trás, uma
mulher gorda e um homem tatuado removeram as pesadas pedras que calçavam
os pneus, pondo-as de lado como se não passassem de meros pedregulhos.
Agora, com novo movimento, os elefantes pararam de balançar. Os anões
subiam, desciam, davam saltos mortais e a selva inteira vibrou com os gritos de
alegria de todos nós. O circo continuou seu caminho.
Prossegui até Chichicastenego só para ficar sabendo que precisaria voar
até uma remota província da Guatemala, onde se localizavam as ruínas maias de
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Tikal-Peten. Ali encontraria um comerciante, que talvez me vendesse a tal faixa.
Voltei com o jipe para a cidade de Guatemala, que ficava a meio dia de viagem.
Que vôo, em direção a Tikal-Peten! Havia dez poltronas e eu era a única
passageira. O avião era velho e servira para o transporte de tropas. Uma
verdadeira relíquia da Segunda Guerra Mundial. Por entre as pranchas do
assoalho eu percebia as selvas da Guatemala. Devíamos apresentar-nos ao
aeroporto às seis da manhã, mas, mesmo tão cedo, o calor e a umidade eram
opressivos. O piloto rodeou 130 quilômetros quadrados de ruínas parcialmente
expostas, que se destacavam de modo impressionante na vastidão da selva
densa.
O museu, localizado num extremo da pista de pouso, destinado aos
turistas, estava quase deserto. A mulher que ali se encontrava disse que o
comerciante que eu procurava regressara à cidade de Guatemala, deu-me um
endereço e informou que o próximo avião levantaria vôo daí a quatro horas.
Fiquei decepcionada.
Comprei uma lata de suco, um mapa e um guia me ensinou como
caminhar até o pátio principal do Templo do Grande Jaguar. Pus um filme na
máquina, antes de percorrer a trilha tomada pelo mato. A algazarra das aves da
selva parecia zombar de mim e o ar matinal rescendia fortemente a pimenta-da-
jamaica. A trilha era flanqueada por palmeiras gigantescas, e trepadeiras floridas
se enroscavam nas enormes samambaias. Coberta de suor, pois o calor
aumentava cada vez mais, amarrei a blusa branca acima da cintura. Estava
completamente só, em meio a sólidos aquedutos de pedra, plataformas e esteias.
Senti-me tão profundamente fascinada com os hieróglifos e as incisões na pedra,
tão tonta com o perfume narcotizante do ar, que não percebi que tinha me
perdido.
Em plenas ruínas, dobrei um canto, vi-me num pequeno pátio ao ar livre e
esbarrei num índio alto. O susto me fez gritar.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ele. Seu rosto era jovem, belo,
e ele não se mexeu. — Deveria estar no norte.
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— Na cidade, quer dizer?
Ele me encarou com severidade e continuou a falar, como se me
conhecesse.
— Precisa revisitar a cidade, mas sua jornada é bem mais para o norte.
— Como é que volto para a pista de vôo? — perguntei, nervosa, querendo
pôr um ponto final naquela conversa.
— Sente-se.
Ele alisou a terra e, usando uma vareta, delineou com cuidado um mapa
no chão, apontando para a direção que eu deveria seguir. Esforçou-se muito para
me ajudar a entendê-lo e notei seu encanto e sua elegância, ambos de chamar a
atenção, enquanto ele falava. Quando terminou, senti que deveria dar-lhe algo
por seu trabalho, e vasculhei a bolsa que levava a tiracolo, mas a única coisa que
encontrei foi dinheiro, uma nota de vinte dólares. Ao pegá-la, uma estranha luz
surgiu em seu olhar e ele me encarou com insistência.
— Este dinheiro que acaba de me dar a compromete. Mandarei duas
pessoas para ajudá-la, dentro de quarenta e quatro dias. A primeira delas será
mulher. Você a reconhecerá como sua aliada, mas é preciso conquistá-la.
Enviarei também um ajudante, que assinalará sua trilha. — Ele rasgou a nota
pelo meio e me devolveu a metade. — Fique com ela.
Eu estava assustada e exausta.
— Voltaremos a nos encontrar. Guarde esta nota rasgada em sua trouxa.
— Em minha bolsa, quer dizer?
Nosso diálogo tinha chegado ao fim, porém. Ele limitou-se a apontar para
diante com a vareta, por meio de um gesto vigoroso.
— Nunca mais volte para este lugar. Agora vá, depressa. Eu não sentia a
menor vontade de ofender aquele homem que, evidentemente, era louco. Poderia
voltar para a Guatemala e para os templos a qualquer momento que desejasse.
Indiquei que compreendia.
— Vá embora daqui rapidamente, ou jamais encontrará o caminho.
Ele se levantou e afastou-se, desaparecendo quase instantaneamente na
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selva. Meu primeiro impulso foi o de jogar fora aquele inútil pedaço de dinheiro,
mas o guardei por detrás de meu cartão de crédito, na carteira. Dirigi-me para a
pista de vôo, em direção à Cidade de Guatemala e à faixa da fertilidade.
Agora a faixa enfeitava minha parede. Era linda e, sem dúvida, valera o
esforço que me custara achá-la. Tomei mais um gole de chá e percebi, assustada,
que já se passara mais de um mês, desde que tivera a experiência com o jovem
índio. E daí?, pensei. É claro que nenhuma mulher viera me ajudar,
independentemente do que ele quisera dizer com isso.
— Se tiver de ficar aqui esta noite, enlouqueço — disse em voz alta.
Inclinei-me para a frente e peguei uma caixa de prata que estava em cima de
uma mesa baixa. Abri a tampa e tirei de dentro um pedaço de papel, com um
nome anotado às pressas e uma data. Meu velho amigo Arthur Desser estava
oferecendo um jantar no dia 18 de fevereiro, às oito horas — aquela noite,
portanto. Enfiei o papel na caixa. Meus nervos estavam à flor da pele, devido ao
incidente na galeria e à falta de sono. Comecei a refletir se a foto do cesto de
casamento não fora apenas excesso de imaginação. Cheguei até mesmo a
verificar a agenda de exposições, publicada no Times. Lá estava relacionada a
exposição de Stieglitz.
Então voltei a perder o controle. Fui ao extremo de fazer alguns
telefonemas inúteis para galerias de Nova York. Nenhuma delas possuía uma
foto de um cesto de casamento, embora uma delas possivelmente tivesse ouvido
falar desse objeto. Eu precisava entrar urgentemente em contato com a realidade
mais prosaica e resolvi procurar uma pedicure, num dos salões de Elizabeth
Arden.
Ao voltar para casa, sentei-me na beira da cama durante alguns instantes,
esfregando meus dedos, recentemente pintados, contra o macio tapete de pele de
veado. Pus o despertador para tocar daí a duas horas, enterrei a cabeça no
travesseiro e caí no sono.
— Não, não, não! — Era minha voz e vinha de longe. De repente, acordei.
Debatia-me, coberta de suor, e os travesseiros estavam espalhados por toda a
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cama, como se eu os tivesse jogado. Sentei-me, ainda vendo o sonho, e abanei-
me com as mãos, como se sobre meu peito houvesse um fardo gigantesco. A
visão não podia ser simplesmente um sonho. Eu a enxergara com tamanha
clareza! Era uma meninazinha, com olhos estranhamente misteriosos,
estendendo o cesto de casamento para mim. Convidava-me para me aproximar
cada vez mais, cada vez mais, até que, de repente, começou a crescer e o cesto
se tornou enorme. Ela caminhou apressadamente em minha direção, ameaçando-
me com o cesto, que continuava a estender.
— Oh, meu Deus, de novo! — exclamei. Acendi a luz, puxei o
acolchoado de cetim até o pescoço e olhei para o relógio. Nesse exato momento
o despertador tocou. Desliguei-o e deitei-me de costas, trêmula, apoiada nos
poucos travesseiros que continuavam em cima da cama. Queria levantar-me e
acender todas as luzes da casa.
Continuava a tremer quando saí da cama e me vesti para o jantar na casa
de Arthur. Fui em direção a Bel Air, que não ficava a dez minutos de casa. Segui
a Carolwood Drive e passei pela casa de Walt Disney. Lembrei-me de Leon
Craig, a quem se devia o progresso de Bel Air. Vivia numa grande propriedade,
vizinho de Disney. Ela incluía um vasto jardim, parecido com o de Versalhes,
com alguns alqueires de gramados, sebes muito bem cuidadas e infinitos
roseirais, que se dispunham, serenos e perfeitos, em torno da residência. Papá,
como sua família o chamava, homem encantador e afetuoso, que vivia
inteiramente só naquela casa enorme e, de vez em quando, recebia visitas dos
seus, era alcoólatra. Tinha tudo neste mundo e, ainda assim, bebia até acabar
esquecendo quem era. Eu costumava pensar nele. Papá era como muitos amigos
de meus pais. A primeira metade de suas vidas era dedicada à luta para juntar
uma fortuna. Os últimos anos decorriam num clima amargurado, de
autodestruição. Não queria que minha vida terminasse daquele jeito.
Os símbolos da riqueza se exibiam nos dois lados da estrada cheia de
curvas. Diminuí a velocidade do carro para apreciar os jardins requintados. Suas
árvores formavam corredores compridos e imponentes e as folhas brilhavam ao
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luar. Aqueles arbustos e canteiros tão bem cuidados, plantados e alinhados como
que por meio de um compasso, me reconfortavam demais. Era-me familiar o
universo ordenado e opulento de Bel Air. Costumava aspirar o ar, gozar daquela
tranqüilidade e não conseguia imaginar por que uma pessoa haveria de querer
viver em qualquer outro lugar. Naquela noite, porém, sentia-me como uma
bateria descarregada. Aumentei a velocidade do carro e não tirei o olho da
estrada.
Daí a uns cinco quilômetros surgiu a casa de Arthur. Vi luzes nas janelas e
ouvi música. Havia uns dez carros estacionados na rua — Rolls-Royces,
Mercedes e uma gigantesca perua-trailler. Quem seria que Arthur reunira dessa
vez? Ele aprecia demais as noitadas intelectuais e mistura cientistas e
empresários com artistas e gurus. Arthur, que adquiriu considerável fortuna no
ramo do refinamento de petróleo, é divorciado quatro vezes, tem dois filhos e
embarcou em quase todas as viagens parapsíquicas e psicológicas que já houve.
Elas não o levaram a lugar algum e, embora eu goste muito de Arthur, fico
sempre de pé atrás. Nunca se sabe o que ele pode fazer, sobretudo naquele tipo
de jantar.
Uma vozinha me atendeu no interfone. Era a criada francesa.
— Françoise, é Lynn Andrews.
Ouvi um clique e Françoise abriu os pesados portões chineses laqueados.
— Comment ça va? — perguntei?
— Très bien, merci, Mademoiselle Andrews. C'est magnifique! — ela
exclamou, examinando meu quimono de crepe de seda negro e dando um
tapinha afetuoso em meu braço. De repente, rodeando a piscina azulejada de
verde, vieram os "Cães de Baskerville", como chamo os terriers Yorkshire de
Arthur, bolotas peludas e raivosas, que mostravam os dentes e latiam.
— Oh, cuidado com esse aí, Mademoiselle Andrews — disse Françoise,
alarmada. — Lembre-se de que ele morde.
— Merlin não me morderá. Ele me conhece.
Merlin rosnou para mim, cheirou meus dedos e, todo feliz, enterrou seus
20
dentinhos afiados em minha calça comprida de seda.
— Ai, seu demônio! — gritei, dando chutes no ar. Ele não chegou a
atingir a pele, mas deixara marca dos dentes na calça.
— Cachorrinho malvado! — repreendeu Françoise, tocando os três
cãezinhos para o canil. Os bichos continuavam a ganir e a rosnar.
Subi a escada de lajota que levava à sala de estar. Em cada degrau havia
velas de sete dias e flores vermelhas pendiam da varanda. Arthur, sorridente,
estava no topo da escada, vestido com seu tradicional blazer azul, com o brasão
da Universidade de Yale no bolso, e calça de flanela cinza. Na mão tinha um
drinque.
— Querida, você se atrasou — comentou.
— Seu cachorro acaba de me morder. Que monstrinho!
— Ele tem tendência a se comportar assim. Entre, querida. Gosto muito
de seu penteado. Quero apresentar-lhe a gente muito importante.
Ele tirou meu quimono e o guardou num armário.
— A propósito, para que este jantar, Arthur?
— Tenho uma surpresa toda especial para você: um curandeiro índio,
americano, que escreveu Sete Flechas, um livro que é best-seller. Já ouviu falar
dele?
— Sim. Estou encantada.
— Não duvidei sequer ura momento — disse Arthur, sarcástico. Entramos
na sala de estar, branca e retangular. A lenha crepitava na lareira. A caixa de luz
de Ray Howlett refletia sutis prismas cor de pastel no teto abobadado. Um
quadro de Fritz Scholder cobria a parede inteira, atrás do comprido sofá de
couro, e um Buda sereno, de quase dois metros de altura, vergado ao peso da
idade, se impunha a todos nós.
Arthur apresentou os convidados.
— Lynn, venha conhecer meus mais antigos e queridos amigos de
Connecticut, George Helmstead e sua mulher Pamela. George é banqueiro.
— Alô — eu disse.
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— Ivan Demetriev você já conhece, não? Nós nos abraçamos.
— Minha namorada, Helen, que fechou um grande negócio para a
companhia de seguros onde trabalha e está comemorando hoje.
— Que ótimo! — exclamei, encarando-a com curiosidade.
— Já foi apresentada ao doutor Friedlander e a Lorraine?
— Creio que não.
— O doutor Friedlander estuda processos que impedem o
envelhecimento. Acaba de voltar da Índia.
— Prazer em conhecê-lo.
Apertei a mão do médico. Tinha a cabeça raspada que alternativamente se
tornava rosada e azul, conforme os reflexos da caixa de Howlett. Seu bigode à la
Fu Manchu ia bem com seu tipo e os olhos piscavam. Lorraine era alta, possuía
uma beleza de pantera. Sorriu para mim.
Arthur me apresentou em seguida a uma atriz que fora minha preferida
durante vários anos. Usava calças-balão e um boá de plumas.
— Finalmente, quero apresentar-lhe Hyemeyohsts Tempestade, autor do
livro Sete Flechas.
Estendi a mão. A primeira impressão que me causou foi a de uma
tranqüilidade tão vasta quanto as planícies do norte.
Arthur me serviu uma vodca com tônica e eu mal notei a bebida.
Tempestade e eu começamos a falar sobre seu livro e o Camundongo Saltador,
meu personagem preferido. Enquanto conversávamos, percebi que algo se
apoderava de mim. Muita gente sonha encontrar o reflexo de uma pessoa em si
mesma, por mais comum que seja, e que proporcionará beleza a suas vidas.
Senti algo assim e não se devia ao que Tempestade dissera ou fizera. Talvez
fosse apenas sua presença ou sua amizade. Ignoro até hoje. Percebi, porém, que
pisava em chão firme e que, de repente, penetrava num círculo mágico com
Tempestade, de tal forma que estava, ao mesmo tempo, por detrás e em torno
dele. Coisas externas, que tinham sido reconfortantes, e momentos familiares
agora tornavam-se fontes de incômodo e restrições. Sentia-me pouco à vontade.
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A criada interrompeu nossas divagações, anunciando o jantar e todos se
levantaram com os drinques na mão. Fomos para o terraço, enfrentamos o ar frio
da noite e descemos a escada em espiral, toda cromada, em direção ao Vale das
Thankas. Era o nome que eu dava à sala de jantar de Arthur, por ser decorada
com exemplares de arte tibetana. Notei que Arthur e Helen bebiam um bocado,
prenuncio de que o resto da noite se tornaria um tanto desagradável.
— O que achou dele? — murmurou Arthur, indicando Tempestade.
— Muito interessante.
Arthur nos dispôs em torno de uma grande mesa de madeira, com um belo
arranjo de flores no centro. O cristal e a prata-ria reluziam. Sentou-se à cabeceira
e ofereceu o lugar de honra, no outro extremo, a Tempestade. Fiquei à direita
deste último. Françoise e outra criada francesa começaram a nos servir salada de
espinafre e um dos dois vinhos da noite. Todos se mostravam interessados na
pesquisa sobre o antienvelhecimento, empreendida pelo dr. Friedlander.
— Eu, francamente, prefiro mandar instalar um zíper nas minhas costas
— comentou a atriz.
O tom da conversa era ligeiro e agradável, enquanto terminávamos a
salada.
— Espero que hoje todos se sintam à vontade para dizer ou fazer o que
bem entenderem — aparteou Arthur.
— Está bem, Arthur, mas vamos falar com humor e deixar a ironia de
lado — disse Ivan em tom de brincadeira, com seu atraente sotaque russo.
— Abaixo os limites, abaixo os limites — disse Helen, levantando um
copo para brindar as próprias palavras. Françoise começou a servir o prato
principal, borracho com arroz.
— Não se deve jamais assumir limitações. Isso acaba nos levando à morte
— comentou a atriz, cortando o peito do filhote de pombo, quando então surgiu
o recheio. — Não concorda, Ivan?
— Sim. Enquanto vivemos, provavelmente nos sentimos como se
estivéssemos morrendo; sentimo-nos perdidos. — Ivan lançou um olhar
23
malicioso para a atriz.
— Acho que a única resposta à busca, nesse mundo, é a análise freudiana
— disse Arthur, após se servir de mais vinho.
— A única resposta é fazer o que o se quer. Caso não conseguirmos, é
preciso encontrar alguém que faça por nós — observou o banqueiro de
Connecticut.
— Lynn, na minha opinião quem se coloca ao lado do índio americano é
um perdedor — frisou Arthur enquanto Françoise tirava a mesa e a outra criada
começava a servir creme com caramelo.
— E me considera uma perdedora? — perguntei. Já estava acostumada
com suas agressões.
— No que diz respeito aos índios, sim. Que lhe parece isso que acabo de
dizer, senhor Tempestade?
— Não me diz muita coisa — replicou Tempestade com toda calma. — A
propósito, senhor Desser, só admito conversarmos em pé de igualdade.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Arthur.
— Vou demonstrar. — A presença de Tempestade afetava todos a sua
volta. — Diga "Ivan não conta". — Aquele homem parecia tão misterioso e
profundo quanto um canyon. Dava para sentir que pertencia, sem dúvida, a uma
tribo de Dakota ou Montana.
— Ivan não conta — disse Arthur, imitando-o.
— Diga "Lynn não conta".
— Lynn não conta.
— Diga "Helen não conta". — Após referir-se a todos os convidados e
também a si mesmo, Tempestade disse: — Se não estiver disposto a fazer isso
— conversar comigo em pé de igualdade — então não lhe dirigirei a palavra.
— Você não conta e ainda acho que é um perdedor — declarou Arthur
com veemência, voltando a encher o copo.
— Muito bem. Não me importa se o senhor quer brincar comigo.
Brincarei com o senhor — disse Tempestade, num tom decididamente sinistro.
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Mudei de assunto, perguntando ao dr. Friedlander o que ele fizera na
Índia.
— Realizei uma pesquisa, embora meu método possa parecer, no mínimo,
esquisito e pouco científico. Estou interessado na capacidade que algumas
pessoas têm de abaixar a temperatura do corpo apenas por um esforço de
vontade. Descobrimos que, se um corpo for mantido numa temperatura mais
baixa, o processo de envelhecimento será retardado. Medito há vários anos e
conheço iogues que conseguem manter-se num estado semelhante ao transe
durante vários dias. Minha expectativa é que isso resulte num rebaixamento da
temperatura. Viajei à índia e lá procurei alguns iogues para o teste.
— E como foi que tomou a temperatura deles? — quis saber a atriz.
— Bem, pode parecer engraçado, mas usei um termômetro retal. Percorri
a índia inteira enfiando termômetros no traseiro dos iogues.
Todo mundo morreu de rir, com exceção de Arthur que, irritado,
murmurava qualquer coisa no ouvido de Helen. De repente ele ordenou-lhe
deixar a sala e ela, chorando, saiu correndo da mesa.
— Como descobriu que os iogues mantinham a temperatura baixa? —
indaguei, ignorando a briga.
— Somente em algumas ocasiões encontrei uma diferença nítida.
— Durante suas viagens conheceu gurus realmente "da pesada"? —
perguntou Ivan.
— Sim, alguns. Os mestres de quem nunca se ouviu falar e que habitam as
montanhas eram poderosos. Um deles me fez ficar inteiramente nu e tive de
carregar pedras muito pesadas para construir um templo. Foi no meio da selva.
Havia meses em que eu fazia todo o trabalho para ele e seus discípulos.
Finalmente deixou-me tomar sua temperatura e me obrigou a pôr abaixo tudo o
que eu construíra.
— Senhor Tempestade, em seu mundo não seria considerado uma espécie
de iogue? — perguntou Arthur, interrompendo o diálogo.
— Sou, sim.
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— Mas então por que o doutor Friedlander não enfia um termômetro no
seu rabo? — Arthur parecia um cão raivoso.
Todo mundo engoliu em seco, tamanha a surpresa.
Tempestade levantou-se calmamente e rodeou a mesa, sem tirar os olhos
de Arthur. O espaço que havia entre os dois estava carregado de tensão.
Tempestade estendeu o braço, diante do estômago de Arthur. Tive a impressão
de que sua mão desaparecia dentro do plexo solar, girava e torcia, como se ele
estivesse arrancando os intestinos. Arthur contraía-se inteiro.
— Fiz isso por você, Lynn — disse Tempestade, olhando-me diretamente.
— Retirei a vontade dele. Agora podemos conversar.
Tempestade voltou para sua cadeira. Os demais convidados pareciam não
notar o que acabara de acontecer e suas conversas obedeciam os ritos de uma
festa. O mesmo sucedia com Arthur, que não parecia mais bêbado. Quando
Tempestade e eu começamos a dialogar não havia indícios de que os convidados
estivessem nos ouvindo. Pareciam hipnotizados. Não nos referimos, porém, ao
que acabara de acontecer, pois eu tinha medo disso. Finalmente perguntei a
Tempestade, com voz trêmula, se já ouvira falar de um cesto de casamento.
— Vi um único cesto de casamento em toda minha vida — ele disse,
ignorando os convidados em transe, a sua volta.
— E mesmo? — Fiquei excitada e quase ignorei o que acabara de
suceder.
— Sei que o cesto ainda existe. Onde, ignoro.
— Mas deve saber onde posso encontrá-lo — insisti.
Ele me examinou impassível e manifestou-se com muita cautela.
— Se eu quisesse encontrar quem guarda o cesto iria até a reserva dos
índios Cree, ao norte de Crowley, Manitoba. — Ele hesitou, deu uma bela
tragada no cigarro e, olhando-me fixamente, prosseguiu. — Tentaria encontrar
uma velha chamada Agnes Alce-Que-Assovia. É uma heyoka, o nome que dão a
algumas curandeiras, isto é, uma mulher-que-mostra-como. Ninguém sabe com
exatidão onde Agnes mora. Ela se desloca com muita freqüência e parece
26
preferir que seja assim.
— Mas como poderei localizá-la, se não tenho seu endereço?
— E muito difícil Agnes se fixar num único lugar. Felizmente existe outra
mulher que poderá ajudá-la, se quiser. É Ruby-Muitos-Chefes. Tenho certeza de
que Ruby saberá como localizar Agnes, mas não posso garantir que ela a
ajudará. Ruby também é cheia de segredos, muito apegada a seus princípios.
Você poderá fazer essa longa viagem a Manitoba só para descobrir que Ruby lhe
dirá para dar as costas e voltar para casa. Nenhum tipo de persuasão conseguirá
fazer com que ela dê um passo sequer, caso não queira.
— E por acaso existe um modo seguro de me aproximar dessa tal de
Ruby-Muitos-Chefes?
— Sim. Leve-lhe fumo, uma caixa de cigarros e uma manta indiana,
dessas que são usadas no comércio de trocas. E o costume. Lembre-se de que o
cesto de casamento é sagrado. Não se iluda imaginando que o conseguirá só
porque quer. Só ganhará se o merecer.
— Crowley, em Manitoba? — perguntei em voz baixa, pensativa. Lá ia eu
de novo...
— Mas por que deseja este cesto em particular? Existem tantos cestos
índios, tão belos e tão menos perigosos... — De certo modo ele brincava
comigo.
— Vi uma foto de um cesto de casamento na exposição de Stieglitz.
Desde então venho sonhando com ele. Estou obcecada por esse cesto. Preciso
localizá-lo ou, pelo menos, uma foto dele. A foto que vi não se encontrava na
galeria, no dia seguinte, e lá eles não têm o menor registro. Na verdade tem sido
um verdadeiro pesadelo.
— Você coleciona trabalhos de artesanato?
— Sim, coleciono e vendo arte indígena norte-americana e, sobretudo,
cestos.
— Pois terá muito trabalho para encontrar o cesto de casamento. No
mundo dos sonhadores é um símbolo muito sagrado e elevado.
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— Sonhadores?
— Sim, sonhadores.
— Mas o que é um sonhador?
— Os sonhadores são aqueles que vêem os sonhos dos outros e os seus,
mas não é o momento de entrar no assunto. Se estiver falando a sério, desenharei
um mapa que lhe mostrará o caminho da reserva dos Cree, a partir do aeroporto
de Winnipeg. Aqui tem o número do meu telefone.
Ele escreveu o número num pedaço de papel, desenhou rapidamente um
mapa no verso e entregou-me. Sorriu afetuosamente para mim, desejou boa-
noite aos convidados e partiu. Somente então percebi que ele pusera igualmente
em minha mão um pedaço de pele cinza. Todos continuavam a se comportar de
modo muito estranho e, pouco depois, fomos embora.
Na manhã seguinte, Arthur me acordou, telefonando.
— Lynn, eu fui desagradável demais ontem à noite?
— Arthur, você tem de parar de beber.
— Desculpe-me. Estou encabulado.
— A comida estava esplêndida.
— Não sei o que fiz ontem à noite, mas estou com um vergão enorme no
estômago e no plexo solar. Dói demais!
— Arthur, mais uma vez obrigada pelo jantar. Telefonarei mais tarde,
assim que levantar. Quem sabe você caiu.

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Que é a voz de uma mulher senão a voz da katchina?
— Agnes Alce-Que-Assovia

O avião da Air Canada aterrissou no aeroporto de Winnipeg e aluguei um


carro. Daí a trinta minutos eu percorria a auto-estrada em direção a Crowley,
seguindo as instruções do mapa de Tempestade. Abri a janela do carro e aspirei
fundo o ar fresco do Canadá. Afinal de contas o que eu estava fazendo naquelas
lonjuras, em plena tundra canadense, à procura de uma velha índia, que me
falaria de um cesto?
Enquanto guiava, uma visão do cesto surgiu em minha mente e, por um
momento, fez-se um contraste de luz e sombra. Um vasto espaço se abriu diante
de mim. Em seguida voltei a focalizar a estrada, tediosa e deserta. Pisquei várias
vezes a fim de clarear a mente e segurei na direção com mais firmeza.
Será que eu trouxera roupas apropriadas? Usava jeans da etiqueta Vidal
Sasson, botas e jaqueta de caça da etiqueta Kerr. Minha mala estava abarrotada
de suéteres, meias de lã, pijamas de flanela e estojo de maquilagem. Senti frio e
liguei o aquecedor. O rádio funcionava, mas pegava mal e o desliguei.
O céu era enorme e, em todas as direções para onde olhava, distinguia as
altas montanhas de Manitoba. Nos grandes campos ondulantes o capim, muito
verde, retorcia-se e encurvava-se, tangido pelo vento.
De repente o capo inclinou-se para a esquerda. O pneu da frente tinha
furado.
— Essa não! — gritei, indignada. Agarrei-me à direção, enquanto o carro
atravessava a estrada, em ziguezague, parando no acostamento, do outro lado.
Derrapando, brequei o carro e desliguei o motor. Já não sonhava mais de olhos
abertos com a beleza pastoral do Canadá. Fiquei parada durante alguns instantes,
normalizei a respiração e abri a porta.
— Mas que azar!
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Saí do carro, furiosa, chutei o pneu furado e olhei à minha volta, à procura
de um sinal de vida, de ajuda, de um telefone. Não havia nada disso à vista.
Percebi que, desde os arredores de Winnipeg, não tinha observado um carro
sequer. Como não havia por perto nenhum posto, teria de substituir o pneu eu
mesma. Arrastei o equipamento para a frente do carro, o que me custou uma
unha quebrada, e sentei-me na terra, imaginando como faria para usar o macaco.
Pelo menos havia um, mas levei meia hora para entender como o colocar
debaixo do chassi.
Ao ajoelhar-me e inclinar-me para a frente, a fim de enfiar a alavanca,
avistei ao longe duas figuras altas, magras, que se aproximavam pela estrada, em
minha direção. Eram dois jovens índios e fiquei um pouco receosa. Quando
chegaram mais perto ouvi-os falando uma língua que imaginei ser cree. Um
deles usava a mackinaw, grossa manta de lã marrom, e o outro uma jaqueta do
exército, toda remendada. Vieram até o carro e o rapaz de mackinaw curvou-se
para examinar o pneu. Endireitou-se e os dois caíram na gargalhada. Olharam-
me com sorrisos maliciosos e falaram na língua cree. Aquela altura, eu estava
furiosa.
— Tem algum telefone aqui por perto? Os sorrisos aumentaram.
— Vocês falam inglês? — perguntei, pois sabia que muitos índios,
moradores nas reservas, não sabem essa língua.
O rapaz de mackinaw deu de ombros e nenhum dos dois mexeu uma palha
para me ajudar.
— Muito obrigada, suas lesmas.
Voltei a ajoelhar-me e continuei a brigar com o macaco. Daí a meia hora
eu estava lambuzada de graxa, transpirava e me sentia exausta, mas consegui
mudar o pneu. Só esperava que ele não caísse, quando eu recomeçasse a guiar.
Não podia acreditar que os índios simplesmente se limitassem a ficar
parados, espiando. Joguei o macaco, a alavanca e a chave inglesa dentro do
porta-malas e fiquei parada, encarando-os. Eles estavam a alguns metros de
distância e continuavam a olhar.
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— Vocês dois não passam de uns cretinos.
Quando eu ia entrar no carro, o homem de jaqueta remendada começou a
esfregar as mãos, como se as estivesse lavando. Achei o gesto um tanto
esquisito, mas não dei maior importância. Ele sacudiu os ombros, jogou a
cabeça para trás e começou a fazer certos gestos, como se fosse uma linguagem
em código. Senti uma considerável tensão debaixo do queixo e dentro da
garganta. Será que existia alguma ligação entre o que ele estava fazendo com as
mãos e o que me acontecia? Minha visão embaralhou-se por alguns segundos e
quando ela voltou ao normal o homem estava muito ereto, com as mãos de lado.
Ambos me encaravam fixamente.
— Querem uma carona? — perguntei de repente, surpreendida comigo.
O homem de jaqueta remendada sorriu.
— Sem dúvida. Muito obrigado.
Fiquei espantada ao ouvi-lo exprimir-se num inglês perfeito. Eles se
aboletaram no banco de trás e partimos. O pneu parecia estar em ordem.
Indignada, resolvi ignorar aqueles dois. A estrada asfaltada estendia-se
por quilômetros e quilômetros sem fim. Eu estava com muita fome.
Permanecíamos em silêncio, como três estátuas distantes. Comecei a me sentir
mais à vontade naquela solitária vastidão de pradarias ondulantes.
O índio de jaqueta remendada começou a cantar baixinho.
— He ya he ya hey hey ooaaaah. — Seu amigo juntou-se a ele.
Contemplei-os no espelho retrovisor. Eles cantavam de olhos fechados,
balançando a cabeça a cada compasso. De olho na estrada, diminuí a velocidade,
por causa de ura coelho que a atravessava.
— Heya heyah oooooah, sou um cowboy solitário, heya heya oooooah.
Fiquei espantada com a inclusão daquela frase. Notei, pelo espelho, que o índio
com a mackinaw continuava a cantar. Seus olhos cruzaram com os meus eu
corei.
De repente um pássaro, cujas asas tinham uma enorme envergadura,
surgiu bem diante do carro. Dei uma guinada, mas o pássaro desviou-se e logo já
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não se via mais. Os índios, no mesmo instante, aumentaram o volume de sua
cantilena e, de repente, pararam.
Olhei ao redor, à procura de uma casa ou até mesmo de uma trilha. Não
havia nada, a não ser a vastidão da pradaria. Encostei o carro no meio-fio e
parei.
— Têm certeza de que querem descer aqui?
— Sim — disse o rapaz de mackinaw, sem me encarar, enquanto eu abria
a porta. Uma lufada de ar frio nos envolveu. Era estranho, pois eu não havia
notado que ventava.
— Boa viagem — disse o rapaz de jaqueta. Lançou-me um olhar
penetrante, por cima do ombro, e afastou-se com seu amigo. Os dois
desapareceram rapidamente por detrás de uma colina baixa.
De volta à estrada, notei sombras gigantescas de nuvens que se fundiam e
deslizavam lentamente, como fantasmas, refletindo-se na pradaria. Olhei aquelas
massas azuladas que avançavam, assumiam novas formas e continuavam a
avançar. Seu bordos eram bem definidos, eletrizados. As sombras escondiam as
coisas de mim, provocando-me. Via surgir a distância um pequeno bosque de
choupos, que desaparecia e voltava a surgir, à medida que as colinas se
expandiam. Não havia o menor sinal de vida humana e eu tinha pressa de chegar
a Crowley, mas continuei guiando durante um tempo imenso, que me pareceu
horas, até finalmente chegar lá. O mapa indicava que tudo terminava ali.
Havia cinco ou seis casas e, em cima da porta de uma delas, uma tabuleta,
com os seguintes dizeres: Armazém e Posto de Trocas/Crowley. Uma índia e
duas crianças saíram dela, batendo com força uma porta com tela. Estacionei o
carro entre uma pick-up desconjuntada, que puxava uma carroceria repleta de
cavalos, e outra pick-up mais nova, lotada de crianças morenas, de rostos
arredondados, que comiam bolo. Elas olharam-me, deram risadinhas abafadas e
encheram suas bocas de chocolate e migalhas de bolo. Saí do carro enquanto
mais uma pick-up que também transportava cavalos chegava, em meio a uma
nuvem de poeira. Um índio, vestido como um cowboy, saiu dela. Era corpulento
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e devia pesar uns cem quilos ou mais.
— Hei, moça, veio assistir ao rodeio? — perguntou.
— Não. Nem sabia que ia haver rodeio.
— Pois bem, agora sabe — ele disse, sorrindo. — Venha com a gente!
Vamos seguir estrada afora, até o escurecer.
— Obrigada, mas estou procurando uma pessoa amiga. — No que me
dizia respeito, achava melhor não me envolver com qualquer outro assunto que
não aquele que me levara até lá.
— Ah, é? E quem poderá ser? — ele perguntou, tomando um gole de
cerveja em lata.
— Estou procurando uma mulher chamada Ruby-Muitos-Chefes. — A
poeira, carregada pelo vento, entrou em meus olhos. Esfreguei-os e espirrei.
— Nunca ouvi falar dela. Tem certeza de que está na reserva certa? — Ele
me olhou de um jeito esquisito. — Bem, a gente se cruza — disse, levando a
mão à aba do chapéu e entrando no armazém. Segui-o, mas antes bati os pés, a
fim de me livrar da poeira.
O armazém estava repleto de latas de conservas, pneus, óleo lubrificante,
caixas de bolo, correias de ventilador e revistas. Dezenas de papéis, pregados
por taxas num quadro de avisos, agitavam-se com um ruído seco, devido à porta
que abria e fechava toda hora. No fundo do armazém havia um refrigerador de
sorvetes, repleto de caixas de leite e diversos tipos de refrigerantes. Pacotes de
batatinhas fritas e outros acompanhamentos para drinques lotavam as prateleiras.
Um par de olhos castanhos, no centro daquele caos, me inspecionava com frieza.
— Precisa de ajuda? — perguntou o proprietário em voz alta. Levei um
susto.
— Não.
Olhei rapidamente ao redor e, resignada, tirei de uma prateleira três
pacotes de batatinhas fritas.
— Esta moça está procurando uma mulher chamada Ruby-Muitos-Chefes
— disse o índio corpulento.
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O dono do armazém não deu a menor demonstração de que a conhecia. Os
poucos índios, que ali se encontravam e que até então estudavam meus menores
movimentos, desviaram o olhar. Remexi na bolsa, à procura de dinheiro,
enquanto o dono servia silenciosamente três crianças e o índio corpulento. O
comerciante olhou para frente e respondeu sem me encarar.
— Ela morava perto da estrada, depois que a gente passa o Museu do
Índio. Acho que andava também pela Black Mesa. — E continuou a contar o
troco para o índio.
— E não sabe onde se encontra agora?
— Hei, Emmet, você sabe onde Ruby mora?
— Sei, sim... Morava perto da estrada, mas mudou-se faz um ano —
respondeu o homem que estava nos fundos do armazém.
— Desista. Vamos para o rodeio — disse-me o índio corpulento.
— Quem sabe numa outra ocasião...
Ele deu de ombros e retirou-se, batendo a porta. A poeira invadiu tudo.
— Por favor — insisti. — Hyemeyohsts Tempestade disse que eu poderia
perguntar a qualquer morador de Crowley como faço para encontrar Ruby-
Muitos-Chefes e que eles me informariam.
O homem abriu um sorriso e cuspiu no assoalho o fumo que mascava.
— Você pode continuar seguindo a picada — é assim que chamamos a
estrada asfaltada — mais uns nove quilômetros. Dobre a esquerda, siga a
estradinha de terra, logo depois da ponte, e vá em frente durante uns seis
quilômetros. Será fácil localizar a cabana. Fica à direita. Não vai me pagar as
batatinhas?
Acertei a conta e retirei-me rapidamente. A porta fechou-se ruidosamente,
impelida pelo vento. Entrei no carro e, ao segurar a direção, senti as mãos muito
sujas. Depois de verificar o tanque de gasolina e os quilômetros percorridos,
peguei novamente a estrada, em direção à cabana de Ruby-Muitos-Chefes,
mastigando as batatinhas.
Percorri os nove quilômetros indicados e notei a estrada de terra, que
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serpenteava para a esquerda, além de uma colina. Estava toda esburacada. O
carro pulava, derrapava e eu ia a vinte quilômetros por hora. O vento já não
soprava e juntara tanta poeira no pára-brisa que eu tive de parar duas vezes, a
fim de limpá-lo. Vi então a cabana, entre pedras e árvores, a meio quilômetro de
distância, mas não havia o menor sinal de vida, a não ser um gavião de cauda
vermelha, que voava em círculos.
Assim que me aproximei da cabana, simples e quadrada, diminuí a
velocidade do carro, quase parando. Na varanda havia um grande animal de pêlo
castanho, que não se mexia e, ao chegar mais perto, notei que se tratava de dois
veados. Assim que abri a porta e desci, uma velha índia com um enorme facão
saiu pela porta da frente e ficou parada. A lâmina do facão brilhava e eu gelei de
medo, sem conseguir dar um passo.
A mulher usava uma comprida saia de lã e um mackinaw vermelho e
preto. Seu comprido cabelo grisalho, puxado para trás, formava uma única
trança e o rosto moreno era marcado pelas rugas. Ela enrolou as mangas e
continuava a empunhar o facão, com um gesto ameaçador.
— Você é Ruby-Muitos-Chefes? — gaguejei.
— Sim. — Ela deu um passo em minha direção, apontando-me o facão.
Parecia irritada com minha presença.
— Foi Hyemeyohsts Tempestade quem me enviou. Disse que você
poderia me ajudar a encontrar Agnes Alce-Que-Assovia. — Eu recuara até o
carro, pronta para bater em retirada o mais rápido possível e estava quase
gritando.
— Sim, eu sei.
Minha aparência devia ser absurda e eu podia muito bem imaginá-la: uma
loira enlouquecida, coberta de graxa, poeira e migalhas de batatinha frita.
— Posso entrar e tomar uma xícara de chá? — pedi. Dei um passo em
direção à varanda.
Ruby consentiu, deu-me as costas e entrou. Presumi que deveria segui-la,
mas parei na varanda e olhei os veados mortos. Nesse exato momento Ruby
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voltou e parou na minha frente, com mais um facão. Como o outro, era um facão
de açougueiro. Seus olhos, ancestrais, inusitados, tinham o brilho próprio do
olhar de uma menina jovem e impaciente. Apontou-me o facão e ordenou que a
ajudasse a cortar os veados.
— Mais tarde falo de sua viagem — disse. — E conversaremos também
sobre o cesto de casamento. — Ruby agarrou meu braço com a força de um
homem. — Vamos trabalhar, rápido.
Eu estava horrorizada. Ela estendeu-me o facão, exprimindo-se com
aspereza.
— Faça tudo o que eu fizer e depressa, antes que os bichos comecem a
endurecer.
Os dois veados estavam deitados de lado. Ruby ajoelhou-se, os colocou
numa posição melhor e voltou-se para mim, empunhando o facão e indicando
que eu deveria ir em frente. Começou a cortar as patas traseiras. Ergui o facão e
fiz uma incisão na beirada do casco. Ao ver o sangue e ouvir o barulho
indescritível da carne sendo cortada, as lágrimas começaram a descer. Prossegui,
tentando imitar Ruby. Inicialmente meus cortes não eram suficientemente
profundos, mas acabei perdendo a paciência e enfiei o facão através dos ossos.
Dei um golpe e o casco do bicho se separou. Tive vontade de gritar.
Agora a velha agia sem pressa e começava a talhar por debaixo da pele,
do interior das pernas até a barriga. Parecia possuída de um júbilo maníaco,
diante daquela carnificina, e vigiava para que eu a imitasse. Fiz o que pude, até
afastar de todo a pele de cada perna. Quando Ruby virou o veado para o outro
lado, eu, a muito custo, consegui fazer o mesmo. Estava toda respingada de
sangue; minhas mãos e o facão tornaram-se pegajosos. De repente Ruby
destripou seu veado com tamanha destreza que a massa de tripas ensangüentadas
espalhou-se pela varanda antes que tivesse tempo de me preparar para a olhar.
Enfiei o facão no meu veado, bem fundo e com os olhos cerrados. Então espiei
os intestinos. Lá estava um feto e o leite corria das tetas da mãe. Senti ondas e
mais ondas de ânsia de vômito. Recuei e voltei a fechar os olhos. Já não
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percebia a cabana e o decorrer silencioso do tempo. Minha confusão aumentou,
devido à súbita escuridão.
Não sei dizer quanto tempo se passou, mas, ao abrir os olhos, estava de
pé, ao lado daquelas carcaças mutiladas, fragmentadas. De Ruby não havia o
menor sinal.
Ela saiu da cabana, espalhou folhas de jornal pelo chão, entre os animais,
e voltou-se novamente para seu veado, desta vez cortando o fígado, os rins e o
coração. Jogou o fígado e os rins no chão e ergueu o coração, ainda quente.
— Bom — disse, com o sangue ainda escorrendo e pingando dos dedos.
— Agora é sua vez.
Engoli em seco, aterrorizada.
— Vamos!
Consegui extrair cada um dos órgãos. Minha jaqueta e o jeans estavam
encharcados de sangue. Enquanto cortava o coração, Ruby levantou-se,
voltando-se para o oriente e levantando o coração do seu veado para o céu que
escurecia. Começou a cantar na língua cree. Seu canto encheu meu coração e eu
contemplei a lua resplandecente e o despojado céu de primavera. Ruby voltou-se
lentamente para mim, ainda cantando, com um brilho no olhar.
— Hey eeeh keyyeek. — A canção parou, fez-se um silêncio proposital e
então ela deu uma explicação. — É a canção do relâmpago e serve para
reconfortar o espírito do veado.
Ruby cortou um pedaço do coração do veado, começou a comê-lo e
indicou com o facão que eu deveria fazer o mesmo.
— Oh, não! — gemi.
Cravei o facão no coração e levei à boca um pedacinho da carne quente e
rija. Mastiguei, senti náuseas, com a boca cheia de sangue.
— Ho... — ela exclamou, balançando a cabeça, em sinal de aprovação.
Recomeçamos nosso trabalho. Esfolamos os bichos e enrolamos as peles.
Os enormes olhos dos veados brilhavam ao luar, mas agora eu já não me
importava com mais nada.
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Seguindo as instruções de Ruby, decepei a cabeça, cortei os flancos e o
lombo, jogando cada pedaço numa caixa de papelão. Enchemos quatro caixas
com carne empapada de sangue e Ruby jogou as tripas para vários cachorros que
tinham vindo farejar. Eles atiraram-se sobre elas, rosnando, e as dilaceraram.
Afastaram-se, mostrando os dentes e arrastando compridas alças de intestinos.
Senti-me aliviada quando a carnificina chegou ao fim. Estava tão exausta
e entorpecida que a única coisa que desejava era dormir. Ruby levou para dentro
uma caixa de carne fresca e voltou, à procura de outra. Fiquei intrigada,
querendo saber quando ela me convidaria para entrar, mas ela retirou todas as
caixas e não voltou. Com o punho envolto por uma crosta de sangue, bati
timidamente à porta.
— O que foi? — ela perguntou, abrindo.
— Tenho de lavar as mãos. Posso entrar? Preciso de um lugar para
dormir.
— Lave amanhã cedo. — Ela bateu a porta na minha cara.
— Espere aí! — gritei. — Onde vou dormir?
— Durma no carro, wasichu — ela disse com brutalidade. Não era
possível que ela esperasse que eu fizesse aquilo! Olhei ao redor, à procura de
uma torneira ou algo parecido.
Aguardei por vários minutos, diante da porta, até me dar conta de que
teria de dormir no carro. Fui até ele, a muito custo, e tentei acomodar-me da
melhor forma possível no banco de trás. Ouvi o urro de um animal selvagem e
tranquei as portas. Não consegui dormir muito.
Despertei pela manhã e Ruby batia na janela. A velha segurava um caneco
de alumínio e dois grandes pedaços de carne de veado seca. Abri a porta do
carro e peguei-as. Estava sonolenta demais e só consegui fazer um gesto com a
cabeça, indicando minha gratidão. O caneco estava cheio de um líquido amargo,
com cheiro de café.
Após alimentar-me fui até a cabana. Notei que a cabeça do veado tinha
sido comida em parte. Os cascos e outras partes não se encontravam mais lá e o
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sangue fora lavado — ou lambido. Ruby saiu, carregando uma machadinha, foi
até um feixe de lenha, ao lado da cabana, e começou a cortá-lo, ignorando-me.
Lembrei-me da manta e do fumo, no porta-mala do carro. Peguei-os,
caminhei até Ruby e os dei a ela.
— Ruby, vim até aqui de muito longe. Percebo que sou uma intrusa e
pouco bem-vinda.
Ruby continuou a lenhar.
— Por favor, aceite esta manta e o fumo. Preciso de sua ajuda. Já lhe disse
que estou tentando encontrar o cesto de casamento. Sabe onde mora Agnes
Alce-Que-Assovia?
— Sei, sim — ela disse, quebrando um galho no joelho. Ela pegou a
manta, os maços de cigarro, colocou-os sobre a pilha de lenha e voltou-se
lentamente para mim. — Mora a catorze quilômetros daqui. A trilha segue na
direção do leste. — Ruby tirou um cigarro da carteira e o acendeu. — Não tem
outro jeito de chegar lá a não ser a pé, mas, se eu fosse você, não faria isso
enquanto meus cachorros não se acostumassem com seu cheiro.
— Seus cachorros?
— Sim, os bichos da reserva são muito bravos, quase selvagens. Mataram
mais de um homem e até várias crianças. A maior parte do tempo estão fora,
caçando. Juntam-se em matilhas e correm, cobrindo vários quilômetros. Sei que
mataram muitos veados e, de vez em quando, voltam-se contra seus
semelhantes. Ninguém consegue enfrentá-los. Você precisa se apresentar e eles
têm de te conhecer, antes que você comece a bater as pernas por aí. Os cachorros
são mais perigosos do que você pode imaginar.
— E o que tenho de fazer? Agradá-los?
— Vou chamá-los e você não pode fazer o menor movimento. Não
demonstre nenhum medo, caso contrário isso pode ser seu fim. Acho que eu não
conseguiria apartar a cachorrada, se você fizesse um gesto que não devia e eles a
atacassem.
— Mas será que pode acontecer alguma coisa comigo?
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Ruby não respondeu e deu um assovio agudo. Trinta cachorros ou mais,
de todos os tamanhos, formas e cores, vieram correndo dos quatro cantos e
começaram a andar em círculo. Notaram que não havia nenhuma comida à sua
disposição e um bicho enorme, preto e feio, rosnou e latiu. Em seguida todos os
cachorros começaram a latir, rosnar e mostrar os dentes. Ruby carregou um
feixe de lenha para dentro da cabana.
— Espere! — tentei murmurar.
Sabia que se algum dos cachorros iniciasse uma reação em cadeia, eu
seria estraçalhada. Tinha de expulsar o medo de minha mente. Aos poucos eles
se aproximaram ainda mais, farejando, arquejando e tornando-se mais atrevidos.
Controlei o ímpeto de gritar. Vários focinhos frios se meteram por debaixo das
bainhas do jeans. O grande cachorro preto ergueu-se, apoiou as patas no meu
peito e lambeu-me o rosto. Um outro quis fazer o mesmo nas minhas costas e
mais outro começou a morder de leve minha bota. Dominei o impulso de sair
correndo.
Ruby saiu para a varanda e ficou olhando, sem nada fazer.
— Fora daqui, já! — gritou finalmente. Os cachorros bateram em retirada,
assustados.
— Agora eles te conhecem bem.
Meus olhos estavam cheios de lágrimas e os joelhos se dobravam. Agora
que a provação chegara ao fim, meu corpo tremia.
— Esses cachorros não te incomodarão. Levante as mãos para o céu! —
disse Ruby e havia uma expressão estranha em seu olhar. — Pode andar pela
região e ir onde quiser. Sem conhecer os cachorros você corria um grande risco.
Agora tem uma chance de chegar à casa de Agnes; antes, nem pensar.
Meus punhos estavam tão cerrados que percebi que impedia a circulação.
— Sim — eu disse.
— Siga seu caminho, wasichu. Talvez encontre o que está procurando.
Tome. — Ela me estendeu três nacos de carne-seca e eu os peguei. Ruby
afastou-se, rindo. — O cesto de casamento! A wasichu não sabe de nada.
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Fiquei parada que nem uma tonta, segurando a carne, e fui até o carro,
retirando algumas coisas que me serviriam durante a caminhada até o lugar onde
Agnes vivia.
Afastei-me da cabana de Ruby e segui a trilha. Catorze quilômetros não
era uma distância tão grande assim. Levava amarrado na cintura um casaco curto
e um suéter na bolsa a tiracolo.
O capim ainda estava coberto de orvalho. Rodeei as pedras por detrás da
cabana de Ruby e um vale, amplo e tranqüilo, surgiu diante de mim. O capim
era muito verde e as poucas árvores estavam carregadas de flores, pois era
primavera. Um regato serpenteava junto à trilha. Fiz alguns exercícios de
estiramento, a fim de aliviar as cãibras que sentia nas costas, tentando não
pensar mais naqueles cães ferozes. Comecei então a percorrer lentamente a trilha
e cheguei quase ao fim do vale, a uns três ou quatro quilômetros de distância.
Andei por um bom tempo e os corvos pairavam no céu. Detive-me perto de uma
pequena lagoa, onde o regato se alargava, e me deitei numa pedra grande e
plana, quente de sol. Comi um pedaço de carne-seca e fiquei sonolenta, ao
encarar os grandes chumaços de nuvens. Esquilos brincavam numa árvore, logo
adiante, e seu chilreio interrompia o silêncio que pesava. Respirei fundo,
contente por levar ar puro aos pulmões.
Deitei-me de bruços e introduzi um dedo no lago, que refletia minha
imagem. Pequenos círculos se ampliaram, a partir do centro. Não tinha a menor
idéia do que me levava a seguir aquela obsessão. Uma vaga sensação, misto de
temor e expectativa, ainda estava presente, e se instalara a partir do momento em
que contemplei aquela foto. Sabia que penetrava em território pouco conhecido.
Olhei para a água, tépida e convidativa.
— Por que não? — Afinal de contas, precisava de um banho.
Despi-me e entrei na água límpida. Fiquei submersa até o pescoço,
sentada na pedra coberta de musgo. Num estado de quase torpor, entreti-me,
olhando os reflexos da luz na superfície do laguinho.
Não sei quanto tempo permaneci lá, quase flutuando, mas uma rajada de
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vento frio despertou-me rapidamente. Nuvens negras, que se juntavam,
encobriram o sol. Quando tentei me levantar, meu pé escorregou no musgo.
Agarrei-me na saliência de um rochedo, atrás de mim, percebi que estava tonta,
desorientada e chapinhei na água, que se tornara escura, refletindo o céu.
Comecei a nadar, com a intenção de sair da água. Voltei a escorregar e,
cambaleando, caí para a frente, batendo com o rosto na pedra. Meu nariz
começou a sangrar. Dei braçadas desordenadas e saí do laguinho, tão tonta que
mal consegui encontrar minhas roupas. Aos poucos a tontura foi passando e,
com meu suéter branco, tentei limpar o sangue. Nele via-se agora uma longa
estria vermelha. Ouvi trovoada a distância e estava ficando escuro. Comecei a
correr lentamente, poupando minhas forças ou o que sobrava delas. A trilha
percorria uma colina baixa e elevava-se, seguindo um platô. Era penoso segui-la.
Trovejava sem parar e distingui rostos negros, gigantescos, nas nuvens.
Eu tinha plena consciência do ar que tomava, como se alguém estivesse
respirando por mim. Senti que estava sendo vigiada. Finalmente as vi. As pegas,
que até então voavam, agora empoleiravam-se numa árvore pouco adiante, na
beira da trilha. Olhos negros e opacos me seguiam, enquanto eu corria. Eram
fantasmagóricos, agressivos. Redobrei meus esforços e prossegui em direção a
um vasto canyon. A chuva precipitava-se no horizonte, cinza como ardósia. Um
vento frio soprou por entre as rochas, vindo do norte. Cobri a cabeça com o
capuz do casaco, fechei-o com o zíper e prossegui em marcha batida. De repente
a trilha estreitou-se e desapareceu. Desanimada, sentei-me no chão e apoiei a
cabeça nas mãos.
Meu coração batia descompassadamente e minha boca secou. Um corvo
passou, grasnando. Eu me sentia apavorada, mas havia algo dentro de mim que
impelia em direção a meu sonho. Levantei-me, a fim de me orientar. Olhei por
entre o canyon, ladeado por altos rochedos. Um riacho corria por seu centro e eu
decidi que, se aquilo fosse uma pista, valeria a pena segui-lo. Sentia-me
indignada, pois Ruby sabiá que a trilha não levava a lugar algum. Ela, porém,
me recomendara andar em direção ao oriente e o canyon seguia aquela trajetória.
42
Fui em frente, pisando no capim que cobria o solo.
Percorri o canyon inteiro e a chuva ainda ameaçava. Agora as colinas
pareciam desoladas, envoltas em seu manto cinza. Então, quase sem perceber,
meus pés sentiram uma vereda. Graças a Deus! Começou a chuviscar e eu corri,
sentindo-me à beira da exaustão completa. Perdera todo senso de tempo e tinha a
impressão de estar parada, embora sabendo que percorrera mais de doze
quilômetros.
A chuva começou a cair torrencialmente no momento em que me
aproximei de algumas árvores e grandes rochas. Parei, exausta. Distingui a
forma de uma cabana, que mal se percebia, em cima de um pequeno platô.
Acaso pertenceria a Agnes Alce-Que-Assovia? Não me importava, a tal ponto
me sentia cansada, encharcada e aterrorizada. Não havia o menor sinal de vida,
não se via nenhum animal ou pessoa. Empunhei um grande pau e na outra mão
carreguei uma pedra, caso tivesse de enfrentar cachorros, conforme Ruby
dissera. Aproximei-me da cabana, atravessei o alpendre muito precário e bati à
porta. Nenhuma resposta! Bati mais uma vez, desesperada, e então a porta se
abriu. Não havia ninguém lá dentro. Num canto via-se uma cama, coberta com
uma manta indiana. O desenho parecia ser da região das Duas Colinas Cinzas e
surpreendi-me pensando se poderia comprá-la e se aquela era, de fato, a cabana
de Agnes.
Lamparinas de querosene estavam no parapeito da janela.
Uma grande bacia esmaltada de azul encontrava-se em cima de um tosco
balcão de madeira, próximo de um fogão de lenha. Maços de ervas pendiam nas
paredes de troncos de árvores. Aqui e ali viam-se pedaços de papelão, pregados
na parede, para aquecer a cabana. Para isso servia até mesmo uma pequena
tabuleta de anúncio de Coca-Cola. Aos pés da cama havia um modesto
armarinho, cujo tampo era coberto de veludo negro, sobre o qual estava pintada
a figura de uma dançarina espanhola. Era, sem dúvida de procedência mexicana.
Junto dele viam-se chocalhos, feitos de cascos de veados, e uma asa de coruja.
Notei duas maçãs em cima de uma mesa de madeira cinza, no centro da sala,
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bem como três cadeiras.
Sentei-me e comi vorazmente uma maçã. A chuva tamborilava no teto de
zinco que cobria a cabana. Nunca, em toda minha vida, estivera sozinha num
lugar tão isolado. Fechei a porta da frente, pois a sala estava ficando gelada. As
sombras da noite avançavam, amedrontando-me. Comecei a movimentar-me,
fazendo barulho, a fim de me ouvir, e falei sozinha, enquanto acendia a
lamparina de querosene e tentava, sem o menor sucesso, ativar o fogão de lenha.
Meu corpo já não obedecia. Comi um naco de carne-seca e, morta de frio,
desesperada, peguei um velho saco de dormir, que vira num canto, e estendi
sobre a cama. Estava manchado de óleo e tinha um revestimento de flanela,
estampado com figuras de Mickey Mouse, azuis e cor-de-rosa. Despi as roupas
ensopadas e, quando começava a entrar no saco de dormir, senti uma vontade
enorme de urinar.
Gemendo, pus o casado de lã, as botas e, a muito custo, abri a porta da
frente. Um relâmpago iluminou o alpendre e vi que estava vazio. Sai, desci a
escada e agachei-me no capim molhado. Chovia a cântaros e, por razões de
segurança, agarrei-me num dos degraus. Voltei rapidamente para dentro e fechei
a porta. Agora estava molhada de verdade. Despi-me mais uma vez, deitei-me
sem hesitar, tremendo da cabeça aos pés, e apaguei a lamparina de querosene.
Tinha parado de chover e agora o silêncio se tornara excessivo. Fiquei dura
como um pau na cama.
Não sei quanto tempo dormi, mas, de repente, alguém me sacudia, puxava
meus cabelos, apertava-me a garganta e gritava comigo.
— Levante! Está na hora! Levante depressa!
Abri os olhos e engoli em seco. A luz bruxuleante da vela vi um rosto que
parecia cera derretida. Não tinha certeza se era um semblante humano. Gritei e
uma mão tapou-me a boca.
— Está na hora!
Desviei o rosto, incapaz de recuperar meu equilíbrio.
— O que está acontecendo? — perguntei. — Você é Agnes Alce-Que-
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Asso via?
— Sim, você está na minha cabana. Levante e siga-me imediatamente!
Obedeci-a vestindo de qualquer jeito o jeans, o casaquinho de lã e as
botas. Com surpreendente força, Agnes empurrou-me em direção à porta. Quase
caí.
— Afinal de contas, o que você está fazendo? Agnes empurrou-me com
mais força.
— Temos de nos apressar.
Eu me sentia tão tensa e emperrada que mal conseguia caminhar, mas nos
afastamos da cabana, à luz da lua e a passos rápidos. A velha movimentava-se
como uma jovem e fomos até as pedras, por detrás da cabana. Não havia trilha
alguma. Subimos nos rochedos e contornamos penhascos que projetavam
sombras enormes, semelhantes a fantasmas. Escorreguei e caí, torci o tornozelo
e esfolei o joelho, mas Agnes agarrou minha mão e me puxou para a frente.
Acredito que mantivemos aquele ritmo enlouquecido mais de quinze minutos.
Finalmente chegamos a uma clareira, no meio das pedras. A uns cinqüenta
metros de onde estávamos erguia-se uma tenda indígena iluminada. Seu exterior
brilhava, devido ao fogo aceso do lado de dentro e a fumaça escapava pelo alto.
Era uma visão surreal. Agnes arrastou-me até a entrada.
— Nua! — exigiu.
— O quê?
— Diante das avós você tem de ficar nua.
Com inacreditável velocidade, Agnes revirou e rasgou cada palmo de
roupa que cobria meu corpo. Tentei protestar, mas ela me esbofeteou. Meus
ouvidos zumbiam e tremia de medo. Todos meus sentidos se exacerbaram,
enquanto Agnes me empurrava para dentro da tenda.
Seis índias velhas, envolvidas em mantas, estavam sentadas em torno de
uma fogueira. Um forte e pungente cheiro de fumaça pairava no ar. A luz do
reflexo avermelhado percebi que seus rostos eram ainda mais enrugados do que
o de Agnes. Atrás delas pendiam tiras, dos paus que sustentavam a tenda, bem
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como penas, cabaças e crânios de búfalo. Enfiados em montículos de terra, na
frente de quatro das velhas, havia bastões de oração.
— Sente-se — disse Agnes, empurrando-me para o chão e colocando-se à
minha direita. Eu tremia e rodeei os joelhos com os braços, a fim de cobrir os
seios.
Nos olhos que me fitavam surgiu um brilho coletivo e as sombras
projetadas pela luz das chamas dançavam nas paredes da tenda. Na minha mente
passaram imagens de covis de bruxas medievais. Depois outras imagens, estas
verdadeiramente preciosas, de belas índias ancestrais, como que saídas das
fotografias de Curtis. Agora, porém, elas zombavam, encarando-me com
desdém.
— Por que trouxe esta canibal agora, Agnes? — perguntou uma das
mulheres, num inglês sofrível. Havia maldade em sua voz e eu tive uma reação
violenta, ao ouvir a palavra canibal.
A mulher mais próxima de mim segurava um bastão comprido, que
também podia ser uma bengala, e do qual pendiam penas. Com a ponta começou
a cutucar-me, primeiro nos ombros e depois nos flancos. Outra mulher inclinou-
se e me beliscou.
— Esta menina quer percorrer o caminho que leva ao cesto de casamento
— disse Agnes.
Não ousei me mexer, diante daquela terrível investigação a que era
submetida.
— Ah! — exclamou a velha do bastão. — E por que demorou tanto tempo
para vir até aqui?
Quando me voltei para encará-la, um arrepio me percorreu inteira.
— Vim apenas comprar o cesto de casamento, se é o mesmo que vi na
foto e se não custar muito caro. — Aquela altura minha voz era apenas um
sussurro.
— Cale-se, idiota — disse Agnes.
— Mas eu apenas queria o cesto para...
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— Silêncio! Fale somente quando lhe dirigirem a palavra.
— Ela ainda não será preparada — disse a mulher do bastão. Inclinou-se e
cochichou qualquer coisa no ouvido de Agnes. As outras velhas sacudiram a
cabeça e eu me senti vítima de uma terrível conspiração.
— Você jamais conseguirá ensinar a ela — disse uma das criaturas a
Agnes.
De repente ouvi um som que só posso descrever como um cacarejo, algo
semelhante aos pios de pássaros ou à loucura. Todas as velhas começaram a me
repreender ao mesmo tempo. Era demais e percebi que estava a ponto de
enlouquecer.
— Por favor, eu só quero ver o cesto de casamento. — Fui incapaz de
reconhecer o som de minha própria voz.
A mulher do bastão encarou-me com frieza, proferindo frases que eu não
consegui entender.
— Rezaremos por você. Sonharemos por você.
Senti uma vertigem, o chão pareceu se abrir sob meus pés e caí para trás.
Agora os rostos das velhas surgiram diante de mim mais jovens e seus olhos
assemelhavam-se a espelhos. Vi a menina de meu pesadelo. Um veado estava
sentado no lugar da velha mais próxima de mim e havia também outros animais:
um lobo, um lince e certos bichos que não reconheci. A tenda começou a girar,
perdi a nitidez e desmaiei.
Acordei bem tarde, na manhã seguinte, com o cheiro da lenha que
queimava no fogão. Será que aquilo fazia parte do sonho? Por um momento não
reconheci onde me encontrava. Agnes coava o chá.
— Coma — disse. — A refeição da manhã está pronta.
Levantei-me, vesti-me e fui até a mesa. Agnes trouxe dois pratos rasos de
alumínio e os pôs diante dos lugares que ocupávamos. Sentou-se à minha frente.
Eu tremia e sentia muita fome. Lá fora, através da janela da cabana, via-se uma
luz pálida refletindo-se nas árvores. Chovia. Olhei para a comida — carne-seca
de veado, amoras selvagens, pão assado e chá de artemísia, e não consegui
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resistir. Tudo se tornara maravilhoso.
— O que aconteceu ontem à noite? Desmaiei? Como foi que voltei para
cá? — perguntei a Agnes, agora que me sentia bem.
— Coma, vamos — ela disse, apontando para meu prato. Retirou-se da
mesa e sentou-se na cama em que eu dormira. Notei que examinava com
cuidado minha jaqueta rasgada.
Deixei o vapor do chá de artemísia me aquecer o rosto. A pequena caixa
de papelão que continha a carne-seca estava coberta de sangue seco. Não me
importei, pois tudo aquilo era incrível. Continuei a comer com voracidade.
Agnes cerzia um buraco em minha jaqueta. Reuni toda a coragem que
pude e fiz uma pergunta.
— Você vai me vender o cesto de casamento?
— Lynn, você não sabe, mas se encontra numa circunstância muito
perigosa.
Agnes prosseguiu com sua tarefa, mas ergueu os olhos e sorriu. Era a
primeira vez que me tratava pelo nome.
— O que significa este cesto e por que estou tão obcecada em encontrá-
lo?
Agora Agnes parecia meiga e gentil.
— Você não entende. — Partiu a linha com os dentes, deu um nó e pôs de
lado a jaqueta. — Se não prestar atenção na feminilidade que existe dentro de
você, perecerá. Talvez um dia consiga o cesto de casamento, talvez não, mas a
escolha é sua. Terá de tomar uma decisão. Ninguém poderá tomá-la em seu
lugar, nem mesmo as avós.
Suas palavras não faziam o menor sentido, mas o tom me desconcertava.
Agnes mostrava-se tão diferente do ogre que me maltratara na véspera que
cheguei a duvidar se era a mesma pessoa. O tapa ainda doía em meu rosto. Sabia
que devia odiá-la por me ter humilhado, mas isso não acontecia. O alimento me
reconfortava e o barulho da chuva tamborilando no teto de zinco me acalmava.
— A decisão é minha? O que você quer dizer com isso? Afinal de contas,
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de que está falando? Sou colecionadora de arte.
— Você não sabe o que é. Não há explicações para o fato de ter nascido
ou por que é uma parte animada da terra. Acha que não a conheço e nada que lhe
diga respeito. Posso, porém, contar uma experiência que você teve. Nunca vi os
grandes lagos deste mundo, os oceanos. Sei, porém, que certo dia a água cobriu
você inteira. O ventre deste mundo a escolheu e lhe deu proteção. Foi um sinal
de poder para você, uma dádiva do ventre de sua mãe, a terra, e foi por isso que
as sonhadoras chegaram até você. Não há como explicar por que foi escolhida.
Para você, tudo o que restou é o conhecimento.
Dei-me conta no mesmo instante do acontecimento a que Agnes se
referia. Certa tarde em Venice, Califórnia, quando passeava pela praia, subi nas
pedras e fiquei contemplando o mar verde-turquesa. Sem nenhuma razão
aparente, a água, quando menos esperava, elevou-se a pelo menos um metro de
altura e cobriu unicamente a mim e a mais ninguém que se encontrava por perto.
Agarrei-me nas pedras, rindo, completamente ensopada, até que os salva-vidas
vieram correndo e ordenaram a todos que se retirassem do quebra-mar.
Agnes serviu mais chá de artemísia. Permanecemos em silêncio durante
vários minutos e eu tinha os mais desencontrados pensamentos.
— O cesto é o antigo caminho da mulher — ela disse com muita
suavidade.
Por razões que eu desconhecia, comecei a chorar e me lamuriei.
— Aquelas velhas malvadas! Sobretudo Ruby-Muitos-Chefes! Obrigou-
me a cortar o veado. Do jeito que veio para cima de mim com o facão, achei que
fosse enfiá-lo em mim e reduzir-me a pedaços. Uma coisa dessas jamais me
aconteceu. Não é justo! Detesto aquela velha megera.
— Não há necessidade de odiá-la — disse Agnes, interrompendo-me. —
Ela não tinha intenção de lhe fazer mal. Ruby é cega.
— Cega! — exclamei, ainda chorando. — Não. Não pode ser. Não
acredito. Oh, sinto muito!
— Nunca peça desculpas — disse Agnes com severidade. — Falarei de
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Ruby, se quiser, mas é preciso que me ouça com atenção. A história dela tem um
significado para você.
— Quem haveria de dizer que ela é cega? Conte-me o que aconteceu. —
Enxuguei a lágrimas.
— Quando Ruby tinha dezesseis anos, ia se casar com Stuart Corre-Para-
Trás. Era um homem muito bom, mas isso aconteceu há muito tempo. Ele já
morreu. Ela morava com o avô. Certo dia, quando ele estava caçando animais
com armadilhas e Ruby permaneceu em casa, ela ouviu um barulho estrondoso.
Era uma época anterior aos carros, quando todo mundo tinha carroças ou andava
a cavalo. O barulho aumentou cada vez mais, ela olhou pela janela e viu um
carroça de lata, sem cavalos, e que soltava fumaça pela frente. Quatro
agrimensores do governo estavam parados junto à carroça, discutindo. Um deles
aproximou-se da cabana e bateu na porta. Ruby ficou com medo. Até então, não
tinha visto muitos brancos. Eles estavam vestidos de um jeito engraçado e dois
deles carregavam pistolas. O homem que batia na porta gritava sem parar.
Finalmente empurrou a porta com tanta força que a junta de couro arrebentou e a
porta caiu. Ele viu Ruby parada, perto da janela, e acho que ficou muito
espantado ao notar uma jovem tão bela. Talvez pensasse que na cabana vivia um
velho surdo. Aproximou-se, agarrou-a pelo braço e disse palavras obscenas.
Ruby não entendeu, mas sentiu-se envergonhada. Os outros três homens
entraram e Ruby percebeu então que a situação era grave. Sabia que aqueles
wasichu iriam violentá-la e tentou pular a janela. Alguém esbofeteou-a, jogando-
a num canto. Um daqueles homens era grandalhão. Tirou o cinto, passou-o em
torno do pescoço dela e puxou-a para a cama, rasgando toda sua roupa. Ruby
suplicou, implorou, mas eles não lhe deram ouvidos. Ela começou a gritar e a
debater-se. Conseguiu livrar-se do cinto e pegou um pedaço de lenha. A briga
foi pra valer e acho que aqueles quatro ficaram surpreendidos de fato.
Zangaram-se, espancaram-na, mas não estavam satisfeitos. Então, um de cada
vez violentou-a.
Agnes calou-se por alguns instantes. Depois prosseguiu com voz pausada:
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— Daí ficaram pensando se deveriam matá-la. Muita gente comentou que
teria sido preferível Ruby morrer a enfrentar o que lhe aconteceu depois. Um
dos homens quis lhe dar dinheiro, para que não contasse que tinha sido
violentada. Sabiam que teriam muita complicação pela frente, porque ela era
índia, além do quê, isso causaria muito constrangimento para suas famílias
brancas. Não tinham coragem suficiente para matá-la e então pegaram um
compasso que usavam para traçar seus mapas. Eles queriam ter certeza de que
Ruby não iria identificá-los. Antes de partirem, cegaram-na.
Levei um susto, mas procurei conter a emoção.
— Quando o avô de Ruby voltou para casa e viu o que tinha acontecido,
serviu-lhe um caldo e juntou algumas ervas para curá-la. Em breve ela recuperou
suas forças, mas a única coisa que fazia era ficar na cabana, sujando-se,
recusando-se a aprender a cuidar de si. Chegou até mesmo a pedir ao avô que a
matasse, mas o velho bateu nela e disse que não admitia tamanha auto-
indulgência. Disse que lhe tinha sido dado um inimigo excepcional, a cegueira.
Ruby respondeu que pouco lhe importava, pois queria morrer. Sua beleza fora
estragada, bem como sua oportunidade de levar uma vida feliz. Ela, porém, tinha
sorte, pois seu avô era um curandeiro e não tão velho assim. Vinha aprendendo
há muito tempo e era muito poderoso.
A voz de Agnes tinha um tom carregado.
— Disse a Ruby que a vontade dela estava adormecida e que ele teria de
despertar seu desejo. Começou agindo com muita bondade, mas a submeteu a
várias provas. Ele a fez tropeçar e cair, entregou-lhe utensílios que queimavam
os dedos e pôs em seu prato coisas que não podiam ser comidas. Provocava-a,
despertava sua raiva, até perceber que o desejo dela começava a reagir. Ruby
sentiu uma grande mágoa. Achava que seu avô já não a amava mais. Durante
esse tempo todo ele sentava fora da cabana, à luz do luar, cantando canções e
solicitando orientação, para que Ruby pudesse tornar-se uma pessoa íntegra. O
tempo passou e, certa noite, ele viu a fêmea de um racoon com seus filhotes. Era
o sinal para enviá-la para o norte, o sinal que ele aguardava. Os sautoux que
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moravam lá nada sabiam a respeito dos brancos. Seu poder não lhes tinha sido
roubado, não precisavam escondê-lo. Eram grandes curandeiros e suas danças
ainda possuíam magia. Como disse, isso aconteceu há muito tempo.
Eu não conseguia tirar os olhos de Agnes.
— Havia um curandeiro chamado Quatro-Veados, a quem os próprios
sautoux temiam. Ele foi morar numa montanha elevada, de onde podia
contemplar toda a aldeia. Diziam que Quatro-Veados tinha o poder de devolver
a vida aos mortos e que tirava esse poder das mulheres que não o viam. Até
mesmo eu não entendo essa cura. Os sautoux fizeram Ruby subir a montanha,
mas ninguém quis acompanhá-la. Tinham muito medo de Quatro-Veados. Ela
caiu muitas vezes, arranhou-se e machucou-se. O curandeiro a via, não dizia
nada, mas, de certo modo, ela o sentia, e algo a impelia montanha acima, na
direção dele. Quando chegou lá Quatro-Veados ria. Ruby perguntou-lhe o que
deveria fazer. Ele respondeu que só tinha um modo de ajudá-la. Ela sempre seria
cega, mas ele a tornaria uma pessoa completa, se a matasse e fizesse sua poção
agir dentro de sua morte. Então retiraria o poder das mulheres que não o viam e
lhe devolveria a vida. Depois disso ela precisaria aprender com as mulheres
sautoux tudo a respeito da cura através dos veados, Teria de comer um caldo
feito de patas de veado e, a partir daí, só poderia alimentar-se com carne desse
animal, caso contrário morreria.
Agnes calou-se por alguns instantes, o olhar perdido no horizonte.
— Quatro-Veados construiu uma plataforma, fez Ruby deitar-se nela,
pegou o canudo de um cachimbo e soprou veneno em seus ouvidos, Ela morreu
e seu espírito foi para o local onde se reuniam aqueles que tinham acabado de
partir desse mundo. Quatro-Veados preparou sua poção, refez algo no corpo de
Ruby e invocou o poder das mulheres que não conseguiam enxergá-lo, para que
esse poder trouxesse a jovem de volta. Isso levou muitos dias. Enfiou então na
boca de Ruby algo que ela me disse ser muito frio. E despertou, muito doente,
ficando num estado muito estranho. Quatro-Veados a fez usar a energia gerada
por esse estado, para que ela sentisse em todas as direções. Através do controle
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dessa energia, passou-lhe muitos ensinamentos.
Eu não conseguia dizer nada. Apenas ouvia tudo, fascinada,
— Agora Ruby é cega, mas enxerga mais do que qualquer pessoa. Quatro-
Veados conduziu-a para o centro desse círculo aparentemente violento e
ensinou-a como se tranqüilizar. Ela sempre verá, pois está sempre no centro. O
curandeiro disse-lhe que fosse em primeiro lugar procurar as mulheres de
sautoux e, em seguida, voltasse para junto de seu avô, que a faria conhecer
muita coisa, através de seus cânticos. Ruby é uma mulher que cura. Não existe
ninguém que saiba mais do que ela a cura através dos veados. Quatro-Veados e
aquelas mulheres sautoux ensinaram-lhe tudo, Espero que ela revele essa cura,
pois há muita gente que precisa dela.
Enquanto Agnes falava, senti que observava minhas reações.
— Não estou falando de Ruby para entretê-la. Conto tudo isso para
instruí-la. Sou uma curandeira. Vivo no além e dele volto. Você foi lá comigo,
ontem à noite. Está sendo iniciada num conhecimento tão antigo quanto o
tempo. As sonhadoras a tocaram. De vez em quando você pode olhar por cima
do ombro e não prestar atenção. Pode escolher ser cega ou então seguir seu
destino.
O semblante de Agnes revelava uma grande paciência. Começou a
despontar lentamente em mim a consciência de que eu estava sendo atraída por
uma força situada além de minha compreensão. Principiei a examinar melhor os
acontecimentos dos últimos meses. Recostei-me na cadeira, sentindo-me pesada,
paralisada. Ocorreu-me que não se tratava de uma situação de possessão, mas
que, ao ser escolhida, também escolhia. A cada mudança repentina, a cada
terror, me fixava cada vez mais no sonho com o cesto. Não ficou muito claro o
que me conduzia, se o pesadelo ou se aquela que partia à procura, mas o que
importava? Agnes devia ter percebido minha capitulação, pois sorriu e fez um
gesto com a cabeça. Sem dizer nada, começou a tirar a mesa. Contemplei a
madeira maltratada e as migalhas do pão assado. Minha vida estava naquelas
migalhas. Eu sabia disso, mas não me importei, Agnes tocou no meu ombro.
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— Vamos, você vai voltar para a Califórnia.
— Mas como posso voltar? Estou sem o cesto. Ainda não posso ir para
casa.
Ela vestiu uma pesada saia de lã e, com um gesto brusco, estendeu-me o
casaco.
— Vamos até a cabana de Ruby. Estou mandando você para casa.
Ela foi até um criado-mudo, pegou algo e o colocou sobre a mesa, diante
de mim. Era um brinco de chifre de veado, com uma turquesa engastada.
— Ruby me recomendou que se acaso você aparecesse por aqui eu lhe
desse este brinco. Tome. E para sua proteção.
— Proteção? Mas de quem preciso me proteger? E como é possível que
um brinco me proteja?
— Ponha-o na orelha — ela ordenou. — Não deixe homem algum tocar
nele, a não ser um heyoka, quando ele estiver no seu tempo de mulher.
Obedeci Agnes, que já ia em direção à porta. Peguei minha sacola e segui-
a.
— A mulher nasce fértil — disse, enquanto caminhávamos. — O homem
tem de ser fertilizado pela mulher. Alguns conseguem isso através de plantas ou
de outros meios. Existem segredos que não lhe posso revelar.
Seguimos a trilha em direção ao oeste, enquanto Agnes falava.
— Há diferentes espécies de força no mundo. Esses poderes podem matá-
la facilmente ou fazê-la preferir que estivesse morta. Quando decidir obter o
cesto de casamento, em oposição a todas as forças que sempre existiram, você
necessitará de coragem e força de vontade. O brinco a ajudará a cruzar a
fronteira que separa seu mundo do meu.
Agnes fez um gesto impaciente, incitando-me a andar mais depressa. Eu
sentia dificuldade em seguir seu passo sem correr.
— As coisas que, no passado, a ajudaram em seu mundo — cartões de
crédito, carro, as roupas que usa —, tudo isso aqui não é prático e não a ajudará.
O ar estava fresco e o cheiro bom da terra molhada me fazia bem.
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Percorremos quase um quilômetro e meio em silêncio. A imagem daquela tenda
índia iluminada no meio da noite continuava a me intrigar, bem como a palavra
canibal, que uma das velhas empregara. Finalmente arrisquei uma pergunta.
— Agnes, o que elas queriam dizer quando me chamaram de canibal
ontem à noite?
Agnes sorriu. Sem deixar de caminhar, tirou um naco fino de carne-seca
do bolso da saia e o aproximou de minha boca, indicando que eu deveria comer.
Mordi um pedaço, embora não tivesse fome e fosse difícil mastigá-lo.
Chegamos ao lugar onde a trilha terminava e começava o canyon. As
flores abriam-se, após a chuva. Suas cores eram vibrantes e elas se balançavam,
tangidas pelo vento suave.
— Ontem à noite você visitou as avós — disse Agnes. — Elas estão se
abrindo comigo porque você foi escolhida pelas sonhadoras. As avós estão me
ajudando a ensiná-la. Penetrou naquilo que, para você, é um mundo estranho. Há
muita coisa que não compreende.
Agnes parou de repente. Agachou-se junto a um punhado de flores e
levantou a corola de uma delas, que era azul. Inclinei-me para contemplá-la.
— Quando você consegue falar com uma planta, quando sabe que ela é
viva, que tem um espírito, você come essa planta e ela se dá a você. Você
adquire o poder que está no espírito da planta. — Agnes pegou a flor e comeu-a.
— Olho para você e vejo que não entende o que estou dizendo. Nervosa, mordi
um pedaço de carne-seca.
— A carne que está comendo agora é sua irmã. Comemos nossos irmãos e
irmãs. Você é uma canibal. Sua irmã pereceu, para que você possa ter vida.
Acenei com a cabeça, indicando que compreendia, e retomamos nossa
caminhada. O canyon estava repleto de aves, cães selvagens e borboletas, todos
muito ativos, devido à primavera.
— Sim — afirmei. — Creio que compreendo até certo ponto por que você
pensa nas pessoas como canibais. Não entendo, porém, por que tive de ser tão
humilhada, isto é, por que você me deixou nua na frente de todas aquelas velhas,
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as avós.
— Para começar a dar os primeiros passos desajeitados no caminho
vermelho que leva à feminilidade, é preciso ficar nua sob todos os aspectos —
declarou Agnes.
Rodeamos a borda do canyon e vi a distância o regato e o laguinho. Notei
o amontoado de rochas e percebi mais uma vez o quanto o pequeno lago era
belo.
Agnes, mudando subitamente seu estado de espírito, me fez uma pergunta.
— Você é mulher?
— Sim.
— Você é mulher quando está nua?
— Sim.
— Tem vagina?
— Sim. — Não conseguia imaginar o que ela pretendia com aquele tipo
de interrogatório.
— Você menstrua?
— Sim.
— Não sabíamos. No mundo nativo isso é chamado de nossa lua. É o
período em que temos maior poder. Precisávamos ter certeza disso, ontem à
noite.
Corei. Percorremos em silêncio o caminho que nos levava à grande pedra
plana, junto à água. Foi um alívio descansar. Comemos mais carne-seca e
bebemos a água do regato. Deitei-me na pedra, contente, sonolenta, fechei os
olhos e bocejei.
De repente ouviu-se um barulho explosivo, como se uma espingarda
tivesse disparado.
— Acorde! — gritou Agnes. Levantei-me de um salto e olhei à minha
volta.
— Como sabe que não matarei você? — ela perguntou, deixando cair no
chão duas grandes pedras. Estava com um ar ameaçador.
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— Sente-se — disse. — Agora falaremos do cesto de casamento. Precisa
saber, para tomar conhecimento do que terá de enfrentar. Certa vez um homem
apareceu por aqui. Era apenas um homem. Seu nome era padre Pearson. Disse
que sabia tudo a respeito de dois tipos de visão. Podia olhar para cima, ver e
ouvir os espíritos bons. Em algum lugar, no interior da mãe terra, estavam os
maus espíritos. Com os dedos fez o sinal de duas trilhas, que se cruzavam, e
disse que não éramos equilibrados. Disse também que, se não começássemos a
olhar para cima, os bons espíritos nos matariam. Todo mundo, naquele tempo,
achou isso muito engraçado. O velho Coiotes-Gêmeos sentiu pena dele e
resolveu ensiná-lo. Mostrou-lhe aquilo que estava dentro da trouxa de poções de
todo mundo, mas, sempre que Coiotes-Gêmeos começava a lhe passar
ensinamentos sobre as mulheres, o padre ficava muito zangado. Coiotes-Gêmeos
disse-lhe que, se ele quisesse de fato aprender o uso do poder, teria de me
procurar e aprender comigo. Ele não gostou nada disso, mas era inteligente e
ouviu. Sem curandeiras os curandeiros não existem. Um curandeiro recebe o
poder de uma mulher e sempre foi assim. O curandeiro substitui o cachorro. Não
passa de instrumento de uma mulher. Hoje em dia não parece mais ser assim,
mas é verdade.
Ele veio até a mim, já que Coiotes-Gêmeos era meu amigo e eu o aceitei
como meu iniciado. Ele era esperto e aprendeu depressa. Sabia que estava se
apaixonando por mim, à medida que adquiria meus ensinamentos. Isso acontece
com freqüência, em se tratando dos homens. Eu não amava aquele branco e nem
sequer gostava dele. Notei, porém, que estava se tornando poderoso. Certo dia
ele confessou seu amor por mim e quis me possuir. Desejava meu poder, mas eu
não queria dá-lo. Disse-lhe que teria de encontrar outra mulher capacitada como
eu. Naquela época o ciúme era virtualmente desconhecido de meu povo, mas
notei uma expressão de ódio em seu olhar. O ódio é um poder que eu
compreendo e resolvi fazê-lo viver com o gosto desse sentimento em sua boca.
O ódio tem gosto de milho queimado. Quando ele avança, ao lado da sabedoria,
quase não existem meios de deter seu poder.
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Ela fez uma pausa e depois continuou:
— Eu o fiz usar uma máscara, desde aquele momento e até o final do
aprendizado. É possível fazer máscaras que freiam as emoções. Todo heyoka
sabe disso. Não existe nada mais simples do que dar um ponto no rosto de
alguém com uma agulha de osso. A pessoa sai por aí feliz e cheia de amor, o que
também é uma máscara. No entanto a máscara que aquele homem usava devia
conter o ódio. Ele aprendeu tanto quanto um homem consegue aprender.
Conhece o mundo nativo tão bem quanto qualquer outra pessoa e é capaz de
fazer tudo o que desejar. Você não entenderá o que vou dizer, mas ele é feito de
poder. Mostrei-lhe tudo o que era possível, em relação a um curandeiro, mas não
estava interessado nisso. Adquiriu o conhecimento e, em vez disso, tornou-se
um poderoso feiticeiro. Aos poucos foi aprendendo tudo e agora é tão forte
quanto qualquer mágico existente neste mundo. Jogou fora a batina, tomou novo
nome e aprendeu como se esconder. Hoje se chama o Homem-Que-Localiza-A-
Trilha ou Trilha-Disfarçada. Alguns dizem que seu nome é Cão-de-Fogo ou
Soldado-de-Fogo. Nós, que o conhecemos, o chamamos de Cão-Vermelho. Eu
era a guardiã do cesto de casamento. Foi tecido com os sonhos de muitas
mulheres, confeccionado e renovado graças aos esforços das cesteiras e das
sonhadoras. Era muito belo e sagrado para todas as mulheres. Cão-Vermelho viu
o cesto certo dia, quando eu me encontrava com Coiotes-Gêmeos. Não esperava
que ele o roubasse, mas foi o que fez. Tinha de conseguir algo que pudesse usar
para que lhe fosse revelado o poder feminino e então surrupiou o cesto. Ele
continha mais poder do que qualquer mulher. Não lhe posso dar o cesto. Você
terá de roubá-lo de Cão-Vermelho e não consigo imaginar nada mais perigoso.
Estou disposta a lhe ensinar como recuperá-lo, pois Cão-Vermelho não
consegue me atingir. Pode, porém, matá-la com facilidade pois está sempre
alerta. A tarefa não será fácil, mas se você for corajosa poderá chegar lá. Não
posso roubá-lo, pois esta é a lei das sonhadoras. Espero que você esteja decidida
a isso.
— Roubar? Mas não posso roubar nada! — disse eu, cheia de pudores.
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Agnes me encarou com um brilho maligno no olhar.
— Nunca roubei nada, em toda minha vida — menti.
— Estou interessada em sua capacidade, não em sua moral. Se quiser o
cesto, terá de aprender a roubar.

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Ninguém é feiticeiro em todos os momentos do dia.
Como seria possível viver assim?
— Pablo Picasso

O Parque Holmby estava deserto às sete da manha, não fossem alguns


corredores e dois senhores de idade que tinham trazido seus cães para dar uma
volta. Encostei os dedos da mão nos pés, respirei fundo várias vezes e comecei a
correr lentamente, descendo a alameda que conduzia ao gramado onde se jogava
bocha. A grama estava úmida, cheirosa e a água que saía dos irrigadores parecia
gotas de cristal. Contemplei as árvores e as ricas propriedades que rodeavam o
parque. A última vez que corri foi no Canadá, onde não havia alamedas ladeadas
de árvores, apenas a vastidão das estepes.
Agnes me instruíra no sentido de encarar com muito cuidado a
possibilidade de regressar ao Canadá. Eu ficaria lá durante semanas, meses e
talvez nunca mais conseguisse deixá-la. Quem sabe até mesmo morresse por lá.
Ela me ensinaria a roubar o cesto de casamento, se eu optasse por me tornar uma
pessoa que se colocasse na posição de aprendiz. Em Los Angeles, porém, eu
invocava e erguia todos os obstáculos imagináveis — o terror, a preguiça e,
sobretudo, minha eterna dúvida. Vivia pensando que não havia a menor
necessidade de me apressar e que sempre encontraria tempo. Alcancei o extremo
sul do parque. Sempre era bom retomar a rotina dos exercícios.
Quando voltei para casa estava molhada de suor e exausta. Depois de
tomar uma ducha, vesti um roupão felpudo e escovei os cabelos. Não conseguia
pensar em outra coisa que não em cestos e velhas feias.
Fui para o quarto, pus um vestido branco e sapatos de salto alto. Queria
continuar a me movimentar, a escapar de meus pensamentos. Distraída, peguei o
carro e fui até o Bistrô Garden, onde me encontrei com minha amiga Caroline.
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— Você parece estar com excelente disposição — ela observou. Sempre
nos tratávamos com certa ironia, algo sutil, porém amistosamente. Estar com
Caroline me dava segurança.
— Está me acontecendo cada coisa...
— O quê, por exemplo?
— Talvez viaje para o Canadá dentro de dois dias, onde irei morar com
aquela curandeira de que lhe falei. Veremos. É tudo o que posso lhe dizer. Estou
enlouquecendo.
— Você já fez coisas muito esquisitas, mas ir para o Canadá viver com
caçadoras de cabeça ou qualquer coisa no gênero já é demais!
Encarei Caroline, sentindo-me confusa, e tomei um gole de Martini. A
bebida me queimou os lábios, mas me fazia bem. No mesmo instante fiquei
bêbada.
O bistrô estava repleto de gente elegante. Divisórias de vidro gravado e
latão polido separavam as fileiras de mesas e sobre cada uma delas via-se um
belo buquê de flores. As paredes cobertas de espelhos refletiam filas infindáveis
de rostos sorridentes, todos normais, porém completamente absurdos. Obriguei-
me a sentar ereta e sem fazer o menor movimento no banco estofado de
vermelho.
O salmão escaldado foi servido e eu o cobri com molho béarnaise, que
estava num pequeno jarro de prata. Lembrei-me da caixa de papelão coberta de
sangue.
— O que está acontecendo com você? — perguntou minha amiga.
— Caroline, não gostaria de ir para o Canadá comigo? — perguntei
brincando. — Não é o Rio, mas poderíamos ficar numa pequena cabana muito
pitoresca que conheço. A comodidade não é lá essas coisas, mas gozaremos de
privacidade.
— E há homens bonitos por perto? — ela perguntou, pedindo mais um
drinque.
— Ah, sim, muitos solteiros disponíveis — disse, pensando nos dois
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índios que ficaram me observando trocar o pneu.
— Obrigada, mas acho que prefiro o Havaí. Para meu gosto, o Canadá me
parece um tanto rude.
— Voltei a ter sonhos terríveis — contei, mudando de assunto.
— Não me surpreende, sua boba. Afinal de contas o que esperava, depois
de perambular por aí com selvagens?
— Não são selvagens, apenas um povo diferente, que tem um modo
diferente de vida.
— E que diferença! Imagine só, acordando você no meio da noite e
deixando-a de cabelo em pé. Realmente! Além do mais, querem que você roube
algo.
— Mas não existe outro jeito de conseguir o cesto — disse, desejando ser
encorajada. — E não se trata, no fundo, de nenhum roubo. É um modo de
ensinar. — Levei a mão ao brinco de turquesa e chifre de veado.
— Aprendizado ou não, você não acha que já tem cestos em quantidade
suficiente? Que tal colecionar tangas ou algo novo?
Do restaurante fomos até o Museu Municipal ver uma exposição de arte
africana, recém-inaugurada. Chegamos uma hora antes de o museu fechar e nos
dirigimos para a Galeria Ahmanson. Senti-me melhor na quietude da sala,
rodeada de máscaras Baule da Costa do Marfim.
— Olhe só esta aqui — disse Caroline,
Contemplei a máscara plácida de uma jovem, usada pela Mmwo, a
principal sociedade secreta dos Ibo, da Nigéria. O rosto tinha traços vigorosos e
o cabelo, quanto ao estilo, era quase egípcio. Os olhos pareciam desprovidos de
visão normal.
Uma escultura dos Ibo, do delta do rio Niger, representava um guerreiro
montado no dorso de um animal provido de garras e coberto de escamas.
Carregava um chocalho e uma taça de libação. O monstro no qual ele montava
era uma projeção de suas próprias capacidades de matador. Ele segurava o
chocalho com a mão direita. Lembrei-me de que no sudoeste da Nigéria muitas
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tribos entregavam-se ao culto da mão direita do homem, que representa sua
perícia enquanto guerreiro. Lembrei-me igualmente do chocalho que pendia da
parede da cabana de Agnes.
Percebi que estava pensando em como seria a aparência de Cão-
Vermelho. Aquelas figuras primitivas monstruosas teriam desencadeado todo
um processo de reflexão. Esperava que jamais precisasse vê-lo pessoalmente.
Na saída da sala havia uma escultura que eu muito apreciava. No cabo de
um leque via-se um deus sentado, representado por um ser duplo com um único
corpo. Corri lentamente os dedos sobre a madeira gasta.
— Você não se identifica com isso? — perguntei a Caroline.
— Não, mas pelo que estou vendo, você, sim. — Ambas caímos na risada.
— Vamos para casa — dissemos ao mesmo tempo.
Mais tarde enrodilhei-me diante da lareira com meu cachorro Kona e o
livro O Leopardo da Neve, de Peter Matthiessen. A sala estava quente,
acolhedora e eu me senti exausta.
Fiquei sentada, contemplando a lenha que crepitava na lareira. Desejava
falar com Agnes, mas, para isso, teria de viajar até Manitoba.
Olhei as diversas bonecas katchina, dispostas sobre o parapeito da lareira.
Existe um dualismo no mundo. Tudo o que é material possui sua contrapartida
espiritual, representada pelas katchina. O fulgor que vinha da lareira deu a
impressão momentânea de que seus espíritos despertavam. As penas e os corpos
pintados com cores muito vivas recordaram-me um mundo misterioso. Sem tirar
os olhos delas, lembrei-me de que Picasso foi influenciado pelas esculturas
mágicas da África. Tirei da estante um livro e reli um trecho de que me
lembrava:
"Compreendi o que a escultura fazia em favor dos negros, por que
esculpiam de determinada maneira. Afinal de contas, não eram cubistas, pois
estes ainda não existiam! É claro que certos homens haviam inventado os
modelos e outros os imitaram. Não é isso a tradição? Todos os fetiches, porém,
faziam a mesma coisa. Eram armas, que impediam as pessoas de serem
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dominadas pelos espíritos e as ajudavam a se libertar. Eram instrumentos. Les
Demoiselles d'Avignon deve ter surgido assim, não por causa de suas formas,
mas por ser meu primeiro quadro de exorcismo! Foi por isso que, mais tarde,
pintei mais quadros como os primeiros, 0 Retrato de Olga e outros. Ninguém é
feiticeiro em todos os momentos do dia! Como seria possível viver assim?"
Mais tarde, na cama, fiquei observando o luar penetrar através das
vidraças e ouvi os pios familiares da coruja. Um ar frio soprou e me desliguei de
tudo. Então uma estranha sensação me despertou. Era um ruído, semelhante ao
de um chocalho, próximo a minha cabeça ou bem junto ao meu ouvido, que em
breve se transformou num zumbido. Percebi que o cesto de casamento me
atacava e não consegui me mexer. Estava repleto de corvos, que agitavam as
asas e me fitavam com seus olhos brilhantes e não paravam de grasnar. O cesto
estava sendo empurrado em minha direção. De repente ele parou,
suficientemente próximo para que eu o pudesse tocar. De sua forma escura
surgiu o rosto fantasmagórico de um gigantesco homem katchina. Tinha olhos
vítreos, o maxilar pendia e seu corpo estava inteiramente pintado. Gritei,
acordando aterrorizada, enquanto o telefone tocava.
— Alô! — disse, com voz rouca.
— Alô, Lynn. E Hyemeyohsts Tempestade quem fala.
— Oh, alô. Um momento. Que bom que é você. Acabo de ter mais um
pesadelo horrível.
— Conte como foi — ele pediu, todo animado. Sentei-me, acendi a luz e
fiz meu relato.
— Você vai para o Canadá? — ele perguntou. Imediatamente fez-se um
nó em meu estômago. Kona pulou para cima da cama e, nervoso, abrigou-se
bem junto de mim. Seu corpo tremia.
— Ainda não sei. O que me diz de meu sonho?
— Estou no Novo México, cuidando de negócios — disse Tempestade,
ignorando minha pergunta. — Ultimamente penso em você e agora sei o motivo.
Você precisa entender que as sonhadoras a escolheram. Lembra-se daquele
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pedaço de pele de lobo que lhe dei, quando desenhei o mapa? Nunca durma sem
ele, pois outros poderes que não o das sonhadoras tentarão lhe fazer mal. A pele
de lobo a protegerá. A exemplo das caçadoras, você também é caçada. Entenda
que a vontade não é um mistério. Trata-se de algo muito simples. A vontade
sonha com o equilíbrio e racha o crânio. O que são suas visões noturnas ou sua
dor senão o fracasso de sua vontade? Agora preciso desligar. Deixo-a no interior
do espelho da criatividade, tocando o círculo do mundo.
Olhei para o telefone, intrigada com aquele chamado tão repentino. O que
era mesmo que Tempestade dissera? Vontade? O fracasso de minha vontade? A
vontade necessária para fazer o quê? Peguei um bloco e transcrevi suas palavras.
Quando terminei, entendi o que ele queria dizer. Havia uma fagulha que ardia
dentro de mim, tentando inflamar-se, mas ela ainda era fraca demais para isso.
Sabia que, de algum modo, minha vontade estava sendo alimentada, que ela
começaria a me controlar e a impelir-me de encontro a um estranho destino.
Sabia que me aproximava de um abismo negro e que teria de mergulhar em sua
inconcebível profundidade. Chorei até voltar a dormir.
Na manhã seguinte despertei de olhos inchados e pus o pedacinho de pele
de lobo numa velha bolsa de couro, destinada a guardar remédios, que eu
colecionava. Coloquei-a em seguida em cima do criado-mudo.
Às quatro da tarde chegou Ivan com George e Pamela Helmstead. Vinham
de uma festa oferecida por Arthur e queriam ver aquilo que meu amigo
denominava "as bruxarias de Beverly Hills". Passei muito tempo mostrando-lhes
minha coleção de arte. A medida que passávamos de uma peça para outra, fiz
um breve relato de minhas experiências no Canadá, pois não conseguia deixar
de falar. Os Helmstead ouviam educadamente, mas Ivan sorria com ironia.
Fomos para o pátio forrado de tijolos, onde tomamos chá com biscoitos. A
primavera, que se enroscava numa treliça, explodia em cores e o vermelho se
destacava contra o azul do céu.
— Por que você precisa aprender a roubar um cesto, Lynn? — perguntou
Ivan, mordendo um biscoito. — Por que não rouba receitas, como fazem as
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outras mulheres? A propósito, estes biscoitos estão deliciosos.
— Pois espero que você engasgue com eles. George e Pamela riram.
— Esse cesto jamais sairia de meu banco — observou George com certa
pompa. — Acho que você não está lidando com pessoas confiáveis e acabará
perdendo-o. Provavelmente alguém roubará o cesto de você.
— Talvez a busca e o desafio é o que mais me interessa, embora Agnes
tenha afirmado que eu poderia morrer literalmente, na tentativa de localizá-lo.
— Será que você seria morta de verdade? — perguntou Pamela, incrédula,
— Foi o que Agnes disse.
— Nesse caso, esqueça essa história. Afinal de contas, não passa de um
cesto. — Pamela tomou um pouco de chá.
— Talvez eu esteja enfeitiçada, mas sinto-me fascinada. Além do mais,
não se trata de um mero cesto.
— Por que não vai para o Canadá e procura saber o que essa mulher quer
que você faça? — indagou Ivan. — Irei em sua companhia e descobrirei se essa
criatura que se intitula curandeira é ou não uma charlatona. Que me diz disso?
— Não sei o que fazer. Agnes foi muito explícita: ninguém deve ir
comigo.
— Ela é uma impostora, Lynn — afirmou Ivan num tom que não admitia
contestação.
Conversamos banalidades em seguida; e ao término do chá nos
despedimos. Vi o carro deles se afastar e, mais tarde, sozinha, li o livro que tinha
um final feliz.
Aquela noite entrei no carro para ir ao La Famiglia, onde jantaria com
Arnold Schulman. O ar estava fresco, carregado com o perfume dos jasmins,
que se abriam à noite.
O La Famiglia costuma estar suficientemente cheio para se tornar um
lugar interessante e onde é possível bater papo durante longas horas, após o
jantar. Até dá a impressão de que estou sempre sentada, conversando, mas o fato
é que essa é a melhor maneira de estar rodeada de gente, em Los Angeles. Em
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Roma ou em Paris pode-se caminhar pelas ruas e ficar no centro dos
acontecimentos, mas não em Los Angeles.
— Quanto tempo! — disse a Arnold, depois que nos acomodamos. —
Você tem viajado?
— Para dizer a verdade, acabo de voltar das selvas do Peru — disse ele,
sorrindo. — Pode lhe parecer estranho, mas fui até lá procurar um alucinógeno
chamado ayahuasca. Os índios o chamam "a trepadeira da morte" e William
Burroughs denominou-o "a droga definitiva". Consegui um guia índio e subi o
Amazonas, à procura de um curandeiro de quem ouvira falar, muito embora me
dissessem que era impossível localizá-lo e muito menos aprender qualquer coisa
com ele. Abrimos caminho na selva a golpes de facão, devorados pelos
mosquitos, e pingávamos, tamanha era a umidade. Finalmente encontramos a
aldeia onde ele morava. Lá havia seis ou sete choças de palha. Quando
chegamos, todo mundo tinha ido caçar e só ele se encontrava lá, sentado num
jirau feito de paus roliços. Usava um boné de beisebol, uma camisa havaiana e
sorria.
— Você deve ter pirado.
— Sem dúvida. Ele parecia um verdadeiro sábio. Era muito velho e
magro. Quando as pessoas tomam a ayahuasca, deixam os corpos. Enquanto
estão fora dos corpos físicos, o curandeiro as examina para ver o que está
acontecendo cora elas e as cura. Eu esperava tomar parte dessa cerimônia.
— E o que ela provocou em você?
— Conversei com o velho através do guia e ele resolveu que eu tomaria a
trepadeira da morte na frente dele, sentado no jirau. Ele estava muito solene e,
àquela altura, já era noite.
— Você sentiu medo?
— Claro, mas esse medo não foi nada, quando, ao voltar a mim, descobri
que a ayahuasca é cinqüenta vezes mais forte do que o ácido lisérgico.
— É o que ouvi dizer, mas a diferença está nas propriedades curativas. E
isso mesmo?
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— Eles dizem que você ou fica curado, ou morre. Caímos na risada.
— Arnold, que coisa assustadora. O que aconteceu em seguida?
— Bem, primeiro dei a ele uma garrafa de uísque de boa marca, além de
outras coisinhas. Depois nos pusemos diante de um oratório improvisado. Era
difícil distingui-lo com clareza, pois havia apenas uma vela acesa. Notei uma
imagem da Virgem Maria, fetiches esculpidos em madeira, penas e trouxinhas
amarradas com fitas. Havia também uma cabaça, esvaziada e apoiada em
varetas. O velho começou a entoar uma cantilena quando finalmente pegou a
metade de uma casca de coco, mergulhou dentro da cabaça e a entregou a mim.
O cheiro e o gosto eram horríveis. Forcei-me a engolir aquilo e devolvi-lhe o
coco. Ele também bebeu e disse que duraria seis ou sete horas, mas quando o sol
se levantou, no segundo dia, e eu ainda delirava, percebi que estava numa
enrascada.
Arnold agora ria, mas eu não.
— E o que foi que você aprendeu?
— Foi uma experiência profunda, difícil de explicar. Viajei com uma
velocidade espantosa na vida de pessoas a quem conheço. Vi-as interagindo,
entregues a suas rotinas diárias. Senti que as enxergava numa dimensão mais
importante, como se nossa presente realidade fosse artificial.
Permanecemos em silêncio por alguns momentos.
— Arnold, você não fez isso só para poder escrever uma reportagem mais
tarde, não é mesmo?
Ele dobrou o guardanapo e deu um sorriso malicioso.
— Não.
— Mas então por que arriscou a vida? Não há o que você não tenha. Deve
ganhar mais de um milhão de dólares por ano. Até mesmo é feliz.
Arnold refletiu durante alguns instantes.
— Talvez seja aquilo que Nietzsche disse: "Aquilo que não me destrói,
me fortalece" — enfatizou Arnold, olhando-me com ar de expectativa.
— Bem, agora vamos falar de sua experiência. Seus olhos estão lançando
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chispas.
Comi um pedaço de vitela e pensativa constatei que o que me acontecera
no Canadá parecia menos tangível que tomar uma droga e ter alucinações por
um determinado período.
— Agora que posso falar sobre este assunto, não sei por onde começar.
Tenho tido sonhos sobre um encontro que se deu com uma curandeira chamada
Agnes. Sinto-me um pouco desorientada.
Prossegui, relatando a Arnold parte da história e como o cesto de
casamento se tornara uma obsessão. Devo ter dado a impressão de que se tratava
de um pesadelo.
— Até agora a única coisa que posso exibir como prova é o brinco.
Deixei-o em casa, mas algum dia o mostrarei a você. Arnold, espero que não
ache totalmente absurdo o que acabo de contar.
— Ora, Lynn, deixe disso. O que mais existe, a não ser a busca?
— Acho que você tem razão.
— Há, porém, certas coisas que ainda não entendo. O que é um cesto de
casamento? Qual seu significado?
— Só posso lhe contar o que Agnes me disse. — Olhei para o espelho, por
detrás de Arnold, e nele só consegui ver refletida minha própria frustração. —
Ela me relatou que o cesto era tecido por sonhadoras e representava um vazio
inexprimível, o ventre da mulher. Diz a lei que tudo deve nascer na mulher, até
mesmo as coisas inventadas pelo homem. A criação inventou o macho para
equilibrar isso. Ela disse: "Colocarei um homem dentro da mulher. No homem
existe a fêmea-musa". Agnes falou que os homens se apoderaram do vazio e
disseram que lhes pertencia. Como resultado, nossa mãe terra encontra-se agora
num estado de grande desequilíbrio.
— O cesto é real ou se trata de uma metáfora?
— Não. Conforme lhe disse, vi uma foto dele. O cesto é um fato, não uma
metáfora.
— Posso ir ao Canadá com você? Apreciaria muito conhecer uma
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curandeira.
— Gostaria muito que você me acompanhasse. Eu me sentiria bem menos
assustada.
— Existe algum motivo que me impeça de ir?
— Disseram-me que os ensinamentos são sagrados e que não posso levar
ninguém comigo.
Arnold encarou-me com ar duvidoso e tomou um gole de café expresso,
pondo em seguida a xícara no pires.
— Prefiro lidar com Agnes e a trepadeira da morte a ter de enfrentar a
maioria dos chefes de estúdio que conheço.
Rimos, mas logo em seguida o silêncio se fez presente. Respirei fundo.
— Arnold, tenho ficado tão assustada com esses sonhos... Preciso
esquecer essa coisa horrível, mas não sei como. É algo que está me deixando
dilacerada. Se for para junto de Agnes, receio que minha vida, tal como a
conheço, terminará. Ainda tenho tantas coisas para fazer por aqui! Em breve
acontecerá um grande leilão em Nova York e muita gente conta comigo. Não
posso largar tudo de um momento para outro e sair por aí, seguindo uma
obsessão.
Agora Arnold parecia agitado.
— Lynn, você não pode deixar esta oportunidade escapar. Seus sonhos
são mensagens. Pare de agir como uma idiota e pense no que está dizendo.
Leilões, pessoas que contam com você? E seu medo? Não será este o verdadeiro
fantasma que tem de enfrentar?
Senti que as lágrimas me afloravam aos olhos.
— Mas isso poderá me matar, Arnold.
— E daí? Você não pode deixar de enfrentar. Atravesse a barreira, vá para
o outro lado. Você tem de viajar para o Canadá e sabe disso.
Eu simplesmente não conseguia admitir que Arnold tinha razão.
— Não sei, não.
Ele estendeu o braço e tocou em minha mão.
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— Será que não percebe o quanto isso é inacreditável para você? Recebeu
uma dádiva inestimável. Não questione. Olhe à sua volta, repare nessa gente —
é o que Hollywood tem de melhor.
Olhei de relance para os freqüentadores do restaurante. Na atmosfera
lisonjeira do La Famiglia eles aparentavam um ar sereno.
— Afinal de contas, o que eles realizaram em suas vidas? — perguntou
Arnold, apertando minha mão e sorrindo. — E o que você fez da sua? E aqui
está, adiando uma decisão. Se tiver sorte suficiente de cair numa dessas
armadilhas que o destino nos prepara, não hesite. Vá adiante, vá fundo, até onde
conseguir.
— Arnold, julgava que você queria me ver viva.
— Simplesmente viva não, mas viva de Jato. Tem de descobrir o que
significa esta obsessão e aposto que acabará verificando que o cesto de
casamento poderá salvá-la.
— Assim espero.
— Tome um avião amanhã mesmo — disse Arnold mais tarde, quando
saíamos do restaurante. — Mal posso esperar para saber o que está acontecendo.
Conte-me assim que voltar, se é que vai voltar...
— Obrigada, Arnold — disse, rindo, e despedindo-me dele com um beijo.
Fui para casa disposta a telefonar para as companhias aéreas assim que
chegasse. Enquanto meu carro subia a Beverly Drive, comecei a refletir sobre as
experiências que tinha passado nas mãos de Agnes e Ruby. Não seria eu mais
uma simplória, envolvida com gente decidida a me ludibriar? Chegando em
casa, sentei-me na sala de estar e avaliei melhor o que estava acontecendo. O
brinco de turquesa e chifre de veado pendia na minha orelha. Acaso estava tão
distraída assim que o pus, mal entrei em casa? Tirei-o, estudando-o
cuidadosamente. Era a única parte tangível daquele sonho.
Após uma ducha rápida deitei-me e deixei de propósito o brinco em cima
da pia, no banheiro. Não apaguei a luz e novamente sonhei com o cesto de
casamento. Andava em direção a ele, mas, ao me aproximar, Agnes estava no
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lugar dele.
— Agora você precisa vir. Está na hora.
— Sim — respondi, sem hesitar.
Sua figura dissolveu-se e dormi tranqüilamente.
Pela manha, quando despertei, o brinco estava em minha orelha e fazia
cócegas no rosto. Dessa vez tive plena convicção de que fatos inusitados
aconteciam. Pensei no sonho, enquanto olhava o brinco na palma de minha mão.
Agnes dissera que era um objeto de transição, uma ponte de meu mundo para o
dela.
Tirei o telefone do gancho e reservei uma passagem. Voaria
imediatamente para o Canadá e para Agnes.

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É a lei que todas as coisas devem nascer na mulher, até
mesmo as coisas inventadas pelos homens.
— Agnes Alce-Que-Assovia

Que alívio rever Crowley! Estacionei na frente do armazém, desliguei o


motor, desci e bati a porta com força. Três criancinhas Cree, de cabelos negros e
rostos redondos, me encararam por um momento e em seguida saíram correndo
em direção ao rio.
— Depressa! Depressa! — gritavam.
Do outro lado da rua vários velhos estavam sentados no banco do correio
local. Empregavam sinais para se comunicarem entre si e percebi que eu era
objeto de comentários maliciosos. Fingi não notar e entrei no armazém, abrindo
a porta que rangia. Os papéis pregados no quadro de avisos farfalharam e fiquei
parada, olhando as prateleiras repletas de ferragens e conservas baratas.
O dono do armazém estava por detrás do balcão, junto à caixa
registradora, de braços cruzados. Usava uma camisa toda estampada com rosas.
Esboçou gestos nervosos, rápidos e cuspiu de lado o fumo que mascava.
— Onde é que está o atum em lata? — perguntei.
— Logo aí. — Ele apontou para os fundos do armazém. Percorri as
prateleiras, juntando provisões: manteiga de amendoim, pão, geléia etc.
— Encontrou a velha Ruby da última vez que esteve aqui? — perguntou o
homem, enquanto eu examinava uma lata de suco de maça.
— Encontrei, sim.
Sua fisionomia era passiva e ele voltou a cuspir fumo.
— Tomara que saiba o que está fazendo...
— Mas eu sei.
— É, espero que sim. — Ele inclinou-se para frente e apoiou os cotovelos
73
no balcão. — Não quero assustar você, mas acho melhor tomar cuidado.
Algumas garotas que vão lá — e não estou falando apenas de brancas, mas de
índias também — voltam muito esquisitas. A gente acha que elas sabem o que
fazem, mas, quando voltamos a vê-las, parecem mortas por dentro. Não seria a
primeira vez que isso aconteceu. É um risco se envolver com uma mulher como
Ruby.
— Não estou me envolvendo com Ruby. A mulher que vim ver desta vez
chama-se Agnes.
O homem ficou pálido que nem um defunto e quase engasgou com o
fumo.
— Agnes Alce-Que-Assovia?
— Sim.
Ele levantou e agora seu ar era de quem pedia desculpas.
— Leve isto — disse, acenando-me com um maço de cigarros. — Estava
brincando quando falei de Ruby.
Senti-me intrigada com aquela diferença de comportamento. Bastou
mencionar o nome de Agnes para levar aquele índio de meia-idade a um estado
de pânico. Ele saiu detrás do balcão e aproximou-se, ainda acenando com o
maço de cigarros.
— Leve, leve este fumo — falou, quase gritando, quase me obrigando a
aceitar os cigarros.
— Eu... não fumo — gaguejei.
— Não tem importância. Leve do mesmo jeito, ouviu? — Ele agia com
insistência e tentou sorrir.
— Obrigada — eu disse, um pouco irritada. Não sabia em absoluto o que
fazer com os cigarros.
Lembrei-me então de que Tempestade dissera que o fumo era sagrado
para os índios americanos. Pus o maço de cigarros junto com as outras compras
e o dono retornou para o balcão.
Guardei o que comprara no porta-malas, entrei no carro e tomei a estrada.
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Guiava lentamente para poder observar melhor as casas de madeira muito
simples, os carros velhos e as construções decadentes.
Mais adiante notei dois homens caminhando no acostamento da estrada.
Eram aqueles dois que tinham ficado me olhando, enquanto eu mudava o pneu.
Parei o carro e abaixei o vidro.
— Querem uma carona? Lembram-se de mim?
— Claro que lembramos de você — disse o mais alto dos dois, rindo.
Entraram e se instalaram confortavelmente no banco de trás. Chegavam a dar a
impressão de que esperavam que eu lhes servisse de motorista.
— Como é que vocês se chamam?
— Este aqui é o Ben. Meu nome é Tambor — informou o índio mais alto.
— Ben e Tambor, é? Pelo visto, estou sempre cruzando com os dois.
Silêncio total.
— Vocês dois me deixaram furiosa, aquele dia, quando não levantaram
um dedo para me ajudar a trocar o pneu.
Mais silêncio. Ben e Tambor não eram muito comunicativos.
— E como é que vocês têm passado?
— Bem — disse Tambor.
Fez-se mais um silêncio constrangedor, mas agora eu começava a apreciar
a paisagem, respirando o ar fresco e procurando relaxar. Tambor inclinou-se
para a frente e falou bem baixo.
— Lynn, pare o carro.
— O quê? — eu disse, levando a mão ao breque. — Como?
— Olhe para mim. Veja-me. — Ele estendeu a palma da mão, à altura do
queixo, como se fosse soprar pó em meu rosto. — Estou contemplando o rosto
de uma deusa.
— Não estou entendendo nada do que você está dizendo.
— Jamais encarei uma beleza tão celestial. — Os olhos de Tambor
adquiriram um brilho estranho e ele dava a sensação de soprar aquelas palavras
sobre mim. Não se tratava de uma cantada, pois sua expressão era impessoal.
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Ele começou a falar num ritmo que me pareceu conhecido.
— Não é cree, Lynn. Estou falando uma língua de outra era. Leve seus
olhos para o centro de minhas palavras.
Certa vez, quando eu tinha oito anos de idade, vi, numa loja que vendia
animais de estimação, um homem dar um ratinho para uma cobra comer. O
pequeno animal ficou paralisado antes que o réptil o atacasse, reconhecendo a
morte e submetendo-se a ela. As indescritíveis palavras de Tambor eram a
resposta àquele enigma e agora eu também me submetia. Recorri a toda minha
força de vontade para sair daquela situação e comecei a gritar.
— Pare, por favor! Pare!
— Parar o quê? — perguntou Tambor. A expressão de seu olhar
modificou-se.
— O farol está verde, moça — disse Ben.
Eu tremia e continuei guiando. O carro ia aos trancos. Tambor recostou-se
no banco e ignorou-me.
— Aonde vai? — perguntou Ben.
Eu ainda estava tentando pôr meus pensamentos em ordem.
— Ao lugar onde mora Agnes Alce-Que-Assovia. Tenho de deixar o carro
na cabana de Ruby-Muitos-Chefes e de lá prosseguir a pé.
Ben e Tambor caíram na risada, demonstrando desprezo.
— Não é preciso — disse Ben. — Tem uma estrada que passa por detrás e
leva até a cabana de Agnes.
— Mas onde fica? Agnes nunca me falou dela. Tambor apoiou os
cotovelos no banco da frente.
— Mas é claro que ela não diria nada. Seria capaz de mentir até sobre a
hora do dia. Agnes é uma bruxa. Não há quem não saiba.
— A estrada fica logo ali — disse Ben, apontando. — Vire à esquerda e
irá parar a uns trezentos metros da cabana dela.
— Ela nunca tocou neste assunto.
— Aquela velha feiticeira... — disse Tambor, sem mudar de posição. —
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Uma pessoa como você não tem nada a fazer num lugar destes. De onde é?
— Beverly Hills, Califórnia.
— Não é onde moram as estrelas de cinema?
— Sim, algumas.
— Achamos que você devia voltar para casa — sentenciou Ben,
encostando-se no banco.
— Mas por que diz isso?
— Bem, a última garota branca que veio até aqui foi encontrada amarrada
num formigueiro.
— Não acho graça!
— Pare. Vamos descer naquela encruzilhada.
Diminuí a velocidade e parei. Ben e Tambor começaram a descer. Tambor
fez uma pausa.
— Moramos bem adiante, seguindo essa trilha. Se precisar de ajuda ou de
qualquer coisa, vá nos chamar. Daremos um jeito na velha Agnes para você.
— E, pode deixar por nossa conta — comentou Ben, rindo.
— Obrigada. Se ela for de fato uma bruxa, procurarei vocês.
— Trabalhamos para um branco — contou Tambor. — É um sujeito bem
astucioso. Você devia conhecê-lo. Gosta de mulheres bonitas... — Tambor bateu
a porta do carro com força. — Elas também gostam dele.
— A gente se cruza por aí, na reserva — disse Ben. — Não vá comprar
ura desses horrorosos búfalos de madeira!
Os dois tomaram a trilha que levava às colinas distantes, cobertas de
capim. Fiquei parada alguns instantes com o motor ligado, sentindo uma
sensação de enjôo. Procurei uma explicação para o que tinha acabado de
acontecer. De repente um índio de olhar enlouquecido começara a dizer coisas
sem o menor sentido, eu quase desmaiara e senti-me próxima da morte — aliás,
próxima demais. Aquele incidente era de deixar qualquer um gelado.
Com um suspiro peguei a estrada de terra e guiei bem devagar. O sói
esquentava e a estrada atravessava colinas verdes e ondulantes, terminando num
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penhasco. Não vi o menor sinal de uma cabana, mas uma senda estreita
contornava uma a colina e eu a segui. Talvez o caminho que levava a Agnes não
existisse.
Logo abaixo, porém, surgiu o teto de zinco da cabana de Agnes e a
fumaça escapava pela chaminé. Comecei a descer o morro correndo, quase aos
saltos, dobrei um dos cantos da cabana e dei de cara com Agnes. Ela não tirava
os olhos de mim e sua expressão era sombria e de indignação. No mesmo
instante parei onde estava.
— Aqueles dois que você pegou na estrada são aprendizes de Cão-
Vermelho. Devia ter me contado que eles a viram quando esteve aqui.
— Mas como é que eu poderia supor que eram especiais?
— Ben e Tambor farejaram você e quiseram descobrir se tinha poder.
Verificaram que não é o caso, pelo menos por enquanto. Você é mais estúpida
do que eu pensava. Cometeu seu primeiro erro.
— Como é que você descobriu que eu ofereci carona para os dois?
Sem me responder, Agnes me deu as costas e entrou na cabana. Segui-a,
tentando me desculpar. Com um gesto brusco ela puxou uma cadeira.
— Sente-se.
Obedeci. A mesa estava coberta com várias ervas, que Agnes começou a
amarrar em maços.
— Por que não foi de uma vez ao lugar onde Cão-Vermelho mora e
anunciou sua chegada? Ainda bem que está usando o brinco, caso contrário
aqueles dois teriam matado você.
— Como assim? — indaguei atônita.
— Os bruxos nunca matam quem quer que seja. Obrigam as pessoas a se
matarem.
— De que jeito?
— Se um bruxo pegasse uma arma e atirasse em você, ele perderia o
poder. Eles fazem você se matar ou dão um jeito para que outra pessoa o faça.
— Você pode me explicar o que aconteceu? — perguntei a Agnes após
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relatar-lhe a louca experiência que vivi no carro com Tambor.
— Ele estava se lembrando de você. Transportou-se para um de seus
círculos anteriores de vida ou encarnações.
— Do que você está falando?
— Tambor tentou empurrá-la para adiante, antes que chegasse sua hora.
Você jamais conseguiria voltar, pois é fraca demais. O brinco interferiu nos
esforços que ele fazia para se lembrar de você e, assim, não conseguiu o que
queria. Desta vez teve muita sorte.
— Quer dizer então que Tambor conseguiria me matar, só conversando
comigo?
— Sim, e quase chegou lá. Você precisa despertar e manter os olhos
alertas. As sonhadoras acham que você tem poder, mas não consigo imaginar de
que se trata.
Meu entusiasmo por aquela aventura começava a se dissipar.
Agnes levantou-se e dependurou os vários maços de ervas em ganchos,
acima da pia. Mergulhou um caneco de alumínio num balde repleto de água e
bebeu. Voltou-se, então, e encarou-me.
— Agora conte-me exatamente o que aconteceu entre você e os
aprendizes de Cão-Vermelho, desde o início.'
Relatei tudo que consegui lembrar do primeiro encontro, quando Ben e
Tambor se aproximaram, enquanto eu substituía o pneu. Recordei-me também
de mais detalhes de nosso segundo encontro. A expressão de Agnes, enquanto
isso, era impenetrável.
— Por que não me falou da estrada de terra que levava até sua cabana?
— Contar o quê? Então não sabia? Vamos ter de deixá-la um pouco mais
esperta — ela disse, sacudindo a cabeça.
Quando saímos para retirar minhas coisas do carro, notei que uma das
portas estava aberta.
— Que estranho! Não costumo deixar a porta aberta — comentei.
Abri o porta-malas.
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— Mas o que é isso? — perguntou Agnes, de mãos na cintura.
Contemplou com frieza minhas duas valises, a bolsa de maquilagem, o colchão
de ar, o saco de dormir e três sacos com conservas. Pegou um dos sacos e o
maço de cigarros sobressaía. Agnes percorreu rapidamente a senda e seguia-a
com minhas duas valises. Coloquei-as dentro da cabana e voltei para pegar o que
faltava. Ao retornar, um quilo de sorvete de chocolate se espalhava sobre a
mesa, formando uma grande poça marrom. Agnes encarou-me com curiosidade.
— Mas como eu poderia saber que derreteria com tamanha rapidez?
— Ah, você, sua wasichu!
Ela pegou uma colher e tomou um pouco de sorvete, agora reduzido a
líquido. Quando terminou abriu a porta e jogou fora os recipientes que os
continham.
— Bem gostoso! — comentou. — Os cachorros vão se deliciar.
— Você não tem geladeira ou nenhuma caixa de isopor?
— Durante o inverno ganhei uma geladeira enorme...
Ela soprou meu colchão de ar e a borracha inflou-se imediatamente.
Quando ficou cheio, colocou-o na mesma direção em que estava sua cama.
Desenrolou então meu saco de dormir e o esticou em cima do colchão de ar. Os
pacotes com mantimentos foram esvaziados, a comida e os enlatados foram
dispostos com muita ordem na prateleira. Queria ajudá-la, mas sabia que só iria
atrapalhar. Quando Agnes terminou sua tarefa, pegou o mackinaw que estava
dependurado e o vestiu.
— Quero que me leve de carro até a casa de Ruby, para pegar meu
chocalho. Vamos trazê-lo para cá e eu o farei agir em seu benefício. Meu
chocalho tem certos poderes de cura. Noto que existe um problema com você e
preciso do chocalho para dar um jeito nele.
O carro não pegava, porém. O motor funcionava, mas não dava partida.
— É, parece que vamos ter de ir a pé — comentou Agnes com a maior
simplicidade. Todos os índios pareciam olhar sempre em frente, quando
entravam num carro. — Poderá ir buscar o chocalho amanhã, mas espero que
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então não seja tarde demais. Você precisa do poder do chocalho o mais rápido
possível. Deveria ir até a casa de Ruby agora e pegá-lo, mas não é seguro andar
à noite. Não está acostumada com a escuridão, não é mesmo?
— Eu? Andar por aí à noite? De jeito nenhum. — Aquela perspectiva era
assustadora.
— Pois então saia do carro.
Voltamos para a cabana e Agnes não tirou o mackinaw.
— Vai ter de ficar sozinha aqui hoje à noite. Preciso ir a um encontro de
curandeiras. Poderá ir até a casa de Ruby de manhã, quando eu voltar.
— Ficarei sozinha aqui?
— Sim, durma. Lembre-se de passar uma tranca na porta, se bem que isso
não vai lhe adiantar de nada. De vez em quando Cão-Vermelho ronda minha
cabana, à noite.
Estremeci.
— Bem que eu gostaria de ter ido buscar o chocalho — comentou Agnes,
muito séria. — Esteja alerta.
Fui até a janela e vi-a desaparecer no topo da colina. Se algo acontecesse
eu não tinha como sair dali, a não ser a pé. Acendi a lamparina de querosene,
contente por ter-me lembrado de trazer livros e um diário. Removi a
maquilagem graças a uma panela com água, despi-me e fui deitar. A lanterna
estava próxima a minha cabeça. Escrevi a data no diário e comecei a fazer
minhas anotações.
Daí a pouco senti um cheiro de fumaça. O fogão emitia um som sibilante.
Pus o diário de lado e estremeci. Mais uma vez eu começava a divagar.
Dei-me conta de que, se Cão-Vermelho conseguisse arrombar a porta da
cabana, eu estaria presa dentro do saco de dormir. Levantei-me, vesti-me
rapidamente e sentei-me à mesa, numa cadeira toda desconjuntada. Na janela
refletiam-se a asa da coruja e o chocalho, dependurados na parede oposta. De
vez em quando fulgores noturnos atravessavam o céu e uma grande claridade
pairava, como o bruxulear distante de uma cidade em chamas, submetida a um
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cerco. As árvores que cresciam junto à cabana, formas escuras e assustadoras,
agitavam e se atritavam umas nas outras, numa dança agourenta. Uma coruja,
empoleirada num galho desfolhado e retorcido, piava e eu conseguia distinguir
sua silhueta emplumada.
O vento começava a zunir lá fora e, de vez em quando, um barulho
semelhante a um gemido vibrava no interior da cabana. A intervalos regulares
algo caía em cima do teto de zinco. Devia ser alguma pinha. Eu estremecia, toda
vez que o barulho se repetia. Várias sombras escuras aproximavam-se
furtivamente, cada vez mais, à medida que os fulgores noturnos diminuíam de
intensidade.
Eu apreciava ver as luzes tremeluzindo, mas agora não era o caso. Acendi
a outra lamparina, fiz bastante barulho, procurei mostrar-me animada e voltei a
lavar o rosto com água fria.
— O que foi isto? — disse em altos brados.
Ouvi algo semelhante a um rosnado e, em seguida, um barulho parecido
ao de um animal que abria caminho através das moitas. Tirei a roupa em quatro
segundos e pulei para dentro de meu saco de dormir. Achando que era pouco,
levantei-me rapidamente e coloquei as lamparinas uma de cada lado do saco de
dormir. O querosene chegava ao fim, mas eu tinha medo de sair do saco e ir
procurar mais combustível. Um lobo ou um coiote começou a uivar a distância e
aquela cantiga fantasmagórica parecia se aproximar cada vez mais. O vento
fazia o teto de zinco sacudir e eu pensei que ele iria pelos ares. A cabana
agitava-se, rangia e julguei ver, num relance, o rosto de um homem
contemplando-me através da janela. Ouvi o barulho de algo que estava sendo
esmigalhado, como se fossem os ossos de um pássaro devorados por um cão. As
lamparinas começaram a falhar.
— Agnes! — berrei.
As chamas se apagaram uma após a outra. O clarão do céu pôs manchas
nas paredes e um par de olhos faiscou, debaixo da cama de Agnes. Cobri a
cabeça e mergulhei num sono profundo.
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— Sabia que você precisava daquele chocalho que transmite poder.
Levante-se, idiota. A porta estava escancarada. Os malandros levaram suas
roupas.
Acordei assustada. Agnes teve um acesso de riso diabólico.
— Levaram tudo o que era seu: as roupas, as conservas, tudo! Já
amanhecera e a luz penetrava pelas janelas. Levantei-me e fiquei parada, nua.
— Quem? — vociferei. — Quem pegou o quê?
Minhas duas valises não estavam mais lá. A bolsa Gucci estava aberta no
chão, com o forro revirado e todo rasgado. Cartões de crédito e dinheiro
espalhavam-se por todos os cantos. Até mesmo meu estojo de maquilagem fora
levado.
— Oh, não! — gemi.
— Pelo menos eles sabiam onde metiam as mãos e não levaram nada meu
— assentou Agnes.
Sentei-me à mesa, levei as mãos à cabeça e percebi que ura grande
chumaço de meu cabelo tinha sido cortado. Corri até o pequeno espelho,
colocado acima da bacia.
Agnes deu um tapa nas coxas e caiu na risada.
— Veja só o meu cabelo. Está todo estragado. — Ela apenas sorria. —
Quem foi que cortou? O que aconteceu à noite passada? — Sentia-me como
uma criança nua, de pé numa sala cheia de estranhos. As lágrimas corriam por
meu rosto.
Agnes me deu uma camiseta de algodão bem velha, um jeans enorme,
todo remendado, e um pedaço de corda para que ele não caísse. Eu tinha deixado
os tênis debaixo do travesseiro e alegrei-me ao constatar que continuavam no
mesmo lugar.
— Por quê? — perguntei, enquanto amarrava o cadarço.
— Foi um ardil que prepararam para você e foi o jeito de Cão-Vermelho
te humilhar. — Ela aproximou-se com um punhado de cabelos na mão. — Se
Cão-Vermelho fizesse isso comigo, ia receber o troco na mesma moeda. Talvez
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agisse assim com você apenas para se divertir. — Agnes deixou meu cabelo
cair.
— Cão-Vermelho? — perguntei, arregalando os olhos.
— Sim, aquele maldito. Qualquer dia destes vou deixar veneno lá fora
para ele.
— Quer dizer então que Cão-Vermelho veio até aqui no meio da noite e
roubou tudo? — Olhei para o sólido cadeado de ferro na porta.
— Bem, pelo menos não cortou sua garganta, coisa que qualquer outra
pessoa teria feito.
— Mas que horror! — Chorei, diante de meu infortúnio. — Sou até capaz
de me matar!
— E por que não se mata? — ela perguntou, muito séria.
— Se eu me matasse, você não se importaria nem um pouco, não é
mesmo?
— Me importaria, sim, pois nesse caso você decepcionaria as sonhadoras.
Se não fosse isso... — Ela deu de ombros. — Você poderá ou se matar ou
enfrentar os fatos. E os fatos indicam que você é uma idiota. Sente-se e tome
chá.
Eu agora estava indignada.
— Está bem, Agnes, tudo mundo vive falando das sonhadoras. O mínimo
que você pode fazer é me informar a esse respeito. O que ou quem é uma
sonhadora? Creio que mereço algumas respostas.
— Sim, acho que está na hora de contar. Preste muita atenção, Lynn, pois
trata-se de segredos. — Ela se ajeitou na cadeira e houve uma mudança sutil em
sua atitude. — Uma sonhadora é alguém que sabe como entrar no círculo
sagrado e sair dele quando bem entender.
— O que você quer dizer com círculo sagrado?
— Os círculos sagrados, em número de sete, são controlados pelos
poderes dos katchina. O primeiro deles é a vida normal, de todos os dias, o
mundo em que vivemos e o modo pelo qual o percebemos normalmente. O
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segundo círculo é o sono. O terceiro é aquele para onde as sonhadoras vão. —
Agnes pensou por alguns instantes e prosseguiu. — Tenho de traduzir de minha
língua. Chamamos a isso de atravessar o portão entre os mundos. Entenda: a
gente só pode transitar entre os mundos.
Se estivéssemos neles, seríamos espíritos e é a isso que chamamos morte.
— Em outras palavras, as sonhadoras vieram até mim no segundo círculo
e me levaram por entre os mundos?
— Isso mesmo, mas você ainda não tem o poder de se lembrar de
qualquer outra coisa que não sejam seus sonhos.
— Mas por que elas estão vindo até mim?
— Porque consciente, ou inconscientemente, você fez uma opção pelo
poder.
— Em outras palavras, devo tomar cuidado com aquilo que peço. —
Pensei em todos aqueles anos passados inutilmente a estudar o misticismo.
— Menina — disse Agnes, servindo mais chá e adotando uma atitude
mais animada. — Cão-Vermelho te conhece. Provavelmente voltará a te
humilhar. Quer que regresse ao lugar de onde veio. Acho melhor você ir pegar
aquele chocalho com Ruby-Muitos-Chefes, antes que eles te humilhem ainda
mais.
Tomamos o chá e comemos alguma coisa.
— Lembra-se do caminho até a cabana de Ruby? — perguntou Agnes.
— Sim. Como poderia esquecer?
— Agora que viu o que pode acontecer, quer recuar?
— Não — declarei, irritada.
— Pois então acho melhor ver onde põe os pés. Cão-Vermelho está
disposto a criar um caso e tornar tudo muito difícil para você. Revidar não é
nada, perto do que ele pode lhe fazer.
Engoli em seco e pigarreei.
— Você me acompanhará?
— Vá andando — disse Agnes, cruzando os braços.
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Saí da cabana e comecei a percorrer rapidamente o caminho que me
levava até Ruby, surpreendida ao notar que havia esquecido boa parte do trajeto.
Tinha plena consciência do ridículo de minhas roupas e ri de mim quando uma
rajada de vento entrou por meu jeans e o velho tecido, todo desbotado, inflou-se
em torno de meus tornozelos. A corda pendia da cintura e batia até quase o meio
de minhas pernas. Pensei em Cyrena, minha amiga mais antiga, e como ela
cairia na risada se me visse, mas não podia deixar minha mente divagar.
Precisava manter os pensamentos bem claros e tentar aprender algo. Percorri a
senda que seguia paralelamente ao regato, cujas bordas estavam todas floridas.
Ouvia o barulho dos redemoinhos e percebi, de relance, o sol coando através dos
choupos. Ainda conseguia sentir em mim o cheiro da fumaça da lenha, que
queimara na lareira, e usava-o como um perfume.
Andei e corri durante três horas bem contadas, até a cabana de Ruby
surgir a distância. Parei e senti um vazio no estômago.
Quando recomecei a andar, ouvi o som abafado de uma flauta, que
aumentava quanto mais próximo eu chegava à cabana.
Uma jovenzinha muito frágil estava sentada no alpendre de Ruby e
soprava o instrumento. Seu cabelo era de cor de azeviche e caía até a cintura.
Dei-me conta de que era linda. Acenei-lhe, mas não obtive resposta. Gritei , mas
continuou a tocar a flauta.
— Que som bonito — comentei, quando entrei no alpendre. A jovem
continuou a assoprar seu instrumento.
— Eu disse: Que som bonito! Ela tocou as mesmas notas.
— Hei!
Ajoelhei-me na frente dela e encarei-a, mas ela continuou a tocar as
mesmas notas, o que era de enlouquecer qualquer um. Acenei as mãos diante de
seu belo rosto. Os olhos escuros tinham uma expressão vaga e não seguiram
meu movimento. Seu corpo era tão rígido quanto uma pedra. Lembrei-me do
que o dono do armazém de Crowley dissera sobre as jovens que visitavam Ruby.
— Pare de incomodar a menina — repreendeu-me Ruby, surgindo
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abruptamente. — Não adianta nada!
Interrompi meu gesto.
— Não converse com July. Ela não te entende. Encolhi-me toda. A jovem
olhava em frente e tocava as mesmas notas sem parar.
— O que veio fazer aqui, wasichu?
— Agnes me mandou buscar o chocalho dela.
— Que chocalho?
— Disse que precisava dele para me ajudar.
— Não tenho seu maldito chocalho. Por que Agnes não veio buscar ela
mesma?
— Não sei.
Ruby encarou-me com desprezo.
— Ela deve estar pensando no chocalho grande. Quer que eu empreste.
Não sei se devo dar a você. E um bocado perigoso.
— Agnes disse que precisava de seu chocalho — gaguejei.
— Tem certeza de que quer correr o risco?
— Que risco?
— De morrer. Que outro risco existe para se correr? Se o chocalho da
chuva encostar na mãe terra de um certo jeito, você morre. Se ela não for
reconfortada por Quem-Sabe-Como até o sol se pôr, ela invocará espíritos que te
matarão. Caso eu te confie meu chocalho e você cometer um erro, nada neste
mundo poderá impedir sua morte. Tem certeza de que quer arriscar?
— Agnes me disse para pegar o chocalho.
Ruby, sem dúvida, não se sentia nada contente com a situação. Ao olhar
para sua testa franzida, percebi que ela não encarava diretamente ninguém.
Lembrei-me de que era cega e lá estavam duas pessoas que pareciam não me
ver.
July soprou algumas notas em sua flauta e Ruby dirigiu o olhar a
distância.
— Vou pegar o chocalho — disse. Entrou na cabana e levou um bom
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tempo para voltar.
— Cá está ele — declarou, jogando-me o chocalho. Era de um marrom
um tanto desbotado e media uns quarenta centímetros. O corpo era todo
esculpido, e a embocadura do tamanho de uma bola de tênis. Percebi que dentro
havia algo semelhante a sementes e que se agitavam. Aquele instrumento me
pareceu um tanto assustador.
Enquanto o examinava, Ruby passou a mão em minha cabeça.
— Parece que você ficou careca neste lugar. — Ela começou a rir. —
Afinal de contas quem foi que te atacou?
— Cão-Vermelho.
Ela teve um ataque histérico de riso, deu um tapa na perna e dobrou-se
para a frente.
— Cão-Vermelho é um homem rude — disse, enxugando os olhos. —
Ouça, vou fazer o grande favor de emprestar meu chocalho para Agnes. Quero
que você me faça um pequeno favor. Leve July com você e diga a Agnes que eu
pedi para tomar conta dela por alguns dias. — A menina continuava a tocar a
flauta.
— Não há dúvida, Ruby. Será que ela nunca pára de tocar essa flauta?
— Nunca e não ouso tirá-la dela. Isso seria seu fim. Ela está me deixando
maluca e por isso quero que Agnes fique de olho nela.
— Você pode fazer com que ela volte comigo? — disse, enquanto ouvia o
som insistente de flauta.
Ruby, com um gesto brusco, obrigou July a se levantar e dirigiu-lhe a
palavra em cree.
— Ela irá com você.
Ruby serviu-me um sanduíche de manteiga de amendoim e um copo de
suco, explicando o que tinha de fazer. Não importando o que acontecesse, o
chocalho de chuva tinha de estar nas mãos de Agnes até o sol se pôr. Despedi-
me, July me seguiu tocando a flauta, e partimos em direção à cabana de Agnes.
Apertei o chocalho de encontro ao peito. Sentia-me cansada, mas tinha
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medo de repousar. O céu estava de um azul prateado e não fazia frio. Caminhei
lentamente e com muito cuidado, pois cada passo era importante. July seguia
meu ritmo, sem se adiantar ou se atrasar, tirando da flauta as mesmas notas.
Estávamos no meio da tarde e eu tinha muito tempo para chegar até a
cabana de Agnes. Começava a desconfiar de que Ruby e Agnes conspiravam
para fazer de mim a boba da aldeia. Como era possível que um mero chocalho
tivesse poder? Se o chocalho de chuva me matasse, caso tocasse o chão de modo
errado, por que Ruby o jogara no alpendre?
A música começava a dar em meus nervos e meus músculos doíam. Nem
mesmo eu era tão simplória como se poderia pensar. Conhecia mais a respeito
dos objetos que enfeixam o poder do que qualquer pessoa com quem tinha
negócios. Possuíra, comprara e vendera muitos deles. Havia magia em sua
beleza, como ocorre, aliás, com tudo o que é belo, e este era seu único poder.
Daí a uma hora eu começava a sentir-me tonta. July continuava a tocar e
eu parei por alguns minutos, esperando que ela me alcançasse. O vento soprava,
agitando as folhas secas e a areia. July caminhava como se estivesse em transe.
Tropeçava de vez em quando, mas jamais olhava para os pés e se limitava a
seguir adiante. Não errava uma nota sequer e não havia meios de fazê-la calar-
se.
O barulho estava me irritando e então comecei a sacudir o chocalho.
Segurava seu cabo com ambas as mãos, agitava-o para trás e para frente e,
enquanto July e eu percorríamos o terreno acidentado, jogava o chocalho para
cima, aparando-o. Aquelas velhas não iriam zombar de mim. A chance de
derrubá-lo era mínima e senti-me tentada a deixá-lo cair de propósito.
De repente parei, assustada. Lembrei-me de que me haviam cortado o
cabelo e concedi a Ruby o benefício da dúvida.
Um corvo voou por cima de meu ombro esquerdo, pousou numa árvore e
empoleirou-se num galho. July parou de andar e permaneceu junto ao tronco,
continuando a tocar a flauta.
— Vamos — gritei.
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Ela não obedeceu meu chamado. O corvo eriçou as penas.
— Por favor, vamos em frente!
Estava ficando tarde e Ruby dissera que, se eu não entregasse o chocalho
a Agnes até o pôr-do-sol, o espírito do chocalho da chuva me destruiria. July
poderia ficar parada ao pé daquela árvore para sempre e eu não podia deixá-la.
Talvez se sentisse atraída pelo corvo. Se eu conseguisse espantar a ave, ela iria
comigo.
Olhei ao redor e vi várias pedras. Tomei muito cuidado para não deixar o
chocalho encostar no chão. Atirei a pedra, que passou zunindo perto do corvo.
Voltei a atirar mais pedras, porém a ave não se mexeu. Quando as pedras se
aproximavam, ele dava um salto, empoleirava-se novamente e crocitava,
irritado. Desisti.
— Precisamos chegar à casa de Agnes. — disse, agarrando-a pelo braço.
O corpo dela estava rígido. — July! — gritei. — Será que você não entende?
Temos de ir embora!
Ela continuava a tocar a flauta e seu olhar era desprovido de expressão. O
corvo continuava a crocitar.
— Vá para o inferno! — gritei. — Mexa-se! — Agarrei o braço de July,
dei-lhe um safanão e caí para trás. O chocalho escapou de minha mão e atingiu o
chão. Julguei que fosse morrer.
Uma sombra encobriu tudo. Um vento frio me envolveu e o barulho da
trovoada se fez ouvir no céu. A chuva começou a cair, crivando-me de gotas
frias. Um relâmpago riscou o céu e as nuvens negras encobriam o sol. O
aguaceiro manifestou-se com tamanha rapidez que cheguei a pensar que estava
sendo vítima de uma ilusão. As bochechas de July inchavam, enquanto ela
continuava a tocar. O corvo bateu asas, voou e era como se July tivesse sido
libertada. Consegui colocá-la na direção da cabana de Agnes, embora agora me
sentisse aturdida. O coração batia descompassadamente e ergui o chocalho do
chão. O vento soprava com força e a água pingava das árvores, mas tinha parado
de chover. As nuvens cinzentas possuíam aspecto sombrio.
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Não muito tempo depois de nos afastarmos da árvore, deixamos para trás
as nuvens escuras. O céu se tornara claro, com exceção da estreita faixa de terra
onde eu havia derrubado o chocalho. Lá uma formação acinzentada, escura, de
mau agouro, dividia o céu.
Atrás de mim a flauta de July entoava notas sem fim.
Finalmente chegamos à cabana de Agnes. Os raios vermelhos do sol
iluminavam o horizonte. A velha índia veio ao nosso encontro.
— Me dê depressa o chocalho — ordenou. — Você quase morreu.
Meu coração disparou. Entreguei-lhe o chocalho e ela correu para a
cabana. A muito custo July caminhou até o alpendre e sentou-se com as costas
apoiadas numa coluna. Continuava a tocar a flauta.
— Vá buscar água no regato — disse Agnes, no momento em que entrei
na cabana, entregando-me um balde. Em breve voltei com ele cheio de água. —
Coma — ordenou.
Sentei-me à mesa e comecei a comer. Agnes sentou-se do outro lado,
diante de mim.
— Agora conte exatamente o que aconteceu com você hoje, sem omitir
nada.
Depois que lhe fiz o relato, ela levantou-se. Com um movimento ágil,
agarrou-me pela garganta e me empurrou para diante. Fiquei surpreendida com
seu grande vigor físico. Virou meu rosto de tal modo que eu não conseguia tirar
os olhos do cesto que continha o chocalho de chuva, em cima da cômoda.
— Olhe para ele — disse, segurando-me. — Não desvie o olhar. Diga-lhe
que sente respeito e que está sendo sincera.
— Mas como? Devo falar com o chocalho?
— Sim. Você o ofendeu.
Eu estava tão alterada com a repentina violência de Agnes que
praticamente gritei.
— Perdão. Eu te respeito.
— Não, não tem de pedir perdão. Diga simplesmente que sente respeito.
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— Sinto respeito.
— Amanhã você poderá voltar à casa de Ruby e pegar o chocalho certo.
Você trouxe o chocalho de chuva, mas eu queria o chocalho-mãe. E um
chocalho de carapaça de tartaruga.
— Mas então terei de refazer todo esse caminho?
— Sim, amanhã. Agora é melhor você ir para a cama. Adormeci ouvindo
as solitárias notas da flauta.

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São os bebês mortos que ainda não nasceram. Estão dentro
de você, chorando sem parar. Choram há mil anos, lá onde as rodas
da escuridão giram para sempre.
— Ruby-Muitos-Chefes

Comecei a despertar, mas como a cama estava quente, eu sentia uma


preguiça gostosa e decidi demorar-me no acolhedor mundo dos sonhos. Era cedo
demais para me levantar.
Tap tap tap tap...
Percebi um barulho semelhante ao de uma tabuleta solta, agitada pelo
vento. Fiquei torcendo para que aquilo parasse de vez.
Tap tap tap tap...
Finalmente abri os olhos e sentei-me, gemendo. Meus músculos doíam e
sentia pontadas nas pernas, por ter andado tanto tempo, além de cãibras. Olhei
ao redor, à procura de Agnes. Não havia ninguém na cabana.
Tap tap tap tap...
O barulho recomeçava. Olhei para as janelas. Um corvo negro, de asas
lustrosas e olhos brilhantes, batia numa delas com seu grande bico. Muito
empertigado, voltava a cabeça de um lado para outro e seus olhos se dirigiam
diretamente para mim.
Tap tap tap tap tap...
Será que o corvo me pedia para deixá-lo entrar? As aves, imagina-se,
sentem medo das pessoas e, com toda certeza, receiam entrar dentro de uma
casa.
Tap tap tap...
Agora o corvo parecia impaciente.
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De repente a porta da cabana escancarou-se e Agnes entrou, sobraçando
dois pedaços de lenha. Enfiou um após outro no fogão.
Tap tap tap tap...
Ela voltou-se para a frente e estalou a língua, produzindo um barulho
engraçado. Abriu então a janela e riu da ave, que andava de um lado para outro,
no parapeito da janela, inflando o peito e pavoneando-se como um cavalheiro
elegante. O corvo, inclinando-se para mim, fez um gesto que lembrava uma
reverência, crocitou, demonstrando desagrado, e voou para cima da mesa, no
centro da sala. Eu me divertia muito com suas palhaçadas.
— Este é Corvo — disse Agnes.
— Prazer em conhecê-lo, mas acho que ele não está muito satisfeito
comigo..
— De fato. Ele queria entrar para tomar o café da manhã
— disse Agnes, voltando-se para Corvo e estendendo-lhe um naco de
carne-seca. Enquanto dava uma bicada, a ave parecia mais dócil.
— Saí do saco de dormir, vesti minhas roupas mais do que folgadas e fui
tomar o desjejum com Agnes e nosso visitante. Enquanto comíamos, dávamos-
lhe pedaços de torrada e bacon, o que parecia deixá-lo muito feliz. Tudo
indicava que era um convidado que sabia como se comportar.
— Há muitos anos este bandido vem tomar o café da manhã — contou
Agnes. — O apetite dele é maior do que o meu. Eu já tinha me esquecido de
July, mas as notas lamentosas da flauta interromperam a tranqüilidade da
manhã.
— Ah, essa não! Lá vem ela de novo! — exclamei. Agnes sacudiu a
cabeça, concordando, e ambas começamos a rir. July estava dando em nossos
nervos. Corvo voou em direção ao parapeito da janela. Pavoneou-se por um
momento e crocitou.
— Não agüento mais comer. Estou repleta — disse-me Agnes. Corvo
voltou a crocitar e foi embora.
— Mas como pode estar repleta, se comeu apenas uma torrada e um
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pedaço de bacon? — perguntei. — Quanto a mim, não posso dizer o mesmo.
— É uma expressão que meu povo usa. Quer dizer "Comi. 'Estou repleta."
Não tem nada a ver com alimento. A gente não costuma sair por aí agradecendo
uns aos outros. Existe apenas um ser a quem se deve gratidão, o nobre Grande
Espírito. Nosso termo significa: "Estou repleto por dentro, devido àquilo que
compartilhamos. Sinto-me bem". Dispomos apenas de uma dádiva, que é
escolher nossa morte. Em seu mundo você diz "muito obrigada". É uma mentira
e aconselho-a a não dizê-la nunca mais. Talvez possa exprimi-la como se fosse
um ritual, mas jamais seja sincera ao dizer obrigada a um homem, pois isso
diminui seu poder. Existe apenas um exceção. Quando você enxergar de verdade
o Grande Espírito em outra criatura, então poderá dirigir-se ao Espírito,
demonstrando gratidão, festejando-o. Caso contrário, deixe para lá.
— Mas me ensinaram que...
— Estou pouco me importando com o que lhe ensinaram. Você recebeu
os ensinamentos errados.
Refleti sobre suas palavras, enquanto comia meu último pedaço de pão.
— Você sabe montar? — perguntou Agnes de repente.
— Sim, de vez em quando costumo andar a cavalo. Por que pergunta?
Agnes movimentava-se pela cabana, pondo um pouco de ordem nas
coisas.
— Precisa ir buscar o chocalho de Ruby imediatamente. Ainda hoje.
Acompanharei você até certo ponto. Cavalgaremos juntas.
Senti-me entusiasmada e tirei rapidamente a mesa,
— Não sabia que havia cavalos por aqui — disse, saindo da cabana com
Agnes e respirando o ar fresco que vinha do norte. — Onde estão? Não vi
nenhum cavalo.
— Há muita coisa que você ainda não viu, Lynn. Agnes pôs algumas tiras
de carne-seca perto de July e cochichou qualquer coisa em seu ouvido. A jovem
continuou a tocar. Seus olhos continuavam vidrados e o corpo rígido e frio.
Tinha o ar frágil e solitário. As notas da flauta pareciam o pio de um pássaro que
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pede ajuda ou então um aviso. Agora dava a impressão de tocar com renovada
tristeza.
— Mais tarde ela comerá — declarou Agnes.
Ela fez um gesto, indicando que eu deveria segui-la à picada que levava à
cabana de Ruby. Daí a pouco dobramos para o sul e, a caminhada tornou-se
mais difícil. Seguimos um afluente do regato e suas águas refletiam tons verde-
azulados, translúcidos. Em torno de nós e ao longo das margens havia uma
fartura de trevos e capim perfumados.
— O capim está viçoso, nesta primavera — comentou Agnes. — É bom
para os cavalos.
Concordei. Em todos os lugares viam-se coelhos, que se esquivavam,
quando nos aproximávamos. Soltavam pequenos guinchos, enquanto corriam
para se esconderem por detrás das pedras. Segui Agnes quando a picada passou
por entre árvores muito copadas e prossegui através de uma campina luxuriante.
— É o pasto do sul — ela explicou. Entregou-me um dos dois cabrestos
que carregava no ombro direito. Era lindo, parecia feito de pêlos de cavalo
trançados, em branco e preto, e a fivela aparentava ser de chifre de alce.
— Três cavalos bem nutridos, dois machos castanhos, castrados, e uma
égua malhada pastavam junto ao regato. Os animais ergueram a cabeça ao nos
aproximarmos, e continuaram a comer. Deixaram que chegássemos perto e
Agnes deu uns tapas afetuosos no pescoço de um dos machos. Ele inflou as
narinas e bateu com a pata no chão.
— Fique com a égua. É mansa, sabe onde pisa e poderá montar nela
sempre que quiser. Precisa de exercício.
Enfiamos os cabrestos nos animais e os levamos para perto de uma pedra
que chegava à altura do joelho. Agnes esfregou a testa de seu cavalo, agarrou a
crina do lado direito e montou. Sua agilidade surpreendeu-me.
— Agnes, se você consegue, eu também hei de conseguir!
Peguei a crina da égua do lado esquerdo e dei um impulso, mas meus pés
bateram no flanco do animal e caí de costas. O chão era bem duro.
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Agnes, montada a pêlo em seu cavalo, ria. Levantei-me e a égua encarou-
me, sonolenta, imaginando, sem dúvida, o que aquela branquela pretendia fazer.
Saltei mais uma vez e, de novo, estatelei-me no chão. Após mais uma tentativa,
desisti.
— Por que não monta do jeito mais fácil? — perguntou Agnes.
Levei a égua até a pedra, trepei nela e cavalguei o animal. Agnes olhou-
me rapidamente e voltou a cair na risada.
— Não acho a menor graça. Por que você monta do lado direito?
— Porque nós, índios, carregávamos nossos sacos de poções do lado
direito. Isso não faz tanto tempo assim.
Voltamos para a trilha, sem nos apressar. Montada no cavalo castanho,
com seus mocassins oscilando no ritmo do animal, Agnes era uma figura
surpreendente. Parecia possuir uma tremenda vitalidade e suas trancas agitavam-
se ao vento que zunia. Os cavalos, que ainda mostravam sua espessa pelagem de
inverno, eram dóceis e bem-comportados. Não tinham ferradura, mas seus
cascos estavam em forma e seus corpos possuíam músculos vigorosos. Alguém
devia cavalgá-los com bastante freqüência.
Eu balançava de um lado para outro, seguindo a marcha, e relaxei, diante
daquela manhã tão tranqüila. Nossos animais iam adiante e agora o sol brilhava
sobre nossas cabeças. Ao chegarmos ao canyony os cavalos desceram até seu
leito e prosseguiram a meio-galope, até alcançarmos uma formação rochosa, na
direção sul. As narinas dos animais inflaram e eles empinaram as orelhas, ao
verem um pequeno rebanho que pastava próximo dali.
A nossa volta os pássaros gorjeavam e, no céu, gansos selvagens
grasnavam, dirigindo-se para o norte. Uma lufada de vento nos envolveu e
descemos em direção ao rebanho. Fomos até o extremo do pasto, desmontamos
num lugar repleto de trevos e deixamos os cavalos comer.
Sentamo-nos e nos servimos de peixe defumado e pão. Era uma bela
região de florestas e altos picos. As nuvens e a neblina impregnavam o ar de
uma suave umidade. Parti um pedaço de pão e comecei a mastigá-lo. Agnes
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voltou-se para mim. Seu rosto, de um marrom avermelhado, recortava-se contra
aquele dia esplêndido e ventoso.
— Lynn, em que você acredita?
— Em que acredito? — Surpreendi-me com aquela pergunta tão
inesperada.
— Sim, conte-me. — Ela sorria e em seus olhos surgiu um brilho todo
especial.
— Bem, acredito na honestidade.
Agnes riu baixinho e colocou uma pedra pequena diante de mim.
— Prossiga. Que mais?
— Acredito em realizar com eficiência aquilo que faço. Agnes continuou
a rir e pôs outra pedra ao lado da primeira. Enumerei para ela todos os meus
valores éticos e políticos.
Quanto terminei, havia uma grande pilha de pedras.
— O que quer dizer isto? — perguntei, apontando para as pedras.
— Elas representam cada uma de suas crenças. Existe o arco do mundo e
o arco do eu. Seus arcos são como ninhos que a rodeiam, muito reconfortantes.
Precisa, porém, reconhecer a existência destes ninhos tão seguros. Precisa
perceber que se senta sobre estas pedras como se fossem ovos e você é a mãe
que os choca. Precisa entender que não é livre, pois jamais abandonará seu
ninho de auto-ignorância. — Agnes apontou para as pedras. — Aqui está seu
ninho. Se quiser, poderá passar o resto da vida chocando-o. Estes ovos serão os
limites de sua experiência.
Agnes roçou com o mocassim a beirada da pilha de pedras.
— Existe um ovo que você faria bem em chocar e que está em harmonia
com o Grande Espírito. E a pedra sagrada no centro do arco. Choque a pedra
sagrada e dela eclodirá a ave-rainha, cujas garras rasgam todas as barreiras que
impedem a percepção. Acredite ou não, choque a idéia de que o arco do eu é
também o arco do universo, pois você é a ave-rainha que paira para sempre, sem
impedimentos, e não conhece fronteiras. Somente a ave-rainha constrói um
98
ninho verdadeiro, sem separações. Agnes pegou uma das pedras.
— Esta é a parte de você que acredita em ser honesta. No entanto, apenas
quem espatifou o ovo da verdade e da falsidade pode ser honesto. Você cuida
maternalmente desse ovo, como se ele contivesse um ser precioso, perde tempo
com ovos falsificados. Seria capaz de jogar esses filhotes fora, um por um?
— Não. Minhas crenças representam quem sou. Para mim, representam
uma espécie de verdade. Como poderia me livrar delas?
— Pois acho melhor que o faça. Precisa compreender que não é livre.
Percorra o caminho sagrado e choque o ovo que não tem limites.
— Tentarei.
— Diga: "Minhas crenças não são necessariamente verdadeiras, embora
ache o contrário".
Repeti aquela declaração e senti-me confusa. Olhei para a pilha de pedras
e senti sua massa escura dentro de mim.
— Muito bem — disse Agnes, pondo-se de pé. — Uma coisa que me
interessa demais é sua opinião política. Sabe, sou uma organizadora. Vamos em
frente, vamos organizar. Existem questões importantes que precisam ser
discutidas. Quero tornar o mundo um lugar melhor de se viver.
Segui-a através do campo. Agnes caminhou agressivamente em direção ao
gado que pastava, subiu numa rocha e limpou a garganta. Não conseguia
imaginar o que ela pretendia. Estendeu os braços e sua voz assemelhou-se à de
um locutor de rádio ou à de um camelô, que apregoa seus produtos com
convicção.
— Vacas do mundo inteiro, uni-vos! Vocês não têm nada a perder, a não
ser seus grilhões.
As vacas mascavam o capim e nem sequer levantaram o olhar.
— Ouçam-me ou perecerão — prosseguiu Agnes. — Não sabem que eles
comerão vocês? Há um complô sinistro em andamento.
Sentei-me sobre o capim, cruzei as pernas e prestei muita atenção, ao
contrário das vacas que me rodeavam. O ato de mascar tornou-se mais
99
pronunciado, à medida que Agnes continuava a pontificar. Eu quase chegava a
ouvir os vivas de uma platéia invisível e via as faixas e cartazes de um vibrante
comício político.
— Irmãos e irmãs, ninguém reconhece a dívida que temos para com
vocês!
Tive de sair do caminho de uma vaca que, com muita aplicação, pastava
seu capim.
— Vocês dividem tudo e se dão, pedindo muito pouco em troca. Estou
lhes fazendo a pergunta mais decisiva de todas suas vidas. — Agnes
interrompeu-se, oscilou dramaticamente em sua tribuna e encolheu o queixo,
para enfatizar a imponência de sua estatura. Era a caricatura perfeita de um
político demagógico. Eu não conseguia controlar a risada.
— Sabem que os seres de duas pernas irão comê-las? Vacas do mundo
inteiro, prestem atenção no que digo. — Agnes fez um gesto magnânimo. —
Não estão atentas para a conspiração que se desenrola em torno de vocês? Onde
se encontram seus grandes líderes bovinos? — Ela levantou o punho fechado e
sacudiu-o. Em seu rosto havia uma expressão de grande intensidade. — Não há
a menor esperança para vocês, a menos que me ouçam.
Uma vaca mugiu, como se estivesse bem pouco inspirada.
— Vacas do mundo inteiro, poderemos construir um impero livre de
opressão, trabalhando e marchando juntas.
Empoleirada num lajedo de granito, no meio da rusticidade do campo,
rodeada de bovinos e montes de estrume, Agnes levantou os braços, como se
estivesse reagindo a uma multidão que lhe dava vivas. As lágrimas corriam por
meu rosto, tanto eu ria.
— Existe apenas um líder — gritou, como se estivesse reagindo aos
aplausos imaginários da multidão que se levantasse para ovacioná-la. — Os
seres de duas pernas lhes disseram que são mais inteligentes, mas o que
significam criaturas tão insignificantes diante do imenso vigor de vocês? Para
mim está muito claro que precisam de um novo chefe e eu trouxe essa pessoa
100
aqui, hoje. — Agnes inclinou-se, em sinal de agradecimento, e me ofereceu a
tribuna de pedra. Sentou-se no chão, com um sorriso maroto.
— Em primeiro lugar, vocês precisam entender que correm perigo —
disse eu solenemente. Em seguida ajoelhei-me, suplicante. — Vocês não têm a
menor consciência da seriedade de sua situação. Sou sua salvadora. — Fiz uma
pausa, à espera de aprovação, e prossegui. — Se nos organizarmos, teremos
chance de dar um golpe de Estado. Se vocês reconhecerem sua grande força,
conforme Agnes lhes disse, poderão tornar-se as donas do mundo.
Fiquei ajoelhada, com os braços estendidos. Por um momento quis que
elas me entendessem de verdade. Senti o abismo que existia entre a verdade e a
ignorância. Uma vaca curiosa, movendo-se pesadamente, roçou o focinho em
minhas pernas e, em seguida, deu-me uma forte cabeçada. Perdi o equilíbrio e
caí de cabeça nas moitas de trevos e estrume seco. O movimento foi tão
surpreendentemente agressivo e inesperado que voltei rapidamente a cabeça,
para certificar-me de que a vaca não estava vindo atrás de mim. Ela, porém,
afastou-se, quando percebeu que eu não tinha nada de interessante para comer, e
voltou a pastar. Aquela cena era demais e deitei-me no chão, junto de Agnes.
Rolamos no capim, rindo. A rude disposição daquela velha assustou-me e
encantou-me ao mesmo tempo. Deixei-me envolver pelo cheiro denso da terra e
do mato que crescia. Abri a mão, como uma espátula, passando-a pelo chão
úmido. Lama e pedacinhos de rocha agarraram-se a meus dedos, em toda
extensão de minhas mãos, e tive o impulso de cobrir o rosto com a argila úmida
e espojar-me naquele solo fértil. Agnes estendeu a mão, pegou a minha e me fez
levantar. Sacudiu a cabeça e riu de mim, até as lágrimas escorrerem por seu
rosto. De braços dados, demos gargalhadas e tropeçamos no pasto, pontilhado de
pedras, como um par de bêbadas. Nos empurrávamos e fingíamos perder o
equilíbrio. Senti uma verdadeira embriaguez. Alcançamos os cavalos, voltando a
montá-los. Para isso, tive de subir numa pedra, e, sem me avisar, Agnes dirigiu
seu cavalo para o lugar onde estavam as vacas.
— Ajude-me a juntar o gado e levá-lo para o outro lado do pasto — ela
101
gritou, galopando. Segui-a, muito animada. Em poucos minutos, as gordas
vacas, mugindo para exprimir sua irritação, corriam na direção que
pretendíamos.
— As pedras! — gritei para Agnes.
As vacas fariam desabar a pilha de pedras, as estruturas de minhas
crenças. Vi-as correr em todas as direções, no momento em que os animais
passaram por entre elas. Obriguei minha égua a voltar e a pisotear aquelas
ruínas. As pedras haviam se espalhado e eu puxei as rédeas, esperando por
Agnes. Ela sacudiu a cabeça, em sinal de aprovação, com um brilho de
felicidade no olhar.
— E então, Lynn, está se sentindo bem, agora?
— Estou, sim.
Cavalgamos em silêncio até o fim do pasto. O gado, após movimentar-se
lentamente em círculos, continuou a pastar com toda apatia.
— Agora voltarei para junto de July — disse Agnes. Fez um gesto com a
cabeça, em direção à cabana de Ruby, puxou a rédea do cavalo, obrigando-o a
seguir a direção oposta e seguiu picada afora, trotando.
— Lembre-se de trazer o chocalho-mãe — recomendou, olhando por cima
dos ombros.
Eu passara boa parte do dia com Agnes e sabia que restava pouco tempo
para chegar à cabana de Ruby e voltar antes de escurecer. Espero que haja luar
pensava.
A égua trotou em direção ao oeste e subiu uma colina. Perdi as vacas de
vista. Decidi chamar minha égua de Pintada,
— Vamos, Pintada!
Ela tinha uma marcha macia, o que muito me alegrou, embora soubesse
que no dia seguinte ficaria de corpo moído. A picada começava a se tornar
familiar. O que me parecera uma zona de terror agora surgia diante de mim com
clareza e muito bem ordenada. Até mesmo as pegas, que tanto me assustaram,
agora pareciam mais brincalhonas. Pintada era resistente e parecia disposta a
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manter o trote, que, na verdade, se assemelhava mais a passos rápidos.
Abandonei-me a seu impulso ritmado formando uma unidade bastante coerente.
Cheguei à cabana de Ruby num tempo que me pareceu bem curto. Passei
a perna sobre a ampla garupa de Pintada e, muito animada, desmontei. Quando
reparei, Ruby estava na porta da cabana.
— E agora, o que você quer?
— Desta vez vim buscar o chocalho-mãe, Ontem você me deu o chocalho
errado.
— Não lhe dei o chocalho errado coisa nenhuma. Agnes está com o
chocalho-mãe — disse-me Ruby indignada, fuzilando-me com o olhar. — Para
que eu haveria de querer o chocalho-mãe? — Ela estava com as duas mãos na
cintura e o vento agitava sua saia vermelha.
— Ruby, não caçoe de mim. Percorri toda essa distância a cavalo para
pegar o chocalho-mãe. Agnes precisa dele. Deve estar com você, não é mesmo?
— Ao terminar de falar, não pude disfarçar um tom de desamparo.
— Não chore, menina. Não estou com o chocalho de Agnes. Diga-lhe que
eu falei que ela deve estar ficando senil.
Balbuciei qualquer coisa, concordando. Ruby me deu as costas e entrou na
cabana, batendo a porta com força. Fiquei furiosa. Agnes me enviara numa
missão inútil.
E aquela louca da Ruby! Sentei-me no alpendre. Desejava
desesperadamente descansar e tomar uma xícara de chá. Ruby podia ser um
pouco mais hospitaleira.
Nuvens pesadas acumulavam-se no céu. O sol brilhava por entre elas e
flechas de ouro reluzente eram arremessadas das nuvens de bordos luminosos.
— Adeus, Ruby — gritei, pois a porta estava fechada. Pintada e eu
partimos, alcançando uma boa velocidade. A égua não transpirava, a não ser nas
dobras dos ombros. Encontrava-se em excelente estado. Havia sinal de chuva no
ar e um leve nevoeiro formava-se no chão do vale, de onde subia para ir ao
encontro das rochas elevadas. Eu cavalgava enfrentando o vento e a crina de
103
Pintada agitava-se com a forte brisa que soprava, batendo de vez em quando em
meu rosto. Estava ansiosa para chegar logo. Fiquei de olho no céu, à espera de
uma tempestade, mas as nuvens começaram a se dissipar, mostrando novamente
o sol. Observei um falcão de rabo vermelho pairar na corrente aérea. Paramos
junto ao regato e Pintada bebeu, até eu puxar a rédea e obrigá-la a prosseguir.
Ainda estava indignada com a história do chocalho-mãe.
A noite começava a cair quando cheguei ao pasto do sul. Desmontei, com
pena de não ter uma cenoura para Pintada. Passei o braço em torno de seu
pescoço e cocei-a por detrás das orelhas. Ela deitou-se, espojou-se no capim
verdejante, roçando as costas, repetindo o que eu fizera com Agnes.
— Até breve, Pintada — disse, acenando-lhe. Dirigi-me para a cabana.
Estava faminta e queria uma boa explicação para o fato de precisar percorrer
aquela distância e procurar Ruby, quando ela não tinha o chocalho. Ouvi a
flauta, o alpendre surgiu diante de mim e vi três pessoas sentadas lá. Meu queixo
caiu. Ruby estava ao lado de Agnes e July. Gomo conseguira chegar lá antes de
mim? Controlei-me e gaguejei.
— Ruby, você me venceu.
— É que tomei um atalho. — Ela ria, ao notar minha expressão de
espanto. Olhei para o topo das árvores, tentando acalmar-me e, com gestos
comedidos, sentei-me num degrau da escada do alpendre.
— Não é possível que você tenha chegado antes de mim. Minha égua
seguiu em direção ao leste.
— Como percebe, estou aqui. Acaso se perdeu? Agnes riu e olhei para
ela.
— Ruby disse que o chocalho-mãe está com você. Agnes estalou os
dedos, como se tivesse se lembrado de algo de repente.
— Ah, é mesmo! Esqueci...
— Você sabia e me mandou buscar o chocalho de propósito — disse, em
tom de acusação. Eu estava realmente furiosa.
Ruby começou a rir descontroladamente e parecia se divertir quanto mais
104
eu mostrava minha indignação.
— Pare com isso, Ruby — disse Agnes.
— Pois então me devolva o chocalho. O chocalho-mãe é meu.
— Ruby — disse Agnes, batendo com o pé no chão, impaciente. — Você
sabe perfeitamente que o chocalho-mãe me pertence. Deu-o para mim há quatro
anos.
— De jeito nenhum. Emprestei para você. Há uma grande diferença.
— Não, você deu — afirmou Agnes com ênfase.
— Agnes, você deve estar ficando louca. Eu jamais lhe daria meu
chocalho. Agora pode ir devolvendo.
— Não devolvo. Ele é meu.
Fiquei sentada, sem acreditar no que via. July tocava a flauta com mais
suavidade e seus olhos, sem expressão, fitavam um ponto perdido no horizonte.
— Não, o chocalho-mãe é meu — retrucou Ruby. — Negociei-o com a
Mulher Nuvem.
— É meu! — gritou Agnes. — Não é mesmo, Lynn?
— Sim, foi o que você me disse. Não quero me envolver nessa história.
— Aqui está sua prova — disse Agnes, apontando para mim.
— Ah, você está ficando do lado dela! — exclamou Ruby. — Então é
assim? Todo mundo está contra mim.
— Não estou ficando do lado de ninguém, Ruby. Por que vocês duas não
se sentam e discutem a questão como adultas?
— O que você quer dizer com isso? Adulto é assim? — Ruby sentou-se
com o nariz apontado para cima e a cabeça jogada para trás, numa atitude
afetada. Agnes sentou-se do outro lado, com as mãos juntas, num gesto que
copiava o de uma verdadeira senhora. Ambas estavam muito empertigadas.
— Bem, agora vamos falar sobre meu chocalho — propôs Ruby.
— Minha cara Ruby, você está cometendo um engano. É muito
aborrecido ver você se confundir tanto.
— Senhoras — intervim, muito séria. — De onde surgiu o chocalho que
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provoca tanta disputa?
Agnes e Ruby já não conseguiam mais sustentar aquela farsa. Passaram os
braços nos ombros uma da outra e caíram na risada, como crianças. Agarraram-
se pela cintura e começaram a pular. Percebi que, mais uma vez, eu caíra numa
armadilha. Aquilo não passava de uma brincadeira. Deixei-as, indignada, e
entrei na cabana, procurando algo para comer. Elas ainda faziam suas
palhaçadas. Ruby fumava um cigarro. Deu uma baforada, jogou-o fora,
pisoteou-o e acendeu um outro. Fumava sem parar.
Mais tarde, quando a noite chegava, as fisionomias de Agnes e Ruby
subitamente tornaram-se sérias.
— O sol está quase se pondo — disse Agnes, entregando-me um
mackinaw. Pegou seu chocalho águia-noturna e Ruby o chocalho-mãe, feito de
carapaça de tartaruga. Quando saímos da cabana, o céu estava róseo, dourado e
alaranjado.
Afastamo-nos da cabana, seguindo pela direita, através de uma grande
fenda nas rochas, cuja existência eu desconhecia, e baixamos por uma picada
estreita, precária, que descia abruptamente. Agarrei-me às pedras, tomando
cuidado onde punha os pés. Passamos por uma abertura estreita nas rochas e
saímos numa ravina, ladeada por rochedos, que se assemelhavam a enormes
ágatas, estriadas de laranja e púrpura e banhadas pela luz do sol que se punha. A
ravina nos conduziu mais abaixo, até uma espécie de toca, bem acanhada. Notei
marcas de instrumentos, a figura de um animal gravada na pedra e, em cima, um
rosto cuja expressão não se conseguia distinguir. Finalmente desembocamos
numa área circular, em cuja extremidade havia uma caverna. Enormes rochedos,
de uns seis metros de comprimento, quase encobriam essa área. Lá estavam
restos de várias fogueiras e a lenha se empilhava no fundo da pequena caverna.
— Lynn, ajeite a lenha para fazermos uma fogueira — ordenou Agnes.
Ela me mostrou como dispor os gravetos e os troncos e as duas ficaram me
observando, enquanto eu dava conta da minha tarefa. Finalmente Ruby tocou
fogo nos gravetos e daí a pouco a fogueira pegou.
106
— Olhem para o céu — exclamei. Em todas as direções viam-se nuvens
púrpuras e rosadas. O topo dos rochedos e o cimo dos cedros anões que
cresciam nas fendas estavam banhados de sombras flamejantes e erguiam suas
silhuetas negras contra o céu. Eu sentia pressão nos ouvidos, pois tínhamos
descido dezenas de metros. Agnes pôs a mão em meu ombro e apontou para a
luz do crepúsculo, que chegava ao fim.
— É o momento em que o mundo se modifica — disse. Aproximou-se de
mim, agitou o chocalho bem junto ao meu ouvido, o fez circular várias vezes em
torno de minha cabeça e afastou-se.
— Você é a árvore que floresce — disse Ruby. Seu rosto era grotesco,
naquela escuridão tão recente. Sacudiu o chocalho junto ao outro ouvido e, mais
uma vez, em torno de minha cabeça. Recuou e parecia um cobra, pronta para dar
o bote.
Ambas repetiram esses gestos várias vezes. Agora o céu estava negro, e a
fogueira amarela e crepitante. Grandes sombras oscilantes refletiam-se nos altos
rochedos. As velhas tornaram-se escuras tempestades na noite. Saltavam e
esticavam os braços, sem largar os chocalhos. Rodeavam-me de sons, no interior
daquela cratera abobadada. Comecei a ficar tonta. A fumaça, com perfume de
artemísia, que escapava da fogueira, espalhava-se pelo chão e subia em torno de
nós. Ruby e Agnes entravam e saíam daquela nuvem cinza, que cheirava a
cedro. Os chocalhos eram agitados sem cessar. A escuridão e a fumaça eram tão
espessas quanto minha pele. O barulho dos chocalhos era enorme, tangível e eu
conseguia sentir o sabor de sua música. Era forte e vigoroso.
Agnes levantou-se diante de mim, com seu chocalho águia-noturna e seus
olhos brilhantes não se desviavam de mim. Eu tremia. Sentia-me como se
estivesse flutuando no interior do chocalho. O som era ensurdecedor. Meus
ouvidos ecoavam aquele barulho e eu sentia vontade de gritar. De repente tornei-
me o próprio som e já não conseguia mais contê-lo. Explodi em um nada rubro,
que se refletia no brilho quente, na superfície dos rochedos. Era como se uma
represa tivesse rompido, uma represa de ritmos e canções. Era como se meu
107
crânio rachasse. O chocalho de Agnes me expelira para fora de mim mesma. A
percepção de meu ser físico desapareceu. Olhei para aquelas duas mulheres e eu
era elas.
Pairei no ar por um momento e então o barulho do chocalho de Ruby
invadiu-me, como uma mão que apertasse meu ventre. Sua batida incessante
levou-me a outro tipo de consciência. O som quase se assemelhava a um
zumbido. Os cânticos de Agnes e Ruby agora pareciam muito estranhos,
distantes. Minha boca estava seca. De meu interior pareciam sair fagulhas
rosadas; senti-me aquecida e minha percepção dirigiu-se à região do estômago.
Agnes e Ruby desapareceram e inumeráveis bebês começaram a chorar. Todos
os bebês do mundo estavam reunidos em torno de mim e eu era uma enorme
bolha que continha todos eles. Estava deitada no chão.
— São os bebês mortos, que ainda não nasceram — disse Ruby, pondo a
mão em minha barriga. — Estão dentro de você, chorando sem parar. Choram
há mil anos, lá onde as rodas da escuridão giram para sempre.
Tentei sentar-me e Agnes me enrolou num cobertor.
— Assuma a guarda dessas crianças que choram — disse ela. — Sinta em
si mesma o poder de mulher, de mãe. Você é a própria mãe-terra.
As lágrimas corriam por meu rosto. Senti-me purificada, repleta de uma
nova força e profundamente feliz. Ruby apagou o fogo. Agnes ajudou-me a
levantar e seguimos o caminho de volt

108
Os guerreiros do céu sorriam quando ura grande
guerreiro roubava o poder.
— Agnes Alce-Que-Assovia

Ouvi o barulho do corvo batendo na janela e Agnes abriu-a, deixando-o


entrar. Era um modo agradável de despertar. Abri os olhos e vi os cimos das
colinas verdejantes e sombreadas, bem como as nuvens que flutuavam acima
delas. Corvo, em cima da mesa, eriçava as penas, piscava os olhos, sonolento, e
tremia. O café estava com um cheiro delicioso.
— Onde estão Ruby e July? — perguntei, sentando-me.
— Foram dar um passeio — informou Agnes. — Ficarão fora a maior
parte do dia. — Ela deu de ombros. — Pelo menos não seremos obrigadas a
ouvir aquela zoada. A flauta fere meus ouvidos.
Sorri e concordei.
— Agnes, explique o que aconteceu comigo. Mal consigo acreditar nas
coisas de que estou me lembrando.
— Ontem à noite você foi colocada entre o chocalho-mãe e o chocalho da
águia-noturna, duas forças irresistíveis. Sua vida foi tecida como uma teia, entre
elas. Houve um momento em que elas poderiam ter acabado com você, mas foi
delas que você retirou seu poder. Não existe nenhuma parte de seu ser que não
seja desta mãe-terra. A mãe gera danças com as flechas de plumas brancas e,
ontem à noite, as pontas das flechas se tocaram. A mãe-terra misturou a energia
dela com a sua.
— Sinto-me tão mais forte...
— E está mais forte. A terra é um reservatório de energia. Você mesclou-
se com a força elementar e tornou-se essa força.
— Agnes jogou uma migalha de pão para Corvo, que saltou e comeu-a
109
rapidamente.
— Sinto-me quase grávida. Aqueles bebês ainda estão dentro de mim?
— Sempre estiveram dentro de você e de todas as mulheres. Lembre-se de
que tudo deve nascer da mulher. É um poder que o mundo olvidou. Os homens
são intrusos. Muitas pessoas, incluindo parte de meu povo, não entendem
minhas palavras e ficariam indignadas ao ouvi-las. E, porém, a lei. A mulher é a
árvore que floresce. Você é o centro do universo, a criação, a mãe-terra. Tem de
voltar a aprender isto e construir sua própria força. Agora nosso treino pode
começar.
— Vou treinar para roubar o cesto de casamento? — Eu estava exultante.
— Sim. Até agora fortaleci seu corpo e sua vontade. Você é fraca, sob
vários aspectos. Tem muitas ligações tolas. Preciso libertá-la para poder
conduzi-la em direção ao poder. Começaremos por uma aula de história, que não
se encontra nos livros. Quero que você tome nota.
Agnes tinha um ar tão professoral que eu ri.
— Estou falando muito sério, Lynn. Quero que você se recorde do que
vou dizer. Anote tudo. Seu diário e as canetas estão na primeira gaveta da
cômoda.
Peguei-os e senti-me como uma escolar, aplicada e pronta para escrever.
Agnes empunhou uma vareta comprida.
— Olhe naquela direção — ordenou, apontando-a. — E não revele jamais,
para quem quer que seja, em que direção está olhando. É tão sagrado quanto seu
verdadeiro nome. Muito tempo atrás, os antepassados sagrados contavam que o
dia e a noite não existiam. Havia apenas o Grande Espírito. Ele era o centro e
também a fonte que não tinha fim. Os antepassados ordenaram aos ventos, seus
filhos, que soprassem o macrocosmo, trazendo-o para a existência. O Grande
Espírito ocultou-se e dividiu-se em sobrinho e sobrinha. Juntos entoaram a
canção da criação. Tudo vibra com esta voz: o universo, as galáxias, o sol e a
terra. A luz, as trevas e todas as coisas não passam da canção do Grande
Espírito. Ele está adormecido em todas as coisas que têm nome ou não. Tudo
110
aconteceu conforme os antepassados vaticinaram. O que é a eternidade para o
Grande Espírito, a não ser um suspiro? O desígnio do universo nada é. Não
passa o tempo todo do arremesso de uma flecha no arco do Grande Espírito. A
canção da tribo das plantas foi entoada. A canção dos animais foi entoada. A
canção da tribo dos homens foi entoada. Cada mundo foi lembrado nas canções,
sem exceção. O Grande Espírito está adormecido em todas as coisas que têm
nome e nas que não o têm. O Grande Espírito escolheu este círculo. Ele ergueu
as palmas das mãos, cantou com doçura e fez sete bolhas. A bolha que todos
somos encontra-se no meio. A roda girou muitas vezes e houve muitas
migrações. A terra inteira deslocou-se, mas a espinha dorsal da mãe-terra
permaneceu. Se os seres de duas pernas quebrassem essa coluna, a mãe-terra
ficaria abalada e morreria. E o limite, que até mesmo seu corpo não pode
suportar.
Agnes fez uma pausa e continuou:
— Conversei com a árvore-xamã, a árvore da recordação. Em primeiro
lugar, fez-se o sol. Em segundo lugar, a terra e, em terceiro, as plantas. A árvore
olhou e viu que estava solitária. "Quero muitos filhos", disse. A cabana-lua da
árvore disse à cabana-sol da árvore, que os trouxe à vida. Os humanos, as
criaturas de duas pernas, percorreram as muitas estradas do lobo. Os humanos
pintaram muitas leis. Isso se situava em algum ponto do círculo da perenidade.
Alguns o chamam de começo, outros de fim.
Agnes apontou mais uma vez com a vareta.
— Naquela direção havia uma ilha, que os índios chamavam de Terra-
Dos-Que-Têm-Seis-Dedos. Eu a chamo de Terra dos Ladrões. Lá todo mundo
prosperava, pois todos tinham muitas mantas e provisões. Ninguém precisava de
nada, pois tudo se encontrava lá. Todos gozavam da abundância. Eram felizes,
abençoados pela mãe-oceano. Quero dizer que o clima era tremendamente
quente, tanto que o calor abatia-se em ondas sobre toda a ilha. Seria de se
imaginar que a gente que habitava aquela ilha fosse lenta e estúpida. Ao
contrário: eram seres muito nervosos e rápidos. Estavam sempre correndo em
111
torno da ilha. Todas as coisas possuem leis. A lei da ilha era brincar e divertir-
se. Era por isso que os seres se movimentavam e não paravam de agir.
Roubavam, furtavam tudo em que podiam pôr as mãos. Lembre-se de que, se
você vivesse naquela ilha, seria criada para se tornar uma ladra. Seria nutrida e
treinada para isso, a partir do momento em que nascesse. As criaturas que não
roubavam eram consideradas loucas, mas isso também não tinha importância. O
relato prosseguiu:
— Além de roubar, as criaturas da ilha eram mentirosas. Era preciso
perceber a verdade através das mentiras. Se acaso um ser dissesse a verdade, era
por mero acidente ou então para confundi-la. Tudo isso parece complicado, mas
aquela ilha tinha maneiras muito avançadas de fazer coisas, a maior parte do
tempo. Desconhecia-se o assassinato ou coisas no gênero. Talvez a ilha dos
ladrões pareça um lugar mau, mas, na verdade, era bom. Ali ninguém se
entediava. Tudo funcionava para aquelas criaturas, e elas tinham corações
simples e bondosos. Era maravilhoso mentir, trapacear e roubar, se isso fosse
feito com pureza, com correção e ninguém se prejudicasse. Quando
surpreendiam um ladrão caíam na risada, e quando viam algo que desejavam,
simplesmente o pegavam, em obediência alei. Aquela era a lei: podia-se roubar
qualquer coisa de qualquer pessoa, em qualquer momento.
Continuei atenta à narrativa de Agnes.
— Assim, aqueles seres da ilha desenvolveram a paciência e a capacidade.
Eram eficientes em se abaixarem e se confundirem com o ambiente, até chegar o
momento apropriado de roubar algo. Foram os primeiros seres invisíveis e
conheciam a risada do invisível. Existe invisibilidade no riso. Eles também eram
capazes de esquecer de si mesmos e fazerem os outros esquecer.
Conseguiam adaptar-se tão bem àquilo que os rodeava, que se tomava
impossível vê-los. Nesta região de cerrados, existem tantas coisas que seus olhos
têm de aprender a ver... Tantas coisas são invisíveis... Tantas coisas não são
aquilo que se pensa... O cerrado inteiro se transformaria, caso você soubesse
como vê-lo, mas, mesmo sendo dotado da visão do cerrado, ainda assim não se
112
poderia enxergar um ser da ilha. Desde aqueles dias tão remotos, nunca mais
surgiram tais mestres da arte de roubar. Ante minha expectativa, Agnes
prosseguiu: — Existem meios de se chegar ao povo que tem seis dedos. É
preciso comer certa coisa, marrom, que tem um grande envoltório, parecido com
um tipi. Os homens comeram as pernas que se encontravam no fundo e
desenraizaram o alimento sagrado; por nada. Tudo o que encontraram foi o
felino de olhos de jade. Somente um homem ou uma mulher altos, com a cabeça
acima da terra, podem ingerir a poção do conhecimento. No entanto, não se
deixe enganar pelo cogumelo. Foi o erro da ilha. O cogumelo era alto demais
para eles. Tiveram de cuspi-lo, o que levou a terra a estrondear, o que provocou
o fim. Foi o erro deles. As delícias do País dos Ladrões prosseguiram durante
muitas e prolongadas estações, mas então a ilha dividiu-se ao meio. Tufões
quentes surgiram, sem respeitar o que quer que fosse. A ilha inteira ondulou,
sacudiu, ferveu e então submergiu no mar, matando todo mundo. Jamais voltou
à superfície e a sabedoria da raça quase se perdeu. O fumo os teria ensinado,
pois eles então veriam o arco-íris nas águas. Voltará a acontecer. Os homens
nada sabem dos passos que levam ao altar, mas meu povo tem conhecimento do
que aconteceu, embora hoje exista quem diga que queríamos sangue. Nossos
altares conseguiam falar de tudo o que estava para acontecer. Suba essa ladeira
sagrada, Lynn, e ofereça tabaco ao felino. Quero ouvir seus passos, em direção à
montanha sagrada, ecoarem em meus ouvidos. Caia na terra que sangra e chore.
Deseja ouvir mais?
Confirmei, com ansiedade, e Agnes retomou a história:
— Então direi que os seres da ilha não estava prontos para morrer e o
espírito deles permaneceu. Morreram com o nome do Grande Espírito em seus
lábios. Era tarde demais para poupá-los, mas os seres da ilha foram guiados para
cima, pelo lago fumegante. Os espíritos daquelas criaturas se foram, formando
um único ser fosforescente, cujas mãos tinham seis dedos. Ele agora perambula
pela terra como o maior ladrão que existe. De vez em quando é possível sonhar
com ele e fazer com que ponha um pouco de poder em sua trouxa de poções. Se
113
conseguir chegar até ele, poderá ajudá-la a pegar o cesto, que está com Cão-
Vermelho. Sim, seria uma sorte muito grande você localizar e ligar-se ao
espírito do País dos Ladrões, bem como deixar esse espírito guiá-la. Ele seria
seu maior aliado. Se acaso enxergar esse grande ser de seis dedos numa noite de
luar, então haverá de cantar de alegria. Toque a terra com ambas as mãos e
afague sua barriga, transmitindo-lhe a bênção dele.
Agnes interrompeu o relato e perguntei-lhe se tudo aquilo era verdadeiro.
Ela, com muita ênfase, afirmou que sim. Interroguei-a sobre o cogumelo e ela
disse que, talvez, um dia, me falaria mais a esse respeito.
— No momento, Lynn, você precisa lembrar-se do ser de seis dedos, caso
o encontre. Foi a finalidade da história que lhe contei, mas agora tem de saber
mais coisas relativas a meu povo. É mais um motivo pelo qual lhe falei dos seres
de seis dedos. Como vê, existiram vários mundos. Tudo era completamente
diferente, não faz tanto tempo assim. Todo mundo fazia as mesmas coisas.
Alguns faziam enfeites de penas, outros enfiavam contas ou curtiam couros.
Alguns humanos talhavam cachimbos. Outros faziam escudos. Eram grandes
caçadores e valentes guerreiros, bem como grandes curandeiros. Praticamente
todos nós fazíamos as mesmas coisas. Está entendendo?
— Creio que sim.
Eu escrevia sem parar enquanto Agnes falava:
— Naquele tempo a única diferença consistia em como essas coisas eram
feitas. Alguns humanos se mostravam mais capazes do que outros, mas ninguém
gostava de fazer sempre a mesma coisa. Quando o espírito do fazer era
capturado, deixávamos tudo no ponto em que se encontrava. Contávamos uma
boa história e a deixávamos no ponto em que estava. Entoávamos uma bela
cantilena e a deixávamos como estava. Cantávamos uma bonita canção e nos
despreocupávamos com ela. Havia uma exceção: quando uma coisa encerrava
poder, nós a mantinha-mos. Mantínhamos o conhecimento. O campo não era
dividido. As mulheres gozavam de tanto poder quanto os homens. Conforme lhe
disse, as mulheres são fonte de todo poder. Houve notáveis mulheres chefes, e as
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mulheres eram grandes guerreiras, como os homens.
Agnes pediu-me para me imaginar como uma grande guerreira daquele
tempo.
— Todo mundo reconhecia uma guerreira assim. Todo mundo falava de
você. Lynn fez isso e aquilo, Lyim revidou os golpes de fulano ou sicrano, Lynn
roubou isso e aquilo de alguém. Seus feitos e sua honra eram bem conhecidos.
Todos os grandes guerreiros se reconheciam. Havia muitas leis ligadas ao fato
de uma criatura ser um grande guerreiro.
A mulher sorriu com jovialidade ante a idéia e continuou:
— É melhor recordar certas coisas. Isso aconteceu antes do cavalo. As
distâncias eram enormes neste lugar, centenas e milhares de quilômetros. Para se
chegar à próxima aldeia era preciso caminhar uns cento e cinqüenta quilômetros,
algo, sem dúvida, muito cansativo. Até mesmo a cavalo é um percurso e tanto.
Imagine-se penetrando no acampamento do inimigo para revidar um golpe de
Ben e Tambor. Não teria a menor graça eles a combaterem se você estivesse
cansada. Que espécie de honra haveria nisso? Eles gostariam que você estivesse
na melhor forma possível, que fosse uma grande guerreira, para gozar da honra
de a combater. Lembre-se, também, de que todo guerreiro jovem revidaria os
golpes de um grande guerreiro. Acontecia então que os moradores do
acampamento a levariam para aquilo que se chamava o tipi, a tenda do inimigo.
Servir-lhe-iam o melhor alimento e lhe dariam o que existisse de bom. O
acampamento inteiro ficaria excitado e iria ver Lynn, a grande guerreira. Agnes
disse achar que isso substituía a televisão e o rádio, naqueles tempos.
— No dia seguinte você iria combater Tambor. Vestia os melhores trajes.
Sua faca e sua machadinha estavam afiados. O acampamento inteiro espiava. A
intenção não era matar Tambor, feri-lo ou tirar-lhe o escalpo, mas humilhá-lo,
cortar suas trancas ou fazer todo mundo encará-lo como um covarde. Você se
entrega a uma grande luta com Tambor. Todo mundo nota que você combate
melhor. Sabem que você pode cortar as trancas dele, mas nem isso você faz. Em
vez disso, corta as calças dele e lhe arranca um tufo de pêlos do púbis. Todo
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mundo ri, às gargalhadas. Você se volta e oferece as costas a Tambor, de tal
modo que ele possa matá-la, mas sabe que ele não o fará. Se agisse assim,
jamais seria um grande guerreiro. Nenhum ser humano voltaria a respeitá-lo. Em
um ou dois dias você luta com Ben ou com qualquer outro guerreiro que a
desafie. Durante esse tempo todo permanece no tipi do inimigo e é tratada com
honra e respeito. Isso é que é guerrear.
Era importante, segundo Agnes, que eu ficasse conhecendo o roubo.
— O roubo é uma arte, é irmão da feitiçaria, e todos os verdadeiros
feiticeiros sabem como roubar o poder. O poder pode lhe ser confiado ou então
roubado por você, mas, em qualquer uma dessas situações, é preciso saber como
conservá-lo. Existem determinados poderes que um feiticeiro leva consigo, ao
morrer, que se infiltram na mãe-terra e retornam à sua fonte. Existem lugares
escondidos em todo o mundo, onde os grandes chefes dançavam pelo poder, e o
espírito daqueles guerreiros mortos reside lá. Se você puder encontrar um desses
lugares e conquistar o espírito, então poderá obter sua força e ele se sentirá
grandemente honrado. Para fazer isso é preciso ser uma grande guerreira. Em
algum ponto da mãe-terra estão os lugares onde grandes homens como Buda,
Cristo e o Cavalo Louco encontraram seu poder. Se o poder lhe for confiado,
você precisa saber como conservá-lo. Se roubar o poder, provavelmente não lhe
será tão árduo mantê-lo. Se tropeçar no poder e não assumi-lo por falta de
coragem, então não será digna de se tornar uma feiticeira. Vê agora por que é
preciso, antes de mais nada, ter um coração corajoso, antes de assumir o poder?
Ela não esperou resposta e prosseguiu:
— Em primeiro lugar, na lista do que um grande guerreiro devia roubar,
estava uma mulher ou um homem. Não fazia diferença alguma. Para uma
mulher ou um homem era uma honra ser roubado por um herói assim. Muitos
casamentos aconteceram dessa forma. Lembre-se de que, nos dias a que me
refiro, era proibido casar com alguém do mesmo acampamento. Na ordem de
importância das coisas a serem roubadas vinham os escudos, as lanças, tacapes,
flechas grandes, arcos etc. Se um grande guerreiro conseguisse roubar esses
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objetos, tanto melhor. Agora, porém, preciso falar de um ganho ainda maior.
Como vê, havia muitos caminhos que levavam ao poder. O poder é obtido
basicamente a partir das visões e sonhos, mas agora espero que faça sentido para
você o fato de que também é honroso roubar o poder. Para fazer isso, era
necessário roubar os grandes escudos mágicos, os objetos de poder, as poções,
enfim, tudo o que continha poder. Mesmo assim, esses objetos de nada serviam,
a menos que você soubesse como usá-los. Mal empregados, podiam matá-la ou
feri-la. O risco era muito grande. Roubar poder era o que havia de mais
perigoso, pois, caso se apoderasse de um desses objetos, era dever de quem os
detinha matá-la. Havia coisas ainda mais perigosas de se roubar. Se você
conseguisse roubar sorrateiramente uma canção ou um ritual de poder, era dever
do acampamento inteiro matá-la.
Conforme o relato de Agnes, o roubo era o único método que um grande
guerreiro tinha para se sobressair e se tornar uma pessoa que cura. Os guerreiros
do céu sorriam quando um grande guerreiro roubava o poder.
— Finja que você precisa me enfrentar para obter o poder.
Finja por um momento que é mais poderosa do que eu e que consegue
lembrar-se de mim em outras vidas, do mesmo modo como Tambor tentou
matá-la. Graças ao seu poder de cura, você conseguirá roubar tudo aquilo com
que realizo minhas curas. O que faço, então? Sou uma velha, mas isso não é
desculpa. Você é mais forte do que eu e sei disso. Sinto-me honrada. Choro,
suplico ao Grande Espírito que cuide de você e lhe conceda ainda mais poder.
Você veio da tenda do inimigo e eu me sinto honrada. Uma curandeira é sempre
honrada por aquela que a sucede. Os mestres querem que seu conhecimento seja
roubado. É assim que costumava ser. É assim que continua sendo. O antigo
modo de proceder ainda pertence àqueles que detêm o conhecimento, mas agora
as coisas já não são mais o que aparentam ser.
Depois de uma pausa, a mulher prosseguiu:
— Aquele velho caminho era bom, era suave. Então tudo neste mundo
mudou de repente. Contam que um homem chegou numa aldeia Dakota. Foi o
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primeiro homem branco que se viu e todo mundo ficou curioso. Não se tinha
certeza do que ele era, se um homem ou qualquer outra coisa. Os curandeiros se
aproximaram e o olharam, seguidos dos chefes. Um curandeiro balançou a
cabeça e disse: "Talvez este homem, se for um homem e não um espírito, tenha
comido giz demais". O homem branco tentou dizer a todos que morria de fome.
Como, porém, ninguém entendesse sua língua e ele não soubesse como se
comunicar por meio de sinais, a situação não ficou nada boa para ele. Os chefes
disseram: "Se for um homem, deve ter alguma doença estranha e talvez ela se
espalhe. Não quero mudar de cor e ficar como ele. Vai morrer, devemos matá-lo.
E se ele não for um ser de duas pernas e tiver assumido essa forma por alguma
razão, não terá a menor importância matá-lo". Qualquer que fosse a solução,
julgava-se que matá-lo seria um ato de misericórdia.
Continuei prestando atenção e anotando a história de Agnes:
— Àquela altura, algumas mulheres que tinham vindo espiar o homem
branco disseram: "Mas será que vocês não percebem?
Ele é apenas um homem como qualquer outro. Morrerá de fome, a menos
que consiga algo para comer. Dêem-lhe uma faca e deixem-no cortar um pouco
de carne da carcaça daqueles veados". Naquele tempo, a gordura não era nada
abundante. Era a parte mais importante e valorizada de qualquer animal. Se um
ser humano não a obtivesse em quantidade suficiente, morreria rapidamente e
não havia muitos lugares onde consegui-la. A gordura era preciosa. Certa
mulher deu uma faca ao homem branco e apontou para os veados que estavam
dependurados ali perto. O homem correu até eles, cortou a gordura de cada
animal e a comeu. Foi o primeiro homem branco que vimos na vida e os Dakota
o chamaram de wasicku, que quer dizer pega-a-gordura.
Conforme disse Agnes, os curandeiros olharam para aquele branco com
gordura de veado descendo-lhe pelo rosto e então encararam-se. Sabiam que
tudo chegara ao fim e tinham razão. As compridas facas surgiram e retalharam
muito mais do que gordura de veado. Depois disso, tudo terminou, e hoje temos
este arco mundial, tão grande, o arco de muitas nações.
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— Nossas curas permaneceram, mas tiveram de ser escondidas. O
verdadeiro conhecimento, porém, sempre foi escondido e dado somente àqueles
que o merecem. Tem de ser assim. Existem muitos segredos e vários deles estão
vindo à luz em nosso tempo. Cão-Vermelho é mestre de todas essas artes
perdidas. Antes de mais nada, sabe como manter o poder e como rouba* Io.
Pegou o cesto de casamento, não é mesmo? Diz: "Quem ousará me enfrentar?
Quem me derrotará? Quem tem poder suficiente para roubá-lo de mim?". Em
seu mundo, todos os grandes roubos são feitos no papel. Sim, escreva tudo isso.
Talvez devesse escrever um livro sobre Cão-Vermelho. Isso daria conta dele.
Não gostaria nem um pouco, pois aprecia permanecer disfarçado. Aprenda como
vê-lo. Você fiou-se mais do que devia em muita coisa. Sua visão não passa de
uma olhadela. Tudo é disfarçado.
A mulher estava terminando o relato:
— O que é uma curandeira? Somos viajantes das dimensões. Não seja
aprisionada nos prismas da eternidade. Comece a pensar com seu estômago.
Existem dois cães que estão de guarda em seu estômago. Seus nomes são ciúme
e medo. Um dos cães de guarda é ciumentamente temeroso, o outro,
temerosamente ciumento. São os feitiços que a protegerão. Continue a usar sua
intuição. Você jamais conseguirá resolver um problema no nível em que ele
nasce. Para poder roubar o cesto de casamento, você tem de ser incansável em
sua busca. Seja dona de seu destino, pois tem a necessidade de manifestar-se.
Agora está caminhando em direção às montanhas sagradas, onde o urso dança
com as flechas de penas brancas. Ouviu as sonhadoras. As emoções nascem no
momento em que você se liga a algo e você está ligada às sonhadoras. Siga a
trilha correta e se tornará algo. Torne-se uma mulher. No seu mundo, a
feminilidade está perdida.
Agnes parou de falar. Terminei de escrever e tomei o último gole de chá.
Não sabia o que dizer. Agnes saiu da cabana e o sol quente penetrou nela. Ouvi
os pássaros cantar. Agnes abriu a porta.
— Ponha suas anotações de lado e siga-me.
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Seguimos rapidamente pela trilha e viramos à esquerda, saindo numa
campina repleta de flores amarelas. Abelhas e gafanhotos adejavam e pulavam
nas plantas. O sol queimava e era maravilhoso vê-lo. Antes de voltar para a
cabana, Agnes disse-me para passar o resto do dia no campo e não me sentir
separada daquilo "que é visto". Fiquei caminhando até o fim da tarde.
Já estava quase escuro quando ouvi Agnes me chamar para comer. Assim
que percebi sua voz, fui correndo para a cabana, onde o cheiro da comida era
uma delícia.
Agnes serviu-me um prato de sopa, cujo gosto era estranho e saboroso. O
crepúsculo nos rodeava com suas sombras cinzentas, impondo-se à pequenina
luz bruxuleante de nossa vela. Um vento suave soprava através da porta aberta.
Agnes sentou-se na cama, remendando um velho mackinaw. Sem erguer os
olhos, fez uma pergunta.
— Lynn, o que você quer de verdade?
— O que você acha que quero? Quero o cesto de casamento. Agnes não
disse nada. Tomei a última colherada de sopa e pus o prato de lado. Agnes
interrompeu o que fazia e olhou-me fixamente.
— Para conseguir o cesto de casamento você precisa tornar-se o
receptáculo apropriado. Precisa rasgar seu vazio, de tal modo que a energia
daquilo que você deseja, no caso o cesto, fluirá magneticamente em direção a
seu estômago. Você tem de se tornar aquilo que ela quer, a fim de que não haja
como separá-las. Quando pensar em si mesma como uma entidade separada,
obstruirá a corrente e o cesto a derrotará.
Eu estava por demais surpreendida com aqueles termos.
— Como saberei que rasguei meu vazio?
— Simplesmente se tornará consciente de seu poder. Sentirá que seu
tempo chegou. Não poderá evitá-lo!
— Agnes, não compreendo sua terminologia. Como posso aprender todas
essas coisas?
— E por isso que você está aqui. Para aprender.
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Ela pôs o mackinaw na gaveta da cômoda, foi para o alpendre e sentou-se.
Servi-me uma xícara de chá e a segui. Agnes contemplava os clarões que
iluminavam o céu, ao norte. Dourados e rosados, pareciam anunciar o carnaval,
no outro lado do mundo. Sentei-me nos degraus do alpendre e fiquei
maravilhada com o reflexo cambiante das cores no rosto daquela mulher tão
estranha. Sentia por ela uma especial ternura. Seu rosto era mensageiro de uma
grande dor para mim, pois recordava-me que aquilo que eu conhecera como vida
agora morria. Não conseguia sequer explicar a mim mesma como eu estava
diferente, mas sabia que me transformava numa pessoa que jamais teria
reconhecido, há alguns meses. Era como se apaixonar.
— Hoje à noite as antepassadas têm uma dádiva vital para você. Vão dar-
lhe seu feitiço. — Agnes fez um gesto, indicando que eu fosse sentar-me perto
dela. — Se você fosse um animal, qual deles seria?
Fiquei intrigada.
— Você sempre me faz perguntas que tenho dificuldade em responder. —
Pensei durante alguns minutos. — Sempre gostei de cavalos. Ou um veado,
quem sabe?
— Você é um lobo negro — disse Agnes sorrindo. Observou minha
reação, estendeu a mão e tocou minha testa. — Desperte dentro de você mesma.
— Agnes retirou o dedo. Seu toque transmitiu uma sensação estranha a todo
meu corpo. — Você é o lobo negro e não o lobo branco, porque usava o manto
negro da contemplação. Se fosse o lobo branco, você se mostraria mais voltada
para fora, mais extrovertida. Você rastreia as florestas, à procura do que deseja,
volta em seguida a matilha, enrodilha-se, aquecendo-se aos raios do sol e reflete.
É um lobo solitário que tem medo de ser só.
Agnes começou então a contar uma história:
— No início, quando o mundo foi formado, os chefes enviaram os filhotes
de lobos a fim de o explorar e o medir. Percorreram todas as trilhas do mundo e
disseram: "É assim que ele é e é assim que ele foi". A cura, por meio do lobo,
significa a medida de tudo. Os lobos são bons matemáticos, caso o desejem. Se
121
você forma uma unidade com seu feitiço, jamais poderá ser logrado, pois
percorreu todas as trilhas. Trata-se de um feitiço poderoso e hipnótico. Quer um
exemplo?
Confirmei que sim, e Agnes completou:
— O lobo vai até o rio de manhãzinha. Vê seu alimento nadando e, nas
margens, corre e brinca. Os gansos ficam intrigados e fascinados. Nadam em
direção ao lobo brincalhão. Quando as aves estão suficientemente próximas, ele
pula dentro da água e mata quantos gansos puder. Seu feitiço, portanto, pode ser
muito perigoso. Um caçador teria muita sorte se pudesse matar ou prender numa
armadilha até mesmo um único lobo, e isso porque o lobo revela aos demais
lobos quais são as intenções do caçador. Se você fosse uma caçadora, isso seria
impossível. Não se pode matar o próprio feitiço. Caso o fizesse, ficaria numa
situação muito difícil. Os lobos criaram a primeira escola e foram os primeiros
professores. O lobo vive de um modo tal que torna sua matilha mais forte.
Sempre providencia comida para os animais velhos e doentes, treina os filhotes
e defende seu território contra outros lobos. É capaz de rastrear sua presa como
nenhum outro animal. Tem resistência e é capaz de ficar sem comer durante
períodos prolongados. O lobo é um grande remédio e você tem de se lembrar de
que não o escolhi para você. Você é lobo.
Agnes recostou-se na cadeira.
— Estou começando a perceber — eu disse. — Você tocou algo de muito
fundo em mim. Sinto-me uma espécie de lobo. Gosto de descobrir novas trilhas
e sinto, no centro de meu ser, um novo tipo de percepção. Hyemeyohsts
Tempestade devia saber qual é meu remédio, pois me deu um pedaço de pele de
lobo. Qual é a finalidade de se ter um feitiço?
Eu me surpreendia ao constatar o quanto me sentia semelhante a uma
loba.
— A finalidade do feitiço é o poder. Você pode procurar um psiquiatra e
ele a deixará confusa. Na verdade o que ele faz é ajudá-la a ser introspectiva e a
conhecer seu próprio caráter. Como, porém, os nativos observaram os animais
122
de quatro patas, os animais alados e todas as forças da natureza, durante
milhares de anos, agora conhecemos nossos parentescos mais próximos. Todos
os feitiços são bons e têm poder. Os brancos afirmam; "Não sou uma cobra. Não
sou um esquilo. Sou algo importante". Eles separam e é essa sua tragédia.
Agnes encarou-me por alguns momentos e em seus olhos refletiam-se as
nuanças cambiantes dos clarões que vinham do norte. Minha mente estava
repleta dessa nova informação. Tirei a pele de lobo do bolso e senti sua maciez.
Agnes levantou-se de repente e entrou na cabana, sem dizer mais nada.
— Limpe a cabana — disse-me. — Ruby e July chegarão em breve.
Vamos tomar um suadouro juntas, na cabana de transpirar, ao lado do regato. Há
muito o que aprender e muitos significados nesta experiência à qual você se
destina.
— E qual é o propósito da cabana de transpirar? — perguntei, nervosa.
— Daqui a pouco chego lá. E muito complicado. O objetivo da
transpiração é purificar o espírito e o corpo, a fim de facilitar a comunicação
com o Grande Espírito. Hoje à noite quero que você ouça seu próprio feitiço, seu
eu de lobo negro. Através dessa purificação encontrará orientação e
revitalização.
Agnes falou-me demoradamente sobre o significado da cabana de
transpiração.
— Precisamos agir rapidamente, caso você seja aquela que roubar o cesto
do Cão-Vermelho — disse ela. — Hoje à noite, depois que seu espírito for
purificado, pintarei seu corpo e dançaremos sua dança para o espírito do mundo.
Você se transformará e se tornará uma só com seu feitiço. Conhecerá seu poder.
Dançará num lugar que ficará impregnado com sua energia de loba. Será um de
seus lugares de poder. Pense nessas coisas e, então, se quiser verdadeiramente o
poder, tudo o que tem a fazer é submeter-se a ele.
Saímos e os clarões do norte se intensificaram, numa combinação feérica
de laranjas, verdes e brancos-azulados. Vindo de muito longe, eu ouvia a
melodia da flauta. Daí a alguns momentos percebi as formas escuras da velha e
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da menina surgirem em meio à penumbra.
— Já estava quase esquecendo do suadouro — disse Ruby —, mas cá
estamos nós.
Ela não parecia fatigada de seu prolongado passeio e, parada ao lado dela,
senti um certo desassossego.
Agnes juntou-nos, como uma galinha zelosa de sua ninhada, e nos fez
percorrer às pressas a picada que levava ao regato do Homem-Morto. Tirei do
carro minha velha toalha. O ar estava perfumado e ouvia-se o clamor dos
pequeninos seres que povoavam o mato.
Ruby e Agnes riam e iam à frente. July, que pisava com tanta firmeza
quanto a Pintada, seguia logo após, tocando sem parar. Percebi a distância uma
pequena elevação, que até então não notara. Quando July e eu chegamos junto
dela, Agnes disse-me para sentar e ficar em silêncio.
— Apenas olhe-nos ajeitar a fogueira e aquecer as pedras. Pense nela
como o fogo eterno. É construída de um modo sagrado e, através do fogo, nós
nos purificaremos, ficando mais próximas da fonte de todo poder. Sente-se de
um modo sagrado e sonhe.
Agnes deixou-me acomodada no chão, junto ao regato.
Notei que Ruby pusera a flauta de July junto à bolsa onde Agnes guardava
seu cachimbo. A jovem agora estava dócil e quieta, o que muito me
surpreendeu. Sentamos ao lado uma da outra, numa clareira da floresta. Os
clarões do norte não eram mais tão fortes e as estrelas eram pingos cerrados, de
um azul brilhante, no céu negro. Agora que a fogueira começava a crepitar, ele
parecia ainda mais escuro. Grandes chamas amarelas e alaranjadas erguiam-se
na noite e o ar estava abafado. Agnes sentou-se próximo à fogueira, com o rosto
banhado por uma luz alaranjada. Começou a bater suavemente no tambor e a
cantar. Entoou então seus cânticos durante muito tempo e, em seguida, começou
a rezar, dirigindo suas preces à fogueira.
Decorridos alguns minutos, Ruby disse "Ho!". Agnes foi até o montículo
de terra e pôs no chão seu cachimbo, repleto de fumo. Conduzidas por ela, July e
124
eu tiramos as roupas e entramos na cabana. Foi preciso nos abaixar bastante,
pois a entrada tinha apenas pouco mais de um metro de altura. Lá dentro fiz uma
prece silenciosa ao Grande Espírito. Agnes rezou em voz alta e nos
movimentamos em direção ao ponto correspondente ao nascer do sol. Sentei-me
então junto à porta, no lado oposto a Agnes. Permanecemos em silêncio por
alguns instantes e o ar estava carregado do cheiro de artemísia.
Anteriormente Agnes dissera que eu jamais deveria ser mesquinha, que
precisava pensar nas coisas mais elevadas e que deveria me lembrar da bondade
de tudo o que existe. Tentei agir assim, enquanto estávamos sentadas na
escuridão. A única luz que penetrava na cabana passava pelas abas que serviam
de porta. Lá fora a fogueira crepitava. Ruby cuidara dela para valer. Ela me
estendeu um cachimbo e o coloquei diante de mim, conforme as instruções de
Agnes, com o tubo apontado para o ocidente. Então, usando uma vara comprida
que terminava em for-quilha, Ruby arrastou um pedra incandescente para o
centro da cabana de transpiração, no altar escavado no chão. Meus joelhos quase
encostaram nela.
Ruby disse algo em cree. Agnes pediu-me que tocasse na pedra com uma
extremidade do cachimbo e então todas nós demos graças em cree.
Ruby trouxe para dentro mais pedras, colocando cada uma delas em
determinada direção. Uma das pedras pertencia à terra e, outra, ao céu. Agnes
disse-me para oferecer o cachimbo ao céu, à terra, aos quatro pontos cardeais e,
em seguida, acendê-lo. Depois de dar umas baforadas e esfregar a fumaça no
meu corpo todo, passei o cachimbo para July, que estava à minha esquerda. Ela
o pegou e fumou. Agnes fez o mesmo, devolveu-o para mim, disse que o
purificasse e o esvaziasse cora todo cuidado, colocando as cinzas na borda do
altar sagrado. Ordenou-me em seguida que lhe devolvesse o cachimbo, o qual
deveria passar pelas mãos de nós todas. Segurou-o em cima do altar, com o tubo
apontado para o ocidente e, logo após, movimentou-se paralelamente à trilha
sagrada que se dirigia para o oriente. Ruby, que estava do lado de fora, bem
junto à porta, pegou-o.
125
As pedras, no centro, estavam incandescentes, de um vermelho feérico. A
cabana era pequena e talvez medisse uns dois metros e meio de largura.
Semelhante a um cesto, era um ventre de galhos de salgueiro recurvados,
cobertos com várias camadas de couro. De repente Ruby desceu as abas, que
cerravam a porta, e pôs uma manta em cima da entrada. Ficamos mergulhadas
na escuridão e Agnes disse-me que ela representava a escuridão da alma, a
ignorância da qual devíamos nos purificar, para que pudéssemos ter luz.
Ouvi a voz de Agnes na escuridão.
— Durante a cerimônia, as abas que servem de porta serão abertas quatro
vezes, para lembrar-nos que recebemos a luz durante as quatro idades. — Ela
começou a recitar em cree uma comprida oração para os espíritos. — As
toupeiras, relâmpagos do fundo da terra — disse. Derramou então quatro vezes
água em cima das pedras, contida num caneco de madeira, e, enquanto isso,
rezava para os antepassados.
O vapor cheiroso zumbiu e subiu, em forma de espiral. O interior da
cabana tornava-se incrivelmente quente e fiquei impressionada com a escuridão.
Tudo se tornava denso, negro, espesso. Agnes invocou então o Facho de Luz ou
a Brilhante Estrela d'Alva e borrifou as pedras com água mais quatro vezes.
Enfiei a cabeça entre os joelhos, a fim de respirar melhor. Em seguida ela
invocou o arco-íris, as águias e entoou uma canção melodiosa e suplicante. Ela
estava muito emotiva e comecei a chorar. Julguei que o calor alcançaria
determinado nível e, em seguida, pararia, mas ele prosseguiu e intensificou-se
quase além do suportável. As pedras incandescentes se pareciam com os olhos
faiscantes do centro da terra. Agnes invocou seus poderes de modificação, os
veados, e borrifou água mais quatro vezes. Percebi que estava rezando em voz
alta. Fios de suor deslizavam de meu couro cabeludo e cobriam meus olhos.
Misturei-me àquele calor intenso.
Ruby afastou a manta e as abas. Uma lufada de ar fresco nos envolveu. A
luz da fogueira projetou sombras fantasmagóricas em nosso bolsão escuro de
preces sagradas. Fiquei desorientada com aquela luz súbita, mas aliviada por
126
poder respirar. Agnes fez circular um caneco com água e todas nós a esfregamos
nos corpos. Senti-me humilde e agradecida.
As abas voltaram a ser fechadas e tomei consciência de July, que se
balançava para frente e para trás, murmurando qualquer coisa. De repente ela
começou a soluçar desesperadamente. Comecei a refletir sobre a dor que existia
no mundo. Não sabia se o que descia por meu rosto eram lágrimas ou suor. Mal
conseguia respirar. Estava mergulhada num buraco negro de tristeza e abandono.
Um vapor que tremeluzia ergueu-se, espalhando-se pela cabana.
— Lynn — disse Agnes —, você chegou até mim como uma guerreira do
arco-íris. E uma ponte entre o mundo índio e o mundo branco, uma ponte nesta
grande Ilha da Tartaruga. Quando se conhecer, saberá qual é seu caminho.
Quando souber qual é seu caminho, saberá o que é autoridade. Quando souber o
que é autoridade, verá o espírito. Quando vir o espírito, verá as pessoas.
Em seguida ela me orientou para invocar a loba, meu feitiço.
— Estou te ensinando sua canção. Ouça e cante comigo. Enquanto eu
cantava, de olhos fechados, uma roda verde e azul surgiu por detrás de minhas
pálpebras. Girou primeiro para a direita, em seguida para a esquerda e
hipnotizou-me. Tive uma visão. Estava fora da cabana e, parada a meu lado,
encontrava-se uma velha com uma menina.
— Como foi que chegaram até aqui? — perguntei. — Quem são vocês?
— Todas as trilhas conduzem ao centro, e também todos os espíritos. —
A visão desapareceu e eu estava de volta à cabana.
— O que foi que viu? Onde estava? — ouvi Agnes perguntar. Contei-lhe
o que tinha acontecido.
— Foi a Menina-Lobo e sua avó que lhe apareceram — disse Agnes. — O
que disseram?
Fiz o meu relato.
— Sim, todos os caminhos, todas as religiões, conduzem de volta ao
centro. Caminhe na trilha do bem.
— Mas não entendo quem eram a velha e a menina.
127
— São o feitiço do lobo.
— Mas o que isso significa?
— Expliquemos assim, minha filha: o amor é um bom guia. O
conhecimento é um bom guia. Compartilhar é um bom guia. O auto-aprendizado
é um bom guia. Não tenho de acreditar para conhecer a mágoa — sei quando
estou magoada. Não tenho de acreditar para conhecer o amor — sei quando
amo. Não tenho de acreditar para sentir alegria— sei quando estou alegre. Para
estar aqui, eu existo aqui. Não acredito, portanto, que você é apenas humana.
Conheça-se. Existem muitos feitiços.
— Suas palavras estão me fazendo sentir bem, Agnes, mas, em minha
mente, elas não se conectam.
— Certa vez você teve uma criança.
— Sim.
— Não estava em sua mente ter uma criança. Você encerrava uma menina
em todo seu ser, não apenas na mente. Deixe-a nascer.
Tive uma sensação de impotência, como se cordas, enroladas em torno de
mim, impedissem meus menores movimentos. Sentia vontade de gritar, correr,
escapar daquele calor e daquele confinamento torturante. Obriguei-me a me
submeter, mas então, milagrosamente, a escuridão começou a respirar comigo.
O fulgor das pedras começou a pulsar com as batidas do meu coração. Tinha a
impressão de que meu corpo derretia e eu cerrava os punhos de um jeito muito
estranho. Tentei afastar os dedos, mas eles se recurvaram, como garras, e eu não
conseguia mexê-los. Eu me encolhia, aprumava a cabeça para o lado e, quando
pisquei os olhos, naquela penumbra perfumada, senti o rosto gelado. Meus
lábios se retraíram e meus dentes apareceram. Eu rosnava e todas as barreiras
caíram. Senti o pêlo negro e macio, abaixo da barriga. Eu era a loba principal,
jogava a cabeça para trás e uivava em silêncio.
Agnes falava suavemente em cree. Não conseguia entender suas palavras,
mas sabia que elas tinham o propósito de me tranqüilizar.
As abas da cabana abriram-se e voltaram a se fechar. Eu estava totalmente
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possuída pelo espírito da loba e não sentia sensação alguma que não fossem as
sensações de um lobo. Deitei-me bem junto a meus filhotes, que ganiram e se
lamuriaram, no escuro covil feito de labirintos. Perdi toda a noção do que
aconteceu em seguida, mas, decorrido algum tempo, ouvi o murmúrio da água
do regato. Agnes estava sentada a meu lado.
— Você foi abençoada hoje à noite, Lynn — disse. — Sua lobice é muito
poderosa.
Comecei a tremer, assustada.
— Não conseguia endireitar os dedos e de repente tornei-me uma loba de
verdade.
— Não se preocupe. Sinto-me feliz. As sonhadoras tinham razão. Você é
a caçadora perfeita para roubar o cesto.
Fui revivendo lentamente. Meu cabelo estava molhado e grudava na
cabeça. Agnes pôs uma manta de lã em torno de meus ombros, com cheiro de
cedro. O barulho do regato tornou-se nítido, mais alto. Tentei levantar-me, mas
Agnes me impediu.
— Fique aqui um pouco.
Ela foi para junto de Ruby, na fogueira, e, com ela, começou a bater o
tambor. Eu apenas conseguia distinguir suas silhuetas na escuridão.
Uma pequena fatia da lua nova agora pairava sobre as colinas e sua luz
iluminava debilmente o céu. July estava sentada ao lado do regato,
contemplando o reflexo plácido e prateado da lua flutuando na água. Uma flor,
que só desabrochava à noite, perfumava o ar.
— Venha — disse Agnes, voltando-se para mim. — Vamos comer lá na
cabana e em seguida a prepararemos para sua dança.
Ela seguiu pela trilha, em passos rápidos. Eu a segui, esquecendo a
exaustão.
— Como foi que você disse, Agnes? Minha dança? Agnes resmungou um
"Sim" e eu me voltei para espiar July, que voltara a tocar a flauta.
Após comermos qualquer coisa na cabana, deitei-me para repousar e mal
129
percebi que Ruby e Agnes saíam. Meu sono foi embalado por lufadas de vento,
que sopravam sobre as árvores. Sonhei que era prisioneira de um gigantesco
cesto de casamento e não conseguia sair dele. Escorregava, toda vez que tentava
subir por um dos lados.
— Acorde, Lynn — disse Agnes, sacudindo-me. Alegrei-me por me livrar
daquele sonho.
— O cesto! Voltei a sonhar com ele.
— Sabia que você sonhava com alguma coisa. Tinha um jeito muito
engraçado — observou Agnes, sorrindo.
Ruby também debruçava-se sobre mim, divertida e curiosa. Sorria. Fiquei
desconcertada, pois ela jamais sorrira para mim. Era inacreditável contemplar
aquele rosto enrugado e sorridente.
Agnes me pegou pelo braço, levando-me para fora. Devia ser mais de
meia-noite.
— Para você esta noite é sagrada. Ajeite-se daquele jeito sagrado,
conforme lhe ensinei, e, em breve, compareceremos diante do poder. Ouça seus
primos cantando. Volto logo.
Agnes entrou na cabana, deixando-me parada. Os coiotes uivavam a
distância, nas colinas. July dormia, mas continuava sentada, encostada num
esteio. Notei as três formas oscilando ao vento, sentei nos degraus do alpendre e
aguardei.
Agnes e Ruby surgiram daí a alguns minutos. Percorremos uma boa
distância, fomos até um pequeno bosque de cedros e viramos abruptamente à
direita, entre dois matacões que se erguiam acima de nossas cabeças. O barulho
do cascalho sob nossos pés rompia o silêncio da noite. A picada estreita seguia
através de outros matacões e me sentia tonta e desorientada. Agnes e Ruby
estavam tão próximas de mim que eu conseguia sentir sua respiração.
Chegamos rapidamente a uma clareira e pairava no ar o cheiro de algo
diferente. Percebi que era o de enxofre, ou algo muito parecido, misturado com
o agradável aroma de artemísia e cedro. Deparamos então com uma fogueira
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crepitante, que, pelo visto, tinha sido acesa há algum tempo. Ruby, por meio de
um abano, fez as chamas se levantarem.
Enquanto eu olhava ao redor, a visão parecia diminuir parcialmente.
Agnes me fez aproximar da fogueira, ao lado da qual estendeu uma velha manta
índia, muito bela, tecida em preto e vermelho. Nas proximidades havia uma
nascente, que desprendia vapor.
— Tire a roupa, Lynn, e sente-se sobre a manta — disse Agnes.
Ela se afastou, enquanto eu me despia, e daí a poucos voltou com dois
potes de argila, dentro dos quais havia varetas. Ruby entoava um cântico, atrás
de mim. Agnes rezou e o tambor soou, por meio de batidas contínuas e
profundas. As duas iniciaram uma bela canção, numa linguagem misteriosa, que
ecoava no mais fundo da mata. Como gostaria de saber o significado daquelas
palavras tão antigas...
Os carvões estavam incandescentes e as chamas se alteavam, a cada
mudança sutil do vento. Senti o calor sobre minha pele nua. A manta era áspera
e sua trama muito compacta. Ruby e Agnes dançavam para frente e para trás. Eu
fiquei no meio e Agnes sacudia o chocalho junto ao meu ouvido, quando se
aproximava o suficiente. Eu estava exultante, mas ainda me sentia desorientada.
Ruby foi para o outro lado da fogueira e continuou a bater o tambor, entoando
seus cânticos baixinho.
Agnes sentou-se diante de mim e, após prolongada hesitação, manifestou-
se.
— Nós a trouxemos a este lugar sagrado, escondido. Aqui passará por um
novo nascimento, pois será pintada e mudará para sempre. Pelo fato de ser
pintada, começará um novo relacionamento com seu feitiço de loba e assumirá
novas responsabilidades.
Agnes enfiou o dedo num dos potes de argila. Tocou o centro de minha
cabeça, onde estava a risca dos cabelos. Senti que seu dedo estava úmido e ela
traçou uma linha até o centro.
— Para a mulher a cor da pintura é o vermelho — disse. — A linha
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vermelha a une com a terra, onde tudo habita e é fértil.
Por meio de movimentos seguros, Agnes passou mais duas camadas de
tinta debaixo de meus olhos. A tinta era fria, tinha um cheiro de flores e, por um
momento, tive a impressão de que me queimava a pele.
— Grande Espírito, é tua vontade que esta jovem esteja aqui para ser
pintada. Sentada neste solo antigo e sagrado, deixa que nasça pura, como
aconteceu na tua cabana de transpiração. Enquanto a pinto desta maneira
sagrada, purifica-a mais uma vez. Separa esta jovem de suas dores do passado.
Terminada essa fala, Agnes me disse para levantar. Obedeci prontamente
e ela pintou minhas pernas de vermelho, até os joelhos. Fiquei parada, sem ter
uma clara noção de mim mesma, e encarava a fogueira, não prestando atenção
em mais nada, a não ser nos movimentos de Agnes. Ela pintou linhas onduladas
no meu braço esquerdo, de alto a baixo, e fez o mesmo com o direito, depois
andou em torno de mim quatro vezes.
— Atraímos a morte até aqui esta noite — disse Agnes, voltando a me
encarar. — Este poder permanece conosco. Matamos tantas coisas... Você agora
percorre a trilha sagrada e iniciou uma nova caminhada. Saúdo aquele que nos
observa, o guardião daquilo que está muito distante. Estas linhas em seus braços
são o símbolo do arco-íris, o arco das sonhadoras.
Eu estava perfeitamente calma e observava Agnes com o coração, de
olhos fechados. Sentia profundamente seu toque, toda vez que ela me pintava.
Abri os olhos e vi lágrimas escorrendo por seu rosto. Ela abaixou, pegou uma
trouxa de pele de gamo, dobrada, levantou-a com as duas mãos e estendeu-a
para mim. O tambor de Ruby ressoava em meu peito, empurrando-me como se
fosse uma mão espalmada.
— Ponha isto — disse Agnes. Peguei a trouxa. — E um vestido e um par
de mocassins. Usava-os, quando era moça. Hoje à noite você tem roupas novas,
porque é uma nova mulher.
Vesti o que ela me oferecia com muito cuidado. O traje era resplandecente
e tinha contas de vidro que brilhavam à luz da fogueira como gotas de ouro.
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Havia vários símbolos e desenhos tecidos com espinhos de ouriço. As franjas
pendiam das mangas e da barra. O vestido me serviu perfeitamente, bem como
os mocassins bordados com contas.
— Você está aprendendo as artes heyoka — declarou Agnes, apoiando a
mão no meu ombro. — Estes ornatos a ajudarão na aquisição do conhecimento,
e as penas serão um sinal de seu aprendizado.
Voltei meu rosto para a direita e para a esquerda, de modo que ela pudesse
trançar duas penas de coruja em meu cabelo.
Eu estava sendo levada de encontro a uma ternura feminina, dócil e
tranqüila. Por dentro era uma bolha feérica e latejante, que flutuava no espaço.
Tinha me esquecido do mundo.
— Sente-se, Lynn. Vou lhe falar de minha mestra. Há muito, muito
tempo, casei-me e tive uma filha. De vez em quando os invernos são rigorosos,
no norte. Certo dia de inverno, ela saiu da cabana e começou a andar pela neve.
Minha filha era muito menina, tinha apenas quatro anos. Os cachorros que
tínhamos eram treinados para serem ferozes. Chegaram até ela antes de mim e a
mataram. Nós a levamos para a cabana e a pusemos entre os dois, a noite inteira.
Tinha planejado dar à minha filha o vestido que você usa agora. Agora dou-o
para você. Ela se chamava Lobinha-Preta-Que-Dança. Após sua morte, eu
costumava olhar em direção ao oriente, onde o sol nasce, tentando devolver
minha filha à mãe-terra. Talvez eu tenha conservado o vestido porque não podia
deixar partir minha linda Lobinha-Preta-Que-Dança. Perscrutei então o ocidente,
onde o sol morre, mas, até o momento, não consegui deixar de lado meu pesar.
Do mesmo modo que a terra é minha mãe, eu sou sua mãe. Agora tenho uma
nova filha. Minha família, meu clã, a receberão como se você fosse um dos
nossos. Minha filhotinha de lobo pode viver novamente em você.
Eu não conseguia mais controlar as lágrimas. Agnes me deu um tapinha
afetuoso na mão e prosseguiu.
— Isto sucedeu antes que eu conhecesse o que quer que fosse, quando
achava que não valia a pena preocupar-se com as pessoas que curam. Logo
133
depois que isso aconteceu, meu marido morreu acidentalmente, quando cortava
uma árvore. Penso que o coração dele não agüentava mais, de tanta dor. Meu
sofrimento foi terrível. Foi então que procurei uma heyoka e ela me ensinou
tudo. O poder veio até mim e adquiri meu nome, que significa "aquela que
conhece segredos". Antes disso, não me importava com minha vida ou com o
que acontecesse comigo. Não percebi, mas existia um grande feitiço naquele
abandono. Ouvira dizer que a heyoka poderia responder qualquer pergunta e eu
queria que alguém me explicasse o motivo de meu grande pesar. A velha heyoka
sagrada respondia a tudo por meio de uma pergunta. Agia como se não
entendesse nada, até eu entender que ela vivia no centro do arco sagrado e tinha
o poder de modificar tudo, do jeito que quisesse. Passei horas falando-lhe de
minha filha morta. Quando terminei de falar, perguntei-lhe por que Lobinha-
Preta-Que-Dança morreu. Ela então me perguntou: "Quem quer saber quem
morreu?"
Agnes calou-se por alguns instantes, deixando a pergunta ecoar.
— Aquela mulher foi minha mestra. Deu-me seu feitiço, depois de muitos
anos, foi embora e morreu, feliz. Era uma mulher que estava em todos os lugares
e podia ver tudo. Amei-a assim que consegui conhecê-la e muito dela vive em
mim. Não sei o que teria sido de mim se ela não tivesse me mostrado o caminho.
Graças a ela, minha vida adquiriu um objetivo.
Os olhos de Agnes se encontraram com os meus e chorei até me livrar de
todas as mágoas. Levantei-me e nós duas nos afastamos da fogueira. Meus
novos mocassins eram bem apertados e eu conseguia sentir a terra sob meus pés.
Agnes carregava os dois chocalhos. Parou, bateu o pé no chão várias vezes e, de
repente, deu um pulo e girou. Começou a descrever um círculo em torno de
mim, inclinada para a frente. A postura de sua cabeça era tal que seus olhos me
enfrentavam, brilhantes e matreiros como os de um animal. Ela roçou a cadeira
em mim, pulou de lado e uivou. Algo cresceu dentro de mim e eu respondi por
meio de outro uivo. Tinha algo de melancólico e parecia vir de muito longe. O
som não era humano.
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De repente algo estalou e se rasgou dentro de meu peito. Parecia até que
as batidas do coração paravam e ouvi um arfar.
— Respire fundo em direção aos quatro pontos cardeais — ordenou-me
Agnes cora uma voz estranha, rosnante. — Jogue a cabeça para trás e encoste
ambos os punhos no queixo. Por enquanto não olhe para mim.
Obedeci suas instruções. A voz dela era assustadora.
— Repita o gesto e, desta vez, agache-se e cruze os braços por detrás,
expirando. Retire a energia da terra, enquanto expira. Roube essa energia,
batendo com o pé direito. Não erre. Os lobos conhecem este lugar e você
também. Gire sua cabeça para a esquerda, para a direita e, em seguida, para o
centro. Ótimo. Agora gire para o ocidente. Lamurie-se como um lobo e comece
a trotar.
Segui suas indicações o melhor que pude. A batida do tambor ressoou e
eu conseguia sentir os dedos espalmando-se sob meu peso, enquanto trotava e
gania. Voltamo-nos para o oriente e, ao esfregar o braço no rosto, senti o contato
de pêlos. Minhas orelhas empinaram-se para a frente. Meus olhos vigiavam, à
procura de uma presa imaginária. Trotamos rapidamente e diminuímos a
marcha, em direção ao norte e, em seguida, em direção ao sul. Ao chegarmos no
topo de uma colina, paramos e uivamos, mas não era Agnes que estava comigo.
Vi apenas uma loba, uma estranha irmã, naquela escuridão aveludada.
O tambor parou de tocar e o encantamento se rompeu. Minhas garras se
retraíram, minhas patas se encolheram e Agnes agora mudava de forma.
Levantou-se nas patas traseiras e tornou-se humana mais uma vez. Meu corpo
voltou a surgir. Mal consegui seguir Agnes até a nascente de águas quentes,
onde ela tirou meu vestido novo e me jogou dentro das águas sulfurosas. A água
tingiu-se de vermelho, por causa da pintura corporal, como se sangrasse com as
forças da natureza.
— Lave-se.
Fiz o que ela ordenava, saí da nascente e deitei-me na margem do regato,
entorpecida, enquanto contemplava as estrelas. Agnes jogou a manta por cima
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de mim.
— Vamos.
Carreguei meu belo traje e vesti os mocassins. Voltamos para a cabana e,
quando me enfiei no saco de dormir, o dia estava quase nascendo.

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A finalidade do feitiço é o poder.
— Agnes Alce-Que-Assovia

— Quero que você faça uma boneca loba — disse Agnes no dia seguinte.
Eu estava sentada à mesa e tomava chá de artemísia.
— Uma boneca loba? Algo assim como um fetiche?
— Você pode fazer disso o que bem entender, contanto que seja loba e
boneca. Poderá fazê-la de barro, capim seco, lascas de madeira, pedaços de
couro ou qualquer outra coisa. Se quiser, poderá até mesmo entalhá-la.
— E de que tamanho será? — perguntei, excitada diante da perspectiva de
fazer meu próprio fetiche.
— Poderá ser tão grande ou tão pequena quanto você quiser. Ela a ajudará
de muitos modos. Você deverá lembrar-se constantemente da dança para seu
feitiço. Existem poderes maternos, dos quais tomou conhecimento, e certos
poderes agora precisam de sua proteção. O conhecimento veio até você sob a
forma de sonhos. As sonhadoras sonharam com você acordadas. Agora ponha
esses sonhos e poderes numa forma tangível. Poderá usá-los e eles lhe dirão
muita coisa. Faça uma boneca loba, que será sua intérprete quando quiser lançar
uma ponte entre os vários mundos. Quando terminar, mostre-me seu trabalho.
Agnes afastou-se, dando nosso diálogo por encerrado. Imagens de
bonecas índias que eu havia colecionado e vendido surgiram em minha mente.
Peguei uma faca, algo para comer e enveredei pela trilha, à procura de Pintada.
Pensava em seu comprido rabo negro. Era um dia úmido e nevoado, um dia
perfeito para dar forma aos meus sonhos. Subi rapidamente a encosta de uma
colina. Os vultos das pedras e do capim alto me rodeavam. A picada que levava
ao pasto do sul foi embaralhada pelas" formas móveis das árvores, que surgiam
no meio do nevoeiro e não me eram mais familiares. Ouvi asas ruflando, nos
galhos que pendiam.
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Cheguei ao pasto, que a neblina cobria como se fosse um manto, e
encontrei Pintada. Seus cascos desapareciam nas alvas camadas que se
estendiam a perder de vista.
Cortei um pedaço de seu rabo, para com ele fazer a boneca loba, e
perambulei pelos campos enevoados o resto do dia. Cavouquei o chão, trepei nas
árvores, à procura de penas, cascas, pedaços de pele, qualquer coisa que fosse
apropriada e fora do comum. Descobri um galho de madeira bastante macia,
perto do riacho do Homem-Morto, e que sugeria vagamente o corpo de um lobo.
Tinha cerca de 25 centímetros de comprimento e, em uma das extremidades,
surgiu uma cara que uivava, quando acabei de o entalhar. Peguei pedaços de
artemísia, pele e outras coisas e fiz uma pequena trouxa, amarrando-a na barriga
da loba. Os pêlos da égua serviram de rabo e entalhei em seu dorso símbolos que
representavam a águia noturna e o urso. Como tinha encontrado cola e um
pedaço de espelho na cabana de Agnes, utilizei a primeira para fixar pedaços de
conchas quebradas na boca e que imitavam dentes ameaçadores. Dois
pedacinhos de espelho serviram de olhos. Esmaguei algumas amoras do mato e
com seu suco vermelho, que parecia sangue, esfreguei a boneca. As unhas de
pássaros serviram perfeitamente de garras. A medida que eu desbastava a
madeira, colava e infundia poder no novo animal, ele começou a exibir uma
presença atemorizante. Enquanto trabalhava, surpreendi-me entoando uma
estranha canção. Eu a repetira várias vezes, antes de me dar conta do que fazia.
Era, para mim, uma canção saída de um sonho.
Meu boneco lobo estava terminado, quando o crepúsculo chegou. Tinha a
atitude de um animal feroz, que uivava, mas, ao mesmo tempo, havia nele
qualquer coisa de pássaro, por mais estranho que isso pudesse parecer. Isso
significava que ele conseguia voar entre os mundos, que se sentia à vontade
tanto na terra quanto no céu. Não sei por que o chamava de "ele", mas me
parecia masculino, talvez por ser feroz e anguloso. Admirei-o durante alguns
instantes, embalei-o em meus braços e, a passos largos, voltei para a cabana de
Agnes.
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— Deixe-me ver — disse ela, antes que eu tivesse a oportunidade de abrir
a boca. — Ponha-o em cima da mesa.
Fiz o que ela mandava e o lobo pareceu dominar na sala. Agnes andou em
volta dele, acenando com a cabeça, e seus olhos tinham um brilho misterioso.
— O que pode me dizer sobre a pessoa que o fez? — perguntou.
— Fui eu quem fiz.
— O que pode ver e perceber, se não o tivesse feito? Quando olho para
algo assim, sei quem o fez. Nesse caso, foi você e, portanto, é um espelho
perfeito de sua própria percepção.
— Mas não passa de um boneco!
— Não, não é apenas um boneco. Percebo quem o fez. Se jamais tivesse
visto você antes, saberia que a pessoa que entalhou este lobo é do sexo feminino.
É branca e possui um conhecimento muito limitado dos lobos e da vida animal.
Quando você o fez, estava me mostrando sua verdadeira natureza. Você é uma
mulher de muitas máscaras. Não tem motivos para fingir, em se tratando de
mim.
— Mas não estou fingindo!
— Está, sim. Está fingindo que me respeita, pois deseja algo que posso
lhe dar. No fundo, acha que eu não combinaria com seu mundo, na Califórnia.
— Agnes, com efeito!
— Sim, é o que você pensa de mim, no fundo. Está imaginando quanto
tudo isto irá lhe custar. Está imaginando se vou lhe fazer telefonemas
interurbanos a cobrar, lá no terminal rodoviário. Considera-se boa demais para
nós.
— Agnes, se você acha isso de mim, por que me deixa ficar com você?
— Não penso isso de você. Sei que é assim. Você espera que eu não
apareça na porta de sua casa porque não sabe como poderia me explicar para
seus amigos. Acha que eu não conseguiria acompanhar sua vida de diversões,
repleta de gente elegante, não é mesmo?
— Bem, creio que muitas dessas coisas me passaram pela cabeça.
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— Receia que eu não me impressione suficientemente ou saiba o que seu
estilo de vida representa. Sente vergonha de minhas roupas, minha pobreza,
meus modos, de tudo, enfim.
— Agnes, não me parece justo que você diga essas coisas a meu respeito.
— Esta boneca me conta tudo que preciso saber. Tem medo de me
magoar, caso você mesma o diga? Precisa desse objeto-lobo para agir em seu
lugar.
— Tudo o que você está dizendo não passa de um palpite. Acho
impossível que enxergue tanta coisa assim. .
— Você gosta de comida fina. Aprecia colecionar, por razões estéticas. E
fácil de adivinhar. Essa charada a gente mata num segundo. Você tem senso de
humor. Isso também é fácil de perceber. Gosta de viver em ambientes que
considera belos. Mal pode esperar o momento de regressar àquilo que considera
uma terra familiar. Mal suporta a vontade de retornar para um lugar onde possa
comprar coisas — conforto, comida, serviços.
— Mas o que há de errado nisto?
— Nada, mas aqui você tem de trabalhar para conseguir o que quer.
— O que mais você enxerga no lobo, Agnes?
— Vou lhe dizer algo que a deixará intrigada. Está vendo como o couro
envolve a trouxa, amarrada na barriga do lobo?
— Sim. — Examinei-a bem de perto.
— A partir disso, será que você consegue me dizer algo?
— Não tenho certeza.
— Quem fez a trouxa usou a mão direita, pois ela foi enrolada no sentido
horário. A pessoa também é uma perfeccionista, pois a trouxa foi amarrada
muitas vezes. Por falar nisso, por que você cortou os pêlos da cauda, em vez da
crina?
Fiquei espantada de ver que Agnes tinha conhecimento disso.
— Não sei. Pareceu-me o lugar apropriado.
— Foi o que pensei — disse Agnes, rindo. — Você procede como uma
140
verdadeira heyoka.
Eu também ri, mas não entendi completamente o humor.
— Esta boneca conta-me algo de suas ilusões, daquilo que lhe parece
importante e significativo e as coisas pelas quais se dispõe a morrer. Você nada
entende de comida ou do ato de romper uma boa amizade com dignidade. A
boneca me fala de seu modo de posicionar-se no mundo. Conta-me o que você
quer e o que você não quer. Você não enxerga sua morte e não vai para ela de
modo completo, como boa filha do universo. A caçadora jamais se desculpa
perante a morte. Existem apenas duas escolhas na vida. Você pode morrer como
uma meretriz assustada ou pode viver como uma caçadora corajosa e morrer
assim. Quando seu olhar se cruzar com o da maior das caçadoras, poderá dizer:
"Estou pronta. Quando a caça se realizava, mostrei-me valente. Rondei minha
presa e a matei de modo apropriado. Fui uma boa provedora para meu
acampamento, comi minha caça e a distribuí com respeito. Agi em seu nome e a
representei bem. Percebo que vivi de você e que agora sou sua carne. Estamos,
você e eu, em harmonia. Sinto-me pronta para ir caçar com você no mundo dos
espíritos".
— Você me vê como uma covarde? — perguntei.
— Você não é uma mulher perigosa. Sob certos aspectos é como uma ave
que bate as asas sem propósito. Vejo uma mulher que necessita de muito mais
vontade e coragem, verdadeira coragem. Você não é absolutamente simples
como parece. A coisa mais triste que percebo é que gosta de se imaginar
importante. Quanto a mim, prefiro ser importante a me iludir.
— E como a gente se torna importante?
— Conheça sua morte.
— Espere aí. Sinto-me totalmente confusa. Você quer que eu morra?
— Essa foi boa! — disse Agnes, rindo alto. — Não posso impedi-la de
morrer. Jogue fora esses olhos de trapaceira e veja aquilo que é real. As pessoas
podem lhe parecer importantes, por vários motivos. Você as receia, pois elas
parecem ter algum tipo de poder. Se, porém, tivesse conhecimento de sua morte,
141
seria capaz de distinguir quem goza realmente de poder e existem poucas
pessoas assim. Você só pode ser perigosa quando aceita sua morte. Então torna-
se perigosa, a despeito de tudo. Precisa aprender a enxergar aqueles que estão
despertos. Uma mulher perigosa pode fazer o que quiser, pois fará tudo. Uma
mulher perigosa fará o impensável, pois o impensável lhe pertence. Tudo lhe
pertence e tudo é possível. Ela consegue rastrear sua visão e matá-la, fazendo-a
tornar-se realidade.
— O que você está sugerindo? Vai me ensinar tudo o que se refere à
morte, para que eu possa roubar o cesto de casamento?
— Vou começar a ensiná-la a caçar, de tal modo que, quando você iniciar
sua busca, possa ter condições de ser bem-sucedida. Não haverá de querer andar
por aí, sem objetivo, sem saber o que está fazendo. Você caça a comida, a fim de
se nutrir e compartilhá-la com os outros. Se eu for bem-sucedida, você será
terrivelmente perigosa.
— Por que quis que eu fizesse uma boneca lobo?
— Quis deixar claro para você que nada surge sem que haja uma boa
razão para isso. As coisas feitas de propósito são espelhos que refletem muito
bem aqueles que as fizeram. Você pode desenvolver sua percepção examinando
tudo com muita atenção. Examinado como se deve, um objeto se desvendará a
você. Quando tiver suficiente conhecimento, saberá muito sobre uma pessoa só
pelo modo como ela segura um copo ou um lápis. Conseguirá ver milhares de
coisas em ação. Poderá perceber tudo, em relação a um caçador, só pelo modo
como ele constrói uma fogueira, do mesmo modo que conhece um pássaro pelo
modo como ele constrói seu ninho. Quando contempla um objeto, você
consegue perceber o quanto ele tem de centro. Um verdadeiro objeto de poder
possuí um centro. Você é atraída por essas coisas e nem sequer sabe por quê.
— Mas o que tem tudo isso a ver com o cesto de casamento?
— Direta e indiretamente temos falado muito sobre o ato de roubar. Você
aprendeu isso antes de poder roubar efetivamente. Deve ser uma guerreira. Será
que não percebe?
142
— Sim, lembro-me...
— Antes de ser uma guerreira eficaz, deve tornar-se uma caçadora exímia,
pois a grande guerreira foi, antes de tudo, uma grande caçadora.
— E o que devo saber, para ser uma caçadora exímia? Agnes pôs-se a rir
como uma criança.
— Tantas coisas, e mesmo então não poderá saber tudo. Está vendo que
ser uma caçadora é muito complicado. Ouça, existem muitas criaturas para se
caçar. Você poderá caçar um espírito e aprisioná-lo numa armadilha, se souber
como. Poderá fazer armadilhas para os espíritos, bem como armadilhas para
pegar os nenês da água, e mesmo nesse caso precisará saber como preparar a
comida deles. No momento, os espíritos estão escondidos de você. Julga que
nasceram em sua imaginação, mas ela pode voltar-se contra você e matá-la, se
não souber como encará-la de frente. Uma coisa é caçar um coelho, mas caçar
um urso pardo é algo inteiramente diverso. O coelho e o urso pardo são dois
tipos de caça. Jamais pense que o coelho é inofensivo. Verifique que os coelhos
podem matar um homem com toda facilidade. Felizmente até mesmo os bons
caçadores raras vezes encontram um coelho assim. Se você tentasse matar essa
espécie de coelho, ele golpearia com as patas traseiras, o mundo desapareceria
para você e então morreria. O urso pardo não é um empreendimento para um
caçador tolo. Jamais subestime o caribu. Dizem que alguns deles conseguem
projetar a mente a tais distâncias que, um dia, o caçador poderá enlouquecer. Se
é carne o que você está caçando, não deve desperdiçá-la de modo algum, nem
mesmo os ossos. A carne caçada tem um espírito, um grande espírito que a
tornará forte. A carne adocicada dos animais escravos não contém nada de
revigorante para você. Seu gosto é doce, mas ela a torna gorda e indolente. Você
precisa ter equilíbrio no mundo espiritual. Essas duas espécies de equilíbrio, por
sua vez, têm de ser novamente equilibradas.
— E pode-se adquirir esse duplo equilíbrio através do alimento que se
come? — perguntei, tentando desesperadamente acompanhar a lógica do
pensamento de Agnes.
143
— Em parte. Se você comer carne escrava, não imagina que alguém é
capaz de obrigá-la a fazer o que quer que seja. Esses animais escravos tinham
armadilhas ao seu redor, e você também, se os comer. A gente pode perceber
uma pessoa através do que ela come. Uma nação de escravos nada sabe a
respeito de si mesma ou de quem quer que seja. Existem tantas espécies de
alimento... Alimento para o coração, para o corpo e para o cérebro.
— E é preciso comer carne?
— Não. Tente se alimentar com comida mágica, comida com espírito. Se
você também for comida, os chefes dos mundos das plantas e dos animais
falarão com você e lhe dirão quais são suas dietas apropriadas.
— E é possível comprar esse tipo de comida numa mercearia?
— Sim, a maior parte deles, mas é preciso saber muito mais a respeito da
comida desperta. Por exemplo, que comida sofreu e que comida desfez-se de sua
integridade.
— Não entendo.
— Sei disso. Vamos tomar sopa.
Agnes não disse muita coisa mais, após a refeição. Era óbvio que estava
cansada de falar. Resolvi deitar-me.
Enquanto eu me despia, Agnes pegou o boneco e o sacudiu várias vezes,
segurando-lhe o cangote. Latiu para ele e saltou em torno dele. Eu não tinha a
menor idéia do que ela estava fazendo e resolvi achar que tudo aquilo não
passava de uma brincadeira.
Na manhã seguinte, assim que clareou, segui Agnes, quando ela saiu da
cabana. Apontou para vários insetos e contou-me que animais e pássaros os
comiam. Mostrou-me em seguida as plantas, indicando quais os animais que
tinham preferência por cada uma delas. Pediu-me para repetir o que dizia. Eu,
evidentemente, iria estabelecer um relacionamento direto e pragmático com o
conhecimento que ela desejava transmitir. Agnes quis saber se eu enxergava
alguma caça.
— Não, nada — respondi.
144
— Está vendo os galos silvestres logo adiante? Aquela árvore está repleta
de esquilos. Por detrás daquelas pedras pastam veados. As codornas estão
naquela direção e, era breve, os patos voarão por cima de nossas cabeças.
Eu não vira nenhum dos animais ou aves mencionados por Agnes, mas, ao
observar com cuidado, notei que eles, de fato, se encontravam lá.
— Sim, agora estou vendo — disse, excitada. — Jamais teria reparado em
nenhum deles se você não os tivesse mostrado. Agnes, como é que você
consegue enxergar desse jeito?
— Sei onde devo olhar. É preciso desenvolver olhos famintos, olhos que
ficam com fome antes do estômago. Para ser uma caçadora, é necessário ter
conhecimento do que você está caçando. E aí que a caça começa. A gente
começa a aprender como um animal age. Você tem de perceber a caça quando os
outros não têm essa condição. Um bom caçador sempre consegue fazer isso. Vi
acontecer com muita freqüência. Um caçador detecta a caça e outro, não. Se
você não consegue enxergar a caça, precisa saber onde ela se encontra, a fim de
a levantar. O importante de se lembrar é que é necessário atingir a caça com um
golpe certeiro. Como é possível disparar uma flecha sem primeiro ver a caça?
Aprender a matar um homem exige um tempo ainda maior. Para caçar um
homem que tenha poder, você precisa recorrer a toda a sua habilidade e fazer o
que puder para não ser lograda.
— Você está se referindo a Cão-Vermelho?
— Sim, mas, no momento, você não pode pensar em caçar um ser tão
poderoso. A maior parte das criaturas executam ações impensadas. Aprenda a
caçar esse tipo de gente em primeiro lugar. Uma vez que conseguir caçar com
facilidade uma criatura assim, poderá aventurar-se e cercar uma caça mais
perigosa. É preciso, porém, ter sempre consciência dos poderes do caçado.
Todas as criaturas agem de diversas maneiras. Algumas cobrem suas pistas e
outras não. Algumas não deixam o menor rastro, a menor folhinha de capim fora
do lugar. Algumas deixam trilhas espalhafatosas, que te levarão de volta para
suas próprias armadilhas. Quanto mais conseguir enxergar, mais poderá saber o
145
que os outros seres farão e mais chances terá de se tornar uma caçadora bem-
sucedida. Existem dias bons e dias ruins para se caçar. Normalmente algum tipo
de caça está presente em qualquer lugar. Uma parte dela é boa, outra parte nem
vale a pena matar. Evidentemente você terá de ir aos lugares favoráveis, para
conseguir a caça que quer. Como caçadora, jamais poderá hesitar. Deve primeiro
analisar e, em seguida, arremeter. Para fazer isso com eficiência, é preciso
conhecer a própria força, assim, como a fraqueza. Não cometa nenhuma tolice.
Seja a caçadora decidida, furtiva. A boa caçadora não tem, a respeito de si
mesma, uma opinião desavisada. A boa caçadora mata. O que significa ficar
inchada de orgulho e deixar sua caça escapar? E um insulto a quem é caçado. A
caça que não foi atingida tem o direito de comparecer à casa do espírito e pedir
que seja enviado um espírito para caçar você. Ele poderá matá-la ou enlouquecê-
la. Sabemos, em nosso íntimo, onde está a caça, e nossa tarefa é matá-la.
Certifique-se sempre de que você é a caçadora e não a caçada. O caminho do
caçador é sagrado. Não mate o que quer que seja impensadamente, nem mesmo
um carrapato. Imagine só se algo pesado a esmagasse impensadamente! Mate
apenas a caça que tiver condições de matar e não invada o território da caça que
é mais esperta do que você. Aproxime-se sempre de sua presa com reverência.
— Isso vale também para Cão-Vermelho?
— Mas é claro! Ele tem o que você quer e conhece todas essas coisas.
Aproxime-se da caça com reverência, agradecida por ser a caçadora e não aquela
que irá tombar.
Eu desejava saber mais coisas a respeito da caça, mas Agnes tinha
chegado ao fim.
— Para que você seja eficiente, preciso lhe dar poder e não idéias que
você conhece, a partir de sua voz interior. O conhecimento de segunda mão não
lhe serve. Você quer ter capacidade, não é mesmo? Pois então saiba que não
conseguirá convencer um animal a morrer.
Agnes ordenou-me que começasse a olhar, a "enxergar o que está
escondido no mato", conforme dizia.
146
Nos dias que se seguiram não fiz outra coisa, a não ser perambular. No
fim de cada dia eu devia dar conta a Agnes dos vários animais que vira. Os
pensamentos estavam banidos e eu não deveria ser conduzida por qualquer outra
coisa que não fossem meus olhos. Ela me disse para não focalizar nada, mas
para me preparar para "dicas" que me levariam até onde eu devesse ir. Quando
chegou o quarto dia, consegui localizar faisões, agindo dessa maneira. Agnes
ficou feliz.
— Isso é que é o poder — observou.
Eu também me sentia feliz com minha nova capacidade. Comecei a ficar
receptiva a todos os tipos de animais. Vi veados, alces, antílopes, gambás e
coelhos. Percebi perus selvagens e outras aves de caça, tais como tinamus e
galos selvagens. Vi um castor, dois bisões e fiquei surpreendida, certa vez, ao
deparar com um lobo. Depois de nos encararmos por alguns minutos, corri para
a cabana de Agnes, a fim de contar nosso encontro.
— Isso revela muita coisa. E sinal de cura, uma grande bênção para você.
De todos os animais do mato, o lobo é o mais difícil de se ver e é virtualmente
impossível prender um deles. Você tem de cortar uma mecha de seus cabelos e
voltar para o lugar onde viu o lobo. Deixe-a exatamente lá. O lobo, de modo
algum, tinha de deixar você vê-lo. Sabia que você está desenvolvendo o poder e
veio ajudá-la!
Durante esse período, Agnes parecia bem reservada. Interrompia-me com
freqüência, quando eu contava algo.
— Ouça a si mesma. Já estou cansada de te ouvir.
Eu me sentia abandonada. Certa noite, após o jantar, vangloriei-me.
— Se eu for caçar com meus amigos, eles ficarão surpreendidos por eu
conseguir localizar tanta caça.
— Não quero ouvir falar desses assassinos! — declarou Agnes.
— Assassinos! Mas são caçadores como você! Algumas pessoas apreciam
caçar animais selvagens.
— Pois repito que são assassinos! Não existe um caçador sequer entre
147
eles. Já vi isso se repetir muitas vezes. Eles vêm até aqui e saem dando tiros por
todos os lados. Não têm o menor respeito pela aves, que nesse momento fazem
seus ninhos. Para eles, caçar é assassinar. Não sentem o menor respeito pela
vida. Acuam os coiotes e os cavalos selvagens por meio de helicópteros e os
matam sem nenhuma dignidade. Você deveria explicar a essa gente, que se
considera melhor do que os animais que caçam, que um dia eles também
morrerão. No além, o primeiro lugar para onde esse tipo de assassino vai é uma
clareira. Os espíritos de todos os animais que matou o cercam, quaisquer que
sejam: patos, gatos, ursos. Os espíritos perguntam: "Por que você nos matou
deslealmente?" É melhor aquele idiota, filho da mãe, ter uma boa resposta, ou os
animais o reduzirão a frangalhos, até recuperarem sua dignidade.
— Agnes, você é louca. Inventou essa história!
— Verá se inventei ou não quando chegar seu momento. Estou lhe
dizendo algo que sei com toda certeza. Já lhe disse mais de uma vez que nada
existe sem uma razão. A justiça não falha. Talvez ela não se faça imediatamente,
mas o Grande Espírito tem de aplicá-la para sempre. Nós, humanos, vivemos
apenas um curto período de tempo, até sucumbirmos. Quero passar meus dias
como guerreira e reconhecer a beleza em todas as coisas. Um animal é filho do
universo, como você e eu. Tirar a vida de um animal livre e selvagem é algo que
deve ser feito com a compreensão de nossa própria morte. Caso contrário, deixe-
o em paz. O surpreendente é que esses assassinos sequer sabem o suficiente para
se sentirem constrangidos.
— E o que é que estou tentando aprender a fazer? — perguntei,
exasperada.
— Está aprendendo a abater caça perigosa, a fazê-lo com coragem,
bravura e honra. Está indo para além disso e aprendendo como roubar o poder.
Se eu enxergasse aquele tipo de crime em seu coração, a mandaria embora e
esperaria que comparecesse rapidamente perante seus antepassados.
Gostaria de poder relatar tudo o que me foi ensinado nos dias que se
seguiram. Para isso seriam necessários vários livros e, enquanto viver, aqueles
148
momentos não sairão de meus pensamentos.
Certo dia Agnes me mostrou os rastros de um corvo no campo.
— É possível rastrear as aves no céu. Os grandes rastreadores conseguiam
fazer isso. Até mesmo o céu deixa uma imagem.
Enquanto ela falava, eu, até certo ponto, apaguei o rastro, pois pisava nele.
Agnes lançou-me um olhar glacial.
— Desculpe. Não foi por querer.
— No mundo da cura, não existem acidentes — ela disse, furiosa. —
Toda ação tem um significado. Será que não percebe? É esse o significado do
ato de rastrear. Acidente é uma palavra nascida de confusão. Significa que não
nos compreendemos o suficiente para saber por que agimos assim ou assado. Se
você escorregar e cortar o dedo, existe uma razão para ter agido assim. Alguém,
na sua cabana da lua, quis que você fizesse isso. Se você soubesse ouvir os
chefes que estão dentro de sua cabana da lua, jamais agiria com tamanha
insensatez. Uma pessoa, ligada à cura, jamais comete erros. A curandeira sabe
como enviar, lá de sua cabana da lua, os observadores que tudo perceberão.
Quando chega ao lugar para onde vai, sabe o que deve esperar, pois seus
mensageiros já estiveram lá e lhe contaram tudo.
— Mas eu não tive a intenção de pisar no rastro!
— Teve, sim. A palavra acidente me faz rir. Jamais existiu confusão nos
sonhos dos antepassados sagrados. Acidente é um modo de se subtrair às
responsabilidades por suas ações e pedir a outra pessoa que as assuma. Se eu a
esbofeteasse até não conseguir mais me ouvir, é claro que não gostaria. Foi
exatamente o que você fez e eu também não gosto.
Jamais tinha brigado com Agnes, mas naquele dia senti vontade. A
questão se complicava pelo fato de que, sempre que eu duvidava do que Agnes
dissera e examinava o que havia de mais profundo em mim, descobria
invariavelmente que ela tinha razão.
Quanto mais conhecimento me era transmitido, menos eficiente eu parecia
me tornar. Percebi-me agindo com hesitação. Por exemplo: minhas tentativas de
149
preparar armadilhas eram muito inábeis. A maior parte do tempo elas se
fechavam sozinhas, ou então não funcionavam, mesmo que um tanque passasse
por cima delas.
— Quero que você coloque uma armadilha no bebedouro, lá no riacho do
Homem-Morto — disse Agnes, observando cada movimento. — O que você
está fazendo de errado? — perguntou-me, à medida que nos aproximávamos do
bebedouro.
— Não sei — respondi, após breve reflexão.
— De que lado sopra o vento? Você deve aproximar-se do bebedouro de
tal modo que seu cheiro não se espalhe pela trilha, a favor do vento.
Percorremos a trilha do lado errado.
— Mas os animais conseguem farejar tão bem assim, Agnes?
— As pessoas fedem. Os animais daqui são capazes de sentir bem de
verdade o cheiro dos humanos.
Agnes e eu passamos o riacho. Pus a armadilha na beira da água e Agnes
me fez esfregar folhas de cheiro forte no couro cru.
— Espero que essas folhas consigam disfarçar seu cheiro — disse Agnes.
— Qual é a isca?
— A água?
— Sim, para esta armadilha. Será que esta armadilha pegaria alguma
coisa?
— Não sei.
— Não pegaria, não. A laçada é grande demais e não prenderia nada. Se
tivesse sido feita de modo apropriado, você ainda teria uma chance. Aqui jamais
conseguiria pegar um coiote velho, qualquer que fosse a armadilha. Eles são
espertos e sabem o que os aguarda. Esses animais fingirão correr até um curso
de água. O animal mais jovem, ao ver o animal mais velho agir, corre na frente,
movido pela ambição, e cai na armadilha. A coisa mais importante, em qualquer
armadilha, é a isca. Quando você usar a água como isca, lembre-se de que é a
sede que atrai a caça. Se conhecer a isca apropriada, poderá aprisionar qualquer
150
criatura, mas somente se souber como lidar com a isca correta. Descubra o
verdadeiro caráter de um animal ou de uma coisa antes de caçar.
Aprender a caçar e todas suas implicações, tais como classificar e
reconhecer as diversas qualidades de animais, foi uma ocupação que tomou todo
meu tempo. Agnes possuía um conhecimento infinito da vida selvagem e da
caça, e tinha métodos árduos de comunicar esse conhecimento. Obrigou-me a
atravessar o alpendre na ponta dos pés, até eu lhe mostrar que conseguia fazê-lo
sem provocar o menor ruído. Executar essa tarefa à perfeição exigiu-me três dias
de tremendo esforço e, no final, eu conhecia cada centímetro do alpendre.
Finalmente tive condições de o percorrer inteiro, em várias direções, sem fazer
nenhum barulho.
Agnes disse que eu era contemplativa demais. Teria de aprender a ser
mais agressiva. Eu passava a maior parte do tempo fora da cabana, a não ser à
noite. De vez em quando, Agnes parecia me experimentar, mais do que me
ensinar. Certos dias ela me privava de água e de comida e me obrigava a cortar
lenha ou carregar pedras sem nenhuma razão aparente. A conversa era reduzida
a breves ordens. Eu jamais discutia e tornei-me uma discípula completa. Tentei
absorver o máximo de conhecimentos que podia.
Certa noite, durante esse período, entrei precipitadamente na cabana e dei
de cara com Hyemeyohsts Tempestade. Fiquei espantada de o encontrar naquele
lugar.
A mesa estava coberta com uma manta de chefe e, em cima dela,
encontrava-se um escudo grande, o mais belo que eu vira até então. Um cocar de
penas de falcão, que se combinavam com perfeição, estendia-se pela mesa, dela
pendia e quase encostava no chão. Agnes estava sentada de pernas cruzadas,
junto à mesa, e examinava as penas do cocar.
— Não é possível! O que você está fazendo aqui, Tempestade?
— Estava mostrando um escudo de cura para Agnes. Queria o conselho
dela. Agnes é como uma avó para mim. Será que não tenho o direito de visitar
minha própria família?
151
Muito desapontada, balbuciei qualquer coisa.
— Gosta do escudo? — perguntou-me.
— Não sabia que os escudos eram feitos desse jeito. Nunca vi nada tão
magnífico.
— Outrora havia muitos escudos como este — disse Agnes —, mas foram
escondidos ou destruídos. Muito pouca gente tem o privilégio de ver um
verdadeiro escudo de cura.
No centro do escudo havia pintada uma grande águia azul. O couro estava
esticado. Possivelmente era de antílope e, nas bordas, viam-se penas de águia. A
cauda de pena de falcão tinha quase um metro e meio de comprimento, com
penas de ambos os lados. Conseguia-se sentir o poder que emanava daquela
peça.
Tempestade pegou o escudo com todo cuidado e o pôs em cima da cama.
Tomamos café e conversamos durante alguns instantes. Ele mostrou a Agnes
várias rodas de cura, cobertas de miçangas, de várias cores e desenhos. Agnes as
movimentou em cima do manto de chefe e de maneiras diversas. Tais
movimentos, pelo visto, tinham um significado oculto,
— Se você olhar para os círculos, começará a perceber o grande círculo
da cura — observou Tempestade. — Os círculos menores são seus
ensinamentos. As rodas de cura também são como escudos.
Agnes pegou uma das rodas e apertou-a de encontro ao peito, pondo-a
novamente em cima da mesa, ao lado das demais.
— Estas rodas de cura são círculos que têm um significado, caso você
saiba como usar seus olhos — prosseguiu ele. — Vistas em conjunto, são peças
de um quebra-cabeça. Como a grande serpente de cura, que come a própria
cauda, sonharão com você. São segmentos na mandala de nossas vidas, Se
alguma vez conseguir encaixar os círculos de tal forma que possam refletir o
grande círculo de cura, você se livrará da ilusão. Terá desempenhado um ato de
poder, seu verdadeiro propósito na vida. No interior desse ato encontra-se sua
morte, e, em sua morte, você encontrará seu verdadeiro círculo. Não está,
152
porém, pronta para esses ensinamentos.
Agnes me fez realizar algumas tarefas dentro da cabana e, mais tarde,
senti-me tão cansada que enrodilhei-me na cama, perto do belo escudo, e dormi
até de manhã. Quando acordei, vi que Tempestade tinha me coberto com a
manta, mas o escudo não se encontrava mais lá e ele também não.
Tantos dias se passaram que perdi a conta. Desconfiava que Agnes não
estava satisfeita com meu progresso. Certa noite, após passar o dia inteiro
rastreando um veado, estávamos sentadas, contemplando o pôr-do-sol, ambas
caladas, diante da grandeza do espetáculo.
— Amanhã de manhã — disse Agnes de repente — você verá se é
suficientemente furtiva para roubar o cesto. Pode ir até onde se encontra Cão-
Vermelho e tentar.
Fiquei atônita, sobretudo por achar que tinha conseguido aprender apenas
uma pequeníssima parcela do que Agnes vinha tentando me ensinar. Achava que
talvez tivesse de passar anos como sua iniciada. Sentia que precisava de mais
tempo. Tentei dizer algo, mas nada me ocorreu.
— Não, você ainda não está pronta, mas não sei o que mais posso fazer.
Não posso ficar para sempre ensinando-lhe coisas. As sonhadoras acham que
você tem poder e chegou o momento de verificar se elas têm razão — disse
Agnes.
— Agnes — eu disse, angustiada —, agora sinto-me mais confusa do que
quando comecei. Como serei capaz de realizar o que devo sem saber ainda
mais? Ainda desconheço a primeira coisa que você está me ensinando.
— Você sabe mais do que imagina. Estou ensinando-a a ser uma criatura
furtiva.
— Mas o que é isso?
— Uma criatura furtiva é uma criatura de confiança, mas você não
reconheceria essa criatura, se a visse. É assim que gostamos que seja.
— Agnes, você pode achar minha pergunta tola, mas você é uma criatura
furtiva?
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— Não é uma pergunta tola, já que você não consegue perceber que sou
essa criatura. Uma criatura furtiva pode entrar numa sala e fazer o que ela bem
entender. Pode sair dela quando quiser. A maior parte das criaturas que entram
numa sala são conduzidas, confusas. Uma criatura furtiva, pode, porém, entrar e
sair de qualquer sala que quiser. Uma criatura dessas golpeou você e apoderou-
se do que bem entendeu. Ela é perigosa e não sente medo de atacar. Essa criatura
move-se de um jeito diferente do que você possa imaginar, a menos que você
também seja uma. Uma criatura assim conhece a própria morte.
— E eu estaria a ponto de me tornar uma criatura furtiva? Nunca vi Agnes
rir com tamanho espalhafato. Seu rosto ficou molhado de lágrimas e ela me deu
um tapa nas costas.
— Fiz o que pude — disse ela finalmente. — É por isso que você está
aqui. Se conseguisse roubar o cesto, seria um ato furtivo, o ato de uma grande
guerreira. Quanto melhor for a caçadora, mais perigosa a caça. Um homem
como Cão-Vermelho é mais perigoso do que quase todos os espíritos. Imagine,
caçar um homem como Cão-Vermelho e, em seguida, saquear seu covil... eu
diria que, se você for capaz disso, estará muito próxima de se tornar uma
criatura furtiva.
— Mas não agora, não é mesmo?
— Não. Ainda não. Esta região, coberta pelo cerrado, ainda é nova para
você. Ser furtivo significa ter poder e você ainda está dando os primeiros passos.
Um trapalhão que prepara armadilhas raramente faz uma boa caçada. Os
trapalhões fazem outros trapalhões caírem em suas armadilhas. Os seres
estúpidos vivem uns às custas dos outros, mas não deixe que isso a iluda. Os
seres furtivos podem estar em qualquer lugar, a qualquer momento. Você pode
aguardar uma criatura furtiva para sempre e jamais enxergá-la. Somente uma
criatura furtiva consegue ver outra criatura como ela, e tem sonhos que são reais.
Nenhuma barreira deterá um ser furtivo. No ponto em que o rastro de um
ser furtivo começa a desaparecer, vê-se um corvo, um balão ou uma águia, mas,
na verdade, o que se vê é uma criatura furtiva levitando. O problema com os
154
seres incapazes é que eles jamais olham as múltiplas partes das trilhas
emaranhadas. Não possuem conhecimento, o que é bom. Não saberiam o que
fazer com ele, se o tivessem.
Depois de uma pausa, Agnes prosseguiu:
— De vez em quando seres incapazes encontram peças importantes do
quebra-cabeça. Cuidado quando isso acontecer. Eles dizem: "Ah, é tão
simples!". Isso se dá quando você se encontra na trilha que leva ao poder e pega
do chão a primeira coisa reluzente que enxerga. Quando você segue a trilha que
a levará a ser uma criatura furtiva e vê coisas brilhando, deve erguer os olhos
para o céu e passar reto por elas. Quando um ser incapaz faz uma descoberta
cintilante e pega a coisa que brilha, tudo acabou para ele. Está amaldiçoado. A
poeira se levanta em torno dele, em fortes turbilhões, e ele ouve vozes do além.
Não é um caçador completo. Parece humilde, mas se torna obcecado com a
própria importância. Outros seres vêem a criatura incapaz que fez a descoberta
cintilante e ficam fascinados.
Segundo Agnes, o mais provável é que a criatura incapaz provoque
estragos e devastação.
— Ela sai por aí, abrindo caminho onde quer que vá, mas não é furtiva.
Tem o poder de um jovem touro e pode tornar-se rei, chefe ou então líder
religioso, mas jamais é o caçador completo. Somente pode conduzi-lo até o
ponto a que chegou e por que não o faria? Acredita que a descoberta cintilante é
tudo o que existe. Segura-a de encontro ao peito e sai apregoando seu achado.
Todo mundo aproxima-se, olha e se suja com aquela falsa pintura. Todos se
revestem do manto dele, bordado com miçangas, e o seguem até serem
destruídos. Você provavelmente acha que não seguiria um ser incapaz, mas não
ria. Agora mesmo eu poderia mandá-la embora com uma descoberta cintilante.
Poderia conseguir todos os grandes cestos que jamais existiram, com exceção de
um só. Ou então eu poderia trapacear e dizer que estou lhe dando o cesto de
casamento. Você partiria feliz, mas não o teria. No lugar dele, existiria apenas
um disfarce. Não desistirei, porém, de a ensinar. Não a enganaria, em relação a
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isso. Quero que tenha aquilo que a trouxe até aqui. Mais do que tudo, quero que
consiga o cesto de casamento. Agora provavelmente ele se tornou mais
importante para mim do que para você.

156
Antes de mais nada você precisa entender que corre perigo.
— A autora

Tudo começou.
Enquanto eu espiava, uma cerração acinzentada envolveu a cabana de
Cão-Vermelho. Estava deitada de bruços, num bosquete de amoreiras, coberta
de folhas, com o rosto enegrecido pela lama do rio. O cheiro da terra penetrava
em minhas narinas. Esperei, tensa. Formigas passeavam por mim e ao redor, à
procura de comida. Era insuportável, mas eu não ousava me mexer. Estava lá
havia dois dias.
E o palácio mágico do Cão-Vermelho, pensei. Como era possível que
alguém, dotado de poder suficiente para me matar e se apoderar do cesto de
casamento, vivesse daquele jeito? A cabana era retangular e atarracada. Parecia
muito malcuidada. Placas de lama e jornais velhos calafetavam as frinchas das
paredes feitas de troncos. O teto de zinco estava enferrujado e cheio de buracos,
tapados com papel alcatroado verde e vermelho. As pequenas janelas eram tão
gordurosas que não se conseguia enxergar através delas. Um galo e algumas
galinhas cacarejavam por detrás da cabana, em torno do puxado onde se
guardavam ferramentas, e que parecia estar parcialmente enterrado no chão
sólido e ondulante.
Ben e Tambor entravam e saíam do puxado, cuja pesada porta abriam com
dificuldade e onde se demoraram alguns minutos. Eu ouvia o barulho de algo
tinindo, raspando, batendo. Ben, parado na entrada, fazia comentários
sarcásticos.
— Tambor, você sabe o que deve fazer para usar um prego, não é mesmo?
— perguntava, jogando no chão um cigarro aceso e pisando nele. — Não vá se
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matar de trabalhar, ouviu?
Tambor saiu do puxado com ferramentas, pedaços de corda e percorreu o
terreno à procura de certos objetos, enquanto Ben o seguia, como se estivesse
supervisionando o que fazia. Recolheram pedaços de maquinaria enferrujada,
cavaram buracos e puseram neles algo que parecia lixo. De vez em quando se
davam socos, de brincadeira, e faziam piadas. Ambos davam a impressão de que
estavam dispostos a trabalhar o menos possível.
A privada era uma construção das mais precárias, cuja porta, de gonzos
enferrujados, abria-se e se fechava, impelida pelo vento, com irritante
persistência. Batizei a cabana de Cão-Vermelho com o nome de O Monturo,
pois tudo que era objeto enferrujado, desconjuntado, apodrecido, se espalhava
em torno dela ou estava socado na terra, como se tivesse sido plantado lá há
mais de quarenta anos. Um velho arado que, nos bons tempos devia ter sido cor
de bronze, estava jogado no chão, bocejando para o céu. Viam-se pilhas altas de
pneus velhos, que o galo escalava e de onde cantava a plenos pulmões. Era o
senhor do Monturo e fazia questão de que todo mundo soubesse disso.
A direita, por detrás de uma cerca precária, que despencava, estavam duas
vacas magras e os ossos das cadeiras quase lhes furavam a pele. Pareciam estar
atacadas de pelada, os úberes, pelo visto, haviam secado, e as sinetas que lhes
pendiam do pescoço tiniam, enquanto elas comiam seu precário alimento.
Um velho Ford estava tombado de lado, desprovido de tudo, inclusive do
eixo. Uma rede esburacada atava-se às extremidades do pára-choque traseiro do
carro.
Quando Ben e Tambor abriram com escarcéu a porta da cabana,
estremeci, assustada. Saíram para ir à privada ou urinar diante do alpendre, mas,
pelo visto, Cão-Vermelho não sentia necessidade de se aliviar. Não o vi sequer
uma vez e nem mesmo tinha certeza de que se encontrava lá. Durante dois dias,
os únicos barulhos que ouvi foram as sinetas das vacas, as galinhas e as batidas
das portas da cabana e da privada.
Quase no fim da tarde do segundo dia um uivo enlouquecido se fez ouvir
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dentro da cabana. Fiquei de cabelo em pé, toda arrepiada. Primeiro percebi um
som esganiçado, como se fosse o pio de uma coruja, que se repetiu várias vezes,
e, em seguida, algo que lembrava o lamento de uma criatura pré-histórica. Daí a
instantes um gemido estridente foi seguido de um rosnado baixo. Esses sons se
prolongaram durante muito tempo, mas não vi a fonte de onde provinham.
De repente tudo se calou. Eu ouvia apenas o farfalhar das árvores e o
vento que soprava no platô. Estava para fechar os olhos e tirar uma soneca
quando chegou até mim um estrondo e o barulho de pés que batiam no chão. Vi
um rato cinzento sair correndo por debaixo da porta da cabana. Saiu em
disparada pelo alpendre e refugiou-se por detrás de uma grande pedra. A porta
se escancarou e Tambor, seguido de Ben, apareceu e olhou em torno de si.
— Onde foi que ele se meteu? — perguntou Tambor.
— Lá está ele.
Ben e Tambor perseguiram o rato quintal afora, tentando acuá-lo. O
animal trepou numa árvore, saltou para o teto de zinco e desceu por um esteio.
Era veloz, astucioso e Ben e Tambor não conseguiam se aproximar o suficiente
para pegá-lo. Quando tudo indicava que ele estava perdido, recorria à mais
inesperada das manobras, surgia em algum outro lugar e guinchava, triunfante.
— Ele está daquele lado! — gritou Ben.
Os dois saíram correndo em direção a um ponto do quintal onde o rato
surgira. O bicho esperou até eles chegarem bem perto e pôs-se a correr
novamente. Aquela minúscula criatura levava a melhor sobre os marmanjos.
De repente o rato cometeu o que parecia ser um engano fatal, pois entrou
dentro de uma lata enferrujada. Tambor precipitou-se sobre ela e tapou-a com a
mão.
— Peguei! Peguei!
— Deixa eu ver. Deixa eu ver, Tambor!
Tambor afastou os dedos o suficiente para que se pudesse enxergar e
sacudiu a cabeça.
— Está aí dentro?
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— Tem que estar, pois eu vi! — Tambor voltou a espiar e chacoalhou a
lata. — Ora essa! O rato devia estar aí dentro, mas não o estou vendo.
— O bicho fugiu — disse Ben. — Não tem jeito de pegar ele. Tambor
voltou a agitar a lata, cada vez com mais violência e emborcou-a, como se
quisesse esvaziá-la.
— É, aqui ele não está — disse, desapontado.
Nesse exato momento o rato caiu da lata e saiu em disparada. Tambor e
Ben gritaram e a caça recomeçou. O bicho correu pela lateral da cabana, em
direção à privada, deu meia-volta e passou por entre as pernas de Ben. Este deu
um pulo para trás, fingindo estar apavorado. O rato correu até onde se erguiam
as árvores e aguardou.
— Foda-se! — gritou Tambor.
— É isso mesmo! Foda-se! — repetiu Ben.
O rato agitou a cabeça e os encarou com seus olhinhos negros.
Aproximou-se, com toda calma, do puxado, e passou por debaixo da porta.
— De lá ele não consegue sair, Tambor — disse Ben. — Agora está
preso.
Os dois voaram em direção ao puxado e entraram.
— Tape a porta! — ouvi Ben ordenar.
De repente ouviu-se um barulho como eu jamais ouvira, semelhante ao
rugido de um demônio. Ben e Tambor saíram aos trancos e barrancos da cabana
e se afastaram correndo, como se tivessem acabado de ver o próprio diabo. O
rato apareceu e voltou para a cabana, mas se passou quase meia hora antes que
os dois voltassem.
Mais tarde, embora não houvesse o menor ruído na cabana, notei uma
pálida luz alaranjada brilhando através da janela. Tímidos raios do sol que se
punha incidiram sobre a parede. Ainda não havia o menor sinal de Cão-
Vermelho, mas eu não estava disposta a agir enquanto não tivesse certeza de que
ele não se encontrava mais lá.
A luz da cabana se apagou, a porta abriu e Ben e Tambor ficaram
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conversando em voz baixa, no alpendre tomado pelas sombras. Daí a pouco
enveredaram pela trilha, cantando. Observei suas silhuetas desaparecer por
detrás da colina e suas vozes já não se ouviam mais. Eu sentia frio e estava
tensa. Pareceu-me que, se a vela ainda estava acesa, é porque havia alguém
dentro da cabana. Era o momento que tanto aguardara. Agora eu poderia ir até lá
e roubar o cesto. Enquanto estivera observando a cabana, Cão-Vermelho nem
sequer se encontrava lá! Como fui tola!
Não se ouvia o menor barulho, a não ser o rangido da porta da privada.
Até mesmo as galinhas se mantinham em silêncio. Esfreguei as coxas e estiquei
os dedos, para ativar a circulação. Sentia-me emperrada. Enquanto o vento
soprava em meu rosto, arrastei-me lentamente, sem fazer o menor barulho.
Comecei a tremer. Consegui dar conta dos quase cem metros que me separavam
da cabana e deitei-me de bruços, bem rente à parede. Senti o cheiro
característico do querosene. Escurecia cada vez mais e sombras sem formas
definidas, de tamanhos irregulares, se avolumavam. Prestei atenção por alguns
minutos, segui adiante e voltei a esperar, ouvindo e observando. A ansiedade se
apoderou de mim. Tinha a sensação de que estava na iminência de ser morta.
Encostada na parede, minhas mãos percorreram a áspera superfície da
madeira, em direção à janela. Levantei-me um pouco, coloquei as mãos no
peitoril da janela, sentindo-o, tentando perceber o que havia dentro da cabana,
mas em vão. Repeti a ação e, mais uma vez, olhei pela janela. As vidraças
estavam sujas, embaçadas, e refletiam o céu. Com a manga da camiseta
esfreguei o vidro, protegi os olhos com as mãos e tentei enxergar. A escuridão
era total. Procurei focalizar o olhar, mas não consegui ver nada. Se Cão-
Vermelho estivesse lá, perceberia que eu entraria na cabana daí a momentos.
Reuni toda minha força de vontade e fui até a porta, pensando unicamente no
cesto de casamento. Girei lentamente a maçaneta e a porta se abriu, rangendo.
Eu tremia, aterrorizada.
Da estrada vinha o latido enlouquecido de um cachorro, que me pareceu
algo muito selvagem. Fechei a porta tão silenciosamente quanto a abri e entrei
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em pânico. Sem fazer o menor barulho, saí correndo, atravessei o quintal, de
volta às árvores e arbustos. Deitei-me de bruços e me ocultei entre as folhagens.
O cachorro estava no alpendre, rosnando e mostrando os dentes. Ouvi
então passos caninos. Via os olhos do animal, enquanto ele farejava, vindo em
minha direção, sem parar de rosnar. Fiquei absolutamente imóvel. A voz de
Tambor rompeu o silêncio.
— Cala a boca, Magrela!
— Quem sabe acuou um gambá — disse Ben.
— Não quero nem saber. Não agüento esse maldito barulho. Vai acabar
acordando Cão-Vermelho e daí... sai da frente! Estamos fritos.
— Passa já pra cá, Magrela — ordenou Ben.
Ambos assoviaram e o cachorro, que já se preparava para me morder, deu
meia-volta, com muita relutância, e voltou para a cabana, latindo mais uma vez.
— Seus cretinos! Amarrem esse vira-lata antes que eu mate ele! Eu quero
dormir!
Era a voz de Cão-Vermelho, que vinha de dentro da cabana. Na verdade
encontrava-se lá o tempo todo.
A partir daí se fez o mais completo silêncio e, no dia seguinte, nada
incomodou a paz da cabana. Nem mesmo as galinhas cacarejaram.
No final da tarde o tambor começou a tocar. A batida era irritante e não
lembrava de modo algum o jeito como Agnes e Ruby tocavam. O som parecia
esparramar-se pela região em torno da cabana e concentrar-se em determinados
pontos. Dava a sensação de não ter objetivo algum, a não ser atordoar. As
batidas prosseguiram durante algum tempo e eu tive a impressão de que ouvia
um asno zurrar. Subitamente o terreno em volta da cabana estremeceu, escutei o
barulho de cascos golpeando as pranchas da cabana e fez-se uma algazarra
infernal. Logo em seguida os zurros e o tambor calaram-se, a porta da cabana
abriu-se lentamente e, parado na soleira, estava Cão-Vermelho.
Ele tinha a aparência de um homem que tivesse se refugiado numa
montanha, durante muitos anos, e seus cabelos se apresentavam na mais
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completa desordem. Usava calças velhas, de cor caqui, e uma desleixada jaqueta
verde-oliva. O cabelo ruivo batia pelo ombro e tinha uma comprida barba. Os
olhos possuíam o mesmo brilho penetrante dos de uma águia. Eu tremia. Seria
minha imaginação ou conseguia sentir a força dele a distância?
Ele segurava um objeto prateado, que brilhava como uma faca, à luz do
sol que se punha. Fechou a porta da cabana, foi até a beira do alpendre e sentou-
se. Apesar das botas pesadas, não fez o menor barulho. Meu olhar se fixou
naquelas enormes botas e dirigiu-se para a faca que ele levava à boca, como se
estivesse lambendo algo, em sua lâmina. Percebi que a faca era, na realidade,
uma flauta. Ele a manteve de encontro aos lábios por um momento e, em
seguida, ouviu-se uma música suave e delicada. Comecei a relaxar, Cão-
Vermelho jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e tocou com abandono. O
mundo de todos os dias desapareceu em torno de mim, enquanto eu ouvia.
Cerrei os olhos e os abri rapidamente, a fim de enxergar com clareza.
Mais uma vez notei aquelas botas tão chamativas. Eram de uma estranha
tonalidade de marrom e tinha uma textura quase frágil. Davam a impressão de
que estavam se rasgando. Percebi que, abaixo dos joelhos, as pernas estavam
cobertas por penas.
Cão-Vermelho se levantou e ficou com as pernas bem afastadas. A flauta
tocava mais alto e tornara-se ainda mais melodiosa. Demonstrando grande
energia, ele deu um salto e era como se estivesse rompendo os laços que o
prendiam à terra. Endireitou a cabeça, inclinou-se até a cintura, girou e, de certa
forma, tornou-se a imagem de Kokopelli, o cruel espírito katchina. Em sua
enorme cabeça, semelhante a uma máscara, havia uma listra branca, pintada até
o centro. O resto da cara, com exceção dos círculos brancos acima dos olhos, era
negra. Penas vermelhas e brancas coroavam-lhe a fronte e um nariz fálico
projetava-se como um bico, em minha direção. Um colar que lembrava uma
gorda cobra branca e preta enrolava-se em torno de seu pescoço. Percebi de
relance um saco que ele usava a tiracolo.
Durante um breve momento não consegui olhar para ele. Cão-Vermelho, à
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luz do dia que findava, apresentava-se corcunda e grotesco, ao mesmo tempo
medonho e belo. Seu chocalho azul brilhava e a flauta soltava seus trinos. Ele
pulou em torno da cabana, girando e dançando. Saltou para o telhado, deu mais
um pulo, que o aproximava perigosamente de mim, e me cercou. Percebi que, o
tempo todo, ele sabia que eu me encontrava ali. Sorriu para mim e era um
arrogante sorriso de amor. Tirou do saco um anel e o ofereceu a mim,
provocando-me, pulando animadamente de um lado para outro, estendendo-me
o braço pintado. Eu estava sendo enfeitiçada. Ele se inclinou para frente e
consegui sentir seu hálito quente. Eu o adorava. Ele encarnava o espírito de
todos os katckinas. Acenou e agora me provocava, girando seu corpo sensual
lentamente, de tal modo que eu senti vontade de estender a mão e tocá-lo. A
música me seduzia e percebi que soltava suspiros abafados. Senti também um
calor opressivo. Estávamos dentro de um círculo de luz e sombras.
— Irei com você — murmurei, começando a me levantar. Dei um passo,
mas, de repente, uma mão me agarrou o braço, com um gesto vigoroso e eu me
voltei para trás, aterrorizada. Diante de mim estava o olhar furioso de Agnes.
— Venha comigo — ela exigiu, sibilando as palavras em meu ouvido.
— Não! — gritei.
Eu estava enlouquecida de paixão. Debati-me por um momento, tentando
dar um pontapé em Agnes e livrar-me de seu domínio. Aflita, olhei em torno de
mim, procurando Kokopelli, mas percebi apenas Cão-Vermelho sentado no
alpendre, com suas roupas caqui, exatamente como surgira pela primeira vez.
Fiquei histérica, chutei Agnes e arranhei seu rosto. Ela girou e tocou em mim.
Acordei deitada em sua cama, na cabana. O que me despertou foram meus
gemidos e lamentos. Minha cabeça estava inchada e doía no ponto em que
Agnes me tocou, fazendo-me desmaiar. Ela estava debruçada sobre mim, com
uma expressão de profundo desdém em seu rosto enrugado. Os olhos fuzilavam
e ela bateu com o pé no chão, impaciente.
— Você não usou o brinco — gritou. Estendeu a mão e mostrou-me a
jóia. — Você quase foi seduzida e poderia ter morrido. Se tivesse seguido
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aquela miragem, Cão-Vermelho teria escapulido com seu espírito.
— Tive a intenção de usar o brinco, só que esqueci — gaguejei.
— Espero que você não morra. E agora, minha jovem, terá de enfrentar as
paixões de Cão-Vermelho.

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As feiticeiras nunca matam ninguém. Fazem as pessoas
se matarem.
—Agnes Alce-Que-Assovia

Eu não conseguia comer e andava de um lado para outro da cabana. As


paredes, o teto, tudo pesava sobre mim. Agnes estava sentada na cadeira que
sempre ocupava e observava cada passo que eu dava.
— Agnes, pare de olhar para mim! — reclamei.
Ela não disse nada, enquanto eu continuava andando de um lado para
outro. No meu ouvido direito ressoavam as melodias da flauta de Kokopelli. A
paixão estava me levando à loucura.
— Por que não posso ir conversar com Cão-Vermelho, Agnes? —
perguntei. — Talvez possamos chegar a algum entendimento. — Minha voz
soava tão lamurienta quanto a de uma menina mimada.
— Não — disse Agnes secamente. — Tente entender. Cão-Vermelho está
mudando de isca e está se tornando a própria isca. Ele tem se mostrado muito
mau e devia levar um pontapé no traseiro.
Nem sequer ouvi o que ela me dizia. Bati o pé no chão, num gesto
voluntarioso, e encarei-me no espelho. Sentia-me oprimida, tinha vontade de
respirar.
— Posso sentar no alpendre?
— Não.
— Mas por que não?
— Não. Absolutamente não.
— Por favor, Agnes.
— Não, e ponto final.
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— Oh... está bem.
Os sons da flauta me levaram a pensar no sorriso lascivo de Kokopelli.
Sorri, confusa, e pedi desculpas por meu comportamento adolescente. Agnes fez
um gesto com a cabeça.
Passei por meia hora de tortura e quando já não conseguia mais me
controlar, manifestei-me.
— Preciso ir até o carro pegar um livro que deixei no porta-malas.
Agnes não disse nada.
— É um livro muito interessante, sobre ioga, Agnes — declarei, abrindo a
porta. — Foi escrito por um amigo meu. Você gostará das fotos.
Dei alguns passos para fora da cabana e percorri a picada que levava até o
carro. Nó meio do caminho, parei e olhei para trás. Não se via Agnes em lugar
algum. Suspirei, aliviada.
— Estou livre de você, sua morcega velha!
Cheia de presunção, virei à direita e segui a picada que levava à cabana de
Cão-Vermelho. Perdi o controle sobre tudo, mas pouco me importava. A música
da flauta aumentou de volume, fascinando-me, e comecei a correr. Duas pedras
enormes erguiam-se na beira da trilha. Ao passar por elas, parei, surpreendida.
— Agnes! — murmurei, assustada. — Eu ia apenas... Ela bloqueava meu
caminho. Estendeu o braço e me obrigou a dar meia-volta.
— Regresse imediatamente à cabana! — Ela estava furiosa. Obedeci-a
com muita má vontade, à espera de que surgisse outra oportunidade.
— Sente-se na cama e não abra a boca — ela ordenou. — Você é tão
estúpida que, da próxima vez, vou deixar aquela gente t« liquidar.
Minhas entranhas queimavam. Era como se Cão-Vermelho tivesse
inoculado em mim a inquietação e a impaciência. Fiz impossível para não sair
correndo. Agnes remexia o baú, à procura de algo e de costas para mim.
Saí correndo em direção à porta, mas ela me agarrou pelos cabelos e, num
gesto brutal, me obrigou a voltar para a cama. Comecei a gritar e soluçar.
— Lynn, faça um esforço e reflita — ouvi-a dizer.
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A música da flauta era, porém, como o órgão de uma catedral que
ressoava em meu cérebro. Eu espumava. Chutei, arranhei e tentei morder Agnes.
— Eu te odeio! — berrei. — Eu te odeio! Me solte ou então vai se
arrepender!
Agnes achou o que queria dentro do baú. Segurava a ponta de uma corda e
a outra extremidade estava entre seus dentes. Agarrou meus punhos, como se
estivesse tentando subjugar uma novilha, e os amarrou na cabeceira da cama.
Fez o mesmo com meus pés, levantou-se e esfregou as mãos.
— Pronto!
Debati-me e tive acessos de fúria. De repente as nuvens que entorpeciam
minha cabeça começaram a se dissipar.
— Agnes, isso é demais! — disse, tentando parecer o mais digna possível.
— Sou uma pessoa lógica. Não podemos discutir a situação sem todo esse
melodrama? As cordas estão me machucando.
— Sim, e quanto mais você se agitar, mais apertado ficará o laço.
Ela arrastou a cadeira para junto da cama e sentou. Fechou os olhos e
entoou uma terna canção em cree, mas eu estava furiosa demais para me
comover.
— Sabe que o que você está fazendo é ilegal? Vou te mandar para a prisão
por causa disto.
Ela simplesmente riu.
— Já não me importo com esse maldito cesto! Sinto-me arrasada! Só
quero conhecer aquele homem! — Comecei a chorar. — Não agüento mais.
— Ouça-me! — Agnes se exprimiu com tamanha autoridade que as visões
e até mesmo a música se interromperam. — Ouça-me. — De certo modo a voz
dela interferiu em minha confusão. — Você ignora o que terá de enfrentar. Veja
só o caso de July. É aprendiz de Ruby, assim como você é minha aprendiz.
Certo dia ela percorria a estrada e pretendia conseguir uma carona para Crowley.
Viu uma velha perua descendo a estrada e voltou-se, fazendo um sinal.
Surpreendeu-se, ao notar um carro novo em folha. Achou que estava sendo
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vítima de uma ilusão. O branco que a guiava mostrou-se muito gentil, lhe
ofereceu uma carona e ela aceitou. O homem disse que tinha uma fazenda na
reserva e que estava procurando mão-de-obra indígena que o ajudasse a tanger e
recolher o gado. July disse que pensaria em alguém que pudesse fazer esse tipo
de serviço. Havia algo de estranho naquele homem. Distraída, ela olhou para
baixo e notou que o pé que pisava o acelerador era um casco rachado. Olhou
para o rosto dele, mas tudo começou a se embaralhar. Não conseguia focalizar
mais nada, mas sabia que não se tratava do mesmo homem. Sabia que tinha
caído na armadilha de um feiticeiro, Cão-Vermelho. Tentou recorrer a tudo que
a pudesse proteger, mas era tarde demais. Tudo o que conseguiu fazer foi gritar
e pedir-lhe que a deixasse sair. Não esperava que Cão-Vermelho consentisse,
mas ele desviou o carro para o acostamento e parou. Quando ela abriu a porta e
começou a correr, ouviu-o chamá-la por seu nome. Em seguida ouviu a música
da flauta. Embora não querendo, teve de parar e voltar-le. Ele a tinha sob seu
poder e ela voltou, em transe. Já não era mais dona de sua vontade.
Agnes interrompeu-se e fez-se um prolongado silêncio. Engoli em seco.
— E, então, o que aconteceu?
— Você já viu uma aranha matar uma borboleta?
— Não.
— Bem, é muito parecido com o que aconteceu com July. Á aranha judiou
dela. Não quis matá-la rapidamente, por meio de uma picada misericordiosa.
Dançou em torno dela, tocando a flauta, torturando-a com a música, exatamente
como está fazendo com você. Sugou lentamente suas entranhas, repetindo o
comportamento da aranha com a borboleta. Ela tornou-se sua amante. Ele
apoderou-se de seu espírito e de seu poder, os prendeu numa cabaça e pendurou-
a na parede de sua cabana. Para aquele filho da mãe isso não passa de uma
grande piada. Quando se cansou dela, simplesmente largou-a no alpendre de
Ruby. A única coisa que lhe deu foi aquela velha flauta. Ela ainda está possuída
pela música e é por isso que a repete o tempo todo. Ruby ficou indignada. Os
morros em torno de sua cabana estremeceram por vários dias e os bichos da
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floresta tinham medo de aparecer. Desde então Cão Vermelho ri sem parar. —
Agora havia ímpetos de vingança na voz de Agnes. — Ruby ainda vai dar um
jeito nele. Espere e verá. Irá desossar um de seus aprendizes. Lynn, é isso aí que
você tem pela frente.
Agnes agora estava muito séria. Levou a mão à minha testa, para ver se eu
estava febril, e ocorreu-me que eu adoecera, que estava apartada de minha
sanidade. Só então percebi a gravidade do que acontecera com July. Comecei a
tremer de medo, pensando em seu olhar vago e enlouquecido.
Ouvi de novo a música da flauta. Repetidas ondas de paixão se abateram
sobre mim. Era como se Cão-Vermelho se desse conta de que estava perdendo o
poder sobre minha pessoa e se aproximasse, com a finalidade de me matar.
Agnes tirou de um gancho, na parede, uma pequena bolsa de couro cru, abriu-a,
pegou algo que se assemelhava a folhas esmagadas e enrolou um cigarro.
Acendeu-o, deu várias baforadas e aproximou-se, sentando-se na cama.
— Fume esta fumaça sagrada — pediu, segurando meu queixo e pondo o
cigarro entre meus lábios. — Lynn, isto a ajudará a sonhar. Sonhe sua paixão.
Voe. Penetre fundo no círculo de seus temores e desejos mais fundos. Enfrente-
os e conquiste-os. Atravesse seu próprio reflexo e livre-se de Cão-Vermelho.
Aja em seus sonhos como sente vontade de agir e encontre aqueles kivas tão
protegidos, no lugar onde escondeu seu coração.
A última coisa de que me recordo é a visão de Agnes afastando-se de mim
e sentando-se à mesa. Fechei os olhos. As notas torturantes da flauta
continuavam a ressoar em minha mente. O teto baixo começou a girar e se
tornou tão tênue quanto um véu. Projetei-me para fora de meu corpo e da
cabana. Por um momento caminhei por entre as árvores e agachei-me para
contemplar um pedregulho no chão. Parecia ter um buraco e após fitá-lo com
muita atenção, tornei-me muito pequena para poder ir em direção a uma luz
minúscula que brilhava em seu interior.
Assim que atravessei o buraco, ouvi um barulho violentíssimo, de algo
que estalava. De repente eu voava rapidamente, através do espaço frio e
170
cristalino. Decorrido algum tempo, cheguei a um pátio, amplo e iluminado pelo
luar, rodeado de selva. Em seu centro encontrava-se o Grande Templo do
Jaguar. Duas pirâmides compostas de rochas talhadas a mão situavam-se diante
uma da outra, separadas por uma distância de centenas de metros. Entre elas,
erguia-se um altar de pedra. Era ali o lugar do jaguar, o lugar da balança do
esquecimento e da recordação.
O silêncio foi rompido pelas notas de uma flauta e o suave barulho de
mocassins que pisavam o capim. A figura fantástica de Kokopelli dançava e
girava, recortada contra a pirâmide do sul. Sua dança era uma antiga cerimônia e
de sua flauta saíam os sons que sugeriam a sedução de uma mulher por um
homem. Cão-Vermelho me alcançava num plano muito íntimo e a paixão
despertava em mim.
As gigantescas pirâmides se tornavam cada vez mais nítidas, à medida
que a lua surgia no céu. A cabana e Agnes desapareceram totalmente de meus
pensamentos e o reluzente céu noturno de uma outra época brilhava acima de
minha cabeça. O grande katchina era uma figura irresistível e prateada pelo luar.
Ele dançava e tocava sua magnífica flauta, movimentando-se e aproximando-se
do altar. Eu estava no topo da pirâmide, e minhas vestes brancas flutuavam,
impelidas pelo vento quente. Havíamos atravessado uma fenda situada entre
dois mundos, alcançando então uma dimensão relativa às coisas mais elevadas
da mente, uma dimensão mágica. Eu me sentia possuída pelo amor de Kokopelli
e desempenhávamos uma cerimônia sagrada que traria poder ao fluxo duradouro
da vida. Era agora o símbolo de todas as mulheres.
Desci lentamente os degraus da pirâmide. O katchina estava sentado no
altar e parecia em parte um animal e, em parte, um ser humano. Olhava-me
fixamente e eu caminhava em direção à minha morte, mas não me importava. O
Kokopelli atraiu-me com seus olhos que lançavam chispas, estendeu os braços,
amparou-me e, com ternura, colocou-me no altar.
Este era coberto de artemísia, de delicioso odor, e duas tochas ardiam de
cada lado. O jogo da luz das tochas com as sombras era hipnótico. Eu mal
171
conseguia respirar. O semblante de Kokopelli registrava todas aquelas
mudanças, desaparecia e voltava a aparecer. Fechei os olhos e tomei consciência
de algo que não era ele ou eu, e sim o poder do sonho, que estava por trás de
nós. Era a união do que havia de mais elevado e mais baixo em nossos eus e nós
dois formávamos uma unidade com toda a vida cósmica. A flauta parecia tocar
sozinha. Enquanto estávamos no altar de pedra, a brisa cálida da noite soprava
sobre nós como um manto astral. Olhei para o semblante de Kokopelli e percebi
que estava lá sozinha. Ao possuir aquele a quem mais temia e desejava, nós nos
fundimos num ser único, guerreiro e guerreira. Eu me acasalei com o guerreiro,
o macho, dentro de mim.
As pirâmides desapareceram e eu senti que era removida rapidamente de
lá. Enrodilhei-me na posição fetal, nua, e comecei a girar, rompendo as barreiras
do tempo. Tudo escureceu.
Despertei, trêmula e perturbada. Agnes desamarrara as cordas. Trouxe-me
uma bacia e vomitei. Ela então puxou uma cadeira para perto da cama e ficou a
meu lado, enquanto eu voltava a me deitar, sentindo-me muito fraca. Olhei pela
janela e percebi que o sol começava a se pôr. Era o final da tarde do dia
seguinte.
Agnes passou a mão por meus cabelos e a espalmou sobre minha testa.
— Como está se sentindo? — Algo que era uma mistura de jovialidade e
seriedade surgiu em seu rosto. — Será que vamos ter um bebê. katchina?
Relatei o melhor possível tudo que me acontecera. Enquanto falava,
descobri que agora sentia apenas um resíduo de paixão. Parecia ter recuperado a
sanidade.
— Agnes — disse, sentando-me. — O que tudo isso e o sonho têm a ver
com o cesto de casamento?
— Tudo entra em contato, a partir do momento em que você começa a
recordar. Você conscientizou-se de que o cesto de casamento foi concebido
pelas sonhadoras para simbolizar a união entre o grande guerreiro e a grande
guerreira no interior de seu ser. Toda mulher procura dentro de si o grande
172
guerreiro, o mais magnífico dos homens. Nós o procuramos durante nossa vida
inteira. Se tivermos sorte, o invocamos em nossos sonhos, temos uma relação
com ele e nos tornamos uma unidade. Está me entendendo?
— Creio que sim.
— Esses sonhos que você teve são uma grande sorte. Você teve de
trapacear com o poder, a fim de encontrá-lo. Seu símbolo é o grande feitiço,
aquele de que as mulheres se esqueceram. Era imensamente perigoso, mas agora
você poderá ajudá-las a recordar-se da cura. Você revelou o homem e a mulher
no interior de seu eu e chegou a um lugar onde os caminhos bifurcam. Agora
poderá mudar e crescer. Começa a entender o que significa entregar-se de fato.
A mulher julga que se entrega, mas esqueceu como fazê-lo. As cabanas de
muitas mulheres permanecem abandonadas porque ninguém olha dentro delas.
Chegue àquele grande guerreiro que aguarda dentro da cabana de uma mulher.
Abrace-o e liberte-se.
O sol alaranjado parecia um ovo oblongo, cada vez mais baixo, no dia que
findava. Fomos sentar no alpendre e permanecemos em silêncio. Eu ainda
tremia e tinha uma sensação de náusea na boca do estômago. Mais tarde, quando
escureceu, Agnes disse-me para voltar para a cama. Observou que demoraria
algum tempo, até eu me recuperar completamente daquela experiência. Só bem
mais tarde ela entrou na cabana e, ao despertar, estava sentada na cadeira, à
minha cabeceira. As mãos pousavam no colo e ela olhava fixamente para as
sombras que se projetavam na parede.
— Boa noite — eu disse.
Ela sorriu e fez um gesto, indicando que eu deveria voltar a dormir.

173
O que são suas visões noturnas ou sua dor senão o
fracasso de sua vontade?
— Hyemeyohsts Tempestade

Quando me ergui na cama, tive a sensação de que me entregara durante


toda a semana à bebedeira. O fumo sagrado era muito poderoso. Caminhei
lentamente até a mesa e sentei-me.
Agnes separava uma variedade desconcertante de objetos: pedras, cristais,
um molho de capim, a carapaça de uma tartaruga, uma espécie de mandíbula
descolorida, penas, flores secas e outras coisas que não consegui identificar.
— Tudo vive, Lynn. Já vi o espírito do uísque se apoderar de muita gente.
O espírito das plantas ou das drogas pegaram muita gente. Existem poucas
pessoas que conhecem o espírito do que quer que seja, mas isso é algo para se
aprender. Pode ser um encontro perigoso, mas espero que façamos juntas essa
jornada e que ela possa conduzi-la até esse estado, quando você souber o
suficiente. Coma.
Servimos o café da manhã, mas eu mal conseguia me alimentar. Tomei
alguns goles de chá e seu calor me fez sentir um pouco melhor.
— Agnes, a experiência de ontem à noite me pareceu tão real quanto
qualquer outra que tive até hoje. Creio que me encontrei em algum lugar com
Cão-Vermelho, sob a forma de um Kokopelli katchina.
Ela pôs uma folha contra a luz da manhã e examinou-a.
— Não acredita que a cabana da lua exista de verdade? — perguntou de
repente. Em seguida começou a empilhar as pedras e cristais no interior da curva
da mandíbula. — Os sonhos mergulham no mais fundo da terra. São femininos,
174
quanto à espécie. O homem se apropria da substância e a modela. Os sonhos são
a outra metade de sua visão. Por acaso você não se acha real? Desta vez você
trouxe o poder consigo. Desta vez conseguiu se lembrar.
— Sinto-me muito confusa em relação aos sonhos, o que são e o que
significam. Nos últimos meses meus sonhos me pareceram muito reais e
parecem ter afetado totalmente minha vida. No entanto não consigo imaginar
que os sonhos tenham substância, até mesmo este último. Pareceu-me muito
mais uma visão.
— E já lhe ocorreu alguma vez que o homem oscila entre dois mundos de
reflexão? Toque na terra, pois a mãe está desperta. A terra está viva e sonha.
Tudo aquilo em que o homem pensa possui substância. Não existem buracos em
seus pensamentos. Aquelas que estão despertas, as xamãs, conseguem
perambular até o outro lado do universo, ultrapassando até mesmo o que existe
de mais remoto. É nele que surge a porta do arco-íris, que se abre para a teia da
substância. Se você invadir esse mundo, os seres que lá existem poderão lhe dar
todo o poder que você desejar. A maior parte dos poderes são pesados demais
para que se possa trazê-los. Quão felizes ficamos, quando podemos voltar
através daquela porta, uma vez que ela nos é aberta! Os grandes guerreiros,
porém, muitas vezes rechaçaram lá os golpes que receberam. Você veio para cá,
através da porta, no momento em que foi concebida e, ao morrer, é sugada
também através dela. E lá que tudo é dado e é lá que tudo é tirado. As vigilantes
querem que você vá até lá e se apodere de tudo que puder. Quando você entra,
elas a reconhecem, cantam. Você fala de substância. Ouça: toda substância,
incluindo meus sonhos, é minha irmã e meu irmão, eu os reconheço e vivemos
aqui em harmonia.
— Agnes, mal acabei de me levantar...
— O problema com você — disse ela, rindo — é que, ao longo de sua
vida, muitos ensinamentos lhe foram revelados e você não estava
suficientemente desperta para vê-los.
— Pelo menos aprendi algumas coisas — protestei, indignada.
175
— Lynn, você tropeçou na pena de uma águia como se ela estivesse
bloqueando seu caminho.
— O que você quer dizer com isto?
— Você me acha uma velha louca e sou mesmo. — Agnes riu em voz
alta.
— Se achasse isto, não estaria aqui, não é mesmo?
— Quem sabe... — Ela voltou a rir.
— Você ainda não me explicou o que significa tropeçar na pena de uma
águia.
— Uma águia paira no céu e enxerga todas as vastas complexidades e
inter-relacionamentos. Quando uma pena da águia que cura cai na terra, ela está
repleta desse conhecimento. Se você estiver atenta, conversará com a pena de
águia e pedirá a seu espírito para guiá-la. Todas as penas de águias têm esse
poder. Você tem de pegá-las e conversar com elas. Precisa também saber como
ouvir a resposta. Tome seu café da manhã.
Forcei-me a comer, enquanto Agnes guardava sua coleção na gaveta.
Fechou-a e encarou-me, pensativa.
— Vamos, Lynn — disse.
Segui-a até o alpendre da frente. July estava recostada numa coluna e
tocava flauta. Percebi que ouvira aquele instrumento com tamanha freqüência,
tão continuamente, que o apagara em minha mente. Agora prestava atenção nele
e o som era fraco e vascilante. Não existia muito sopro animando-o.
— Sente-se aqui — disse Agnes, indicando um lugar no chão do alpendre,
bem em frente a July. Sentei-me com infinito cuidado e meu corpo estava muito
mais rígido do que eu imaginara. Agnes agachou-se entre nós e pegou o queixo
de July.
— Olhe com atenção para ela, Lynn. Olhe em seus olhos e diga-me o que
você vê. Descreva-a.
Eu andava entregue ao que me acontecia que nem notei o quanto ela
estava minguando. Não tinha a menor consciência de nossa presença e, a todo
176
momento, derrubava a flauta da boca e babava. Estava terrivelmente pálida,
magra, e seus olhos castanhos estavam mais fundos e perdidos do que nunca.
— Vejo alguém que enlouqueceu — gaguejei.
— E quer que isso lhe aconteça?
— Não, não quero! — gritei.
— Pois então fique e contemple-a por alguns instantes — disse Agnes. —
Você ainda poderá acabar desse jeito. — Ela voltou para dentro da cabana.
Assim que fiquei só, encostei-me na parede, tentando pôr meus
pensamentos em ordem. July tateava, à procura da flauta. Rememorei o encontro
que ela tivera com Cão-Vermelho e lágrimas de piedade encheram meus olhos.
Só de pensar em Cão-Vermelho, uma onda de ciúme me invadiu. Senti-me como
uma loba que tem seu território invadido, e, durante um breve instante,, odiei
July. Não conseguia controlar meus pensamentos. Talvez quem estivesse louca
fosse eu. Pensei se a garota acaso achava que era a única a ser livre, só porque
ouvira a música de Cão-Vermelho.
— Lynn, você já viu o suficiente? — Era Agnes que voltava.
— Acho que sim. Agnes, ela ouve a música que Cão-Vermelho toca em
sua flauta? Por que tenta soprar essas notas o tempo inteiro?
— Não existe o menor barulho na cabeça de July, nenhuma imagem,
nada. Ela é uma pessoa doente e poderá morrer. Cão-Vermelho jamais devolverá
seu espírito. Ela sopra a flauta porque não pode deixar de fazê-lo. Por que a lua
percorre a terra? July é prisioneira de um labirinto. Se você tocá-la com outras
coisas, estará flertando com a catástrofe.
— E não podemos fazer nada para ajudá-la? — perguntei, estremecendo.
— Você nada pode fazer. Eu, talvez, sim, mas... — Agnes não terminou a
frase. — Entre na cabana — ordenou, agarrando-me pelo braço. — Vejo que
July a faz sentir-se mal — observou.
— Não, apenas sinto pena dela.
— Ouça: July morrerá dentro de uma semana. Muito em breve seu
espírito se esquecerá daquele corpo fora de uso e a aniquilará. Tome cuidado
177
para não segui-la. Cão-Vermelho ainda pretende lhe dar a conhecer seu ponto de
vista. É este mesmo ponto de vista que está sentado lá no alpendre.
— Tenho a sensação de que não consigo controlar meus desejos, Agnes.
— Sabe, Lynn, os xamãs são sugadores do espírito. Fazem-no através do
sexo e de nossa disposição em relação a isso. O espírito é simplesmente aspirado
por eles. Afaste-se deles com a velocidade de uma flecha. Siga por um atalho
que a leve para bem longe e chegue até os últimos limites, mas não se deixe
surpreender por esse tipo de xamã. Cão-Vermelho está tentando dobrá-la, a fim
de alcançar seus objetivos.
— E é fato que ele realmente tenha se apoderado do espírito de July? O
que significa?
— Eu já lhe disse. —Ela debruçou-se e seus olhos brilharam como os de
um lagarto. — Posso partir você em duas. Os seres humanos não são gêmeos de
si mesmos — sabe, essa questão de esquerda e direita. Os dois lados são
diferentes e servem a diferentes propósitos. Existe, no meio, uma costura que vai
de alto a baixo. Um curandeiro ou uma curandeira consegue enxergar essa
costura e separar uma criatura em duas partes. É fácil. Cão-Vermelho usa o sexo
para fazer isso. Lynn, eu poderia fazer sexo com Cão-Vermelho e, para mim,
esse ato significaria uma apropriação do poder.
— Como no meu sonho com o katchina?
— Sim, é como a natureza de seu sonho. Cão-Vermelho seria até mesmo
um bom homem para mim, se eu conseguisse suportá-lo. Na minha opinião,
porém, aquele louco é feio demais para sequer merecer um olhar. Quanto a você,
ainda não é suficientemente forte para ele. O poder do guerreiro e da guerreira
não se manifestaria. Você partiria pela metade e nada seria.
— E morreria?
— É no momento em que você se parte em dois que o xamã a surpreende
e se apodera de seu espírito.
— E o espírito se parece com alguma coisa?
— Sim, com a fumaça.
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— Quer dizer então que existe algo dentro de uma pessoa que se
assemelha à fumaça e esse algo é o espírito?
— Sim, como uma baforada de tabaco. Estaríamos todos mortos, se não
fosse a fumaça do tabaco. Graças a ela, os seres de duas pernas passaram
despercebidos pela morte. A morte viu o vento tocando a fumaça, julgou que
eram os espíritos que queria e foi-se embora.
— É isso o que Cão-Vermelho conserva em sua cabaça, a parte de July
que se assemelha à fumaça?
— Exatamente. E isso que ela precisa ter de volta, se quiser viver. '
— E você não pode devolver-lhe seu espírito?
— Não se pode obrigar Cão-Vermelho a fazer o que quer que seja.
Ninguém conseguirá obrigá-lo a arredar o pé, se ele não quiser se mexer.
— O que acontece quando uma pessoa morre, Agnes?
— Não se trata de uma pergunta relevante. A totalidade da vida humana é
observada pelos chefes do trovão. Existe dentro de você um caminho turquesa.
O importante é manter seu espírito caminhando ao longo dessa via. Se assim o
fizer, no fim de seus dias se fundirá com os chefes do trovão. Todos os demais
caminhos conduzem ao absurdo e à ilusão. Eles só provocam dor, pesar e
confusão. Possuo um pouco de poder porque consigo enxergar o que está no
fim. É nesse momento que todos os enigmas se elucidam e todos os paradoxos
são respondidos. O significado de suas lágrimas e seu sofrimento se esclarece.
Se você conseguir descobrir isso no devido tempo, então alcançará a plenitude e
ninguém poderá tirar isso de você. E este o caminho da cura e, para você, é o
caminho certo.
— E estou realmente nesse caminho, Agnes?
— Sim, mas ainda não sabe. Talvez ainda consiga sobreviver. Senti, de
repente, uma grande ansiedade.
— Cão-Vermelho quer me matar, não é mesmo?
— Se ele apenas quisesse matá-la, você poderia considerar-se uma
criatura de sorte — disse Agnes, sorrindo. — Não, ele quer testá-la e o que
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reserva para você poderia fazer a morte parecer um piquenique. Quando um
xamã começar a testá-la, recorra a tudo o que puder. Existem quatro lugares em
que ele poderá combatê-la: no fogo, no vento, na terra e na água. Se ele a
perseguir em algum outro lugar, então pode saber que perdeu. Fuja
imediatamente de lá e desista de seus sonhos. Volte para casa, colecione bonecas
índias Kewpie e não pense mais no assunto. A probabilidade, porém, é de você
ser surpreendida num lugar remoto. De lá não conseguirá ir para nenhuma outra
parte. Remoí as palavras de Agnes. Pensei em meu sonho e em minha paixão
por Cão-Vermelho, em July e no seu enorme vazio. Tudo se encaixava e
comecei a dar-me conta da maldade de Cão-Vermelho para comigo e da astúcia
com que me envolvera. O ódio começou a nascer dentro de mim.
— Como foi que Cão-Vermelho ousou me manipular? — Aquelas
palavras saíram de meus lábios tão inesperadamente que Agnes começou a rir.
— Já estava na hora! Você está começando a entender, mas ainda está
apaixonada por ele. Seus olhos não me enganam. Agora que está demonstrando
um pouco de bom senso, terei condições de medicá-la. Conheço um meio de
impedi-lo de se apoderar de você.
— O que devo fazer?
— Precisa ir para junto daquele pequeno lago, onde lhe falei de Cão-
Vermelho pela primeira vez. Fique lá tantos dias quanto for necessário. Observe
e veja o que acontece. Sua irmã chegará em breve e a curará.
— Mas então devo dormir lá inteiramente só?
— Sim, no momento não existe outra solução. Haverá proteção a sua
volta. Não se esqueça de usar o brinco. Tome cuidado e tudo terminará bem.
— E quem é minha irmã? O que você quer dizer com isso?
— Ela se encontrará com você no lago.
— Você sabe muito bem que não tenho irmã e deve estar se referindo a
mais alguém.
— Terá de descobrir isso por si mesma.
A essa altura Agnes tinha providenciado comida e a pôs numa trouxa.
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Parecia estar com pressa.
— Mas eu tenho mesmo de fazer isso? — perguntei.
— Sem dúvida. — Agnes foi enfática. —. Cão-Vermelho não aparecerá
por lá. A honra dele está em jogo e ele respeitará sua reclusão.
Enrolei meu saco de dormir e não ousei pensar na noite que se
aproximava. Encarei Agnes com um certo desespero.
— Vá e não volte enquanto não tiver algo para me contar. Concordei e
parti. Afastei-me da cabana como um vira-lata expulso e segui a trilha que
levava à cabana de Ruby. O céu estava tão azul quanto um mar calmo e distante.
Eu me sentia tão desgastada com todos aqueles terrores e ameaças que assumi
uma atitude fatalista.
— Se morrer, não há nada a fazer.
Isso me ajudou de certa forma. Meu estado de espírito melhorou e meus
passos se tornaram mais lentos. Toda minha vida se engrenava para impedir
minha morte.
Parei para repousar várias vezes e, numa delas, comi. Afrouxava o passo e
me sentia em sintonia com o capim, as árvores e o céu. Por duas vezes subi as
encostas dos morros, a fim de apreciar a vista e tirei uma soneca, usando o saco
de dormir como travesseiro. O tempo estava mudando. A temperatura
aumentava, enquanto as sombras se alongavam. Quando cheguei ao lago, a luz
da tarde banhava de dourado as colinas que me rodeavam.
Pus a trouxinha de comida e o saco de dormir em cima de uma pedra e
perscrutei a área, procurando um lugar onde me abrigar. Finalmente uma
pequena depressão do terreno atraiu minha atenção. Situava-se ao ar livre, logo
acima do lago, e era abrigada do vento por algumas árvores. Situava-se a uma
certa distância do lago, de tal modo que, se os animais viessem beber água,
minha presença não os perturbaria.
Sentei-me à beira da água, sobre uma pedra lisa. Meu jantar consistiu de
carne-seca e pão frito. Em seguida molhei o rosto e juntei gravetos, ligeiramente
úmidos e com cheiro de terra. Em breve uma pequena fogueira crepitava.
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Os últimos e esmaecidos raios do sol morreram e a escuridão se fez
rapidamente. Entrei no saco de dormir e pus o tênis debaixo da cabeça. Senti-me
surpreendentemente bem. Contemplei a lua cheia e fui embalada pelo barulho
dos sapos e dos grilos. Pedi à lua para nunca deixar de brilhar e senti que seu
fulgor tocava dentro de mim. A última imagem que consegui recordar era a de
minha mente perambulando por uma paisagem banhada por um enorme luar.
Despertei na manhã seguinte na mesma posição em que me encontrava
quando adormeci. Sentia-me descansada e o sol levantava. Fiquei deitada,
observando as mudanças da luz no céu. Uma rajada de vento fresco se abateu
sobre meu rosto. Cochilei um pouco, antes de me levantar.
A diferença de temperatura entre a sombra e os lugares banhados de sol
era marcante. Sentei-me na mesma pedra lisa onde estivera na véspera, e
contemplei o lago. Naquele lugar o sol esquentava e me relaxava. Agnes me
dera instruções muito precisas no sentido de, na medida do possível, ficar
sentada e não me mexer, voltada para o norte, a fim de contemplar a água e
deixar que ela me ensinasse. Disse que era especialmente importante que eu
exercesse a autodisciplina.
Inicialmente dispersei-me, observando o vento agitar as árvores. Ouvia o
farfalhar das folhas e observava as miríades de insetos. Não me mexia e um
dedo deslizava pela água. Minha única companhia era uma libélula que adejava
sobre o lago de vez em quando. A água encrespou-se, agitada pela brisa. Percebi
uma folha que flutuava, tirei-a da água e soltei-a novamente. Se eu fosse
Narciso, sabia que teria de morrer.
Uma enorme desesperança apoderou-se de mim quando pensei em Cão-
Vermelho. Ainda me sentia completamente enamorada, embora soubesse que
aquilo não passava, da parte dele, de uma horrível trapaça. O grande katchina...
não consigo descrever o êxtase que tal pensamento despertava em mim. Um
pássaro voou e logo após outro, que ia na direção oposta. Ainda mais um
levantou vôo de uma árvore, deslocando-se com muita rapidez e rente à água.
Um animal, perdido no meio da floresta, convocou, aos urros, sua parceira.
182
O sol, que se erguia rapidamente no céu, estava bem mais quente do que
de costume. Há muito que já não era mais eu mesma. Só conseguia sonhar com
o katchina de flauta, só pensava nele.
Milhares de frações de tempo se escoavam. Eu lutava para enxergar com
maior clareza. Deitei-me de bruços na pedra aquecida e dirigi toda minha
percepção para a água, como se ela estivesse girando lentamente. Como um
peixe por debaixo da superfície do oceano, fui embalada, até mergulhar numa
espécie de torpor. Virava de um lado para outro, sob o sol, repousando
calmamente na crista do mar, incapaz de modificar minha trajetória ou meus
instintos.
Vagueei, sem o menor esforço, através de cavernas submersas, cutucando
aquelas formas sem vida que se delineavam contra rochas vetustas, como se
implorassem por um sinal. Examinei meu reflexo nas poças subterrâneas,
esperando que elas me mostrassem que eu ainda estava viva. Essa indicação
sempre se perdia, toda vez que eu voltava para as margens. Eu me apegava à
água e ao rosto de Kokopelli, com o único resultado de que toda e qualquer
prova era removida de meus dedos. Eu era uma criatura que estava além do
amor ou da esperança. Regressei sozinha às cavernas abaixo da superfície,
invocando aquilo que me lembrava um deus distante. Recordei minhas antigas
almas, bem como os eventos e a tortura que me tinham trazido àquele lugar.
Questionei a própria alma do mar dentro de mim. Era o início, a sabedoria de
todas as eras, a serenidade e a verdade contidas na maré. A água escorregou por
meus dedos, as ondulações nasciam e morriam, bolhas e espuma eram levadas
para longe. Havia quietude nas águas verdes. A superfície tornou-se céu e
nuvem. Fui deixada sozinha nas margens.
De repente percebi algo com o canto do olho. Voltei-me lentamente e
olhei bem dentro dos olhos de uma cascavel. Ela estava a uns dois metros de
distância, de cabeça erguida, e fitava-me com toda tranqüilidade. Encarou-me e
então abaixou a cabeça, estendendo-se no chão. Foi aquecer-se ao sol e
simplesmente ignorou minha presença.
183
Fiquei à espera de uma reação, mas a cobra estava inerte. Não conseguia
deixar de olhá-la. Ocorreu então algo extraordinário. Uma libélula que
sobrevoava o lago há horas aterrissou subitamente na cabeça do réptil. A língua
bifurcada da cobra surgiu rapidamente e a libélula levantou vôo, pairou por
alguns instantes sobre a cascavel e veio em minha direção. Seu rapidíssimo
movimento me fez recuar, mas a libélula pousou bem entre meus olhos,
permaneceu ali per uns segundos e, mais uma vez, alçou vôo, seguindo o curso
do regato.
Percebi, então, que a libélula era a irmã por quem eu esperava.
Levantei-me cuidadosamente e afastei-me. Deixei fumo para a cobra e a
libélula, juntei às pressas minhas coisas, pus a trouxa nas costas e segui a trilha.
Quando me voltei para olhar, notei que a cobra ainda dormia, junto ao lago.
A pálida luz do sol tornara-se dourada, com a aproximação da tarde.
Enquanto caminhava, tomei consciência de que meu desejo por Cão-Vermelho
desaparecera. Lágrimas de gratidão correram por meu rosto e comecei a correr
em direção à cabana. Mal podia esperar para contar a Agnes o que acontecera.
Ao avistar a cabana uivei como uma loba. Agnes saiu para o alpendre e
ficou parada, exibindo um enorme sorriso. Joguei-me nos seus braços e
entramos na cabana. Desabei na cadeira e tomei um copo de água. Agnes me
perguntou o que tinha acontecido e eu contei o que se passou no lago.
— Por favor, diga-me o que isso significa — pedi, excitada. — Não posso
acreditar no quanto minha percepção se modificou. Isso tudo foi um pesadelo.
Vou pegar Cão-Vermelho!
— Sim! — disse Agnes, rindo. — Aquela libélula de cura é sua irmã. É
guardiã e protetora do Quetzalcoatl. Todas as criaturas que hibernam, como, por
exemplo, o urso e a libélula, são sonhadoras. Dormem muito tempo e sonham.
Sua irmã libélula notou sua aflição e trouxe o poder de uma sonhadora para seus
olhos físicos. Extraiu aquela obsessão de você. Foi muito simples.
— Sua explicação não me parece nada simples, mas minha mente volta a
me pertencer, pelo menos no momento.
184
— Aposto que você adoraria tomar um chá!
Não recusei e conversamos e rimos durante alguns instantes. Preparamos
juntas o jantar. Era um reconforto estar de volta ao lar.

185
Todos os verdadeiros feiticeiros sabem como
roubar o poder.
— Agnes Alce-Que-Assovia

Minha felicidade durou pouco. Acordei antes do sol nascer, tendo diante
de mim imagens fugazes de minha morte nas mãos de Cão-Vermelho.
— Agnes — murmurei. — Agnes.
Ela não respondeu. Era a primeira vez que eu despertava antes dela. Uma
luz cinza e tênue começou a pôr sombras sobre o chão de tábuas e uma neblina
esgarçada envolvia as árvores. Pairava o mais completo silêncio. Meu saco de
dormir estava úmido e eu tinha a sensação de que meu corpo estava protegido
por chumaços de material isolante. Sentia-me deprimida. Sabia que jamais
conseguiria aprender o que quer que fosse. Jamais teria condições de roubar o
cesto de casamento. E como poderia voltar a ser feliz, vivendo aquela mesma
vida de sempre? Minha perspectiva se modificara totalmente e, no em tanto, o
mundo da cura achava-se fora de meu alcance. Esse mundo era violento demais
e eu jamais conseguiria aprender tudo o que Agnes queria que eu aprendesse.
Comecei a soluçar no travesseiro.
— Por que a Pobre-Vaca chora tão cedo? — perguntou Agnes, virando de
lado e apoiando-se no cotovelo.
— Agnes, jamais terei condições de roubar o cesto de Cão-Vermelho —
falei, entre lágrimas. — Perdi meu tempo e ele me destruirá.
— Que mais?
— Sou tão estúpida...
— Mais alguma coisa?
186
— Não consigo imaginar como fui me meter nesta confusão. Mal posso
acreditar.
Agnes levantou-se e abriu a janela, para deixar a neblina entrar. Em
seguida aqueceu um pouco de água.
— Lynn, pare de sentir pena de si mesma e ouça-me. Você tem muito o
que aprender hoje. Não dispomos de muito tempo, portanto preste atenção. Não
precisa dizer mais nada, Pobre-Vaca. Morra para suas recordações. Beba a água
daquele lugar onde o grande lince sonolento fareja sua presa, à luz da lua.
Esqueça que alguém lhe deu poder. Então os nenês d'água surgirão e lhe
perguntarão: "Onde foi que você conseguiu esses poderes que permitem a
iluminação?"
Enxuguei minhas lágrimas e cobri os ombros com a manta.
— Agnes, não consigo entender o que você fala a maior parte do tempo.
A que está se referindo agora? Por que, de repente, começa a me chamar de
Pobre-Vaca?
Meu nariz pingava e observei o nevoeiro entrar pela janela aberta. Agnes
sentou-se e me olhou atentamente. De repente estendeu o braço e afastou os
dedos, como se fosse atirar algo em meu rosto.
— A isto se chama jogar areia nos olhos de um búfalo antes de matá-lo,
Pobre-Vaca. Você não há de querer que o búfalo perceba a manobra.
— Mas o que quer dizer com isso e por que voltou a me chamar de Pobre-
Vaca?
— Porque você não entende a manobra.
— Quem foi Pobre-Vaca?
— Foi um homem, mas o fato de pertencer ao sexo masculino não tem
importância. Ele poderia ter sido uma mulher. Esta manhã ele é você. Percorria a
aldeia e sentia pena de todo mundo. "Oh, Pardal-Escuro não tem mocassins. Oh,
coitado do Touro-Jovem, não tem uma manta quente. Oh, pobre Olhos-
Amarelos, manca da perna. Oh, coitado de mim, sou tão infeliz..." Pobre-Vaca
encontrou-se com Coiotes-Gêmeos, o curandeiro. Ainda continuava a achar que
187
todo mundo era digno de pena. Em todas as direções para onde seu olhar se
dirigia, Pobre-Vaca via algo de muito triste. Coiotes-Gêmeos perguntou: "Ei,
Pobre-Vaca, onde está sua sombra?" Ele olhou para os pés e não viu sombra
alguma projetada no chão. Ela simplesmente não se encontrava lá. Pobre-Vaca
havia perdido a própria sombra. ' 'Não tenho sombra", disse. "Você não acha que
deveria encontrá-la?", perguntou Coiotes-Gêmeos. "Sim, acho", disse Pobre-
Vaca. "Não quero andar por aí sem sombra. Quero encontrá-la." Eu ouvia tudo,
sem entender muito bem.
— Pobre-Vaca perambulou pela aldeia à procura da sombra perdida.
Procurou em todas as cabanas, com muita pena de si mesmo. Não conseguiu
encontrá-la em lugar algum. Coiotes-Gêmeos viu-o certo dia e perguntou: "Ei,
Pobre-Vaca, encontrou sua sombra?" "Não, não consegui encontrá-la", foi a
resposta. "Desisto." "Por acaso tentou a Cabana de Transpiração?", perguntou
Coiotes-Gêmeos. "Quem sabe você tomou um suadouro e deixou sua sombra
lá." "Pois então vou olhar", disse Pobre-Vaca, que saiu correndo em direção à
Cabana de Transpiração. Entrou nela e encontrou sua sombra. No final, um
arauto percorreu a aldeia. "Boas notícias! Pobre-Vaca encontrou sua sombra na
Cabana de Transpiração. Pobre-Vaca morreu".
— Mas por que você me contou esta história? — indaguei.
— Porque você é parecida com Pobre-Vaca. Nota tantas coisas
desprovidas de importância e não repara naquelas que são importantes.
— Tem razão. Sou Pobre-Vaca, não é mesmo? Com muita freqüência
sinto pena de mim e do mundo inteiro.
A depressão se acumulava. Levantei-me, comi um pedaço de pão e
algumas nozes. Tomei um gole de chá e fiquei pensativa por alguns instantes.
— Você aprendeu muita coisa sobre seu inimigo e também sobre seu
adversário. As forças que existem em Beverly Hills são as mesmas que
encontrou no pequeno lago. No mundo em que você vive, chamam a isso
loucura e morte.
— Adversários e inimigos não são a mesma coisa?
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— Bem, você tem muitos inimigos a sua volta: câncer, doenças, as coisas
a que tem de resistir, como, por exemplo, gente má, decidida a tudo destruir. Ter
um adversário é, porém, uma grande coisa.
— Como assim?
— Digamos que você seja uma escritora e resolveu escolher como
adversária digna de consideração Anaïs Nin, aquela escritora com quem
conversou certa vez. Tenta derrotá-la no plano da criatividade e das idéias. Num
certo sentido, você a usa para enxergar-se. Não quer que ela falhe, pois, nesse
caso, perderia seu modelo. E o que uma pessoa que cura quer que você faça?
Deseja revelar-lhe todos os seus segredos, até você alcançar o poder e tornar-se
uma adversária digna de combater outro guerreiro valoroso.
— Mas como a competição se relaciona com as forças que se opõem?
— Acabo de lhe dizer que o mundo se assemelha bastante, onde quer que
se vá. A competição é a irmã feia da oposição. Na verdadeira oposição não
existe nada a se ganhar ou perder. A gente pode apenas se beneficiar. Se
começar a pensar que você e a oposição se sustentam mutuamente, então poderá
perder bastante. Não pode confiar em seu oponente, mas apenas em si mesma,
pois ninguém irá salvá-la. Ao contrário, um heyoka vê o mundo como oposição
e não aprende a separar a cabana interna da lua da cabana externa do sol. Não se
pode competir com o que quer que seja.
— Pode-se competir com a morte?
— Não, pode-se apenas opor-se a ela. A competição é auto-centrada, mas
a oposição enobrece. — Agnes fez uma pausa. Encarou-me e seus olhos
brilharam. — Como é que você irá competir com o inverno?
— Não é possível.
— Mas pode opor-se ao inverno, por exemplo, e de modo muito
meritório. Isso nos leva de volta aos espíritos. Um sujeito sonha em inventar um
aparelho de televisão. Todo mundo compete para fazer o melhor aparelho
possível, mas ninguém pára a fim de honrar a singularidade desse sonho. Posso
ficar sentada durante dias, tentando passar-lhe uma metáfora da verdade,
189
tentando, o tempo todo, despertá-la. Você, porém, deve se dispor a comer e
beber a terra, o sol, o universo, para saber que essas coisas todas existem dentro
de sua pessoa.
Agnes sacudiu a cabeça. Minha depressão passou. Eu sentia vontade de
não fazer nada o dia inteiro e refletir tudo o que me dissera, mas Agnes não
permitiu.
— Vamos, vista este suéter. Caminharemos um pouco. Comecei a
protestar.
— Levante-se — ela insistiu, obrigando-me a ficar de pé. Peguei o suéter
que Agnes me oferecia.
— Aonde vamos? — perguntei, ao sairmos da cabana. Ela fez um breve
gesto com a cabeça e eu a segui pela trilha que levava ao Riacho do Homem-
Morto.
O ar era fresco, revigorante, e a floresta ainda estava recoberta de neblina.
Pinheiros novos cresciam à sombra das árvores mais velhas. Agnes saiu da
trilha, aproximou-se de um pequenino freixo, dobrou-o com delicadeza e fez um
gesto, indicando-me que o olhasse.
— Normalmente é o tipo de broto que procuramos, mas como está não
serve, pois leva de uma a duas semanas para secar.
— E qual é a utilidade desta árvore? Dela se faz um arco ou um escudo?
— Um cachimbo. E será você quem o fará.
Não conseguia me imaginar talhando um cachimbo e disse isso a Agnes.
— Limite-se a prestar muita atenção. — Agnes parecia estar impaciente.
Segui-a quando ela voltou rapidamente para a cabana através do nevoeiro.
Antes de entrarmos, pegou um ramo de pinheiro novo e seco que estava apoiado
na parede da cabana. Parecia com aquele que tinha acabado de me mostrar, só
que fora aparado e desbastado. Entramos e ela o pôs em cima da mesa.
— Sente-se — ordenou, muito formal. Remexeu em suas coisas, sempre
de costas para mim, voltou-se rapidamente e atirou em minha direção uma faca
de caça. Esta cravou-se na mesa, a uns trinta centímetros de minha mão.
190
Encolhi-me toda.
— Você não está prestando atenção. Desbaste o resto da casca. Trabalhe
por igual e use a lâmina.
Eu receava dizer o que quer que fosse e minha mão tremia, enquanto
empunhava a faca e começava a entalhar. A casca desprendeu-se com facilidade.
— Ótimo. Agora pode entalhar um pequeno círculo nesta extremidade,
assim. — Após cortar ela me devolveu a faca. — Prossiga, enquanto eu
esquento a água e faço um chá para nós.
Agnes observou-me durante cerca de vinte minutos enquanto eu
trabalhava, dando instruções de vez em quando. Foi então até uma prateleira,
tirou um belo bocal cinza para o cachimbo e mostrou-me como encaixá-lo na
haste.
— Agora, Lynn, estique este pedaço de arame. Trabalhei o arame durante
dez minutos com um alicate e a sola de meu tênis, até ele ficar bem esticado,
mostrando em seguida o resultado a Agnes.
— Aqueça-o no fogão, até ficar vermelho.
Fiz o que ela dizia, segurando o arame com uma toalha. Quando o metal
ficou incandescente, retirei-o, imaginando qual seria a finalidade daquilo.
— Agora pegue a haste do cachimbo, empurre o arame até o centro e
queime a polpa. Isso mesmo. Veja só como entra fácil. É porque está muito
quente.
De fato, o arame perfurou a haste sem maiores dificuldades.
— ótimo. Pode pôr o arame de lado. Sente-se e apare a haste, para deixá-
la mais achatada.
Agnes sorria e ambas estávamos contentes. Ela colocou diante de mim um
pequenino tear e vários potes com contas coloridas, além de pedaços de couro,
correias, plumas e penas.
— Quando terminar, pegue estas contas e faça um desenho no tear. Cubra
alguns centímetros da haste com elas. Escolha as plumas ou penas que desejar,
para enfeitá-la.
191
Eu me senti encantada com a tarefa e esqueci o tempo, executando-a.
Decidi fazer o desenho de um relâmpago em turquesa, amarelo e vermelho, com
as bordas em contas azul-escuras. Só me desliguei do que fazia bem tarde,
quando o dia chegava ao fim. Nesse momento alguns sons de flauta penetraram
pela janela parcialmente aberta. Daí a pouco Ruby entrou abruptamente pela
porta da cabana.
— July está passando muito mal — ela disse para Agnes, ignorando-me
completamente.
A música que se ouvia fora da cabana era muito fraca. Levantei-me e saí
rapidamente. July estava sentada, com as costas apoiadas na parede do alpendre.
Parecia meio morta e sua aparência era tão assustadora quanto a de Ruby.
Disparei para dentro da cabana, acuada entre uma velha louca e uma jovem
quase morta.
— Não posso fazer nada por ela? — perguntei, assustada.
— Pode ficar com o espírito dela. É tudo o que resta — disse Ruby, no
auge da agressividade.
— Vamos, Ruby, não fique desse jeito — interveio Agnes, pondo a mão
em seu ombro, num gesto amigo. — De nada adiantará enfurecer-se. Está na
hora de nos divertirmos um pouco. Vista sua jaqueta, Lynn. Vamos dar um
grande pontapé no traseiro de Cão-Vermelho. Faça exatamente tudo o que eu lhe
disser e procure não atrapalhar.
Deixamos July com um prato de comida e água e seguimos rapidamente
pela trilha. As duas velhas corriam como se fossem jovens. De repente ocorreu-
me que iríamos, de algum modo, confrontar Cão-Vermelho.
— Oh, meu Deus! — gritei. — Cão-Vermelho! Agnes e Ruby pararam,
bem adiante, e eu as alcancei.
— O que estamos fazendo? — perguntei.
— Silêncio, sua idiota! — disse Agnes. — Quer que sua voz ecoe a cem
quilômetros de distância, anunciando a Cão-Vermelho nossa chegada?
— Não — murmurei, assustada.
192
Ruby e Agnes lançaram-me olhares indignados. Ruby chegou até mesmo
a beliscar meu braço.
— Não fale nunca — ordenou. — Apenas saiba o que está fazendo e
ataque.
Senti tanta dor que cheguei até a recuar.
Recomeçamos a corrida e só paramos quando estávamos a uns cem
metros da cabana de Cão-Vermelho. Pusemo-nos a andar e procuramos um lugar
onde nos abrigarmos.
— Você e eu nos esconderemos detrás destas árvores — cochichou Agnes
no meu ouvido. — Não mexa um músculo sequer enquanto eu não ordenar.
Agora estávamos a uns trinta metros de distância. Agnes assinalou algo a
Ruby. Abrigada detrás de uma árvore, fiquei olhando, enquanto Ruby
aproximava-se da cabana, abaixava e pegava um punhado de pedras. Hesitou por
alguns instantes e começou a jogá-las em cima do teto de zinco. A medida que o
atingiam, provocavam um barulho estrondoso. A cabeça de Cão-Vermelho
surgiu na porta entreaberta.
— Quem está fazendo esta algazarra infernal? — gritou. Ruby não fez a
menor questão de se esconder. Começou a emitir sons histéricos, guturais,
semelhantes aos de um peru, pavoneando-se no terreiro.
Cão-Vermelho deu dois passos adiante, todo descabelado. Ainda usava a
calça caqui e a jaqueta verde-oliva. Ben e Tambor surgiram na porta e espiaram
com muita cautela. Percebi o pêlo vermelho que cobria o peito de Cão-
Vermelho. Examinei o que sentia por ele e nada permanecia, a não ser o
desprezo.
— Ruby, vá dando o fora de minha casa! — ele berrou. Sua voz enregelou
a floresta.
Ruby jogou mais uma pedra no telhado e o barulho era igual ao de alguém
que estivesse batendo numa lata de lixo.
— Você tem sorte de eu não tocar fogo em sua cabana — gritou Ruby,
pegando uma prancha e arrebentando-a em cima do velho arado enferrujado. —
193
Você roubou minha tesoura de cortar arame e não adianta mentir.
— Não roubei coisa nenhuma, sua bruxa velha! Não quero mais ver você
na minha frente!
— Vai se arrepender, seu filho da mãe. Vou chamar a polícia indígena e
eles vão pegar minha tesoura de volta.
— Pois faça isso e verá o que acontece. Contarei para eles o que você
anda aprontando.
— Você não ousaria — gritou Ruby jogando mais uma pedra que, dessa
vez, atingiu a janela. Ela bateu no parapeito e ricocheteou, estilhaçando a
vidraça. — Eu te ensino a roubar tesouras que não te pertencem!
Eu mal podia acreditar no que acontecia diante de mim. Lá estavam um
poderoso feiticeiro e uma curandeira discutindo por causa de uma tesoura. Não
fazia o menor sentido.
Ruby pegou uma garrafa de bebida gasosa, vazia, e arremeteu-a. Ela caiu
bem junto do alpendre, atingiu uma laje e explodiu. O gás espalhou-se em todas
as direções. Cão-Vermelho deu um pulo para trás. Ben e Tambor desapareceram
dentro da cabana.
Ruby era extraordinária. Embora cega, de certa forma sabia qual era a
distância entre o lugar onde estava e as pedras empoeiradas que compunham os
precários alicerces do alpendre de Cão-Vermelho. Os fragmentos da garrafa
dispuseram-se em semicírculos e não chegavam a tocar nos pés de Cão-
Vermelho. Tanta precisão não era apenas uma coincidência. Ruby, de modo
algum, era incapacitada pela cegueira. Voltou um pouco a cabeça de lado, como
um velho corvo. Seus olhos opacos, que nunca se dirigiam diretamente a Cão-
Vermelho, eram frios e não brilhavam.
— Sei que você está pretendendo alguma coisa, Ruby — berrou Cão-
Vermelho. — Já lhe disse para dar o fora daqui. — Ele voltou para a cabana e
bateu a porta com toda força.
Ruby começou então a aprontar uma algazarra dos diabos. Começou a
emitir sons estridentes, que se assemelhavam a pios e cacarejos, e voltou a
194
pavonear-se como um peru. Continuava a jogar uma pedra atrás da outra no
telhado de zinco. A porta finalmente se escancarou e Cão-Vermelho voltou,
furioso. Seu rosto estava visivelmente ameaçador. A barba e os pêlos vermelhos
arrepiavam-se e projetavam-se em todas as direções. Apesar de estar bem
escondida, eu tremia. Agnes confundia-se com a árvore por trás da qual se
ocultava.
— Isto aqui é propriedade minha, Ruby — disse Cão-Vermelho com voz
esganiçada. — Acho melhor você parar com isso de uma vez por todas!
— Pois sim! E o que você está fazendo aqui na reserva? Por que não vai
morar com os outros brancos? Nenhum índio te suporta. Você fede, seu wasichu
sujo.
— Onde eu moro não é de sua conta! Fique sabendo que moro onde bem
entender!
— Devolva minha tesoura!
— Não devolveria, mesmo que estivesse comigo.
— Pois então queimo esta cabana!
— Tente, se tiver coragem! Você sairá daqui morta!
Ben e Tambor, escondidos por trás de Cão-Vermelho, concordavam com
tudo o que ele dizia, sacudindo a cabeça. Cão Vermelho estava enfurecido, e
Ruby, pelo visto, não ficava atrás.
— Dê o fora daqui, Ruby — ele gritou. — Todo mundo sabe que você é
completamente louca.
— Vá tomar no eu! — rugiu Ruby.
Ela precipitou-se para a lateral da cabana e escancarou a porta do puxado
onde se guardavam as ferramentas. Entrou e começou a provocar um rebuliço
infernal. Os homens, tendo Cão-Vermelho à frente, deram alguns passos em sua
direção.
— Eu sabia! Eu sabia! Encontrei minha tesoura. Ela voltou para o quintal,
brandindo a ferramenta.
— Esta tesoura é minha! — protestou Cão-Vermelho. — Comprei-a em
195
Brandon, no último verão, numa liquidação. Não foi roubada. — Ele deu ura
passo adiante, mas sem sair do alpendre. — Sua velha estúpida, isso não é
tesoura, mas torniquete! Tambor, estou certo ou não?
— E isso mesmo! E um torniquete, com toda certeza. Me lembro muito
bem do dia em que comprou.
— Tenha um pouco de respeito por mim — gritou Ruby.
— Não sou tão simplória assim. Pouco me importa o que é isso. E meu e
pronto!
— E o que uma velha como você quer com uma tesoura de cortar cerca?
— Quero construir um cercado enorme em torno de minha cabana, para
afastar ladrões como você.
— Devolva esta tesoura ou então eu...
— Você o quê?
— Eu pego ela de volta!
— Só mesmo um crápula como você para pegar de volta algo que roubou
de uma velha cega.
— Sua... — Cão-Vermelho gritou, bateu com o pé no chão e esmurrou a
parede da cabana.
Ruby deu-lhe as costas e começou a andar em direção à estrada, num
gesto de desafio. Bamboleava as cadeiras, erguendo bem alto o torniquete.
— Mexam-se! — gritou Cão-Vermelho para Tambor e Ben.
— Não podemos deixar esta velha fazer o que bem entende! — Seu rosto
estava ainda mais vermelho e seus olhos lançavam chispas. — Vamos pegá-la!
Os três saíram correndo atrás de Ruby. Berravam a ponto de quase perder
o fôlego. Enquanto isso a porta da cabana estava escancarada.
Voltei-me para Agnes, disposta a perguntar se não deveríamos ir ajudar
Ruby. Ela estava parada e, de repente, não a vi mais. Voltei-me novamente e a
vi entrar na cabana. Era como se tivesse dado um salto de trinta metros,
aterrissando no alpendre sem fazer o menor barulho.
Voltou a aparecer daí a pouco e dava a impressão de que atravessava uma
196
parte da porta. Sorria, matreira, e segurava uma cabaça. Tive a impressão de que
ela pulava para a frente e, quando eu menos esperava, estava novamente junto de
mim.
Eu fiquei tão assustada que meu estômago doeu. Tive ímpetos de me
dobrar para a frente, mas, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, Agnes
estapeou-me.
— Isso de nada adianta. Seja uma guerreira — ela ordenou. Corremos em
direção à cabana de Agnes e com uma rapidez que eu desconhecia até então.
Quando menos esperávamos, Ruby, de repente, corria ao nosso lado. Aquilo
aconteceu de forma tão inusitada que eu me aterrorizei.
— Conseguiu? — perguntou Ruby a Agnes.
— Sim — ela disse, quase sem fôlego, tocando-a com a pequena cabaça,
recoberta de miçangas.
A risada diabólica das duas velhas ecoou na trilha estreita. Ao chegarmos
ao quintal de Agnes, deitamos e rolamos no chão. Eu ria histericamente.
— Você deveria ter visto a cara de Cão-Vermelho quando ele começou a
te perseguir! — disse Agnes a Ruby. — Você é mesmo muito esperta! — Ela
caiu novamente na gargalhada.
Ambas se deram tapinhas amistosos, se parabenizaram, pularam, caíram e
rolaram mais um pouco no chão.
— Ruby, como foi que você fez para escapar deles? — perguntei, parando
de rir.
— Deixei aqueles três pensar que tinham me assustado. Derrubei o
torniquete e saí correndo.
— Mas Cão-Vermelho não virá saquear sua cabana? — indaguei,
alarmada.
— Não, isso seria um tremendo engano — declarou Ruby, pensativa. —
Lá não existe nada que possa interessá-lo. Eu jamais saquearia a cabana de Cão-
Vermelho. Não sou esse tipo de gente.
— É, mas foi o que você fez hoje.
197
— Não — afirmou Ruby. — Estamos apenas devolvendo algo que
pertence a July. O espírito de uma criatura pertence a ela.
— Todo confronto com Cão-Vermelho é um desafio a seu poder pessoal,
Lynn — afirmou Agnes.
— Não sei, não, mas, de vez em quando, isso chega a se tornar tedioso.
Eu me sentia completamente confusa, mas recomecei a rir.
Todas nos tornamos conscientes da presença de July, ao mesmo tempo.
Voltamo-nos e olhamos para ela. Ainda estava sentada no mesmo lugar, mas
tinha revirado o prato com a comida e o copo de água. Tocava a flauta com um
resto de fôlego e seus olhos estavam mortiços.
— Precisamos dar-lhe de volta aquilo que ela perdeu e despertar a pintura
refletida.
Ruby e Agnes debruçaram-se sobre July e a levaram para o centro do
quintal. A jovem se mostrou muito dócil.
Ruby voltou o rosto dela para o ocidente. O sol estava bem baixo, na linha
do horizonte, mas ainda havia claridade no Armamento. Abraçando-a pela
cintura, Ruby a fez ficar parada em determinado lugar e Agnes caminhava logo
atrás.
As duas agiam com decisão, mas sem se apressarem. Quando tudo parecia
estar em ordem, Ruby acenou para Agnes e esta ergueu a cabaça sobre a cabeça
de July. Ruby apertou a barriga da jovem, Agnes esfregou as mãos na cabaça e
ouvi um som seco, um estalo, semelhante a um tiro de revólver. Uma pequena
nuvem de fumaça rodopiou em torno da cabeça de July e deu a impressão de que
era sugada para dentro dela, por meio de um fio de prata. Pela segunda vez
aquela noite, dobrei-me para a frente, sentindo dor.
— Vá buscar uma manta para July — gritou Agnes.
Fui cambaleando até a cabana e voltei com uma manta da cama de Agnes.
Ruby cobriu os ombros da jovem e as duas a ampararam e a obrigaram a
caminhar de um lado para outro do quintal, encorajando-a por meio de
murmúrios.
198
— O que aconteceu? — perguntei.
— July deu um grande passo — disse Agnes com toda simplicidade.
— Não permita nunca mais que aquele maldito Cão Vermelho a engane
— disse Ruby, dirigindo-se a July com muita energia.
Ela segurava a cabeça com as mãos. Não era mais a mesma pessoa e
soluçava baixinho. Seus olhos mudaram de expressão e ela começou a sorrir.
— Eu não conseguia mais voltar. Não tem nada aí para eu comer?
— Lynn, vá buscar um pouco de carne de veado para ela — ordenou
Agnes.
Caminhamos em direção à cabana.
— O que esta flauta está fazendo aqui? — perguntou July pegando do
chão o instrumento abandonado.
— Oh, essa não! — exclamou Ruby. Arrebatou a flauta das mãos da
jovem, apoiou-a no joelho, partiu-a em dois, jogando-a fora.
De repente ouviu-se o ruflar de asas e um corvo pousou no ombro de July,
crocitando bem alto em seu ouvido.
— Corvo tem voado por aí, à procura do espírito perdido de July — disse
Agnes, voltando-se para mim. — Esta ave pertence a ela. Agora voltaram a se
unir, Todas devemos ficar muito felizes.
Depois que entramos na cabana, July comeu com um apetite invejável.
Quando terminou, fomos apresentadas. Senti que ela sabia muitas coisas que eu
ainda teria de aprender.
Mais tarde, depois que Ruby e July partiram, permaneci em silêncio no
meu saco de dormir, imaginando o que aconteceria em seguida. Nada parecia
fazer muito sentido. A única coisa de que eu tinha plena certeza é que ainda
desejava o cesto de casamento.

199
Deixo-a no interior do espelho da criatividade, tocando
o círculo do mundo.
— Hyemeyohsts Tempestade

Agnes me despertou com muita delicadeza. A noite estava escura como


breu. Mesmo depois que ela acendeu a lanterna, parecia que uma cortina negra
recobria a janela. A expressão de seu olhar revelou que eu teria de enfrentar um
desafio imediato e desconhecido. Enquanto vestia o jeans, notei que meus dedos
estavam crispados.
— Cão-Vermelho ficará furioso se surpreendê-la rondando a cabana dele
— disse Agnes com displicência.
— Não duvido. — Senti uma contração no estômago.
— Agora há de querer se vingar. Você precisa tomar muito cuidado.
Aquele homem conhece um milhão de truques. Você bem viu o que ele fez com
July. Ela quase esteve a ponto de morrer. Não deve fazer nada ou tomar
qualquer decisão sem antes aconselhar-se comigo. Pode continuar à espera de
uma oportunidade, mas não vá atrás do cesto. Está me entendendo?
— Quer dizer que não devo dar um passo sequer em direção à cabana dele
sem antes lhe pedir?
— Exatamente. Você não pode se dar ao luxo de cometer mais um erro.
— Você ainda quer que eu vá até lá e aguarde uma chance?
— Sim, mas se por acaso Cão-Vermelho enfiar o cesto de casamento
debaixo de seu nariz, volte e me consulte, antes de tentar se apoderar dele.
— Mas por que preciso ir até lá, se nem sequer tenho forças para pegar o
cesto?
200
— Ir até lá e espreitar é um teste para sua capacidade e determinação
guerreira. Não deixe que eles descubram o lugar onde você se esconde. Esta
disputa tornou-se muito séria e é uma questão de vida e morte.
Respirei fundo e tomei um café da manhã frugal, obrigando-me a comer.
Rememorei os vários dias passados em espionar a cabana, a fim de roubar o
cesto. Meu objetivo parecia distanciar-se cada vez mais de minha capacidade de
alcançá-lo.
— E por que está me enviando para lá tão cedo?
— Cão-Vermelho tem o sono pesado e costuma levantar-se tarde. Quem
sabe dessa vez não sentirá sua presença... E um sujeito absolutamente
imprevisível e não me ocorre outra solução.
Era a primeira vez que via Agnes pouco segura de si. Ela afastou a
cadeira, levantou-se e andou de um lado para outro, com lentidão.
— Espero que esteja lhe dando o conselho certo, Lynn. Simplesmente não
sei o que você deve fazer agora. Uma coisa é garantida: se por acaso eles a
acuarem, agarre seu brinco e corra o mais rápido que puder. Tem certeza de que
ainda quer o tal cesto?
— Agnes, que pergunta é esta? E claro que quero o cesto.
— Talvez eu esteja ficando senil, Lynn. — Agnes sacudiu a cabeça. —
Para mim seria muito mais fácil se você simplesmente voltasse para Beverly
Hills.
— Agnes! O que há com você?
— Vá pegar o tal cesto e não volte de mãos abanando.
— Mas você acaba de me dizer para não agir sem antes consultá-la!
— Bem, se foi isso que eu disse, acho melhor você me obedecer.
— Por favor, não me deixe confusa, Agnes, por favor! Ela me respondeu
em cree.
— Agnes, não entendo o que você está dizendo. Por favor, não faça isso.
— Eu começava a entrar em pânico.
Agnes não disse nada e começou a gesticular, usando a linguagem dos
201
sinais! Corri até ela e sacudi-a. Ela parecia ter perdido toda sua energia.
— Lynn! Lynn! — disse em voz alta. — Cão-Vermelho está me atacando.
Antes de mais nada, faça o que lhe ordenei e volte. Espero ainda estar viva
quando você chegar.
— Não posso fazer nada por você? — gritei.
— Sim. Vá já para lá. Não deixe que a matem.
Enfiei um suéter marrom e peguei alguns pedaços de carne-seca,
guardando-a nos bolsos do jeans. Agnes me abraçou, junto à porta.
— Não agüento mais, lobinha. Tome cuidado com os cachorros.
Agnes obviamente me confundia com a filhinha que tivera há tanto
tempo. De repente gritou, levou a mão à garganta e caiu no chão, dando chutes
em todas as direções.
— Agarre aquele maldito! — gritou. — Pegue ele para valer. Eu também
comecei a gritar. Agnes levantou-se.
— E agora, está disposta a ir, meu bem? — perguntou em tom sarcástico,
porém lúcido.
— Sim — gaguejei. Minha garganta doía de tanto gritar.
— Você se deixa enganar com a maior facilidade, não é mesmo, Lynn?
Estava testando você, para ver se é digna de confiança e sabe agir com
independência. Pelo jeito, não sabe, não.
— Quer dizer que estava fingindo, que não passou de uma brincadeira? —
Eu não sabia se estava aliviada ou enfurecida.
— Não, não foi uma brincadeira, mas um teste. Você ainda não está
preparada.
— Não acho que foi muito leal de sua parte.
— É mesmo, Pobre-Vaca? Cão-Vermelho também não achará, quando
liquidar com você. Não achará a menor graça, vendo-a tão fraca. — Agnes me
examinou de alto a baixo. — Enganei-a também para abalar sua solidez. Talvez
não consiga outra oportunidade de roubar o cesto e quero que seja bem-
sucedida. Volte rapidamente e comunique tudo o que for importante eu saber.
202
— Está bem.
Encarei Agnes por um instante e retirei-me. Não havia estrelas no céu
negro, mas meus pés sabiam em que direção correr e como agir em silêncio. O
único barulho era o pio distante de uma coruja.
Comecei a rastejar no chão coberto de mato a uns cem metros da cabana
de Cão-Vermelho e então me escondi, quando cheguei a quarenta metros.
Quando os primeiros clarões surgiram no horizonte, deitei-me de bruços e não
fiz o menor movimento, à espreita. Lá pelas nove horas Tambor apareceu,
bocejando e com um caneco de alumínio na mão. Sentou-se nos degraus do
alpendre e tomou um gole da bebida.
— Velha desordeira! — praguejou.
Sorri, ao pensar em Ruby apedrejando a cabana.
— Levante, Ben! Está na hora de ir trabalhar! — disse Tambor.
Ouvi a resposta de Ben, mas o som era abafado demais para se entender o
que ele dizia. Quando surgiu, Ben levava um caneco na mão e um bule na outra.
Ambos bocejaram, soltaram piadas e se espreguiçaram.
Os dois entraram e ficaram dentro da cabana por mais de uma hora. Ao
saírem, usavam macacões remendados, em vez do jeans de todos os dias.
Estenderam um enorme rolo de tela de arame desde o puxado até o alpendre da
frente e foram à procura de martelos, serrotes, trancas, alicates, pregos, correntes
e outras ferramentas que não consegui reconhecer. No alpendre estendia-se uma
esquisita coleção de objetos. Tambor e Ben não tiravam os olhos deles, como se
estivessem enfrentando um complexo problema.
— Velha maldita! — gritou Tambor, pegando um martelo pesado e
jogando-o no chão. — Se não fosse por ela, não teríamos todo esse trabalho.
— Pois é — concordou Ben, que, como sempre, se exprimia através de
monossílabos.
— Quer desenrolar a tela e eu corto ou prefere o contrário?
— Pouco importa, contanto que a gente dê logo conta disso — declarou
Ben, cocando a cabeça.
203
— Já sei. Eu seguro a ponta da tela, você desenrola e corta.
— Não é melhor a gente medir antes? Agora foi a vez de Tambor cocar a
cabeça.
— É isso aí. Nem tinha pensado.
Surgiu uma discussão, pois os dois queriam saber quem iria segurar a
ponta da trena. Tambor perdeu.
— Um metro e meio... marque um metro e setenta. Assim é mais seguro
— disse Tambor, mantendo a ponta da trena de encontro à moldura da janela.
— Não vou conseguir lembrar — queixou-se Ben.
— Pois então vá pegar um lápis.
— Vou indo, mas não precisa berrar. Daí a pouco Ben voltava com papel
e lápis.
— Qual era mesmo a medida, Tambor? Medir as janelas da cabana foi
uma operação que parecia não terminar nunca mais. Para medir a janela do lado,
Ben teve de usar um tamborete e, para a janela de trás, recorreu a uma escada.
Enquanto isso os dois não paravam de se queixar de Ruby. As pragas e os
xingamentos eram constantes. A tarefa mais simples exigia um verdadeiro
debate entre eles, mas, invariavelmente, acabavam adotando de comum acordo
os meios mais ridículos de proceder.
— Que droga! — resmungou Ben, desenrolando a tela de arame, toda
enferrujada. Tambor manteve-a no lugar, pisando em sua extremidade.
Toda vez que Ben soltava a tela, a fim de cortar um pedaço do arame com
um comprido alicate, ela voltava a se enrolar, arranhando ou cortando sua mão.
— Ai! Tela nojenta, filha da puta!
— Me dê isso aí — disse Tambor, pegando o alicate. — Mas como você é
burro! Deixe que eu faço.
Ele deu um passo adiante, mas avançou demais, esquecendo que pisava na
tela, a fim de a manter no lugar. Ela enrolou-se e rasgou seu macacão.
— Maldita tela! — gritou. Sua voz ecoou nas árvores. — Veja só em que
estado ficou meu macacão!
204
Os dois levaram horas para prender a tela nas janelas que, no final, tinham
a aparência de um enorme quebra-cabeça geométrico. Finalmente Cão-
Vermelho saiu da cabana.
— Seus burros! Por que está demorando tanto? — esbravejou. Ben e
Tambor não sustentaram seu olhar furibundo. — Acabem de pregar a tela e que
seja rápido. Mexam-se!
Ben e Tambor pegaram martelos enormes e começaram a pregar
desordenadamente.
— Há bilhões de pessoas neste mundo e eu fui premiado com dois
incompetentes como aprendizes!
Ben e Tambor pregaram com mais rapidez.
— Quero o cadeado na porta do puxado antes do dia acabar — resmungou
Cão-Vermelho. — Acho bom vocês se mexerem.
Agora Ben e Tambor martelavam furiosamente.
— Não se pode confiar em ninguém nos dias de hoje — disse Cão-
Vermelho, com cara de poucos amigos. — Ah, mas elas vão ver só o que vou
aprontar! A mulher branca pagará por isto!
Cão-Vermelho entrou na cabana e bateu a porta com força.
Lembrei-me da foto do cesto de casamento, que vira há muito tempo, e
olhei para a cabana, tentando imaginá-la lá dentro. Agnes, de certo modo,
reforçara a necessidade que eu tinha dele e agora eu preferia morrer a não me
apoderar do cesto.
— Oh! — gemeu Tambor. Ele derrubou o martelo e apertou o polegar,
gritando de dor. — Ben, faça alguma coisa, me ajude!
A tela de arame se desprendeu da janela e caiu no chão.
Eu sabia que aqueles três eram alquimistas muito bem dotados, mas, pelo
menos no plano físico, mostravam-se absurdamente ineficientes. Ben e Tambor,
toda vez que agiam, pareciam trair seus próprios esforços. Era uma verdadeira
demonstração de incompetência, que não tinha fim, como um filme de terceira
categoria.
205
Cão-Vermelho saiu da cabana várias vezes, agitando os braços e
praguejando. Quando ficava por perto, Ben e Tambor cometiam erros crassos,
farsescos. Ben deixou cair um pé-de-cabra em cima do próprio pé e Tambor
bateu o martelo com tamanha força que acabou estilhaçando uma vidraça.
Ambos pareciam competir para saber quem era o mais desajeitado*.
Cão-Vermelho acabou desistindo, exasperado, e deixou Ben e Tambor
entregues à própria incompetência. No final da tarde tinham pregado a tela de
arame em todas as janelas. Pregaram então grandes tiras de metal na porta do
puxado, parafusando nelas um ferrolho e um cadeado. Tambor deu um passo
atrás, a fim de admirar o que tinham acabado de fazer e Ben pegou uma pesada
alavanca de ferro.
— O que você pretende fazer com isto? — perguntou Tambor.
— O que você acha? Vou pôr um cadeado no telheiro onde a gente guarda
as ferramentas. Não ficaria nem um pouco admirado se Ruby enfiasse uma
cascavel pelo buraco da porta.
— Me parece que nem Ruby seria capaz de fazer uma coisa dessas, Ben.
— Acho bom não arriscar. Vou pôr o cadeado de qualquer jeito.
— Bem, ela nunca mais vai entrar naquele telheiro, a menos que use uma
banana de dinamite.
— É isso aí. E no puxado ela também não entra. — Ben, arrastou a
alavanca pelo quintal. — Ei, você não vai me ajudar? Afinal de contas, você
também entra no telheiro de vez em quando.
Tambor resolveu cooperar e já era bem tarde quando os cadeados foram
instalados e as ferramentas guardadas.
— Olhe só as janelas — disse Tambor.
— Puxa, a fachada da cabana ficou chique demais! — declarou Ben,
entusiasmado.
— Acho que caprichamos, não é mesmo?
— Sem dúvida. Nós dois devíamos procurar emprego no ramo da
construção. Aposto que, se quiséssemos, podíamos ser engenheiros.
206
Cão-Vermelho apareceu e aproximou-se deles.
— Vocês dois, como engenheiros, seriam o maior fracasso que já se viu.
Ben e Tambor ficaram de crista caída e Cão-Vermelho balançou a cabeça,
desanimado. Eu ria, a despeito de mim mesma. Aquilo até parecia uma comédia
de cinema mudo.
— A gente fez o que pôde, Cão-Vermelho — disse Ben, magoado.
— O que você esperava? Afinal de contas, não somos carpinteiros, não é
mesmo? — acrescentou Tambor.
Os três entraram na cabana antes que eu conseguisse ouvir a resposta de
Cão-Vermelho. Tentei relaxar um pouco. Nada aconteceu nos momentos
seguintes até que, de repente, Cão-Vermelho, Ben e Tambor escancararam a
porta, bateram-na com toda força, saltaram e gritaram, à luz do crepúsculo.
Abraçaram-se, cantaram e foram pela estrada afora. Fiquei quieta, até não os
enxergar mais. Imaginei que iriam até Crowley fazer uma farra. Tinha certeza de
que estavam bêbados.
Não ousava pegar o cesto sem antes consultar Agnes, sobretudo após a
experiência daquela manhã. Corri o mais rápido que pude até a cabana dela e
entrei porta adentro, tão sem fôlego que mal conseguia falar. Ela estava sentada
na cadeira e me lançou um rápido olhar.
— Agnes! — exclamei excitada. — Acho que eles não voltam tão cedo.
Foram até a cidade, tropeçavam e cantavam. Estão bêbados.
— Devem estar, sim — ela disse, levantando-se. — Chegou sua
oportunidade. Cuidado para não cair numa armadilha. Mantenha a coragem,
Lynn, e lembre-se de tudo o que lhe ensinei. Aja rapidamente e roube o cesto.
Parti, apressada. Estava escuro e no céu muito claro via-se a lua crescente.
Parei a quarenta metros da cabana de Cão-Vermelho. Não se via o menor sinal
de vida e a cabana estava mergulhada na escuridão. Eu tremia. Aproximei-me
ainda mais, ajoelhei-me por detrás de um arbusto e minhas mãos se apoiaram na
terra úmida. Cheguei ainda mais perto e agachei-me por detrás de um toco de
árvore.
207
— Olá, meu bem — disse Tambor de repente.
Meu coração disparou. Percebi que estava segurando a perna dele.
Tambor recurvara o corpo e adotara a postura de uma árvore sem folhas, com os
braços estendidos, numa atitude grotesca. Na escuridão não consegui distinguir
sua forma da silhueta dos arbustos que cresciam ali perto. Larguei a perna dele e
recuei, aterrorizada.
Mais um vulto estava perto de mim, à direita, e ainda um outro detrás de
mim. Os três me cercavam.
— Moça, vá já dando o fora daqui ou então eu te prego na parede da
cabana.
Era Cão-Vermelho quem me ameaçava. As três silhuetas escuras
debruçaram-se sobre mim ao mesmo tempo. Soltei um grito e saí em disparada.
Enquanto corria, ouvia a risada de Cão-Vermelho. Tropecei num toco, caí de
quatro, levantei-me e corri trilha afora, em direção à cabana de Agnes.
— Pegue ela! — alguém gritou. — Foi naquela direção! Ben e Tambor
começaram a atirar pedras enormes em mim, enquanto eu corria. Elas chegavam
cada vez mais perto. Me arriscava a ter o crânio esmigalhado por qualquer uma
delas. Enquanto isso, eles não paravam de rir.
Prossegui numa louca disparada pela trilha e só me dei conta de que já
não corria mais nenhum perigo quando caí, junto à porta de Agnes.
— Fui trapaceada — gritei. — Eles quase me mataram.
— Sua tentativa não deixou de ser divertida e só por isso eles não se
dariam ao trabalho de te matar — observou Agnes, rindo.
— Pois eu não achei nada divertido! — protestei, com vontade de chorar.
Agnes lançou-me um olhar malicioso.
— Eu sabia que Cão-Vermelho estava enganando você.
— Sabia e mesmo assim me mandou até lá?
— Sim, eu queria ver até onde eles iam. Assim que você me contou que
eles estavam bêbados, percebi aonde pretendiam chegar. Os feiticeiros jamais se
embebedam, a menos que queiram enganar alguém. Eu precisava demonstrar-
208
lhes o quanto você é fraca, para melhor enganá-los. Ao cair na armadilha que
eles lhe prepararam, você os trapaceou. Agora não sentem o menor respeito por
você, o que é bom. Acham que não tem a menor necessidade de se protegerem
de você. — Agnes encheu uma xícara com chá quente e me serviu. — Sente-se.
Nada irá acontecer neste momento. Beba. O chá está gostoso. Tomei alguns
goles.
— Sabe, Lynn, aqueles sujeitos pensam que você é uma mulher tola,
estúpida e não representa a menor ameaça a quem quer que seja. Acham que
deveria envergonhar-se de si mesma e ir embora. Enquanto pensarem assim, são
vulneráveis. Este é o melhor momento para agir. Muitos seres humanos não
correspondem ao que se espera deles, mas espero que você seja uma criatura
corajosa. Afinal de contas, deve ser uma caçadora, uma guerreira. Precisa
ensinar a todos nós o que é ter um sonho. Volte e vigie a noite inteira. Sua
paixão pelo cesto de casamento é irrevogável. Você veio até este mundo a fim
de descobrir seu caminho. Agora o achou e tem de segui-lo.
Agnes levantou-se da mesa e foi até o armário, voltando com sua trouxa
de poções e meu vestido e mocassins de pele de veado.
— Vista-os e não os desonre. Eles estão repletos de energia de mulher.
Despi-me rapidamente. O frio me provocou arrepios, mas, assim que me
vesti, experimentei uma agradável sensação de calor. Aquele lindo traje dava a
impressão de que eu era acariciada por uma pele.
— Vamos para fora — disse Agnes, pegando a trouxa de poções. —
Traga a manta.
Fiz o que ela ordenava e segui-a até o quintal. Ela me disse para estender
a manta no chão e alisá-la.
— Sente-se — voltou a ordenar, muito severa. Acomodamo-nos nas duas
extremidades da manta. Agnes desatou os chocalhos que pendiam da trouxa e
desenrolou a pele, expondo o que ela continha: várias fitas pretas, amarelas e
vermelhas, flores secas, cristais de quartzo, chumaço de cabelo ou
possivelmente escalpos, uma garra de coruja, várias bolsas com poções,
209
recobertas de miçangas e certas coisas que não reconheci. Ela inclinou-se para a
frente e trançou em meu cabelo duas penas de coruja.
— Será que esses objetos lhe dizem algo?
— Não sei. — Senti de repente desprender-se uma energia de um objeto
que se assemelhava a uma pedra nodosa. Apontei-o.
— É um avô — disse Agnes, balançando a cabeça, com ar de aprovação.
Tem mais de noventa anos. E uma semente de peyote. E um ancestral. Com
freqüência eu mesma sinto seu poder.
Enquanto meus olhos percorriam o conteúdo da trouxa, notei, ao lado de
algumas penas, a metade de uma nota de vinte dólares.
— Onde foi que conseguiu isso? — perguntei, estarrecida. Pensei no que
me acontecera na Guatemala e no jovem índio que rasgara meu dinheiro pela
metade. Ainda conservava aquela que ele me entregara.
— Esse dinheiro, partido ao meio, veio do sul e me avisou de sua
chegada.
O sangue fugiu de meu rosto. Agnes pegou um pequeno cachimbo e o
entregou para mim. Segurei sua haste delicada e ela dispôs quatro penas de
águia num círculo, com as pontas voltadas para dentro, quase se tocando.
— Cada pena representa uma das direções — disse. — É sinal de que
você se encontra no centro da tenda.
Devolvi-lhe o cachimbo. Agnes retirou de uma das bolsas um pedaço de
fumo amarelo, colocou-o no bocal do cachimbo, acendeu-o e deu algumas
baforadas.
— Quero que você fume bastante este fumo-amigo — disse, passando-me
o cachimbo. — Dê uma tragada para valer e esfregue o estômago.
O cachimbo era quente e macio e o fumo agridoce me deixou tonta.
— Podemos fumar este cachimbo juntas. As antepassadas estão com você,
na realização de seu sonho. Este fumo-amigo é um convidado da tenda chorosa
da velha que conversa com as rosas.
Enquanto Agnes falava, seu rosto parecia sobrepor-se a tudo. Sua voz me
210
acalmava. Eu sentia pressão nos ouvidos, como se fosse ar comprimido, e
pareceu-me importante dizer a Agnes que eu a respeitava e amava.
De repente descobri que conseguia comer a fumaça, como se fosse uma
tênue substância de algodão. Agnes podia muito bem ser uma jovem de dezoito
anos, com longas trancas que lhe desciam pelas costas. Tentei falar de minha
realização interior, mas os pensamentos, tudo, enfim, parecia soçobrar dentro de
mim. Eu estava sentada sobre aquela manta desde tempos imemoriais e o
momento que vivia jamais cessaria de existir.
Agnes tirou o cachimbo de mim.
— Este cachimbo de cura vem sendo usado há mil anos e esta erva tão
doce é secreta. Seu espírito é o de uma mulher. E uma dádiva àquela guerreira
que existe dentro de você, a fim de a tornar forte na batalha.
Agnes levantou-se e fez um gesto, indicando que eu deveria agir da
mesma forma. Tive a sensação de que meu corpo se levantava obedecendo a
uma vontade que me era desconhecida.
— A senhora branca do norte que mora na floresta e controla todos os
animais está nos ouvindo. Existem, porém, os charlatães da cura, que querem
roubar o poder desta encruzilhada das heyoka. Graças a este fumo-amigo, você
conseguirá enxergá-los. Eles dirigem flechas compridas e pontudas contra suas
irmãs. Alimentam-se de seus sonhos, sem consideração pela fome que você
sente. Suas bolsas contêm feitiços ruins e o coração deles é mau. — Agnes bateu
o pé no chão. — Bata você também.
Fiz o que ela mandava.
— Minha filha, minha loba astuta... Agora chegou o momento de olhar
para o sudeste, para o lugar dos grandes chefes da paz. As mulheres foram as
primeiras a ocupá-lo. Agora a mulher deve permanecer lá novamente e levar o
equilíbrio ao acampamento. Este cachimbo deve ser mantido com firmeza acima
da terra. Meu coração se encherá de alegria se você triunfar.
Ela pegou um punhado de farinha de um saco de couro, derramando-a em
cima de mim. Enfiou a mão dentro da blusa e retirou uma faca, enfiada numa
211
bainha de pele de corça. Desembainhou-a e notei sua lâmina de sílex. Agnes
ergueu a mão e pressionou a ponta da faca no polegar.
O sangue escorreu-lhe pela palma da mão e o punho, pingando sobre a
manta. Ela aproximou o polegar do alto de minha testa e eu senti sua umidade.
Agnes manteve a mão erguida, como se fosse uma saudação.
— O sangue que serviu para pintar sua fronte é o sangue de uma mulher
que cura. É um sangue bom, que veio do doce rio de meu corpo. Meu sangue
une todas as mulheres. Tenho mão de heyoka e sou eu quem o digo. Sua estrada
vermelha contém o coração de todas nós. Sinto-me contente por poder traçar seu
caminho.
Agnes entregou-me a faca com a bainha. Ela agora parecia ser feita de
osso ou marfim, em vez de sílex, e se tornara extremamente afiada.
— Ponha a faca em seu cinto. Ela é sagrada e foi trazida do além. Se você
conseguir chegar até o cesto, é a única faca que conseguirá cortar as fibras.
Entenderá minhas palavras se conseguir apropriar-se do cesto de casamento.
Enfiei a faca na bainha e amarrei-a em meu cinto.
— Agora sente-se sobre esta manta. Mantenha-se calada e não se mexa.
Nas profundezas desta noite, senti a presença da grande senhora branca do norte.
Se você for escolhida para agir, ela enviará um animal até aqui para conversar
com você. Não tenha receios. Ela poderá mandar um veado, um texugo ou até
mesmo um gambá. Você poderá ficar aqui até o sol nascer. Se nada acontecer,
vá em frente, mas se acaso um animal aparecer, considere-se duplamente
afortunada. A eterna profecia a tornou tão sagrada quanto ela mesma.
Agnes enrolou sua trouxa e amarrou-a. Quando percebi que ela iria
retirar-se, meus temores mais profundos retornaram.
— Mas, Agnes, aqueles três nunca saem do sítio...
— Lynn, você terá de chegar até eles de alguma forma. Precisa imaginar
como fará isso. Não pense no assunto, caso contrário seu poder secará. Você
está repleta dele, conforme estou vendo.
Eu não me sentia tão repleta assim e imaginei se o fumo-amigo por acaso
212
não me teria privado de coragem.
— Agnes! — supliquei.
— Fiz por você tudo o que podia. Permaneça aqui durante algum tempo.
Fumo-amigo me disse que a senhora do norte, que emite luz azul, está decidindo
se deverá enviar um amante para reconfortá-la. — Agnes deu de ombros. —
Cabe a ela resolver. Lembre-se: se usar a faca, corte com rapidez.
Agnes deu-me as costas e deixou-me sentada sobre a manta. A noite
estava pesada, sombria e eu fechei os olhos. Por detrás de mim ouvi o farfalhar
dos arbustos. Algo rosnava e não muito longe de mim. A minha esquerda
percebi o ruído de passos macios, talvez de um animal de grande porte. Ouvi
uma respiração acelerada e de repente senti um estranho cheiro almiscarado.
Quis voltar-me e espiar, mas, nesse momento, o animal encostou o focinho em
meu cabelo. Para meu grande horror, lambeu-me a nuca. O animal tinha bigodes
e sua língua era áspera.
Abri os olhos e vi diante de mim a cara de um lince. Ele arquejava, de
boca aberta. Esticou-se, começou a ronronar e eu o acariciei. Seu comprido
corpo era cheio de músculos que ondulavam. O lince apoiou as patas em meus
ombros e eu olhei diretamente aquele par de olhos verdes. Ele endireitou-se e,
jocoso, descreveu um círculo em torno de mim. Mudou de direção, girou do lado
contrário, voltando a cabeça de lado, como fazem os gatos, e rosnou.
— Você é lindo — eu disse. O lince era o animal de que Agnes me falara.
O felino continuou a circular e depois parou diante de mim, a uns quinze
metros de distância. Aproximou-se, dando patadas no ar, e saltou em minha
direção, passando por cima de mim. Voltei-me a tempo de notar seus saltos
muito compridos, elegantes, e vê-lo desaparecer no denso matagal.
Ao me aproximar da cabana de Cão-Vermelho, rastejei no capinzal,
aproximei-me de um lugar estratégico e deitei-me de bruços. Cobri-me com
folhas e gravetos, vigiei e aguardei.
O dia começou a nascer e os pássaros cantavam. Os insetos saltavam,
voavam e pequeninas formigas passaram por cima de minhas mãos. As
213
borboletas dançavam no quintal. Algo estava para acontecer e todos os meus
instintos se preparavam para a luta.
Ouvi vozes que vinham da cabana, mas não consegui reconhecê-las.
Minha percepção parecia ter-se intensificado. Cão-Vermelho surgiu no alpendre
e notei que os pássaros paravam de chilrear no mesmo instante.
— Venha cá, Tambor — ele ordenou. Daí a pouco a porta se abriu e
Tambor segurava a caneca de café.
— Sim?
— Me traga minha bengala de cavoucar. Não confunda com minha
bengala de andar. Vou desenterrar nabos selvagens para o jantar.
Tambor entrou e voltou com a bengala. Cão-Vermelho pegou-a e seguiu o
rumo oeste, em direção às colinas, desaparecendo por entre as árvores. Tambor
sentou no degrau e começou a tomar café. Ben abriu a porta e, como sempre, foi
correndo até a privada.
— Que pressa é essa, Ben?
— Não agüento mais! — ele disse, puxando o trinco, recém-instalado.
Entrou na privada e fechou a porta. Os dois trocaram algumas palavras, que não
consegui entender muito bem. Tambor dirigiu-se ao telheiro, onde eram
guardadas as ferramentas. — Vamos, depressa! Também quero ir na privada!
Tambor abriu a porta do telheiro e entrou. Ouvi-o amaldiçoando Ruby e
remexendo em tudo. Um machado de cabo bem comprido foi atirado no chão,
do lado de fora, logo seguido de uma corrente. Tambor continuou a pôr tudo de
pernas para o ar, procurando obstinadamente algo.
De repente eu sabia exatamente o que deveria fazer!
Levantei-me de um salto e fui até o puxado. Meus movimentos eram
seguros e rápidos. Tranquei a porta, aprisionando Tambor e suas ferramentas.
Peguei o machado e a corrente, indo em direção à privada, a vinte e cinco metros
de distância.
— Ei! — gritou Tambor, esmurrando a porta do puxado. — O que é isso?
Me deixa sair!
214
Tive a sensação de que andava em câmara lenta. Sabia que jamais
conseguiria trancar a porta da privada, pois o trinco era de manejo muito
complicado. Passei rapidamente a corrente em torno da pequena construção,
amarrei-a, dando um nó, e usei o cabo do machado para completar a manobra.
Agora era Ben que esmurrava a parede.
— Você me paga! Que história é essa?
Ben e Tambor berravam, amaldiçoavam e quase punham as paredes
abaixo. O tom com que se exprimiam se tornava cada vez mais hostil.
Desembainhei a faca e corri até a cabana. A porta estava aberta e levei
alguns momentos para me acostumar à escuridão. O belo cesto de casamento
estava em cima da mesa, num canto. Estendi o braço em sua direção.
De repente ouvi a voz de Cão-Vermelho. Minha mão tremia e fiz o
possível para me controlar, enquanto a porta se abria. Diante de mim estava
Agnes! Acaso eu seria vítima de uma alucinação?
— Agnes, o que você está fazendo aqui? Desse jeito vai pôr tudo a perder!
— Me dê a faca. Este não é o verdadeiro cesto. O cesto do poder está
escondido. Cão-Vermelho enganou você mais uma vez. — Agnes deu um passo
em minha direção.
— Pare! — gritei, histérica, apontando a faca para ela. — Fique onde está.
— Meu braço tremia, em espasmos incontroláveis.
Eu sempre fizera tudo o que Agnes quisera, mas agora se passava algo de
muito estranho. Sentia-me repelida por ela. Era como se o mundo inteiro se
voltasse contra mim. Sabia, porém, que nada conseguia deter-me, nem mesmo
Agnes.
— Agnes, olhe para mim.
Ela voltou lentamente a cabeça em minha direção. Seus olhos eram cruéis,
desesperados, e eu percebi que pertenciam a Cão-Vermelho. Creio que gemi,
aterrorizada.
Agora o mackinaw e a saia pendiam do corpo dela como os andrajos que
cobrem um espantalho e fibras luminosas disparavam de todos os lados do cesto
215
de casamento, em sua direção. Cão-Vermelho estava ligado ao cesto através de
fios brilhantes. Ondulações pareciam desprender-se de seu corpo e ele se
transformava em algo que se assemelhava a tiras incandescentes. O rosto de um
homem de barba e cabelos vermelhos começou a emergir lentamente da massa
de fios e da imagem de Agnes, que se desintegrava. Enquanto ele gritava
comigo, ordenando-me que me afastasse do cesto, a voz começou a engrossar e
tornar-se masculina.
— Você ousou vir até aqui! — berrou. Parecia um louco, cheio de
desprezo e superioridade.
Resolvi enfrentá-lo. Segurei o cesto, com todas as suas fibras, de encontro
ao estômago, e chutei a mesa que estava diante de mim. Em seguida comecei a
cortar os fios luminosos e recurvados com uma força que não sabia que possuía.
Cão-Vermelho não tirava os olhos de mim, debruçado para a frente. Sua
cabeça balançava descontroladamente, como se estivesse bêbado. Estava
reunindo todas as suas forças e sua postura era idêntica à de um touro enfurecido
que se prepara para o ataque. Lutei por minha vida, manejando a faca com toda a
energia de que era capaz. Enquanto continuava a cortar, esfregava o cesto no
meu corpo, sentindo-me invadida por uma grande energia, que se apoderava de
todo meu ser.
— Você nem sequer sabe o que está fazendo. Se me desligar, modificará
todas as forças do equilíbrio. Você não compreende. — Cão-Vermelho oscilava
de um lado para outro e ainda executava sua dança do poder. — Não acredite em
Agnes. E uma mentirosa.
— Não, Cão-Vermelho — gritei. — O mentiroso é você. — Continuei
cortando as fibras que ainda restavam.
De repente Cão-Vermelho deu um pulo para a frente, como um louco,
enfiou a mão no fogão e retirou um punhado de brasas. Emitiu um som
medonho, apontou as brasas para meu rosto e atirou-as. Os pedaços de carvão
vieram em minha direção como bolas de beisebol incandescentes. Alguns me
atingiram e o sangue começou a escorrer por minha testa, embaralhando a visão.
216
Perdi o equilíbrio, mas consegui cortar a última fibra. Percebi a tensão romper-
se, sob a lâmina da faca. O grande peso de Cão-Vermelho se abateu sobre mim e
segurei o cesto com toda força, enquanto caíamos no chão. De repente seu peso
já não se fazia mais sentir e ele começava a assumir uma forma cada vez mais
esmaecida. Rolei no chão, afastando-me dele, e levantei-me, enquanto sua luz
começava a se dissipar. Cão-Vermelho parecia murchar, e gemia, prisioneiro.
Sua pele aos poucos foi se desprendendo, como se fosse uma rede que lhe cobria
o esqueleto. Ele se contorceu, começou a se encolher e a envelhecer. Eu
contemplava aquela visão com profundo horror, mas sem soltar o cesto. Então
aquela luz fantasmagórica desapareceu e tudo o que restou diante de mim foi um
velho de cabelos brancos.
Recuei e fugi da cabana. Tudo chegara ao fim. Talvez eu estivesse louca,
mas de uma coisa tinha certeza — o cesto estava em minhas mãos. Consegui
senti-lo. Parecia uma entidade viva, como uma serpente enrodilhada, e então
percebi que sua textura quente começava a mexer-se. Contemplei sua
magnificência e senti que ele escorregava. O que estaria acontecendo? Era como
se uma parte do cesto começasse a ser absorvida por meu corpo, na região do
plexo solar. Já não parecia mais ter a mesma forma e, no entanto, eu ainda o
segurava.
Senti o sangue descer por meu rosto e achei que talvez ainda estivesse
delirando, devido a algum ferimento. Continuei agarrada ao cesto e olhei, para
notar se acaso o tinha deixado cair. Tive, então, uma curiosa sensação: era como
se estivesse correndo acima de mim mesma. Todo meu corpo começou a tremer
e ondas de arrepio subiam e desciam por minha espinha. Não sei quanto tempo
permaneci naquele estado de êxtase, mas finalmente uma grande luminosidade
se fez em minha cabeça e todo meu ser se acalmou. Já não sentia mais medo.
Não me recordo como regressei à cabana, mas Agnes sorriu, ao ver-me.
— Me passe a faca — disse.
Tirei-a do cinto e entreguei-lhe também a bainha. Agnes guardou a faca
dentro da blusa.
217
Desmaiei e ela me amparou, enquanto eu caía. Quando voltei a mim
estava deitada na cama e já havia escurecido. Agnes esfregava uma pomada de
cheiro desagradável na minha barriga e na minha cabeça, que latejava. Meu
estômago estava queimando.
Os lampiões de querosene estavam acesos. Lá fora, Ruby e July
sentavam-se ao luar, cantando em cree. Agnes observava atentamente minha
expressão.
— Onde está o cesto de casamento, Agnes? Quero vê-lo.
— Está guardado com suas coisas. — Agnes foi até a cômoda e o ergueu,
para que eu o visse, antes de entregá-lo. — Lynn, agora você é a guardiã do
cesto. Ele lhe pertence e a todas as mulheres. O aspecto sagrado do cesto agora
está dentro de você. Acabou conseguindo aquilo que veio procurar.
Fiz um gesto com a cabeça, surpreendida com a sensação de bem-estar.
Podia compará-la unicamente com o que senti quando fiquei grávida. Percebia a
presença da vida dentro de mim.
— Você estará em forma dentro de um ou dois dias. — Agnes deu-me um
sorriso afetuoso. — Ah, tenho algo para você. Agora é tempo de comemorar, de
ter visões.
Enquanto eu me sentava na cama, ela tirou da prateleira um grande
cachimbo recoberto de miçangas e entregou-o para mim. O bocal era revestido
de pele de lobo.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Era o cachimbo que eu começara a
fazer, mas agora estava inteirinho enfeitado com miçangas e suas partes se
juntaram.
— Agora você é dona de um cachimbo — disse Agnes, com os olhos
brilhando. — Segure-o com muito orgulho. É um cachimbo de mulher, um
cachimbo sagrado. As leis do universo estão contidas neste cachimbo, e você
tem muito o que aprender. Seu aprendizado apenas começou. Agora poderá
começar a enxergar o mundo como ele é de verdade.

218
Regressei a Bervely Hills, após as experiências narradas neste livro. Revi
meus velhos amigos e fui aos lugares que tanto conhecia, mas me pareceram
meras sombras, em comparação com a lembrança que tinha deles.
Voltei a me inserir naquela rotina durante algumas semanas, até não
conseguir mais suportá-la. Sem comunicar nada a ninguém, tomei um avião de
volta para o Canadá, a fim de ver Agnes. Quando entrei na cabana sem me
anunciar, ela estava sentada no chão e fiquei bem na sua frente. Dei-lhe uma
caixa de cigarros americanos. Ela pegou-a, sem dizer nada, e colocou a seu lado.
Parecia estar me esperando.
— Tudo mudou — tentei explicar. — Não sei o que fazer. Quero voltar
para seu mundo. Quero que você continue a me ensinar.
— Não — ela disse, olhando-me muito atenta. Havia grande firmeza em
sua voz. — Ainda não é tempo.
— Agnes, você me disse que tudo o que eu aprendi é sagrado e secreto. É
verdade?
— Sim, é verdade.
— Não posso contar a ninguém, discutir isso com ninguém?
— Não.
— Mas então o que devo fazer?
Agnes encarou-me com altivez durante alguns momentos. Estendeu os
braços rigidamente, diante dela, paralelos ao chão, com os punhos cerrados.
Esticou lentamente as mãos, mantendo-as na mesma posição, mas com os dedos
apontados para cima.
— Sabe o que isto significa?
— Você está se exprimindo através de sinais?
— Sim. Quando você abrir os dedos desse jeito, significa duas coisas. Os
dedos simbolizam as pessoas e abri-los quer dizer desfazer-se de algo. Estou lhe
219
dizendo para comunicar a seu povo o mundo espiritual. Deixe sua mensagem
voar. Deixe a águia voar.
— O que isso significa?
— Você viu muita coisa, sabe muita coisa, mas não basta. Disse-lhe que
chegaria um tempo em que se veria forçada a escolher sua morte. Esse tempo
chegou. Escreva um livro e passe adiante tudo o que aprendeu. Então poderá
voltar para junto de mim.
Enquanto me afastava de Agnes, seguindo a estrada esburacada, repeti
sem parar um poema de Robinson Jeffers:

A Águia e o Falcão com enormes garras


Encapuzados fazem a vida em aparas.
O Abutre e o Corvo suavizam da morte a espera,
E neste nosso tempo o poeta não se alimenta
Enquanto ele, tal como o mundo, não se dilacera.

Fim

220
LYNN V. ANDREWS vive no sul da Califórnia, onde se dedica a
produção de filmes, estudos de arte e movimentos feministas. Após a incrível
experiência relatada neste livro, tem seguido as instruções da índia Agnes Alce-
Que-Assovia: "Comunique ao seu povo o mundo espiritual... transmita o que
aprendeu". Assim, ela já preparou O VÔO DA SÉTIMA LUA e outros livros
que vão dar seqüência à história aqui iniciada.

Layout da tapa: Omar Grassetti


Ilustração da capa: Gisé

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