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H UMANAS

Revista de Ciências

Revista filiada à:

Editora da UFSC
UNIVERSIDADE FEDERALDE SANTACATARINA

Reitor Lúcio José Botelho


Vice-Reitor Ariovaldo Bolzan

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Diretor João Eduardo Pinto Basto Lupi


Vice-Diretor José Gonçalves Medeiros

EDITORA DA UFSC

Diretor-Executivo Alcides Buss


Conselho Editorial Cornélio Celso de Brasil Camargo, Eunice Sueli Nodari
(Presidente), João Hernesto Weber, Luiz Henrique de Araújo Dutra, Nilcéa Lemos
Pelandré, Regina Carvalho e Sérgio Fernando Torres de Freitas.

REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS

Editor José Gonçalves Medeiros


Comissão Editorial Cynthia Machado Campos, Hector Ricardo Leis, José Gon-
çalves Medeiros (Presidente), Marco Antônio Frangiotti, Maria Juracy
FilgueirasTonelli, Norberto Olmiro Horn Filho, Rafael José de Menezes Bastos e
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Conselho Científico Alcir Pécora (UNICAMP); Artur Cesar Isaia (UFSC); Car-
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Krüger Corrêa (UFSC).

Organização Geral Luiz Carlos Cardoso e Allysson Sérgio Vieira

Tiragem 500 exemplares


Periodicidade Semestral
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

H UMANAS Revista de Ciências

ISSN 0101-9589

Revista de Ciências Humanas Florianópolis E D U F S C n. 35 p . 0 1 - 2 5 4 Abr. 2004


A Revista de Ciências Humanas é uma publicação semestral do Centro de Filoso-
fia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Lançou, em
1982, o seu primeiro número e tem sido um importante veículo na disseminação do
conhecimento interdisciplinar nas diferentes áreas das humanidades. Publica com
regularidade dois números por ano com uma tiragem de 500 exemplares por volu-
me, além de números temáticos anuais. Os artigos são revisados por três relatores
ad hoc, preferencialmente vinculados a instituições nacionais.
Editoração eletrônica Capa
Allysson Sérgio Vieira Allysson Sérgio Vieira
allyssonvieira@yahoo.com.br Criação da Capa
Revisão geral Ana Lúcia Gomes Medeiros
José Gonçalves Medeiros Ilustração da Capa
Vera Vasilavski Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral

Revista indexada por:


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— Linguistics & Language Behavior Abstracts - LLBA;
— Social Planning / Policy & Development Abstracts - PODA;
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(Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina)
Revista de Ciências Humanas (Temas de Nosso Século) /
Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e
Ciências Humanas.- v.1, n.1 (jan. 1982) - Florianópolis :
Editora da UFSC, 1982-
v.; 21cm

Semestral
ISSN 0101-9589

I. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de


Filosofia e Ciências Humanas.

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Campus Universitário - Trindade Revista de Ciências Humanas
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Revista de Ciências HUMANAS (Florianópolis)

número 35 abril 2004

Sumário

Apresentação................................................................................07

Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano


Pedrinho A. Guareschi
Laura Helena Pelizzoli.............................................................11

Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética


Inês Lacerda Araújo.................................................................37

A modernidade sob o prisma da tragédia: um ensaio sobre a


singularidade da tradição sociológica alemã
Adélia M. Miglievich Ribeiro
Brand Arenari..........................................................................57

Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV: estudo de


representações sociais com mulheres
Andréia Isabel Giacomozzi.......................................................79

Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que


cursam Engenharia Ambiental
David José Diniz
Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano.................................99
Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-
privatização: a experiência do Rio Grande do Sul
Sandro Ruduit Garcia...............................................................117

Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e


Curitiba
Paulo J. Krischke.......................................................................141

Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da


formação urbano-industrial no Brasil
Maria José de Rezende.............................................................177

Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate


Lauro Mattei..........................................................................205

Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?


Sirlândia Schappo.................................................................225

Relação dos Consultores ad hoc.................................................241

Normas para publicação..............................................................243


Apresentação

O número 35 da Revista de Ciências Humanas (RCH), relativo


ao primeiro semestre de 2004, chega agora às mãos do leitor -
seu principal parceiro - com mais um conjunto de artigos que tem por
objetivo ampliar o debate de temas da contemporaneidade.
Nesse número, como nos demais, o leitor, acostumado com a
interdisciplinaridade da revista, encontrará idéias e proposições acer-
ca do social produzido por profissionais da Área de Ciências Hu-
manas e Sociais.
Sobre os “reality show” diz Muniz Sodré em “O império do grotes-
co” que “... procura-se identificar realidade com um cotidiano desprovi-
do de maior sentido, com uma espécie de grau zero do valor estético, em
que só há lugar para o miúdo, o mesquinho, a emoção barata e o banal”.
O fenômeno que não é apenas brasileiro e indica, entre outras questões,
o rebaixamento do padrão televisivo e uma identificação do público com
este “lixo reciclado e transmitido”. Os autores Pedrinho A. Guareschi e
Laura Helena Pelizzoli fazem uma análise crítica dos “reality show” pro-
duzidos pela Rede Globo abordando, principalmente, a questão da ética,
no artigo Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano.
Inês Lacerda Araújo constrói seu artigo a partir do clássico texto
de Foucault “Arqueologia do saber”. Em Foucault, um arqueogene-
alogista do saber, do poder e da ética, a autora identifica as rela-
ções entre as práticas discursivas e não discursivas como sendo aque-
las que apontam para o aparecimento do sujeito moderno e da socieda-
de disciplinar, controladora. Propõe-se a verificar os discursos produ-
zidos no campo da psicologia e da psicanálise como discursos produto-
res do saber/poder.
Em A modernidade sob o prisma da tragédia: um ensaio so-
bre a singularidade da tradição sociológica alemã, Adélia Miglie-
vich Ribeiro e Brand Arenari discorrem sobre as tradições do pensa-
mento na sociologia e fazem um exercício de análise das escolhas epis-
temológicas de cada tradição. Tomam por objetivo do trabalho analisar
a “tragédia” como elemento comum que une pensadores da sociologia
moderna como F. Tonnier (1855- 1936), G. Simmel (1858-1918) e M.
Weber (1864 - 1920), estendendo a análise aos pensadores da Escola
de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer.
O estudo Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV: es-
tudo de representações sociais com mulheres, de autoria de Andréia
Isabel Giacomozzi, contribui para a reflexão acerca das representações
sociais de mulheres com ou sem parceiro fixo sobre a sexualidade e
prevenção da AIDS. A contribuição desse trabalho, principalmente a
social, deve-se ao fato de que a pesquisa realizada pela OMS/2004 con-
firmou o aumento crescente do número de mulheres infectadas. Portan-
to, discutir o comportamento das mulheres face à prevenção é, nesse
momento, uma contribuição significativa.
Representações sociais sobre o meio ambiente de alunos que
cursam Engenharia Ambiental, de autoria de David José Diniz e Rita
de Cássia Magalhães Trindade Stano, discute as representações sociais
e as possíveis alterações que os formandos desses cursos, dessas novas
metodologias de proteção ao meio ambiente estão, na prática, fazendo
acontecer e com isso criando condições para mudanças curriculares.
Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-
privatização: a experiência do Rio Grande do Sul, de Sandro Ruduit
Garcia, analisa as relações produtivas que se configuraram no setor das
telecomunicações, no Estado do Rio Grande do Sul a partir do processo
de privatização em 1998.
Em Cultura política: convergências e diferenças em Porto Ale-
gre e Curitiba, Paulo J. Krischke compara a cultura política das cidades
de Curitiba e Porto Alegre, analisando suas diferenças e convergências
como formas locais complementares de manifestação da conquista da
cidadania nos diferentes contextos históricos - sociais.
Maria José de Rezende, em Gilberto Freyre e Celso furtado:
duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil,
rastreia interpretações dadas por Freyre e Furtado acerca do processo
de urbanização no Brasil.
O olhar sociológico está presente em um interessante texto que,
mesmo canônico no campo da sociologia, Sistema familiar de produ-
ção: algumas questões para o debate de Lauro Mattei, contribui ao
problematizar o conceito de agricultura familiar. Na esteira de refletir
sobre agrupamentos sociais e suas definições, a autora de Migrantes-
nômades: chegar, partir ou ficar?, Sirlândia Schappo analisa a insufi-
ciência do termo “êxodo rural” para definir os deslocamentos populacio-
nais; no artigo, a autora chama atenção para o risco do conceito quando
utilizado de maneira genérica, e espera que sua contribuição possa aju-
dar a compreender os processos migratórios.
Esperando que os artigos desta edição possam contribuir cada vez
mais para a definição do caráter interdisciplinar da RHC, colocamo-nos
à disposição de nossos leitores e assinantes.

José Gonçalves Medeiros


Editor
Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano*

Pedrinho A. Guareschi1
Laura Helena Pelizzoli2
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Resumo Abstract

Trabalho 3 que analisa, de The paper discusses, within


maneira crítica, o programa cam- a critical framework, the most as-
peão de audiência da televisão bra- sisted program of the Brazilian te-
sileira Big Brother Brasil. Divide- levision, Big Brother Brazil. It is
se em duas partes: na primeira, divides in two parts. The first pre-
apresenta um referencial ético para sents an ethical framework for the
análise de programas midiáticos. analysis of media programs. The
Na segunda parte, faz uma análise second part discusses two kinds
do programa, a partir de dois gru- of data about the program: a set
pos de informações: o primeiro of information received through
constitui-se de cartas enviadas electronic mail from viewers who
eletronicamente por ouvintes que manifested dissatisfaction with the
__________________________________________________
* Big Brother Brasil: the vulgarization of everyday life
1
Endereço para correspondências: PUCRS, Av. Ipiranga, 6681 prédio 11, sala 927, Porto
Alegre, RS, CEP 90619-900 (guareschi@pucrs.br)
2
Endereço para correspondências: PUCRS, Av. Ipiranga, 6681 prédio 11, sala 927, Porto
Alegre, RS, CEP 90619-900 (lpelizzoli@terra.com.br)
3
Somos gratos ao CNPq que, por meio da bolsa de Produtividade em Pesquisa, da bolsa de Apoio
Técnico e das duas bolsas de Iniciação Científica, possibilitou-nos realizar este trabalho.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004


12 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

manifestam críticas ao programa e program, and another set of in-


o segundo conjunto de informações formation gathered by the rese-
compõe-se de dados coletados pe- archers in viewing the programs.
los pesquisadores, tendo em vista a Central categories are construc-
audiência do programa. Constroem- ted which group the main themes
se algumas categorias centrais que brought by the electronic mails
agrupam os principais temas trazi- and gathered by the researchers.
dos pelos telespectadores e investi- The categories are discussed
gados pelos pesquisadores. As ca- through the ethical framework
tegorias são discutidas a partir do presented earlier. At the end
referencial ético. Ao final, sugere some suggestions about alterna-
possíveis alternativas a programas tives to this kind of program that
desse gênero que possam ser etica- can be ethically acceptable are
mente aceitáveis. presented.

Palavras-chave: Mídia; ideologia; Keywords: Media, ideology, ethics,


ética; representações sociais. social representations.

Introdução

Este artigo originou-se de uma pesquisa realizada pelos autores


para a formulação de um parecer sobre o programa Big Brother Brasil,
na sua terceira edição (2003), solicitado pela Comissão de Acompanha-
mento de Programação de Rádio e TV (CAP), que é ligada à Comissão
de Ética da Câmara dos Deputados de Brasília e ao Conselho Nacional
de Comunicação, cuja campanha é intitulada: Quem Financia a Baixa-
ria é Contra a Cidadania. A CAP recebeu inúmeras reclamações e
sugestões, por e-mail, de cidadãos de todo o território nacional, que se
posicionaram com insistência diante de certas cenas e situações veicula-
das pelo programa. Considerou-se que tais situações e cenas feriam a
ética, apresentando-se injuriosas a grande parte da população, desedu-
cadoras e em desacordo com a função e a tarefa da mídia, que é prestar
um serviço público de qualidade à população brasileira. Os cidadãos que
apresentaram tais queixas fizeram-no com o objetivo manifestar seu pen-
samento, expressar sua opinião, reivindicando alguma providência dos
órgãos competentes.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004


Pedrinho A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli — 13

A fim de deixar claro de onde partimos para produzir tal parecer,


iniciamos com uma rápida discussão sobre os pressupostos éticos que
fundamentam a análise, pois a discussão no campo da ética pode dar
ocasião a muitas polêmicas. Após a discussão sobre o referencial ético,
iniciamos a análise. São informados, inicialmente, os procedimentos me-
todológicos empregados. A seguir, discutimos as diversas informações
usadas, analisando as principais categorias que as sistematizam. A inter-
pretação que fazemos tem como pano de fundo o referencial ético apre-
sentado na primeira parte.

Um referencial ético para análise da mídia

Escutamos, a toda hora, alguém dizendo que tal procedimento não


é ético, que tal ação é antiética e assim por diante. Qual seria o critério
para tal afirmação ou julgamento? O que faz com que uma ação, uma
prática e, indiretamente apenas, com que uma pessoa seja ética?
Ao refletir sobre o que é ética e os seus fundamentos, damo-nos
conta de o quão complexa é essa questão. Entretanto, ao mesmo tempo,
vemos que todos nós, de um modo ou de outro, temos nossas convicções
éticas, temos uma ética. Para tê-la, precisamos nos basear em algum fun-
damento, algum pressuposto filosófico e valorativo. Curiosamente, a mai-
oria das pessoas, apesar de terem esses fundamentos e pressupostos, pou-
cas vezes pararam para refletir e tomar consciência deles e de suas impli-
cações. Nesse sentido, essa rápida discussão traz à baila esses pressupos-
tos, no intuito de facilitar a descoberta do fundamento de ética de cada um.
Mesmo os estudos de Kohlberg (1966, 1969) e, em parte, os de Piaget
(1932), apesar de ajudarem a identificar “estágios” de consciência ética,
não fornecem elementos para que se identifiquem os pressupostos filosó-
ficos e, conseqüentemente, faça-se uma crítica desses pressupostos.
Queremos esclarecer, a diferença que fazemos entre ética e mo-
ral, contudo, retornaremos a isso no final desta discussão teórica sobre
ética. Entendemos por moral, ou moralidade, os costumes instituídos, a
maneira como os grupos e as sociedades valorizam sua maneira de agir
e se regular. As leis, a tradição, os costumes etc. fariam parte da moral.
Já por ética entendemos uma crítica filosófica dessa moralidade. A ética
é parte da filosofia, como é a metafísica e a epistemologia, e propõe-se a
encontrar os “fundamentos últimos” de por que as coisas são como são.
É a ética que discutimos aqui.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004
14 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Podem ser identificados dois paradigmas principais que fundamen-


tam as exigências éticas ou os valores éticos presentes ainda na atuali-
dade. O primeiro paradigma é o da lei natural, o segundo é o da lei
positiva. A esses dois paradigmas mais clássicos, acrescentamos um ter-
ceiro, que questiona os dois anteriores e traz novas considerações para a
discussão da problemática da ética: a ética tomada como instância críti-
ca. É a partir desse terceiro enfoque que produzimos nossa análise.
No primeiro paradigma, da lei natural, o grande referencial é a
própria natureza. Esse referencial tem a pretensão de dizer que, a partir
da atenção à natureza, é possível, de um lado, estruturar uma ética que
governe todos os povos e em todas as épocas e, de outro lado, é possível
uma “fonte” para essa ética que não seja os costumes ou instituições de
determinados povos ou nações. Dentre os defensores de tal paradigma,
podemos citar Aristóteles, os estóicos, Cícero e muitos outros seguido-
res, até os dias de hoje.
Essa tradição dividiu-se em duas vertentes: uma pré-moderna,
religiosa, inspirada em Tomás de Aquino, centrada na idéia de um Cria-
dor e numa ordem imutável estabelecida por Deus; e outra moderna,
secular, inspirada nos escritos de Grotius e John Locke, fiel à mentalida-
de do mundo moderno que, sem negar a origem divina da natureza, in-
veste na defesa dos “direitos humanos”. Podemos dizer que a primeira
caracteriza-se como o “momento do objeto”, como pré-moderna, e a
segunda, como o “momento do sujeito”, típica do pensamento moderno.
Uma privilegia a estabilidade do objetivo e a outra, a liberdade e a
iniciativa do subjetivo. Todavia, o critério que fundamenta ambas é
algo exterior: a natureza como produto de Deus Criador, para a primei-
ra, e a dignidade e os direitos fundamentais do ser humano, que podem
ser racionalmente conhecidos e justificados, para a segunda. Esse pa-
radigma percorre toda história, sempre com alguns seguidores.
O segundo paradigma, o da lei positiva, surgiu como reação ao
paradigma da lei natural, tanto na sua versão religiosa como na versão
secular. Há uma rejeição, tanto em nível epistemológico como ideológi-
co, de um apelo a uma ordem natural como referencial ético. Em nível
epistemológico, a partir do relativismo cultural, questiona-se a possibilidade
de dar conteúdo concreto às leis ditas naturais, ou seja, que elas sejam as
mesmas em todas e para todas as épocas e culturas. Em nível ideológico,
a experiência histórica do abuso, tanto de poderes religiosos como civis,

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Pedrinho A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli — 15

de apelar para leis naturais para esmagar seres humanos que se opu-
nham a determinados regimes, levou à rejeição de uma ordem humana e
social determinada por uma lei natural preestabelecida. O critério ético
passa a ser o que foi escrito e promulgado. É a lei positiva. Tal paradig-
ma é denominado também de Contratualismo. Uma vez promulgada uma
lei, ela passa a ser válida. Com isso se evitaria a arbitrariedade e poder-
se-ia apelar para algo objetivo que foi formulado e promulgado. Pode-
mos nos libertar, assim, de uma natureza cega, de um lado, e dos mandos
e desmandos autoritários de governantes e grupos, de outro.
Como o paradigma da lei natural, o da lei positiva também sofre
restrições. Se eventualmente as leis fossem justas, discutidas democra-
ticamente e aplicadas da maneira o mais imparcial possível, o estado de
direito poderia ser um forte defensor do direito e das liberdades dos
seres humanos. No entanto, o que acontece quando os governadores e
os juizes são autoritários e quando alguns legislam em causa própria? O
que dizer quando grupos e minorias poderosas forçam a criação de acor-
dos e negociações em proveito próprio? Pode-se ainda dizer que o que é
instituído é ético? Vejamos a história recente do Brasil e da maioria dos
países da América Latina onde se instalaram ditaduras legitimadas pela
Doutrina da Segurança Nacional e onde se modificaram as Constitui-
ções dos países na base da força e da pressão. Se é a lei, o instituído, o
critério que fundamenta a ética, dever-se-ia dizer que os crimes e assas-
sinatos cometidos nesse período estariam legitimados.
Pelo que se viu até aqui, entende-se que o fundamento da ética é
colocado por alguns na lei natural (dado essa lei ser originada por um Deus
Criador ou por estar radicada na dignidade do ser humano e de seus direi-
tos inalienáveis) ou num positivismo jurídico, que se radica no texto de uma
lei escrita e promulgada. Examinamos as limitações e os perigos que se
originam de tais pressupostos. Que fazer, então? Haveria alternativas para
fundamentar a dimensão ética? É o que passamos a discutir.
Se as colocações discutidas mostram suas limitações e precarie-
dades, ao mesmo tempo, indicam pistas de por onde se pode iniciar a
busca de uma fundamentação ética para as ações e relações. Todavia,
é decisivamente importante que, ao perseguirmos tais fundamentações,
tenhamos sempre em mente suas possíveis limitações, como exige
toda postura crítica. Enquanto permanecermos dentro do que é hu-
manamente instituído, sem apelar para o eterno e o transcendente,

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16 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

temos de reconhecer nossa “limitude” histórica. Ao reconhecer essa “limi-


tude”, temos de deixar sempre uma porta aberta, a porta de possibilidade
de alternativas de crescimento, de transformações, de aperfeiçoamento.
Nesse contexto, cremos que ajudaria, na reflexão, uma noção de
ética como sendo uma “instância crítica e propositiva sobre o dever ser
das relações humanas em vista de nossa plena realização como seres
humanos” (DOS ANJOS, 1996, p.12).
Perscrutando a fundo essa formulação, podemos extrair dela duas
dimensões fundantes: a dimensão crítica e propositiva e a dimensão das
relações. Elas são centrais para a compreensão mais profunda da ética.
Vejamos cada uma detalhadamente.

A dimensão crítica e propositiva

Na sua dimensão crítica, a ética não pode ser considerada algo


pronto, acabado. Ao contrário, ela está sempre por se fazer. Ao mes-
mo tempo, ela está presente nas relações humanas existentes. À me-
dida que ela se atualiza, sofre contradições e, por isso, deve ser ques-
tionada e criticada. Nesse ínterim, ela tem de ser propositiva. Não
pode se furtar a colocar exigências e desafios, os quais podem ser
reelaborados, redimensionados, refeitos e retomados. A ética é sem-
pre do “dever ser das relações humanas em vista de nossa plena
realização”. É uma busca infinita, interminável, é uma consciência
nítida de nossa incompletude, é um impulso permanente em busca de
crescimento e transformação.
Alguns autores da escola crítica, como Karl Otto Apel e Jürgen
Habermas procuram resgatar a dimensão ética a partir do discurso. O
discurso é o que temos de mais próximo, de mais real e, ao mesmo
tempo, de mais interminável. Ele contém a maior possibilidade de criar
todas as alternativas possíveis e, ao mesmo tempo, tem pressupostos
indispensáveis, sem os quais ele mesmo não pode se sustentar. Traz
consigo, também, uma infinidade de caminhos diferentes, dentre eles, a
possibilidade de seu próprio resgate. Esses dois pensadores são cha-
mados por Lima Lopes (1996, p.31) de “críticos, somando tanto a crí-
tica kantiana quanto a marxista; podem ser tidos como herdeiros dos
ideais de liberdade dos modernos, ao mesmo tempo em que levam a
sério a impossibilidade de existência do ser humano não socializado”.

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Pedrinho A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli — 17

Consideramos fundamental enfatizar a dimensão da crítica, ao


discutir a questão da ética. Num trabalho anterior (GUARESCHI, 1992)
mostrou-se como o uso cuidadoso e sério da crítica, mesmo ao se dis-
cutir as diferentes teorias científicas, leva à própria evidência da im-
possibilidade de haver uma ciência ou uma prática científica neutra,
sem uma dimensão ética. A crítica resgata a dimensão ética de toda
ação humana. Ao mesmo tempo, a crítica não encerra a questão da
presença de uma dimensão ética específica. Aliás, a própria Teoria
Crítica tem como pressuposto a impossibilidade de neutralidade das
ações humanas. Toda ação humana, segundo essa escola de pensa-
mento, deve ter como finalidade iluminar e emancipar o agir humano.
Não há ação que seja neutra. A que se pretende “neutra”, estaria, na
verdade, servindo a propósitos contrários, ou seja, de ocultação da reali-
dade e de manipulação das consciências (GEUSS, 1988).
Como veremos adiante, o próprio John B. Thompson (1995), um
dos autores que mais ampla e criticamente analisa a ideologia, define
esse conceito como sendo o “uso de formas simbólicas que servem para
criar ou manter relações de dominação”. Uma forma simbólica somente
é ideológica quando se pode mostrar que ela serve aos propósitos de
criar ou manter relações que sejam de dominação, relações assimétri-
cas, desiguais, injustas.
Toma-se aqui dominação como um conceito diferente de “poder”.
“Poder” é entendido como uma capacidade, uma qualidade individual de
pessoas, algo singular, particular. Nesse sentido, todos os que “podem”
fazer algo (trabalhar, falar, escrever etc.) têm um “poder”. Já “domina-
ção” é uma “relação”, sempre se dá entre dois ou mais sujeitos, e acon-
tece quando há uma expropriação de poder. Ela concretiza-se quando
alguém retira, de maneira assimétrica ou injusta, um poder de outro.
Para essa concepção de ideologia, então, a dimensão “ética”, a
dimensão do “dever (ou não dever) fazer”, está presente. A análise
ideológica, nesse sentido, é sempre uma demonstração e uma denúncia
da existência de relações assimétricas, desiguais. Ela leva, naturalmen-
te, à constatação de situações que provocam uma tomada de posição,
que dificilmente vai deixar as pessoas impassíveis, tranqüilas. Essa é a
grande vantagem (e ao mesmo tempo o risco) de se tomar ideologia na
acepção crítica. Na verdade, o que ajuda os grupos humanos dizer, sim-
plesmente, que “as coisas são assim”, sem que se apresentem elemen-
tos de transformação e superação de tais situações?
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004
18 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

É importante ainda notar que tanto uma postura teórica, que procu-
ra a transformação e a emancipação, como uma postura que toma a
ciência como uma prática que diz “como as coisas são” pressupõem,
implicitamente, posturas éticas. A primeira, ao assumir claramente que
as ações devem levar à iluminação e à libertação. Já a segunda, ao dizer
que as coisas devem permanecer como estão, assume postura de manu-
tenção do status quo, impedindo que as coisas mudem. Por isso, ser
conservador, permitindo que as coisas permaneçam como estão ou im-
pedindo que elas mudem, é uma ação tão ética quanto lutar pela mudan-
ça, procurando fazer com que a situação se transforme4.

A dimensão da relação

Essa é a segunda dimensão da ética tomada como instância crítica:


a ética como ética das relações. Essa discussão é provocante e crucial.
Numa cosmovisão individualista, em que o ser humano é considerado
indivíduo (o indivisum in se et divisum a quolibet alio, isto é, o que é
um/uno, mas que não tem nada a ver com qualquer outra coisa), sob o
império do liberalismo, fica difícil de perceber que a ética somente pode
ser dita das relações e onde ela mesma é sempre uma relação.
Entendemos por relação a “ordenação intrínseca de alguma coisa
em direção a outra”, que a filosofia define como ordo ad aliquid. Em
outras palavras, relação é algo que não pode ser sem o outro. Vejamos
como a questão da relação tem a ver com a justiça e a ética.
Pegoraro (1996) publicou um livro cujo título é Ética é justiça,
no qual ele recupera a argumentação de Aristóteles, na Ética a Ni-
cômacos, em que o filósofo afirma que a justiça é a virtude central
da ética, pois ela comanda os atos de todas as virtudes. “Essa forma
de justiça não é parte da virtude, mas a virtude inteira e seu contrá-
rio, a injustiça, também não é uma parte do vício, mas o vício inteiro”
(ARISTÓTELES, 1985).
A afirmação “ética é justiça” torna-se muito clara quando pensamos
sobre o que significa “justiça”. Justiça provém de jus, que no latim quer
dizer “direito”. Alguém é justo quando estabelece relações com outros
seres justas. Em outras palavras, alguém sozinho não pode ser justo.
__________________________________________________
4
Para uma discussão mais aprofundada dessa questão, ver Israel (1972), em que se discute o
que é “ação” e os pressupostos éticos implícitos em qualquer ação.

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Alguém sozinho pode ser alto, branco, simpático, etc., pois isso não im-
plica “relação”, isto é, não implica “outros”. Agora, justo, ninguém con-
segue ser sozinho, pois a justiça, ou a injustiça, somente entram em cena
no momento em que alguém se relaciona com os outros. Isso quer dizer
que se pode aplicar o adjetivo “justo” somente a “relação”. Tal adjetiva-
ção não pode ser dita de um pólo apenas da relação. Eu sou justo quando
estabeleço relações com outros que sejam justas, isto é, que respeitem
os direitos dos outros. Justiça tem a ver com o respeito aos direitos das
pessoas. Há justiça quando os direitos das pessoas são respeitados.
Do mesmo modo ocorre com a ética. Dizer que ética é relação
ou dizer que ética só se pode aplicar às “relações” é afirmar que nin-
guém pode se arvorar do predicativo de “ético”, a partir de si mesmo,
como quer, exatamente, o liberalismo. O pensamento liberal, ao partir
da definição de ser humano como “indivíduo”, centraliza tudo no “eu”,
no sujeito da proposição. Assim, perdemos a dimensão relacional e,
como conseqüência, mistificamos o verdadeiro sentido de ética. Che-
gamos, assim, a absurdos sociais como os vividos hoje, em que os di-
reitos de um terço da população não são garantidos e nos blasonamos
como éticos ou como um país onde existe ética. Por incrível que pare-
ça, quem decide se somos ou não éticos são os outros. Isso parece
chocante e de fato é-o, dentro da cosmovisão egocêntrica e individua-
lista, como é a cosmovisão do liberalismo.
No documento Exigências Éticas da Ordem Democrática, da
CNBB (1994), a seguinte afirmação mostra quem é o juiz da ética numa
verdadeira democracia: “a existência de milhões de empobrecidos é a
negação radical da ordem democrática. A situação em que vivem os
pobres é critério para medir a bondade, a justiça, a moralidade, enfim, a
efetivação da ordem democrática. Os pobres são os juizes da ordem
democrática de uma nação” (n.72).
É importante ainda, como o faz Dussel (1986), distinguir moral e
ética. Moral são os costumes vividos numa determinada sociedade, aquilo
que os grupos e as pessoas estabeleceram como sendo comum, neces-
sário para o andamento e prosseguimento da ordem normal estabeleci-
da. Nesse sentido, todo poder constituído “estabelece as próprias práti-
cas como boas” (DUSSEL, 1986, p.43), sejam elas quais forem. A ética,
porém, refere-se aos princípios fundamentais, como a justiça, igualdade
e solidariedade. A ética está continuamente na busca de uma sociedade

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20 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

mais justa e fraterna e do estabelecimento de normas que sejam mais e


mais construtoras de seres humanos livres e solidários. Assim, ética bus-
ca a libertação pessoal e social das pessoas e das situações de injustiça.
Podemos acenar aqui para a questão da comunicação: a situação
em que se encontra a alocação dos meios de comunicação, embora sen-
do legal, poder-se-ia dizer ética? Estão respeitados os direitos à informa-
ção e à comunicação na atual legislação brasileira?
A educação sistemática, em geral, forma, ou conforma, as pesso-
as a obedecer e a se ajustar aos padrões estabelecidos, aos padrões
morais dos grupos e das sociedades. A verdadeira educação, libertadora
e autônoma, educa para a formação de uma consciência crítica, capaz
de continuamente questionar a situação presente, denunciando profeti-
camente suas lacunas e anunciando novas perspectivas de crescimento
e libertação. Como afirma Dussel (1986, p.46):

Deste modo, a consciência “moral”, a partir dos


princípios morais de um sistema que seja domina-
dor (como é o caso de sistemas onde há apenas
alguns que podem falar e a maioria não tem o
direito de dizer sua palavra), cria uma consciên-
cia tranqüila, que não dói, ante uma práxis que o
sistema aprova mas que pode ser originalmente
perversa, de dominação.

Acresce-se a tudo isso ainda uma outra questão, que é o fato de


que a mídia eletrônica (rádio e TV) é um serviço público, de acordo com
a Constituição de 1988. Por ser um serviço público, essa mídia não tem
donos, mas sim concessionários, que, ao receberem a concessão, têm
como compromisso implícito prestar serviço da melhor qualidade possí-
vel, que seja educativo, promova os valores humanizantes, além de pro-
piciar informação o mais imparcial possível e uma diversão inteligente,
sem discriminação e ofensas às pessoas. As colocações que seguem se
fundamentam, pois, nos pressupostos éticos discutidos acima.

Análise do programa Big Brother

Esta segunda parte inicia com uma rápida apresentação do método


empregado na investigação. Em seguida, são discutidas algumas questões
gerais referentes à montagem e estruturação do programa Big Brother.

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Pedrinho A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli — 21

Entra-se, então, na discussão das diversas categorias que abrangem as


informações, interpretadas à luz do referencial ético apresentado na
primeira parte.

Método

Brevemente, apresentam-se os procedimentos metodológicos da


investigação. Dois conjuntos de informações foram utilizados como ma-
terial de análise. O primeiro constitui-se e-mails coletados pela CAP,
cujas cópias foram enviadas a nós, pesquisadores. Algumas dessas car-
tas são relativamente longas, têm em torno de uma página, outras se
compõem de apenas alguns parágrafos. O segundo conjunto é composto
por anotações feitas por nós ao assistir ao programa. Alguns programas
foram gravados e analisados mais detalhadamente, outros foram estuda-
dos no momento de sua audiência. As unidades de análise foram as
cenas apresentadas pelo programa.
A partir desses dados, fizemos o que se poderia chamar de uma
análise temática: as diferentes unidades de análise, isto é, as diferentes
cenas ou narrativas de cenas mencionadas pelos missivistas, foram
agrupadas conforme temas com características semânticas semelhan-
tes (BAUER e GASKELL, 2002). A interpretação foi feita conforme
o referencial metodológico da Hermenêutica de Profundidade, de
Thompson (1995). Esse referencial caminha por três fases interliga-
das: a interpretação sócio-histórica, a análise formal ou discursiva, que,
nesse caso, foi a análise temática, e a interpretação e re-interpretação
das informações.

Questões gerais referentes à montagem e estruturação do programa

Big Brother pertence ao grande capítulo dos reality shows criados


por John de Mol. Já foi apresentado em diversos países do mundo, com
pequenas modificações. Numa das versões brasileiras, 500.000 pessoas
inscreveram-se para o programa. Doze mil foram pré-selecionadas e
delas, doze foram escolhidas para o elenco.
O primeiro ponto que pode ser questionado é o da transparência na
seleção dos participantes. Não se sabe com certeza de que maneira
essas pessoas foram selecionadas, quais os critérios de escolha e os
compromissos que elas assumem com os organizadores do programa.
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22 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Perguntamo-nos até que ponto são verdadeiras as dúvidas, desconfian-


ças e opiniões denunciadas por telespectadores de que os selecionados
(indicados) eram dentre alguns apadrinhados por funcionários, bem como
já tinham determinados compromissos com o programa, principalmente
de desempenhar certos papéis, participar de determinados jogos psicoló-
gicos etc. Alguns telespectadores dizem ter certeza de que tudo não
passava de uma combinação das partes envolvidas. A finalidade do pro-
grama, então, seria a de os participantes somente serem apresentados
na mídia, visando assim a posteriores contratos. Outros dizem acreditar
que o programa já iniciou com o ganhador definido, que as ligações vi-
sam somente à arrecadação, ao lucro, pois, quem garante que os resulta-
dos das votações são aqueles apresentados ao público, sem números,
apenas em porcentagem?
Com base no referencial ético que nos guia, no qual ética é uma
instância crítica que se consegue numa ação comunicativa, pergunta-se:
Onde fica a transparência das informações e a possibilidade de uma
comunicação em pé de igualdade? Essas são questões que deveriam ser
esclarecidas à população, visto que se trata de um jogo com premiação,
e, sendo um jogo, as regras devem ficar claras a todos os participantes,
dentre os quais se incluem os telespectadores votantes.
A suposição seria que as pessoas chegassem ao programa
sem compromisso algum, isto é, sem firmar acordos prévios e de
maneira “justa”. O quanto isso é verdade? O programa não se
encarregou de esclarecer.
O segundo ponto fundamental no que se refere à estruturação do
programa diz respeito a como se dão seu processo e sua constituição.
Pergunta-se, por exemplo, qual é o critério para a seleção das cenas que
são passadas ao público. Evidentemente, há escolha de determinadas
cenas, que são editadas. Essa escolha é a que dá, praticamente, o teor
do programa. Daí, pergunta-se: O que é escolhido? Com que critérios? A
“edição” dos programas talvez seja a questão maior e mais séria. Nesse
caso, a questão é: Quem manipula quem?
A edição das cenas e a apresentação delas vão conduzindo a
trama. Apresenta-se uma realidade que sequer pode ser validada por
seus atores, pois fica a cargo do apresentador, apoiado nas cenas,
conduzir os fatos e dar a eles o caráter que bem entender. O apre-
sentador não poupa ocasião para criar estereótipos dos concorrentes.

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Então, Harry é o “rabujento” e “reclamão”, Jan Massumi é o “preguiço-


so”, Sabrina é a “gatinha risonha e sexy”, Elane é a “menina primitiva e
tosca”, Dhomini é o “palhaço tarado”, Viviane é a “boazuda culta e dis-
creta”, dentre outros tantos personagens que o programa se encarregou
de construir e legitimar.
Desse modo, não é dada ao telespectador a possibilidade de con-
cluir por si quem é quem ou o quê. As cenas não são somente apresen-
tadas, mas sim comentadas. Está no ar uma realidade fictícia de bandi-
dos inteligentes e sacanas contra mocinhos sensuais e ingênuos. Os pres-
supostos éticos da possibilidade de todos os atores manifestarem sua
palavra e serem informados dos fatos são negados.
Passamos agora à análise das diferentes categorias.

A traição ao cotidiano

Talvez o ponto central que questionamos (e com isso concorda a


maior parte das reclamações enviadas à Comissão), é que o programa
Big Brother Brasil passa para a população brasileira uma representação
e um ensinamento, tácito ou mesmo manifesto, de um cotidiano corri-
queiro, em que predominam a ociosidade, a promiscuidade e a competi-
ção. Percebemos que a maior parte do que é selecionado são cenas de
banalidades, provocações, sensacionalismos, enfim, não certamente o
melhor de tudo. Segundo alguns, é o pior de tudo. É difícil aceitar que,
quando várias pessoas passam a viver em grupo, a principal relação que
se estabelece seja a de competição, de guerra e de intrigas, em que um
procura dominar ou destruir o outro. Difícil também é negar que essas
relações são estimuladas pela própria estrutura do programa, que deter-
mina semanalmente que o próprio grupo “exclua” alguns, ou seja, colo-
que-os no chamado “paredão”, e que aos espectadores é feito o convite
para “torpedear, executar, eliminar” os participantes. Cabe ressaltar que,
nos dias de “paredão”, são registrados os maiores índices de audiência.
Numa análise psicanalítica do programa, Meira et al. (2003, p.17) dizem
que “ao público é dado o direito de, onipotentemente, exercer o domínio
sobre o destino alheio, ou seja, decidir quem deverá viver ou morrer”. Já
os excluídos, conforme revela seu comportamento (ou o comportamento
pedido pelo programa, nunca se sabe), procuram inventar maneiras de
evitar, por meio de diferentes táticas, sua possível exclusão.

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24 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Muitos se perguntam por que Big Brother não poderia ser um progra-
ma que levasse ao crescimento humano e psicológico das pessoas, a uma
crítica do cotidiano e a uma vivência do cotidiano em suas profundas dimen-
sões de humanidade, partilha, felicidade e amor? – à exceção do romance
de Sabrina e Dhomini, um caso de traição e amor fugaz. Ao contrário, o
programa produz e apresenta um cotidiano artificial, mesquinho, as vezes
degradante. No dizer da psicanalista Maria Rita Kehl (2003, p.87), os reality
shows “vendem aos espectadores o espelho fiel de sua vida amesquinhada
sob a égide severa das ‘leis de mercado’. Vendem a imagem da selva em
que a concorrência transforma as relações humanas”.
Talvez por isso, a melhor palavra para classificar o programa seja
mesmo “traição”. Poder-se-ia criar algo construtivo, humanizante, en-
grandecedor, mas o que se vê é a traição de um pressuposto que está, ao
menos implicitamente, no direito de toda uma população, o de que a
mídia lhe apresente algo positivo e não uma série de mesquinharias, “cons-
pirações, traições, armadilhas, estratégias descaradas para passar a per-
na nos companheiros e garantir a própria permanência [...] trata-se de
“sadismo”, sim, mas não sexual” (Idem).
Domenico de Masi, sociólogo italiano, falando sobre o Big Brother,
assim se expressa:

Esses programas de televisão revelam grupos de


pessoas que não conseguem dar sentido ao tempo
e ao ócio, e nem é por culpa delas. É que não
foram educadas para isso. E o pior é que, do outro
lado da tela, há milhões de pessoas que também
poderiam estar aproveitando melhor o tempo.
Programas desse tipo são a morte do tempo (apud
VIEIRA, 2002, p.35).

O que se vê, principalmente ao final dos programas, são pessoas


encostadas pelos cantos, amaldiçoando o peso do tempo, o marasmo dos
fatos, o tédio dos companheiros. O fiel telespectador sente-se enterneci-
do com esse tipo de lamúria e quase chora com seu herói solitário. Quem
está vendo e quem é visto são peças de um mesmo xadrez.
Pode-se perguntar que tipo de sociedade estamos construindo
assim. A maioria da população tem a televisão quase como único
meio de lazer e informação. Vendo esse programa, o que pode desejar?

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Que valores são alimentados? A “realidade” de nossas vidas tem de ser


assim tão pobre, tão mesquinha, tão pouco inteligente? Por que não ce-
nas de pessoas inteligentes, cultas, criativas, engraçadas. Não se neces-
sitaria saber a que hora elas vão ao banheiro, se brigam com o compa-
nheiro, se acordam de mau humor ou se estão com vontade de enganar
seus concorrentes ou malfeitores. Até quando estaremos submetidos à
tirania do vale-tudo na corrida pelo Ibope?
Como diz Vieira (2002, p.23): “[...] as famílias não conseguem
impedir que esse tipo de mediocridade invada suas casas. Existem for-
mas menos rudes, grosseiras, burras e mesquinhas de tratar e discutir
os problemas do humano, sem precisar apelar para baixarias e medio-
cridades. A vida pode ser mais bonita, mais estética, mais respeitosa,
mais interessante”.
A pergunta que os telespectadores se fazem é: Os responsáveis
por uma comunicação, que é um serviço público, não deveriam não per-
mitir, muito menos promover, a banalização de coisas sérias e a superva-
lorização de banalidades?
Sobre isso, no dizer de Vieira (2002 p.37-38) temos:

[...] os participantes dos programas parecem per-


der o sentido tanto do seu habitat como do dia e
da noite. Nas edições que são exibidas em horá-
rios nobres de programação, parecem zumbis que
conversam longamente em alta madrugada e têm
dificuldades para identificar qual é o tempo de
parar e de recomeçar suas longas horas sem ter o
que fazer... as horas vividas sem proveito traves-
tem-se em doidos cenários onde se fabrica com-
pulsivamente a futrica, intrigas e traições, e onde
se elaboram as maquinações engenhosamente ali-
mentadas pelo desejo de destruir. Fazem galhofa
da miséria alheia, tripudiam em cima de fatos re-
veladores da fraqueza de um ou outro concorren-
te, armam estratégias de eliminação dos pares. O
jogo é competição. O que forma o escândalo da
agressão ao sentido do tempo é justamente a falta
de inteligência e de bondade na forma de ir con-
sumindo o dia.

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26 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Como bem diz o subtítulo do trabalho desse autor, há uma “traição


à espiritualidade do cotidiano nos reality shows”.

Competição

O programa, numa análise mais global, é um modelo de vida mar-


cado pelas tendências da competição e da exclusão, do sucesso indivi-
dual a qualquer custo. No zoológico da televisão, os jogadores só res-
peitam a lei da selva, ou seja, a do mais forte, do mais esperto. Nos
“confessionários” eletrônicos desses programas, os jogadores revelam
uma ambigüidade de causar pena. Delatam os melhores amigos, justifi-
cam suas traições, invocando fatos banais, ou simplesmente não sabem
o que dizer no momento de dar a razão das escolhas feitas no jogo.
Como muito bem expressa Maria Fontenelle (apud VIEIRA, 2002, p. 15):

[...] empacotados em embalagem moderna, repe-


tem a mesma lógica dos gladiadores romanos; eli-
minar o adversário a qualquer custo e se exibir a
uma platéia ávida por emoções fortes e bizarras.
E, talvez, ganhar um papelzinho na televisão ou
um convite para posar como modelo.

A forma de eliminação adotada no programa é uma espécie de


morte. Cada vez que alguém sai da casa, é como se fosse celebrado
um funeral. Além disso, a repetição semanal produz certa perversão.
No começo, os participantes sentem profundamente, depois, as saídas
tornam-se uma espécie de experiência sadomasoquista: ficam tristes
por estarem sendo submetidos àquele tipo de prova, mas sabem que
precisam suportar aquilo com certa classe.
Aos telespectadores é dada a possibilidade de, por intermédio
do outro, exercer e sentir sem medo o gosto da perversidade, pois,
como telespectadores votantes, não correm o risco de sentir-se cul-
pados ou vir a responder pelas conseqüências do sofrimento alheio.
É permitida a todos a impunidade e, conseqüentemente, reforçadas a
irresponsabilidade e também a impunidade, práticas tão presentes em
nossa sociedade.
Essa guerra diária capitalista, sob a máscara da amizade e do
bom convívio, deixa os telespectadores confusos, passivos e amorteci-
dos em suas poltronas.

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Mercado e dinheiro

Jurandir Freire Costa (2002, p.5), comentando o programa, diz es-


tar nele presente uma amoralidade do lucro:

Os programas escancaram o que a maioria aceita


e a minoria – por pudor e integridade – reluta em
admitir. Outrora, a recompensa do agir moral era
o reconhecimento, a admiração e o respeito de to-
dos. Agora, valemos o que pesamos em dinheiro; o
que se tem e exibe é a medida do que se é.

Para se ter uma idéia da corrida enlouquecida por dinheiro, lembre-


mos que 500 mil pessoas se inscreveram para o programa, que foi feito
com anônimos. Delas, 12 mil foram pré-selecionadas e doze foram esco-
lhidas para o elenco.
É difícil ter uma idéia de o quanto os canais de televisão lucram com
tais programas. No caso dos reality shows, um dos canais vendeu quatro
cotas publicitárias de 4,8 milhões cada. Outro vendeu duas cotas por 11,2
milhões. A Fiat investiu, nas duas primeiras experiências brasileiras do Big
Brother, mais de 11 milhões.
As pessoas fazem tudo para conseguir o prêmio de 500 mil reais.
Algumas se sujeitariam a ficar 10 dias comendo apenas marmelada, ou-
tras, a não tomar banho durante uma semana, sem falar da exposição ao
ridículo ou mostrar seus corpos nus. O que o programa sugere e ensina,
em seu currículo oculto, é que, pelo dinheiro, quem rege pode tornar-se um
tirano e quem obedece, um escravo. Na esteira em que comanda o dinhei-
ro, os amigos são traídos e os segredos revelados, em troca de uma “boa
bolada”. Por causa da prata, os traidores cortejam, os parasitas adulam, o
dissoluto jura, a pessoa honrada corrompe-se, o honesto torna-se um im-
postor, o irmão vira um estranho e todos se pervertem.
Os interesses do mercado detêm a batuta dessa tragicomédia da
realidade. O que conta, acima de tudo, é elevar audiência dos canais de
televisão. O Brasil torna-se assim cenário de uma disputa imoral por nú-
meros campeões de audiência. Nossos maiores conglomerados de comu-
nicação são adeptos incontestes de uma busca insana por audiência a
qualquer preço. Como diz Vieira (2002, p.140), “o resultado natural dessa
mixórdia é o aparecimento de programas escabrosos e perpetuação de
batalhas semanais nas quais a baixaria tem lugar garantido”.

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28 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Liberdade, intimidade

Outro ponto muito questionado pelos telespectadores refere-se uma


questão bastante delicada, difícil até mesmo de discutir, mas, de qualquer
modo, relevante para quem pensa numa comunicação que se guie pela
ética e pelo respeito. Essas questões têm a ver, por um lado, com o grau
de exposição possível e permitido no campo da intimidade e, por outro
lado, com o grau de liberdade que fica comprometido em tais programas.
Ciro Marcondes Filho (2002, p.9), comentando o programa, afirma:

O íntimo outrora era o segredo de cada um, seu


“tesouro”. Havia boa demanda para isso, as pes-
soas se marcavam pelo mistério. Era a alma do
romantismo. Hoje, com a massificação e a impes-
soalização, terminou a demanda do íntimo, seu
preço de mercado despencou. As pessoas entre-
gam-no facilmente. A miséria se desmaterializou,
chegou ao espírito... É a TV do “trash”, em que
platéias deliram com confidências escandalosas.

A impressão que se tem é que a intimidade veiculada nos progra-


mas produz uma espécie de pornografia “inocente”, porque intimidade
mostrada não é mais intimidade.
Como diz Vieira (2002, p.31):

[...] há elementos diabólicos na sofisticada expo-


sição dos programas: o enfado da pessoa com ela
mesma e a morte da surpresa. Os participantes
são submetidos a um ritual cotidiano tão invasi-
vo que diminui, de forma grave, o entusiasmo em
se produzir e apresentar-se diante dos colegas e
do público. Qualquer arranjo vai parecer artifici-
al e pouco interessante. A pessoa é roubada na
sua capacidade de surpreender. Não há o que dis-
simular ou criar: está tudo gasto. A surpresa foi
assassinada pelo olho da câmara cruel. Quando
termina a série de dias de confinamento e essas
pessoas se apresentam diante do público, elas fi-
cam irreconhecíveis.

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Ainda, como diz Antônio Mazzi (apud VIEIRA, 2002) sobre o


Big Brother, as pessoas devem convencer-se de que a televisão é
muito pior do que qualquer tirano, pois extrairá centímetro por centí-
metro a nossa intimidade, corromperá nosso coração e tornará creti-
no nosso cérebro.
Além do mais, é difícil afirmar que é autêntica a tal intimidade
mostrada no vídeo. As pessoas agem sabendo que estão sendo acom-
panhadas pelas câmeras e volta e meia se referem ao público com
cartadas de afeto. Querem “sobreviver”. Sabem que o olho eletrônico
do espectador não perdoará o mínimo deslize. Por isso, choram ao
perceber que deram uma derrapada, pedem perdão, ficam deprimidas.
A realidade vista não é precisamente realidade. Elas correm o risco de
se tornar aduladoras do público. A essa altura, a originalidade pessoal
de cada um já está irremediavelmente perdida. O que o voyeur de
plantão assiste é à atuação de atores canastrões.
Assim, além de pôr fim a nossa intimidade, também nossa liberda-
de é ameaçada com toda essa exposição. Um grupo de pessoas estra-
nhas é jogado em um ambiente artificialmente familiar. Desse grupo ar-
ranca-se a liberdade. Enjaulados, poucos conseguem conservar sua dig-
nidade e mesmo a sua sanidade. Passam a reagir como criaturas que se
angustiam com a redução de seu território para ir e vir, correndo o risco
de uma desumanização cruel. Se é verdade que a clausura pode ajudar,
se for para mergulhar em si mesmo, para refletir e meditar, as atividades
propostas no programa impedem isso e fomentam disputas, distração,
extroversão, bebedeiras, descontroles, mexericos etc.
Referente a isso, Meira et al. (2003, p.21) diz que “o homem mo-
derno acaba por furtar-se da viagem para dentro de si e, desta forma, dá
força ao que convida à alienação”.
Numa das críticas enviada à CAP, o cidadão denuncia a:

[...] ofensa à dignidade humana e o desrespeito


aos direitos humanos com a venda de imagens de
pessoas que instigam a outra para fazer sexo aos
olhos de quem estiver assistindo, de pessoas que
rolam debaixo da mesma coberta, de conversas
insinuosas e por vezes explícitas, tudo isso não
passa de uma violência.

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30 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Assim, vende-se a intimidade das pessoas, em contrapartida com


a perda da identidade de quem se espelha naqueles modelos de
comportamento.
Outro cidadão diz ser

[...] deprimente ligar a televisão e não ter outra


escolha, quem não estiver satisfeito que saia da
sala, é chegada a hora do Big Brother Brasil e
tudo que se possa imaginar de “corriqueiro”, se-
ria até suportável, mas é desmoralizador e no rit-
mo que vamos, breve estaremos: “Pai, mães, filhos
netos e bisnetos”, assistindo filmes pornográficos,
ou quem sabe uma cena de sexo explícito ao vivo.
Não é fantástico?

Obscenidade

É importante resgatar aqui a etimologia da palavra “obsceno”. O


“ob-ceno”, fora de cena, contrapõe-se ao “in-cena”, o que a cena mostra.
O que os programas mostram é algo desfocado. Em primeiro lugar, esco-
lhem-se corpos esculturais para que, durante o confinamento, estejam o
tempo inteiro seminus. A partir daí, como salienta Vieira (2002, p.70), “as
câmeras percorrem famintas os ângulos mais insinuantes. Cangas, sun-
gas, roupas íntimas e muitas bermudas lotam o guarda-roupa das ver-
sões”. A particularidade erótica de determinada cena vem apresentada
avulsa, fora da trama. Essa imagem ganha sentido próprio. Sendo assim,
ocorre que uma cena na qual se mostra uma parte do corpo das pessoas
ou um de seus membros pode vir a ser um objeto estimulante para olhos
ávidos. Obsceno, portanto, é o detalhe que se apresenta como completo
em si mesmo e reclama a atenção, impondo a própria capacidade de atrair,
prescindindo de qualquer significado que o transcenda.
Eugênio Bucci (2002, p.5) chega a ser veemente em sua análise
de algumas “ob-cenas” do Big Brother:

Olha a picanha aberta, escancarada, rasgada. E o


cupim, você viu? A carne explícita, despida, despo-
jada, sem couro, sem pelo, sem osso quase nenhum.
Será que o esquartejamento não é um streaptease
sem freios? Existe a pornografia bovinofágica?

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Pedrinho A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli — 31

Um telespectador denuncia as chamadas do Big Brother duran-


te outros programas, como no Fantástico no dia 16 de fevereiro de
2004, a qual

[...] destacava uma das participantes com um tex-


to apelativo ao extremo, usando inclusive de obs-
cenidades, mostrando os atrativos da moça, tra-
tando-a como uma peça de carne no açougue, re-
ferindo-se que a moça possuía belos nacos de car-
ne muito bem distribuídos. Para tentar garantir a
audiência desta baixaria, incluiu cenas da tal
moça praticamente nua. Um péssimo exemplo de
exploração da mulher como simples objeto sexual
descartável. Uma lástima.

Outro simplesmente diz:

Venho denunciar o mar de pornografia que é li-


vremente transmitido diariamente pela TV-Globo
no programa Big Brother Brasil.

Foi constrangedor ver o Pedro Bial provocar os telespectadores


para que, após a exclusão da participante Sabrina, eles passassem a
apreciar a bunda da Viviane...

Sinceridade e verdade versus cinismo e hipocrisia

Um questionamento bem mais profundo pode ser feito a esse


tipo de programa: O quanto ele representa de verdade e o quanto há
nele de hipocrisia?
Alberto Dines (apud VIEIRA, 2002, p.99), em um de seus comen-
tários, chega a afirmar:

Esses shows são enganosos; estas privacidades


são falácias; as portas que as protegem são tra-
paças; os buracos nas fechaduras são simulados;
o improviso é fictício; e a masturbação coletiva
só tem um objetivo: ludibriar a realidade.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004


32 — Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

Na verdade, após tantas hipocrisias e tantos enganos, nunca se sabe


se um sorriso significa o que um sorriso deveria significar. Risos cheios de
suspeitas soam como punhais de traição. A alegria não é sincera, é criada,
artificial. Alegria como máscara é uma das mais pérfidas criações do ser
humano. As emoções são fictícias, e a falsa emoção é o fim da emoção.
Os atores, para realizar essa façanha, precisam alimentar-se com uma
certa dose de menosprezo pelos semelhantes, pela própria vida e pelas
circunstâncias. A abundância de risadas desprovidas de sentido e de
senso do bem, de humor criativo ou de situações inusitadas e divertidas
revela uma quase doença emocional.
Além do mais, a verdade do dia-a-dia, apresentada nas cenas des-
ses programas, é a pior face da convivência humana. Seria triste consi-
derar válido o que os participantes do programa vivem. Nessa situação,
o que é passado aos lares são mexericos, futricas, mesmices e algumas
cenas provocantes de sexo.
Uma última consideração é o fato de que o programa cria um labo-
ratório perigoso, em que se coloca, como em um tubo de ensaio, aquilo que
o ser humano tem de mais assustador, ou seja, a sua capacidade de jogar
com a vida dos outros. Sobre isso, Vieira (2002, p.101) diz que:

[...] essa potência humana já escreveu a história do


planeta com letras de sangue. Reinos e nações fo-
ram sacrificadas por causa da desfaçatez de uns
poucos, quando externalizam esse grande poder que
trazem consigo. O cinismo já montou doutrinas ca-
pazes de convencer que algumas pessoas devem sem-
pre estar por cima de outras... cínicos lances.

Nesses arremedos de realidade que a TV tem produzido, a verda-


de tem passado por provas terríveis. Mentiras bem maquiadas podem
seduzir. Muitas pessoas acreditam religiosamente que toda aquela trama
é sincera. Tem-se a impressão de uma pantomima espontaneísta: de um
lado, atores fazendo de conta que acreditam em tudo e que gestos e
conversas são frutos da mais casta naturalidade; de outro, aqueles que
acompanham as cenas, fazendo uma mímica patética, confirmam que
acreditam que as pessoas do vídeo acreditam. No fim de um programa,
há uma multidão prostrada, uma tragédia dos que preferiram ver a viver.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004


Pedrinho A. Guareschi e Laura Helena Pelizzoli — 33

Alternativas

A pergunta que naturalmente nos fazemos é a seguinte: Não se-


ria possível aproveitar a novidade do programa para coisas mais huma-
nas e mais inteligentes? Cremos que sim. Os franceses, por exemplo,
não tão acostumados a tais baixarias, resolveram adaptar o programa a
um estilo culturalmente mais aceitável, mais provocante e atraente, com
o título: Vous connaissez la nouvelle? – que poderia ser traduzido como:
Sabe da última?. Os participantes são quatro escritores que ficam fe-
chados em uma casa com a missão de produzir um conto de dez páginas
cada um. O material que fosse produzido em seus computadores portá-
teis seria mostrado pelas câmeras. A emissora responsável pela produ-
ção garantiu que uma eventual guerra de egos entre os participantes e a
interferência do público, que poderia enviar sugestões e críticas aos es-
critores, garantiriam momentos de grande excitação intelectual. Cremos
que tal programa é o que se pode considerar um tipo de “vingança” dos
indignados com tal gênero.
Como conclusão, gostaríamos de repetir que nosso intento, com
a análise feita, não é apenas criticar por criticar, num espírito negati-
vista e destrutivo. O que nos anima é ver que tanta criatividade, tanta
engenhosidade poderia ser empregada para algo melhor, educativo,
libertador, construtivo, inteligente, humanizante. Gostaríamos de que
nossa análise fosse, por isso mesmo, tomada como, de um lado, res-
peito por tantas pessoas que manifestaram ressalvas sérias aos pro-
gramas e que merecem ser ouvidas nesse diálogo que constrói uma
ética como instância crítica do dever ser, por meio de uma ação co-
municativa; e, de outro lado, como um desafio aos responsáveis por
tais programas, para que eles possam superar tais limitações e colo-
car a mídia, de fato (e essa é sua tarefa fundamental e primeira),
como um serviço público para o entretenimento, bem-estar, cresci-
mento e a educação de toda a população.

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(Recebido em abril de 2004 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.11-35, abril de 2004


Foucault, um arqueogenealogista do saber, do
poder e da ética*

Inês Lacerda Araújo1


Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Resumo Abstract

Foucault aborda a questão do Foucault deals with subject so


sujeito de forma a problematizar as as to criticize the Cartesian-style
filosofias de estilo cartesiano, as ilu- philosophies of the subject and their
sões das filosofias do sujeito. Nos- illusions. This paper aims at poin-
so objetivo é mostrar os passos es- ting out the basic steps of this criti-
senciais dessa crítica em sua obra, cism in Foucault”s work. Three
ressaltando três momentos, o da moments are emphasized, namely
objetivação do sujeito, o da sujei- the subject”s objectivation by the
ção ao saber/poder normalizador, e sciences, the subject”s subordina-
o da subjetivação através de tec- tion to power, and the constitution
nologias do eu. Para tal procede of the self by means of ego tech-
arqueogenealogicamente, relacio- nologies. Foucault”s strategy is ar-
nando as práticas discursivas com chaeogenealogical, i.e. he connects
as práticas não-discursivas, para verbal practices with non-verbal
chegar ao sujeito moderno e à so- ones, in order to understand certain
__________________________________________________
* Foucault, an archeogenealogist of knowledge, power and ethics
1
Endereço para correspondências: Rua Raphael Papa, 557, Jardim Social, Curitiba, PR, CEP
82530-190 (ineslara@matrix.com.br).

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38 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

ciedade disciplinar, controladora. aspects of modern subject and so-


Nesse sentido, as ciências huma- ciety as a normative, controlling ins-
nas, especialmente a psicologia e a titution. In this regard, Psychology
psicanálise, não libertam, pois tam- and Psychoanalysis represent stra-
bém produzem verdade, não por tegies of both power and knowled-
razões epistemológicas nem ideo- ge. Foucault”s resistance to poli-
lógicas, mas por estratégias de sa- tics stems from his aversion to the
ber/poder. Sua política da resistên- policy of self-constitution from an
cia concilia-se com uma política de aesthetic perspective, by means of
constituição de si numa atitude es- free acts connected with existen-
tética, através de atos de liberda- ce as ethically conceived. The con-
de, uma forma ética de existência. clusion of this paper is that this is
Concluiremos que isso é possível, possible, given that subjected indi-
mesmo com os jogos de verdade viduals are produced by certain
produzindo indivíduos sujeitados. games of truth.

Palavras-chave: Sujeito; arqueo- Keywords: Subject; archaeology


logia do saber; genealogia do po- of knowledge; genealogy of power;
der; psicanálise; ética. psychoanalysis; ethics.

E ste estudo resulta de uma observação que Foucault fez a respeito


de sua obra, em uma entrevista a Dreyfus e Rabinow. Afirma que
ele tratou de três modos de objetivação que transformaram o ser huma-
no em sujeito: as práticas discursivas (domínio do saber), as práticas
disciplinares (domínio do poder) e as confessionais (domínio da ética).
__________________________________________________
2
Segundo Habermas, em O discurso filosófico da modernidade, Foucault desenvolveu sua
tese de que o poder – e não as épistemês – é responsável pela constituição do sujeito, pela
vontade de saber, porque teria ficado “irritado com a afinidade que obviamente existe entre
sua arqueologia das ciências humanas e a Crítica de Metafísica da Idade Moderna de Heide-
gger” (1990, p.251). O conceito de ser não sai da autotematização do sujeito. Discorda-se
aqui dessa interpretação de Habermas, uma vez que a Foucault interessa quais são as regras
de formação dos discursos, ao passo que Heidegger voltou-se a uma interpretação da
história do ser dos entes, a verdade é avaliada pela historicização do ser dos entes. Já
Foucault preocupou-se com as interpretações provenientes de práticas de poder, como
mostrei no último capítulo de Foucault e a crítica do sujeito. Isso não quer dizer que
Foucault não admirasse a obra heideggeriana, que não fosse um leitor atento de Heidegger
(cf. ARAÚJO, 2000, p.197). Em Dits et écrits (v.IV, p.703) afirma: “Todo meu futuro
filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger [...] Tentei ler Nietzsche nos
anos 50, mas Nietzsche sozinho não me dizia nada! Ao passo que Nietzsche e Heidegger,
isso foi um choque filosófico!” (1994, v.IV, p.703).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


Inês Lacerda Araújo — 39

Para tanto, ele procede como um arqueólogo, escava os domínios do


saber de uma época que estão estabilizados em formações discursivas, e
servem como material para a crítica que o genealogista faz do poder
desses mesmos discursos, quando relacionados a práticas não-discursivas,
como as disciplinares, as tecnologias do eu, a normalização.

O procedimento arqueogenealógico

O domínio de trabalho de Foucault (1926-1984), o campo de sua


reflexão, é a história do presente, a questão de como nos tornamos esse
indivíduo que objetivou a si por meio de ciências (As palavras e as
coisas e Arqueologia do saber), esse sujeito dividido em normal e anor-
mal, disciplinado, controlado (História da loucura e Vigiar e punir), e
esse sujeito que forjou tecnologias para constituir um “eu”, uma subjeti-
vidade (História da sexualidade). As marcantes influências em seu
pensamento foram o movimento estruturalista, a história “epocal” do ser
de Heidegger2 e, principalmente, a genealogia de Nietzsche. Da episte-
mologia francesa, ele retirou as noções de descontinuidade, de irrupção,
de acontecimento discursivo, que compõem sua arqueologia.
Para isso, ele analisa os delineamentos, os arquivos do saber de
uma época, tal como se fosse um trabalho de arqueólogo, mostrando
como eles são constituídos de diferentes formas em cada épistemê, de
modo a responder a diferentes necessidades. Um objeto não se encontra
pronto na realidade, bastando ir até ele, descobri-lo, estudar sua organi-
zação interna. Um objeto é armado numa trama de relações nas chama-
das “formações discursivas”, que permitem mostrar seu lugar e seu uso
por um dado saber. Por exemplo: o modo como a loucura entrou no
campo do saber médico faz da loucura objeto de saber; a tendência da
modernidade em “psicologizar” e “medicalizar” as relações humanas
faz da normalidade o parâmetro de avaliação do corpo saudável; o tema
da circulação das riquezas mostra a moeda como meio universal de tro-
ca; o ser vivo, como tendo uma estrutura invisível, dá início à vida como
objeto por excelência da biologia.
Foucault vê o homem como um ser que pensa a si próprio e o
faz de modos diferentes em configurações históricas também dife-
rentes. Daí fazer a história dos diversos modos pelos quais ele pensou
e como esses modos de pensamento se ligam à sociedade, à política,

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40 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

à economia, à história e também a certas categorias bem gerais, bastan-


te distantes de princípios ou formas a priori de uma racionalidade trans-
cendental. Ele não faz uma história das idéias, nem uma história da evo-
lução da ciência, nem sobre se certo pensador ou cientista está correto
ou não. Foucault analisa o modo como o saber se dispõe, vai se consti-
tuindo, fabricando temas e produzindo verdades. Seu objetivo é mos-
trar que, se os saberes foram sendo produzidos, não se deve tomá-los
como simplesmente verdadeiros ou falsos, o que pode interessar do pon-
to de vista epistemológico, mas não do ponto de vista arqueológico. As-
sim, podemos criticar e destruir certas evidências, certas certezas, uma
vez que estaremos desobrigados de comensurar, de fazer ciência.
A partir de fins dos anos 1960, com Ordem do discurso e textos
preparados para as aulas no Collège de France, reunidos numa edição
italiana sob o título de Microfísica do Poder, Vigiar e Punir e História
da Sexualidade, Foucault adota o procedimento genealógico, o qual se
mostra mais apropriado para pensar certas práticas, como a loucura
(mesmo sendo História da loucura anterior, nela o poder já era ques-
tão), a medicina, a prisão, a sexualidade. Trata-se de práticas não dis-
cursivas que sujeitam os indivíduos a mecanismos de poder; o indivíduo
moderno “nasce” de relações de saber e poder; os sistemas filosóficos e
as ciências, especialmente as ciências psicológicas e as ciências bioes-
tatísticas, que são vistas pelo ângulo epistemológico e consideradas como
métodos de conhecimento, para Foucault, em contrapartida, são um pro-
duto de certas transformações históricas. O genealogista aborda as
práticas que tomam o ser humano como objeto de estudo científico, cujo
resultado é a formação de um novo tipo de saber. Esse saber, afirma
Foucault, “é organizado em torno da norma que possibilita controlar os
indivíduos ao longo de sua existência. Essa norma é a base do poder, a
forma do poder/saber que dará lugar não às grandes ciências da obser-
vação [...], mas àquelas que chamamos de ‘ciências humanas’: Psiquia-
tria, Psicologia, Sociologia” (1994, p.595).
Entendemos, ao contrário da maioria dos estudiosos de Foucault,
que o procedimento genealógico não substituiu a descrição arqueológica,
isto é, não dispensou o uso dela, porque o tema do poder já estava pre-
sente na descrição arqueológica dos discursos. O procedimento arqueo-
lógico continua apropriado para circunscrever as práticas discursivas,
enquanto o genealogista relaciona-as às demais práticas. Dentre os es-
tudiosos que consideram haver duas fases distintas na obra de Foucault,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004
Inês Lacerda Araújo — 41

estão Habermas, que, em O discurso filosófico da modernidade, in-


siste na diferença entre as abordagens arqueológica e genealógica; Eri-
bon que, em sua biografia, afirma que o foco deslocou-se “da ordem do
discurso para as práticas sociais” (1990, p.218); Merquior, o qual susten-
ta que “agora, o nome do jogo é o poder” (1985, p.128); a mesma inter-
pretação é dada por R. Machado, como se depreende de sua Introdução
à coletânea Microfísica do poder, onde mostra que a arqueologia expli-
ca como os saberes aparecem e a genealogia é uma análise do “porquê”
desses saberes; e Ternes, que diz que Arqueologia do saber e A ordem
do discurso, marcam o “fim de um período” (1998, p.97).
Consideramos Foucault um arqueogenealogista, isto é, nele a fun-
ção do arqueólogo não desaparece, porque o tema central não é o poder,
como ele afirmou em entrevista a Dreyfus e Rabinow, e sim o sujeito, e,
para dar conta desse tema, continua a analisar as formações discursivas,
mesmo após a virada genealógica, considerando-as material fundamen-
tal para o genealogista trabalhar. Isso implica que Foucault descreve o
modo como um objeto se delineia para o saber, e, em seguida, esse ma-
terial é interpretado genealogicamente. Seguimos a tese de Dreyfus e
Rabinow, que consideram que Foucault elabora uma análise interpretati-
va, em que o arqueólogo usa as formações discursivas como meio para
isolar temas, conceitos, objetos de análise, os quais serão tratados pelo
genealogista, que localiza essas práticas e considera o seu papel para
disciplinar, normalizar, medicalizar. Eles propuseram essa hipótese ao
próprio Foucault, que concordou com ela. A arqueologia é posta a servi-
ço da genealogia, especialmente em suas últimas obras, e assume uma
nova feição, a de “reconstrução de sistemas de práticas que possuem
uma inteligibilidade interna [...] a racionalidade interna dos discursos e
das práticas que ela estuda” (DREYFUS e RABINOW, 1984c, p.351).
O procedimento arqueogenealógico é crítico por excelência, mos-
tra que aquilo que tomamos por evidente e certo foi saber produzido, tem
um lugar, uma marca. Por isso mesmo, pode ser criticado, transformado
e até mesmo destruído. Foucault considera que a filosofia pode mudar
alguma coisa no espírito das pessoas. Aquilo que se toma por óbvio é
fruto de um certo tipo de dominação, embutida em saberes que carre-
gam poderes, e que a própria humanidade produziu. Esse é o trabalho do
genealogista, crítico do presente, desestabilizador das evidências. Não
há necessidades universais na existência humana. Tal como Nietzsche,

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


42 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

o filósofo/historiador vê o lado cinza da história. Enquanto a história tra-


dicional é finalista, contínua, progressiva, para o genealogista, não há
essências fixas, leis de base, nem verdade fundamentada em moldes
metafísicos. As recorrências, os jogos localizados dispensam a busca de
um sentido mais profundo, causal. Seu olhar contempla a superfície, de-
tectando nossas máscaras, atento a detalhes, a minúcias.
O sujeito moderno é fruto de certas interpretações, que, muitas
vezes, cristalizam-se em essências, que provêm de práticas. Como não
há o segredo, pois tudo é já interpretação, o arqueogenealogista não é
um exegeta, quer dizer, não faz hermenêutica, não busca o sentido
escondido, nem a proliferação de sentido, porque as interpretações fo-
ram impostas e os limites são elas mesmas que traçam, mediante re-
gras, institucionalização de práticas, estabilização de sistemas, cujo fun-
cionamento cria valores, saber, poder. O genealogista faz a história
dessas interpretações, e o que ele analisa e deixa à mostra não é a
verdade, mas sim as dispersões, os acidentes, os erros, as “velhas
mentiras”, como expressa Nietzsche.
As instituições são arbitrárias, criadas, daí haver espaço para a
liberdade, para a criação, para a crítica e para certas mudanças. Por
exemplo, cabe questionar o hospital psiquiátrico, a prisão, a cientifici-
zação das relações humanas, a disciplinarização da escola etc.
Por isso, Foucault não é um filósofo sistemático, pois se ocu-
pou com a história de certas práticas discursivas e não-discursivas,
mostrando que têm sua proveniência e que, portanto, decorrem de
certas medidas (jurídicas, técnicas, científicas). Elas são produzi-
das por certos mecanismos de saber, e são, ao mesmo tempo, o
alvo desses saberes. Sua crítica voltou-se para as práticas psicoló-
gicas, médicas, penitenciárias, pedagogizadoras, para as práticas
autoritárias, para as medidas que garantem governabilidade (aquilo
que os administradores têm chamado de “gestão”), cujas conseqü-
ências mais evidentes são modos institucionalizados que nossa so-
ciedade tem de excluir, marcar, confinar. Enfim, trata-se de práti-
cas discursivas produtoras de saber, em suas relações com as prá-
ticas não-discursivas, que produzem poder. Elas formam um certo
modelo de humanidade, uma idéia normativa do comportamento hu-
mano, que passa por universal. Ora, o comportamento humano é
particular, circunstancial.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


Inês Lacerda Araújo — 43

Por subjetividade, a maioria das pessoas entende uma espécie de


eu estável, responsável pela identidade, algo profundo, pessoal, intrans-
ferível. Foucault, em contrapartida, analisa a subjetividade como uma
construção relacionada a modos ou técnicas de si, provenientes de cer-
tos fatores e mudanças culturais. Assim Foucault foi, e provavelmente
ainda é, 20 anos após sua morte, um filósofo que provoca polêmica,
muitas vezes rejeição, porque seu pensamento põe em xeque conceitos
e categorias que aceitamos sem exame crítico.
Foucault perturba com esse seu estilo cáustico de pensar. Alguns
consideram que ser filósofo é ser racional, ora, Foucault estudou a lou-
cura (irracional), logo, não merece assento no tribunal da razão. O filó-
sofo não responderia, provavelmente, reservaria o riso silencioso de quem
apenas considerou imprescindível criticar a cultura moderna, por meio
da análise das formas históricas que produziram certos jogos de verda-
de, responsáveis pelo sujeito moderno. As filosofias do sujeito, como
veremos logo mais, fracassaram, porque não produziram novidades no
campo do saber e porque, como filosofias do sentido, não deram conta
de como os sistemas de sentido e as significações formam-se. Já as
filosofias da linguagem e o estruturalismo representaram uma saída inte-
ressante para os impasses provocados pelas filosofias do sujeito.
Foucault não pertence a nenhuma dessas escolas ou opções teóri-
cas, sua questão principal, como ele não cansou de dizer em várias en-
trevistas, foi a questão da genealogia do sujeito moderno, como realidade
histórica e cultural, sujeito suscetível de se transformar. O projeto que
resume suas obras é o seguinte:

a) Exame das teorias do sujeito como falante, vivo e produtor. As


ciências humanas produziram jogos de verdade, objetivaram o ho-
mem por meio de ciências que não são ciências humanas, a biolo-
gia (vivo), a economia (produtor) e filologia (falante);
b) Estudo de instituições que fizeram dos sujeitos objetos de domina-
ção, normalização, exclusão;
c) Análise das formas de subjetivação, na relação de si para consigo,
as chamadas tecnologias de si, produção de verdade, saber e poder
acerca de si mesmo.

Afirma Foucault em Dits et Écrits (1994, v.IV, p.75): “No curso de


sua história, os homens não cansaram de se construir a si mesmos, isto é,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004
44 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

de deslocar continuamente sua subjetividade, de se constituir através de


uma série infinita e múltipla de subjetividades diferentes e que não terão
fim, e não nos colocarão jamais diante de algo que seria o homem”.
Percorreremos essa trajetória em três momentos: o do saber; o do
poder, da verdade e sexualidade; e, finalmente, o do domínio da proble-
matização da ética e estética, ligados à questão da sexualidade. Essa
relação da ética e dos estilos de viver, por ele chamados de estética ou
estilística da existência, com a sexualidade, geralmente causa estranhe-
za. Para Foucault, sexualidade não é impulso biológico, mas faz parte ou
deveria fazer parte de estilos de existência pautados por atos de liberda-
de, que não poderiam deixar de ser atos éticos.

O saber: crítica às filosofias do sujeito

Em As palavras e as coisas, Foucault ilustra o modo de saber do


século XV-XVI, com as formas subterrâneas, animalescas, demoníacas
da pintura de Bosch. As coisas falam, e os signos estão nas coisas, bastan-
do um olhar decifrador para descobrir as simpatias e antipatias que reinam
no mundo. É impossível que o homem, como sujeito que conhece e como
objeto de um saber, figurasse nesse mundo mágico, fantástico. Quando, no
século XVII, Descartes analisou o cogito, o eu penso, tampouco estava
falando do homem. Las Niñas de Velásquez traduz a epistémê, ou seja, a
configuração do saber clássico: é representada num quadro a cena do
pintor em seu estúdio, em pleno ato artístico. A representação, isto é, a
tradução num discurso daquilo que o pensamento vê, enquadra, ilumina
com sua racionalidade e capacidade analógica, ordena o caos do mundo.
Representar exclui justamente a possibilidade de qualquer interrogação
acerca daquele para quem o quadro é exibido. De fato, o pintor auto-
retratado ignora o espectador, aquele que dá sentido àquilo que vê. Kant,
já no limiar da modernidade, é quem pensou que há um sujeito de conheci-
mento que organiza, por meio de formas, a experiência. Ainda assim, aquele
que conhece é um sujeito universal, o eu é transcendental.
Foi necessário surgir, em fins do século XVIII, ciências acerca da
vida (Biologia), do trabalho (Economia Política) e da linguagem (Filolo-
gia), para que alguém encarnado, produtor e falante pudesse servir como
objeto de saberes que o objetivam, que organizam, em torno da figura
homem, todo um conhecimento e que, ao mesmo tempo, mostram que
aquele que conhece é concreto, finito, mutável, histórico.
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Inês Lacerda Araújo — 45

No lugar do “eu penso” de Descartes, há, para ser pensado, o


homem vivo, trabalhando e significando. O homem é o “estranho par
empírico-transcendental”, pois aquilo que permite conhecê-lo como fi-
nito, empírico, não fornece nenhuma certeza, ao contrário, mina, cor-
rói, uma vez que são formas também elas finitas. Sua história é de luta.
Sua forma de pensar é determinada pela sua vida finita, à qual ele
jamais poderá aceder absolutamente, uma vez que o incognoscível, o
inconsciente, o inatual impedem qualquer acesso livre ao cogito. Não
pode igualmente, encontrar uma origem primeira, pois é histórico. A
percepção dessa tensão conflituosa é crítica, ao contrário das filosofias
antropologizantes, ou seja, as filosofias do sujeito (fenomenologia e o
existencialismo; o positivismo; o marxismo); elas tomam o vivido, a
história como explicação do homem e a produção humana, como fun-
dadores do sujeito, determinantes daquilo que é o sujeito. Isso é uma
incongruência, pois o material que a história produz e fornece para a
análise será inexoravelmente histórico, isto é, condicionado pelo co-
nhecimento e condicionante do conhecimento. Seria preciso supor um
sujeito supra-histórico para doar sentido último e definitivo. Ora, o su-
jeito é constituído por práticas, muitas vezes, mesquinhas, pequenas,
que variam. Desconhecer que os produtos humanos não podem servir
de fundamento ou de decifração de uma suposta essência humana,
ignorar os jogos de verdade que nos constituem, afirmar como os exis-
tencialistas que o homem é liberdade, tudo isso leva a trapacear, iludir,
mistificar a própria condição humana. O homem pode e deve exercer
a liberdade, ao se constituir, e não porque ele seja liberdade em sua
essência. Para Foucault, ao contrário do que pensa Sartre, não há uma
essência humana, que seria sua existência, entendida como condição
ontológica fundamental.
Essas observações permitem compreender o papel do estruturalis-
mo como “consciência inquieta” de nossa época, uma vez que as novas
ciências, chamadas por Foucault de “contraciências”, a Psicanálise, a
Etnologia e a Lingüística, são ciências da estrutura, daquilo que estrutura
o homem, portanto, acabam por dissolver o homem como lugar de ori-
gem da consciência. As estruturas, o inconsciente, a própria linguagem
falando, o discurso do doente, nada disso pode ser considerado o “sujeito
mesmo”. Foucault mostra que o movimento estruturalista foi como essa
novidade no panorama intelectual e político das décadas de 1950 e 1960,

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46 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

servindo de oxigênio com relação às filosofias do sentido, da exis-


tência como essência, das experiências vividas e organizadas por
um eu transcendental.
Nesse sentido, o estruturalismo funcionou como aguilhão crítico
aos humanismos redentores. Às filosofias do sujeito, Foucault contra-
põe o concreto, a racionalidade, a análise do surgimento de formas de
saber que constituem o sujeito. Após Schopenhauer, Nietzsche, Freud,
o problema do sujeito tornou-se imperioso. Se pensarmos que, para o
existencialismo de Sartre, não há inconsciente (Sartre chegou a afir-
mar que o estruturalismo “é o último refúgio da burguesia”), podemos
melhor avaliar o que representou Lacan, afirmando a dependência do
sujeito quanto a significantes. Lacan mostrou a inutilidade das filoso-
fias do sujeito, ao analisar os mecanismos do inconsciente. É ingênuo
pensar numa essência humana, fixa, sem condicionamento, mesmo
porque há diversas culturas, como mostrou Lévi-Strauss, nas quais
funcionam regras, o que prejudica definitivamente a visão hegeliana
de uma racionalidade crescente; prejudica igualmente a busca de uma
essência para o homem (esteja ela na existência, no modo de produ-
ção ou mesmo no dasein).
Desse modo, não há como ater-se ao Mesmo, às identidades, ao
sujeito como categoria, como mente, como razão. Sartre, ao postular o
sujeito livre, doador de sentido ao mundo, não tem como explicar por
que, então, esse sujeito nunca se realizou plenamente! Foucault, em con-
trapartida pergunta: O sujeito é a única forma de existência possível?
Não haverá outras experiências nas quais não mais é dado o sujeito?
Não há experiências que possam quebrar a relação consigo na busca de
uma identidade última, de um “eu profundo”? Por que, pergunta-se Fou-
cault, não voltar sempre, não buscar sempre?
Para Foucault, há regras que constituem tanto o sujeito como o
objeto. A loucura como objeto do saber médico-científico somente surgiu
no século XIX, e a esse objeto correspondeu a construção de um sujeito
“razoável”, único, que pode conhecer a loucura. Ora, esse saber não é
inocente. Nele funciona um certo tipo de poder, e o saber/poder opera
uma nova relação do sujeito consigo, uma nova subjetividade. O sujeito
modifica-se por meio daquilo mesmo que ele conhece, o que pode levar
a construir novos objetos e novas formas de subjetividade, isso tudo em
meio a modificações históricas, sociais e culturais. No caso da loucura,

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


Inês Lacerda Araújo — 47

por exemplo, o controle das populações por parte do Estado, o capitalis-


mo crescente e a urbanização produziram o espaço médico do asilo, que
implica saber e poder do médico, objetivando a loucura como doença.
Ora, essa é uma modificação na ordem do saber e também das funções
dos discursos médicos.

O poder como estratégia: controle do corpo como controle da “alma”

Há um novo modo de subjetivação, a partir da segunda metade


do século XVIII. Seu ponto de partida é a análise de como os ho-
mens, em sua história, relacionam-se uns com os outros, produzindo
verdades que acabam por ser um instrumento para a exclusão, a nor-
malização, a dominação, a disciplinarização, a vigilância, a punição.
Para ajustar a população crescente aos mecanismos de produção
capitalista, surgiu um novo tipo de poder, um poder relacional, produ-
tor de uma anatomopolítica dos corpos. Seu resultado é o indivíduo
disciplinado, corrigido, examinado, vigiado, de modo tal que ele possa
exercer suas atividades com o mínimo de dispêndio de energia e o
máximo de eficácia. Seu corpo, sua anatomia, tem serventia política,
torna-se máquina de produzir. Ao mesmo tempo, a biopolítica tece
mecanismos de regulação das populações, pelo controle de taxas de
natalidade, políticas de saúde pública e outras práticas que transfor-
mam a sociedade em uma eficiente máquina de produção. Nessa
sociedade disciplinar, a sexualidade não tem o papel de liberar, de
acabar com a repressão sexual. Pelo ângulo de um poder concebido
como exclusivamente repressivo, num modelo tradicional, jurídico-
político, é possível considerar o indivíduo como esmagado e sua indi-
vidualidade destruída. Não é esse o ângulo de Foucault. Para ele, o
sujeito é constituído, há um tipo de poder relacional que produz o
indivíduo como sujeito, em dois sentidos: sujeitado ao saber do outro
e podendo pensar a si mesmo como sujeito.
O modelo jurídico-político-formal de poder não dá conta do fun-
cionamento dos mecanismos da sociedade disciplinar e da vontade de
saber e de como, ao se modificarem as relações de poder, um novo
tipo de subjetividade foi forjado. Ao analisar os mecanismos de poder,
a pretensão de Foucault não é, como muitos apressadamente concluem,
explicar tudo pelo poder. Nesse momento crítico, Foucault inverte
sua relação com a psicanálise, com Freud e também com Lacan.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004
48 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

Como entender que, em vez de a psicanálise servir ao discurso crítico,


como observa Eribon, ela passe a alvo do discurso crítico? Foucault ana-
lisa, em História da loucura e especialmente História da sexualida-
de, o modo como o saber sobre o sexo, o saber de cunho científico sobre
o sexo e o papel das verdades resultantes forma um tipo de subjetividade
que depende de uma tecnologia do eu de estilo confessional, calcado
num modelo de saber médico-científico.
A psicanálise, ou, pelo menos, um certo modo de praticá-la, insta
a dizer a verdade sobre o seu “eu” mais recôndito, determinante, aqui-
lo que há de mais obscuro em seu si próprio, o sexo. Esse discurso
“promete ao mesmo tempo nosso sexo, o verdadeiro, e toda essa ver-
dade acerca de nós mesmos que está desperta nele [no sexo]”, diz
Foucault em Dits et écrits (1994, v.IV, p.118). Nessa nova perspecti-
va, ele critica a proposta de um Reich ou de um Marcuse, de que “des-
reprimir” o sexo é liberar, é libertar, é desalienar. Foucault desconfia
de que, dessa política da revolução pela liberação sexual pressuponha-
se, erroneamente, que é possível ao sujeito humano ser livre e que essa
política de libertação/liberação anularia o poder. Para um genealogista,
isso soa no mínimo como bizarro, pois o poder sobre a sexualidade não
é sufocador ou repressivo, e sim fabricante, forjador de uma subjetivi-
dade. O poder aliado ao saber não pode ser considerado exclusiva-
mente pela sua força sufocadora. Ele é mais sutil e, de certa forma,
mais violento, posto que é invisível.
Assim, em História da sexualidade (v.I, A vontade de sa-
ber), Foucault propõe um novo modo de pensar o discurso da psica-
nálise, como sendo criador de um novo tipo de subjetividade, aquela
de um sujeito subjetivado por práticas voltadas de si, uma técnica de
si típica da modernidade. A confissão constitui um sujeito sujeitado
ao saber do outro que o analisa, que o conhece, pois mostra qual é a
verdade do analisando, de modo que, por ser instado a dizer o sexo, a
colocá-lo em um discurso para dele extrair a verdade do sujeito, aca-
bou por produzir um discurso, ao mesmo tempo da terapia e do jogo
de verdade, pois há de dizer tudo, nada esconder, há de ser veraz.
Esses saberes acerca de si favoreceram a tomada do indivíduo pela
sociedade disciplinar como alguém passível de cura, inserção no diag-
nóstico, normalizável, pronto a responder de modo eficiente aos siste-
mas, principalmente ao da produção.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


Inês Lacerda Araújo — 49

Pode-se, com razão, objetar que Lacan nunca pretendeu liberar,


libertar, chegar ao eu mais profundo etc. A psicanálise mudou seu dis-
curso, pois mudou a concepção de desejo, visto não mais como puro
instinto sexual, tal como concebido por Freud, mas como falta, castra-
ção. Mas, se, com Lacan, muda a concepção de desejo, não muda a
concepção de poder, entendido como lei, obrigação. Em outras palavras,
Lacan critica o discurso da repressão, de um Marcuse, de um Reich.
Está-se sob a Lei, a Palavra, o Significante. A lei é constitutiva, instaura
o desejo, o sexo é “afirmado”, dito. O desejo vem junto com o poder, o
sujeito está sob o poder da lei, da interdição.
Ora, Foucault justamente critica o contrapor ao sujeito um poder
de tipo jurídico, como instância da lei, que, nesse caso, não é a lei institu-
cionalizada do direito, mas lei psíquica, de qualquer forma, lei, portanto,
intransponível. Nesse sentido, o poder soberano, de estilo jurídico, foi e é
bastante influente, porque o crescimento do Estado em grandes propor-
ções deveu-se, em grande medida, ao poder do direito, poder jurídico que
o sustenta. Até hoje, o poder é assim representado, como impondo pela
lei. Contudo, esse poder não funciona sem micromecanismos, sem pode-
res locais. Ao olhar do genealogista, o poder produz e funciona de modo
relacional. Por isso, não se pode ir a ele, a resistência não lhe é exterior.
Foucault mostra que é preciso pensar o sexo sem a lei e o poder sem o
rei, como resume em A vontade de saber. A política seria resistir e não
se libertar, denunciar o dispositivo histórico-cultural da sexualidade. O
“sujeito de desejo” é uma invenção histórica, no lugar de uma análise do
desejo, é preciso afirmar os corpos e os prazeres. Pode ser, inclusive,
que, investindo em prazeres, surja um novo modo de desejar ou de pen-
sar o desejo, surjam novos tipos de subjetividade, enfim, é possível trans-
formações com relação à subjetividade.

A ética dos atos de liberdade

Ao lado das técnicas de comunicação e significação, de pro-


dução e de dominação, em todas as sociedades, há técnicas para
agir sobre os corpos, a alma, os pensamentos, as condutas, para
apreciá-las, modificá-las.
Foucault analisa as práticas de si dos gregos na época clássica como
suscetíveis de conduzir o indivíduo, pelo bom uso dos prazeres, a uma bela
e compensadora vida. Mais tarde, os estóicos propuseram cuidar de si,

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50 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

cuidar da alma, como tarefa para toda a vida, meditar, armar o sujeito de
uma verdade sobre si, por meio da escuta de conselhos. Observe-se que
não se trata de chegar ao que o sujeito é mesmo, mas refletir para que
sua vida e aquele seu dia fosse proveitoso. A confissão no cristianismo
foi outras dessas práticas em que o “conhece-te a ti mesmo” exigia um
exame de atos, sonhos, desejos, uma hermenêutica de si voltada para a
elisão dos pecados da carne e da concupiscência. Uma vida ascética
levaria a alma à vida eterna. A moral do cristianismo codifica o que é
permitido e o que é proibido, levando a uma ética da renúncia de si.
Santo Agostinho aconselhava a dominar a libido, numa moral sexual
com obrigações restritivas, o que mostra um tipo de constituição da
subjetividade, em dependência de um auto-exame e de um comporta-
mento rigidamente regrado.
Mais uma vez, temos Foucault mostrando que tudo se dá na super-
fície histórica de práticas criadas por necessidades humanas. Nos dois
últimos volumes de História da sexualidade, a abordagem volta-se para
a problematização da ética. Para ele, ética implica não códigos ou regras
morais, mas a constituição de um sujeito moral, por meio de seus atos,
importando a atividade e a reação pessoais, a conduta que requer auto-
nomia, e não a obrigação a um universal “tu deves”.
Assim, a substância ética, isto é, a relação consigo mesmo, entre
os gregos, eram os prazeres, o corpo saudável, o bom uso desses praze-
res, e não a sexualidade. Era preciso cuidar, não desperdiçar o simples e
direto desejo, realizado de modo que o indivíduo não perdesse o controle
de si, pois se autogovernar é também saber governar a polis. O prêmio,
evidentemente, não é a vida eterna, mas cuidar de modular os prazeres a
fim de exercitar-se em uma vida exemplar.
Para os gregos, era preciso fazer de sua existência uma bela
existência, sem os constrangimentos de regras impostas para compor-
tar-se. Por exemplo, é virtuoso aquele que é fiel a sua esposa, não
porque há uma regra imposta, mas porque, para ter uma bela existên-
cia, vale mais governar-se a si próprio; sem autodomínio, o cidadão
torna-se inapto e indigno de bem governar os outros. O modo de sujei-
ção à regra vem de uma escolha pessoal, que modula essa regra. Mui-
to diversamente, a partir do cristianismo, a fidelidade passou a ser uma
obrigação legal, jurídica, justificada pela religião. A substância ética
para os cristãos era a carne e, para nós, modernos, ocidentais, são os
sentimentos, a sexualidade.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004
Inês Lacerda Araújo — 51

Hoje, desapareceu a austeridade do código moral, mas, em com-


pensação, há uma relação entre a obrigação legal e a abordagem médi-
co-científica. Não há mais uma verdade cultivada por um modo ou estilo
de viver, mas uma verdade produzida por um saber/poder. Confessar,
desde os cristãos, passou a valer como purificação, revelação do escon-
dido, dizer o não-dito. Decifrar sua verdade faz parte do si mesmo mo-
derno. Há uma cultura de si em certos meios dos EUA e da Europa, em
que se chega ao verdadeiro eu, depois de depurá-lo das alienações, deci-
frando sua verdade, “graças a uma ciência psicológica ou psicanalítica
que pretende ser capaz de dizer a você qual é o seu verdadeiro eu”,
afirma Foucault, em Dits et Écrits, (1994, v.IV, p.402). Ele chama-a de
cultura de si californiana.
A psicanálise difundiu-se na sociedade moderna diz ele, em Dits et
Écrits (1994, v.IV, p.665), como “técnica de trabalho de si para si funda-
da na confissão”, o que, se não diz tudo sobre a psicanálise, mostra como
ela se difundiu. Assim vista, trata-se de uma técnica de si, em tudo diver-
sa de uma estilística da existência, pois está sob o signo do ter de dizer,
da verdade produzida por um saber cujo poder é o de investir num certo
tipo de controle dos corpos e das populações, uma anatomopolítica e
uma biopolítica. Cria um personagem se estruturando em torno do exa-
me de seus desejos sexuais, o que pode ajudar as pessoas, um pouco,
como o xamã ajuda aquele que nele acredita, disse Foucault numa entre-
vista. Note-se que estar ligado a jogos de verdade, dos quais decorre
poder (a psiquiatria, por exemplo) não invalida a eficácia terapêutica,
mas tampouco a garante e nem mesmo exige o apelo exclusivo a ela.
Foucault contrapõe a essa cultura da vontade de verdade uma éti-
ca do cuidado de si como prática da liberdade. Em lugar de jogos de
verdade com pretensão ao conhecimento decifrador que prende o sujei-
to à verdade depositada no sexo, propõe uma estilística da existência. A
libertação ou liberação de um domínio, a luta política, é sempre necessá-
ria, mas a liberação sexual, por si só, não garante atos de liberdade,
porque os atos de liberdade dizem respeito a atos éticos, que devem
surgir de uma relação com os outros livre para a prática e invenção de
tipos de subjetividade que conduzam a novas formas de vida, a existên-
cias cujo estilo seja a criação, como se cria livremente uma obra de arte.
Como fazer ou o que fazer para aceder a um modo de ser, a um belo e
bom estilo de viver? Aí são necessários atos refletidos de liberdade, sem
os quais não há ética, isto é, um modo de relação de si para consigo.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004
52 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

Liberar-se para praticar sem amarras a sexualidade não basta para


um relacionamento de si para consigo completo e feliz. A leitura rei-
chiana de Freud supõe erradamente que:

[...] o problema era inteiramente da ordem da


liberação. Para dizer as coisas um pouco es-
quematicamente, haveria desejo, pulsão, inter-
dito, repressão, interiorização, e fazendo ultra-
passar esses interditos, quer dizer, liberando-
se, que se resolveria o problema. E aí creio que
se erra totalmente – e sei que caricaturo aqui
as posições muito mais interessantes e agudas
de numerosos autores – o problema ético que é
o das práticas da liberdade: como é que se pode
praticar a liberdade? Na ordem da sexualida-
de, é evidente que é liberando seu desejo que
saberemos como conduzir-nos eticamente nas
relações de prazer com os outros (FOUCAULT,
1994, v.IV, p.711).

Logo, adianta afirma que a ética nada mais é do que a “prática


da liberdade, a prática refletida da liberdade”.
Como ela anda escassa, esquecida, talvez seja preciso aviven-
tar um pouco o estilo grego ou o estilo estóico, para os quais faz
sentido uma vida exemplar, bela e boa, não para o prêmio eterno, não
para chegar às profundezas de um eu, mas para construir, moldar um
estilo seu de ser. Nós modernos esquecemos

[...] a idéia segundo a principal obra de arte da


qual é preciso cuidar, a zona preciosa na qual se
devem aplicar valores estéticos, é si-mesmo, sua
própria vida, sua existência (1994, v.IV, p.402).

Na sociedade disciplinar, a sociedade da norma e da extração


da verdade de si como via única para a subjetividade, Foucault não
vê uma saída ou solução revolucionária para essa questão, pois po-
deres locais somente podem ser combatidos com lutas locais. Sua
proposta é resistir a esses poderes, saberes, verdades, discursos.
Desejos, prazeres e atitudes devem ser afirmados por atos de liberdade.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


Inês Lacerda Araújo — 53

O conhece-te a ti mesmo e o cultivar-se a si mesmo não precisam pas-


sar pelo crivo de ciências, de especialistas, na cura e na normalização.
A estética da existência dos últimos escritos de Foucault mostra
que nossas existências devem ser permeadas por uma arte de viver.
Como a sexualidade pertence à conduta, ela também faz parte da
liberdade, algo que pode ser moldado criativamente e não uma pulsão
instintiva a nos governar e que nós teríamos de sublimar. Ao contrá-
rio, os desejos são capazes de inspirar modos ou estilos de vida e,
assim, novas formas de nos relacionarmos.
Diz Foucault em Dits et Écrits (1994, v.IV, p.737): “O sexo não
é uma fatalidade; é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa”.
É possível criar novas formas de vida, de relacionamentos, de amiza-
des, tanto na sociedade como na arte, na cultura, bem como novas
formas vindas de escolhas de estilos, de preferências sexuais firma-
das não como lugar do desejo, mas de prazeres, de éticas e de políti-
cas diferenciadas, alternativas. Ele propõe políticas de afirmação da
identidade como força criadora. Pode-se pensar em outros tipos de
prazer que não sejam apenas o sexual, mas vindos da arte, por exem-
plo, ou de um certo estilo cultivado de viver, em vez de simplesmente
liberar o desejo, criar prazeres novos.
A resistência às relações de poder flui de “práticas refletidas
de liberdade”, condutas éticas, existência esteticamente prazerosa,
o que não significa cultura ou moral hedonista, mas, ao contrário,
estilo temperante, moderado, equilibrado, refletido.
Se há uma trama de relações de poder é porque há resistência
e, por isso mesmo, liberdade em tudo. Os estados maciços e com-
pactos de dominação econômica, social, institucional sustentam-se e
reproduzem-se, por penetram nas relações mais insuspeitas, como a
do médico com o paciente, do professor com o aluno, do terapeuta
com o analisando, do instrutor com o exercício do corpo, do psiquia-
tra com o louco, do vigia ou treinador com o funcionário, do policial
com o encarcerado. Todavia, justamente aí, os estados de dominação
produzem brechas que dão margem para que se possa resistir a es-
ses saberes e poderes e, eventualmente, transformá-los.
O ser humano é livre para inventar estilos, resistir, ser soberano
e dono de seus atos e modos de pensar, e isso é possível pela
constituição de uma subjetividade ético-estética, cuja medida é esta-
belecida por si mesmo, numa espécie de luta interna, uma agonística.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004
54 — Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

Ela não serve para apagar desejos e prazeres, mas para estabele-
cer, para si mesmo, o se quer, como se quer e o quanto se quer.
Esse domínio exercido sobre si não vem do saber nem do poder de
um outro, não é ditado de fora, não é imposto. É guiado e sugerido
por técnicas de si, pode levar a uma transformação da pessoa e
representa liberdade, criatividade, enfim, uma boa e bela vida.
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UFPR, 2000.
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Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
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TERNES, José. Michel Foucault e a idade do homem. Goiânia:
UFG, 1998.

(Recebido em outubro de 2003 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.37-55, abril de 2004


A modernidade sob o prisma da tragédia:
um ensaio sobre a singularidade da tradição
sociológica alemã*

Adélia M. Miglievich Ribeiro1


Brand Arenari2
Universidade Estadual do Norte Fluminense

Resumo Abstract

Discorrer sobre as tradições To discuss traditions of thou-


do pensamento na sociologia obri- ght require analyzing choices and
ga a uma análise das escolhas e epistemological formulations from
elaborações epistemológicas a par- the point of view of cultural influen-
tir das influências culturais que cada ces that each tradition receives.
tradição sofreu. A sociologia, en- Sociology considered as a way of
quanto olhar sobre o mundo surgi- viewing the world as it emerged
do no processo da modernidade, é during Modern times is one of such
também um de seus produtos. Do products. Just as Jessé Souza
mesmo modo que Jessé Souza (2000), who maintains that there
(2000) afirma que não há Moder- is no Modernity, but Modernities,
nidade, mas modernidades, afir- it is argued here that there is no
__________________________________________________
*
Modernity from the standpoint of tragedy: an assay on singularity in german sociological tradition.
1
Endereço para correspondências: Universidade Estadual do Norte Fluminense, Laboratório
de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA), Rua Alberto Lamego, 2000, Pq. Califórnia, CEP
28015-620 (brand_arenari@hotmail.com).
2
Endereço para correspondências: Universidade Estadual do Norte Fluminense, Laboratório
de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA), Rua Alberto Lamego, 2000, Pq. Califórnia, CEP
28015-620 (adeliam@sky.com.br).

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58 —A modernidade sob o prisma da tragédia

mamos que não há Sociologia e sociology, but sociologies. Ger-


sim sociologias. A tradição do pen- man tradition in sociological thou-
samento sociológico alemão com- ght provides one of the most im-
põe uma das mais importantes ma- portant matrixes to sociology. The-
trizes da sociologia. As singularida- re are certain singularities in its
des contidas no processo de sua process of development, which
formação legou um olhar radical- furnishes a radically original view
mente original sobre a realidade. A of reality. Bearing these ideas in
partir disso, este trabalho tem por mind, this paper aims at briefly
objetivo analisar brevemente os ele- analyzing the elements that made
mentos que tornaram a tragédia o tragedy the common feature that
traço comum que une os seguintes brings together the following clas-
pensadores clássicos do surgimen- sical authors who discussed the
to da sociologia moderna na Ale- rise of modern sociology in Ger-
manha: F. Tönnies (1855-1936), G. many: F. Tönnies (1855-1936), G.
Simmel (1858-1918) e M. Weber Simmel (1858-1918) and M. We-
(1864-1920), e que se estende até ber (1864-1920), a list to be ex-
o círculo interno da Escola de tended to the inner circle of the
Frankfurt, sobretudo Adorno e Frankfurt school, especially Ador-
Horkheimer. no and Horkheimer.

Palavras-chave: Teoria social; Keywords: Social Theory; german


sociologia alemã; epistemologia. sociology; epistemology.

A modernidade e o espírito da tragédia

A ntes de entrarmos na problemática acerca da sociologia nascida


sob o signo da tensão, tradição e modernidade na cultura alemã,
cabe tecer breves comentários a respeito do conceito de tragédia que
escolhemos como explicativo, em grande medida, da conformação des-
sa disciplina no cenário germânico, que funda uma linhagem nas ciências
sociais, a qual tem sido impressionantemente revista e reatualizada, so-
bretudo, nas duas últimas décadas, por círculos intelectuais em diversos
países e, também, no Brasil.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.57-77, abril de 2004


Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 59

Isso se faz necessário devido às inúmeras situações em que o con-


ceito de tragédia e, por conseguinte, o conceito de trágico são aplicados
na atualidade. A idéia de algo trágico soa, nas abordagens contemporâ-
neas mais comuns, como um acontecimento com desfecho triste,
um final dramático e necessariamente negativo. Esse conceito de trági-
co também se aplicaria ao uso que dele fazemos em nosso trabalho, e
assim também pode ser entendido, já que os autores aqui estudados dei-
xam transparecer essa possibilidade de fim negativo para a Modernida-
de. No entanto, o conceito de tragédia, na sua essência e originalidade,
não se encerra na simples idéia de algo com desfecho negativo, e isso
remonta a sua origem como gênero literário.

A tragédia, no seu sentido literal, é um gênero


dramático específico de literatura que floresceu
muito raramente na cultura ocidental: na Grécia
antiga. Sobretudo em Atenas no século V a.C., e
então em algumas outras tradições literárias que
foram profundamente influenciadas pelo modelo
grego [...] (MOST, 2001, p.21).

Nas suas interpretações modernas mais sofisticadas, para além


da literatura, a tragédia integra-se ao corpo epistemológico da filo-
sofia representando uma dimensão fundamental da experiência hu-
mana (Ibid., 2001).
Para definirmos o conceito de tragédia, lançamos mão da assertiva
de F. Hölderlin, quando afirma que é o paradoxo o que caracteriza a
tragédia. A tragédia dá-se quando a força ou o evento que deu origem a
algo é a mesma força ou o evento que proporciona o seu crepúsculo, o
seu fim. Em muitas vezes, é algo que se torna impossível, justamente
pelo mesmo motivo que lhe deu a possibilidade de existência.
__________________________________________________
3
A ausência de Karl Marx (1818-1883) no rol dos clássicos do pensamento sociológico
alemão deve-se ao fato de ter sido ele provavelmente o primeiro teórico a se identificar
de maneira significativa com as características mais importantes de todas as três tradi-
ções – alemã, francesa e britânica. Marx, em sua jornada pela Europa Ocidental, distan-
ciou-se do idealismo e do romantismo alemães ou do que designamos como a tradição
genuinamente alemã, isto é, as influências do Strum und Drang. Marx, de seu lado,
aceitou o desafio de usar a razão para estimular a reconstrução da sociedade numa
oposição simultânea às reivindicações do espírito ideal na Alemanha e à ideologia liberal
dos interesses e direitos individuais na Inglaterra. Sua singularidade também está em sua
“paixão social”, bem como nos seus elos com o ativismo popular (Cf. Donald Levine,
Visões da tradição sociológica, p.191).

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60 —A modernidade sob o prisma da tragédia

A questão central abordada neste artigo relaciona-se diretamente


à proximidade entre o conceito de tragédia e a interpretação de mundo
que aqui chamamos “olhar sociológico alemão”. A experiência do pa-
radoxo é a chave da compreensão da Modernidade e conforma uma
sociologia que nasce cônscia da tragédia da Modernidade.
Se existe um traço marcante que une os pensadores clássicos da
sociologia alemã – F. Tönnies (1855-1936), G. Simmel (1858-1918) e M.
Weber (1864-1920)3 –, e que se estende até o círculo interno da Escola
de Frankfurt, sobretudo Adorno e Horkheimer, é a perspectiva trágica
em relação à modernidade. Para eles, a despeito de algumas particulari-
dades, a modernidade apresenta-se como um destino sombrio para os
homens, que se distanciam progressivamente das experiências essen-
ciais da vida, direcionando-se para um mundo completamente reificado,
cujas relações sociais pouco diferiam das relações entre coisas ou má-
quinas, assemelhando-se às relações eu-isso e perdendo contato com as
relações que se assemelhariam às chamadas eu-tu propostas pelo filó-
sofo Martin Buber (1878- 1965).
O elemento que promoveu uma desorganização nas configura-
ções sociais, desencadeando processos que culminam no surgimento da
modernidade é a introdução e o repentino avanço da técnica. A divisão
do trabalho, exaustivamente analisada pela sociologia como o traço mar-
cante da modernidade, está contida no processo do avanço da técnica
que também se relaciona diretamente ao processo de racionalização de
todas as esferas da vida. O advento da técnica, e sua penetração no
cotidiano, é o principal alvo das críticas do pensamento alemão. Esse
advento será o fator elementar que proporcionará a tragédia da moder-
nidade, segundo a sociologia alemã, mesmo que esse argumento nem
sempre apareça de forma explícita na obra dos sociólogos clássicos. A
crítica à técnica aparece de forma mais explícita no pensamento alemão
por meio da filosofia, sobretudo em Heidegger.
A técnica, assim como a divisão do trabalho, faz parte de toda a
história humana, no entanto, há momentos em que o desenvolvimento
tecnológico atinge estágios de avanço repentino sem precedentes, re-
configurando, pois, as formas sociais em interação ou o que mais regu-
larmente denominamos sociedade. A divisão do trabalho radicalizou-se
a partir da revolução industrial, e é dessa radicalização que falam os
sociólogos. Todavia, anteriormente a esse período de radicalização, já
havia ocorrido um “boom tecnológico”.
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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 61

Ao explicar a modernidade, os representantes da sociologia ten-


dem a eleger fenômenos históricos de grande notoriedade, em espe-
cial fenômenos de ordem predominantemente política e econômica,
como a Revolução Industrial e a Revolução Francesa que, sem dúvi-
da, representam emblematicamente a objetivação da modernidade.
Contudo, poucos tratam das microrrevoluções que pululavam no pe-
ríodo pré-moderno (final da Idade Média), fenômenos de tal impor-
tância que sem eles possivelmente não haveria modernidade4.
As microrrevoluções do cotidiano são oriundas do processo
repentino de aprimoramento técnico e, por conseguinte, suas ob-
jetivações envolvem novas tecnologias. Assim vemos surgir o es-
pelho, novos aparelhos para navegação, o relógio mecânico, a im-
prensa, o dinheiro, como destaca Simmel, etc. Como afirmamos
anteriormente, esses novos elementos que “invadem” o cotidiano
desorganizam o sistema anterior e, ao mesmo tempo, reorganizam
uma nova teia social.
No entanto, a crítica ao avanço da técnica sobre todos os as-
pectos da vida não é uma peculiaridade da modernidade, pois, em
outros momentos históricos, experimentamos situações semelhantes
a essas. Essa crítica é algo tão presente na história, que aparece até
mesmo nas nossas raízes arquetípicas mais profundas, ou seja, nas
narrativas mitológicas. Um exemplo é o mito de Prometeu, que relata
a decadência da Idade de Ouro, fruto do castigo dos deuses pela
aquisição humana do domínio do fogo, ou seja, pela introdução da
técnica nas sociedades humanas.
A riqueza da cultura grega pré-filosófica sempre serviu de sub-
sídio para o homem da modernidade interpretar o mundo a sua volta.
As narrativas míticas servem como metáforas sutis para a compre-
ensão da complexa realidade atual. O mito de Prometeu, peça chave
para o entendimento da cosmologia das narrativas mitológicas gre-
gas, permite visualizar um fenômeno que ocorreu repetidamente na
história do mundo ocidental, embora em escalas diferentes.
__________________________________________________
4
Deve-se isso, em grande medida, à hegemonia do ideário iluminista na construção do
discurso sobre a modernidade. O Iluminismo criou sua identidade a partir da oposição à
Idade Média, desse modo, valorizando as idéias e os feitos do próprio “movimento das
luzes” e obscurecendo o que dizia respeito à época anterior, ainda que propulsor de mudan-
ças. A ideologia iluminista devotava à Idade Média apenas o ethos das trevas da ignorância.
Para eles, a modernidade é o seu oposto e nada traria do período anterior.

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62 —A modernidade sob o prisma da tragédia

Como nos conta Thomas Bulfinch, no seu Livro de Ouro da Mito-


logia (2000), Prometeu, o Titã encarregado de cuidar dos homens, rou-
ba o fogo do carro do Sol e o entrega aos homens, causando a ira dos
deuses, que, a partir desse fato, amaldiçoam a humanidade, enviando-lhe
inúmeras desgraças. Os homens que viviam na Idade de Ouro presen-
ciaram a decadência de sua sociedade, que passou a padecer dos males
da corrupção, da violência, da cobiça, dentre outros males que até então
inexistiam. Na Idade de Ouro,

[...] as florestas ainda não tinham sido despoja-


das de suas árvores para fornecer madeira aos
navios, nem os homens haviam construído fortifi-
cações em torno das cidades. Espadas, lanças ou
elmos eram objetos desconhecidos. A terra produ-
zia tudo necessário para os homens, sem que este
se desse ao trabalho de lavrar ou colher (BUL-
FINCH, 2000, p.22).

Na narrativa desse mito, é contado pelos antigos gregos não so-


mente o domínio do fogo, mas a introdução da técnica nas sociedades
humanas, como fica claro neste trecho narrado por Bulfinch:

O fogo lhe forneceu o meio de construir armas com


que subjugou animais e as ferramentas com que
cultivou a terra; aquecer sua morada, de maneira
a tornar-se relativamente independente do clima,
e, finalmente, criar a arte e a cunhagem de moedas,
que ampliou e facilitou o comércio (2000, p. 20).

O desfecho desse enredo, ou seja, a ira dos deuses, amaldiço-


ando os homens pelo fato de dominarem a técnica, e o motivo que
levou os deuses a agirem dessa forma não podemos interpretar ple-
namente, porque se referem ao “mundo mágico” dos mitos. No en-
tanto, todos os homens esclarecidos que viveram em sociedades do-
minadas pela técnica saberiam relatar os impactos desse fenômeno
na realidade social.
A história da humanidade é marcada por períodos de radicais re-
configurações sociais, em que pese, na percepção da sociologia alemã,

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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 63

a nítida percepção das descontinuidades a par das continuidades no


processo histórico. Esses períodos produzem um inegável desconfor-
to para as pessoas, dado que os impactos das transformações são
determinantes no curso de sua vida. Na história do mundo ocidental,
por duas vezes, as mudanças culminaram em momentos excepcio-
nais. Vale observar os elos entre ambos.
O surgimento do período clássico na Grécia da Antigüidade e o
surgimento da modernidade na Europa do século XVII são fenômenos
distintos, sobretudo, quanto às novas formas institucionais inauguradas
na modernidade. A formação do Estado-Nação, a invenção do traba-
lho assalariado, a criação e a massificação das noções de indivíduo,
liberdade e mobilidade social no grau alcançado foram transformações
sem precedentes. Porém, o período clássico grego e a modernidade
européia apresentam algumas semelhanças em suas configurações
sociais. Não por acaso, falou-se, em alguns momentos, em Renasci-
mento, ainda que o termo deva ser sujeito, também, a críticas.
O surgimento da moeda, a criação do alfabeto grego e, por
conseguinte, a difusão da linguagem escrita; o florescimento do co-
mércio, sobretudo o marítimo; o desenvolvimento das cidades; o
advento da democracia; a ascendência de uma rica classe de co-
merciantes em detrimento de uma aristocracia agrária e o surgi-
mento da filosofia são alguns elementos que desfrutaram de afini-
dades eletivas, contribuindo para o surgimento do período clássico
da Grécia e encontram fatores homólogos preponderantes no surgi-
mento da modernidade, respectivamente: unificação da moeda, sur-
gimento do dinheiro; invenção da imprensa por Gutenberg; ressur-
gimento do comércio; expansão marítima; ressurgimento das cida-
des; hegemonia das idéias políticas liberais; ascendência da bur-
guesia, em detrimento de uma aristocracia feudal; e, enfim, a cria-
ção da ciência moderna.
As novas formas de viver combinadas ao avanço da técnica,
nas distintas realidades sociais, despertaram a crítica de ilustres
pensadores das respectivas sociedades.
Nunca é demais ressaltar que a modernidade e o período clássi-
co da Grécia são processos diferentes e portadores de peculiarida-
des. A radicalização e a intensidade que esses fenômenos alcança-
ram na modernidade jamais foram vistos antes na história humana.

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64 —A modernidade sob o prisma da tragédia

Se os avanços da técnica foram menos intensos na Antigüidade, nem por


isso a filosofia socrático-platônica deixou de exercer uma severa crítica
à prática sofista e a seu propósito de levar a tecnologia à vida do espí-
rito, assim como, na modernidade, correntes de pensamento também se
insurgiram contra a instrumentalização da vida.
A atitude crítica dos sofistas visava, sobretudo, à dessacralização do
conhecimento, atribuindo-lhe um valor material (e, desse modo retirando-o
de um ethos diferenciado social e culturalmente), que acabava por relegá-
lo a uma função estritamente técnica, afastando-o de sua vertente de “ilu-
minação interior”, da máxima conhece-te a ti mesmo. Essa instrumenta-
lização do conhecimento tinha por objetivo, segundo os sofistas, suprir as
necessidades da vida na pólis. A inovação grega da democracia exigia de
seus cidadãos a aprendizagem do aparato técnico para a defesa de deter-
minadas posições ou convicções políticas, ou seja, a técnica da retórica.
Essa tecnificação do conhecimento, que reduzia sua função ao poder de
convencimento, a questões restritas a doxa (opinião), permitia sua utiliza-
ção a serviço de interesses particulares e não da “Verdade” (alétheia). O
saber para a instrumentalização técnica na pólis apartou-se do saber filo-
sófico e, assim, segundo seus críticos, deixou os homens reféns de “enga-
nadores” que dominavam a técnica do discurso e não a essência do co-
nhecimento, entendido como a busca do verdadeiro, do belo e do bom.
Para os platônicos, a sofística não somente servia de instrumento de domí-
nio nas assembléias, mas também impedia o verdadeiro conhecimento, a
verdadeira filosofia, a fonte de realização do homem.

Na maioria dos sofistas, o saber reveste-se da for-


ma de receitas que se podem codificar e ensinar
[...] Todas as ciências, todas as normas práticas,
a moral, a política, a religião serão assim encara-
das, em uma perspectiva “instrumentalista”, como
técnicas de ação a serviço dos indivíduos e das
cidades (VERNANT, 1990, p.359).

O que ocorre é uma evolutiva colonização técnica de todos os


assuntos da vida, como exemplifica a citação acima. Crítica essa bem
próxima daquela mais tarde desenvolvida pelos fundadores da tradição
sociológica alemã marcada pelo repúdio aos valores da modernidade,
ditados pelo avanço técnico-racional a ocupar um lugar de proeminência
nas interações sociais.
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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 65

A perspectiva trágica da sociologia alemã

A lógica que imperava nos círculos cultos da Alemanha no período


do florescimento da sociologia em relação ao “Conhecimento” indisso-
ciava-se da sacralização que os alemães devotavam a tudo que se refe-
ria à vida, algo sumamente superior à técnica. A ciência e a racionaliza-
ção (expressões do avanço técnico) eram tidas como a fonte desse mal
que assolava a vida do espírito. O caráter místico conferido à cultura
estava ameaçado pelo cientificismo, pois aceitar o avanço desmedido da
razão seria negar a essência da identidade alemã.
O combate à sociologia positivista e à literatura realista não era
apenas uma questão de puro desacordo epistemológico, mas sim uma
questão de ordem macro-existencial5. Para os alemães, renunciar à
subjetividade da vida em prol de cálculos herméticos soava como renun-
ciar a si próprio. A corrente desse espírito trágico em relação ao desen-
volvimento da sociedade que aparece explicitamente nas obras de Tön-
nies, Simmel, Weber e da Escola de Frankfurt flui da mesma fonte de
divinização da cultura que, por seu lado, origina-se na valorização da
subjetividade mística do protestantismo luterano e de tradições religiosas
anteriores, que marcam profundamente os traços da identidade cultural
alemã. Os termos cunhados por Weber como secularização e desen-
cantamento, bem como a separação entre cultura subjetiva e cultura
objetiva, em Simmel, referem-se a esse processo interpretado como
uma decadência ético-espiritual da humanidade, nos moldes do mito de
Prometeu em referência à cultura grega. Essa visão decadentista e dra-
mática que singulariza a sociologia alemã reflete a atmosfera cultural da
época, tal como uma profecia de fé das antigas tribos germânicas, re-
cheada de um tom fatalista e sombrio, quando rendiam culto a sua divin-
dade suprema, o deus Wyrd (o destino).
Embora um dos traços de identidade da sociologia alemã caracterize-
se pela visão decadentista de mundo similar à narrativa do mito de Prome-
teu, à medida que sutilmente interpreta o advento da técnica moderna como
a matriz do espírito trágico que, segundo esses intérpretes, abateu-se sobre a
modernidade, uma outra peculiaridade também está contida no mesmo mito.
__________________________________________________
5
O termo utilizado refere-se à perspectiva de Herder que encara as culturas como indivíduos
coletivos. Para mais detalhes ver Louis Dumont. O individualismo: uma perspectiva
antropológica da ideologia moderna...

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66 —A modernidade sob o prisma da tragédia

Assim como Pandora deixa escapar todos os males e somente lhe sobra
a esperança, com exceção da Escola de Frankfurt, todos os outros auto-
res tinham uma réstia de esperança quanto à possibilidade de superação
das patologias da modernidade. Esse assunto, pouco evidenciado pelos
comentadores, é o que tratamos nos parágrafos abaixo.
A crítica sociológica depositou sobre as costas de grande parte da
tradição alemã a insígnia de um lirismo escatológico que não permitia
novos espaços para propostas de superação das mazelas que assolavam
a experiência humana. Nesse quadro fatalista atribuído a essa tradição,
a atividade do pensar restringia-se a um diagnóstico apático e conforma-
do, perante o lento e dramático desmoronamento da Vida. O espírito
decadentista impedia o vislumbre ao mais além. A mesma crítica a essa
tradição, em momentos mais exaltados, culpava-a de cúmplice indireta
da tragédia nazista.
Todas essas críticas, excetuando-se as que procuram ligações es-
cusas com o desastre nazi-fascista, trazem conteúdos pertinentes para o
entendimento da tradição sociológica alemã. No entanto, pouquíssimas
críticas dão relevância a certos aspectos da obra dos sociólogos clássi-
cos alemães, nos quais, em alguns mais e outros menos, timidamente
aparecem propostas de reversão do destino trágico imposto.
A diminuta visibilidade que tais propostas tiveram na recepção da
sociologia alemã não se deve apenas a sua pouca ênfase no conjunto da
obra dos sociólogos clássicos alemães, pois outro fator também compõe
esse quadro: o modelo de ciência do século XX.
O caminho que a ciência trilhou no século XX foi marcado pelo
impacto de suas transformações objetivas no devir da sociedade. Nesse
quesito, as ciências sociais destacam-se também por meio de suas obje-
tivações, sejam políticas ou sociais. Em vista disso, como se “encaixa-
ria” a tradição alemã?
A maioria de suas análises, como veremos a seguir, trata de ques-
tões radicalmente subjetivas, isto é, trata de como seres humanos viven-
ciam as experiências sociais e a elas dão significado, estuda a ação hu-
mana nas formas de interação social, envolve campos epistemológicos
excluídos do núcleo central da ciência moderna.
Nem Simmel, nem Weber, nem Tönnies realizaram diagnósticos
trágicos, a fim de a eles se curvarem, como se avalia recorrentemente.

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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 67

Segundo G. Simmel, todo aquele que age não é pessimista. O agir já


pressupõe uma expectativa de mudança, de transformação. Não há
ação sem pressuposição de algum impacto, pois, se assim não fos-
se, estaríamos diante de uma completa ilogicidade no agir humano.
Seria de estranhar que homens que tiveram uma ativa vida política
e intelectual, como Tönnies e Weber, e, no caso particular de Sim-
mel, uma vida intensa do ponto de vista intelectual e cultural, e que
devotaram grande parte de sua existência aos estudos sobre os dra-
mas da vida humana não tivessem, por menores que fossem, ex-
pectativas em relação à possibilidade de reversão do trágico diag-
nóstico da modernidade.
Ainda recorrendo às ricas metáforas do mito de Prometeu, é
possível identificar na sociologia alemã a expectativa de ver a cul-
tura não subordinada à técnica e, assim, uma reaproximação entre
sujeito e objeto. Esse ponto, como já afirmamos, é muito pouco evi-
denciado por seus comentadores.

Pandora apressou-se em colocar a tampa na cai-


xa, mas, infelizmente, escapara todo o conteúdo
da mesma, com exceção de uma única coisa, que
ficara no fundo, e que era a esperança. Assim,
sejam quais forem os males que nos ameaçam, a
esperança não nos deixa inteiramente; e, enquan-
to a tivermos, nenhum mal nos torna inteiramen-
te desgraçados (BULFINCH, 2000, p.22).

De maneira semelhante, como propõe a metáfora do mito narra-


do por Bulfinch, Tönnies, Weber e Simmel também guardavam no “po-
rão” de suas obras uma expectativa em relação à valorização da vida
humana. Acreditavam que determinados elementos da vida poderiam
salvar o homem do destino trágico que se lhe impunha. Como ponto
comum, esses pensadores buscavam devolver espírito a um mundo
reificado, destituído da intensidade das relações humanas que, segundo
eles, foram substituídas por uma impessoalidade desumanizante.
Em Ferdinad Tönnies, as formas de superação da asfixia do ho-
mem moderno, diante de um mundo de artificialismos, não desfrutam de
uma sistematização na sua obra. A perspectiva de novos movimentos e
interações aparece de forma implícita, em situações ou comentários,

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68 —A modernidade sob o prisma da tragédia

dentro de outras discussões que ocupam a centralidade de sua sociolo-


gia. No entanto, mesmo na periferia do seu pensamento, podemos per-
ceber um otimismo no espírito humano, independentemente do pessimis-
mo em relação à Sociedade (Gesellschaft)6.
Desse modo, Tönnies acreditava na superação dessa maneira de
organização da vida tipicamente moderna, superação que surgiria após o
colapso de tais valores. Contudo, a teleologia tonnesiana, se assim pode-
mos chamá-la, não ocorreria devido ao esgotamento de sistemas eco-
nômicos, como seria a superação do capitalismo prevista por Marx. A
falência e a superação das promessas da modernidade ocorreriam, em
última instância, devido a fatores psicológicos. Para Tönnies, a organiza-
ção da vida na modernidade era castradora das orientações naturais do
homem, mantendo-o num cárcere permanente, sufocando seus impul-
sos. Em algum momento, essas forças naturais reprimidas por um Esta-
do – exemplo máximo da artificialidade moderna –, que gradativamente
controlava suas vidas, reclamarão por uma nova organização social.
Entendendo que isso não ocorreria por meio de um enfretamento políti-
co, Tönnies não deixa, contudo, claro como esse processo vingaria.
A perspectiva otimista em relação à humanidade articula-se pri-
meiramente na construção da imagem do homem em Tönnies, tendo os
filósofos contratualistas como fonte de inspiração. Poderíamos afirmar,
de maneira genérica, que Rousseau é a base da construção de suas
categorias psicológicas, enquanto Hobbes inspira a formação de suas
categorias sociológicas.
Tönnies constrói uma imagem humana recheada de aspectos ro-
mânticos que confere ao homem uma essência de dignidade moral,
uma tendência natural ao agir ético. Tal como Rousseau, poderíamos
concluir que Tönnies afirma que o homem nasce bom, mas a Socieda-
de (Gesellschaft) o corrompe. Para Tönnies, é a organização artificial
da vida que deturpa as vontades e as relações humanas. Assim como,
no Emílio, Rousseau fala em resgatar os sentimentos perdidos de amor
de si e piedade natural, Tönnies também apela para uma reconstru-
ção da natureza humana. As transformações na ordem social não são
suficientes para explicar todas as transformações da vida em sociedade.
__________________________________________________
6
Cabe lembrar que o pessimismo de Tönnies não se referia à totalidade da organização social
do gênero humano, ou seja, à civilização (Zivilistation); o pessimismo tonnesiano refere-se
apenas à modernidade, entendida como Sociedade (Gesellschaft) (CAHNMAN, 1995).

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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 69

Para Tönnies, o espírito da comunidade (Gemeinschaft) resgata-se tam-


bém pela transformação das vontades humanas. Tönnies atribui juízo de
valor em relação às suas categorias psicológicas, deixando claro que a Von-
tade Essencial (Wesenwille) é a que contém a verdadeira natureza moral
do homem. Segundo ele, a Vontade Essencial (Wesenwille) expressa a
bondade natural do homem, direciona-o à sociabilidade e ao altruísmo.
A sistematização de uma redenção da comunitariedade não se
encontra especificamente na obra de Tönnies, mas a filosofia social de
Martin Buber (1878-1965) pode ser entendida como uma continuidade
de seu pensamento. A esse respeito, referimo-nos especialmente a algu-
mas conferências de Buber, como a Nova e Antiga Comunidade, cuja
herança do pensamento tonnesiano se apresenta de maneira clara. A
filosofia social de Martin Buber ainda apresenta perspectivas adquiridas
do pensamento de Simmel, que foi seu influente professor. Algumas das
perspectivas tönnesianas misturam-se com as propostas de Buber, já
que entendemos que esse último deu seguimento a idéias pouco desen-
volvidas, mas já presentes na obra de Tönnies.
Como vimos, as causas centrais da superação do artificialismo da
vida moderna dar-se-iam por questões primeiramente de natureza exis-
tencial e, num segundo momento, pelos impactos sociais devido à univer-
salidade desse fenômeno. As transformações na organização social cir-
cularmente também permitiram o aparecimento de um novo espírito co-
munitário latente nos homens.
Tönnies acreditava que essa nova organização constituir-se-ia a
partir de transformações na organização social, em especial, mediante a
entrada da mulher na política e em toda a vida pública. Influenciado pelo
sentimentalismo romântico e, por vezes, ingênuo, Tönnies tinha a espe-
rança de que a mulher/feminino carregasse sentimentos comunitários
mais fortes que os do homem/masculino, mais compelido pela rigidez das
relações de hierarquia e poder. Supunha ele que as mulheres agiriam de
modo mais cooperativo e não tão competitivo quanto os homens. A coo-
peração substituindo a competição era sua convicção para um projeto de
modernidade não destinado a um trágico desfecho. Quanto a isso, Tön-
nies também se inspirava nos movimentos sindicais que, tal como sua
aposta no feminino, poderiam fazer aparecer na sociedade um novo
espírito cooperativista. Isso deixa as influências de um socialismo utópi-
co claras, estabelecido em bases sentimentalistas e contrário ao pessi-
mismo. Tönnies, mais uma vez, depositava sua fé no gênero humano.
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70 —A modernidade sob o prisma da tragédia

Já a percepção do destino da modernidade por Max Weber faz


lembrar imediatamente o antepenúltimo parágrafo de A ética protestan-
te e o espírito do capitalismo:

Ninguém sabe quem viverá, no futuro, nesta


prisão ou se, no final deste tremendo desen-
volvimento, surgirão profetas inteiramente
novos, ou se haverá um grande ressurgimento
de velhas idéias e ideais ou se, no lugar disso
tudo, uma petrificação mecanizada ornamen-
tada com um tipo de convulsiva auto-signifi-
cância (WEBER, 2002, p.131).

A constatação acima, ao mesmo tempo em que apresenta a possi-


bilidade do acontecimento de uma tragédia sem precedentes, também
aponta para a possibilidade de uma redenção frente à petrificação me-
canizada. Em um tom de uma súplica desesperada, Weber lança mão
da possibilidade do aparecimento de autoridades detentoras de atributos
extra-ordinários, apelando para elementos de conteúdo irracionalista.
Nessa linha de pensamento, ele faz menção ao surgimento de profetas
inteiramente novos, nos moldes da tradição poética representada pelo
círculo de George. Nesse quesito, Weber deposita sua esperança de-
sesperada em um poder de ordem carismática, que dotaria a moderni-
dade de um novo espírito e que ocuparia a lacuna de uma sociedade
regida por uma burocracia sem espírito.
Num segundo momento, Weber cogita a possível existência de uma
história cíclica no que se refere às idéias. Desse modo, assim como nos
séculos XV e XVI vimos o ressurgimento dos ideais e das idéias da
antiguidade clássica no movimento renascentista, também poderíamos
escapar da tragédia da modernidade mediante o retorno a determinadas
velhas idéias e ideais.
Na análise das potencialidades da modernidade em Max Weber
merece destaque Patologias da modernidade: um diálogo entre Ha-
bermas e Weber, de Jessé Souza, que se detém em outros aspectos
sumamente relevantes. Segundo Souza (1997), valendo-se de interpre-
tações habermasianas, o pensamento weberiano permite a ênfase em
três esferas de análise: a da sociedade, da cultura e a da personalidade.

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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 71

O autor detém-se na esfera da personalidade, com vistas a encontrar


no pensamento weberiano uma réstia de otimismo em oposição às
interpretações correntes, que ressaltam apenas o caráter pessimista
de Weber. “O conceito de personalidade weberiano vive, a meus olhos,
precisamente a ambigüidade entre a tragédia e a chance, como aliás
toda a sua sociologia” (SOUZA, 1997, p.129).
A escolha desse caminho remete a uma inevitável aproximação
do pensamento weberiano com outras correntes que elegeram as ques-
tões da organização societária humana, e, por conseguinte, o destino
do homem, como problemática de estudo. Assim como seu colega
Tönnies, Weber recorre às questões existenciais para propor a supe-
ração das patologias modernas. Ele visualiza o momento em que
“cada qual está só com seu Deus ou demônio que rege suas escolhas
significativas” (SOUZA,1997, p.119).
Ao destrinchar a vida moderna, Weber elabora os seus tipos hu-
manos ideais na mesma perspectiva dos autores citados, ou seja, seus
tipos humanos refletem a percepção de uma decadência moral na na-
tureza humana. O especialista sem espírito e o homem do prazer
sem coração são o reflexo de uma natureza humana decadente, cujo
imperativo do agir reduz-se ao utilitarismo e ao hedonismo.
Em acordo com essa análise, concluímos que Weber propõe
uma reconstrução da natureza humana, estabelecendo terapias muito
próximas às de Tönnies – e, também, de Rousseau – que, em última
instância, apelam para uma reformulação moral no homem. Se Tön-
nies elegeu no comunitarismo sua forma predileta de interação so-
cial e, portanto, de agir humano, Weber desenvolveu sua preferên-
cia pelo tipo moral puritano.

A simpatia de Weber em relação ao férreo ho-


mem de vocação puritana [...] para o nosso
autor, a forma mais superior, até agora histo-
ricamente realizada, de “personalidade” as-
cética e intramundana, na medida em que ca-
pacitava os homens “para a condução de uma
vida clara, desperta e consciente” (SOU-
ZA,1997, p.116).

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72 —A modernidade sob o prisma da tragédia

A idéia da preferência de Weber pelo tipo puritano, como repre-


sentante da ética individual no mundo moderno, e da formulação da per-
sonalidade constituída a partir de um esforço moral, ou seja, a partir de
um duelo interior, também aparece na biografia que John Diggins faz de
Max Weber. Segundo Diggins:

Enquanto muitos sociólogos, na Europa e, princi-


palmente, na América, desenvolviam idéias de per-
sonalidade e identidade baseadas em teorias de in-
teração social, Weber permaneceu próximo aos seus
predecessores transcendentalistas e calvinistas ao
acreditar (como Nietzsche) que nos tornamos o que
somos por nossos próprios esforços (1999, p.63).

A percepção de modernidade no pensamento de Georg Simmel não


faz referência a uma estrutura social estática e, como afirmamos em outro
momento, uniforme. A partir dessa concepção, a modernidade é assumida
em seu pluralismo, no qual convivem unidades relacionais. Diferentemen-
te de Tönnies, que a vê apenas como um “Leviatã” monolítico, opressor da
vida natural, Simmel critica a concepção de que existe algo em si mesmo
absoluto e opta, em seus ensaios, pela expressão absolutos relativos, admi-
tindo, porém, que um dos lados da relação tende a dominar o outro, o que
não implica negar a idéia de relação, visto que conflito, dominação e ten-
são exemplificam, para Simmel, formas de interação social.
Sobre isso, Miglievich Ribeiro observa que:

A interação, conceito caro na sociologia simmelia-


na, não exclui – ao contrário, exige – a percepção
das diferenciações nos processos de interação. É
vital para simmel a atenção às relações de recipro-
cidade e oposição entre os pólos distintos [...]. No
seu entendimento da sociedade como formas de so-
ciação e da vida como reciprocidade, não cabia em
seu sistema de pensamento a possibilidade de uma
cultura monolítica, como tem sido compreendida a
modernidade. Enfatizar os absolutos relativos [...]
garantindo suas especificidades e relativa autono-
mia, as inter-relações, portanto, implicava o com-
bate à padronização dos modos de ser e viver que
marcavam a tragédia da cultura (2001, p.12-14).

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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 73

Mesmo afirmando que o dinheiro é a força central do agir da


modernidade, Simmel atenta para as formas de sociação na periferia
da modernidade, e que se estabelecem a partir de outros conteúdos
que não os do utilitarismo, do cálculo e da instrumentalidade. Por
mais que o agir “calculativo” da lógica economicista tenda a se con-
fundir com o “genericamente humano”.
Admitindo o domínio das relações instrumentais tipicamente mo-
dernas, enxerga ele, no entanto, clareiras de encantamento que resis-
tem, na densidade de uma floresta monetarista. “Nasciam assim as
formas sociais que incessantemente se rearticulavam de incontáveis
e diferentes maneiras, garantindo à sociedade seu caráter fluido e
processual”. Eis por que Simmel torna-se conhecido como “o obser-
vador astuto e o analista genial dos aspectos inusitados ou mesmo
inesperados da vida social contra qualquer tentativa de fetichizar a
sociedade” (Ibid., 2001).
Dois conceitos desenvolvidos por Simmel são as chaves para o
entendimento da possibilidade de um reencantamento do mundo mo-
derno. Os conceitos de círculos sociais (Kulturkreislehre) e vivênci-
as (Erlebnis) indicam os caminhos pelos quais se processa o enri-
quecimento subjetivo frente a um mundo objetificado.
Na variedade dos círculos sociais de que participamos, nos quais
cultivamos a nossa subjetividade, poderíamos desenvolver sentimentos e
emoções que estariam excluídos da grande sociedade, caso nos rendês-
semos a uma modernidade monolítica. Nos círculos de amizade, por exem-
plo, existe a possibilidade de se sobrepor às relações instrumentais a
lógica fraterna. Segundo Simmel, é dada ao homem a possibilidade de
construir micro-sociedades, focos de cultivo da Vida, de enriquecimento
espiritual (subjetivo), em oposição ao espírito objetivo da modernidade.
No seu entendimento, a periferia da modernidade ofereceria espaço para
uma contra-resposta ao avanço da cultura objetiva.
O conceito de vivências (Erlebnis) nega o entendimento da
modernidade como “absoluto”, porque são as vivências (Erlebnis)
o alimento dos círculos sociais periféricos que dotam a humanida-
de de espírito. O prefixo “er” na língua alemã indica a realização
de algo com sucesso, em profundidade, e, aliado à palavra “Le-
ben”, que se traduz como vida, significa realizar a vida em pro-
fundidade, participar das experiências essenciais da vida humana.

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74 —A modernidade sob o prisma da tragédia

Nesse caso, poderíamos dizer que a palavra “viver” representa a su-


perficialidade da modernidade, do viver vegetativamente, como um au-
tômato regido pela burocracia da vida regulada pelo dinheiro. Todavia,
o vivenciar refere-se à participação em profundidade na vida, viver
com alma, conferir à palavra vida não somente significado referente a
movimentos mecânicos, mas dotá-la de espírito. “[...] Erlebnis torna-
se um instrumento para ressaltar as qualidades internas e espirituais de
uma vida humana contra quantidades objetivas, observáveis de fora,
contra uma ciência positivista e materialista presa a fatos objetivos”
(SOUZA, 1998, p.217).
Enfim, mesmo que o núcleo central da modernidade nos asfixie o
espírito, a sua periferia oferece a oxigenação da vida. Diferentemente
da crença de Tönnies nos modelos absolutos e dicotômicos Gemeins-
chaft e Gesellschaft, Simmel acredita num desvelamento do espírito ob-
jetivo da modernidade, tomado arbitrariamente como absoluto.
O que mais se destaca na obra de Simmel, diferentemente da
dos outros autores analisados, é sua recorrência às microssocieda-
des, vivências fundadora e refundadoras dos círculos sociais, para se
opor à “grande sociedade”. Também, nesse autor, notamos a espe-
rança em uma redenção moral, de uma refundação da modernidade
que recusa o modelo de “esferas separadas” (subjetividade e objeti-
vidade; indivíduo e sociedade). “Simmel deseja e saúda a diferença.
Cada pólo da relação humana é um absoluto em si mesmo, auto-
justificável, contudo necessariamente inter-relacionados, interdepen-
dentes e, na relação de oposição, complementares” (MIGLIEVICH
RIBEIRO, 2001, p.27).
Simmel também vislumbra a representação de um estilo de perso-
nalidade típico da modernidade. Assim como nos outros pensadores exa-
minados, as relações sociais são retratadas na modernidade sob o as-
pecto da decadência, no que tange à moral. Para dar forma a essa abs-
tração, Simmel constrói as figuras do blasé e do cínico, mas não apela
para uma “regeneração” desses tipos como redenção da modernidade7.
__________________________________________________
7
Há de se lembrar que uma possível interpretação de Tonnies permite entender que ele credita
à Gemeinschaft uma forma especial e intensa de perceber e de se relacionar com o mundo,
com seu eu, com as coisas e com os outros que se opõe radicalmente ao tipo blasé, para usar
a terminologia de Simmel. Tonnies, mais do que Simmel, impõe que a pessoa rompa com a
atitude blasé e com a alienação, como condição para se restaurar a Gemeinschaft (Cf.
Harry Cohen. In: MIRANDA., O. Para ler Ferdinand Tonnies, 1995, p.212).

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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 75

Ele deposita sua esperança na superação da modernidade, no próprio


devir da sociedade. Isso se deve ao fato de Simmel acreditar que a
esfera da personalidade é construída a partir das interações sociais,
das quais o indivíduo participa, ou seja, a partir dos círculos sociais de
que ele faz parte.
O modelo de esferas separadas não cabe no pensamento de Sim-
mel. O caráter relacional e processual da formação da sociedade e da
cultura a partir de sociações8, em contraste com as percepções cristali-
zadas da vida social, marca o pensamento desse autor, assim como os
conceitos de cisão, oposição, relação, interação, diferença, complemen-
taridade, unidade, reciprocidade e círculos definem o modo específico de
observar a tragédia moderna.
Enfim, gostaríamos de ressaltar a metáfora proposta em nosso tra-
balho, centrando-se no conteúdo trágico que representa a introdução da
técnica nas sociedades humanas. A técnica é o evento ou a “força” que
permite o progresso sem limites do homem sobre a Terra, e em alguns
casos até mesmo fora dela. Contudo, essa característica central apre-
senta-se paradoxal para a Modernidade: a sua radicalização sinaliza o
fim de tudo que ela permitiu existir.
Analisar a Modernidade a partir de sua vertente técnica, atentando
para os efeitos desse fenômeno na organização social, acrescentando as
implicações existenciais, quer a perda da intensidade e inteireza nas re-
lações entre sujeito consigo mesmo, sujeito-objeto, sujeito e outro sujeito,
como denuncia Tonnies, quer a cisão arbitrária entre cultura subjetiva e
cultura objetiva, como fala Simmel, pode ser uma possibilidade de com-
preendermos e superarmos parte dos desafios que nossos tempos apre-
sentam, e que muitos deles são da alçada de uma sociologia que admite
estudar a dimensão subjetiva presente nos processos sociais.
Importa dizer que os estudiosos que nos inspiraram em nossas
análises contemporâneas nas ciências sociais, ainda que concordem
com que a modernidade é uma tragédia inevitável, não a consideram o
fim das formas outras de experiência humana. Na crítica à modernida-
de, desejam reinvenções de formas de vida social. Ainda que, na orga-
nização da vida moderna, aspectos trágicos possam ser identificados,
podemos vislumbrar um destino menos sombrio para o homem.
__________________________________________________
8
Tradução do termo Vergesellschaftung feita por Evaristo de Morais, devido à peculiaridade
do significado desse termo no pensamento de Simmel.

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76 —A modernidade sob o prisma da tragédia

A ação, como dissemos, é necessariamente otimista. Os autores aqui


retratados, ao atentar para o perigo da ação despojada de sentido, dão-
nos a chance oposta de clamar pela intensidade e autenticidade da vida,
ou melhor, da vivência de mulheres e homens modernos.
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Adélia M. Miglievich Ribeiro e Brand Arenari — 77

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(Recebido em junho de 2004 e aceito para


publicação em novembro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.57-77, abril de 2004


Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV:
estudo de representações sociais com mulheres*

Andréia Isabel Giacomozzi1


Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo Abstract

Este estudo refere-se às re- This paper deals with soci-


presentações sociais de mulheres al representations of women—
com e sem parceiro fixo sobre se- regardless of their having a sta-
xualidade e prevenção da aids. A ble partner—about sexuality and
incidência de aids tem aumentado prevention of Aids. Aids”s fre-
entre indivíduos com relações he- quency increases among hetero-
terossexuais estáveis em regime de sexuals within stable relati-
conjugalidade e, em se tratando de onships, especially women, who
mulheres, a maioria tem se conta- are infected most commonly by
minado por intermédio do parcei- their sexual partners. The aim of
ro. O objetivo da pesquisa foi veri- the related research has been to
ficar como as mulheres com e sem know how women—within or wi-
relacionamento fixo elaboram suas thout stable relationships—ela-
__________________________________________________
* Trust in partners and protection against HIV: a research on social representations with
women
1
Endereço para correspondências: Rua Theófilo de Almeida, 171, ap. 104, Bom Abrigo,
Florianópolis, SC, CEP 88085-310 (agiacomozzi@hotmail.com).

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80 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

representações sociais sobre aids borate on social representations


e se isso tem repercussão nas suas about Aids, and whether this has
práticas de prevenção frente a essa an impact on their adhering to
doença. Trata-se de um estudo des- prevention practices concerning
critivo, comparativo, no qual foi Aids. That research has been ac-
empregada a técnica de observa- complished in both descriptive
ção indireta via entrevistas “semi- and comparative terms, by me-
diretivas”. Foram entrevistadas 20 ans of indirect observations and
mulheres que mantinham relações non-directive interviews. 20 wo-
fixas em regime de conjugalidade men from 30 to 40 years old have
no momento da entrevista e 20 mu- been interviewed, who at the
lheres que estavam sem parceiro time had stable relationships; 20
fixo, totalizando 40 mulheres entre- other ones, with no stable relati-
vistadas entre 30 e 40 anos. Para a onships, had also been intervi-
análise do material coletado, utili- ewed. Analysis of data so obtai-
zou-se sotware de análise quanti- ned has been made by means of
tativa de dados textuais ALCES- a computer program for quanti-
TE. Os resultados demonstram que tative analysis of textual data
as mulheres com parceiro fixo con- (ALCESTE). It has been found
sideram a prevenção da aids algo out that women with stable rela-
necessário para todas as pessoas, tionships consider that preventi-
exceto para elas mesmas, que se on of Aids is important for every-
consideram seguras em suas rela- body but themselves, who con-
ções conjugais, em virtude de um sider themselves protected by
sentimento de confiança no parcei- stable relationships; they feel
ro. Verificou-se também que as safe and trust their sexual part-
entrevistadas sem parceiro fixo ners. It has still been found out
sentem-se mais vulneráveis frente that women without stable rela-
à aids e, portanto, utilizam preser- tionships feel more vulnerable to
vativo em todos os seus envolvi- Aids and use condoms in all their
mentos sexuais eventuais. sexual relations.

Palavras-chave: Representações Keywords: Social representations;


sociais; sexualidade; mulheres; sexuality; women; Aids; stable re-
aids; conjugalidade. lationships.

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Andréia Isabel Giacomozzi — 81

E ste artigo constitui um resumo de uma dissertação de mestrado do


Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina e tem como foco as representações sociais de
mulheres com e sem relacionamento fixo sobre sexualidade e prevenção
à Aids2. O trabalho fundamentou-se em conhecimentos da psicologia
social, mais especificamente na teoria das representações sociais de Serge
Moscovici e do gênero como categoria de análise.
A contaminação das mulheres pelo vírus HIV configura-se em um
importante questionamento na área da saúde nos últimos anos e tem sido
problematizada também como uma questão social. Segundo o Boletim
Epidemiológico de 2002, publicado pelo Ministério da Saúde, o número
de mulheres contaminadas com o vírus da aids cresce a cada ano e, na
maioria dos casos, a contaminação nas relações heterossexuais. Entre
as décadas de 1980 e 90, as mulheres maiores de 13 anos, contaminadas
pela relação heterossexual, perfaziam 61,1%. No ano de 2002, essa por-
centagem elevou-se a 93,5%.
No Brasil, o número de casos de aids é de 257.780 pessoas
(notificados desde 1980), sendo que, deles, 66,61% (185.061) são
homens e 26,17% (72.719) são mulheres. Entretanto, nota-se que, a
cada boletim epidemiológico o número de mulheres infectadas au-
menta gradualmente. Observou-se, também, redução da participa-
ção das categorias “homo e bissexual”, de 44,5%, nas décadas 1980
a 90, para 16,3%, no ano de 2002, ao mesmo tempo, houve incremen-
to da categoria “heterossexual”, de 16,4%, nas décadas de 1980 a
90, para 58,0%, em casos de aids, sendo que 1.981 (65%) eram ho-
mens e 1.043 (34%), mulheres.
Os dados revelam aumento dessa epidemia, principalmente, en-
tre indivíduos heterossexuais com parceiro fixo, em regime de conju-
galidade. Considerou-se, portanto, necessário investigar os fatores de-
terminantes na propagação dessa doença entre esse grupo de pessoas.
Assim, esta pesquisa estuda os aspectos interacionais da epidemia da
aids, no âmbito da intimidade e da conseqüência da confiança existente
no ambiente privado dos lares, sob o ponto de vista das mulheres. É
importante entender que, para as mulheres, as representações sociais da
aids configuram-se de forma diferente de como são para os homens.
__________________________________________________
2
Aids: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, decorrente da infecção pelo vírus HIV (Vírus
da Imunodeficiência Humana).

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82 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

Como exemplo disso, há o estudo de Camargo (2000), que pesquisou a


representação da aids entre estudantes universitários. Mesmo com a
prevenção à aids estando relacionada com a prevenção sexual, homens
e mulheres relatam, segundo essa pesquisa, associar aids à promiscuida-
de. Porém, as mulheres atribuíram à desinformação o fato de as pessoas
contraírem o vírus, enquanto, para os homens, a infecção pelo vírus HIV
dava-se por um descuido do indivíduo contaminado.
Algumas pesquisas (CARVALHO, 1998; TURA, 1998; MADEI-
RA, 1998) demonstram que o cuidado com a aids pauta-se em relações
em que predomina um sentimento de desconfiança, enquanto, nas rela-
ções conjugais, essa desconfiança inexiste ou é diminuída, pois o perigo
da aids está relacionado ao “outro” de quem se desconfia.

A teoria das representações sociais

A teoria das representações sociais originou-se na Europa, a partir


da publicação por Serge Moscovici (1961) da obra La Psychanalyse:
Son image et son public. Nela, o autor estuda a representação social
da psicanálise, com o objetivo de compreender como a teoria psicanalíti-
ca disseminava-se de formas diferentes em diversos grupos.
Segundo Moscovici (1981, p.181),

[...] uma representação social é um conjunto de


conceitos, proposições e explicações originadas
na vida cotidiana, no curso de comunicações in-
terpessoais, que funciona como uma espécie de
‘teoria do senso comum’”.

As representações desempenham papel fundamental nas práti-


cas e na dinâmica das relações sociais. Dentre suas funções, Abric
(1994) define quatro: saber, orientação de comportamentos e de práti-
cas, justificação de posicionamentos e comportamentos. Quando ocor-
rem contradições entre as representações sociais e suas práticas res-
pectivas, surgem as relações de conflitos, que podem gerar a transfor-
mação de uma ou outra.
Nesse sentido, esta pesquisa pretende verificar se as repre-
sentações das mulheres com e sem parceiro fixo estão em acordo
com suas práticas sociais com relação à prevenção a essa epidemia.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


Andréia Isabel Giacomozzi — 83

Levanta-se a hipótese de que o risco com relação à aids pode iniciar-se


quando a relação de intimidade e confiança se estabelece. A partir de
então, as pessoas tornam-se mais vulneráveis e as dimensões das práti-
cas sociais podem dar indícios de que essa maneira de pensar afetará as
estratégias de prevenção desse grupo.
A confiança influencia os relacionamentos, pois, de acordo com
Misovich, Fisher e Fisher (1997), evidências indicam que indivíduos em
relacionamentos estáveis tendem a não tomar nenhuma medida efetiva
de prevenção à aids, geralmente, não usam preservativos e não conhe-
cem a sua condição sorológica nem a do parceiro. Essas medidas pre-
ventivas não entram em pauta na relação. Já entre os indivíduos que
utilizam o preservativo, esses pesquisadores encontraram os que, em
geral, têm relacionamentos sexuais casuais: jovens, homossexuais, pro-
fissionais do sexo (porém, quando estes têm relacionamentos estáveis,
não usam preservativo com seus parceiros fixos). Isso também foi en-
contrado na pesquisa de Oltramari (2001), que constatou que as profissi-
onais do sexo utilizam preservativo em seus relacionamentos comerci-
ais, mas não o utilizam com um parceiro fixo. A intimidade e a confiança
seriam, portanto, causas de uma maior exposição ao vírus da aids. Estu-
dos de Pinkerton e Abramson (1993) indicam que ter relacionamento
sexual sem proteção com parceiro fixo e eliminar relações casuais (manter
monogamia) pode expor o indivíduo a maior risco e vulnerabilidade do
que ter sexo seguro com parceiro fixo e parceiros eventuais.
A relação de confiança, portanto, leva os indivíduos ao risco de
contágio, pois se estabelece certa vulnerabilidade, e isso afetará as es-
tratégias de prevenção à doença.
Utiliza-se a seguinte noção de “vulnerabilidade”:

[...] avaliar objetivamente as diferentes chances


que cada indivíduo ou grupo populacional parti-
cular tem de se contaminar, dado o conjunto for-
mado por certas características individuais e so-
ciais de seu cotidiano, julgadas relevantes para a
maior exposição ou menor chance de proteção
diante do problema (AYRES e cols., 1999, p.65).

Esse termo surgiu como uma tentativa de compreender as possibi-


lidades que uma pessoa ou grupo tem de se infectar com o vírus da aids.
A vulnerabilidade divide-se em dois aspectos: individual e coletiva.
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84 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

Segundo Ayres e cols. (1999) a vulnerabilidade individual con-


siste em três pressupostos:

a) Qualquer indivíduo é passível de contaminação, de acordo com


seus valores pessoais e recursos preventivos, em determinada
época de sua vida;
b) Quanto maior o amparo social e a assistência à saúde de que os
indivíduos dispuserem, menor a morbidade, invalidez e morte; e
c) Questões de ordem cognitiva, comportamental e social afetam
diretamente a vulnerabilidade individual.

A vulnerabilidade coletiva divide-se em programática e social. A


primeira consiste nas ações do Estado, pelos seus programas de preven-
ção à aids, que fazem uma ligação entre os planos individual e social.
São muitos os critérios para a avaliação dessas ações. Segundo Ayres e
cols. (1999), a vulnerabilidade social é avaliada por muitos indicadores
sociais elaborados pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Uni-
das (PNUD). A partir de oito índices, definem-se critérios para a classi-
ficação da vulnerabilidade entre alta, média e baixa. São eles: acesso à
informação; gastos com serviços sociais e da saúde; mortalidade antes
dos cinco anos; situação da mulher; índice de liberdade humana; relação
entre despesas militares e gastos com educação e saúde; índice de de-
senvolvimento humano.
Como dito, trabalha-se aqui com o gênero como categoria de aná-
lise. A noção de gênero, segundo Grossi e Miguel (1995), preocupa-se
em desvincular os papéis sexuais de seu determinismo biológico, desna-
turalizando a visão de mulher ainda existente e questionando a idéia de
que haveria apenas um feminino e um masculino. Mais, as noções liga-
das ao gênero são vistas como produtos de processos sociais e culturais,
à medida que identidades de gênero (masculinidades e feminilidades
múltiplas) diferenciam-se e constroem-se relacional e dinamicamente. É
importante, portanto, conceber o masculino e o feminino como formas
mutáveis e flexíveis e em interação uns com os outros. Mesmo em uma
pesquisa em que o foco seja somente a mulher, é necessário considerá-
la relacionalmente ao homem, para evitar contribuir com uma idéia se-
xista da moralidade, pois, de acordo com Scott (1990), mulheres e ho-
mens são definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de
um deles pode ser alcançada por um estudo separado:
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004
Andréia Isabel Giacomozzi — 85

[...] Este estudo rejeita a validade interpretativa


da idéia de esferas separadas e sustenta que estu-
dar as mulheres de maneira isolada perpetua o
mito de que uma esfera, a experiência de um sexo,
tenha muito pouco, ou nada, a ver com o outro
sexo” (SCOTT, 1990, p.7).

Todavia, não se pode negar que existam muitas diferenças entre


homens e mulheres, mesmo que sejam socialmente construídas e, no
caso da sexualidade, as mulheres tenham estado em enorme desvanta-
gem, pois, na sociedade, o poder é eminentemente masculino e preten-
de controlar os corpos e desejos femininos a toda prova. Citando Faria:

Mesmo considerando todas as diferenças de uma


mulher para outra, podemos dizer que as mu-
lheres têm em comum a vivência do sexo em uma
sociedade machista e patriarcal. Também deve-
mos ter em conta que não são elas as únicas a
serem castigadas e estigmatizadas por sua con-
duta sexual, mas que, em geral, isso acontece
com todas as pessoas que não se situam dentro
do que o modelo dominante define como práti-
cas sexuais adequadas (1998, p.10).

A noção de gênero pressupõe, portanto, uma integração entre mas-


culino e feminino e entre indivíduo e sociedade (NOGUEIRA, 2001).
Observa-se, ainda, a grande influência das questões de gênero
nos comportamentos de risco frente ao HIV. Essas questões, somadas
às culturais e econômicas (dependência econômica da mulher em rela-
ção ao homem, por exemplo), têm grande peso no comportamento se-
xual da mulher e evidentemente influem nas questões de poder e de
tomada de decisões:

[...] especialistas em gênero e comportamento sexu-


al notam que gênero é obviamente importante para
definir como serão as negociações nos encontros
sexuais e quem determinará quais práticas irão pre-
valecer3 (EHRHARDT e WASSERHEIT, 1991, p.99).
__________________________________________________
3
Tradução da autora.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


86 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

Método

Caracterização da pesquisa

Trata-se de um estudo descritivo, comparativo, no qual se emprega a


técnica de observação indireta, mediante entrevistas semidiretivas, no in-
tuito de coletar dados textuais como indicadores de RS e de práticas soci-
ais de mulheres com e sem parceiros fixos, diante da prevenção à aids.

Participantes

As participantes da pesquisa foram 40 mulheres que freqüentaram


o Serviço de Atendimento Ginecológico do Ambulatório C do Hospital
Universitário (HU) da Universidade Federal de Santa Catarina, no ano
de 2003. Das 40 entrevistadas, 20 mulheres tinham parceiro fixo há mais
de três meses, no momento da pesquisa, estando em regime de conjuga-
lidade; e as outras 20 não tinham parceiro ou estavam separadas há mais
de três meses. Todas as mulheres tinham idade entre 30 e 40 anos e
nenhuma delas era portadora do vírus HIV.
Os critérios utilizados para a seleção das participantes foram dois:
freqüentar o serviço de atendimento ginecológico do HU e estar na faixa
etária definida.

Instrumentos de coleta de dados

Foi escolhida para a coleta dos dados a entrevista semidiretiva,


pois é um dos recursos mais apropriados para a obtenção do material
textual. Esse procedimento permite certa objetividade na obtenção dos
dados e também possibilita respostas explicativas das participantes, faci-
litando ao pesquisador identificar as possíveis representações acerca do
fenômeno estudado.

Procedimento

A coleta de dados deu-se em duas etapas. Na primeira, fez-se


um estudo piloto para o levantamento de temas recorrentes para a
formulação de um roteiro de entrevistas. Essas entrevistas foram
feitas com seis mulheres (três com relacionamento fixo há mais de
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004
Andréia Isabel Giacomozzi — 87

três meses e três com mulheres sem parceiro fixo ou separadas há


mais de três meses). As entrevistas foram realizadas individualmen-
te. As entrevistas dessa primeira etapa foram não-diretivas e não
tinham um roteiro definido. A pesquisadora pedia para que a entre-
vistada falasse o máximo possível sobre o tema da prevenção à aids.
A segunda etapa considerou a análise do material obtido nas en-
trevistas piloto. Com os tópicos recorrentes naquelas entrevistas, mon-
tou-se um roteiro. As entrevistas da segunda etapa foram, portanto, mais
estruturadas. Outros dados a respeito das entrevistadas também foram
coletados, tais como: idade, nível de escolaridade, existência ou não de
filhos e número de casamentos. A partir daí, passou-se a realizar as
entrevistas com o roteiro preestabelecido.
Adotaram-se procedimentos comuns que padronizassem a pesqui-
sa. Os procedimentos para a realização das entrevistas seguiam os mes-
mo passos: 1) Contato telefônico da paciente com a secretária do ambu-
latório e agendamento da consulta; 2) Atendimento com a enfermeira; 3)
Ao final do atendimento, a enfermeira falava à paciente sobre a pesqui-
sa e a convidava a participar; 4) Contato com a pesquisadora; 5) Apre-
sentação dos objetivos do trabalho; 6) Permissão da entrevistada; 7)
Aplicação do roteiro de entrevistas.

Procedimentos para a análise dos dados

Os procedimentos que se seguiram às transcrições das entrevistas


foram: 1) na primeira linha da transcrição, constavam as variáveis des-
critivas de cada entrevistada (idade, nível de escolaridade, com ou sem
parceiro fixo, com ou sem filhos); 2) todas as falas da entrevistadora
(perguntas) foram escritas em letras maiúsculas; 3) correção de erros
de pontuação e de português e transcrição de termos coloquiais de acor-
do com a escrita correta, correção da concordância verbal e de gênero.
Na seqüência, fez-se o processamento das produções discursivas
para o software ALCESTE (Análise Lexical Contextual de um Conjun-
to de Segmentos de Texto4), com os seguintes passos: 1) adaptação das
produções discursivas às normas do software; 2) exclusão das falas
(questões) da entrevistadora; 3) lançamento da análise do material.
__________________________________________________
4
“Analyse Lexicale par contexto d’un ensemble de segments de texte”, ou seja, Análise
Lexical Contextual de um Conjunto de Segentos de Texto.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


88 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

O software é utilizado para relacionar os dados quantitativos textu-


ais de uma quantidade de entrevistas com o seu contexto de localização
no texto. Segundo Camargo5, o programa toma como base um único
arquivo, mas é necessário indicar unidades de contexto iniciais (UCIs) e
preparar esse arquivo sob regras específicas. No caso desta pesquisa,
cada entrevista será uma UCI.
Um conjunto de unidades de contexto iniciais (UCI) forma um cor-
pus de análise. Para ser analisado pelo ALCESTE, o corpus deve cons-
tituir um conjunto textual centrado em um tema. Portanto, o material
textual deve ser monotemático, pois a análise dos textos sobre mais de
um item pré-estruturado resulta na reprodução da estrutura prévia. As-
sim, foi necessária a divisão do corpus inicial em dois corpora para
garantir essa característica.
Para analisar os textos, o programa ALCESTE executa quatro eta-
pas: A, B, C e D, sendo que cada uma das três primeiras contém três
operações e a última, cinco. São elas:
Etapa A: Leitura do texto e cálculo dos dicionários. Aqui, o progra-
ma prepara o corpus, reconhece as UCIs, segmenta o texto, agrupa as
ocorrências das palavras em função de suas raízes e calcula a freqüên-
cia dessas formas reduzidas.
Etapa B: Cálculo das matrizes de dados e classificação das UCEs
(seguimentos de tamanhos similares). Nessa etapa, as UCEs são classi-
ficadas em função dos seus respectivos vocabulários e são repartidas
em função da freqüência das formas reduzidas. Depois, aplica-se o mé-
todo de classificação hierárquica descendente, para se obter uma classi-
ficação definitiva. Utiliza-se, ainda, o teste do qui-quadrado, para obter
classes de UCEs que, ao mesmo tempo, apresentam vocabulário seme-
lhante entre si e diferente das UCEs das outras classes.
Etapa C: Descrição das classes de UCEs. O programa apresenta o
dendograma da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que mostra
as relações entre as classes. Segundo Reinert (1990), essas classes po-
dem ser interpretadas como noções de mundo ou quadros perceptivo-cog-
nitivos com certa estabilidade temporal e, para Camargo (2003), quando
se aplica o ALCESTE no estudo da representação social, essas classes,
formadas por vários segmentos de textos com vocabulários semelhantes,
podem ser consideradas indicadores de diferentes noções de representa-
ção social ou campos de imagens sobre um determinado objeto.
__________________________________________________
5
Capítulo de livro no prelo, cópia para uso interno do LACCOS.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


Andréia Isabel Giacomozzi — 89

Etapa D: Cálculos complementares – com base nas classes de


UCEs escolhidas, o programa calcula as UCEs mais características de
cada classe para melhor contextualização do vocabulário típico de cada
classe. Outro recurso dessa etapa é permitir exportar as UCEs obtidas
para outros programas informáticos.

Resultados

Análise do corpus 1 sobre relação conjugal formado pelos discur-


sos das mulheres com e sem relacionamento fixo

Relatam-se, a seguir, os resultados obtidos via analise textual das


respostas das entrevistadas. Esse corpus refere-se às respostas das se-
guintes questões: 1) O que você pensa da relação entre homens e mulhe-
res de hoje em dia? e 2) Como têm sido as suas relações com os homens?
O corpus foi dividido em 629 UCEs (segmentos de tamanho simi-
lar) e a análise hierárquica descendente considerou para a análise todas
as 629 UCEs, ou seja, 100% do total das UCEs que esse corpus tinha.
Houve, nesse corpus, 28.697 ocorrências de palavras e 5.066 for-
mas distintas, indicando uma média de 6 ocorrências por palavra. Foram
consideradas para a análise palavras com ÷2 > 3,84 e com freqüência
maior do que 6.
Os resultados da análise com o ALCESTE são apresentados na
Figura 1, sob a forma de dendograma resultante da análise hierárquica
descendente. Observa-se, no dendograma, que as respostas, denomina-
das as relações entre homens e mulheres, foram inicialmente repar-
tidas em dois subcorpora denominados respectivamente: problemas
nas relações entre homens e mulheres (primeira ramificação) e
reflexões sobre a relação homem-mulher (segunda ramificação).
A primeira ramificação, problemas na relação entre homens
e mulheres, desdobrou-se em outros dois subcorpora, denomina-
dos problemas no casamento e separações e a aids no contexto
das relações amorosas, ambos formados pelas respostas a respei-
to das diversas problemáticas que envolvem as relações entre ho-
mens e mulheres, nos dias de hoje, embora o primeiro volte-se mais
aos problemas gerais que envolvem os relacionamentos, enquanto o
segundo aborda a questão da aids.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


90 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

Cada um desses dois subcorpora (problemas no casamento e


separações e a aids no contexto das relações amorosas) ainda se
subdividiu em duas classes estáveis. O primeiro, na classe 1 (história
dos casamentos, traições e separações) e classe 3 (o sair sozinho
dos maridos, bebidas e separações). Ambas guardam proximidades
temáticas, pois falam sobre os problemas que levaram as entrevistadas
às suas separações conjugais, porém, a classe 1 é formada pelas respos-
tas em que as mulheres responsabilizam suas separações pelas traições
dos maridos, enquanto, na classe 3, os responsáveis pelas separações
são os hábitos dos maridos de sair sozinhos e de beber. É importante
também observar que as mulheres que relataram terem se separado em
função do hábito de sair sozinho dos maridos e de beber voltaram a se
casar, enquanto as que se separaram em função de traições masculinas
não se casaram novamente. Não foram encontrados dados a esse res-
peito na literatura, mas se poderia pensar que o segundo fator (traições)
tenderia a magoar mais as mulheres do que o primeiro (bebidas e sair
sozinho), implicando diferentes práticas sociais a respeito de um novo
casamento.
O segundo subcorpus dessa primeira ramificação (a aids no con-
texto das relações amorosas) também se subdividiu em duas classes.
A classe 4 (o medo e os métodos de prevenção utilizados) e a
classe 5 (a prevenção por meio da palavra). Essas duas classes tam-
bém guardam semelhanças temáticas, embora, na classe 4, as mulheres
que estão com parceiro fixo relatam ter medo de contrair aids, mas não
pela via sexual, pois se sentem seguras com seus maridos, e sim por
outros meios, tais como transfusão de sangue, no consultório odontológi-
co, em clínicas, hospitais etc. Enquanto, na classe 5, as entrevistadas
relacionam uma forma de prevenção à aids centrada na palavra, isto é, a
certeza de que o outro está dizendo a verdade para ela seria a garantia
de prevenção. Contudo, essa prevenção via palavra dá-se de diferentes
maneiras para os dois grupos de mulheres. As mulheres com parceiro
fixo têm certeza de que seus maridos dizem a verdade para elas e de que
eles não têm relacionamentos extraconjugais, sendo, portanto, desne-
cessária a prevenção no casamento, enquanto as mulheres sem parceiro
fixo consideram difícil encontrar alguém e ter certeza de que essa pes-
soa está dizendo a verdade com relação a seus hábitos sexuais para que
elas sintam-se seguras.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


Andréia Isabel Giacomozzi — 91

As relações entre homens e


mulheres de hoje em dia

Problemas na relação entre


homens e mulheres

Problemas nos casamen- A aids no contexto Reflexões sobre a


tos e separações das relações amorosas relação homem-mulher

Classe 1 Classe 3 Classe 4 Classe 5 Classe 2 Classe 6

Histórias O sair sozi- O medo e os A preven- O que falta A dificul-


dos casa- nho dos métodos de ção por nos relaci- dade de es-
mentos, maridos, prevenção meio da onamentos tabelecer
traições e bebidas e utilizados palavra um com-
separações separações promisso

Figura 1
Dendograma da classificação hierárquica descendente sobre a
distribuição das classes estáveis das respostas referentes à
relação homem mulher: grupo de mulheres com e sem parceiro
fixo (n = 40)

A segunda ramificação, reflexões sobre a relação homem-mu-


lher desdobrou-se em duas classes, ambas referentes a respostas sobre
a relação entre homens e mulheres, guardando, portanto, uma relação de
proximidade temática entre si. Porém, na classe 2, as mulheres falam
sobre o que está faltando nos relacionamentos (diálogo, respeito, carinho
e igualdade), enquanto na classe 6, as entrevistadas comentam a dificul-
dade de estabelecer relações de compromisso com os homens, pois, se-
gundo elas, os homens tendem a ter maior facilidade em ter relaciona-
mentos eventuais, sem aprofundar um vínculo afetivo.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


92 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

Análise dos resultados do corpus 2 sobre prevenção à aids e méto-


dos anticoncepcionais das entrevistadas com e sem parceiros fixos

Esse corpus refere-se às respostas das seguintes questões: 3) Qual


o método anticoncepcional que você utiliza? 4) O que você pensa a res-
peito da prevenção à aids? 5) Você se sente prevenida em relação a
aids? 6) Você poderia me contar alguma coisa que a tenha impressiona-
do sobre aids? 7) Gostaria de falar mais alguma coisa a esse respeito?
Para a análise do material, foi utilizado o mesmo procedimento do
corpus 1, pelo programa ALCESTE.
O corpus 2 foi dividido em 1.113 UCEs e a análise hierárquica
descendente considerou todas as 1.113 UCEs, isto é, 100% das UCEs
foram selecionadas. Houve, nesse corpus, 51.578 ocorrências de pala-
vras e 5.066 formas distintas, o que indica uma média de 10 ocorrências
por palavra. Foram consideradas para a análise, portanto, palavras com
freqüência maior do que 10 e com c2 > 3,84.

RS e prevenção da aids e
métodos de anticoncepção

RS de aids e prevenção

Prevenção da aids

Classe 1 Classe 2 Classe 3 Classe 4

Mulheres com par- Mulheres sem par- O medo e a proxi- Métodos de anti-
ceiro fixo falam da ceiro fixo falam so- midade da aids concepção dos dois
segurança frente à bre insegurança grupos
aids e confiança frente à aids
nos maridos

Figura 2
Dendograma da classificação hierárquica descendente sobre a
distribuição das classes estáveis das respostas das entrevistadas
sobre RS e prevenção à aids e métodos de anticoncepção –
grupo de mulheres com e sem parceiro fixo. Florianópolis, 2003.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004
Andréia Isabel Giacomozzi — 93

Observa-se, nesse segundo dendograma, que as respostas distri-


buem-se inicialmente em duas ramificações, sendo que a primeira rami-
ficação constitui um subcorpus denominado Representação social de
aids e métodos de prevenção e a outra é formada por uma classe que
se contrapõe a todas as outras, que se denomina Métodos de anticon-
cepção dos dois grupos.
O subcorpus Representação social de aids e métodos de pre-
venção desdobrou-se em uma terceira ramificação, em outros dois sub-
corpus: o primeiro denominou-se O medo e a proximidade da aids e
desdobrou-se em duas classes, ambas referentes aos sentimentos de pre-
venção à aids dos dois grupos de entrevistadas, guardando, portanto, uma
relação de proximidade temática entre si, apesar de focalizarem diferentes
práticas de prevenção. Na classe 1, mulheres com parceiro fixo falam
sobre segurança frente à aids e confiança nos maridos, as entrevis-
tadas falam sobre a não-necessidade de prevenção dentro das suas rela-
ções conjugais. Uma vez que confiam em seus maridos, a confiança, para
elas, é ter certeza de que seus maridos não mantêm relações extraconju-
gais. Já na classe 2, mulheres sem parceiro fixo falam sobre insegu-
rança frente à aids, as entrevistadas falam sobre a insegurança que sen-
tem a respeito da aids e suas práticas de prevenção a essa doença. Elas
relatam utilizar preservativo em todas as suas relações sexuais, embora a
maioria delas admita já ter falhado em pelo menos uma vez ao longo das
suas vidas sexuais em manter esse comportamento.

Discussão

Os resultados desta pesquisa mostram que as representações soci-


ais da prevenção à aids dos dois grupos de mulheres estão de acordo
com suas práticas sociais de prevenção a essa doença.
Com relação ao grupo de mulheres com relacionamento fixo, a
hipótese lançada no início deste trabalho confirma-se, pois o risco com
relação à aids inicia-se quando a relação de intimidade e confiança se
estabelece. A partir de então, as entrevistadas mostraram que se tornam
mais vulneráveis, não tomando medidas preventivas com relação à aids,
e as dimensões dessas práticas sociais de não-prevenção ou da preven-
ção por meio da palavra são indícios de que essa maneira de pensar
afeta as estratégias de prevenção desse grupo.

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94 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

Para as mulheres sem relacionamento fixo, as representações so-


ciais da prevenção à aids também estão de acordo com suas práticas de
prevenção frente a essa doença, uma vez que elas não se sentem total-
mente prevenidas e têm medo de contrair a doença, portanto, procuram
ter práticas efetivas de proteção, utilizando sempre o preservativo em
seus encontros sexuais, embora já tenham falhado nisso, ao menos uma
vez ao longo de sua vida sexual.

Considerações finais

Esta pesquisa procurou levantar aspectos com relação às re-


presentações sociais da sexualidade e prevenção à aids que influ-
enciam os comportamentos preventivos de mulheres com e sem
relacionamento fixo, para contribuir com estratégias preventivas para
essa população.
Os dados encontrados revelam que os dois grupos de mulheres
(com e sem parceiro fixo) tendem a construir diferentes formas de
pensar a sexualidade, bem como a prevenção à aids. Com relação à
prevenção da aids, para as mulheres sem relacionamento, os riscos
devem ser evitados usando camisinha, embora elas sintam dificuldades
de negociar o uso da camisinha com seus parceiros eventuais e admi-
tam que já fracassaram pelo menos uma vez nesta negociação. Para
as mulheres com parceiro fixo, a lógica da prevenção dá-se com a
manutenção da fidelidade no casamento, tanto da mulher quanto do
homem, e com cuidados de higiene e com a saúde de maneira geral. A
confiança em seus parceiros é aspecto fundamental no relacionamen-
to e justifica o não-uso de métodos de barreira nas relações sexuais.
Nas falas das entrevistadas com relacionamento fixo, perce-
be-se que aids não combina com amor, pois a doença está relacio-
nada com dor, sofrimento e morte (aspectos desvalorizados social-
mente), enquanto o relacionamento amoroso que elas procuram
construir passa pela entrega, pela confiança e pelo companheiris-
mo. Entre essas duas instâncias, existe um grande abismo, que elas
preferem não atravessar, não questionar, para não desmoronar seus
sonhos de um casamento feliz.
Além desses, são vários os obstáculos encontrados para se preve-
nir de doenças sexualmente transmissíveis em uma relação conjugal.

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Andréia Isabel Giacomozzi — 95

O fato de a maioria das entrevistadas usar a pílula como método anticon-


cepcional ou serem laqueadas, por exemplo, criaria a sensação de que o
uso do preservativo seria desnecessário. Além disso, há a dependência
financeira do parceiro; a crença de que a camisinha é incômoda ou re-
duz o prazer sexual; o medo de questionar ou de ser questionada a res-
peito de fidelidade, dentre outros.
Segundo Martin (1997), esses argumentos mostram que o sexo
inseguro está longe de ser uma atitude irresponsável e limitada ao
fato de não entrar em contato com o HIV, mas está, na verdade,
fortemente ancorado na forma como as relações de gênero se esta-
belecem socialmente.
Para as entrevistadas que não mantêm uma relação conjugal, se-
ria, portanto, mais fácil estabelecer limites frente ao outro e negociar o
sexo seguro, pois não existe nesses relacionamentos eventuais nenhum
envolvimento afetivo com o parceiro, somente a noção de indivíduo,
além de estarem livres de todos esses aspectos que envolvem as rela-
ções de conjugalidade.
Assim sendo, os programas que visam à prevenção e à interven-
ção junto a tal população poderiam privilegiar o trabalho com casais, já
que essas questões envolvem ambos os parceiros, com suas significa-
ções, crenças, tabus e preconceitos difíceis de ser modificados. Dessa
forma, trabalhar exclusivamente com um dos sexos é desconsiderar o
caráter relacional constituinte dos gêneros e depositar apenas sobre as
mulheres, nesse caso, a responsabilidade de negociar com seus parcei-
ros as práticas de sexo seguro, especialmente levando-se em conta que,
como demonstram as pesquisas (DUARTE, 1996; SILVA, 1999), elas
mesmas ainda têm dificuldade de se visualizar em uma posição de risco.
Faz-se necessário também considerar não somente a responsabili-
dade individual pela contaminação ou exposição ao vírus HIV, mas os
aspectos socioculturais e políticos que envolvem os sujeitos nos contex-
tos de suas comunidades, bem como conceber a aids como tendo forte
conotação de construção cultural em que as normas de gênero, os as-
pectos afetivos, dentre outros, estão intimamente imbricados.
É preciso que, em nível individual, mais e mais pessoas alcancem essa
autonomia, para poder ficar em pé de igualdade com os parceiros na hora de
tomar decisões sobre sua própria sexualidade. Talvez, para isso, seja ne-
cessário reconstruir profundamente as identidades feminina e masculina,

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


96 — Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV

individual e coletiva, reconhecendo os mecanismos utilizados para a


desvalorização feminina e reconstruindo a visão de o que é ser mulher
e ser homem, bem como refazendo uma visão das relações e práticas
sociais (FARIA, 1998).
Desse modo, é necessário que primeiro se rediscutam as normas
de gênero que regem a pessoa, para garantir a prevenção à aids entre
a população. As desigualdades sociais entre homens e mulheres estão
profundamente enraizadas na sociedade. A contaminação em massa
pelo HIV é apenas mais um dos reflexos dessas desigualdades. É ne-
cessário que haja uma profunda mudança nos valores sociais e de gê-
nero, para que as futuras gerações estejam longe dessa ameaça à saú-
de pública. A vacina contra a aids realmente seria muito bem-vinda
diante do quadro geral em que se encontra a contaminação entre a
população mundial, mas que ela não seja um “tapa-olhos” para a soci-
edade e que as discussões e a luta pela igualdade entre os sexos não
pare em função de sua chegada.
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ção e Sociedade. Porto Alegre, 16 (2): 5-22, jul./dez. 1990.
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síveis. 1999. 143f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Curso de
Pós-graduação em Psicologia, USP, São Paulo.

(Recebido em janeiro de 2004 e aceito para


publicação em novembro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004


Representações sociais sobre meio ambiente de
alunos que cursam Engenharia Ambiental*

David José Diniz1


Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano2
Universidade Federal de Engenharia de Itajubá

Resumo Abstract

Estudo3 que objetiva apresen- The main purpose of this pa-


tar as representações sociais (RSs), per is to account for certain social
ou seja, a visão de meio ambiente representations (SR), namely view
de alunos de Engenharia Ambien- that environmental engineering stu-
tal, que durante a realização da dents have of environment. An in-
pesquisa cursavam o primeiro e o quiry has been carried out, using
quarto ano do referido curso, na as subjects students attending their
Universidade Federal de Itajubá first and fourth terms at Federal
(UNIFEI-MG). Além de identificar University of Itajubá, MG, Brazil
possíveis alterações nas RSs em (UNIFEI-MG). In addition to
meio ambiente, provocadas pelo identifying possible changes regar-
__________________________________________________
*
The environmental engineer students social representations of environment.
1
Endereço para correspondências: Universidade Federal de Itajubá, Avenida BPS, n. 1303,
Bairro Pinheirinho, CEP 37500-903, Itajubá, MG.
2
Endereço para correspondências: Universidade Federal de Itajubá, Avenida BPS, n. 1303,
Bairro Pinheirinho, CEP 37500-903, Itajubá, MG.
3
Agradecimentos aos sujeitos co-participantes desta pesquisa, alunos de graduação em Enge-
nharia Ambiental da Universidade Federal de Engenharia de Itajubá e ao CNPq, órgão
financiador.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004


100 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

curso e por suas disciplinas, outro ding SR of environment, which had


objetivo da metodologia aplicada, been provoked by courses and
em um segundo momento, foi iden- classes offered, another aim of the
tificar e sugerir, quando pertinen- applied methodology was to iden-
tes, mudanças curriculares. Nesse tify and suggest appropriate curri-
sentido, inserir o humano positiva- cular changes. According to the
mente torna-se imprescindível para results thus gotten, one’s definite
a construção de uma representa- insertion is very important to the
ção social de meio ambiente, que construction of a SR of environ-
seja condizente com as necessida- ment that can be suitable to the
des de se formar profissionais de needs of engineers who are awa-
engenharia conscientes de seu pa- re of the role they have to play in
pel na sociedade atual. society today.

Palavras-chave: Engenharia; re- Keywords: Engineering; social re-


presentação social; meio ambien- presentations; environment; curri-
te; currículo. culum.

Introdução

A ntes de fazer o levantamento de representação social de meio


ambiente, julga-se válido, neste momento, caracterizá-lo dentro do
conceito de RS e não de conceito científico, respondendo à seguinte
questão: Meio ambiente, conceito científico ou representação social?
São considerados conceitos científicos: nicho ecológico, fotossínte-
se, hábitat, ecossistema etc., pois são entendidos, definidos e ensinados
universalmente como tais, representando um consenso. Por outro lado,
nas representações sociais, podem-se encontrar os conceitos científicos
na forma em que foram internalizados pelas pessoas, que podem estar
ou não inseridas na comunidade científica. Dessa forma, se comparadas
as várias definições de “meio ambiente” feitas por especialistas de dife-
rentes ciências, transcritas do livro Meio Ambiente e Representação
Social, de Marcos Reigota, vê-se que não existe consenso sobre o ter-
mo, na comunidade científica, podendo-se supor que ele ocorra fora dela.
Assim, como conclui Reigota (1998), por seu caráter difuso e variado,
meio ambiente pode ser considerado então uma representação social.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004


David José Diniz e Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano — 101

A partir disso, este estudo baseia-se na necessidade de realizar


uma pesquisa em educação, ato que vem evoluindo bastante pela im-
portância de se caracterizar qualitativamente o processo de aprendiza-
gem, de transmissão de conhecimento, ainda mais em se tratando de
um tema tão abrangente e complexo, como meio ambiente. Para a
realização desta pesquisa, lançou-se mão de metodologias baseadas
nos conceitos de pesquisa qualitativa em educação e de estudos em
representação social, utilizando-se métodos interrogativos, como dese-
nhos e associações de palavras para detectar, conhecer e organizar os
elementos constituintes das RSs.
Assim, objetivos deste estudo: a) Identificar as possíveis mudanças
provocadas pelo curso de Engenharia Ambiental nas representações
sociais sobre meio ambiente de seus alunos; b) Detectar semelhanças e
diferenças nas RSs, estabelecendo uma comparação entre alunos que
estavam iniciando (primeiro ano) e concluindo (quarto ano) o curso de
Engenharia Ambiental; e c) Sugerir mudanças curriculares.

Fundamentação teórica

Representação social na construção do conhecimento

Por se tratar de uma pesquisa em educação, fica evidente a neces-


sidade de caracterizar o processo de conhecimento. O conhecimento é
pessoal e, ao mesmo tempo, coletivo, segundo Elias (1998), cada pessoa
parte da palavra e entra na preexistente corrente de conhecimento, que
ela pode melhorar ou aumentar e, assim como a linguagem, na qual ele é
expresso, é específico de um grupo, o que permite que seja representado
simbolicamente por diversas linguagens.
Além disso, diferentes tipos de conhecimento estão correlaciona-
dos às diferenças específicas na situação das sociedades em que são
produzidos e usados (ELIAS, 1998). Dessa forma, considerando que
uma das definições de sociedade é agrupamento de seres que vivem em
estado gregário (FERREIRA, 2000), ou seja, conjunto de pessoas que
vivem em certa faixa de tempo e espaço, seguindo normas comuns, e
que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo, corpo social,
pode-se considerar que essas características cabem na microssocieda-
de formada pelos sujeitos desta pesquisa.

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102 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

Outra característica relevante do conhecimento, que torna im-


portante a realização de estudos na educação é o fato de que ninguém
pode saber sem adquirir conhecimento de outros, sem partir de um
grupo de conhecedores que dividem um fundo comum de conhecimen-
to e, como parte disso, de uma linguagem específica do grupo, meio
indispensável para adquirir qualquer conhecimento (ELIAS, 1998).
Nesse sentido, segundo Elias (1998) as diferenças específicas nas es-
truturas do conhecimento podem esclarecer o fato de que o ponto de
partida do conhecimento individual é a condição social do conhecimen-
to, na época em que o indivíduo entra no processo de aprendizagem.
Todavia, espera-se que o indivíduo sofra “modificações”, à medida que
percorre esse processo. Devido às características do conhecimento,
cabe, na pesquisa em educação, o caráter qualitativo e o estudo em
representação social.
Por representações sociais, segundo Moscovici (apud SÁ, 1996),
entende-se um conjunto de conceitos, proposições e explicações origina-
dos no cotidiano, no processo de comunicações, que se dá entre as pes-
soas. Elas equivalem, na sociedade ou grupo, aos mitos e sistemas de
crenças tradicionais, podendo também ser encaradas como a versão
contemporânea do senso comum.
Assim,

A representação social se constrói no processo de


comunicação, no qual o sujeito põe à prova, atra-
vés de suas ações, o valor – vantagens e desvanta-
gens – do posicionamento dos que se comunicam
com ele, objetivando e selecionando seus compor-
tamentos e coordenando-os em função de uma
procura de personalização (MALRIEU, apud
LANE, 1991, p.35).

Uma análise concreta das representações que um indivíduo tem do


mundo que o rodeia somente é possível se consideradas inseridas num
discurso bastante amplo, no qual as lacunas, as contradições e, conse-
qüentemente, a ideologia possam ser detectadas. Compreender, então,
representações sociais implica conhecer não apenas o discurso mais
amplo, mas a situação que define o indivíduo que as produz.

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David José Diniz e Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano — 103

O pensamento complexo na relação meio ambiente e ser humano

O conceito de “meio ambiente” nem sempre é colocado de forma


a traduzir a complexidade que lhe é inerente, perdendo ele, às vezes, o
seu sentido mais abrangente. A palavra “meio” pode expressar metade
em distância ou tempo, centro, maneira ou modo de agir, método para
executar ou alcançar algo, uma via, um caminho, poder ou capacidade
para praticar uma ação, além de já conter em si o sentido de ambiente,
quando se refere à esfera social ou profissional, onde se vive ou traba-
lha, ao lugar com suas características e condicionamentos geofísicos. Já
o substantivo “ambiente” traduz a definição de lugar, sítio, espaço, recin-
to, aquilo que cerca ou envolve os seres vivos ou as coisas, por todos os
lados (FERREIRA, 2000).
Sendo assim, o termo “meio ambiente” transmite a idéia de um
conjunto de condições naturais e de influências que atuam sobre os
organismos vivos e os seres humanos (FERREIRA, 2000). Indo mais
além, essa expressão engloba também as “coisas”, ou seja, o que não
contém vida, como mostra a própria definição de ambiente, quando
descreve que reúne espaços, locais naturais ou construídos pelos se-
res vivos. Meio ambiente deve abranger também, de maneira mais
ampla, as relações socioculturais, já que “meio” também significa
via, método, capacidade, ou seja, maneira de conseguir algo, que re-
úne aqui linguagem, comunicação, organização, ação e, conseqüen-
temente, aquilo que resulta desse agir.
Em se tratando de meio ambiente, torna-se indispensável o pen-
samento complexo, que, segundo Morin (1990), tem como desafio
exercer um pensamento capaz de tratar o real, de dialogar e de nego-
ciar com ele.
O pensamento complexo, ao contrário do pensamento simplifi-
cador que desintegra a complexidade do real, integra o mais possível
os modos simplificadores de pensar, mas recusa as conseqüências
mutiladoras, redutoras, unidimensionais e, finalmente, ilusórias de uma
simplificação que se toma pelo reflexo do que há de real na realidade
(MORIN, 1990).
A relação entre meio ambiente e a teoria do pensamento comple-
xo, talvez, esteja principalmente no fato de que, assim como este, aquele
compartilha a ambição de dar articulações entre domínios disciplinares,

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104 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

que são quebrados pelo pensamento disjuntivo, aspirando ao pensamen-


to multidimensional. Outra contribuição do pensamento complexo à defi-
nição de meio ambiente está no fato de aquele rezar, permitir, em seu
enunciado (PASCAL, apud MORIN, 1990), que todas as coisas são
causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, que
todas se mantêm por um elo natural e insensível, que liga as mais afasta-
das e as mais diversas, sem eliminar a contradição interior, ou seja, que
verdades profundas, antagônicas umas às outras, podem ser comple-
mentares sem deixar de ser antagônicas (MORIN, 1990).
Segundo Reigota (apud NASCIMENTO, 2000) o que se observa
são versões “naturalistas” do meio ambiente, enquanto a ação e a pre-
sença humana aparecem menos freqüentemente. Além disso, o autor
conclui, ao examinar as definições de meio ambiente fornecidas por es-
pecialistas de diferentes áreas científicas, que não existe consenso sobre
o que seja meio ambiente. Isso é referendado por Moraes (apud NAS-
CIMENTO, 2000), em um estudo voltado às representações sociais so-
bre meio ambiente, por parte de estudantes e profissionais de diferentes
áreas. Já Campos (apud NASCIMENTO, 1990) além de presenciar re-
presentações naturalistas sobre meio ambiente, por parte de professores
de primeiro grau, observou que a maioria quase absoluta de coleções de
livros didáticos caracterizam-se pelo cunho naturalista das concepções
de meio ambiente e estudos ambientais. Isso ocorre, mesmo sendo pres-
suposta, nos guias curriculares e programas governamentais, preocupa-
ção em superar a visão fragmentada de mundo, com a reintegração dos
seres humanos ao seu ambiente e com o desenvolvimento sustentável.
Os mesmos resultados foram encontrados por Nascimento (2000),
em um estudo sobre representações sociais da natureza e do meio ambi-
ente, por moradores de Florianópolis, turistas e agentes mediadores do
turismo na ilha, ou seja, os resultados reforçaram uma visão naturalista
do meio ambiente, por parte dos sujeitos entrevistados. “Meio ambiente
é identificado principalmente como natureza, porém, o inverso não ocor-
reu com a mesma magnitude”.
Cabe, mais uma vez, ressaltar a necessidade do pensamento
complexo, que aborda acontecimentos, ações, interações, retroações,
determinações, acasos, que constituem o mundo fenomenal do ser
humano (MORIN, 1990), com a intenção de pôr ordem nos fenômenos,
sem rejeitar a desordem, afastar o incerto, retirar a ambigüidade,

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David José Diniz e Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano — 105

até porque os seres humanos são sabedores. Como coloca Boff (1999), a
Terra, em sua biografia, conheceu cataclismos inimagináveis, mas sempre
sobreviveu, sempre salvaguardou o princípio da vida e de sua diversidade.
No entanto, é mister o reconhecimento, a concepção da situação
atual, com objetivo de estabelecer um ponto de partida para uma estraté-
gia de mudança consciente, fundamentada, elaborada, opondo-se a um
programa que é uma seqüência de ações predeterminadas, que deve
funcionar nas circunstâncias que permitem o seu cumprimento, caso
contrário, pára ou fracassa (MORIN, 1990).
Deve-se se desprender do pensamento mutilador, simplificador, que
conduz às atividades semelhantes, à uma patologia da idéia, ao idealismo
que oculta a realidade que se encarrega de traduzir e se considera como
a única real, como definido em Morin (1990), optando-se por uma visão
de meio ambiente como um

[...] sistema que tem necessidade de ser fechado ao


mundo exterior, a fim de manter as suas estruturas
e o seu meio interior, mas que simultaneamente
obtém este fecho a partir da sua abertura, pois a
organização do ser vivo se dá no desequilíbrio re-
cuperado ou compensado, no dinamismo estabili-
zado, um sistema aberto (MORIN, 1990, p.32).

Ao considerar o meio ambiente um sistema fechado, atribui-se a


ele pouca individualidade, um sistema que não faz trocas com o exterior
e está em muito pobres relações com o meio, ao contrário de um sistema
aberto, um sistema autoeco-organizador, que tem a sua individualidade,
ela mesma ligada a relações muito ricas e, portanto, dependentes do
meio, não podendo bastar-se a ele próprio, que só pode ser totalmente
lógico ao introduzir, nele, o meio estranho (MORIN, 1990).
Fica mais clara e completa a definição de meio ambiente sob a
luz do pensamento complexo, porque a complexidade não compreende
apenas quantidades de unidades e interações que desafiam as possibi-
lidades de cálculo, ela compreende também incertezas, indetermina-
ções, fenômenos aleatórios (MORIN, 1990). A visão de sujeito e ob-
jeto, a partir do pensamento complexo, também auxilia na elaboração
do termo meio ambiente, pois, para a complexidade, objeto e sujeito
abandonados, cada um a eles próprios, são conceitos insuficientes,

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106 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

a idéia assume extrema pobreza, fechada sobre si mesma. Partindo daí


para o tema do reflexo, segundo o qual, se sujeito reflete o mundo, isso
pode também significar que o mundo reflete o sujeito (MORIN, 1990), e
também para o que propõe Boff (1999), não há objeto sem sujeito e
sujeito sem objeto, o que inclui todos como participantes e jamais como
meros espectadores.
Indo um pouco além na questão sujeito-objeto, chega-se ao que
Morin (1990) chama de paradigma do Ocidente, no qual o objeto é o
determinável, o isolável e, conseqüentemente, manipulável. Ainda, o su-
jeito é o desconhecido, desconhecido porque é indeterminado, espelho,
estranho, porque é totalidade. Segundo esse paradigma, o sujeito é o
tudo-nada, nada existe sem ele, mas tudo o exclui, é o suporte de toda a
verdade e, ao mesmo tempo, o erro diante do objeto.
Nesse contexto, por assim dizer, a saída, a solução, dá-se pela con-
sideração do ecossistema social, que permite ao ser humano distanciar-
se de si mesmo, olhar-se do exterior, reconhecer a sua subjetividade, até
porque a noção de sujeito somente toma sentido num ecossistema (natu-
ral, social, familiar etc.), em que “a noção de sujeito e objeto se reconhe-
cem tornando-se abertura, de uma para a outra, abertura para o mundo,
abertura para uma eventual ultrapassagem da alternativa para um even-
tual progresso do conhecimento” (MORIN, 1990, p.71).
Mesmo com toda essa vasta possibilidade de definições e associa-
ções, deve-se ter em mente que o que se define pela complexidade nun-
ca será encerrado no conceito, e que o mundo nunca será aprisionado no
discurso, pois a complexidade não tem a pretensão de comportar a ver-
dade absoluta, a completude das definições, mas sim abrir campo para
uma discussão, uma crítica, uma ampliação da visão, dos conceitos.

Ser humano e meio ambiente

Meio ambiente, de forma geral, pode ser definido como “ambiente


da casa” e inclui todos os organismos contidos nela e todos os processo
funcionais que a tornam habitável (ODUM, 1988), sendo estudado pela
ecologia, que é o estudo do “lugar onde se vive”, com ênfase na totalida-
de ou no padrão de relações entre os organismos e o seu ambiente, como
revela uma das definições do Webster”s Unabridged Dictionary, citada
por Odum (1998).

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David José Diniz e Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano — 107

Entretanto, seja qual for o conceito formado sobre meio ambiente,


ele deve evidenciar a consciência de que o ser humano é um fator da
conservação ambiental, de recuperação dos espaços perdidos e, ao mes-
mo tempo, o realizador de sociedades em que a justiça social e a dignida-
de humana sejam valores respeitados e atuantes. Para tanto, a ferra-
menta eficaz será a expansão da educação ambiental (FILHO, 1999).
Ainda, ao considerar a relação ser humano e meio ambiente, é
importante voltar para a seguinte descrição:
Importa tirar o ser humano de seu falso pedestal e de sua solidão
onde se autocolocou: fora e acima da natureza. É seu antropocentrismo
ancestral e seu individualismo visceral. Ele inter-existe e co-existe com
outros seres no mundo e no universo. Ele precisa reconhecer esse vín-
culo de solidariedade cósmica, e inserir-se conscientemente nela. A cen-
tralidade em si mesmo – antropocentrismo – é sinal de arrogância e de
falsa consciência. Em primeira instância, nós somos para a Terra. So-
mente a partir daí, a Terra é para nós (BOFF, 1998, p. 21).

Metodologia

Pesquisa em educação

De acordo com Sá (1996), a pesquisa qualitativa em educação apre-


senta cinco características básicas: 1) a pesquisa qualitativa tem o ambi-
ente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu
principal instrumento; 2) os dados são predominantemente descritivos;
3) a preocupação com o processo é muito maior do que com o produto;
4) o “significado” que as pessoas dão às coisas e à sua vida é foco de
atenção especial pelo pesquisador; 5) a análise dos dados tende a seguir
um processo indutivo.
Ao considerar a educação um fenômeno, deve-se começar por
reconhecer que se trata de uma experiência profundamente humana.
Em sentido forte, é mesmo uma experiência universal e exclusivamente
humana: todos os homens educam-se, e somente eles o fazem. Isso sig-
nifica que a experiência da educação torna-se uma das manifestações
mais primitivas e típicas do fenômeno humano, em relação essencial
com as outras características desse último (REZENDE, 1990). Assim:

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108 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

Educar-se, para a fenomenologia, consiste, antes de


tudo, em aprender o sentido, para que a existência
possa ser vivida humanamente como tal. O proble-
ma subjacente a semelhante posicionamento é o da
alienação, na medida em que indivíduos e grupos, a
sociedade e as classes sociais, ou mesmo a humani-
dade, podem viver sem perceber o sentido que suas
vidas realmente têm (REZENDE, 1990, p. 51).

Sobre pesquisas em educação (e em ciências humanas), elas de-


veriam apresentar, segundo Rezende (1990), somente três momentos
correspondentes aos três sentidos da palavra “sentido”. Num primeiro
momento, a que se chama de fase da constatação, constata-se a reali-
dade com um levantamento adequado dos dados, do sentido dado, em
vista de uma descrição suficiente e significativa da situação de mundo
que foi escolhida como objeto de pesquisa. Aqui, mais do que os dados
simplesmente estatísticos, importa saber o que eles significam, num ques-
tionamento da realidade. O estabelecimento de um questionário é consi-
derado, pela fenomenologia, um dos melhores indicadores do senso do
sentido e do senso da realidade. Um questionário pode proporcionar res-
postas perfeitamente insignificantes, exatamente porque as questões não
eram significativas.
Num segundo momento, correspondente ao segundo sentido da
palavra “sentido”, considera-se a realidade constatada, não apenas para
explicá-la, mas no intuito de compreendê-la. Semelhante constatação
faz-se pela tentativa de evidenciar as diversas relações internas e as
manifestações de suas contradições, bem como a descoberta das possi-
bilidades de auto-superação.
No terceiro momento, que é de projeção-prospectiva, evidencia-
se, à luz do projeto, como essas contradições e possibilidades podem ser
exploradas, em vista de uma outra realidade, de uma outra situação his-
tórica, julgada preferível e desejada pelos sujeitos e para eles.
Muitas pesquisas em educação têm-se limitado à primeira dessas
três etapas, embora nem sempre de maneira significativa, sem atingir a
segunda e muito menos a terceira. É claro que, dessa forma, a educação
e a aprendizagem têm contribuído muito mais para a reprodução do sis-
tema, ou, quando muito, mais para a consciência de seu vigor auto-re-
produtivo, do que para sua negação revolucionária (REZENDE, 1990).

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Com a evolução dos próprios estudos na área da educação, perce-


beu-se que poucos fenômenos nessa área podem ser submetidos a esse
tipo de abordagem analítica, pois, em educação, as coisas acontecem de
maneira tão interligada que fica difícil isolar as variáveis envolvidas e
mais ainda apontar claramente quais são as responsáveis por determina-
do efeito (LÜDKE e ANDRÉ, 1986).
Na perspectiva teórica, uma representação social define-se por
seu conteúdo (informações e atitudes) e sua organização, ou seja, sua
estrutura interna. Essa organização repousa sobre uma hierarquia entre
os elementos, determinada de “núcleo central” (ibid., 1996). Sendo as-
sim, este estudo exigiu a utilização de métodos que possibilitaram levan-
tar os elementos constitutivos da representação, conhecer e organizar
esses elementos e delimitar o núcleo central da representação.
Quanto ao campo de trabalho, os sujeitos dessa pesquisa foram
alunos dos cursos de Engenharia Ambiental da Universidade Federal de
Itajubá (UNIFEI-MG), aqui chamados de sujeitos e não de objetos, por
se tratar de uma pesquisa educacional que envolve seres humanos.

Descrição das etapas percorridas

Após a elaboração do projeto de pesquisa, as técnicas a serem


aplicadas no levantamento e na análise dos dados foram definidas, bem
como os sujeitos da pesquisa, descritos a seguir:

a) Alunos do primeiro ano de Engenharia Ambiental.


b) Alunos do quarto ano de Engenharia Ambiental.

Então, propôs-se, separadamente, aos dois grupos de sujeitos da


pesquisa, que, nas quatro folhas em branco distribuídas, escrevessem
dez palavras, que lhes viessem à mente, referentes aos seguintes temas,
seguindo esta, exatamente esta, ordem: 1) Meio ambiente e o Ser Hu-
mano; 2) Meio ambiente e a Sociedade; 3) Meio ambiente e a Engenha-
ria Ambiental; e 4) Meio Ambiente e Você. Aqui se observa, nos dois
primeiros itens, uma aparente dicotomia (indivíduo-sociedade), que foi pro-
positalmente sugerida, por permitir a análise de sentidos dados à relação que
os estudantes concebem sobre o ambiente, em termos gerais, em termos de
“humanidade” e em temos específicos, quanto aos sujeitos envolvidos
e inseridos em grupos sociais e as inter-relações com o meio ambiente.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004
110 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

Assim, tais itens permitem reforçar sentidos dados, mediante reafirma-


ções nas respostas, ou permitem o desvelamento mesmo de contradi-
ções, na construção de representações sociais.
Em seguida, em uma folha de papel almaço em branco, distribuída
a cada aluno, sugeriu-se a eles que, pensando em meio ambiente, fizes-
sem um desenho nessa folha, dando-lhe posteriormente um título.
Com as associações de palavras, puderam-se identificar termos
que definiram e confirmaram a concepção de meio ambiente de cada
aluno e, com os desenhos e seus respectivos títulos, confirmar os concei-
tos descritos nas relações de palavras.
Fazendo-se, num próximo passo, uma análise, por grupo, dos da-
dos obtidos, pôde-se identificar o que, em Representação Social (RS),
chama-se de Núcleo Central (NC). Nessa fase, o trabalho caracterizou-
se por um entrecruzamento dos dados, a fim de configurar o NC, ou seja,
RS (incidência comum de significados do grupo de pesquisados).

Resultados e discussão

As palavras que mais foram relacionadas por turma, para cada


tema sugerido, na detecção do Núcleo Comum da RS estão na Tabela 1.
Consideraram-se palavras que apareceram numa quantidade mínima
capaz de ter alguma representatividade.

Tabela 1
Palavras de maior destaque nas associações de palavras dos
alunos do primeiro e do quarto ano de Engenharia Ambiental

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David José Diniz e Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano — 111

A Tabela 1 desperta, no mínimo, duas reflexões: primeiro, a re-


lação com o meio ambiente, quando vista do ângulo pessoal (Eu e
Engenharia), é mais otimista (respeito, preservação, preocupação, pro-
teção), para o EU, reserva-se uma atitude, uma posição de salva-
mento, proteção, enquanto os OUTROS (Sociedade e Ser Humano)
agridem o meio ambiente (degradação, destruição, poluição, desma-
tamento). Isso se percebe nas duas turmas, porém, com maior inten-
sidade nas associações de palavras dos alunos do primeiro ano. As-
sim, nota-se a tendência de, ao associar Meio Ambiente e o EU, os
estudantes ressaltarem toda a problemática atual que vem se discu-
tindo acerca das questões ambientais, como desmatamento, poluição
etc. Segundo, há exclusão do EU social, pois descreve um comporta-
mento da SOCIEDADE diferente do seu. Se a SOCIEDADE des-
trói, EU preservo. Se ela desrespeita, EU respeito. Se ela trata o
meio ambiente com indiferença, EU tenho consciência. Percebe-se,
nessa dicotomia, um processo de auto-exclusão.
Quando se trata de fazer uma relação de palavras associando o
meio ambiente e o curso que se está fazendo, a palavra que se destaca é
“água”, ou seja, o meio ambiente é associado a um recurso natural. Esse
comportamento pode ser explicado, analisando-se a quantidade de disci-
plinas ministradas, no decorrer do curso, que abordam o tema água. Aí
os sujeitos deixam claro uma concepção de meio ambiente como maté-
ria-prima, porém, que deve ser trabalhado conscientemente (proteção),
afinal, essa relação inclui o EU, o EU-engenheiro.
Os sujeitos em destaque vêem-se presentes, identificam-se no EU,
na ENGENHARIA AMBIENTAL e no SER HUMANO, ou, pelo me-
nos, auto-incluem-se no universo que essas palavras abrangem. Daí re-
sulta, ao associar essas palavras a meio ambiente, uma série de palavras
otimistas. Quanto ao termo SOCIEDADE, quando associado a meio
ambiente, é correlacionado por uma série de palavras que expressam
atitudes negativas, num processo de auto-exclusão. Esses dados devem
ser, porém, relativizados, considerando-se a “falsa dicotomia” que pode
ter provocado uma necessidade de distinção de sentidos para a elabora-
ção das listas de palavras pedidas. Ao invés, pois, de essa “falsa dicoto-
mia” ter contribuído para reafirmar sentidos, observa-se que ela pode ter
contribuído para desvelar uma dicotomia que é vivida pelos próprios es-
tudantes, em relação ao meio ambiente.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004


112 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

Quanto aos desenhos, percebeu-se incoerência de idéias e de con-


ceitos, como, por exemplo, o uso incorreto dos termos “preservar” e
“recuperar”, fazendo-se uso invertido desses conceitos. Também há in-
coerência entre muitos desenhos e seus títulos e, em alguns desenhos,
principalmente nos desenhos realizados pelos alunos do primeiro ano,
destaca-se uma visão romântica, idealizada, do meio ambiente.
Entretanto, o ponto alto da análise está na percepção da ausência,
em praticamente em todos os desenhos, tanto dos alunos do primeiro
como do quarto ano, da figura humana, do homem ou da mulher em si.
Quando se faz alguma referência do humano, ela está associada quase
sempre a suas atitudes prejudiciais ao meio ambiente. Há uma “demoni-
zação” do humano, ele é, o Homem é visto como aquele que não se
preocupa, aquele que está alheio à condição atual do meio ambiente,
nesse contexto definido pelos sujeitos como o planeta.
Quando se pretende demonstrar, por intermédio do desenho, como
seria um meio ambiente ideal, evidencia-se a eliminação do ser humano,
elemento cuja presença impossibilita a existência de um mundo ambien-
talmente correto.
Na maioria dos desenhos, meio ambiente e vida são descritos pela
natureza, ou seja, revela-se uma visão que se pode determinar “visão
naturalista” de meio ambiente, expressão abordada anteriormente neste
trabalho, na fundamentação teórica, na qual predomina uma relação sim-
plista de meio ambiente com os elementos da natureza.
Nesse contexto, entendendo-se o desenvolvimento econômico, tec-
nológico e social como característica essencial do modo de vida humano,
ficam esses elementos também fora da definição de meio ambiente ex-
pressadas no desenho. O desenvolvimento, assim como a figura huma-
na, somente tem espaço quando a intenção é demonstrar um meio ambi-
ente degradado, destruído, impactado.
Vale levantar aqui a questão da formação de idéias e conceitos
dos alunos, principalmente daqueles que pertencem ao grupo de sujeitos
composto pelos alunos do quarto ano. Se estiverem eles sendo formados
para atuar em um mercado cada vez mais voraz e ansioso por desenvol-
vimento, associar meio ambiente, ser humano e desenvolvimento seria
de vital importância. Uma visão do humano, nesse contexto, é indispen-
sável, não como um super-homem, um salvador, mas como aquele que
tem consciência da necessidade de desenvolvimento, aliado a atitudes e
valores ambientalmente corretos.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004
David José Diniz e Rita de Cássia Magalhães Trindade Stano — 113

Considerações finais

Educação ambiental

Seria necessária numa proposta de educação ambiental capaz de


trabalhar sobre um grande ou, talvez, o maior problema detectado neste
trabalho, que é a exclusão da figura humana propriamente dita ou de suas
ações e produtos, ao definir e expressar a concepção de meio ambiente.
Seria interessante que a educação ambiental não fosse associada a
uma disciplina específica, e sim a um projeto pedagógico conscientiza-
dor, e abordasse conteúdo que permitisse suprir a dificuldade de visuali-
zar, conciliar o ser humano, na elaboração de um meio ambiente como
lócus de contradições e de possibilidades, até porque, percebe-se, predo-
mina a consciência da necessidade de preservação, conservação, recu-
peração, porém, “nega-se” a principal ameaça para esse meio ambiente
idealizado, o ser humano.
É comum também encontrar, ao definir-se “meio ambiente” a sim-
ples associação dele com a “natureza”, ou seja, há aqui o equivoco por
se tomar a parte para representar o todo. Isso, em uma visão holística,
ingênua, simplória, ignorante (falta de conhecimento), na qual inexiste o
contato com um conhecimento um pouco mais elaborado, é uma cons-
tante. Por outro lado, dos envolvidos ao assunto, espera-se o desprendi-
mento desse conceito, mesmo quando o objetivo é destacar a necessida-
de de um “meio ambiente” em seu estado mais idealizado.

Alienação e meio ambiente

Em se tratando de meio ambiente, percebe-se, na maioria dos su-


jeitos, uma visão simplista, limitada, fechada, que se pode chamar de
visão naturalista. Toma-se o todo pela parte, ou seja, meio ambiente é
visto como natureza, fauna e flora. Exclui-se do meio ambiente o ser
humano, suas relações e, principalmente, o desenvolvimento. Esse com-
portamento seria interessante, se essa exclusão fosse consciente, propo-
sital, revelasse uma alienação. Apesar do forte sentido ideológico do
termo, optou-se por se destacar aqui o construto teórico elaborado por
Norbert Elias, por sua adequação à reflexão provocada pelos dados co-
lhidos nesta pesquisa. Assim, alienação, como sinônimo de afastamento,

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004


114 — Representações sociais sobre meio ambiente de alunos que cursam Engenharia Ambiental

distanciamento, porém, sem, em momento algum, perder a noção, ao


contrário, distancia-se, no intuito de conhecer melhor, de apreender, com-
preender (ELIAS, 1998). Trata-se de um estado de alienação que per-
mite, num estágio posterior, uma inclusão mais consciente, em que se
tem um domínio do objeto.
A alienação, nesse sentido, é necessária, justamente pelo fato de
se excluir, com a intenção de, num momento seguinte, incluir-se, afastar-
se para conhecer sua própria posição, num contexto em que a maioria
ocupa o seu espaço, sem ter consciência da sua influência, sua contribui-
ção e, por que não dizer, sem ter consciência de sua interferência.
Dessa forma, um processo proposital, não ignorante, de distan-
ciamento em si só já é vantajoso, pois ele, na pior das hipóteses,
desperta o sujeito para suas omissões, mesmo que não haja mudança
na forma de pensar, de agir, o que seria um dos principais objetivos
deste tipo de alienação.
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(Recebido em abril de 2004 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.99-115, abril de 2004


Novas tramas produtivas no setor de
telecomunicações pós-privatização: a experiência
do Rio Grande do Sul*

Sandro Ruduit Garcia1


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo Abstract

O objetivo deste texto2 é ana- This paper aims to analyze


lisar as características das novas aspects of the new production
tramas produtivas que se configu- strategies present in the telecom-
ram no setor de telecomunicações, munications sector in Rio Grande
no Estado do Rio Grande do Sul, a do Sul state, in Brazil, since its pri-
partir do processo de privatização vatization in 1998. It has been
ocorrido em 1998. Constatou-se found out that privatized compa-
que a empresa desestatizada redu- nies reduced their own personnel
ziu o quadro de pessoal e ampliou and expanded contracts with other
__________________________________________________
*
New productive strategies in telecommunication industry after privatization: the case of
Rio Grande do Sul
1
Endereço para correspondências: Av. Prof. Oscar Pereira, 1000/604, Bloco A1A, Porto
Alegre, RS, CEP 90640-070 (sandroruduit@ig.com.br).
2
Este artigo apresenta aspectos de minha dissertação de mestrado Relações interfirmas
e emprego: estudo de uma rede de empresas em telecomunicações, defendida no PPGS/
UFRGS, em 2001. Agradeço o apoio do grupo de pesquisa Trabalho na Sociedade
Contemporânea (PPGS/ UFRGS), animado pela Profa. Dra. Sônia M. G. Larangeira,
bem como os comentários da Profa. Dra. Cinara Rosenfield (PPGS/ UFRGS) à versão
preliminar do texto.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


118 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

a terceirização de trabalho, confi- companies, which offer them ser-


gurando uma nova trama produti- vices. This new strategy relies on
va marcada pela diversidade nas novel relationships between com-
relações interempresas, nas formas panies, along with new ways of
de uso e de gestão da força de tra- utilizing employees” work and
balho e nas condições de emprego. managing jobs. So privatization le-
Portanto, a privatização acarretou a aded to worse jobs for some
perda de qualidade do emprego para workers, even though it did not
alguns, porém não afetou negativa- affected the level of employment
mente o nível de emprego no setor. in the sector.

Palavras-Chave: Privatização; Keywords: Privatization; telecom-


telecomunicações; relações inter- munications; intercompany relati-
firmas; emprego. ons; employment.

Introdução

N o âmbito da chamada nova economia, o setor de telecomunicações


está a experimentar importantes transformações que atingem a
escala mundial. Caracterizado, até o início da década de 1990, por mo-
nopólios públicos ou privados, o setor enfrenta processos de privatiza-
ção, de liberalização, de desregulamentação de mercados e de fusões
entre empresas, bem como uma verdadeira revolução tecnológica (inte-
gração com o computador, transmissão por satélite, uso de fibras ópti-
cas, telefonia móvel), atestada pelo fato de que, no ano 2000, foram
investidos em telecomunicações cerca de 6% do PIB mundial (OIT, 2002).
A nova realidade das telecomunicações, neste século XXI, vem impondo
a reestruturação técnica e organizacional dos tradicionais monopólios,
repercutindo sobre as formas de uso e de gestão da mão-de-obra, sobre
o nível e a qualidade do emprego, sobre as condições de saúde e de
segurança no trabalho, sobre as qualificações, sobre o perfil da mão-de-
obra e até mesmo sobre a ação sindical.
No Brasil, o setor de telecomunicações experimentou um duplo mo-
vimento de privatização e de reestruturação das empresas nacionais. A
convergência entre a transformação do mercado de telecomunicações, a
existência de demanda por telefonia não atendida e as estratégias gover-
namentais, aos níveis Federal e Estadual, estimularam a privatização e

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 119

reestruturação da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT),


hoje chamada Brasil Telecom (BrT), principal empresa do setor, no Estado
do Rio Grande do Sul. Nesse caso, foram alteradas as formas de trabalho,
de produção e de atuação no mercado da empresa, expressas por: a) in-
tensa modernização tecnológica e ampliação da planta (incorporação da
fibra óptica e digitalização das centrais de comutação); b) mudanças orga-
nizacionais (voltadas para a flexibilização e para a redução do emprego na
empresa); c) transformações institucionais (privatização, em 1998, e libe-
ralização do mercado de telefonia fixa, no ano 2000); e d) expansão da
externalização de tarefas relativas, inclusive a sua atividade fim (rede óp-
tica, cabeamento metálico, instalação de terminais telefônicos, atendimen-
to a clientes, além de serviços de apoio, como limpeza, vigilância e xerox).
Visando à ampliação e à atualização tecnológica da malha telefônica, a
CRT passou a liderar uma nova trama produtiva marcada pela diversidade nas
relações interempresas, nas formas de uso e de gestão da força de trabalho e
nas condições de emprego. Os postos de trabalho perdidos no âmbito da CRT
foram, de certo modo, transferidos para empresas terceiras, configurando no-
vos arranjos interfirmas, nos quais há empresas com diferentes estratégias de
competição no mercado, com distintos perfis organizacionais e gerenciais (ino-
vadores e restritivos) e com múltiplas práticas de emprego (vínculo formal e
informal, assalariados, trabalho por tarefa, trabalho temporário). Daí a perti-
nência em analisar-se, nessa nova trama produtiva, a articulação entre as
distintas práticas de emprego utilizadas, abrangendo os diversos padrões de
relacionamento interfirmas e níveis existentes, pós-privatização.
A partir disso, o objetivo deste texto é analisar as características das
novas tramas produtivas que se configuram no setor de telecomunicações,
no estado do Rio Grande do Sul, a partir do processo de privatização ocor-
rido em 1998. Trata-se, mais especificamente, de examinar a dinâmica das
relações que se estabelecem entre uma das principais empresas do estado
(desestatizada) e as empresas contratadas para a execução dos serviços
de rede telefônica, bem como as características de uso e gestão da mão-
de-obra e as condições de emprego, nessas empresas.
O texto contém três seções, além desta introdução: na primeira,
apontam-se tendências de mudança no setor de telecomunicações em
âmbito internacional, mormente no que se refere aos processos de priva-
tização, liberalização, reestruturação e suas implicações para a composi-
ção do emprego; na segunda, apresentam-se as características da nova
trama produtiva, a partir da privatização da principal empresa do setor
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004
120 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

de telecomunicações no estado, focalizando as relações interfirmas (em-


presa contratante e fornecedores), as formas de uso e de gestão da
força de trabalho e as condições de emprego. Finalmente, são apresen-
tadas as conclusões da análise.

A transfiguração do setor de telecomunicações

Na economia globalizada, os serviços de telecomunicações tornam-


se estratégicos para o desenvolvimento econômico e social. A conver-
gência entre as telecomunicações e o computador constitui a base mate-
rial sobre a qual se apóia a chamada nova economia (CASTELLS, 1999)3.
A competição global e oligopolística entre grandes indústrias e institui-
ções financeiras tornou o acesso aos serviços de infra-estrutura, dentre
eles, os de telecomunicações, fator fundamental de competitividade (PES-
SINI e MACIEL, 1995; PORTO, CANO e SILVA, 2000). Amplia-se
sobremaneira a necessidade de investimentos, bem como a demanda
pelos serviços de telecomunicações, atraindo o interesse de grandes cor-
porações, no sentido da exploração de um mercado com amplo potencial
de expansão, marcado até a década de 1980 por monopólios estatais.
Estudos sobre o setor, tanto em países centrais, Estados Unidos, Ingla-
terra, França, Alemanha, Holanda e Espanha (CHANG, KOSKI e MAJU-
MDAR, 2003; COSTA 1996; LARANGEIRA, 1998 e 2003), como em
países periféricos, Brasil, Argentina, México, Chile e Uruguai (COSTA, 1996;
RUELAS, 1998; WALTER e GONZÁLEZ, 1998; WALTER, 1998) evi-
denciam certas convergências: rápida evolução tecnológica, privatização e
liberalização de mercados, fusões e aquisições entre empresas tradicionais e
novas empresas. No entanto, a velocidade e a intensidade da reestruturação
do setor, bem como os arranjos que produz, são heterogêneos, variando de
acordo com a conflitualidade e a participação dos atores sociais envolvidos
(Estado, capital privado, sindicatos, trabalhadores, consumidores), com a tra-
jetória do setor em cada sociedade e com a conjuntura política e econômica
nacional, por mais que esse movimento seja uma tendência internacional4.
__________________________________________________
3
Sobre o uso, potencialidades e desigualdades das telecomunicações na sociedade da informa-
ção, no Brasil, veja-se Sorj (2003) e Ripper (2003).
4
Como exemplos de tais divergências, pode-se mencionar que, em países nos quais os
sindicatos são mais fortes e estruturados, a reestruturação tende a ser lenta e gradual, nos
países periféricos, a reestruturação assume caráter restritivo e imposto a partir das pres-
sões de corporações e de agências internacionais, visando à exploração de novos mercados
e, nos países centrais, os processos ocorrem por pressões internas, dos grandes grupos
industriais interessados em serviços mais eficientes e baratos.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 121

Investimentos massivos têm sido aplicados em inovação tecnológica e


em ampliação de redes telefônicas. De fato, no ano de 1990, as taxas de
crescimento anual do PIB e do setor em todo o mundo foram, respectiva-
mente, 2,2% e 1,8%. Mas, em 1995, enquanto o PIB mundial teve um incre-
mento de 3,5%, a taxa de crescimento do setor de telecomunicações foi
precisamente o dobro: 7% (BRASIL, 1997). A internet é uma das expres-
sões mais significativas dessa expansão: expandiu-se a taxas superiores a
100% ao ano durante na década de 1990 (Idem, 1997). Como evidencia
Figari (1998), relativamente ao caso argentino, junto com as inovações tec-
nológicas, as empresas vêm adotando novos conceitos organizacionais para
flexibilizar o trabalho, notadamente, a externalização de tarefas.
A nova realidade do setor de telecomunicações é marcada, cada
vez mais, por empresas internacionais, em lugar de companhias nacio-
nais. Em muitos casos, os processos de privatização, de liberalização e
de reestruturação das tradicionais empresas do setor impõem prejuízos
aos trabalhadores, tais como redução do emprego nas tradicionais em-
presas monopolísticas estatais, como se observa na Figura 1.

250 1234
249
1234
1234
1234
1234 227
1234 1234
1234
227
1234 1234 22512345
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200 1234
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1234 1234
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169 1234 123412345
185 123412345
1234 123412345 123412345
164123 1234 123412345 123412345
1234 123412345 1234
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156 1234123 1234 123412345 12345
150
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1234
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1234123 1234
1234 1234
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12345 1234
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1234123
12345 1234138 123412345 123412345
12345 12345
12345
12345
1234123 1234 1234 123
12345138 123412345136 12345
1234123
12345
1234
12345 1234
1234 1234
12345
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123412345 12345 1991
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12345 123412345123 12345
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1234123 1234
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1234 123
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12345123 12345 1995
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12345
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12345
123
12345 1234
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12345123
123 123
123
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1234123 1234
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1234 123412345
123 123412345123 123
12345
1234 1234
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123
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12345 123412345 123412345
50 1234123 1234 123 123
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1234 1234
12345 123412345 123412345
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1234 1234
12345 123412345
123
123412345 123412345
123412345123
0
France Télécom Brasil Telecom NTT DeutscheTelekom

Figura 1
Emprego nas operadoras tradicionais de telecomunicações na
França, no Reino Unido, no Japão e na Alemanha – 1991, 1995,
1999 (em milhares)

Fonte: Composição a partir de Organização Internacional do Trabalho (2002).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


122 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

No entanto, embora não seja uma tendência generalizada, também


se verifica, em muitos casos, expansão do emprego global no setor –
como se pode observar no Figura 2 –, em razão do ingresso de empresas
concorrentes, da expansão da telefonia móvel e das chamadas empre-
sas pontocom. O problema está na qualidade dos novos postos de traba-
lho: expande-se rapidamente o trabalho em tempo parcial e recua o tra-
balho em tempo integral, o que aponta para tendência de precarização
do trabalho em segmentos do setor, mesmo em países centrais – vide
Figura 3. Estudos recentes indicam outro aspecto significativo: uma re-
estruturação das práticas sindicais vis-à-vis à nova realidade. O setor
era marcado mundialmente por relações de emprego bastante vantajo-
sas aos trabalhadores: altos salários, estabilidade, amplos planos de be-
nefícios sociais. Entretanto, os sindicatos e os trabalhadores enfrentam,
hoje, negociação com empresas privadas de capital internacional, em
contexto de adoção de estratégias de redução de custos, de produção
flexível e de amplo uso da externalização de trabalho (LARANGEIRA,
2003), todas restritivas relativamente ao emprego.

1200
12345
1070
12345
1000 12345
12345
12345
12345
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123412345
800 1234
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123412345
12345
123412345 12345
1234
123412345 12345
600 123412345
12345 12345
12345 1995
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123412345
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1234
123412345
12345 12345
12345 1999
123412345
400 1234
123412345
223 123412345
12345 245
12345 1234
123412345
12345 243
12345
1234
1234
217
123412345 123412345 123451234
200 123412345 123412345 123451234
1234
123412345
12345 1234
123412345
12345 12345
123451234
1234
123412345 90 69 123412345 9 1 12345
99 123451234
123412345 1234 81 1234
123412345
1234
123412345 12341234 12345 52 12345 123412345
12345
12345
123451234
1234
123412345 1234 1234 123451234
12345 1234
123412345 123412345 12345
123451234
0 123412345 12341234 1234 12345 123412345 1234
Alemanha Canadá Espanha EUA Itália Japão

Figura 2
Emprego total no setor de telecomunicações em países selecio-
nados – 1995 e 1999 (em milhares)

Fonte: Composição a partir de Organização Internacional do Trabalho (2002).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 123

1200
1070
1234
1000 993 1234
1234
12341234
1234 1234
12341234
1234 1234
800 12341234
1234
1234
1234
1234
12341234
12341234 12345
1234 1234
12341234
12345
12345 1995
600 12341234
12341234 12345
1234
1234
1234
1234 12345
12345
12341234 12345 1999
1234 1234
400 12341234
12341234
1234 1234
12341234 214
12341234
1234
1234
1234
1234 12345
12345
200 1234
1234
1234
1234 168 170
1234
12345
12345
180
12341234 123451234
1234 1234 123451234
12345
1234 101
1234 79 69 46 123451234
1234
29 19 12341234 12345
1234 123412345 123451234
1234 1234 12345
1234 1234
123412345
1234
123412345
12345 123451234
0 1234
12345 12341234
1234 12345
1234 12345 12345
123451234
1234
Argentina EUA Reino Unido Itália Espanha Japão

Figura 3
Emprego em tempo integral no setor de telecomunicações em
países selecionados – 1995 e 1999 (em milhares)

Fonte: Composição a partir de Organização Internacional do Trabalho (2002).

Dessa forma, a reestruturação do setor de telecomunicações tor-


nou-se uma imposição. Quanto às conseqüências desses processos para
os trabalhadores, verifica-se como tendência a redução do emprego nos
tradicionais monopólios, mas, em muitos casos, sem redução global do
emprego no setor. O problema passa a ser a qualidade do emprego, no
contexto de emergência de novas empresas de telecomunicações e de
reestruturação dos tradicionais monopólios.

Novas tramas produtivas no Rio Grande do Sul

No caso do Brasil, a insuficiência dos investimentos do Estado, a


influência no governo de agências internacionais de financiamento (FMI
e BM) e o interesse de investidores privados estrangeiros induziram a
atualização tecnológica e a expansão da rede, combinadas com privati-
zação e liberalização do setor (COSTA, 1996; LARANGEIRA, 1998).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


124 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

O Brasil foi um dos últimos países latino-americanos a privatizar o setor,


em 19985, e vem liberalizando-o paulatinamente, mediante a entrada no
mercado das chamadas empresas-espelho, autorizadas a operar nas
mesmas áreas das atuais concessionárias.
Em dezembro de 1996, o governo do estado vendeu 35% das ações
da CRT6, como forma de capitalizá-la e de prepará-la para a privatiza-
ção total. Em junho de 1998, o governo do estado vendeu a maioria de
suas ações para o consórcio liderado pela Telefónica de España, que
passou a deter 85,12% das ações com direito a voto. Em julho de 2000,
o controle da empresa foi repassado a um consórcio liderado pela Brasil
Telecom S.A. Em 2002, a empresa passou a chamar-se Brasil Telecom
(BrT). A liberalização do mercado também ocorreu gradualmente. A
competição nos serviços de longa distância nacional iniciou-se com a
implantação do Código de Seleção de Prestadora (CSP), em julho de
1999, possibilitando aos usuários a escolha de operadoras em cada cha-
mada efetuada. Em novembro do ano 2000, entrou em operação a cha-
mada empresa-espelho, a Global Village Telecom (GVT), concretizando
o projeto de liberalização do mercado de telefonia fixa local.
Seguindo o que se verifica em âmbito internacional, a privatização
da empresa impôs um radical processo de reestruturação interna, com
significativas implicações para a composição do emprego. Como se ob-
serva na Tabela 1, a empresa passou a investir massivamente na expan-
são da rede telefônica – o que se expressa no incremento do número de
linhas em serviço – e na sua modernização – expressa na digitalização
da planta. Paralelamente, a CRT reestruturou e elevou tarifas, sobretudo
para os clientes residenciais. No período de 1994 a 2000, enquanto o
INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) variou 86,9%, a tari-
fa de assinatura residencial mensal aumentou 3.241% e a não-residenci-
al 522,6% (Sinttel/RS, O Parceiro, set. 2000).
__________________________________________________
5
Isso ocorreu com a venda da Telebrás (Telecomunicações do Brasil S.A.), holding estatal,
criada em 1972, para coordenar a ação da empresas estaduais de telecomunicações.
6
O Rio Grande do Sul e a CRT apresentam peculiaridades nas suas trajetórias. Os serviços de
telefonia no estado iniciaram-se ainda em 1895, sendo executados por empresas privadas.
No ano de 1962, o governo estadual instituiu a Companhia Riograndense de Telecomuni-
cações (CRT), sob seu controle acionário, inspirado em um programa nacionalista do então
Governador Leonel Brizola. Posteriormente, quando da criação da Telebrás, o governo
gaúcho celebrou com o Ministério das Comunicações um contrato de concessão, em 1973,
com duração de 30 anos. O capital social da CRT passou a ser constituído por parcelas
pertencentes à Telebrás, aos assinantes e ao governo do estado, acionista majoritário.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 125

Tabela 1
Mudanças na Companhia Riograndense de
Telecomunicações7 – 1995 a 1999

Fonte: Composição a partir dos Relatórios Anuais da CRT, 1995 a 1999.

Tal investimento resultou na elevação da receita líquida dos servi-


ços. Ao mesmo tempo, a empresa reduziu dramaticamente o número de
empregados, o que implicou a expansão da produtividade dos funcionári-
os (linhas fixas em serviço por empregado). A reestruturação da empre-
sa, apoiada, dentre outros aspectos, na adoção de programas de qualida-
de, no estabelecimento de metas de produção, na polivalência dos traba-
lhadores e na externalização de trabalho, resultou na redução do custo
do pessoal relativamente à receita dos serviços.
Desse modo, um dos aspectos da reestruturação da empresa foi a
configuração de uma nova trama produtiva, decorrente da externaliza-
ção do trabalho de expansão e de manutenção da rede telefônica (digita-
lização das centrais de comutação, instalação de redes de fibra óptica e
de cabos metálicos, instalação de terminais telefônicos) pela CRT – hoje,
__________________________________________________
7
Brasil Telecom, a partir de 2001.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


126 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

Brasil Telecom – a empresas terceiras. É no contexto desse novo ar-


ranjo interempresas que a empresa vem expandindo e modernizando a
malha telefônica e reduzindo o nível de emprego. À redução do empre-
go no antigo monopólio estatal contrapõe-se a expansão do número
total de estabelecimentos e do nível global de emprego no setor de
telecomunicações no Rio Grande do Sul, conforme se verifica no Figu-
ra 4. É importante examinar as condições nas quais essas empresas se
integram à nova trama produtiva, bem como as características dos novos
postos de trabalho.

14000
13333
123456
123456
12000 123456
123456
123456
123456
10000 123456 12345
12345
123456 12345
12345 1997
123456
7182
123456
123456
12345
12345
8000 12345678 123456 12345 1999
12345678 6601 123456 123
12345678 123456
12345678
12345678
12345678
123456
12345678
12345678
123
123 2001
4000 123456
12345678
12345678
12345678
12345678 123456
12345678
12345678
12345678 123456
12345678
12345678 123456
12345678
12345678
12345678
12345678 123456
12345678
123456
2000 12345678
12345678
123456
12345678
12345678
12345678
12345678
12345678
12345678 123456
123456
641 618
12345678
12345678
12345678
12345678
123456
250 12345678
12345678 123456
12345678
123456
0 12345678
12345678 1234567812345678
123456
12345678 1234567812345678
Empregos Estabelecimentos

Figura 4
Telecomunicações no Rio Grande do Sul (1997, 1999, 2001)

Fonte: Relatório Anual de Informações Sociais – Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS/


TEM), 1997, 1999, 2001.

Externalização de tarefas e relações interfirmas

A nova trama produtiva liderada pelo antigo monopólio estatal


compõe-se de uma estrutura de posições e de um sistema de rela-
ções interfirmas, em razão da dispersão do processo produtivo entre
empresas, decorrente da expansão da externalização de trabalho 8.
__________________________________________________
8
Os processos de externalização de tarefas podem envolver a terceirização de trabalho e a
subcontratação de empresas. Sobre tais diferenças, ver Ruduit Garcia (2002b).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 127

Estima-se que o volume de postos de trabalho nas empresas contra-


tadas tenha se ampliado de cerca de 400 postos, em 1997, para cerca
de 4.000 postos, em 2000, à medida que as atividades de construção
e de manutenção de redes telefônicas foram totalmente terceirizadas
(Entrevista com Diretor do Sinttel/RS).
Além dos registros e impostos corriqueiros, o critério para a
contratação de empresas, na forma de concorrência, era o menor
preço, gerando três tipos de problemas: 1) a contratação de inúmeras
empresas (cerca de 88) dificultava o controle e a fiscalização dos
serviços prestados; 2) a instituição de metas de qualidade e de uni-
versalização dos serviços pela Anatel9 impôs à CRT a necessidade
de melhorar os serviços de rede; e 3) o repasse de obras de pequeno
e de médio portes não só dificultava a redução de custos dos serviços
com ganhos de escala, mas também exigia que a CRT repassasse os
valores contratados durante a obra, posto que as pequenas e médias
empresas não dispunham de capital social suficiente para custear as
suas despesas a longo prazo. A partir de 1999, os critérios passaram
a ser: 1) volume de capital social; 2) atendimento das normas legais;
e 3) menor valor cobrado pelos serviços. Os novos critérios implica-
ram a redução do número e o aumento do porte das empresas tercei-
ras. As pequenas e médias empresas foram eliminadas dos proces-
sos de seleção de prestadoras de serviços pela CRT, restando, no
caso de instalação e de manutenção de terminais telefônicos, apenas
cinco grandes empresas.
A fiscalização dos serviços também sofreu alterações. Com
a privatização, o número de fiscais reduziu-se e a fiscalização do
trabalho passou a concentrar-se mais na documentação das em-
presas do que na observação in loco dos serviços: a redução do
número de empresas subcontratadas permitiu que a documenta-
ção de todas fosse examinada (antes era por amostragem); os
equipamentos empregados (ferramentas, maquinário, instrumen-
tos de segurança, veículos) e a realização dos serviços passou a
ser verificada integralmente.
A estrutura da nova trama produtiva, bem como os dados sobre o
tipo de serviços fornecidos, o número de empregados e o faturamento,
em 1999, das empresas estudadas, são apresentados na Figura 5.
__________________________________________________
9
Agência Nacional de Telecomunicações, responsável pela regulação do setor.

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128 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

Ela é composta por diferentes segmentos e por distintos níveis de fornece-


dores10. Tal estrutura sustenta-se em distintos padrões de relações inte-
rempresas, traduzidas nas condições de vínculo, no intercâmbio e nos
laços de confiança interempresas. Verificou-se que, em contexto de es-
tratégia competitiva de redução de custos, quanto maior a complexidade
técnica dos serviços prestados, maiores as possibilidades de as empre-
sas contratadas negociarem as condições de vínculo, estabelecerem prá-
ticas de intercâmbio e desenvolverem laços de confiança, com as em-
presas contratantes, configurando, pois, relações cooperativas.
CRT

IA IB IC
digitalização de cabo metálico e fibra óptica instalação terminais
centrais 350 funcionários 920 funcionários
3500 funcioná- faturamento: R$ 33 milhões faturamento: não revelado
rios
faturamento: II B
R$ 4 bilhões cabo metálico e fibra óptica II C 2
95 funcionários cabo metálico
faturamento: R$ 12 milhões 1 funcionário
II A
faturamento: R$ 40 mil
fibra óptica III B
80 funcionários cabo metálico e fibra óptica II C 1
faturamento: 110 funcionários cabo metálico e
R$ 6 milhões faturamento: não revelado instalação de terminais
IV B 80 funcionários
cabo metálico faturamento: R$ 900 mil
30 funcionários
faturamento: não revelado III C
instalação de terminais
nenhum funcionário
Figura 5 faturamento: R$ 48 mil
Organograma da nova trama produtiva
Fonte: Pesquisa empírica, Região Metropolitana de Porto Alegre, 2000.
__________________________________________________
10
Os segmentos de fornecedores são os grupos de empresas subcontratadas para a execução de
frações especializadas de tarefas, geradas pela divisão horizontal do processo produtivo:
atendimento aos clientes; vigilância; fotocópias; manutenção dos sistemas elétricos, hidrá-
ulicos e de refrigeração dos prédios; instalação e manutenção de terminais telefônicos
públicos, comerciais e residenciais; construção de redes de fibra óptica e de cabo metálico
(infra-estrutura); instalação e digitalização de centrais de comutação telefônica. Os níveis
de fornecedores são as sucessivas camadas de empresas subcontratadas, em face da divisão
vertical do processo produtivo. A empresa central terceiriza diferentes tarefas a “empresas
terceiras” (primeiro nível de fornecedores), as quais terceirizam tarefas a “empresas quar-
tas” (segundo nível) e assim sucessivamente.

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Sandro Ruduit Garcia — 129

Pode-se, para fins analíticos, classificar as relações interempresas


encontradas em três tipos: a) Relações de cooperação são aquelas com
a menor assimetria de poder entre as tipificadas, à medida que a comple-
xidade e a especificidade técnica dos serviços envolvidos (digitalização
de centrais telefônicas) impõem práticas de cooperação entre as partes;
b) Relações interfirmas de subordinação por conveniência apresentam
maior assimetria de poder do que as de cooperação, porquanto são mar-
cadas pela predominância dos interesses da empresa contratante sobre
os da contratada, mas por conveniência para ambas partes: para a em-
presa contratante é conveniente utilizar os serviços relativamente com-
plexos da contratada (cabeamento óptico e metálico), desde que, nas
condições financeiras orientadas por sua estratégia competitiva, para a
empresa contratada é conveniente prestar serviços sob as condições
financeiras da contratante, desde que mantenha certa estabilidade de
vínculo e diversificação de clientes; e c) Relações interfirmas de subor-
dinação por dependência são as relações com maior assimetria de poder,
em razão de que a empresa contratada depende do mercado da rede,
prestando serviço de baixa complexidade e amplamente oferecido no
mercado (instalação de terminais telefônicos)11. Os principais traços das
relações tipificadas são esquematizados no Quadro 1.

Quadro 1
Tipos de relações interfirmas

Fonte: Composição a partir de pesquisa empírica, Região Metropolitana de Porto Alegre, 2000.
__________________________________________________
11
Para detalhamento da dinâmica das relações interfirmas, ver Ruduit Garcia (2002a).

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130 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

Portanto, a interação e a conflitualidade entre os interesses da


empresa contratante, orientados pela estratégia competitiva, e a capaci-
dade de resistência e imposição das empresas contratadas, relacionada
ao tipo de serviços prestados, resultam em dispersão do processo produ-
tivo, em uma estrutura diferenciada e fragmentada, verticalmente e ho-
rizontalmente, e em diferentes padrões de relacionamento interempre-
sas. A estratégia competitiva de redução de custos adotada pela CRT
abriu um campo de possibilidades para a estruturação da rede (múltiplas
posições derivadas da existência de diferentes segmentos e níveis de
fornecedores), que foram realizadas distintamente pelas empresas, em
razão de suas características (tecnologia empregada, situação de mer-
cado, qualificação de mão-de-obra, que convergem nos tipos de serviços
prestados). Daí a multiformidade verificada nas relações interfirmas.
Nesse caso, relações interfirmas envolvem a variável distribuição de
poder e diferentes formas de compatibilização dos divergentes interes-
ses dos atores sociais (cooperação e subordinação).

Formas de uso e de gestão da força de trabalho

As formas de uso e de gestão da força de trabalho variam no inte-


rior da nova trama produtiva, assumindo caráter virtuoso (poucos níveis
hierárquicos, polivalência, estratégias participativas, promoção por méri-
to, treinamento constante, controle de qualidade, terceirização voltada
para a especialização de atividades) ou restritivo (diversos níveis hierár-
quicos, trabalho monótono, impossibilidade de participação do trabalha-
dor, promoção por tempo de serviço, ausência de treinamento, ausência
de controle de qualidade, terceirização para reduzir custos com mão-de-
obra). As informações concernentes aos planos de cargos e salários, aos
programas de qualidade e participação, ao treinamento e à terceirização
nas empresas estão reunidas no Quadro 2.
O exame dos dados mostra que os programas de qualidade, de
cargos e salários, de treinamento, bem como a terceirização de trabalho,
empregados pelas empresas contratadas diferenciam-se, de acordo com
as relações estabelecidas entre a empresa contratante e a empresa contra-
tada. Como se pode constatar no Quadro 2, a empresa IA apresen-
ta as formas mais virtuosas de uso e de gestão da mão-de-obra
entre as empresas terceiras. A empresa IB encontra-se em situação
intermediária: mais restritiva do que a IA e menos restritiva do que a IC.
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Sandro Ruduit Garcia — 131

Quadro 2
Uso e gestão da força de trabalho nas empresas

Fonte: Pesquisa empírica, Região Metropolitana de Porto Alegre, 1999 e 2000.

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132 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

Já esta apresenta as formas mais restritivas de uso e de gestão da força


de trabalho entre as empresas terceiras. A maior cooperação para de-
senvolvimento de produtos, serviços e tecnologia e a estabilidade nos
laços entre as empresas, característicos das relações de cooperação
interfirmas, permite às empresas contratadas formas mais virtuosas de
gestão dos recursos humanos, apoiadas na qualidade dos serviços e na
promoção da qualificação da força de trabalho, bem como exige isso
delas. Assim, quanto maior a cooperação (ou menor a subordinação) nas
relações interfirmas, maiores as chances de se estabelecerem formas
virtuosas de uso e de gestão da mão-de-obra nas empresas contratadas.
Os dados evidenciam também que existe associação entre as for-
mas de uso e de gestão da força de trabalho e a posição ocupada pela
empresa nos níveis da rede. Comparando-se os níveis de fornecimento
nos quais se encontram as diferentes empresas (I, II, III e IV), verifica-
se que alguns aspectos considerados virtuosos vão sendo perdidos à
medida que se avança para a periferia da trama produtiva: a participa-
ção deixa de ser estimulada, a promoção não se dá apenas por mérito,
nem todos os profissionais são polivalentes e a terceirização também é
usada com o objetivo de suprir a empresa com mão-de-obra em momen-
tos de grande demanda. Então, quanto mais distante da empresa central
encontra-se uma empresa na estrutura da rede, tanto mais restritivas
são as formas de uso e de gestão da força de trabalho, à medida que o
distanciamento da empresa central: 1) favorece a redução do valor pago
pelos serviços prestados, ou porque as partes ‘nobres’ (de alto valor e
tecnologia) do serviço ficam nos primeiros níveis, ou porque aumenta o
número de empresas intermediárias entre a empresa central e a empre-
sa que executa a tarefa; 2) favorece a instabilidade nos laços – pois há
maior incerteza e variabilidade no volume de obras; e 3) facilita a burla
de contratos e de legislações – pois diminui o controle e a fiscalização
sobre as empresas.

Condições de emprego

A estrutura da nova trama produtiva e os variados padrões de


relacionamento interfirmas implicam a multiformidade do emprego:
envolve tanto formas precárias de emprego, como não-precárias.
O Quadro 3 esquematiza os dados relativos às condições de empre-
go nas empresas investigadas.

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Sandro Ruduit Garcia — 133

Examinado os dados relativos às empresas terceiras da nova tra-


ma produtiva, segundo o tipo de relações estabelecidas com a empresa
central, verifica-se que a empresa IA foi a que apresentou melhor de-
sempenho nos indicadores analisados. A empresa IB apresentou uma
situação intermediária. A empresa IC foi, entre as empresas terceiras,
a que apresentou o pior desempenho nos indicadores examinados. Por
conseqüência, o intercâmbio e a confiança entre as empresas permi-
tem à parte contratada planejar e estabilizar as práticas de emprego,
em face da extensão e do apoio no vínculo interempresas, assim como
a negociação das condições contratuais possibilita a obtenção de me-
lhores valores contratados, permitindo a oferta de mão-de-obra mais
qualificada e com melhores condições de emprego. Os dados autori-
zam a afirmação de que quanto maior a cooperação nas relações inter-
firmas, tanto maiores serão as chances de as empresas contratadas
estabelecerem práticas não-precárias de emprego. A negociação das
condições de vínculo interempresas incide sobre a temporalidade do
vínculo empregatício, à medida que a empresa contratada pode ampli-
ar prazos e reduzir a dependência em relação à empresa contratante
(mantendo trabalhadores empregados), e sobre o valor da remunera-
ção, pois é possível obter melhores preços para a execução dos servi-
ços. O intercâmbio entre as empresas interfere na natureza da forma-
ção e na instrução dos trabalhadores (treinamento conjunto fomenta a
formação teórica da mão-de-obra e exige maior instrução dos treinan-
dos, bem como troca de informações técnicas exige equivalência na
formação dos recursos humanos) e na rotatividade da mão-de-obra (a
cooperação para formação de mão-de-obra implica investimento nos
recursos humanos e conseqüente esforço para a sua manutenção). A
confiança nos laços interempresas repercute na rotatividade (laços de
confiança tornam os serviços mais freqüentes, permitindo a manuten-
ção da força de trabalho empregada), na natureza da formação profis-
sional (o apoio tecnológico e organizacional torna mais complexo o
processo produtivo, exigindo mão-de-obra instruída e com formação
teórica) e na formalização do vínculo (a estabilidade dos laços e a
atualização técnica e organizacional estimulam a formalização do uso
da mão-de-obra).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


134 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

Quadro 3
Condições de emprego nas empresas

Fonte: Pesquisa empírica, Região Metropolitana de Porto Alegre, 1999 e 2000.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 135

A posição da empresa nos níveis da trama produtiva também inter-


fere nas condições de emprego. A rotatividade tende a aumentar à me-
dida que avançam os níveis da rede, como se observa no Quadro 3. A
remuneração tende a apresentar caráter mais simples e restritivo, con-
forme os níveis de empresas distanciam-se da empresa líder da trama
produtiva, assumindo a forma de remuneração fixa, e/ou por produção,
em detrimento de formas de remuneração mais complexas, como a PLR
(Participação nos Lucros e Resultados). Os valores da remuneração
mensal e os benefícios sociais também são variáveis, com tendência de
queda com o avanço nos níveis da rede. Quanto ao vínculo trabalhista,
há, de um lado, leve tendência de ampliação das situações de informali-
dade nos vínculos, com o aumento dos níveis da trama produtiva e, de
outro lado, grande irregularidade na temporalidade do vínculo, sem rela-
ção significativa com os níveis das empresas.
Por conseguinte, o emprego precariza-se à proporção que aumen-
tam os níveis na nova trama produtiva. Os múltiplos atores empresariais
envolvidos têm, por um lado, menor dificuldade para burlar legislações
ou contratos e menor controle da qualidade dos serviços prestados e, por
outro lado, são mais estimulados a reduzir custos, utilizando mão-de-obra
não-qualificada e em condições de precariedade, quanto mais distantes
da empresa líder se encontram. Tais conexões ocorrem pelo fato de que
as diferentes posições nos níveis da rede influem nos valores pagos pe-
los serviços prestados, no volume de serviços e no controle de contratos
e da legislação. A retração dos valores pagos pelos serviços pressiona as
empresas para a redução da remuneração e dos benefícios sociais. A
maior variabilidade no volume de serviços contratados repercute em
instabilidade na gestão dos recursos humanos: maior rotatividade e difi-
culdades para treinamento de mão-de-obra. O afrouxamento do contro-
le e da fiscalização dos contratos e da legislação, que ocorre à medida
que as empresas assumem posições mais periféricas na rede, facilitam a
informalidade do vínculo, o corte de benefícios sociais e práticas pater-
nalistas de negociação entre capital e trabalho.
Assim, os dados relativos aos indicadores examinados evidenciam
a existência de divergentes condições de emprego ao longo da nova
trama produtiva: precárias, não-precárias e combinações de práticas pre-
cárias e não-precárias. Tal multiformidade se deve tanto aos distintos
padrões de relacionamento interfirmas, como à fragmentação vertical
do processo produtivo em diversos níveis de fornecedores.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004
136 — Novas tramas produtivas no setor de telecomunicações pós-privatização

Considerações finais

O setor de telecomunicações enfrenta, em âmbito internacional,


uma nova realidade marcada por processos, muitas vezes, conjugados,
de privatização, de liberalização e desregulamentação de mercados, de
fusões e aquisições de empresas e de profundas mudanças tecnológicas,
todos eles impondo a reestruturação técnica e organizacional dos tradi-
cionais monopólios que caracterizaram o setor até o início da década de
1990, inclusive no Brasil. Tal reestruturação vem indicando como ten-
dência a redução do emprego nessas empresas. Porém, isso nem sem-
pre se reflete em retração do emprego no setor. Há indicações de que
novos postos de trabalho vêm sendo criados, em razão da entrada de
novas empresas (liberalização e competição) e da transferência de pos-
tos de trabalho dos tradicionais monopólios (antes, caracterizados por
estabilidade, oportunidades de treinamento e qualificação, salários ele-
vados, alta sindicalização) para empresas terceiras e fornecedores. O
problema está na qualidade dos postos criados em substituição ao em-
prego reduzido nos tradicionais monopólios reestruturados.
No caso em questão, a privatização da principal empresa do setor
de telecomunicações no Estado do Rio Grande do Sul (tradicional mo-
nopólio estatal) acentuou a reestruturação técnica e organizacional da
empresa, valendo-se sobremaneira da externalização de trabalho, vi-
sando à redução do emprego. A expansão da rede telefônica ocorreu
com intenso uso do trabalho terceirizado, como estratégia de redução
de custos e de redução do emprego na empresa, configurando uma
nova trama produtiva. O nível global de emprego no setor não foi pre-
judicado, como se verifica em muitos países. Entretanto, a qualidade
do emprego tem sido, em parte, prejudicada, notadamente para os
empregados da antiga estatal.
A nova trama produtiva liderada pela empresa privatizada combi-
na diferentes padrões de relacionamento interfirmas e de emprego.
Constatou-se que a interação entre a estratégia competitiva da empre-
sa contratante apoiada na redução de custos (que expressa as condi-
ções oferecidas às empresas contratadas) e os diferentes tipos de ser-
viços prestados pelas empresas contratadas, com variados níveis de
complexidade tecnológica (que expressam as suas variadas capacida-
des de imposição à empresa contratante), resultam em três tipos de

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Sandro Ruduit Garcia — 137

relacionamento interempresas (de cooperação, de subordinação por


conveniência e de subordinação por dependência) e em diversos níveis
ou camadas de fornecedores (empresas terceiras, quartas, quintas e sex-
tas) e que as diferentes relações interfirmas e as posições das empresas
nos níveis da trama produtiva implicam a existência de formas virtuosas
e restritivas de uso e de gestão da força de trabalho e de práticas precá-
rias e não-precárias de emprego.
Portanto, as novas tramas produtivas no setor de telecomunica-
ções pós-privatização indicam uma nova realidade bem mais complexa e
fragmentada, incompatível com relações mecânicas e lineares. Há, nas
novas tramas produtivas, diferentes atores sociais, tipos de relações in-
terfirmas, formas de uso e de gestão da mão-de-obra e níveis de qualida-
de do emprego. A reestruturação das empresas de telecomunicações
vem significando arranjos nos quais os novos postos de trabalho não
mantêm, na sua totalidade, os níveis de qualidade existente no período de
vigência dos monopólios estatais, mas não são todos precários. Uma das
pistas para a explicação da natureza do emprego, no contexto das novas
tramas produtivas, como demonstra esta análise, é identificar os tipos de
relações das empresas reestruturadas com os múltiplos e novos forne-
cedores. É preciso, pois, ampliar o ‘olhar’ sobre os processos de mudan-
ça da empresa para a constelação de empresas, incorporando outros
atores sociais e novas variáveis às análises, tais como relações interfir-
mas e níveis de fornecedores, para a apreensão das estruturas e das
relações concernentes ao trabalho e ao emprego, evidenciando a contra-
dição e a instabilidade dos novos processos em curso.
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(Recebido em novembro de 2003 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.117-139, abril de 2004


Cultura política: convergências e diferenças em
Porto Alegre e Curitiba*

Paulo J. Krischke1
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo Abstract

Este estudo2 compara certas This paper presents a com-


características básicas da cultura parative study of certain basic cha-
política nas cidades de Curitiba e racteristics of political culture in
Porto Alegre, analisando as suas Brazilian cities of Curitiba and Porto
diferenças e convergências como Alegre. It analyses both their diffe-
formas locais complementares de rences and similarities as local com-
manifestação da conquista da ci- plementary forms and manifestati-
dadania, em distintos contextos his- ons of achieving citizenship. These
tórico-sociais, durante o processo differences are seen to derive from
de democratização da esfera pú- their socio-historical context during
__________________________________________________
* Political culture: similarities and differences between Porto Alegre and Curitiba
1
Endereço para correspondências: UFSC/CFH, Campus Universitário, Trindade, Florianó-
polis, SC, CEP 88040-970 (krischke@brturbo.com).
2
Uma versão mais ampla deste trabalho, denominada A cultura política pública em Porto
Alegre e Curitiba, será publicada no livro
Democracia e justiça global (Porto Alegre, Editora da PUC-RS). O autor agradece os co-
mentários dos colegas Stephen Chilton, Nythamar Oliveira e Wilson Mendonça, e a três
pareceristas desta revista a versões anteriores deste trabalho, sem contudo responsabilizá-
los pelas limitações da versão atual.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.141-175, abril de 2004


142 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

blica. Este trabalho se opõe aos the process of democratization of


estudos empíricos e teóricos con- the public domain. On this approa-
vencionais acerca da cultura políti- ch it is argued against the determi-
ca, inspirados nas teorias da moder- nistic bias and over-generalization
nização, argumentando contra o viés procedures usually deployed by
determinista desses estudos, e os current empirical and theoretical
procedimentos de hiper-generaliza- research on political culture that are
ção por eles geralmente adotados. inspired by theories of moderniza-
Com base nos dados desta pesqui- tion. Specifically, the present study
sa, refuta-se especificamente a abor- relies on research data in order to
dagem de Ronald Inglehart ao cha- refute the approach of Ronald In-
mado “pós-materialismo”, por ser glehart-considered one of the most
esse autor considerado um dos mais influential contemporary scholars in
influentes estudiosos atuais da teo- theory of modernization-to the so-
ria da modernização. called “postmaterialism”.

Palavras-Chave: Modernização; Keywords: Modernization; demo-


democratização; cultura política (e cratization; political culture (and
sub-culturas); cidadania; contextos subcultures); citizenship; socio-his-
histórico-sociais; pós-materialismo. torical contexts; postmaterialism

Introdução

A importância dos estudos sobre cultura política está nas evidências


que eles proporcionam acerca da disposição das pessoas a apoiar
o regime democrático, apesar das eventuais desilusões com esse ou
aquele partido ou governante de turno. Infelizmente, muitas vezes, há
certo simplismo ou certa linearidade nesses estudos sobre a cultura po-
lítica, pois muitos pretendem que os processos de democratização sejam
inexoráveis ou irreversíveis – como se lhes coubesse seguir a mesma
trajetória de modernização (hoje diríamos “globalização”) trilhada pelos
países centrais do ocidente. A finalidade do questionamento das aborda-
gens à modernização que faremos aqui é interpretar adequadamente os
resultados de uma pesquisa comparativa recente, sobre as mudanças
em curso na cultura política, nas cidades de Curitiba e Porto Alegre, e as
diferenças e semelhanças que existem no interior dessa cultura. A pri-
meira parte do trabalho apresenta as linhas gerais da interpretação conven-
cional da mudança e modernização cultural, que foi testada na pesquisa.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.141-175, abril de 2004
Paulo J. Krischke — 143

A segunda parte apresenta resultados encontrados na pesquisa que, em


sua maioria, contradizem essa interpretação, por mostrarem as ambigüi-
dades e as diferenças existentes nos processos de democratização da
cultura política em Curitiba e em Porto Alegre, bem como as suas con-
vergências e contribuições ao fortalecimento da democracia.

Modernização (e “pós-materialismo”)3

Sabemos que as teorias da modernização dos anos 1950 e 60


adotaram um determinismo socioeconômico e político-cultural que hoje
consideramos datado pelas ilusões do pós-guerra. Pensava-se então
que o desenvolvimento socioeconômico exibiria uma capacidade inte-
grativa quase infinita, difundindo o crescimento, a riqueza, a tolerância
e a liberdade política – e até a felicidade pessoal entre a população da
América Latina4. É certo também que esse determinismo não era ape-
nas econômico, pois se baseava na suposição de que o desenvolvimen-
to da economia e da tecnologia viria acompanhado de mudanças soci-
opolítico-culturais que retirariam a sociedade de seu legado tradicional,
para adotar os padrões culturais e institucionais vigentes nos países
centrais e democráticos do ocidente5.
A seguir, veremos que essa perspectiva é compartilhada explici-
tamente por Ronald Inglehart (1997), que vincula a emergência de uma
nova cultura – denominada “pós-materialista” –, entre a juventude do
mundo inteiro, a essa maior afluência e sofisticação socioeconômica,
política e cultural, inicialmente, apenas encontrada nos países centrais
do ocidente. Desde já devemos reconhecer que, a partir de diversas
perspectivas teóricas, e com abundante base empírica, vários estudio-
sos da democratização na América Latina (por exemplo, Remmer, 1990;
Bermeo, 1992; Geddes, 1995; Munck, 1996; Przeworski e Limongi,
1993) têm refutado explicitamente as teses sobre a modernização, pro-
postas por Lipset e outros, acerca dos condicionantes socioeconômi-
cos da democracia.

__________________________________________________
3
Trechos desta seção foram atualizados de trabalho anterior (KRISCHKE, 2000).
4
Há farta documentação sobre esse assunto, por exemplo, ver Andrade (1979) e
Lindenberg (1990).
5
Por exemplo, ver Talcott Parsons (1951, p.182-191) e S. M. Lipset, 1960. Esteves (1999)
mostrou “A Auto-refutação do Determinismo”, desde uma perspectiva filosófica.

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144 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

A utilização que esses últimos autores fazem dos indicadores


socioeconômicos (e outros de caráter político, elaborados pela Free-
dom House) padece de um viés etnocêntrico e determinista, que tem
merecido a crítica metodológica de vários estudos, como, por exem-
plo, Escobar (1992, p.433-34), Munck (1996, p.24-5) e Krischke (2000,
2001). Especificamente, essa forma de determinismo considera a mo-
dernização como decorrente de forças externas materiais que se im-
põem à população, em nome de um “progresso” econômico e tecno-
lógico aparentemente inelutável. Isso resultaria em novas formas de
socialização (por exemplo, via mídia eletrônica e informatização) –
sem a mediação explícita de processos históricos de aprendizado e
elaboração cultural intersubjetiva, em que os indivíduos estivessem
envolvidos como participantes ativos6.
Ronald Inglehart dedicou um de seus livros mais abrangentes,
Modernização e pós-modernização. Mudança cultural, econô-
mica e política em 43 Sociedades (1997), a uma retomada da te-
oria da modernização, em que busca matizar os efeitos do viés de-
terminista dessa teoria. Para isso, lança mão da massa de dados do
World values survey (pesquisa mundial sobre valores), a fim de
afirmar sua interpretação da mudança cultural nos valores das po-
pulações, com base em duas hipóteses: a de incidência da “escas-
sez” e a dos efeitos e períodos de “socialização”, entre diferentes
estratos de idade ou gerações. A hipótese de escassez postula que
“as prioridades do indivíduo refletem o seu ambiente socioeco-
nômico”. A hipótese de socialização postula que, “em grande medida,
__________________________________________________
6
Ver a crítica a Inglehart, feita por Davis e Davenport (1999, p. 10): “A validade de um
índice que se propõe a captar prioridades dos indivíduos sobre valores é determinada
mais adequadamente ao nível em que se origina: nas respostas individuais e a nível
micro [...] Consideramos que quando se pede aos entrevistados que escolham sucessiva-
mente valores de uma série de possibilidades positivas [desejáveis], os entrevistados
podem escolher cada valor separadamente por seus próprios méritos, sem referir a uma
dimensão valorativa subjacente. Isto é, os entrevistados podem selecionar sincera e
significativamente os temas individuais, tendo preferências com prioridades entre os
temas alternativos, sem que sejam necessariamente ‘materialistas’ ou ‘pós-materialis-
tas’. Por esta razão, o índice [de Inglehart] pode de fato não refletir uma dimensão
‘materialista/pós-materialista’, nem retratar o modo como as pessoas percebem as
várias questões políticas e sociais”. Ver também a crítica de Tranter e Western (2002,
p. 2): “Mostramos que é muito débil a relação entre idade e valores, tanto na Austrália
como nos Estados Unidos, o que revela o caráter problemático dessa suposição destitu-
ída de comprovação”.

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Paulo J. Krischke — 145

os valores básicos dos indivíduos refletem as condições prevalecentes


durante o período anterior à sua vida adulta” (ECHEGARAY, KRIS-
CHKE e TOSO, 1998)7.
Essas duas hipóteses orientam o argumento de Inglehart, de que, quando
as necessidades físicas e econômicas são, apenas, parcialmente satisfeitas
durante a fase pré-adulta, a pessoa colocará maior valor na segurança física
e econômica, ao atingir a idade adulta. Por isso, essa pessoa será considera-
da “materialista”, enquanto “pós-materialistas” seriam aqueles que prefe-
rem objetivos e valores menos tangíveis, pois tiveram assegurada sua segu-
rança física e econômica, durante a idade pré-adulta. Esses “pós-materialis-
tas” estariam mais preocupados com a qualidade de vida, a afetividade e a
estética do que com considerações de ordem econômica e material.
Inglehart testou inicialmente suas hipóteses na Europa ocidental e
demais países centrais do ocidente, onde postulou que as gerações nas-
cidas no pós-guerra gradualmente teriam passado (em parte, mas de
modo crescente) a adotar valores “pós-materialistas”. Também postulou
ali que essa tendência estava relacionada a atitudes participativas, na
esfera pública em âmbito local, e em movimentos sociais dos anos 1970
e 80, movimentos pacifistas, ecológicos, de gênero, minorias raciais, cul-
turais etc. (CLARK e INGLEHART, 1990). A série longitudinal da pes-
quisa, realizada regularmente desde a metade dos anos 1970, também
postulou que a tendência ao pós-materialismo não era apenas um fenô-
meno juvenil que acaso desaparecesse na fase adulta, pois as gerações
que adotaram esses valores tenderiam a persistir no seu apoio.
As alternativas utilizadas como questões de pesquisa são, em geral,
as quatro empregadas originalmente por Inglehart. Os entrevistados são
convidados a selecionar, entre quatro possibilidades, as que deveriam ser,
por ordem de prioridade, os dois principais objetivos no país: 1) manter a
ordem; 2) maior participação da população nas decisões importantes do
governo; 3) combater a inflação; 4) proteger a liberdade de expressão.
__________________________________________________
7
A escassez implicaria mudanças valorativas de curto prazo: períodos de escassez econômica
(inflação, recessão, desemprego) aumentaria a tendência de apoio a valores materialistas
(busca de segurança pessoal, material e política). Por outro lado, os períodos de prosperi-
dade aumentariam a tendência de apoio aos valores pós-materialistas (qualidade de vida,
afetividade e estética). Contudo, a hipótese de socialização enfatiza os efeitos geracionais
de longo prazo (apesar dos efeitos conjunturais de curto prazo, que modificam, reforçando
ou mitigando, os efeitos ou as atitudes básicas geracionais). Ver as críticas de Marshall
(1997, p. 1), dentre outros, que vêem “pouca consistência comprovada ou validade com-
portamental preditiva nos resultados”.

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146 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Os entrevistados que selecionam “manter a ordem” e “combater a


inflação” são classificados como materialistas e aqueles que escolhem
“maior participação” e “liberdade de expressão” são classificados como
pós-materialistas. As quatro combinações restantes são classificadas
como “mistas”8.
No livro de 1997, Inglehart trata de ampliar seu argumento, com
amostras nacionais da população em 43 países, quatro delas da América
Latina (Argentina, Brasil, Chile e México). Nos países do chamado ter-
ceiro mundo, assim como na Europa oriental, a tendência em apoio aos
valores pós-materialistas é incipiente, fato geralmente atribuído pelo au-
tor à incidência de fatores de insegurança econômica, política e material
na fase pré-adulta dos entrevistados (a hipótese de socialização). Nesse
livro, Inglehart expande o seu argumento, explicitando a teoria em ter-
mos de modernização e pós-modernização. Assim fazendo, assume sua
vinculação com as teorias anteriores da modernização, que busca adap-
tar a sua proposta, ao mesmo tempo em que dialoga com as teorias
sobre a chamada pós-modernidade, com a mesma finalidade.
A posição formal de Inglehart, logo no início do livro, é aparente-
mente crítica do viés determinista dos estudos convencionais da moderni-
zação, afirmando que “não assumimos o determinismo, econômico ou cul-
tural: nossos resultados sugerem que as relações entre valores, política e
economia são recíprocas, e a natureza exata desses vínculos em cada
caso é uma questão empírica, antes que algo a ser decidido a priori”(p.4).
O autor encaminha a seguir sua proposta de “análise funcional e síndro-
mes de mudança previsíveis”, pois “todo sistema econômico e político tem
um sistema cultural que o legitima [...]. O processo não é teleológico, mas
opera como se fosse: as sociedades com sistemas legítimos de autoridade
têm mais chances de sobrevivência que aquelas que não os têm”(p.14-15).
__________________________________________________
8
É necessário assinalar o procedimento hiper-generalizante de Inglehart, na sua aferição de
valores a partir apenas de escolhas dos entrevistados entre essas poucas alternativas.
Vários autores têm criticado esse procedimento, como Tranter e Western (2002) e Mar-
shall (1997). Aqui vale lembrar também a advertência de Habermas sobre o estudo dos
valores, com conseqüências metodológicas que especificaremos adiante: “Os valores cul-
turais [...] são, na melhor das hipóteses, candidatos a materializar-se em normas destinadas
a expressar um interesse geral. Por conseguinte, é apenas relativamente a normas e
sistemas normativos destacados da totalidade da vida social que os participantes podem
tomar a distância necessária para adotar face a eles uma atitude hipotética [... a qual]
estende-se apenas às questões práticas que se podem debater racionalmente, ou seja com a
perspectiva de alcançar um consenso. Isto não se relaciona com a preferência de valores,
mas com a validade das normas de ação” (HABERMAS, 1989, p. 126-7, grifo do autor).

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Paulo J. Krischke — 147

Entretanto, buscando superar o funcionalismo standard das teorias ante-


riores sobre a modernização, a mudança da cultura atual para o pós-mate-
rialismo é vista como “mutações [que] não acontecem para servir a uma
função, mas [que] sobrevivem e se difundem porque a servem” (p.16).
Inglehart busca, portanto, escapar do estigma determinista, medi-
ante uma estratégia evasiva, em que tenta abrigar-se na noção de “equi-
líbrio homeostático” da teoria dos sistemas (JOHNSON, 1966). Desse
ponto de vista, ele propõe, inclusive, uma leitura adaptativa da cultura
pós-moderna, que os adeptos mais militantes dessa mudança cultural
teriam certamente grande dificuldade em aceitar. Sobre isso, recomen-
damos Gibbins (1992, Introduction). Interessa salientar que toda essa
preocupação multicausal com o equilíbrio funcional não o faz descartar
os condicionantes socioeconômicos, estipulados pela teoria da moderni-
zação, antes, ao contrário9. E grande parte do livro dedica-se a contras-
tar a busca pela segurança material, típica da modernidade, com a cres-
cente ênfase cultural na qualidade de vida, típica da pós-modernidade.
Inglehart enfatiza assim a existência de duas formas ou dois mo-
delos contrastantes de sociedade, cada uma com suas próprias condi-
ções de desenvolvimento socioeconômico e político-cultural, sendo o fiat
da transformação de uma em outra os processos de industrialização e
diversificação sociocultural, finalmente, resultantes na sociedade pós-
moderna e pós-materialista10. Tudo isso, no velho estilo dualista das teo-
rias da modernização. A seguir, expomos os dados de pesquisa em que
se buscou testar essas limitações.
__________________________________________________
9
O Capítulo 6 de seu livro dedica-se a esse ponto e, após apoiar-se nos dados e nas conclusões
de Lipset e outros sobre os condicionantes socioeconômicos da democracia, ele afirma que:
“O desenvolvimento conduz à democracia desde que ocasione certas mudanças na cultura e na
estrutura social, [...quando] mobiliza públicos massivos e tende a suscitar orientações culturais
em apoio [à democracia]” (p.161, grifo do autor). O capítulo oferece evidência desses
resultados, principalmente no que refere aos efeitos da industrialização sobre a cultura polí-
tica e a estrutura social, mas não pode escapar ao leitor o caráter circular da argumentação.
10
Sobre essas falácias interpretativas, entre outras, ver as críticas de Haller (2002, Introduc-
tion): “A tese central de Inglehart – a mudança de valores vista principalmente como
decorrência do desenvolvimento econômico e tecnológico, que conduziria à difusão de
valores racionais-seculares e auto-expressivos – é materialista, linear e comparativamente
estática [...] suas escalas são coleções de itens heterogêneos, sua classificação dos países em
“zonas culturais” carece de consistência, e ele desconsidera a distinção entre os níveis macro
e micro de análise”. E acrescenta adiante: “A proposta de Inglehart é um caso paradigmático
de materialismo, que pretende uma causação direta das idéias por circunstâncias materiais [...]
Ele admite abertamente que sua primeira tese (a hipótese da escassez) ‘é semelhante ao
princípio da utilidade marginal da teoria econômica’”(1997, p.33). Assim, “apresenta apenas
toscas e débeis teses gerais, cuja validade não é sustentada empiricamente”.

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148 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Os casos de Curitiba e Porto Alegre11


Desde há alguns anos, têm sido testadas, de modo preliminar, as hipóte-
ses de Inglehart para o caso brasileiro, encontrando contudo resultados muito
parciais e bastante contraditórios (ECHEGARAY, KRISCHKE, e TOSO,
1998; KRISCHKE, 2000). Principalmente, surgiram dúvidas sobre a capaci-
dade de generalização dos dados levantados com as alternativas de Inglehart,
tendo em vista a provável diversidade de compreensão dos entrevistados acerca
dessas categorias12. Em razão dessas dificuldades de generalização, planeja-
mos uma pesquisa de campo comparando as características da cultura política
nas cidades de Porto Alegre e Curitiba. A finalidade dessa escolha foi superar
as tendências hiper-generalizantes dos métodos usuais na pesquisa empírica
da cultura política (KRISCHKE, 2001) realizando o trabalho de campo em
contextos histórico-culturais claramente contrastantes e delimitados.
Nesse sentido, foi importante estabelecer, de modo preliminar,
como as populações das duas cidades entendiam as questões formula-
das por Inglehart. Para aferir essa compreensão por parte dos públicos
de Curitiba e Porto Alegre, realizamos debates com grupos focais em
separado, com duas faixas etárias de participantes em cada cidade –
onde incluímos a discussão de outros temas, referentes ao entendimento
da democracia, da política e das condições gerais de vida em cada
cidade – além das alternativas sobre materialismo/pós-materialismo13.
__________________________________________________
11
Agradecimentos aos colegas Aluir Toso, Fabian Echegaray e Sérgio Costa, que colaboraram nas fases
iniciais de elaboração deste projeto de pesquisa. Principalmente, à colega Louise Lhullier, que
colaborou decisivamente na sua reformulação teórico-metodológica, e assessorou a realização do
trabalho de campo. A colega Fátima Quintal coordenou a realização dos grupos focais. O doutorando
Marcos Mesquita participou ativamente na sistematização e análise dos dados do survey. Ana Lídia
Brizola apoiou a coordenação administrativa e o trabalho de campo. Luís Cláudio Messa atuou como
bolsista de ajuda técnica e na organização dos dados do survey. As bolsistas Giselle Cardoso, Carine
Fernandes e Doris Waldow participaram de várias etapas de realização técnica e administrativa. O
Instituto Ethos de Curitiba e o Instituto Meta de Porto Alegre proporcionaram apoio logístico,
respectivamente à realização do trabalho de campo e ao processamento estatístico dos dados.
12
Reis (2003) tem enfatizado as dificuldades cognitivas dos entrevistados por surveys no Brasil,
fato que buscamos contornar entrevistando pessoas com pelo menos o 2° grau de escolaridade.
13
Foram realizados dois grupos com nove ou dez participantes em cada cidade, um deles com pessoas
de idade até 28 anos e o outro, com 29 anos ou mais. Houve distribuição eqüitativa por sexo, e cada
grupo foi constituído em idênticas proporções por funcionários, estudantes e professores das univer-
sidades Federal e Católica, em ambas as cidades. O debate era moderado por um membro da equipe de
pesquisa, e circulava por temas relacionados a: democracia versus autoritarismo, valores e crenças
políticas, e participação política e social (além da discussão sobre as alternativas de Inglehart sobre
pós-materialismo). Foram também realizadas entrevistas individuais com cada membro dos grupos,
com o objetivo de captar melhor as posições manifestadas durante os debates. Outro objetivo foi
reconstruir as histórias de vida dos entrevistados, buscando captar os modos em que os contextos
histórico-sociais influenciam a constituição de sua personalidade.

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Paulo J. Krischke — 149

A atividade dos grupos possibilitou também criar um dispositivo de ar-


gumentação (ou recurso comunicativo), até certo ponto análogo ao
que Habermas denomina “situação ideal de discurso” (ou “posição
original” no sentido de Rawls), em que os participantes são convida-
dos a situar-se e a debater eqüitativamente as normas vigentes no
seu cotidiano14. As conclusões principais dos grupos foram assim sin-
tetizadas pela coordenadora dessa etapa (QUINTAL, 2001, p.24)15:

Poder-se-ia dizer que tanto em uma quanto em


outra cidade, ao menos em parte, os moradores
incorporaram, em suas vidas, ao longo dos anos,
os valores de parte da ideologia dominante, fruto
em grande medida das políticas públicas em vi-
gor. Os governos municipais nas duas cidades, ao
longo das duas últimas décadas, ocuparam e ocu-
pam pólos opostos, seja no sistema ideológico,
seja na maneira de implantação de seus projetos e,
_________________________________________________
14
Este procedimento foi inspirado em uma proposta de interpretação da cultura política
em termos de “desenvolvimento moral-cognitivo”, que se apóia na homologia sugerida
por Habermas (1989), e derivada de Kohlberg (1981), entre a maturidade individual da
cidadania e a evolução das estruturas normativas e jurídicas da sociedade – definindo a
cultura política como “uma forma de relação ‘compartilhada’ apenas quando publica-
mente comum numa dada coletividade”. (CHILTON, 1990, p.80). Essa “forma de rela-
ção” compartilharia “critérios de validade intersubjetiva” sobre normas de ação que
sejam “públicas” e “comuns” entre os participantes dos debates. Pois elas são: “(a)
compreendidas como um entendimento comum; e (b) usadas de fato pelos participantes
para orientarem-se mutuamente em assuntos sócio-políticos (como seu foco público de
orientação)” (Ibid., grifos do autor). A caracterização dos grupos, no sentido atribuído
por Rawls deriva de sua afirmação de que: “Podemos, por assim dizer, entrar nessa
posição [original] a qualquer momento simplesmente argumentando em favor de princí-
pios de justiça em consonância com as restrições mencionadas acima. Quando, dessa
forma, simulamos estar na posição original [...] o mesmo se aplica à representação de um
papel em termos gerais. Devemos ter em mente que estamos tentando mostrar como a
idéia de sociedade, enquanto sistema eqüitativo de cooperação, pode se desenvolver [...]”
(RAWLS, 1993, versão brasileira, p.70).
15
A introdução do relatório dessa etapa indica que “Destacam-se as diferenças entre os
grupos de uma mesma cidade, no que tange ao conteúdo das justificativas elaboradas,
visto que isto, em parte, é esperado diante das diferenças de histórias vividas e aconte-
cimentos político-sociais que estiveram presentes em suas existências... Os mais ve-
lhos de Curitiba faziam uma referência mais forte ao “eu”, em oposição a um “nós
social”, pouco fazendo menção aos aspectos sociais e políticos que viveram ou que
aconteceram no país. Por outro lado, os mais novos de Porto Alegre, em certa medida,
também faziam uma referência a um “eu”, entretanto este “eu” aparecia dentro de uma
perspectiva de potencialidade de ações, mesmo que particulares em seu meio social,
familiar e de trabalho” (QUINTAL, 2001, p.1).

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150 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

conseqüentemente, em termos do espaço con-


siderado permitido e aceitável e que é desti-
nado à participação das pessoas na vida pú-
blica e cotidiana.16

Essa interpretação geral dos grupos, dos quais veremos logo alguns de-
talhes, veio confirmar inicialmente a hipótese traçada pela pesquisa, de que

[...] subsiste no interior da sociedade brasileira


uma relativa pluralidade de matrizes valorativas
e atitudinais relevantes no âmbito político, que
poderíamos chamar de subculturas políticas. Tal
diversidade tem suas origens nas profundas mu-
danças da sociedade brasileira nos últimos 30
anos, que implicam diferentes modos de viver a
política e de relacionar-se com o mundo público
em geral. Distinções podem também ser observa-
das nos perfis da vida associativa e naquilo que
poderia se denominar, de forma genérica, de for-
matos dos espaços públicos locais.17
_________________________________________________
16
Essa interpretação refere-se aos debates sobre “Maior Participação da População”, mas pode
também ser extrapolada à de outros temas (QUINTAL, 2001, p.24). “Nos moradores de
Curitiba, os conteúdos dirigem-se a ações individuais, localizadas e isoladas, ações essas perme-
adas pela exigência da qualidade, do correto e do cumprimento das leis e direitos. Poder-se-ia
dizer que focalizam no plano da garantia da materialização das leis e, quando necessária uma
atuação das pessoas, esta deveria se fazer na direção do cumprimento do previsto legalmente.
Por outro lado, os participantes de Porto Alegre acabam por refletir uma história continuada de
um mesmo tipo de administração pública em que os canais de envolvimento e participação da
população têm sido incentivados e se constituem em fortes baluartes da orientação política
existente... Poder-se-ia dizer que a rede de relações sociais existente, incentivada e construída
em Curitiba ao longo destes anos, criou uma identidade de cidadão participante como aquele
afeito à defesa de seus direitos. Em certa medida, isto está coerente à acepção radical do termo
cidadão, visto que ele se torna possível, somente, dentro do marco da individualidade. O social
é compreendido na perspectiva de ações individuais corretas, legalmente amparadas e legitima-
das pelo atendimento destas prescrições. Por sua vez, na cidade de Porto Alegre, a interlocução,
o debate e a participação em esferas para além do individual têm sido incentivadas, de modo que
o político e o social tenham sido construídos com um conteúdo da necessária existência do
“outro social”, seja para delimitar e explicitar a diferença, seja para identificar os pares das
ações, seja para serem encontradas ou fortalecidas estratégias de ação. Entretanto, isto, por si
só, não significa que a igualdade de participação decorra naturalmente deste quadro. Na realida-
de, o plano da ação poderia estar mais próximo da dimensão da explicitação privada, no caso de
Curitiba, e mais próximo da dimensão da exposição pública, na outra cidade.”
17
Ver Costa (1996).

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Paulo J. Krischke — 151

Um dos pontos de mudança cultural previstos pela pesquisa seria em


termos geracionais, considerando a diversidade dos contextos históricos de
socialização, em cidades que passaram por trajetórias políticas diferentes.
As conclusões gerais dessa etapa de estudo com grupos focais (e das
entrevistas individuais com os participantes) foram muito importantes para
orientar metodologicamente a fase seguinte da pesquisa (estudo por survey
da população)18. Em primeiro lugar, decidimos manter as quatro alternativas
apresentadas originalmente por Inglehart, mas propondo aos entrevistados
uma única opção apenas – em lugar das duas pedidas por Inglehart, em
ordem de prioridade. A intenção desse procedimento foi evitar ilações que
tenderiam a enviesar os resultados, mediante a categoria de respostas mis-
tas (suposta incoerência entre uma prioridade materialista e outra pós-mate-
rialista), que tem sido interpretada por Inglehart em termos de uma “transi-
ção” entre as duas situações19. Além disso, as interpretações que os grupos
focais fizeram dessas alternativas foram muito diversificadas e, às vezes,
inclusive, opostas entre si. Portanto, como segundo ponto de reformulação
metodológica, tal diversidade de interpretação dessas alternativas pelos mem-
bros dos grupos focais somou-se ao levantamento de outros valores surgidos
nesses debates, como veremos a seguir.
Quanto ao primeiro ponto de revisão, os resultados do survey20 mos-
tram que não existe diferença significativa entre as duas cidades, no que
respeita à adesão a valores supostamente materialistas e pós-materialistas.
_________________________________________________
18
Os dados foram coletados em agosto de 2001, em Curitiba e Porto Alegre. O principal
objetivo foi levantar dados que permitissem a análise de possíveis clivagens geracionais na
cultura política nessas duas cidades. Paralelamente, buscava-se investigar a possibilidade de
haver diferenças entre ambas, possivelmente relacionadas às repercussões histórico-cultu-
rais do processo de democratização na socialização política de seus habitantes. A popula-
ção-alvo, nas duas cidades, foi constituída por pessoas de ambos os sexos, com escolaridade
mínima de 2º grau completo e que tivessem vivido na cidade onde foram entrevistados –
Curitiba e Porto Alegre – dos 10 aos 17 anos de idade, no mínimo. Esse último requisito está
vinculado à importância atribuída às experiências vividas nessa faixa etária. A exigência de
2º grau completo está relacionada ao grau de dificuldade apresentado pelo instrumento,
testado previamente, entre entrevistados com escolaridade inferior a esse patamar. Em
Curitiba, a amostra foi constituída por 462 entrevistados e, em Porto Alegre, por 463
entrevistados, em pontos de alta circulação.
19
Várias críticas foram feitas a essa categoria “mista” de Inglehart, justificando com dados
empíricos a sua eliminação, como também fazemos aqui, como Davis e Davenport (1999),
Brown e Carmine (1995) e Tranter e Western (2002). O último trabalho conclui que: “Ao
classificar o índice de quatro itens para análise de regressão, como variável dependente com
três categorias, [Inglehart] deformou a variação dessa variável dependente” (p.4).
20
Esses resultados foram inicialmente organizados por Marcos Mesquita, responsável também
pela versão preliminar da análise que segue (até a Tabela 5). Os dados que se apresentam
posteriormente foram sistematizados e analisados com apoio estatístico de Luiz Cláudio Messa.

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152 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Quando confrontados com as alternativas de Inglehart, ambos os públi-


cos seriam majoritariamente pós-materialistas – se quiséssemos conti-
nuar usando essas categorias – embora seja necessário interpretar es-
ses dados em outro contexto teórico, que especificaremos ao final. Es-
ses resultados aparecem na Tabela 1:

Tabela 1
Objetivos mais importantes para o Brasil por cidade,
Curitiba e Porto Alegre

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

Resultado semelhante obteve-se ao correlacionar esses mesmos dados


do survey por faixa etária, na população de cada cidade (Ver a Tabela 6
ao final do texto), ou seja, não houve significação estatística nas diferenças
entre as faixas de idade, com respeito à adesão a valores supostamente
materialistas ou pós-materialistas, embora houvesse variações sugestivas,
todas diferentes das expectativas de Inglehart, como veremos.
Quanto ao segundo ponto de revisão metodológica, os valores
relevantes que surgiram nos debates, entre os participantes dos grupos
focais de ambas as cidades, foram apresentados como uma lista de
escolha múltipla aos entrevistados pelo survey, da qual eles foram con-
vidados a escolher as cinco alternativas que consideraram principais,
sem ordem de prioridade, para “a construção de uma sociedade ideal”.
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Paulo J. Krischke — 153

Os resultados dessas escolhas são apresentados na Tabela 2, na qual


se constata que quatro desses valores principais são majoritários e co-
muns às duas cidades.

Tabela 2
Importância dos valores a para construção de uma sociedade ideal

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

A convergência entre as escolhas da população das duas cidades,


selecionando-se conjuntamente quatro dos cinco valores como prioritári-
os, é decisiva, e será considerada a seguir. Todavia, as diferenças entre
as escolhas das duas populações (quinto valor selecionado acima) tam-
bém são muito significativas e devemos enfatizá-las aqui. Diferentemente
dos que responderam em Porto Alegre, os entrevistados de Curitiba não
escolheram o valor do respeito ao meio ambiente como um dos cinco
mais importantes para a construção da “sociedade ideal”, e sim a dis-
ciplina. Isso reafirma o que foi observado na dinâmica dos Grupos
Focais, em que a manutenção da ordem institucional, pela organização
do convívio cotidiano, o cumprimento de regras sociais, ordenamento, a
autoridade, hierarquia e a organização nas relações entre as pessoas
foram pontos muito presentes e valorizados entre os curitibanos21.
_________________________________________________
21
Participantes dos grupos focais em Curitiba expressaram as falas seguintes, durante os
debates e nas entrevistas: “[a disciplina] é seguir a lei”; “começa na comunidade e acaba
no indivíduo”; “cultura conservadora”; “igreja, religião”; “ditadura = ordem”; “transi-
ção gera instabilidade”; “geração do medo”; “preconceito e politicagem”; “corrupção,
desconfiança”; “assaltos, insegurança”; “instituições dependem das pessoas”; “todas
instituições perderam credibilidade”; “desenvolver a pessoa para desenvolver o mundo;
do privado para o público”.

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154 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

A valorização da justiça, igualdade, liberdade e do desenvolvimento


econômico aparece ancorada na disciplina como mediadora das
relações sociais.
Em Porto Alegre, a valorização do Respeito ao meio ambiente,
associada aos demais valores, bem como a ênfase maior conferida aos
valores da Igualdade e Liberdade, sugere uma representação acerca da
“sociedade ideal” que contempla a inserção de novos valores ético-sociais
e a ressignificação dos demais valores, em que a questão da qualidade
de vida toma peso. A importância dada ao Desenvolvimento econômico
aparece assim relativizada pela preocupação com o Meio ambiente. Isso,
aliás, parece inserir-se em um “projeto coletivo” mais amplo, tal como o
que alguns dos participantes dos grupos focais, entrevistados anterior-
mente em Porto Alegre, haviam tratado de enfatizar22.
Considerando-se essa diferença inicial entre os valores mais esco-
lhidos nas duas cidades, buscamos estudar a sua configuração de con-
junto, com outros valores também selecionados na lista, em cada uma
das cidades. Para isso, utilizamos uma técnica estatística chamada Cluster
Analysis, que permite visualizar a relação dos valores entre si, a partir
da composição de fatores que se agrupam por ordem de proximidade,
nas escolhas feitas por cada entrevistado. Aqui, a distância indica oposi-
ção, ou seja, uma tendência à eleição de um conjunto em detrimento de
outros (Ver Gráficos 1 e 2 em anexo).
Pudemos então observar, em Porto Alegre. a formação de um fator
composto pelos valores da liberdade, igualdade e justiça, que podemos deno-
minar de valores ético-sociais, e a formação de um fator menos coeso, po-
rém importante, composto pelos valores do desenvolvimento econômico e
do respeito ao meio ambiente, que poderíamos denominar, pela sua pertinên-
cia, como valores do desenvolvimento sustentável. Esses dois fatores são
destacados na análise de Cluster, em contraste com os outros valores, indi-
cando uma tendência à eleição do conjunto de valores ali inseridos.
_________________________________________________
22
Eis algumas manifestações dos participantes nos grupos e entrevistas em Porto Alegre:
“socialismo mais próximo da cidadania, educação, saúde”; “o meio ambiente somos nós
que fazemos”; “se faz política acreditando nos outros”; “aprendendo a interpretar uma
opinião”[motivos do falante]; “os novos discutem mais, até a própria lei”; “o pessoal está
pensando mais; vai levar um tempo mas vai mudar”; “movimentos sociais conseguem
mudar pela força do número”; “visão mais ampla, ‘bola de neve’ do PT”; “projeto coleti-
vo: satisfação muito grande”; “orçamento participativo do governo por si só não funcio-
na”; “programação subterrânea que não se vê mas sabe que existe”; “OP: é por aí, mas com
iniciativa própria”.

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Paulo J. Krischke — 155

Em Curitiba, observamos a formação de fatores que dão visibilida-


de a diferenças sutis, porém importantes para pensar e demarcar dife-
renças valorativas, na identidade dos habitantes de cada cidade. Tam-
bém aqui, visualiza-se a formação de dois importantes fatores que se
opõem a todos os outros valores. Um primeiro fator é composto dos
valores desenvolvimento econômico e justiça, que aliam a idéia de pro-
gresso à de justiça social; o segundo fator é composto pelos valores
liberdade, igualdade e disciplina, que aliam valores ético-sociais à “ma-
nutenção da ordem”. A formação destes fatores confirma indicações de
diferenças na representação da sociedade ideal entre os habitantes das
duas cidades — tal como fora sugerido pelos debates nos grupos focais.
Partindo-se desta constatação geral, da existência de diferentes
matrizes culturais, dos valores prioritários em cada uma das duas cida-
des, é necessário assinalar as similaridades entre as respostas dos entre-
vistados das duas cidades. Em parte, ao menos, essas semelhanças rela-
cionam-se à escolha conjunta que os entrevistados fazem dos mesmos
valores prioritários, ou, ainda, a interpretações e conotações convergen-
tes dos mesmos valores no contexto histórico-cultural específico de sua
cidade. Por outro lado, há também diferenças contrastantes entre outras
respostas e temas enfatizados nas duas cidades. Além disso, há ainda
questões relacionadas à vida política e sua prática, nas preferências dos
entrevistados, que às vezes receberam atenção especial e diferenciada.
Essas semelhanças e diferenças entre as opções dos entrevistados, suas
experiências práticas nos grupos de idade em cada cidade e também em
conjunto nas duas cidades serão tratadas a seguir.
Por exemplo, perguntou-se aos entrevistados nas duas cidades a
importância que atribuíam à política, e o reconhecimento dessa impor-
tância foi amplamente majoritário, sendo a importância da política relati-
vamente mais valorizada em Porto Alegre, 73% dos entrevistados, do
que em Curitiba, 66% dos entrevistados (Ver adiante a nota de rodapé
21). E observa-se, também, na Tabela 3, maior reconhecimento da im-
portância da política entre os mais jovens, nas duas cidades, a qual dimi-
nui, à medida que a faixa etária aumenta. Não é grande a diferença da
importância da política, entre as duas cidades e entre as diferentes ida-
des, mas veremos depois o seu peso específico, ao relacioná-la com
outras opções dos entrevistados.

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156 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Tabela 3
Valorização da política por faixa etária

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

Para verificar o grau de tolerância política dos entrevistados, foi


formulada uma questão na qual se pedia que o entrevistado indicasse a
frase que considerava mais próxima às suas concepções. A tolerância é
um importante indicador de democratização cultural, caracterizando uma
disposição para conviver com o direito à diferença. A adesão a esse
índice foi alta em ambas as cidades, não havendo diferença significativa
entre as respostas das duas populações. Contudo, correlacionando-se
esses dados com a faixa etária, em conjunto nas duas cidades (Tabela
4), observa-se maior tolerância política, estatisticamente significativa, nos
entrevistados com até 28 anos de idade.

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Paulo J. Krischke — 157

Tabela 4
Tolerância (atitude em relação aos que pensam diferente) por
faixa etária, Curitiba e Porto Alegre

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

Já é conhecida de pesquisas anteriores a tendência à falta de


interesse em geral da população brasileira pela política em seu formato
institucional. Porém, quando a atividade política constitui-se conside-
rando dimensões culturais e simbólicas, como no caso da defesa do

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158 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

meio ambiente ou demais valores prioritários, os entrevistados ten-


dem a declarar participação mais efetiva na política. A seguir, apre-
sentamos algumas correlações entre essas respostas dos entre-
vistados, para debater o seu significado na cultura política das
duas cidades 23.
Com referência à lista inicial de valores correlacionada à faixa
de idade, os apoios à liberdade e igualdade, analisados por cidade,
alcançam maior significado em Porto Alegre (respectivamente, 0,022-
2.3 e 0,005-2.8). Embora as diferenças entre as duas faixas de idade
mais jovens sejam pequenas, nas duas cidades, ambas se diferenci-
am da faixa dos mais idosos, cuja omissão na escolha desses valores
alcança significado estatístico. Esses entrevistados com mais de 45
anos, nas duas cidades, enfatizam mais o valor da justiça e, surpreen-
dentemente, os da preservação da natureza e meio ambiente (res-
pectivamente, 0,132-2.0 e 0,006-3.1). O valor do desenvolvimento
econômico é principalmente enfatizado, nas duas cidades, pelos en-
trevistados de idade intermediária, 29 aos 44 anos (0,023-2.3). Essa
análise estatística mais fina, por idade dos entrevistados em cada
cidade, indica que devemos matizar as configurações iniciais que fi-
zemos acima, por meio da análise de Cluster, estabelecendo matri-
zes das diferenças gerais de opção entre as duas cidades, na lista
inicial de valores. Até mesmo os jovens até 28 anos de ambas as
cidades enfatizam também o valor da competência, que não chegou a
alcançar prioridade entre as outras faixas de idade.
Mencionamos anteriormente que as escolhas referentes aos denomi-
nados materialismo e pós-materialismo não permitem encontrar diferenças
com significação estatística, seja entre as populações das duas cidades,
_________________________________________________
23
Para não sobrecarregar o texto com tabelas, salientamos apenas que os resultados apresen-
tados a seguir, que resultam da aplicação dos testes estatísticos qui-quadrado e resíduos
ajustados, dos quais daremos alguns exemplos. O teste qui-quadrado verifica a associação
entre duas variáveis, ao nível de significação de 5% (no caso, a margem de erro desta
pesquisa). Por exemplo, ao testar se a associação da Importância da Política com cada
cidade era a mesma, constatou-se um p-value de 0,022 (menor que os 0,05). Isto significa
que a importância da política é avaliada diferentemente, em cada cidade. A análise de
resíduos ajustados verifica a magnitude da associação existente entre as variáveis, havendo
associação positiva quando o resultado obtido for igual ou maior do que 1,96. No exemplo
acima, a análise em Porto Alegre resultou em 2,3 para as respostas que declararam a
política Muito Importante, enquanto, em Curitiba, resultou em 2,5, para os que declaram
Nada Importante à mesma questão.

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Paulo J. Krischke — 159

seja entre faixas etárias diversas em cada cidade, o que contradiz, ou ao


menos questiona radicalmente24, as hipóteses de Inglehart. No entanto,
como veremos, a partir da clivagem geracional, encontramos elementos
que permitem indagar acerca da eventual formação de uma subcultura
etária em âmbito regional, incluindo tanto Curitiba como Porto Alegre.
Quando indagados sobre suas alternativas desejáveis de inserção
social no tempo livre, numa lista de escolha múltipla, os entrevistados de
ambas as cidades enfatizaram principalmente o lazer e as relações afe-
tivas (Tabela 5). Esse pode ser um indicador importante, tanto de insatis-
fação com o presente como de motivação para inovar no futuro.

Tabela 5
Inserção em grupo ou atividade no tempo livre

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

Essa prioridade do lazer e das relações afetivas encontra correspon-


dência com a faixa etária dos entrevistados nas duas cidades, sendo que as
respostas dos dois grupos de idade abaixo de 45 anos alcançaram a mesma
magnitude (2.0). Entre os mais idosos, essa preferência não foi significativa.
_________________________________________________
24
Ver críticas, nessa direção, de Kaase et al. (1999) de que “[Nossos] resultados apóiam o
argumento de que grande parte da mudança dos valores, do materialismo para o pós-
materialismo, encontrada pelo Eurobarômetro, desde o início dos anos 80, é um artifício de
mensuração” (Introduction); e Davis e Davenport (1999): afirmam que “[...] Transpor
para um nível agregado de análise as respostas do survey, implica no suposto apriorístico,
de que o índice de quatro itens reflete adequadamente um sistema (não comprovado) de
crenças duradouras e orientações valorativas individuais” (Introduction).

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160 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Essa prioridade no uso do tempo livre correlaciona-se positivamente


com as escolhas sobre valores da lista inicial, tais como: alegria, prazer
(Curitiba: 0,021-2,3), auto-realização (Porto Alegre: 0,026-2.2) e meio
ambiente (POA: 0,008-2.6). Esses valores estão entre os preferidos
pelos mais jovens (até 28 anos) em ambas as cidades (0,002-3.2);
embora nem sempre sejam essas as escolhas de valores majoritárias,
mesmo nessa faixa de idade. Destaca-se também a preferência dos
mais jovens pela defesa do meio ambiente, no uso do tempo livre, em
correspondência com a escolha desse mesmo valor na lista inicial (Cu-
ritiba: 0,001-3.3; POA: 0,006- 2.8). Outra opção significativa no uso do
tempo livre pelos mais jovens, de ambas as cidades, foi a procura de
outro emprego (0,09-3.0).
Para o conjunto dos entrevistados, de todas as idades e nas duas
cidades, a opção de tempo livre em atividades políticas correlaciona-se
positivamente com a ênfase que já vimos acima, acerca da importância
da política (principalmente em Porto Alegre: 0,29- 2.7). Já a opção no
tempo livre por atividades assistenciais e religiosas é priorizada por aqueles
que escolheram, entre seus valores da lista inicial, o temor a Deus ou a
religiosidade (principalmente em Curitiba, 0,20-2.3). Significativamente,
aqueles que optam por atividades políticas, em Curitiba, e os que esco-
lhem lazer e relações afetivas, em Porto Alegre, não selecionam temor a
Deus na lista inicial de valores. A seleção de atividades políticas como
opção de tempo livre, em Curitiba, também se correlaciona positivamen-
te com a escolha da liberdade na lista inicial de valores (0,002-3.1). Essa
última opção pelo valor da liberdade está também relacionada, nessa
cidade, com a importância da democracia, como prioridade (0,001-3.7).
Esse conjunto de dados permite perceber tendências emergentes
nos grupos mais jovens, que unem a insatisfação com o presente à
busca por soluções politicamente inovadoras. É certo que essas ten-
dências nem sempre assumem o perfil nítido de um “projeto coletivo”
– como denominaram alguns entrevistados nos grupos focais de Porto
Alegre o apoio às administrações do PT25. Mas é possível sugerir que
essas tendências inovadoras, em ambas as cidades, oferecem suporte
motivacional para uma subcultura em formação, que pode inclusive al-
cançar (se não estiver já alcançando) uma expressão política e eleitoral.
_________________________________________________
25
Márcia R. Dias (2003) realiza pesquisa sobre esse tema.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.141-175, abril de 2004


Paulo J. Krischke — 161

É assim que o interesse pela política, que supera entre os mais jovens a
tradicional rejeição das instituições por parte da população brasileira,
pode unir-se a atitudes de respeito ao meio ambiente, tolerância e auto-
realização, abrigando valores menos salientes – como o da alegria e
outros, mais típicos dos jovens –, junto aos valores majoritários entre o
conjunto dos entrevistados das duas cidades, a favor da justiça, liberda-
de, do desenvolvimento e da igualdade.
Esses últimos valores, que recebem o apoio principal da maior par-
te da população, passam a receber uma nova conotação emergente, a
partir das novas gerações. Tal inovação retoma também as categorias
de Inglehart sobre materialismo e pós-materialismo, dando-lhes outro
contexto e significação. A Tabela 6, a seguir, relaciona as respostas a
essas alternativas por faixa etária, conjuntamente nas duas cidades,
mostrando marcantes contrastes com os supostos de Inglehart.

Tabela 6
Objetivos mais importantes para o Brasil por faixa etária,
Curitiba e Porto Alegre

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.141-175, abril de 2004


162 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Assim, relacionando as diferentes faixas etárias e os posiciona-


mentos que os entrevistados assumem, sobre os objetivos que conside-
ram mais importantes para o país, observamos uma diferenciação en-
tre os entrevistados mais jovens e os maiores de 45 anos. Esses últi-
mos priorizam menos a participação política, e dão maior apoio à ma-
nutenção da ordem social e da autoridade, nas duas cidades. Os mais
jovens (até 28 anos) e os de idade intermediária (29 a 44 anos) mos-
tram pequena variação entre suas preferências, com a visível exceção
do apoio à terceira alternativa (“pessoas mais importantes que dinhei-
ro”), na qual inclusive as preferências dos maiores de 45 anos estão
mais próximas às dos menores de 28. Contudo, como foi mencionado
acima, as diferenças que encontramos na Tabela 6 são pequenas e
carecem de significaçào estatística.
Há, porém, outros resultados significativos, quando correlaciona-
mos essas opções dos entrevistados sobre os objetivos para o país,
com outras escolhas e respostas que eles expressaram a várias ques-
tões diferentes da pesquisa. Já vimos que a ênfase no desenvolvimento
econômico esteve entre os cinco valores principais escolhidos por am-
bas as amostras, em Curitiba e Porto Alegre. Nos dados sobre a elei-
ção dos objetivos principais para o país, por faixa etária, muitos dos
que optaram pela estabilidade econômica e combate à inflação tam-
bém escolheram o desenvolvimento econômico como uma das cinco
prioridades, na lista inicial de valores. Essa correlação positiva entre
ambas as escolhas ocorreu em todas as faixas etárias nas duas cida-
des, mas resultou especialmente significativa no grupo de idade inter-
mediária, entre 29 e 44 anos.
Examinando essa correlação separadamente em cada cidade, cons-
tatamos que ela também ocorreu em todas as faixas etárias (com a úni-
ca exceção dos maiores de 45 anos, em Curitiba), mas foi, de novo,
principalmente significativa no grupo de idade dos 29 aos 44 anos, nas
duas cidades. Em Curitiba, houve também uma correlação significativa,
para todos os grupos de idades, entre a escolha do valor desenvolvimen-
to econômico na lista inicial e a ênfase na maior participação da popula-
ção como objetivo principal do país26.
_________________________________________________
26
Vários pesquisadores notaram, em outros estudos, semelhante correlação positiva entre
respostas que contradizem os supostos centrais de Inglehart sobre valores. Por exemplo,
Haller e Marshall, citados, e especialmente Clarke (2000).

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Paulo J. Krischke — 163

A escolha do valor desenvolvimento econômico entre os cinco prin-


cipais da lista inicial também alcançou uma correlação positiva, com as
respostas dos entrevistados em Porto Alegre a outras questões, que enfa-
tizaram a importância da política e a tolerância (0,026-2.3). Isso sugere a
prioridade do desenvolvimento, com um significado específico, entre os
setores mais politizados dessa cidade, o que especifica melhor o que foi
constatado na análise de Cluster (Gráfico 1 do anexo). Além disso, os
jovens de Porto Alegre, até os 28 anos, que escolheram o valor do trabalho
entre os valores prioritários da lista inicial, também declararam preferên-
cia pela estabilidade econômica como objetivo principal para o país.
A difusão dessa escolha do valor do desenvolvimento econômico,
entre todas as faixas de idade das duas cidade, embora com conotações
variadas segundo a faixa etária, indica bem mais do que a sua importân-
cia central para todos os entrevistados. As diferenças de correlação dessa
resposta com as eleições dos objetivos para o país, em Porto Alegre e
Curitiba (e outras variações, por grupos de idade, obtidas frente a outros
temas da pesquisa), confirmam a existência, nas duas cidades, de matri-
zes ou conceptualizações diferenciadas do que seja o desenvolvimento,
como foi sugerido acima, pelas análises de cluster. De fato, essas vari-
antes interpretativas, nas conotações com que se relacionam os valores
considerados principais às atividades e orientações políticas, presumem
a existência de suportes doutrinários e ideológicos contrastantes, que
orientam diversamente as opções da população, em cada cidade e se-
gundo a faixa etária.
Assim, embora todos busquem o desenvolvimento, nas duas cida-
des, é o grupo de idade intermediário, dos 29 aos 44 anos, o que parece
mais coeso e consistente na busca desse objetivo (0,023-2.3). Talvez
seja essa geração a que foi mais exposta, nos seus anos formativos, à
influência da reativação sindical e ao associativismo do final dos anos
1970 e durante a década de 80. A democratização do país passou a ser
vista, assim, como o caminho para o desenvolvimento, seja na versão
mais politizada de Porto Alegre, seja nas demandas redistributivas mais
gerais, como no caso de Curitiba.
Algo similar observa-se com outro exemplo diferente, quanto à
adoção dos valores principais, que é o caso do meio ambiente. A consi-
deração desse caso é útil, por tratar-se de valor selecionado como prio-
ritário apenas em Porto Alegre por todas as faixas de idade, ou seja,

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164 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

como um dos cinco valores principais mais escolhidos nessa cidade, na


lista inicial de valores. Contudo, na análise por faixa etária, em conjunto,
nas duas cidades, notamos o resultado que mais acima consideramos
surpreendente, do grupo de mais idosos (acima de 45 anos) declarar
preferência significativa tanto pelo valor preservação da natureza como
pelo valor meio ambiente, o que não acontece nas demais faixas de ida-
de, pelo menos com índice semelhante de significação.
No entanto, no uso desejável do tempo livre, que expressa uma
adesão potencial a atividades inovadoras, a faixa dos mais jovens das
duas cidades correlaciona positivamente essas opções com a escolha do
valor meio ambiente. Quanto à alternativa de opção do tempo livre espe-
cificamente na defesa do meio ambiente, todos os que fizeram essa op-
ção, de todas as idades, correlacionam-na positivamente com a escolha
do valor preservação da natureza, como um dos principais na lista inicial
de valores (0,006-3.0).
É claro que esses dados não são necessariamente contraditórios, há
quem interprete defesa do meio ambiente e preservação da natureza como
sinônimos, embora essa seja apenas uma entre outras interpretações. Mas
essas diferenças de significação, nas correlações entre respostas sobre
esses temas, nas duas cidades – em separado ou em conjunto –, por um
lado, e entre os diferentes grupos de idade, por outro lado, sugerem tam-
bém, como vimos no caso do valor desenvolvimento econômico, a existên-
cia de algo mais do que matrizes culturais diferentes em cada cidade – as
configurações diferenciadas dos valores, entre as duas cidades, constata-
das pela análise de Cluster. O que se evidencia agora é a existência de
uma diversidade de conotação e contextualização doutrinária e ideológica,
investida nos valores meio ambiente e preservação da natureza.
Existe um debate amplo, na literatura especializada, (que não pode-
mos abordar neste espaço) sobre essa diversificação ideológica – opondo,
por exemplo, as políticas de conservacionismo às do preservacionismo ou,
ainda, as tendências do “eco-capitalismo” às do “eco-socialismo” etc.27
_________________________________________________
27
Ver a tese de doutoramento de Agripa Faria Alexandre (2003) sobre essas e outras diversifica-
ções do tema na prática dos grupos e movimentos ecológicos e nas próprias políticas gover-
namentais. Tranter e Western (2002) enfatizam a influência dos partidos e movimentos
“Verdes” sobre o voto da juventude: “[...] Concluímos que as estruturas institucionais e os
partidos políticos deveriam receber muito maior atenção nos relatos sobre a mudança dos
valores materialistas em âmbito internacional” (Introduction). O texto esclarece ainda que as
influências “Verdes” relacionam-se também com os valores ético-sociais participativos,
sustentados por outros partidos da chamada “nova política” nesses sistemas multipartidários.

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Paulo J. Krischke — 165

Essa diversidade doutrinária e prática merece ser mais bem analisada,


especialmente considerando-se as trajetórias diferentes de incorporação
desses temas na agenda das administrações municipais, na expansão do
seu debate público e nas atividades associativas correspondentes à ori-
entação dos movimentos ecológicos em cada cidade. No caso de Curiti-
ba, por exemplo, os grupos focais denunciaram a utilização apenas “pu-
blicitária” da questão ambiental pelo governo, enquanto, em Porto Ale-
gre, a questão era vista como integrada à resolução dos demais proble-
mas urbanos e dela decorrente.
Seja qual for o resultado dos debates sobre o significado desses
valores, é certo que tais diferenças têm um impacto na orientação das
políticas públicas e na atuação dos movimentos sociais. É portanto muito
importante salientar a sua correlação positiva com a ênfase no emprego
eventual do tempo livre, nas diversas faixas etárias das duas cidades,
pois essas escolhas e outras opções e alternativas políticas que estamos
considerando revelam a disposição dos entrevistados por práticas inova-
doras e um potencial de engajamento coletivo, que serão certamente
diferenciados em cada cidade e faixa etária, na solução dos problemas
ecológicos (e outros tantos), que afetam todos.
Dessa forma, começamos a perceber que a diferença entre a cul-
tura política em Porto Alegre e Curitiba pouco têm a ver com as hipóte-
ses de Inglehart, estritamente consideradas, contendo até inversões de
suas expectativas. Essas inversões de expectativa das hipóteses de In-
glehart, a partir dos resultados desta pesquisa, começam a desvelar as
aporias de hiper-simplificação e hiper-generalização da abordagem des-
se autor, porque são prisioneiras não apenas de um artefato metodológi-
co residual (as respostas mistas ou contraditórias, interpretadas como
“de transição”, além de outros pontos apontados pela crítica)28, mas,
sobretudo de uma teleologia determinista do “progresso” socioeconômi-
co e material, que não encontra respaldo nos fatos.
_________________________________________________
28
Os procedimentos e os resultados de pesquisa de Inglehart têm sido objeto de severas
restrições na bibliografia especializada. Além das mencionadas anteriormente, considere-se
Rahn e Transue (1998), que contestam as relações diretas entre pós-materialismo e civis-
mo, encontradas por Inglehart entre a juventude; Degraaf e Evans (1996), que encontram
“pouca diferença entre “pós-materialismo/materialismo” e o pólo conservador/liberal da
personalidade”; ou ainda Cliquet (1991) que “disputa a pretensão de completa novidade das
tendências descritas, vendo, antes, uma maior continuidade com os desenvolvimentos
anteriores”. Stolle e Hooghe (2002) reafirmam todas essas críticas. Ver também Echegaray
e Armento (2000) sobre o caso da Argentina.

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166 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Realmente, não há diferença significativa entre os indicadores soci-


oeconômicos e demográficos de Porto Alegre e Curitiba (índices de renda,
ocupação, industrialização, escolaridade etc.), dados geralmente conside-
rados cruciais para sustentar as mudanças de modernização da cultura
política, dentro da abordagem convencional (KRISCHKE, 1997). Portan-
to, as escolhas, principalmente dos menores de 45 anos, priorizando alter-
nativas que Inglehart consideraria pós-materialistas, podem relacionar-se
ao complexo de mudanças de caráter prático e simbólico que vimos acima,
favorecidas por uma orientação cultural inovadora, que emerge entre as
novas gerações das duas cidades. Todavia, certamente, também reconhe-
cemos que há outros fatores do contexto histórico-cultural, que afetam
significativamente as posições de jovens e adultos, tanto em Curitiba como
em Porto Alegre. Esses fatores relacionam-se ao processo de democrati-
zação do país, que atua sobre as tradições culturais diferentes das duas
cidades, bem como na diversidade das gestões administrativas e da lide-
rança ideológico-partidária, em cada município29.

Considerações finais

Sintetizando o que vimos acima, observamos que curitibanos e por-


to-alegrenses convergem suas preferências de valores ao redor da justi-
ça, liberdade, desenvolvimento e igualdade, embora os primeiros apon-
tem a disciplina e os segundos o respeito ao meio ambiente, respectiva-
mente, como seu quinto valor prioritário. No caso de Curitiba, há uma
ênfase no cidadão como portador de direitos e obrigações, em contraste
_________________________________________________
29
O processo de democratização no plano cotidiano pode ser interpretado, como quer
Bohman (1990) do ponto de vista de Habermas: Bohman sugere que a definição haberma-
siana da “democracia como institucionalização de discursos” supõe que “os discursos são
institucionalizados na medida em que é criado um contexto social que permita acordos
coletivos, pós-convencionais, os quais, por sua vez, criam sejam quais forem as estruturas
partilhadas por esses atores” (HABERMAS, 1979, p.73). A democracia é vista assim como
uma “hipótese prática”, já que as instituições democráticas “colocam sob controle o
desenvolvimento dos sistemas sociais, através de uma institucionalização do discurso efe-
tivamente política”. Por outro lado, a teoria habermasiana da mudança social repousa em
dois postulados: o primeiro é que “o aprendizado é o mecanismo evolutivo básico da
cultura”; o segundo é que “há padrões homólogos de desenvolvimento cognitivo, nos
planos ontogenétrico e filogenético” (HABERMAS, 1979, p.99, 205). Ademais, a sua
teoria do desenvolvimento moral-cognitivo é multidimensional (HABERMAS, 1989),
incluindo-se a dimensão cognitiva (o desenvolvimento de “visões de mundo”), ao lado da
dimensão normativa (o desenvolvimento jurídico-moral) e da dimensão subjetiva (o desen-
volvimento de identidades e estruturas de personalidade mais complexas).

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Paulo J. Krischke — 167

com a ênfase no “outro social”, tendencialmente reconhecido em Porto Ale-


gre como participante de um projeto coletivo. Essas ênfases contrastantes
podem ser vistas como duas faces complementares do exercício da cidada-
nia, que enfatizam seja o acatamento individual da lei seja a sua fundamen-
tação e seu aperfeiçoamento argumentativo na participação coletiva30.
A realização do survey com amostras das duas populações tam-
bém permitiu perceber as nuanças às vezes sutis, com que essas matri-
zes distintas se manifestam nas faixas de idade. Mesmo quando certos
valores são escolhidos preferencialmente pelos mais jovens, valores pri-
oritários do conjunto das duas cidades correlacionam-se positivamente
com as atividades eventuais de tempo livre e com outras importantes
opções e experiências práticas da vida política, principalmente entre as
faixas etárias até os 44 anos de idade, embora haja exceções que são
também importantes e devem ser mais bem analisadas. Considerando-
se o caráter prospectivo de mudança que essas escolhas sugerem, prin-
cipalmente entre os menores de 45 anos, podemos indagar sobre seus
efeitos e relações com um pós-materialismo emergente.
Certamente, não se trata de esperar um efeito mecânico de causas
materiais já existentes, mas de vislumbrar uma redefinição sustentável
do desenvolvimento socioeconômico e político-cultural, por meio do apoio
dos cidadãos à convergência entre as suas visões da justiça, igualdade e
liberdade, matizadas e diferenciadas, a partir de cada contexto munici-
pal, mas construindo e aprofundando, em conjunto, a democratização
cultural e institucional dessa região do país.
Em conclusão, a pesquisa revela que é manifestamente inadequada
à abordagem da mudança cultural nos termos da modernização, como se
essa mudança decorresse apenas do progresso tecnológico e socioeconô-
mico ou de um equilíbrio multicausal adaptativo, entre a cultura e as estru-
turas/instituições, sem considerar a participação ativa da cidadania, nos
seus efeitos e nas suas causas. Essa forma de pensamento, linear e deter-
minista, que postula um único caminho e desenlace para os processos de
mudança cultural, não faz mais que renunciar a qualquer tentativa de
explicação histórica para as diferenças e convergências entre subcultu-
ras regionais. Na verdade, tais peculiaridades não apenas persistem, mas
se especificam ainda mais, naquilo de relevante que têm a contribuir,
durante os processos históricos de democratização da esfera pública.
_________________________________________________
30
Como vimos, nos depoimentos de entrevistados dos grupos focais (notas 19 e 20) e na
interpretação de Fátima Quintal (notas 13 e 14).

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168 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

O antigo viés teleológico das abordagens da modernização, de


tratar a diferença como “atraso ou demora cultural” não encontra res-
paldo na realidade31, pois o que se observa nos dados desta pesquisa é
o fortalecimento, com ênfases diversas, de um fenômeno inovador,
centrado no pluralismo doutrinário e ideológico, o qual passa a conver-
gir e a fundamentar a prática da democracia em âmbito municipal e
regional. A pesquisa constatou um índice majoritário de confiança na
política e de tolerância com a diferença, na população das duas cida-
des estudadas. Essa tendência é promissora, porque é relacionada a
uma nova orientação cultural, emergente entre os setores mais jovens
da sociedade, enfatizando a igualdade, a reciprocidade e demais atri-
butos da democracia, o que possibilita a sua crescente difusão em âmbito
regional. Nesse contexto, os mais diversos significados da democracia
podem coexistir, ajustados à diversidade de orientações ideológicas da
cidadania. Esses cidadãos assumem-se como livres e iguais, não obs-
tante os constrangimentos estruturais e institucionais em que lhes cabe
viver, construindo a sua liberdade e igualdade, junto aos demais valores
da esfera pública.
É certo que a complexidade do questionário utilizado pelo survey
limita a generalização dos resultados que colhemos ao universo dos en-
trevistados que alcançaram o segundo grau de escolaridade. Contudo,
outra pesquisa de âmbito nacional, sobre a juventude brasileira (KRIS-
CHKE, 2004), sugere que escolaridade, renda, ocupação e outros indi-
cadores usualmente associados à modernização, não mais podem ser
considerados determinantes da adesão à democracia. Outros fatores
aparecem com mais peso nas opções pela democracia, dentre os quais o
estímulo recebido do contexto histórico-cultural e dos desafios e incenti-
vos à participação política.
Portanto, à luz desta pesquisa sobre Porto Alegre e Curitiba, a demo-
cratização da cultura política passa a ser vista como um processo neces-
sário de revisão das tradições culturais da política na própria vida e no
comportamento democrático dos cidadãos. Essas mudanças são reforça-
das pelas importantes características, mais (ou menos) democratizantes,
das gestões político-partidárias encarregadas de sua implementação.
_________________________________________________
31
Welch (1992, p.31-32) na sua importante avaliação teórica das diferentes abordagens ao
estudo da cultura política, denuncia a falácia desse argumento, por derivar de uma teleologia
da modernização que nada explica e é “cientificamente inútil”.

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Paulo J. Krischke — 169

Tais mudanças resultam, também e talvez principalmente, das formas e


dos conteúdos legados pela tradição política, na expansão e no fortaleci-
mento do exercício local da democracia32. Isso é o que encontramos em
curso de realização, nesta pesquisa sobre as mudanças da cultura políti-
ca em Curitiba e Porto Alegre.

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32
Habermas (1979) notou as relações com a tradição que permitem a consolidação da
mudança cultural, quando se entende essa mudança “[...] como processos de aprendiza-
gem, através dos quais as estruturas de racionalidade já latentes podem ser traduzidas em
prática social, de modo a encontrar finalmente uma corporificação institucional, colo-
cando-se a ulterior tarefa de identificar o potencial de racionalização das tradições”
(p.39 da tradução brasileira).

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174 — Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

Anexo

Gráfico 1
Cluster analysis - Porto Alegre

C A S E 0 5 10 15 20 25
Label Num +————+————+————+————+————+

OBEDIENC 13 -+-+
TRADICAO 18 -+ I
CONFORTO 2 —+-+
PRAZER 4 —+ +-+
TEMORDEU 12 ——+ I
RELIGIOS 5 ———+——+
ALEGRIA 7 ———+ I
AUTOREAL 10 ——————+—————+
FRATERNI 11 ——————+ I
PRESENAT 15 ——————+ I
DISCIPLI 8 ——————+-+ +———————————+
COMPETEN 9 ——————+ +-+ I I
DEDICTRA 3 ———————+ +-+ I I
DESENECO 14 ————————+ +——+ I
RESPMEIA 1 —————————+ I
JUSTICA 16 ———————+-+ I
IGUALDAD 17 ———————+ +————————————+
LIBERDAD 6 ————————+
Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

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Paulo J. Krischke — 175

Gráfico 2
Cluster analysis - Curitiba

C A S E 0 5 10 15 20 25
Label Num +————+————+————+————+————+

OBEDIENC 13 -+-+
TRADICAO 18 -+ +-+
CONFORTO 2 —+ +——+
PRAZER 4 ——+ +—+
ALEGRIA 7 —————+ I
AUTOREAL 10 ———————+—————+
PRESENAT 15 ———————+ I
DEDICTRA 3 —————————+ +——————————+
COMPETEN 9 —————————+-+ I I
RESPMEIA 1 —————————+ I I I
FRATERNI 11 ————————+ +——+ I
TEMORDEU 12 ————————+-+ I I
RELIGIOS 5 ————————+ +-+ I
DISCIPLI 8 —————————+ I
LIBERDAD 6 —————————+—+ I
IGUALDAD 17 —————————+ +——————————+
DESENECO 14 ——————————+-+
JUSTICA 16 ——————————+

Fonte: Pesquisa Clivagens Geracionais...

(Recebido em abril de 2004 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

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Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras
distintas da formação urbano-industrial no Brasil*

Maria José de Rezende1


Universidade Estadual de Londrina

Resumo Abstract

A formação das atividades The formation of urban-indus-


urbano-industriais no Brasil tem trial activities in Brazil has been
sido investigada sistematicamente systematically investigated by the
pelas ciências sociais. Dentre as social sciences. Among various in-
diversas interpretações dadas, duas terpretations, two are dealt with in
destacam-se neste artigo: a de Gil- this article: Gilberto Freyre”s and
berto Freyre e a de Celso Furtado. Celso Furtado”s. In his discussions
As discussões do primeiro sobre o about the formation process of ur-
processo de formação das ativida- ban-industrial activities, considering
des urbano-industriais procuraram the period of crisis of the rural Pa-
esmiuçar, a partir da crise do patri- triarchal system, from the 18th Cen-
arcalismo, desencadeada no sécu- tury on, Freyre tried to account in
lo XVIII, a lenta formação das ci- minor details for the slow process
dades e de seus modos de vida, que of constitution of towns and their
__________________________________________________
* Gilberto Freire and Celso Furtado: two different views of brazilian urban, industrial formation.
1
Endereço para correspondências: Rua Pio XII, 335, apto 1104, Londrina, PR, CEP 86020-
914 (wld@rantac.net).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


178 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

nem sempre eram totalmente re- lifestyles, which were not always
novados. É uma busca das perma- renewed. According to Freyre it is
nências, das constâncias, das aco- the quest for stability, constancy, ac-
modações e das quebras de aco- commodations and the ruptures in
modações que emergiram com o them that emerged during the pro-
processo de urbanização. Celso cess of urbanization. In his turn, ho-
Furtado, no entanto, centra em suas wever, Furtado focuses on chan-
análises as mudanças que se pro- ges that occurred since the middle
cessaram a partir de meados do of the 19th Century, given that, ac-
século XIX, já que a expansão ca- cording to him the expansion of
feeira, mesmo obedecendo à mes- coffee agriculture—even though it
ma lógica – fundada na demanda took place according to the same
externa – dos demais ciclos eco- logic of former economic cycles
nômicos anteriores, teria formado based on the needs of the foreign
as bases para a expansão industri- market—furnished the bases to the
al no país. country”s industrial development.

Palavras-chave: Mudanças soci- Keywords: Social changes; urba-


ais; urbanização; industrialização; nization; industrialization, Brazilian
formação econômica brasileira. Economic Formation.

Introdução

T endo em vista que, neste estudo, trata-se de dois pensadores que


têm uma vasta obra de interpretação do Brasil2, faz-se necessá-
rio, em primeiro lugar, recortar, no conjunto de seus livros, aqueles textos
que melhor explicitam uma constante preocupação com a formação das
atividades urbano-industriais no país. Os livros Sobrados e mucambos
e Ordem e progresso, de Gilberto Freyre e Formação econômica do
Brasil3, Dialética do desenvolvimento, A fantasia organizada e A
fantasia desfeita, de Celso Furtado, fornecem subsídios suficientes para
a compreensão de duas perspectivas distintas acerca do modo de pro-
cessamento da urbanização e da industrialização no Brasil.
__________________________________________________
2
Dentre as suas principais obras destacam-se as seguintes: Freyre, 1994; 1962; 1961; 1968;
1947; 1967; 1957; 1983; 1976; 1975; 1977; 1957; FURTADO, 1958; 1959; 1959a;
1956; 1961; 1962; 1966; 1967; 1968; 1972; 1974; 1978; 1984; 1992; 1997; 1997a;
1997b; 1997c; 1996d; 1999; 2000; e 2002.
3
A primeira edição da obra Formação econômica do Brasil data de 1959. No entanto, será
utilizada nesse artigo a 27ª. edição, a qual foi publicada em 2000.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


Maria José de Rezende — 179

As divergências constituidoras de suas interpretações não se


formaram com base em diálogos diretos estabelecidos entre eles pró-
prios. Celso Furtado e Gilberto Freyre trilharam caminhos distintos
em suas análises, quase se ignorando em relação ao modo como cada
qual interpretava o país. Os principais livros de Freyre (Casa gran-
de & senzala, Nordeste, Sobrados e mucambos) são anteriores
aos escritos de Furtado, mas as obras Formação econômica do
Brasil, desse último, e Ordem e progresso, do primeiro, tiveram suas
primeiras edições no mesmo ano, ou seja, 1959. Ao construírem aná-
lises expressivamente distintas e sem diálogos e enfrentamentos crí-
ticos, formaram dois blocos de interpretação, “em que ambos per-
dem. Freyre, mantendo-se apático ou até mesmo hostil diante do gran-
de movimento político-cultural que reinseriu o Nordeste no imaginá-
rio nacional e que resultou na criação da Sudene. Furtado, ao não
desenvolver, mesmo criticamente, as ricas pistas sobre a formação
da identidade nacional e sobre a problemática racial contidas na obra
de Freyre” (GUIMARÃES, 2000, p.19).
O próprio Celso Furtado argumenta em As aventuras de um
economista brasileiro que desde muito cedo travou contato com a
obra de Gilberto Freyre, em especial, Casa grande & senzala, o
qual o introduziu nas discussões antropológicas e sociológicas que se
desenvolviam nos EUA na primeira metade do século XX. No entan-
to, o livro principal de Freyre que havia empolgado muitos intelectu-
ais em nada o havia influenciado “no que diz respeito a sua mensa-
gem substantiva, isto é, no que se refere à interpretação do processo
histórico brasileiro. Sua importância esteve em que nos revelou todo
um instrumental novo de trabalho” (FURTADO, 1997c, p.16).

O declínio do patriarcalismo e a formação das atividades urbano-


industriais no Brasil: a leitura de Gilberto Freyre

O mundo rural e o mundo urbano: interpenetração e acomodação

As análises de Gilberto Freyre sobre a formação das atividades ur-


bano-industriais estão marcadas pela busca de relações de acomodação e
de incorporação de interesses entre as classes sociais preponderantes.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


180 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Isso não supunha, todavia, a inexistência de formas de subordinação


entre os segmentos sociais diversos que controlavam as atividades eco-
nômicas prevalecentes. Os grandes proprietários de terras eram de-
tentores de um poder político sem igual e definidor, nos séculos XVI,
XVII e XVIII, do padrão de domínio patriarcal. O padrão de organiza-
ção social que ganhou forma nesse período estenderia, assim, suas
influências ao longo do século XIX, o que se deu de maneira tal que o
processo de urbanização e de industrialização estivera marcado pelo
modo de encadeamento da vida social dos séculos anteriores.
O declínio do patriarcalismo rural teria, segundo Freyre, dado
lugar paulatinamente a uma outra forma de patriarcalismo: o urbano.
Em Sobrados e mucambos, ele demonstra que as atividades urba-
no-industriais teriam sido, desde o início, marcadas por relações pa-
triarcais. As novas distâncias sociais (de classe, de renda, de raça,
de instrução), as novas formas de subordinação e os novos antago-
nismos tanto se redefiniram quanto mantiveram alguns traços do pa-
drão de organização social, política e cultural do mundo rural. O mundo
urbano, portanto, com todas as atividades que lhe são pertinentes,
formou-se a partir de uma contemporização de estilos de vida e de
padrões de cultura (FREYRE, 1961). As atividades de comércio e de
indústria, por exemplo, nasceram marcadas pelo privatismo patriar-
cal. Sendo, então, enganoso supor que o desenvolvimento paulatino
das atividades urbanas teria encerrado definitivamente um dado pa-
drão de organização social.
A análise de Freyre oferece dados que elucidam a tortuosidade
do desenvolvimento das atividades urbano-industriais, no que diz res-
peito à reelaboração de um padrão de organização e de domínio. Os
efeitos desse processo, aos quais Freyre não se atém, seriam visíveis
na maneira como as atividades urbanas reproduziam um tipo de men-
talidade escravocrata na relação com o trabalhador. Como afirma
Manoel Bomfim, em A América Latina: males de origem, firmava-
se uma relação de parasitagem que se estendeu século XX adentro e
se pautava na refutação de toda reivindicação por melhorias salariais
e de condições de trabalho (BOMFIM, 1993). Pode-se afirmar, então,
que a constatação de que no mundo urbano o privatismo e o personalis-
mo continuaram a existir nos moldes sedimentados pela organização
patriarcal esclarece a tortuosidade das mudanças sociais no Brasil.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


Maria José de Rezende — 181

Isso é verificável não somente no modo da mentalidade patriarcal imis-


cuir-se nas relações econômicas, mas também nas relações políticas,
sociais e culturais. A partir do final do século XIX, verifica-se que o
poder tutelar foi-se esmaecendo no âmbito das atividades econômicas,
mas não, por exemplo, no âmbito da vida e da cultura políticas.
Nesse sentido, a análise efetuada por Freyre acerca da for-
mação e da expansão das atividades urbano-industriais revela que
não somente no âmbito da vida política e no do Estado as incorpo-
rações dos valores patriarcalistas trouxeram conseqüências signifi-
cativas. Tal absorção foi também decisiva no âmbito das atividades
econômicas, que passaram a reproduzir um padrão de organização
social que não se desvencilhava totalmente dos controles persona-
listas e familistas. Todavia, o grau desses controles era variável à
medida que ocorriam mudanças na própria estrutura patriarcal.
Explicando melhor, pode-se dizer que tais controles eram distintos
no patriarcalismo semi-rural, no semi-urbano e depois no propria-
mente urbano. Como padrão de organização de família, de econo-
mia e de cultura, o patriarcalismo foi-se modificando e produzindo
tipos particulares de relações sociais. Por isso, as gradações que
iam do patriarcalismo agrário ao urbano passavam por, no mínimo,
duas etapas intermediárias.
Para Gilberto Freyre, a essencialidade de estudar essas gra-
dações estava no fato de elas revelarem condições de raça, de classe
e de cultura que iam se modificando, ajustando-se, acomodando-se
e se redefinindo a um só tempo. A transição do patriarcalismo rural
para o patriarcalismo urbano esteve marcada pelo desprestígio do
senhor de engenho e pela ascensão do prestígio da aristocracia ur-
bana, a qual era formada pelos comerciantes e pelos bacharéis. No
entanto, a necessidade de se diferenciar da aristocracia rural foi-se
constituindo paulatinamente por meio da desintegração do poder eco-
nômico e do sistema de moral vigente. Essa desintegração deixou
suas marcas, seus rastros, nas novas atividades econômicas e no
novo sistema de hábitos e de costumes que se instalava nas cida-
des. Por isso, não houve rompimentos absolutos, mas sim combina-
ções e conciliações que foram produzindo equilíbrios, desequilíbrios
e acomodações (FREYRE, 1961).

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182 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Padrão de domínio e padrão de organização social: continuidades


e mudanças

A formação das atividades urbano-industriais processou-se, não


eliminando ou destruindo inteiramente o sistema patriarcal, mas in-
corporando traços desse padrão de domínio e de cultura “contraditó-
rio em vários dos seus efeitos sociais” (FREYRE, 1961, p.400). Isso
se deu tanto pela incorporação dos negros livres às atividades mecâ-
nicas quanto pelo modo como os aristocratas urbanos aproximaram-
se dos proprietários de terras e de escravos. É evidente que Gilberto
Freyre generaliza significativamente essa incorporação dos negros
livres às atividades urbanas. Alguns, de fato, adentraram as ativida-
des industriais, mas, seria esse fato significativo a ponto de garantir a
sedimentação, nas novas formas econômicas, dos traços do patriar-
calismo agrário? Essa co-responsabilização do negro nesse processo
tem duas dimensões. A primeira é a necessidade que Freyre via de
mostrar que o negro e o mulato desempenharam papéis fundamen-
tais nas revoluções técnicas que ganharam fôlego no início do século
XIX4. Eles não foram somente agentes passivos. A segunda funda-
se na necessidade de ressignificar a importância social desse proces-
so de incorporação de alguns negros e mulatos livres à ordem econô-
mica industrial.
No capítulo Escravo, animal e máquina, de Sobrados e mu-
cambos, Freyre faz uma análise do aperfeiçoamento técnico que ocor-
reu com a ascensão da máquina, o que teria representado a emer-
gência das condições que dificultaram a sobrevivência da escravidão
no país. As mudanças foram morais e materiais. Seria visível na pri-
meira metade do século XIX que alguns negros livres eram incorpo-
rados aos trabalhos técnicos e mecânicos. Em seu entender, isso te-
ria servido para amortizar os novos antagonismos que se iam insta-
lando com as atividades industriais. A possibilidade de ascensão soci-
al do negro livre acabava por criar a sensação de uma possível mobi-
lidade social para as camadas mais pobres da sociedade.
__________________________________________________
4
Manoel Bomfim em A América Latina: males de origem, de 1905, demonstrou que não
houve qualquer incorporação significativa dos ex-escravos às atividades industriais. Sem
formação técnica e profissional e sem qualquer instrução, eles teriam sido abandonados à
própria sorte (BOMFIM, 1993).

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


Maria José de Rezende — 183

O efeito social mais visível do desenvolvimento técnico-industrial


teria sido a diminuição contínua da necessidade tanto do escravo quanto
do proprietário de escravos. Isso golpeava de morte o padrão de organi-
zação social vigente. Contribuiu enormemente com esse processo de
transição a proibição do tráfico legal de escravos. “É do maior interesse
para a compreensão do período de transição que foi, nas principais áreas
do nosso país, a primeira metade do século XIX, destacar-se que várias
das modificações que sofreram então paisagens e instituições ligam-se
direta ou indiretamente à cessação do tráfico legal de escravos, cujo
volume o clandestino nem sempre conseguiu suprir; nem pode manter”
(FREYRE, 1961, p.549).
Segundo Freyre, o capital tomava outro rumo, ou seja, passava a
ser utilizado para aquisição de máquinas, prédios urbanos, fábricas etc.
A passagem de um sistema econômico agrário para um sistema urbano
“não se fez docemente, mas através de crises profundas” (Idem, p.549)
que atingiram toda a sociedade. Senhores de escravos e terras, comerci-
antes de escravos e outros setores que viviam a circundar o sistema
escravocrata foram afetados pela cessação do tráfico. O sistema eco-
nômico escravocrata esfacelou-se aos poucos. Mesmo golpeado de
morte, ele sobreviveu ao longo do século XIX. “Lento em deixar de
existir e de influir sobre o ambiente ou sobre o meio” (p.549), ele foi
imprimindo suas marcas nas atividades urbanas em desenvolvimento.
A abordagem histórica de Gilberto Freyre objetivava ressaltar que
o processo de exclusão do negro e do mulato das atividades urbano-
industriais deu-se fundamentalmente a partir da segunda metade do sé-
culo XIX. Num primeiro momento, teria havido incorporações deles nas
atividades mecânicas e, num segundo, eles teriam sido substituídos por
máquinas e imigrantes europeus. Assim, paisagem social foi-se modifi-
cando ao longo do século XIX. A transferência de capitais, de máquinas,
de escravos, de prestígios, dentre outros, do norte para o sul criava todas
as favorabilidades para a paulatina substituição do escravo pelo colono
europeu e do negro e do mestiço mecânico por máquinas e imigrantes. O
preterimento do ex-escravo não era algo inscrito no processo de desen-
volvimento urbano-industrial. Ele instalou-se em vista do modo como o
padrão de organização social e de domínio foi-se estabelecendo ao longo
de décadas. Fica implícito em suas discussões que o modo como o sul
cafeeiro conduziu o processo de desenvolvimento urbano e industrial
levou à paulatina exclusão do negro das atividades mecânicas.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004
184 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Ainda no final do século XVIII, o próprio movimento denominado


Inconfidência Mineira estava voltado para a defesa de uma reconstru-
ção social e política que fosse capaz de incluir econômica e politicamen-
te os negros e os mulatos, segundo Freyre. A análise realizada por Gil-
berto Freyre permite concluir que tais movimentos inclusivos dissipa-
ram-se em razão da aristocratização dos bacharéis mestiços e da asso-
ciação desses últimos à própria aristocracia rural e também à urbana. A
acomodação que ocorreu entre o mundo rural e o mundo urbano abria,
assim, as portas para a emergência de um padrão de organização social
que privilegiava a inclusão de alguns mestiços, mas não a inclusão do
negro e do mulato em geral na nova ordem econômica que se instalava.

O processo de formação urbano-industrial: equilíbrio de antago-


nismos e de contradições

É evidente que a análise de Freyre revela-se, em alguns momen-


tos, problemática. Ilustra isso o fato de ele supor tanto um processo de
acomodação e de equilíbrio de antagonismos e contradições que teria, no
decorrer do século XIX, possibilitado a inserção de negros livres e mes-
tiços na nova ordem econômica que emergia, o que foi significativamen-
te subtraído após a República, quanto um processo de transferência da
hegemonia econômica e política do norte agrário para a região neo-aris-
tocrática de São Paulo, o que se teria dado principalmente por meio da
assimilação “de substâncias humanas, étnicas e culturais, numa espécie
de transmigração sociológica” (FREYRE, 1962, p.391). Acerca disso,
cabe a seguinte pergunta: Por que nesse processo de transmigração não
se manteve a tendência inclusiva que ele teria detectado no final do
século XVIII e início do século XIX?, ou seja, em que momento teria, de
fato, ocorrido o bloqueamento dessa tendência inclusiva ressaltada em
algumas partes das obras Sobrados e mucambos e Ordem e progres-
so? Afinal, se houve a “transmigração de todo um conjunto de formas,
de normas, de ritos sociais, expressivos de um viver, de um sentir e de
um pensar patriarcalmente aristocráticos do norte para a subárea paulis-
ta do Império” (FREYRE, 1962, p.392) é de se supor que a possibilidade
de absorção, assimilação, acomodação se mantivesse. Apesar disso, em
seu entender, houve uma perda significativa, com a transferência dos
faustos patriarcais do norte para o sul, da capacidade do sistema econô-
mico de absorver o negro livre nas novas atividades emergentes.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004
Maria José de Rezende — 185

Seguindo-se o raciocínio de Freyre, parece incompreensível o


motivo pelo qual essa não-inserção deu-se, já que, para ele, a elite
político-econômica que tomou corpo após a República era mais plás-
tica, ágil e sensível “aos novos problemas do trabalho [...] que as
elites do norte” (1962, p.394). Por que, então, essa plasticidade,
essa sensibilidade não se efetiva no sentido de estabelecer políticas
de fato inclusivas? Na verdade, Freyre não estava voltado para a
busca de tais políticas como esteve, por exemplo, Manoel Bomfim,
na obra A América Latina: males de origem em que condena o
modo de agir no âmbito econômico e político do fazendeiro do café.
Bomfim afirma que as elites políticas, que comandavam a Repúbli-
ca, desde o início atuavam visando a conservar “um regime arcaico
de lavoura, mantendo o fazendeiro no seu tipo – parasita, ignorante,
ocioso, muito contente de viver das diferenças entre o preço do
café e o salário do trabalhador” (BOMFIM, 1993, p.179). Tais eli-
tes, ao decidir pela migração, “abraçavam, segundo Bomfim, um
plano arrasador para o trabalhador nacional, em vez de tornar-lhe
acessível a instrução, o aprendizado de um trabalho moderno, por-
tanto, urbano-industrial, optou-se por lançá-lo ao ostracismo, ao
abandono” (REZENDE, 2002, p.83).
A análise de Manoel Bomfim constatou exatamente o oposto da
de Gilberto Freyre, que atestava a sensibilidade e plasticidade da aris-
tocracia cafeeira do Sul. As elites dirigentes vinculadas a essa última
“em vez do ensino popular, que prepare a massa geral da população
– elemento essencial numa democracia, em vez da instrução profis-
sional-industrial, de onde tem saído o progresso econômico de todas
as nações, hoje ricas e prósperas – em vez deste, reclamam [...]
universidades – já alemãs, já francesas” (BOMFIM, 1993, p.183).
O que Gilberto Freyre via como mérito das elites dirigentes no
final do século XIX – a conciliação do republicanismo paulista com
os interesses dos proprietários rurais receosos com a abolição
(FREYRE, 1962, p.399) – Manoel Bomfim via como tragédia anti-
democrática, uma vez que se mantinha intocada, na formação das
atividades urbano-industriais, a exclusão social de uma expressiva
camada de brasileiros, os ex-escravos, por exemplo. Diferentemente,
Freyre, assinalava que a acomodação entre as diferentes elites políticas,

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


186 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

econômicas e regionais somente era possível em razão de já vigorar


no país, em 1889, “uma pujante democracia em potencial, pronta a
harmonizar-se com a industrialização” (FREYRE, 1962, p.399). Mas
de qual democracia estava, então, falando Freyre? “Democracia et-
nicossocial e até sócio-econômica mais que política, é bem de ver,
mas democracia. A democracia para a qual vinham contribuindo fa-
tos anteriores à abolição” (p.399).
Havia, segundo Freyre, democracia socioeconômica, porque o
desenvolvimento industrial que transmutaria a ordem econômica con-
ciliou-se com as atividades da monocultura agrária. Não teria havido
rompimentos econômicos ou políticos, mas sim equilíbrio entre or-
dens econômicas distintas. Elucida-se, assim, a sua compreensão de
democracia que se assentava numa forma de distribuição do poder
entre as elites: açucareira, cafeeira e industrial. Em Ordem e pro-
gresso, ele reconhece que teria havido, nos primeiros anos da Repú-
blica, uma excessiva valorização do café em detrimento do homem,
mas, em sua avaliação, isso não teria dissolvido as virtudes democrá-
ticas que se tinham constituído como fundamento do padrão de orga-
nização social vigente no país desde a colônia.
O progresso tecnológico e industrial, no Brasil, processou-se
de modo contraditório ao revelar a formação de um tempo social e
psicológico que se distinguia no âmbito econômico e no âmbito po-
lítico de outros países já desenvolvidos. A industrialização, a urba-
nização e a República inauguravam um tempo social novo, mas sin-
gular, uma vez que esse tempo industrial convivia com o tempo agrá-
rio. Segundo Freyre, inaugurava-se, assim, um terceiro tempo, que
era distinto do tempo europeu e do tempo norte-americano. Desse
modo, a constituição, tanto da ordem econômica industrial quanto
da ordem política e social, que era correspondente a esse novo tem-
po, processou-se dentro de parâmetros propriamente brasileiros, ou
seja, conciliando o passado e o presente. Nesse caso, a democracia
ganhava, em seu entender, uma feição singular, ao ter suas bases
fundadas num outro tempo, ou seja, no tempo agrário e aristocrático
(FREYRE, 1947).

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Maria José de Rezende — 187

Celso Furtado e a formação das atividades urbano-industriais no Brasil

As persistências e as continuidades encadeando atrasos e resistências


à mudança

Se compararem as obras de Celso Furtado com as de Freyre, fica


visível que os dois destacam, principalmente nas discussões sobre a for-
ma de domínio, “os recursos dos que resistem à mudança social” (FUR-
TADO, 1968, p.37). No entanto, o modo de interpretar tais recursos é
distinto entre eles. Nos livros Ordem e progresso e Sobrados e mu-
cambos, a resistência à mudança aparece envolta de plasticidade, male-
abilidade, principalmente dos setores preponderantes, condutores das
principais modificações gestadas pela decadência do patriarcalismo ru-
ral e pela emergência do patriarcalismo urbano. Em Celso Furtado, as
reflexões sobre a resistência à mudança situam-se nas diversas esferas
(econômica, política e cultural) e não indicam necessariamente plastici-
dade. O modo de os setores oligárquicos – defensores de uma economia
colonial – integrarem-se às mudanças que ocorreram a partir da década
de 1950 indicava uma maleabilidade destruidora da nação, conforme ele
demonstrou na obra A fantasia desfeita5.
Se em Gilberto Freyre a renovação dos quadros políticos sempre
pareceu positivamente mediada pela conciliação havida entre os setores
oligárquicos e os novos setores que emergiam com o processo de desen-
volvimento industrial, em Furtado, haveria nesse caso uma das indica-
ções mais expressivas das dimensões que teria tomado no Brasil a resis-
tência aos processos de mudanças que, de fato, apontariam para a rede-
finição da organização social brasileira tendente à manutenção de um
padrão de domínio autoritário.
Em Dialética do desenvolvimento, Celso Furtado argumenta que o
desenvolvimento das atividades urbano-industriais no Brasil deu-se de manei-
ra específica, ou seja, não repetindo o padrão dos países capitalistas avança-
dos. Quanto a isso, não há divergências entre ele e a perspectiva freyriana,
__________________________________________________
5
Ao analisar a Operação Nordeste, conjunto de políticas colocadas em práticas no final da
década de 1950 no governo Juscelino Kubitschek, ele afirma que ela “se inseria em amplo
processo de mudança social, todo ele orientado para recuperar o atraso político e abrir
espaço a fim de que parcelas crescentes da população regional assumissem na plenitude os
direitos de cidadania. Verdadeiras mudanças não poderiam vir senão da renovação dos
quadros políticos, com o aumento de sua representatividade e a rejeição [...] das velhas
oligarquias” (FURTADO, 1997d, p.37).

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188 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

que também demonstra a especificidade do modo de constituição da


economia industrial no Brasil. No entanto, os motivos pelos quais foi
singular tal formação são distintos nos dois pensadores aqui trabalhados.
Gilberto Freyre buscava no processo de colonização portuguesa, na for-
ma de incorporar uma noção de tempo ibérico (FREYRE, 1975), no
patriarcalismo, no familismo, no continuísmo entre atividades distintas,
na conciliação das diferenças e dos antagonismos de interesses e de
região, na maneira de implementação da República, no não-abandono
absoluto de modos de agir e pensar consentâneos com o mundo agrário,
o qual era reproduzido nos hábitos, nos costumes etc., os elementos ex-
plicativos do caráter ímpar da expansão das cidades e das atividades e
dos modos de vida atinentes a elas.
Ressalte-se que Gilberto Freyre, no livro Sobrados e mucambos,
estende a análise da formação urbana no Brasil do século XVIII até o
final do século XIX, buscando, dessa maneira, num longo período de
transição, as particularidades da emergência e da expansão das ativida-
des urbanas. Celso Furtado, em Formação econômica do Brasil, es-
clarece que sua análise deu centralidade à segunda metade do século
XIX, quando se expandiu a economia cafeeira, a qual teria embasado
relações econômicas capazes de suplantar a economia colonial no país.
Evidentemente, focar o processo de formação urbano-industrial a partir
de períodos mais extensos, conforme faz Freyre, produz conseqüências
expressivas para a análise, visto que ele não concebe cortes tão profun-
dos entre o mundo agrário e o mundo urbano-industrial em emergência.
A própria forma de ele recortar o objeto de análise tem a ver com o fato
de ele pôr em relevo os aspectos socioculturais. Mesmo quando Freyre
analisa o final do século XIX em Ordem e progresso, ele pergunta con-
tinuamente, ao longo do texto: economicamente, verificaram-se mudan-
ças expressivas a partir da emergência do trabalho livre, mas sociologi-
camente o que, de fato, mudou, e o que, de fato, permaneceu?
Para Celso Furtado, interessava muito mais compreender as razões
do atraso da industrialização do que a longa decadência econômica e polí-
tica da grande lavoura. Sua análise não se centra, diferentemente da de
Freyre, nos longos séculos (XVIII e XIX) de decadência do patriarcalismo
e no modo como, nesse processo, esse último teria conseguido imprimir
suas marcas no interior das atividades urbano-industriais nascentes. Furtado
procurou destacar que, “do ponto de vista de sua estrutura econômica,

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Maria José de Rezende — 189

o Brasil da metade do século XIX não diferia do que fora nos três séculos
anteriores. A estrutura econômica, baseada principalmente no trabalho es-
cravo se mantivera imutável nas etapas de expansão e decadência. A
ausência de tensões internas, resultante dessa imutabilidade, é responsá-
vel pelo atraso relativo da industrialização” (FURTADO, 2000, p.34).
O elemento diferenciador, por excelência, desse processo de gera-
ção das bases do desenvolvimento industrial teria sido a expansão cafe-
eira na segunda metade do século XIX.

A expansão cafeeira da segunda metade do sé-


culo XIX, durante a qual se modificam as bases
do sistema econômico, constituiu uma etapa de
transição econômica, assim como a primeira
metade desse século representou uma fase de
transição política. É das tensões internas da eco-
nomia cafeeira em sua etapa de crise que surgi-
rão os elementos de um sistema econômico autô-
nomo, capaz de gerar o seu próprio impulso de
crescimento, concluindo-se, então, definitiva-
mente a etapa colonial da economia brasileira
(FURTADO, 2000, p.34).

Essa expansão industrial somente se efetivou a partir da década


de 1930. Desse modo, suas reflexões acerca dos séculos XVI, XVII,
XVIII e XIX estiveram centradas na busca do encadeamento histórico
do atraso brasileiro. A economia agrário-exportadora, de caráter coloni-
al, assentava-se na degradação “da relação de troca” (FURTADO, 1997b,
p.163) que bloqueava totalmente a formação de recursos internos que
estimulassem o desenvolvimento industrial. “A dinâmica desse processo
de transferência de recursos para o exterior permitia explicar, no caso
brasileiro, a tendência à concentração social da renda e o lento cresci-
mento do mercado interno” (FURTADO, 1997b, p.163).
O tipo de economia colonial vigente no país assentava-se em signi-
ficativas perdas dos setores exportadores, visto que os grupos que inter-
mediavam a comercialização do açúcar, por exemplo, ficavam com uma
parte significativa dos rendimentos oriundos da economia agrário-expor-
tadora – quem pagou pelas perdas dos grupos internos (senhores do
engenho, por exemplo) foram os segmentos mais pobres –, ocorrendo,

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


190 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

então, o que Celso Furtado chamou em diversos textos de “socialização


das perdas”. Isso implica que a sociedade brasileira pagaria um preço
altíssimo pela vigência da economia do tipo colonial6, a qual se caracte-
rizava essencialmente pela “não diversificação das estruturas produti-
vas” e pela “contração do mercado interno” (FURTADO, 1997b, p.164).
No livro A fantasia organizada, Furtado demonstra que o es-
tudo do processo de industrialização no país estava estreitamente li-
gado a essas duas características da economia colonial que vigorava
no Brasil. Suas análises sobre o desenvolvimento da indústria têxtil
no século XIX assinalam que o crescimento das atividades industriais
nesse setor – cuja dependência do mercado interno era absoluta –
deu-se exatamente quando a economia exportadora entrou em crise.
Ele conclui que essa última bloqueava inteiramente as atividades in-
dustriais. A essencialidade da economia colonial seria, então, o impe-
dimento da formação de bases (as quais adviriam da diversificação
da estrutura produtiva e da formação do mercado interno7) para a
expansão de uma economia urbano-industrial. “A primeira metade do
século XX está marcada pela progressiva emergência de um sistema
cujo principal centro dinâmico é o mercado interno” (FURTADO,
2000, p.245). A partir disso, cabe perguntar: O que teria levado à
formação desse mercado interno capaz de potencializar o desenvol-
vimento industrial?8 Para ele, teria sido a rápida expansão do setor
cafeeiro (1880-1930), a qual estava calcada na dinamicidade da de-
manda externa que gerava enormes somas de excedentes que eram
investidos na geração da industrialização.
__________________________________________________
6
Por essas razões, a economia agrário-exportadora era do tipo colonial e não do tipo periférico.
7
“A natureza puramente contábil do fluxo de renda, dentro do setor açucareiro tem induzido
muita gente a supor que era essa uma economia de tipo semifeudal. O feudalismo é um
fenômeno de regressão que traduz o atrofiamento de uma estrutura econômica. Esse atro-
fiamento resulta do isolamento imposto a uma economia, isolamento que engendra grande
diminuição da produtividade pela impossibilidade em que se encontra o sistema de tirar
partido da especialização e da divisão do trabalho que lhe permite o nível da técnica já
alcançado. Ora, a unidade escravista (estabelecida no Brasil) pode ser apresentada como um
caso extremo de especialização econômica. Ao inverso da unidade feudal, ela vive total-
mente voltada para o mercado externo” (FURTADO, 2000, p.54).
8
Em Formação econômica do Brasil há uma discussão importante sobre o fato de o
processo de industrialização no país ter se iniciado em diversas regiões ao mesmo tempo,
ou seja, as industrias têxteis tanto se instalaram na região Nordeste quanto na região
Sudeste. Somente a título de ilustração, Celso Furtado cita um dado revelador dessa conco-
mitância: em 1910 havia, aproximadamente, o mesmo número de operários têxteis nas
duas regiões (FURTADO, 2000, p.249).

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Maria José de Rezende — 191

Celso Furtado explica da seguinte forma esse processo:

A experiência brasileira surge como um caso especial,


no qual se conjugam o controle por grupos nacionais
da produção exportável, a abundância de recursos
naturais e as dimensões relativamente grandes do mer-
cado interno em formação. De fato: dada a grande
abundância de terras aptas para plantar café e a elas-
ticidade da oferta de mão-de-obra, as inversões na ca-
feicultura não encontraram limitação pelo lado da ofer-
ta de fatores. Explica-se, assim, que se haja formado,
desde fins do século passado, uma situação crônica de
excesso de oferta. Os lucros do setor cafeicultor, nas
fases de prosperidade, tendiam a concentrar-se nesse
mesmo setor. A diferença com respeito à experiência
centro-americana estava em que, havendo oferta elás-
tica de fatores, os lucros – demais para serem utiliza-
dos para modernizar as formas de consumo dos grupos
de altas rendas – puderam ser reinvertidos. E essas
volumosas inversões efetuadas no setor cafeicultor [...]
provocaram a absorção da economia de subsistência
preexistente e financiaram a imigração européia, pro-
movendo assim a expansão do setor monetário e dan-
do origem à formação de um mercado interno de di-
mensões relativamente grandes, o que abriria cami-
nho aos investimentos industriais (1969, p.170-171).

O florescimento das atividades urbano-industriais ligou-se, então,


essencialmente à expansão da economia cafeeira, a partir de meados do
século XIX9. A efetividade desse processo deu-se em razão da criação
de condições que favoreceram a emergência de um mercado interno
alimentado pelas indústrias têxteis e alimentícias. A complexidade desse
processo está no fato de que esse setor industrial não alavancou de modo
que ganhasse supremacia expressiva sobre os demais setores, ou seja,
o de agricultura de subsistência e o de agricultura de exportação.
__________________________________________________
9
A obra Formação econômica do Brasil detalha o processo de expansão e de crise da cultura do
café no país. Nesse livro, Celso Furtado apresenta uma discussão não somente sobre as condi-
ções econômicas (a crise asiática da produção de café, a expansão do crédito para o setor
cafeeiro etc.) que favoreceram a expansão da economia cafeeira, mas também sobre as condi-
ções políticas, tais como a descentralização republicana, que favoreceu significativamente os
fazendeiros do café que controlavam o governo do Estado de São Paulo, o qual tomou decisões
(em relação à imigração, por exemplo) que favoreceram expressivamente os cafeicultores.

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192 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Criou-se, assim, uma economia que se articulava em torno desses três


setores, basicamente. No entanto, o grande problema continuava a ser a
prevalência de uma economia colonial que impedia que o desenvolvi-
mento industrial se realizasse de forma plena. Os emperramentos eram
de natureza econômica e política, uma vez que a manutenção da estrutu-
ra colonial articulava-se nessas duas esferas.

O subdesenvolvimento e a reprodução do padrão de domínio oligárquico

Celso Furtado considerava que estavam em lados opostos a eco-


nomia colonial e a economia industrial. Essa última era vista por ele
como uma forma de suplantar a primeira. A manutenção da coexistência
entre economia colonial e economia industrial tinha como resultado a
perpetuação do subdesenvolvimento10. Para a criação das bases para o
desenvolvimento industrial, teria sido preciso lutar, principalmente a par-
tir do século XIX, com as forças sociais que se apegavam a um padrão
de organização e a um padrão de domínio que conservavam os resquíci-
os do tipo colonial de economia. A análise do modo de atuação de tais
forças era, para Furtado, essencial, porquanto revelaria as formas de
confrontação que se estabeleceram no país, nesse processo de tentativa
de superação da economia agrário-exportadora. Todavia, as razões pe-
las quais a economia colonial se manteve intacta durante tantos séculos
devem ser procuradas nas motivações11 daqueles que detinham posi-
ções de mando e de poder no decorrer dos séculos XIX e XX12.
__________________________________________________
10
Em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, Celso Furtado destaca as especi-
ficidades dos países latino-americanos em relação às suas classificações como tipicamente
subdesenvolvidos ou não. A seu ver, os países em que o setor pré-capitalista deixou de ser
reservatório de mão-de-obra para os setores capitalistas e os países (Argentina e Uruguai, por
exemplo) em que não havia um dualismo estrutural não seriam tipicamente subdesenvolvi-
dos. Observe-se que Furtado formulou o conceito de subdesenvolvimento como um tipo ideal
que tem como traço definidor a existência de um dualismo estrutural (FURTADO, 1968).
11
Celso Furtado considerava que o estudo das motivações é essencial para compreender todo
processo social. Ao propor estudos fundados na motivação dos agentes, ele se aproximava
mais e mais da Sociologia. No caso do estudo da inflação, por exemplo, ele afirmava: “No
estudo da inflação, importava acima de tudo que identificássemos as forças sociais que
estavam pressionando para modificar a distribuição da renda e descobríssemos suas motiva-
ções” (FURTADO, 1997b, p.300).
12
“O meu enfoque dos processos econômicos, no qual se combina uma visão histórica global
com um corte sincrônico para o qual se utilizam todos os recursos da análise econômica,
alcançou a forma que para mim passou a ser definitiva quando cristalizaram em meu
espírito duas idéias: a de estrutura e a de centro de decisão” (FURTADO, 1997c, p.23).

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Maria José de Rezende — 193

Enquanto Freyre partia do século XVIII para entender a quebra de


acomodação e os antagonismos que emergiram com o longo declínio do
patriarcalismo, Furtado buscava demonstrar que as últimas cinco déca-
das do século XIX eram essenciais para compreender a emergência das
condições que poderiam levar, no século seguinte, mais precisamente
nos anos 30, à superação da economia colonial. Ele afirma que estudar
os motivos que levaram ao aprofundamento das confrontações (o que
não significava rompimentos), em meados do século XIX, entre os seto-
res preponderantes, torna-se essencialmente importante para elucidar o
papel que os diversos grupos sociais dominantes desempenharam no
controle das mudanças que se iam delineando no horizonte. Enfim, era
importante compreender as motivações que embasavam os antagonis-
mos que ganhavam forma naquele momento. Dentre as várias motiva-
ções – as quais giravam em torno da crise da grande lavoura, do tráfico
interprovincial de escravos, da abolição, da instauração do trabalho livre,
da crise da monarquia, da instauração da República etc. – Celso Furtado
destacou as voltadas para o controle do processo de industrialização.
Filiado à perspectiva weberiana, ele assinala que procurar as cau-
sas históricas era buscar as motivações que levaram as forças sociais
preponderantes, durante séculos, a uma intermitente luta para subordi-
nar a industrialização ao sistema agrário-exportador (FURTADO, 1997b).
Esse processo deve ser pensado não somente em seus aspectos econô-
micos, mas também em seus aspectos políticos, pois envolve interesses
que se foram perpetuando através dos tempos, em razão do imobilismo
político, social e da estagnação econômica13 (FURTADO, 1997d). A seu
ver, no Nordeste, os herdeiros da tradição escravocrata continuavam,
por exemplo, em plena ação no final da década de 1950. Bastava obser-
var como eles agiam mediante a expansão dos movimentos de massa, tais
como as Ligas Camponesas, e mediante as ações da Operação Nordeste14.
__________________________________________________
13
Celso Furtado afirma que, ao analisar as condições sociais vigentes no Nordeste, na década de
1950, era visível que poder econômico e poder político eram duas faces de uma mesma moeda. As
atuações do governo federal via financiamento de estradas, barreiras etc., feitas com as frentes de
trabalho, reforçavam as estruturas existentes fundadas nas disputas das forças sociais oligárquicas
pelo controle de verbas e de cargos. O centro da luta política era, então, uma luta pela perpetuação
do imobilismo político e da estagnação econômica (FURTADO, 1997d, p.50).
14
Em 1958, o governo de Juscelino Kubitschek propôs uma nova política para o Nordeste,
denominada Operação Nordeste, a qual foi comandada por Celso Furtado e tinha como um de
seus objetivos o estabelecimento de um absoluto combate aos vícios políticos da indústria da
seca, a reversão das disparidades regionais, o combate à corrupção e à decadência da região, a
redefinição das aplicações dos recursos do governo federal e o desenvolvimento industrial.

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194 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Eles rechaçavam-nas inteiramente, porque essa última, por exemplo,


representava uma tentativa de estabelecer um “amplo processo de mu-
dança social, todo orientado para recuperar o atraso político e abrir es-
paço, a fim de que parcelas crescentes da população regional assumis-
sem na plenitude os direitos de cidadania. Verdadeiras mudanças não
poderiam vir senão da renovação dos quadros políticos, com o aumento
de sua representatividade e a rejeição para um desvão da história, das
velhas oligarquias” (FURTADO, 1997d, p.37).
Tal rechaçamento tinha de ser compreendido também historicamen-
te, ou seja: Quais estruturas arcaicas e tradicionais potencializaram-no ao
longo dos séculos? e Quais modificações sociais abriram caminhos para
um processo de modernização da sociedade brasileira que, a partir da
década de 1930, principalmente, trazia à tona a possibilidade de desmontar
o arcaísmo econômico e político vigente15? Furtado assinala que o proces-
so de industrialização, ao dar início a um crescimento econômico fundado
no crescimento do mercado interno, conseguia encerrar uma economia de
tipo colonial e possibilitava também a emergência das massas urbanas na
arena política, as quais constituíam agentes provocadores de desconfortos
significativos para a política tradicional e oligárquica.
Ao colocar nesses termos a análise do processo de desenvolvi-
mento industrial, Celso Furtado distingue de modo enfático suas análises
das de Gilberto Freyre, que parecia não ver na manutenção do oligar-
quismo grandes problemas para a sociedade brasileira que se industriali-
zava. São várias as implicações desse último tipo de análise, visto que
ela acaba por não problematizar a frágil fronteira entre o poder público e
o poder privado no Brasil. Ao discutir a formação das atividades industri-
ais a partir das motivações e dos interesses dos agentes envolvidos, não
somente para impulsioná-las, mas também para as controlar e, até mes-
mo, para bloqueá-las, Celso Furtado desvenda as diversas ações políti-
cas perpetuadoras de um oligarquismo nefasto para a vida social brasi-
leira. Gilberto Freyre, ao buscar os elementos positivos de um padrão de
domínio assentado na esfera privada, acaba por atenuar os efeitos da
manutenção de relações oligárquicas no âmbito das atividades urbanas.
__________________________________________________
15
Depois da crise de 1929, o desmantelamento dos “mecanismos de defesa de autopreserva-
ção da economia tipo colonial porão em marcha processos históricos capazes de viabilizar
o deslocamento das atividades industriais com respeito ao complexo primário-exportador”
(FURTADO, 1997c, p.165).

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Maria José de Rezende — 195

Celso Furtado assinala que os alicerces do subdesenvolvimento16


do Nordeste estavam na própria região. Esses alicerces eram econômi-
cos e também políticos. Dessa forma, não bastava criticar as regiões
mais industrializadas como responsáveis pelo estado caótico de atraso
no qual se encontravam as populações de algumas partes do país. Em
seu entender, a decadência da região nordestina era secular e não tinha
como ser explicada somente em vista da industrialização do Sul.
A causa básica daquela decadência está na incapa-
cidade do sistema para superar as formas de produ-
ção e utilização dos recursos estruturados na época
colonial. A articulação com a região sul por meio de
cartelização da economia açucareira prolongou a
vida do velho sistema cuja decadência se iniciou no
século XVII, pois contribuiu para preservar as velhas
estruturas monoprodutoras (FURTADO, 2000, p.251).
Gilberto Freyre, no entanto, rejeitou toda tese que enaltecesse so-
mente o caráter negativo do tipo de economia, de política e de cultura
que vigorava no Nordeste. Todo e qualquer processo de industrialização
deveria estar voltado para a preservação das complexidades regionais
brasileiras. É como se Freyre quisesse chamar a atenção para a neces-
sidade de conciliar o projeto industrial com o projeto agrário, que disputa-
vam, em vários âmbitos da vida social, espaços políticos, aquele para se
impor, esse, para se perpetuar.
A conciliação como fator de emperramento do desenvolvimento
urbano-industrial
De maneira distinta da de Freyre, Celso Furtado procura
assinalar que a industrialização deveria ser um processo de bus-
ca da superação das atividades econômicas do tipo colonial pre-
dominavam no país nos séculos XVI 17, XVII, XVIII 18 e XIX 19 .
__________________________________________________
16
“O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histórico autônomo, e não uma etapa
pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram um grau
superior de desenvolvimento” (FURTADO, 1969, p.166).
17
Nos séculos XVI e XVII, o Brasil monopolizou a exportação do açúcar.
18
A produção de ouro e de diamantes predominou na economia brasileira no século XVIII.
19
A agricultura de exportação foi implementada a partir da crise do ouro no final do século XVIII.
O século XIX foi um divisor de águas significativo na economia, com a emergência do ciclo
cafeeiro, que teve sua melhor performance entre 1850 e 1910, quando se iniciou um processo
de crise nesse setor. Tal crise teve seu apogeu em 1930, quando ocorreu a destruição de grande
quantidade do café acumulado por retenção dos estoques excedentes (FURTADO, 1964, p.100).

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196 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

A sedimentação urbano-industrial não poderia fundar-se na con-


ciliação, uma vez que a economia agrário-exportadora, baseada no
latifúndio, tinha alimentado um padrão de domínio político que cir-
cunscrevia o desenvolvimento industrial dentro de determinados li-
mites condizentes com a manutenção da estrutura de poder e de
organização social vigente.
O processo de industrialização iniciado a partir de 1930 teria, para
Furtado, agido como fator essencial de desmantelamento do marco
institucional brasileiro que “durante três séculos resultou de uma for-
mação econômica baseada nas grandes fazendas. A população urbana
era reduzida e tinha pouca expressão política” (1964, p.109). Todo o
sistema representativo, até 1930, era desenhado no sentido de dar ga-
rantias de permanência do padrão de domínio vigente. Segundo ele, a
partir de 1930, o efeito mais expressivo do processo de mudança social
no Brasil foi o início da desarticulação política da estrutura agrária, a
qual “servia como sustentáculo ao sistema político” (p.110). Por que
teria havido essa desarticulação? As atividades urbano-industriais teri-
am gerado a possibilidade de uma redefinição política, porque origina-
ram novos agentes que lutaram para se firmar como forças sociais
capazes de redefinir os próprios marcos institucionais. Esses agentes
foram, evidentemente, rechaçados, em razão de que o controle estava
ainda, nos anos subseqüentes, expressivamente nas mãos dos repre-
sentantes das velhas estruturas agrárias.
Celso Furtado destaca que, a partir de 1930, anunciava-se uma pos-
sibilidade de redefinição do sistema político, pelo fato de a industrialização
criar uma diferenciação geradora de agentes sociais distintos daqueles
prevalecentes na estrutura agrário-exportadora, a qual estava voltada es-
sencialmente para atender ao mercado externo. As décadas seguintes, ou
seja, até 1964, fizeram-se de fortes tensões originárias das pressões das
massas urbanas, que eram tolhidas e rechaçadas pelos setores preponde-
rantes que atuavam ainda no marco institucional vigente desde antes de
1930. Observa-se, então, dificuldade incomensurável de evolução do sis-
tema político, uma vez que todas as pressões por reformas que surgiam
desafiavam de tal modo as classes dirigentes, que elas se voltavam mais e
mais para a conservação do status quo. Nessas condições, a industrializa-
ção avançava na década de 1950, mas sem as mudanças políticas neces-
sárias, então, eternizava-se a paralisia do desenvolvimento social.

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Maria José de Rezende — 197

Celso Furtado, em 1964, no livro Dialética do desenvolvi-


mento, advogava a necessidade de combinar a expansão industrial
e a urbanização com as reformas políticas. Essas últimas eram es-
senciais, para que se redefinissem os marcos institucionais. Isso
abriria as portas para que o país se projetasse mundialmente. É
curioso que a sua forma de justificar essa probabilidade acaba por
reafirmar a tese freyriana do sentido plástico e democrático da for-
mação étnica aqui prevalecente. Ele diz: “O sentido democrático da
formação étnica do seu povo facilitará essa projeção dos valores
brasileiros além-fronteiras, permitindo que o Brasil desempenhe
importante papel junto às novas nações em formação no mundo
tropical” (FURTADO, 1964, p.112).
A análise de Furtado sobre o período que se abre em 1930 enfo-
ca o processo de expansão urbano-industrial, não somente em vista
dos elementos econômicos, mas principalmente dos políticos. Esses
últimos definiriam ou não a possibilidade de mudanças estruturais. O
capitalismo industrial, que ganhou expressão a partir desse momento,
teve performance singular, já que o “predomínio da classe capitalis-
ta industrial, no Brasil, não resultou de um conflito aberto com os
grupos dirigentes. Em realidade, o capitalismo industrial começou a
dar os seus primeiros passos significativos quando a economia colo-
nial entrara em franca decomposição, abandonando os dirigentes desta
qualquer posição ideológica consistente e dedicando-se a um impro-
visado oportunismo político” (FURTADO, 1964, p.115).
A expansão das atividades urbano-industriais estava, então, mar-
cada pelo fato de não ter estabelecido “no país um desenvolvimento
endógeno conflitante com os interesses do setor exportador”20 (FUR-
TADO, 1964, p.116). Os setores arcaicos procuraram ajustar-se politi-
camente às modificações que tomavam corpo no período pós 1930. Os
novos setores dirigentes que se instalavam no poder não tinham clare-
za da dimensão das transformações que estavam ocorrendo. A conso-
lidação da industrialização foi lenta, porque as classes dirigentes não
tinham a consciência da necessidade de se empenhar para efetivá-la.
__________________________________________________
20
Os industriais não se colocaram na arena política como portadores de um antagonismo
irreconciliável com os grupos dirigentes ancorados na economia agrário-exportadora. Isso
se devia, em parte, ao fato de que a proteção dos interesses do café constituía a base do
desenvolvimento industrial (FURTADO, 1964, p.134).

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198 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Havia, também, outras dificuldades estruturais que não dependiam


somente da vontade dos novos dirigentes, visto que eram séculos
de um processo de enraizamento de dificuldades econômicas, polí-
ticas e sociais. Celso Furtado cita como exemplo disso, em Dialéti-
ca do desenvolvimento, a predominância de uma agricultura vol-
tada para o mercado interno, que era absolutamente inelástica e
encarecia significativamente o preço dos alimentos nas cidades. “De
maneira geral, os preços dos produtos industriais cresceram menos
que os dos produtos agrícolas destinados ao mercado interno, o que
indica que a classe capitalista industrial teve de transferir para os
interesses ligados ao latifúndio parte dos lucros que auferia. Tudo
se passava como se a nova classe capitalista fosse chamada a pa-
gar ao setor mais retrógrado da antiga economia um direito de se-
nhoria” (1964, p.126).
A industrialização potencializava a urbanização, a qual exigia
mais e mais produtos agrícolas para alimentar o grande contingente
de pessoas que passavam a habitar nas cidades. Instaurava-se uma
crise entre os setores industriais e os latifundiários que se empe-
nhavam, desatinadamente, em abocanhar uma parte expressiva dos
lucros auferidos nas atividades urbano-industriais 21. Isso constituiu
um entrave na economia brasileira, que era visível no modo de os
setores agrícolas agirem na esfera política, debatendo-se para man-
ter suas posições de poder por meio de pressões no Legislativo,
principalmente. Havia, assim, uma contradição significativa no in-
terior da própria classe capitalista, contradição desapercebida ou
desconsiderada pelos próprios setores industriais, que, não compre-
endendo o significado da parasitagem do setor agrário, apavora-
vam-se mais e mais diante da intensificação das tensões sociais
oriundas das pressões das massas trabalhadoras. Despreparados
para compreender que a luta de classes é o fundamento de uma
sociedade democrática, os setores industriais contribuíam com o
emperramento econômico e político da sociedade brasileira.

__________________________________________________
21
“Em síntese, podemos afirmar que o processo de formação de um capitalismo industrial, no
Brasil, encontrou obstáculos de natureza estrutural, cuja superação parece impraticável
dentro do presente marco institucional e pelos meios a que estão afeitas as classes dirigen-
tes” (FURTADO, 1964, p.133).

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Maria José de Rezende — 199

Considerações finais

Freyre, no conjunto de suas obras, não diz que nada mudou no


país ao longo de sua história. Ele, todavia, lança luzes sobre os ele-
mentos econômicos, políticos e culturais que, mesmo tendo-se altera-
do, guardariam em sua essência muito do que o país foi no passado
distante (colonial) e no passado nem tão distante assim (Império).
Há, nesse e em outros pontos, uma diferença essencial entre ele e
Celso Furtado, pois o último insiste que a história é um processo aberto,
e, portanto, não cabe dizer que o passado exerce um controle quase
absoluto sobre os acontecimentos futuros, porque não há como cal-
cular a capacidade de imaginatividade e de ação política com base
naquilo que os grupos sociais foram no passado. Essa capacidade
não pode ser também circunscrita àquilo que os agentes sociais con-
seguiram realizar nos séculos precedentes. Daí deriva a concepção
de Celso Furtado de que a história é um processo aberto. Freyre, em
suas obras, não concebe a história inteiramente nesses termos, uma
vez que, para ele, a imaginatividade e a ação política se configurari-
am em decorrência de um conjunto de valores cristalizados nos di-
versos segmentos sociais.
A formação urbano-industrial brasileira seria, para Freyre, indi-
cadora de que, no seu ethos, os brasileiros não romperam inteira-
mente com o modo de ser e de agir que vigorou no passado. As
diversas esferas da vida social, ou seja, a econômica, a política e a
cultural, reproduziriam no presente o que os brasileiros foram no pas-
sado. A história não é, então, um processo aberto, ao menos não o é
em todos os seus aspectos. Ao discutir as minúcias da vida social
nesse processo de formação urbano-industrial, ele pretendia assina-
lar, mediante as atitudes, os atos, os hábitos e os costumes, o que
mudava e o que permanecia. Cabe então a pergunta: De que forma
aquilo que mudava era controlado pelas permanências? Em torno
dessa questão, giram as reflexões desenvolvidas em Sobrados e
mucambos e em Ordem e progresso. Estaria aí uma das mais rele-
vantes contribuições de Freyre ao estudo do processo de diferencia-
ção social desencadeado pela urbanização e pela industrialização.
O olhar que Celso Furtado lançava sobre o processo de formação
urbano-industrial tem diferenças essenciais da perspectiva de Gilberto Freyre.

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200 — Gilberto Freyre e Celso Furtado: duas leituras distintas da formação urbano-industrial no Brasil

Conforme foi apontado, uma das mais relevantes, a que define todo um
modo de conceber a vida social brasileira, é a maneira de o primeiro
conceber a história. Se ela não é um processo aberto, pelo menos não
em todos os seus aspectos, para o autor de Casa Grande & Senzala,
ela é-o inteiramente na visão do autor de Formação Econômica do
Brasil. A multiplicidade de desafios colocados aos diversos agentes so-
ciais em razão da formação e da expansão das atividades urbano-indus-
triais revela que, para Celso Furtado, o padrão de organização social e o
padrão de domínio em momento algum estiveram petrificados em torno
de permanências e constâncias definidas por um dado padrão cultural
que dispensasse as rupturas.
É válido assinalar que tanto Freyre quanto Furtado estavam volta-
dos para a compreensão das atuações dos agentes sociais ante as mu-
danças e as resistências às mudanças. Todavia enquanto o primeiro bus-
cava os elementos indicadores de uma circularidade histórica positiva
que ia no sentido de acomodação, quebra de acomodação, antagonismo,
nova acomodação e, assim, sucessivamente, o segundo destacava que o
país, ao caminhar em círculos, negava a possibilidade de superação de
seus entraves principais, tais como os traços da economia colonial que
resistiam ao processo de industrialização, o subdesenvolvimento que se
assentava na dualidade estrutural e a política oligárquica que se acomo-
dava às novas condições, sobrevivendo após a década de 1930 e mar-
cando o desenvolvimento das atividades urbanas.

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(Recebido em abril de 2004 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.177-203, abril de 2004


Sistema familiar de produção: algumas questões
para o debate*

Lauro Mattei1
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo Abstract

O objetivo deste estudo2 é dis- The purpose of this paper is


cutir os principais aspectos envol- to stand out main aspects of fa-
vidos no debate sobre o sistema mily production system, highligh-
familiar de produção, realçando as ting most recently questions about
questões mais recentes sobre essa this theme. Furthermore, some
temática, além de enfatizar alguns problematic aspects related to the
pontos problemáticos relacionados concept of family farm are em-
à definição de agricultura familiar. phasized.

Palavras-chave: Sistema familiar Keywords: Family producti-


de produção; agricultura familiar. on system; family farm.
__________________________________________________
* The family-based production system: Some contributions to the debate
1
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Econômicas da UFSC. Endereço para
correspondências: Rua Lauro Linhares, 1288, bl. 03, apto 502, bairro Trindade, Florianó-
polis, SC, CEP 88036-002 (mattei@cse.ufsc.br).
2
Versão modificada do trabalho Produção Familiar: velhas e novas questões, apresentado
no 4° Encontro Brasileiro de Economia Política, em Porto Alegre (RS), 1999. O autor
agradece os comentários e as sugestões de dois pareceristas anônimos.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.205-223, abril de 2004


206 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Introdução

O debate acadêmico sobre o sistema de produção familiar está


longe de seu final e, justamente por isso, cada vez mais atraente.
Para um determinado grupo de autores, esse sistema familiar é o núcleo
dinâmico do processo produtivo agropecuário brasileiro, necessitando,
portanto, de apoio por parte das políticas públicas. Nesse caso, é a agri-
cultura familiar que deve ocupar lugar destacado nos rumos do desen-
volvimento rural e do próprio desenvolvimento do país, tanto em termos
da promoção do uso equilibrado dos recursos naturais como em termos
da produção alimentar.
Para outro grupo de autores, a agricultura familiar, apesar de ainda
manter certa relevância, vem perdendo dinamismo quando confrontada
com os dados do conjunto das atividades produtivas do sistema agroali-
mentar, porque, em decorrência das transformações estruturais do siste-
ma capitalista que impactaram a agricultura, houve um desmonte das
unidades familiares de produção e isso fez com que aspectos analíticos
mais importantes – dinâmica do trabalho e geração de renda – ultrapas-
sassem os limites restritos das unidades produtivas agrícolas.
De modo geral, essa polêmica originou-se com os autores clássi-
cos do capitalismo agrário e perpassou todas as formulações teóricas
sobre o tema da produção familiar no século XX. Em grande medida,
pode-se dizer que esse debate assenta-se em três perspectivas teóri-
cas distintas: a Marxista (e sua derivada Leninista), a Kautskyana e a
Chayanoviana.
A partir disso, o objetivo deste trabalho é dialogar com o primeiro
grupo de autores, na tentativa de aprofundar o horizonte teórico do deba-
te sobre a produção familiar. Nesse sentido, além desta seção introdutó-
ria, fazem parte do estudo mais três seções. A segunda seção resgata os
principais aspectos do debate teórico sobre a persistência da produção
familiar, com destaque para as questões mais recentes que procuram
estabelecer novos parâmetros para a discussão do tema. A terceira se-
ção apresenta alguns aspectos conceituais relacionados ao tema agricul-
tura familiar, procurando demonstrar as principais restrições que esse
conceito assume ao tentar representar universalmente o sistema da produ-
ção familiar. Finalmente, a quarta seção expõe as conclusões do estudo.

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Lauro Mattei — 207

O problema da persistência da produção familiar

Usando o conceito de classe marxista e tentando adaptá-lo ao con-


texto da moderna agricultura capitalista, Friedland e Pugliese (1991) ofe-
recem uma explicação teórica para a persistência da produção familiar.
Inicialmente, eles reconhecem a dificuldade de se lidar com a categoria
que se localiza entre a burguesia de base agrícola e o proletariado, uma
vez que nem os produtores familiares e nem os camponeses tradicionais
constituem uma classe social, mas proporcionam as estruturas básicas
para a formação dessa categoria social, que tem como característica
determinante seu alto grau de diferenciação.
Partindo do fato de que, para algumas correntes, ainda persistem
formas não-capitalistas na agricultura, os autores entendem que é ne-
cessário responder a uma questão básica: O que explica a persistência
do sistema de produção familiar e dos próprios produtores familiares? A
resposta para essa pergunta não é simples devido ao duplo caráter desse
segmento, pois algumas vezes ele pode trabalhar por conta própria e em
outras ser assalariado. A razão da persistência é que os vários segmen-
tos que constituem a produção familiar em uma determinada sociedade
têm diferentes papéis econômicos e sociais. Além disso, é necessário con-
siderar, além das condições econômicas e sociais, os processos políticos e
as políticas do mercado de trabalho, uma vez que a expansão e a reprodu-
ção do capital requer também uma expansão da classe trabalhadora. Nes-
se sentido, os autores reafirmam o processo de diferenciação social ainda
existente na agricultura depois de mais de dois séculos de desenvolvimen-
to do capitalismo agrário, o qual aprofunda o caráter capitalista entre os
agricultores e faz com que uma pequena parte deles ascenda socialmente,
ao mesmo tempo em que a maioria das famílias agrícolas permanece mar-
ginalizada das esferas de produção e de consumo.
Desse modo, os autores entendem que se torna complicado, nas aná-
lises sobre classes sociais na agricultura, considerar a família uma unidade
demográfica. No passado, a persistência de formas não-capitalistas na
agricultura significava a persistência da produção agrícola familiar. Hoje, o
processo de decomposição de classes afeta diretamente as famílias que
trabalham na agricultura, aumentando as dificuldades para definir a condi-
ção de classe, tanto em termos das unidades familiares quanto em termos
dos membros individuais. Nesse caso, há diferenças importantes entre

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208 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

aquelas unidades familiares que persistem porque são viáveis, aquelas que
vivem em estado de pobreza por falta de alternativas no mercado de tra-
balho e aquelas que persistem por razões de qualidade de vida, uma vez
que as fontes básicas de renda não provêm mais da agricultura.
Nesse sentido, os autores supracitados concluem que há uma ten-
dência diferente em relação ao passado, uma vez que, naquele período,
as crises e o empobrecimento conduziam ao desaparecimento das uni-
dades familiares de produção. Atualmente, parte dessas unidades per-
siste em função dos baixos investimentos que executam, das rendas não-
agrícolas obtidas por parte dos membros da família e das transferências
de recursos públicos e privados.
Esse debate também foi enfrentado por outros autores. Dentre eles,
destaca-se Harriet Friedmann3, devido à grande polêmica causada pelas
suas teses. Partindo do princípio de que o conceito de “modo de produ-
ção4” tem apresentado uma base analítica limitada, Friedmann (1980)
argumenta que o conceito central para analisar as relações sociais agrá-
rias deve se situar na “forma de produção5”, a qual é concebida por meio
da dupla especificação da unidade de produção e da formação social, no
tocante às unidades mínimas da organização produtiva. Assim, cada for-
ma de produção é caracterizada por relações sociais específicas e tam-
bém por cadeias técnicas específicas.
Com isso, a autora afirma que a análise da persistência ou do desa-
parecimento de diferentes formas de produção é facilitada pelo conceito
de reprodução e de transformação. A reprodução refere-se à renovação
de um circuito de produção por outro, com elementos técnicos e sociais
e com uma quantidade de relações entre ambos. Já a transformação
refere-se à recombinação de alguns elementos velhos de produção que
resultam em novas relações. Esses dois conceitos focalizam os aspectos
dinâmicos da organização produtiva e requerem, em todos os casos, a
criação e a distribuição do produto social de tal modo que:
__________________________________________________
3
Especificamente em relação à persistência da produção familiar, dois trabalhos são centrais:
Household Production and the National Economy: Concepts for the Analysis of Agrarian
Formations (1980) e World Market, State, and Family Farm: Social Bases of Household
Production in the Era of Wage Labor (1976).
4
O conceito de modo de produção caracteriza historicamente as instituições específicas que
estão envolvidas nos aspectos econômicos, políticos e ideológicos das organizações sociais.
5
O conceito de forma de produção refere-se às unidades atuais das organizações produtivas
(empresas capitalistas etc.). Cada forma de produção é caracterizada por relações sociais
específicas e por cadeias técnicas específicas, sendo que cada uma dessas formas precisa ter
uma relação particular no âmbito geral das relações sociais.

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Lauro Mattei — 209

a) Os produtores diretos tenham artigos suficientes para consumir e


para participar de um novo round de produção (consumo pessoal);
b) As ferramentas, os animais, as máquinas e os insumos sejam mantidos
ou substituídos no novo round de produção (consumo produtivo);
c) No caso de alguém, além dos trabalhadores, organizar a produção,
a reprodução também requer a presença deles no meio produtivo
(oferta de trabalhadores).

Dessa maneira, quando uma forma particular de reprodução é de-


composta, isso ocorre porque uma quantidade suficiente de bases técni-
ca e social foi destruída.
A partir daí, Friedmann esclarece as condições para a reprodução
capitalista e também para as formas simples de produção de mercadori-
as. A reprodução capitalista depende da existência do mercado de traba-
lho e da maneira como os salários são determinados. A condição básica
para a reprodução capitalista é a contínua recriação dos compradores da
força de trabalho, por um lado, e a existência de vendedores, por outro.
Já na produção simples de mercadorias, os proprietários da empre-
sa e da força de trabalho combinam-se. Como resultado, há somente
uma classe diretamente envolvida na produção. É a família quem com-
pra os meios de produção e coloca-os em movimento com o seu traba-
lho. Nesse caso, a condição básica para a existência da produção sim-
ples de mercadorias é a continuidade da recriação integral das famílias
como unidade produtiva e de consumo pessoal.
Diversas foram as reações críticas a essas propostas, merecendo
destaque as que seguem. Goodmann e Redclift (1985)6 criticam as teses
acima citadas, dizendo que essas formulações tentam conceituar a pro-
dução simples de mercadorias como uma categoria teórica e empírica
separada. Para eles, Friedmann distingue-se dos demais autores marxis-
tas, principalmente, porque seu trabalho diz respeito às economias capi-
talistas desenvolvidas e também porque ela usa a América do Norte
como estudo de caso, local onde não houve produção camponesa sob
condições de escassez de terra, segundo a história.
__________________________________________________
6
Para um acompanhamento mais detalhado desse debate, ver o artigo dos autores denomina-
do Capitalism, Petty Commodity Production and the Farm Enterprise, publicado na revis-
ta Sociologia Ruralis de 1985, v. XXV-3/4. Além disso, sugere-se a leitura da resposta de
Friedmann, denominada Patriarchy and Property: a reply to Goodman & Redclift, publi-
cada na mesma revista, no ano de 1986, v. XXVI-2.

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210 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Para os autores, a dependência lógica da produção simples de


mercadorias, que configura uma forma e não um modo de produção, não
significa inabilidade geral de assegurar as próprias condições de existên-
cia, mas é uma exigência de condições específicas de existência propor-
cionada exclusivamente pelo modo de produção capitalista e essa afir-
mação representa uma contradição terminológica nas definições de
produção simples de mercadorias, a qual está relacionada a três te-
mas básicos: o trabalho assalariado, a natureza da produção e as
relações de classe.
Como Friedmann parte do pressuposto de que a produção simples
de mercadorias não tem relação de classe, então, o trabalho assalariado
livre tem uma função meramente auxiliar no processo de trabalho das
unidades familiares. Para Goodman e Redclift, essa correspondência
somente se sustenta por um determinado período do ciclo demográfico
familiar, quando há disponibilidade de trabalho. Nos períodos subseqüen-
tes, o trabalho assalariado torna-se uma exigência estrutural para a re-
produção das propriedades, o que acaba realçando o tema das relações
de classe no âmbito desse sistema de produção.
Partindo de um enfoque distinto dos anteriores, Mann e Dickinson
(1978)7 procuraram demonstrar algumas das razões para a persistência
do trabalho familiar em determinados setores agrícolas das sociedades
capitalistas avançadas. Assim, buscou-se explicar por que, nesses paí-
ses, os pesquisadores ainda confrontavam-se com o problema da persis-
tência e co-existência da pequena produção familiar ao lado de modos
de produção capitalistas dominantes.
A tese básica dos autores é que existem setores da economia agrá-
ria em que há uma baixa identidade entre o tempo de trabalho e o tempo
de produção (combinação de períodos em que há aplicação de trabalho
com períodos que ficam sob a influência dos processos naturais). Assim,
a não-identidade entre esses dois tempos de trabalho provoca efeitos
adversos sobre as taxas de lucro, sobre o uso eficiente do capital cons-
tante e do capital variável, bem como sobre o funcionamento normal do
processo de acumulação e realização do capital.
__________________________________________________
7
Em 1978, com o trabalho Obstáculos para o Desenvolvimento do Capitalismo na Agricul-
tura, os autores procuraram explicar a persistência da produção por meio da tese da
diferença entre o tempo de trabalho e tempo de produção. Posteriormente, Mann (1990)
retomou e aperfeiçoou essa questão no seu trabalho clássico Agrarian Capitalism in Theory
and Practice.

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Lauro Mattei — 211

Desses fatos derivam os obstáculos à penetração do capitalismo


na agricultura, tendo em vista que, naquelas esferas de produção ca-
racterizadas por essa baixa identidade, observa-se menor atratividade
por parte do capital em larga escala (produção capitalista). A explica-
ção disso é que o trabalho familiar prevalece nos ramos de produção
em que o tempo de rotação do capital é muito grande, com geração de
taxas de lucro menores.
Essa formulação teórica recebeu diversas críticas. Neste estudo,
entende-se que não há estatuto teórico que sustente a explicação para a
existência do trabalho familiar a partir da diferenciação entre tempo de
trabalho e tempo de produção. Por um lado, o desenvolvimento tecnoló-
gico, principalmente da engenharia genética e da biotecnologia, coloca
em xeque o argumento da diferenciação, ao controlar ou reduzir siste-
maticamente os efeitos do processo natural de produção. Por outro, a
agricultura em tempo parcial permite uma ocupação do agricultor em
outras atividades durante os gaps do processo produtivo agrícola.
Nos últimos períodos, surgiram diversas explicações alternativas so-
bre a persistência da produção familiar no âmbito do desenvolvimento do
capitalismo agrário. Ressalta-se que, em sua maioria, essas “novas defini-
ções” procuram fugir do dualismo clássico, ao apresentar novos elemen-
tos analíticos. Dentre eles, vêm se destacando os temas da pluriatividade,
da agricultura em tempo parcial e da multifuncionalidade agrícola.
Seguindo essa lógica e analisando o caso italiano, Saraceno (1994)
apresentou uma nova visão sobre a função “moderna” da produção fami-
liar. Partindo do princípio de que a persistência da produção familiar não
necessariamente implica a continuidade de sua função original de subsis-
tência, é necessário compreender esse sistema de produção no âmbito de
suas relações com os outros segmentos sociais e econômicos, ressaltan-
do-se o papel das cadeias produtivas agroalimentares. Nesse sentido, a
autora diz que o mais importante é identificar o papel e a dinâmica do
sistema familiar, bem como a sua diferenciação em vários contextos espa-
ciais, realçando o seu potencial futuro para as sociedades rurais.
Para tanto, destacam-se dois fatores decisivos na nova fase do sistema
de produção familiar. Por um lado, as políticas do pós-guerra tiveram um papel
determinante ao assegurar condições favoráveis à administração dessas uni-
dades de produção. Isso resultou em maior homogeneização da estrutura
social dos agricultores, principalmente daqueles de origem camponesa.

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212 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Em contrapartida, o padrão de industrialização difusa permitiu aos agri-


cultores a manutenção de suas propriedades, mesmo elas tendo, em muitos
casos, apenas o papel de residência. Em virtude da pluriatividade e do
trabalho parcial, as unidades familiares aumentaram sua renda monetá-
ria global, o que ajudou a estabilizar as unidades de produção e determi-
nou o fim das pressões sobre os agricultores, no sentido de vender as
suas propriedades e migrar para as cidades.
Entretanto, o fato de as áreas rurais continuarem bastante povoa-
das não quer dizer que a agricultura continua a ser a mais importante das
atividades econômicas. Por isso, a autora insiste que há outras questões
que influem na manutenção das famílias nas áreas rurais, e que ultrapas-
sam os limites da própria agricultura como principal atividade responsá-
vel pela dinâmica econômica.
O fato é que o processo de industrialização difusa alterou a dinâmi-
ca do trabalho no meio rural, ao diversificar o conjunto de atividades
tradicionalmente desenvolvidas. Com isso, observa-se que os níveis de
emprego nos setores industrial e de serviços aumentaram bem mais do
que os do emprego agrícola, o que revela que esse processo de industri-
alização atraiu um grande número de pessoas antes ocupadas somente
na agricultura. Atualmente, por meio da pluriatividade e do trabalho em
tempo parcial dinamizam-se as atividades e garantem-se os níveis de
ocupações rurais e a renda dos produtores familiares.
Do ponto de vista das famílias, a pluriatividade tem resolvido o
problema da insuficiência de renda. É a pluriatividade que tem dado aos
produtores familiares a possibilidade de permanecer estáveis, enquanto
as propriedades não-pluriativas precisam expandir a área ou incremen-
tar a sua produção para manter ou elevar os níveis de rentabilidade,
condição objetiva para permanecer na atividade produtiva.
Visando a continuar como produtores familiares e ter renda
suficiente, esses agricultores tornaram-se estruturalmente depen-
dentes da pluriatividade e desse novo contexto rural, caracterizado
por uma diversificação local do mercado de trabalho e das ativida-
des econômicas. Além disso, os produtores familiares, no intuito de
manter eficientes as atividades especificamente agrícolas, tornam-
se, também, dependentes das condições econômicas externas pro-
piciadas pela divisão do trabalho e pela sua integração às cadeias
produtivas agroalimentares.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.205-223, abril de 2004


Lauro Mattei — 213

Dessa forma, Saraceno concluiu que a lógica tradicional do deba-


te sobre a persistência da produção familiar, assentada na função bási-
ca de subsistência e no seu grau de eficiência, deu lugar a uma discus-
são mais ampla que contempla a integração da produção familiar às
cadeias produtivas e às economias locais. Nesse caso, os temas pluri-
atividade e agricultura em tempo parcial aparecem como elementos
decisivos na estabilidade do emprego e da renda das unidades familia-
res de produção, ao mesmo tempo em que estimulam a permanência
das famílias nas áreas rurais.

Produção familiar x agricultura familiar: muito além da semântica

Nos últimos anos, consolidou-se, no Brasil, a expressão “agricultu-


ra familiar”, para representar o sistema de produção que articula os pro-
cessos de trabalho de caráter familiar e que tinha várias denominações:
agricultura camponesa, agricultura familiar de subsistência, pequena pro-
dução etc. Essa visão, mesmo procurando apresentar um significado
novo, ainda permanece atrelada às idéias da igualdade entre o rural e o
agrícola, uma vez que, conceitualmente, circunscreve e vincula esse sis-
tema de produção apenas às atividades agrícolas.
O ponto de partida dessa nova perspectiva é o conceito de agricul-
tura familiar, entendida como aquela em que a família, ao mesmo tempo
em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no
estabelecimento produtivo. No entanto, assim definida, essa categoria é
necessariamente genérica, pois a combinação entre propriedade e tra-
balho assume, no tempo e no espaço, uma grande diversidade de formas
sociais (WANDERLEY, 1996).
Outros autores também fizeram referência a essa questão. La-
marche (1993) afirma que as explorações agrícolas familiares não cons-
tituem um grupo social homogêneo e, portanto, a exploração familiar não
é um elemento da diversidade, mas contém nela mesma toda essa diver-
sidade, uma vez que, em um mesmo lugar e em um mesmo modelo de
funcionamento, as explorações dividem-se em diferentes classes sociais
segundo suas condições objetivas de produção (superfície, grau de me-
canização, nível técnico, capacidade financeira etc.). Nesse sentido,
toda exploração familiar define-se, ao mesmo tempo, em um mode-
lo de funcionamento e em uma classe social no interior desse modelo.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.205-223, abril de 2004


214 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Dessa maneira, sua capacidade de reprodução deve ser analisada con-


juntamente nesses dois níveis, ou seja, o funcionamento da exploração
familiar deve ser compreendido dentro dessa dinâmica, sendo que cada
tomada de decisão importante é resultante de duas forças: uma que re-
presenta o peso do passado e da tradição e a outra, a atração por um
futuro materializado pelos projetos que ocorrerão no porvir.
No caso brasileiro, observa-se que as atuais definições de “agricul-
tura familiar” procuram englobar os diferentes sistemas de produção
que se multiplicaram a partir da desintegração do campesinato tradicio-
nal e que se expressavam em generalidades que vão desde a simples
produção de subsistência até a agricultura familiar modernizada e inte-
grada à dinâmica agroindustrial. Na verdade, a presença desse conjunto
de agricultores com distintas inserções nos processos produtivos agríco-
las é vista como uma ruptura com o passado, pois possibilitou a emer-
gência de um “novo agricultor”, com características determinadas pela
sua maior ou menor participação nas atividades econômicas e sociais.
Foi a partir dessa diversidade que emergiram os conceitos atuais. Ve-
jam-se alguns dos principais enfoques em debate.
Partindo do princípio de que a promoção da agricultura familiar
como linha estratégica de desenvolvimento rural trará muitas vanta-
gens para a sociedade brasileira, o Projeto FAO/INCRA (1994 e 1996)8
definiu os elementos centrais da agricultura familiar e elaborou uma
tipologia desse sistema de produção para o conjunto dos estabeleci-
mentos agropecuários do país. Nessa nova concepção, consideraram-
se estabelecimentos familiares os que preenchiam, simultaneamente,
as seguintes condições:

a) A direção dos trabalhos era exercida pelo produtor;


b) Não realizaram despesas com serviços de empreitada;
c) Não tinham empregado permanente e cujo número médio de em-
pregados temporários era menor ou igual a quatro ou com um em-
pregado permanente e número médio de empregados temporários
menor ou igual a três;
d) Tinham área total menor ou igual a 500 hectares para as regiões Sul
e Sudeste e mil hectares para as demais regiões.
__________________________________________________
8
Projeto de Pesquisa Financiado pela FAO e que tem o INCRA como órgão coordenador. Para
maiores detalhes, acessar <www.incra.gov.br>.

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Lauro Mattei — 215

A partir desses critérios, chegou-se a conclusão que, dos 5.801.809


estabelecimentos existentes no Censo Agropecuário de 1985, 4.339.053
eram estabelecimentos familiares. Utilizando-se como parâmetro a Renda
Monetária Bruta (RMB), estratificaram-se os estabelecimentos familia-
res e obteve-se a seguinte classificação: 2.168.000 foram considerados
periféricos; 1.020.000 foram enquadrados como estabelecimentos em
transição; e 1.150.000 foram classificados como consolidados. De posse
dessa classificação geral, definiu-se que as políticas governamentais para
a agricultura familiar deveriam contemplar o segmento dos estabeleci-
mentos em transição, sendo que, para aqueles considerados periféricos,
seriam necessários outros tipos de políticas públicas.
Após esse trabalho pioneiro, generalizou-se a construção de tipolo-
gias semelhantes em um grande número de estudos sobre agricultura
familiar, porém muitos deles continham sérias imprecisões. Não é objeti-
vo aqui tratar desse tipo de problema, mas sim discutir a questão de
fundo que está implícita nessa nova denominação da produção familiar.
Nesse sentido, o primeiro aspecto a ser ressaltado é a RMB, que
serviu de base para toda a estratificação da agricultura familiar. A meto-
dologia adotada reforça a afirmação que se fez no início desse item, que
esta “nova” visão não se dissocia do modelo anterior, uma vez que ainda
considera o “agrícola” como elemento central e único, definidor do pro-
cesso produtivo familiar. Esse aspecto pode ser abstraído do próprio rela-
tório FAO/INCRA, que diz textualmente que “a renda monetária bruta
foi obtida pela diferença entre as receitas e as despesas provenientes
das atividades agropecuárias, excluídas as receitas relativas a serviços
prestados a terceiros, exploração mineral e outras receitas” (1996, p.16).
Em outros termos, isso significa que essa denominação ou tipologia
de agricultura familiar diz respeito apenas às atividades agrícolas que
estão sendo desenvolvidas pelas unidades familiares de produção, igno-
rando-se por completo o papel de qualquer outro tipo de atividade que
possa gerar ocupação e renda para importantes parcelas dos estabeleci-
mentos agropecuários de caráter familiar, principalmente para aqueles
considerados periféricos.
De certa forma, essa posição choca-se com a visão da “Es-
cola Francesa”, considerada aqui como a responsável pela dota-
ção de estatuto teórico à categoria da “Agricultura Familiar”. Para
essa escola, novos grupos sociais formados por administradores,
operários, empregados e aposentados aparecem na sociedade rural.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.205-223, abril de 2004
216 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Com isso, assiste-se a um redimensionamento da estrutura social local


e, conseqüentemente, a um sensível declínio da hegemonia agrícola
nas sociedades rurais. Então, o lugar e o papel da exploração familiar
não podem mais ser pensados sob o único ângulo das relações de pro-
dução agrícola (LAMARCHE, 1993).
Além disso, a noção de agricultura familiar repousa sobre a idéia
de uma identidade entre família e exploração, ou seja, cultiva-se o ideá-
rio da igualdade entre unidade de produção e família. Todavia, com as
mudanças ocorridas tanto na organização social familiar como nas condi-
ções que regem a integração da agricultura à economia global, essa iden-
tidade está sendo fortemente questionada, porque as famílias, ao se torna-
rem cada vez menos agrícolas, perdem suas especificidades, enquanto a
agricultura vê sua característica familiar se dissolver, uma vez que ela não
atrai mais os filhos dos agricultores, os quais se tornam operários, empre-
gados, engenheiros, professores, funcionários públicos etc.
Em síntese, o desenvolvimento de atividades externas à explora-
ção, sob formas e segundo modalidades diversas, diz respeito a uma
proporção crescente da população rural. Com isso, tanto a identidade
entre família e exploração quanto a exploração agrícola como locus
exclusivo de atividades dos membros familiares estão em xeque. Nes-
se cenário, a pluriatividade assume um papel decisivo, ao oferecer um
complemento de trabalho e de renda às unidades familiares de produ-
ção. Nesse caso, o seu caráter é diverso, podendo ser uma estratégia
de reprodução social, de manutenção da exploração, ou então atuar
como elemento de modernização e de desenvolvimento das próprias
unidades de produção.
Do ponto de vista financeiro, Lamarche (1993) mostra que, graças
às receitas externas, os sistemas de exploração intensivos detêm um
certo poder de compra que não poderia ser obtido apenas no âmbito das
relações de produção exclusivamente agrícolas. Enfim, os agricultores
já estão tomando consciência de que a agricultura não ocupa mais o
lugar privilegiado que deteve na sociedade em outras épocas.
Ao pensar a realidade, seria importante considerar o que a “Escola
Francesa” propõe para o segmento familiar. Partindo do pressuposto de
que se caminha em direção a uma “nova ruralidade”, em que a pluriati-
vidade é um meio muito eficaz nessa transição, busca-se a afirmação de
uma nova identidade social rural, em que as atividades exclusivamente
agrícolas não são mais o elemento central.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.205-223, abril de 2004
Lauro Mattei — 217

O segundo aspecto diz respeito ao público-alvo preferencial das po-


líticas setoriais. É amplamente reconhecido que a tipologia do estudo FAO/
INCRA serviu de base para a formulação do Programa Nacional de For-
talecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). A proposta original ado-
tou como beneficiários prioritários os agricultores classificados como con-
solidados e na categoria “em transição”, segmento que, embora não con-
solidado, apresenta um potencial de viabilidade econômica muito grande.
Já a categoria dos “periféricos” não foi enquadrada nos requisitos do pro-
grama, ficando à espera de outras ações específicas de políticas públicas.
Na verdade, esse novo programa governamental foi concebido para
uma parcela de agricultores que supostamente estão mais qualificados
para se tornar os “verdadeiros agricultores”, ou seja, aqueles que conse-
guem ocupar a mão-de-obra familiar e gerar rendas exclusivamente a
partir das atividades agrícolas, excluindo-se aqueles segmentos que, por
algum motivo9, acabam se envolvendo com atividades não-agrícolas como
forma de complementar a renda.
De certo modo, essa opção do PRONAF pela tipologia desenvolvida
pelo Projeto FAO/INCRA é um retorno à visão européia dos anos 1960
sobre os agricultores que exerciam atividades extra-agrícolas. Naquela
época e naquele contexto, a pluriatividade era vista como uma atividade
essencialmente negativa, sendo que os agricultores que a praticavam eram
excluídos dos benefícios concedidos pela Política Agrícola Comum (PAC),
implementada pela Comunidade Européia. Somente a partir das reformas
na PAC, no final dos anos 1960 e início dos anos 1980, essa visão foi
alterada e passou-se a dar o mesmo tratamento ao conjunto dos agriculto-
res, independentemente de eles serem ou não pluriativos.
No caso brasileiro, segundo Carneiro (1997), a incapacidade da uni-
dade familiar de se sustentar exclusivamente das atividades agrícolas é
vista, por alguns segmentos, como evidência de impossibilidade desse tipo
de produtor de assimilar as novas demandas e a própria lógica do merca-
do, além de não ter capacidade para incorporar as inovações tecnológicas.
Por conseguinte, o seu enquadramento em uma categoria social periférica
reforça e cristaliza a marginalização de grande contingente da população
rural cuja sobrevivência dependerá das políticas sociais, sem que lhe seja
concedida à oportunidade de participar do desenvolvimento rural, fato que
aprofundará ainda mais o abismo entre as camadas sociais do campo.
__________________________________________________
9
Dificuldade de empregar toda mão-de-obra na unidade de produção; oportunidades de traba-
lho em outros setores do meio rural; sazonalidade do trabalho essencialmente agrícola etc.

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218 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Além disso, ao se padronizar o “verdadeiro agricultor” como aque-


le que consegue obter sua renda exclusivamente das atividades agríco-
las, exclui-se qualquer possibilidade de se combinar atividades agrícolas
e extra-agrícolas como forma de geração de emprego e de renda, ele-
mentos fundamentais nas atuais circunstâncias para se manter as pesso-
as no meio rural e elevar seus níveis de vida.
Nesse sentido, endossam-se aqui as formulações de Carneiro (1997),
quando ela destaca que é necessário ampliar a noção de produtor fami-
liar, de maneira a incorporar também aqueles segmentos que combinam
as atividades agrícolas com outros tipos de atividades. Isso implica con-
siderar a pluriatividade uma condição para manter a população no cam-
po e também para viabilizar as unidades produtivas familiares que não
conseguem, por motivos vários, responder integralmente às demandas
do mercado, sustentando-se exclusivamente nas atividades agrícolas.
Por conseguinte, a tese aqui defendida procura ampliar as defini-
ções de agricultura familiar, pois se entende que os espaços do sistema
de produção familiar não se circunscrevem exclusivamente aos limites
específicos do setor agrícola. Para tanto, é fundamental compreender
que as mudanças em curso no meio rural colocam novos elementos que
impedem a generalização da definição de “agricultura familiar” como a
única atividade econômica responsável pela dinamização das ocupações
rurais e geradora de renda.
Hoje, já há novas formas de utilização do espaço rural que levam a
uma desarticulação dos laços tradicionais da agricultura como atividade
econômica soberana do mundo rural, e disso emergem novas formas di-
versificadas de produção que incluem desde a produção agrícola até um
conjunto de atividades relacionadas aos serviços, ao lazer e à proteção
ambiental. Na verdade, esse fato representa a perda do monopólio da
agricultura como atividade econômica. Esse processo provoca uma enor-
me diferenciação de oportunidades, principalmente em relação ao merca-
do de trabalho e à geração de rendas dos habitantes do mundo rural.
Nesse sentido, o rural transcende as fronteiras do agrícola, im-
pondo-se a necessidade de adotar um novo tipo de análise que contem-
ple todas as dimensões das formas de produção. Em função disso, as
análises agora precisam dar conta de um conjunto de novas atividades,
normalmente associadas aos novos padrões de consumo das socieda-
des, os quais causam impactos diretos no mundo do trabalho rural.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.205-223, abril de 2004


Lauro Mattei — 219

Dentre as questões chave que impactam o rural, destacam-se o au-


mento da demanda por novos produtos (normalmente naturais e de
qualidade superior) – o que leva à formação dos nichos de mercados –; a
incorporação da variável ambiental na agenda de trabalho; e uma remo-
delação da forma de inserção das economias locais no contexto econô-
mico regional e nacional.
Por outro lado, uma série de recursos rurais (edificações, paisa-
gem natural etc.) incorpora-se às atividades econômicas das proprie-
dades, gerando novas formas de ocupação da mão-de-obra e novas
fontes de rendimento. É nesse sentido que o espaço rural não pode
mais ser definido somente a partir de suas relações produtivas assen-
tadas exclusivamente nas atividades agrícolas, mas ter em conta a
multiplicidade de atividades econômicas que são desenvolvidas, as quais
integram a produção familiar ao seio da economia local e regional.
Segundo Saraceno (1994), nesse novo cenário, as áreas rurais
aumentam sua competitividade no âmbito econômico. Dentre as prin-
cipais razões para que isso ocorra, salientam-se a crescente segmen-
tação da demanda por certos produtos no mercado mundial (grupo de
produtos padronizados e com demanda estável e grupo de produtos
segmentados e com demanda variável); a maior cooperação entre as
empresas, conduzindo à formação de redes que operam nas econo-
mias locais; as novas oportunidades geradas a partir da melhoria da
rede de infra-estrutura, principalmente de transportes e de comuni-
cações; e a atratividade das áreas rurais para determinados segmen-
tos da população que não encontram mais oportunidade de trabalho
no meio urbano.
Essas são, na visão da autora, as principais razões para que as
tendências e escolhas que afetam as áreas rurais não sejam estu-
dadas de forma isolada daquilo que está ocorrendo nas áreas não-
rurais, uma vez que a realocação espacial das atividades está rela-
cionada ao contexto econômico maior, geralmente no âmbito das
economias regionais. Nesse caso, uma perspectiva analítica exclu-
sivamente urbana não seria suficiente para explicar o que está ocor-
rendo nas áreas rurais 10.
__________________________________________________
10
É neste sentido que alguns autores passam a adotar o conceito genérico de “neo-ruralismo”.
Segundo Giuliani (1990), esse conceito expressa a idéia de que uma série de valores típicos
do velho mundo rural, e que se pensava estarem em vias de extinção, passaram por um
certo revigoramento e começam a ganhar para si a adesão de pessoas das cidades.

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220 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

No Brasil, diversos autores vêm dando ênfase à necessidade de um


redimensionamento das análises do espaço rural, visando a apreender o
conjunto das transformações. Para Muller (1995), o espaço rural não mais
pode ser pensado apenas como um lugar produtor de mercadorias agrári-
as e ofertador de mão-de-obra. Além de ele oferecer ar, água, turismo,
lazer e bens de saúde, oferece também a possibilidade de, no espaço local-
regional, combinar postos de trabalho com pequenas e médias empresas.
Já Graziano da Silva (1997), ao discutir a evolução atual da agricul-
tura brasileira, concluiu que não se pode mais caracterizar a dinâmica do
meio rural brasileiro como determinada exclusivamente pelo seu lado
agrário, uma vez que o comportamento do emprego rural não pode mais
ser explicado apenas a partir do calendário agrícola e da expansão e
retração das áreas e da produção agropecuária. Há um conjunto de ati-
vidades não-agrícolas que responde cada vez mais pela nova dinâmica
populacional do meio rural brasileiro.
Por um lado, contudo, observa-se que a produção agrícola não for-
nece a maior parte da renda familiar. Os dados das PNADs da década
de 1990 revelam que a PEA rural cresceu, enquanto a PEA agrícola
diminuiu. A explicação para esse contraste está no vigoroso crescimento
verificado da população economicamente ativa ocupada em atividades
não-agrícolas residente no meio rural brasileiro, cujas taxas foram da
ordem de 3,5% aa. Em grande parte, isso se deve às “novas funções” e
às “novas atividades” que se expandem pelo mundo rural, dentre elas
destacando-se as atividades de lazer (pesque-pague, hotéis-fazenda,
chácaras de final de semana etc.), de turismo, de preservação ambien-
tal, de produção artesanal, residência e de um conjunto de outras ocupa-
ções tipicamente urbanas (motoristas, mecânicos, pedreiros etc.).

Considerações finais

Quanto à polêmica sobre a persistência da produção familiar, en-


tende-se ser necessário ampliar o horizonte analítico para além do dua-
lismo da teoria clássica. Procedendo dessa maneira, podem-se observar
melhor as novas funções que esse sistema de produção vem desempe-
nhando nos últimos períodos, principalmente em função de que a visão
histórica tradicional desse setor como promotor apenas da subsistência
básica deixou de ser a mais relevante.

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Lauro Mattei — 221

Nesse caso, emergem novos temas e novas relações de produção


no ambiente socioespacial onde a produção familiar insere-se, com des-
taque para as questões da pluriatividade, da agricultura em tempo parcial
e da multifuncionalidade, as quais se transformaram nos elementos fun-
damentais de ligação entre os dois assuntos tratados neste estudo.
Esse fato obriga a repensar o próprio conceito de agricultura fami-
liar, como atividade exclusiva do mundo rural. Nesse espaço, surge um
conjunto de novas atividades que interagem com o sistema familiar de
produção, colocando a economia rural em um novo patamar nas suas
relações com as economias locais e regionais.
É nesse sentido que se entende que os espaços da produção fami-
liar vão muito além dos limites do mundo agrícola, tendo em vista que a
exploração agrícola, como locus exclusivo das ocupações produtivas do
conjunto dos membros familiares, deixou de ser hegemônica.
Essa nova dimensão da dinâmica econômica e social rural – que
rompe com a associação do rural ao agrícola – é dada por uma série
uma série de fatores. Dentre eles, destacam-se a busca de novas opor-
tunidades de trabalho e de lazer no meio rural, devido aos problemas
enfrentados pelos grandes centros urbanos; a emergência de um con-
junto de novas atividades até há pouco tempo sem importância como
atividades econômicas (pesque-pague, turismo rural etc.); e a emer-
gência de atividades denominadas genericamente de “fundos de quin-
tal”, em que se processam e comercializam produtos de origem agro-
pecuária ou finalizam-se partes de outros produtos, como é o caso das
indústrias de confecções e de malharias. São precisamente essas ca-
racterísticas que fazem o “rural” ser bem mais amplo do que o “agríco-
la”, embora, na maioria dos casos, ainda predominem as atividades
agrícolas, tanto em termos de produção como em termos de geração
de renda e de emprego.
É exatamente nessa direção que se julga necessário ampliar o con-
ceito de agricultura familiar para além da fronteira agrícola stricto sen-
su. Nesse caso, entende-se que a denominação “Produção Familiar”
para designar o segmento social de produtores de caráter familiar – que
já não alocam mais sua força de trabalho e definem suas estratégias de
reprodução exclusivamente a partir das atividades agrícolas – é a mais
correta, por estar em sintonia com as transformações do capitalismo
agrário contemporâneo.

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222 — Sistema familiar de produção: algumas questões para o debate

Dentre essas mudanças, destacam-se o fim da dicotomia tradicio-


nal entre as atividades de característica especificamente urbanas e ru-
rais – o que possibilita a ocupação produtiva dos trabalhadores rurais
sem que ocorram as migrações –; as novas formas de ocupação do
espaço rural; o desenvolvimento de uma série de atividades de lazer e de
serviços; e a implementação de uma rede de infra-estrutura básica no
meio rural que possibilita a instalação de novas empresas nesse ambien-
te, não necessariamente vinculadas às atividades agrícolas.
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(Recebido em março de 2003 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

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Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?*

Sirlândia Schappo 1
Universidade Estadual de Campinas

Resumo Abstract

Este artigo analisa a insufi- This paper aims at arguing that


ciência do termo “êxodo rural” the term “rural exodus” is not able
para definir os deslocamentos po- to account for the displacements of
pulacionais que emergem, em es- populations that occurred in last de-
pecial os acontecidos nas últimas cades. The generic use of that term
décadas. A utilização genérica do prevents one from a suitable unders-
termo pode reduzir a compreen- tanding of population displacements
são de tais processos no atual con- in the present social context. In such
texto, o qual corresponde à redu- a context the possibility of ascen-
ção das possibilidades de mobili- ding social mobility is reduced, as
dade social ascendente e à emer- well as the occurrence of new dis-
gência de novos deslocamentos placements, in which the so-called
que relativizam os chamados pon- points of “departure” and “arrival”
tos de “partida” e de “chegada”, are relative, in addition to the direc-
__________________________________________________
*
Nomad migrants: arriving, leaving, or staying?
1
Endereço para correspondências: Rua Senador Konder Reis, 07, Centro, Petrolândia, SC,
CEP 88430-000 (sschappo@bol.com.br).

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226 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

bem como o percurso rural-urba- tion taken by the migratory process


no de um processo migratório. A (from rural to urban areas). Especi-
forma pela qual a migração tem ally in the Brazilian region called
se desenhado, em especial na “Mesoregião Oeste de Santa Ca-
Mesorregião Oeste de Santa Ca- tarina” the way population migrati-
tarina, instiga um debate sobre os ons take place raises a question about
pressupostos que norteiam as dis- the very presuppositions of the dis-
cussões sobre o tema e o que vi- cussions dealing with this topic, and
ria a ser hoje o problema social e what the social, political problem of
político da migração. migration is like today.

Palavras-chave: Migração; êxodo Keywords: M i g r a t i o n ; r u r a l


rural. exodus.

A o adentrar na análise das expressões do fenômeno migratório na


atualidade, busca-se destacar questões pertinentes ao contexto
sócio-econômico que incidem nas novas dimensões e recentes configura-
ções dos deslocamentos populacionais. Pode-se aferir que as alternativas
de reinclusão rápidas dos migrantes no mercado de trabalho são cada vez
mais reduzidas, em comparação, por exemplo, com os “desenraizamentos”
das populações rurais ocorridas na década de 1960 no Brasil.
Neste sentido, pretende-se refletir sobre a insuficiência da utiliza-
ção genérica do termo êxodo rural para explicar os deslocamentos po-
pulacionais no atual contexto, em especial os de origem rural. Compre-
ende-se que o termo refere-se à migração rural-urbana frente às pers-
pectivas de “ascensão social” vislumbradas no local de destino por parte
dos migrantes. Porém, ao se contextualizar tais deslocamentos em sua
diversidade e heterogeneidade, pode-se observar que eles vêm adquirin-
do (já a partir dos anos 80 e principalmente na década de 1990) novos
contornos marcados por direções acentuadamente “indefinidas”.

Por que Migrantes-nômades?

Primeiramente, busca-se esclarecer a opção pelo termo migran-


tes-nômades frente a uma gama de expressões utilizadas para deno-
minar os deslocamentos populacionais, como abandono dos campos,

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Sirlândia Schappo — 227

êxodo rural e evasão. Uma delas, utilizada com freqüência, êxodo rural,
pode limitar os movimentos demográficos à passagem de um meio tradi-
cional para um meio técnico urbanizado.
Para Mendras (1978, p.166) êxodo rural restringe-se ao movimen-
to de massa que conduz os camponeses às cidades industrializadas. Se-
gundo o autor, “A transferência para a cidade de populações rurais em
uma época de rápida industrialização é, ao mesmo tempo, a passagem
de uma civilização camponesa tradicional a uma civilização industrial
tecnicista e urbanizada”.
No entanto, a Mesorregião Oeste de Santa Catarina, além da mi-
gração rural-urbana, apresenta o que Mendras (p.166) denominou “mi-
gração de agricultores”, ou seja, o deslocamento de agricultores do seu
local de origem para outras regiões, onde continuam a exercer seu ofí-
cio. Um exemplo disso é o grande número de ex-agricultores familiares
assentados nos projetos de reforma agrária e envolvidos no Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), no Oeste Catarinense.
O êxodo, para Mendras, seria o resultado de uma avaliação por
parte de quem se põe em “movimento”, diante do que ele denominou
perda de vitalidade da sociedade aldeã e a possibilidade de um ambiente
acolhedor a sua espera:

Se a sociedade aldeã perde toda vitalidade e a al-


deia abandonada não é mais que um teatro de som-
bras; se mais adiante um ambiente acolhedor o es-
pera, onde encontre um ganha-pão suficientemente
remunerador, se é possível refazer aí sua identidade
social, recriar os laços, se ele pode, ao mudar de
ofício, encontrar seu caminho na vida citadina ou
estabelecer-se em uma terra no campo, então, o emi-
grante se instala, e o movimento do êxodo começa a
funcionar (MENDRAS, 1978, p.172).

Entretanto, outro limite é a utilização do termo “êxodo rural” para


os países do terceiro mundo, onde as cidades, apesar de receberem um
fluxo considerável de população, não oferecem, na mesma proporção,
empregos em um mundo industrial2.
__________________________________________________
2
O próprio Mendras (1978) reconhece que o que ocorre nos países do terceiro mundo não
pode ser comparável ao contexto da Europa no século XIX.

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228 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

Tais restrições à utilização genérica de “êxodo rural” ampliaram-


se nas últimas décadas, diante do contexto de aumento do nível e de-
semprego e das dificuldades de mobilidade social nos centros urbanos,
como aponta o estudo de Jannuzzi (2000) sobre os migrantes no mer-
cado de trabalho paulista.
Nesse cenário, os locais de “origem” e de “destino” tornam-se
relativos, no sentido de que o “destino” pode corresponder à chegada a
um ambiente provisório que, em breve, pode tornar-se um local de “ori-
gem” de um novo deslocamento, por isso, opta-se aqui pelo termo mi-
grantes-nômades para caracterizar tais migrantes no atual contexto.
O termo “migração”, no sentido genérico, é definido por Lee (1966,
p.99), como “uma mudança permanente ou semipermanente de residên-
cia”. Porém, o autor, ao desmembrar tal conceito, aponta que todo ato
migratório implica um lugar de origem, um lugar de destino e uma série de
obstáculos intervenientes. No entanto, como mencionado, os pontos de
“partida” e de “chegada” tornam-se relativos, no presente contexto.
Dessa forma, cabe um questionamento no sentido de primeiro se
averiguar se o “lugar de destino” continuaria, nas últimas décadas, apre-
sentando fatores de atração comparáveis àqueles dos anos de plena ex-
pansão, a partir da década de 1950, da industrialização no Brasil. Uma
possível evidência da diminuição dos fatores de atração é a redução dos
fluxos migratórios, principalmente, para as áreas mais urbanizadas, nas
últimas décadas, a qual apontada por vários autores (JANNUZZI, 2000;
MARTINE, 1994; CAMARANO e ABRAMOVAY, 1999).
Pode-se aferir que os estudos sobre migração congregam diferen-
tes condicionantes dos deslocamentos populacionais, os quais são apre-
sentados como sendo principalmente de ordem social, econômica ou
política. Contudo, a ênfase no fator determinante principal é variável,
conforme os diferentes períodos históricos.
A teoria clássica da migração, na qual se destacam autores como
Ravestein (1885) e Lee (1966), busca ressaltar os condicionantes de
atração e retração das áreas envolvidas em um deslocamento populaci-
onal. Esse deslocamento seria resultado de um cálculo racional dos indi-
víduos entre as perspectivas oferecidas na sociedade de destino e as
condições prevalecentes na sociedade de origem. Nesse enfoque, a mu-
dança é abordada como algo que representaria melhora nas condições
de vida do migrante e destacam-se os pontos de partida e de chegada,

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Sirlândia Schappo — 229

apontando-se o deslocamento como correspondendo a uma mobilidade


social ascendente, assim, abandonar uma situação pior para alcançar
uma mais positiva, em termos sociocupacionais.
Estudos mais recentes ressaltam a necessidade de incorporar em
tais análises o caráter histórico e conjuntural das migrações, as quais
acompanhariam a estrutura de produção do capitalismo. Nesse enfoque,
Singer (1976) destaca, na conjuntura em questão, as migrações internas
como expressão da industrialização, abordando o país todo e não apenas
os espaços duais de atração e repulsão. A origem das migrações estaria
nas disparidades e desigualdades sociais geradas pela industrialização
nos moldes capitalistas.
Singer (1976, p. 224) aponta que os fatores de expulsão que le-
vam às migrações são de duas ordens: fatores de mudança e os fato-
res de estagnação3. No entanto, o autor destaca que apesar dos fato-
res de expulsão definirem as áreas de onde se originam os fluxos mi-
gratórios, são os fatores de atração que determinam a orientação des-
tes fluxos e que entre estes fatores, o mais importante é a demanda
por força de trabalho.
Nesse sentido, o próximo item aborda aspectos da atual conjun-
tura e da caracterização do fenômeno migratório, bem como alguns
pontos relevantes, no que tange aos estudos referentes aos desloca-
mentos populacionais.

Problemas sociais e políticos da migração

Parte-se aqui do pressuposto de que a problemática social e políti-


ca da migração não é inerente ao fenômeno em si. Migrar nem sempre
representa uma mudança negativa nas condições de vida das pessoas,
pois esse ato pode expressar uma alternativa melhor dentre as oportuni-
dades de que o indivíduo dispõe.
__________________________________________________
3
“Os fatores de mudança fazem parte do próprio processo de industrialização, na medida em
que este atinge a agricultura, trazendo consigo mudanças de técnica e, em conseqüência,
aumento da produtividade do trabalho. Os fatores de estagnação resultam da incapacidade
dos produtores em economia de subsistência de elevarem a produtividade da terra. Os
fatores de mudança provocam um fluxo maciço de emigração que tem por conseqüência
reduzir o tamanho absoluto da população rural. Os fatores de estagnação levam à emigra-
ção de parte ou da totalidade do acréscimo populacional devido ao crescimento vegetativo
da população rural, cujo tamanho absoluto se mantém estagnado ou cresce apenas vagaro-
samente” (Singer, 1976, p. 224).

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230 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

O problema principal da migração encontra-se hoje na dificuldade


de absorver essa população no mercado de trabalho, em uma conjuntura
que se caracteriza pelo estreitamento das oportunidades de vida. Con-
forme diz Martins (1998, p.31):

Os problemas que aparecem não são relativos à


migração de um lugar para outro, mas são relati-
vos aos empecilhos à migração de uma posição
social a outra, no interior da sociedade. É o es-
treitamento das possibilidades de ascensão soci-
al. (...) Talvez devamos entendê-las como desloca-
mentos sociais que se tornam problemáticos para
o próprio ser humano, quando esses processos
ocorrem em sociedades que estão passando por
demorado período de estreitamento das oportu-
nidades de vida, como a nossa.

A problemática estaria, segundo esse autor, na dificuldade de rein-


clusão. Nesse contexto, cria-se uma nova desigualdade, ou seja, a desi-
gualdade entre os plenamente incluídos em relação àqueles cuja inclusão
se situa à margem dessa mesma sociedade.
Entre as décadas de 1930 e 70, as migrações internas no Brasil
seguiram basicamente dois rumos: as fronteiras agrícolas e os centros
urbano-industrializados, marcando um período de intenso deslocamento
populacional rural-urbano, frente ao modelo de industrialização, via subs-
tituição de importações.
No entanto, nas últimas décadas, esse percurso tem indicado al-
guns limites: o esgotamento das fronteiras agrícolas, a diminuição das
migrações rural-urbanas e um aumento populacional em cidades médias
e pequenas. Tal perfil histórico dos deslocamentos populacionais é evi-
denciado por vários autores (SALES e BAENINGER, 2000; VAINER,
2000; MARTINE, 1994).
A década de 1980 já apresentava sinais de uma menor capacidade
de absorção do mercado de trabalho, em comparação com a relação
entre dinamismo, na criação de emprego, e a alta intensidade de migran-
tes das décadas anteriores.
Jannuzzi (2000) refere-se os anos 1990 como década “mais do que
perdida”, em termos de mobilidade, no sentido de ascensão social.

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Sirlândia Schappo — 231

A recessão ocorrida no início da década e seus efeitos sobre o nível de


emprego, aliados àqueles decorrentes da abertura comercial, ausência de
uma política industrial, desregulamentação dos mercados e concorrência,
dentre outros fatores, contribuíram para que as taxas de expansão das ocu-
pações nos anos 90 se mantivessem mais baixas do que na década anterior
e para que o desemprego se tornasse um grave problema estrutural.
Esse autor, ao analisar as possibilidades de ascensão social nos
anos 80 e início dos anos 90, aponta para dificuldades crescentes nesse
sentido. A sociedade brasileira estaria presenciando a transição de um
regime de mobilidade social ditada menos pela mobilidade estrutural e
cada vez mais pela mobilidade circular4, ou seja, as possibilidades de
movimentos, ao longo da escala sociocupacional, têm-se dado no sentido
de troca de posições entre ocupados, em que a subida de um decorreria
da descida de outro.
Nesse contexto, as alternativas de reinclusão rápidas, frente ao de-
senraizamento das populações rurais observadas nos anos 1960 no Brasil,
são cada vez mais reduzidas. Enquanto, na década de 80, o nível de deso-
cupados no Estado de São Paulo era inferior a 1%, em 1993, esse nível já
atingia 6% do conjunto dos migrantes (JANNUZZI, 2000, p.99).
Nota-se que os dados anteriores expressam uma conjuntura mais
instável e desfavorável do mercado de trabalho nas últimas décadas. O
cenário aponta para a acentuação da mobilidade dos migrantes já descri-
ta por Martine em 1980: de um lado, absorção dos mais aptos a competir
no mercado de trabalho e, de outro, reemigração daqueles menos capa-
citados, em direção a outras regiões:

[...] A hipótese de retenção seletiva dos elementos


mais capacitados (ou da migração repetida nos
segmentos populacionais mais marginalizados)
parece mais aceitável. Com base nestas informa-
ções, poder-se-ia postular, inclusive, a existência
de um substrato de verdadeiros nômades na po-
pulação brasileira, substrato este que incluiria
não somente os trabalhadores volantes e bóias-
frias, mas também outros itinerantes em busca de
uma difícil subsistência (MARTINE, 1980, p.971).
__________________________________________________
4
Segundo Jannuzzi (2000, p.18), “A mobilidade estrutural refletiria os efeitos da mudança da
estrutura composicional da mão-de-obra e a mobilidade circular, os efeitos da competição
individual no mercado de trabalho”.

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232 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

Pode-se aferir que a hipótese do autor tende a se confirmar, tendo


em vista o que se constata nas últimas décadas. Observa-se que grande
parte dos migrantes, antes tidos como fundamentais para a acumulação
do capital, na formação da sociedade urbano-industrial, vê-se transfor-
mada naquilo que Benetti e Vainer (1998) denominaram de “estorvo”, ou
seja, em vez de recurso econômico, é considerada “problema social”5.
No âmbito das políticas estatais na atualidade, mais especificamente
da política migratória6, as intervenções voltadas para contenção, gera-
ção, estímulo, direcionamento e deslocamento espacial da população têm
configurado, segundo Vainer (2000, p.29) duas características que mar-
cam essa nova etapa:

a) A fragmentação das ações – Renúncia do Estado Central ao esta-


belecimento de estratégias e políticas territoriais em escala nacio-
nal, inclusive industriais, de emprego etc.;
b) A violência como mecanismo de mobilização ou imobilização das
populações – Vários municípios têm aplicado políticas ativas de
segregação e fechamento do território a migrantes em busca de
emprego, moradia etc. Percebem-se, assim, controles cada vez mais
estritos à livre circulação dos indivíduos e ao uso da violência física
ou simbólica, para fechar espaços.

Na agenda das políticas públicas, destacam-se políticas sociais, com


o objetivo de gerenciar os excedentes populacionais no âmbito local e de
forma dispersa. Nesse contexto, políticas territoriais que levem em con-
ta questões mais amplas, como a distribuição de renda, reforma agrária,
o desenvolvimento da indústria nacional e outras, são deslocadas para
um segundo ou terceiro plano.
O contexto é marcado ainda pela histórica perseverança das defi-
ciências da estrutura e da questão agrária no Brasil, em relação à posse
da terra, ao grau de concentração, a baixos investimentos na agricultura,
à existência da fome, concentração na comercialização e industrializa-
ção dos produtos agrícolas, dentre outros fatores.
__________________________________________________
5
Vainer (2000) também aponta que o conceito de população como recurso cede progressiva-
mente o lugar ao conceito de população como ônus – ou custo.
6
Segundo Vainer (2000, p.30), “Constitui política migratória toda política que, de forma
explícita e direta, gera avaliações, objetivos e práticas relativas à contenção, geração,
estímulo, direcionamento, ordenamento e acompanhamento de deslocamentos espaciais
de população”.

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Sirlândia Schappo — 233

A falta de políticas estruturais e territoriais mais amplas agrava os


problemas ligados aos deslocamentos populacionais, limitando as possi-
bilidades de escolha dos migrantes de permanecer em determinados es-
paços. Nesse sentido, o problema da migração, mais do que social, ca-
racteriza-se como um problema político.
Assim, pode-se constatar que o percurso daqueles que se põem
em movimento é freqüentemente marcado pela incerteza e insegurança
em torno das possibilidades de ascensão social e também constituído por
uma vivência marcada por constrangimentos à liberdade de escolha, no
tocante às ações e opções que norteiam projetos e ideais de vida.
Expressa-se o cenário de uma gama variada de fluxos migratórios:
movimentos de curta distância, movimentos de retorno (por exemplo: de
São Paulo para o Nordeste), dos espaços rurais para urbanos, de muni-
cípios urbanos para rurais e outros. O nomadismo7 revigora-se, não mais
tão caracterizado pelo caboclo que produzia o que consumia e consumia
o que produzia ou pelas populações indígenas, mas “aparece cada vez
mais como prática de uma população com conteúdos de vivência territo-
rial das mais variadas, constituindo-se numa prática migratória inerente
ao modelo de desenvolvimento da era atual” (MENEZES, 2000, p.8).
Segundo Benetti e Vainer (1988, p.8):

O nômade de antigamente foi capturado, mobilizado,


levado para as fazendas, para as indústrias, para cons-
truir a riqueza da nação, forçado a integrar-se ao
mercado. O paradoxo consiste justamente em que este
nômade contemporâneo não pode mais viver fora do
mercado, e não consegue viver no e do mercado.

Observam-se, assim, deslocamentos de populações com história


de vida demarcada por uma territorialidade, mas que passam a se carac-
terizar como migrantes-nômades, pois um ponto de chegada pode tor-
nar-se, em breve, um novo ponto de partida.
Nesse sentido, diante das novas dimensões da migração, o fe-
nômeno adquire características particulares, dependendo dos espa-
ços onde se processa.
__________________________________________________
7
Segundo Villela (1997, p.27): “O nômade não se desloca desde um ponto de partida até um
ponto de chegada. Não efetua uma viagem de ida e de volta, ele está em movimento absoluto,
o que também quer dizer imobilidade, pois desde a sua perspectiva não há referencial fixo com
relação ao qual se possa definir um movimento de afastamento ou aproximação”.

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234 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

Segundo Sales e Baeninger (2000, p.39),

As alterações nas diferentes intensidades e espa-


cialidades que envolvem os movimentos migrató-
rios marcam as características recentes do pro-
cesso de distribuição espacial da população no
país. Essas transformações, no entanto, nem sem-
pre são apreendidas no âmbito das tendências
gerais, necessitando de estudos que aprofundem
situações específicas.

Observando-se a importância de tal proposição, parte-se para a


análise do fenômeno migratório em uma região específica e que se ca-
racteriza como um espaço rural. A dinâmica populacional é observada
em sua forma heterogênea. Desprezam-se expressões freqüentemente
utilizadas, como “esvaziamento dos campos” e outras do gênero, no en-
tanto, valorizam-se aspectos ligados à diversidade apresentada no interi-
or da mesorregião analisada.

Migrantes nômades no Oeste de Santa Catarina

Neste item, parte-se para alguns apontamentos sobre a dinâmica


populacional de um espaço específico – a Mesorregião Oeste de Santa
Catarina. Em especial, busca-se observar o movimento populacional in-
terno, principalmente de agricultores da própria mesorregião, que se des-
locam para acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra (MST). Tal fenômeno expressa, por um lado, o deslocamento de
migrantes-nômades que convivem num cotidiano de incertezas e por
outro, a manifestação do desassossego, diante de escassas expectativas
de melhoria nas condições de vida, da luta pelo “direito a ter direito”,
direito à política agrária, de crédito, de educação, e da própria resistência
pela opção de permanecer no meio rural.
O Oeste de Santa Catarina constitui-se, em sua grande maioria,
por estabelecimentos agrícolas de trabalho familiar. A mesorregião re-
presenta mais de 50% da produção agrícola do estado e caracteriza-se
por sua evolução ser muito inferior à da população rural, em relação ao
estado e ao Brasil.

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Sirlândia Schappo — 235

Observa-se, com base em dados dos censos demográficos do IBGE,


que, enquanto a taxa de crescimento da população entre 1980-1991, em
Santa Catarina, era de 2,29 a.a. e, no Brasil, de 1,93 a.a., a mesorregião
Oeste apontava crescimento de 1,17 a.a. Essa taxa inferior, em relação
ao estado, ocorre mesmo com taxa média anual de natalidade maior no
Oeste (2,36%) do que a estadual (2,23%). Entre 1991 e 2000, apesar de
a taxa de crescimento em Santa Catarina ter reduzido, passando para
1,94 a.a., assim como no Brasil, que passou para 1,73 a.a., a mesorre-
gião Oeste teve redução bem mais acentuada, com taxa de 0,12 a.a.,
chegando a apresentar, entre 1996 e 2000, taxa de crescimento negativa,
-0,35 a.a., o que expressa acentuado e progressivo movimento de esva-
ziamento demográfico.
Na década de 1990, o fenômeno migratório agravou-se, dada a
crise nacional que afetou a economia da Mesorregião Oeste, pela re-
dução da demanda por produtos agrícolas e pela diminuição do crédito
para custeio e investimento agrícolas e agroindustriais. Decresceu o
consumo per capita do principal componente da agroindustrialização,
ou seja, a atividade suinícola. O resultado disso foi um intenso proces-
so de exclusão de suinocultores da atividade. Outros fatores no campo
econômico contribuíram para a crise, como a diminuição do volume de
crédito agrícola, o esgotamento dos recursos naturais e a redução da
rentabilidade de alguns produtos tradicionais, como milho, suínos e fei-
jão (TESTA et al., 1996).
Agregando-se aos fatores conjunturais, os fatores estruturais tam-
bém agravaram a crise, tendo em vista a grande distância dos princi-
pais mercados consumidores, a escassez de terras aptas para culturas
anuais, o esgotamento da fronteira agrícola e a estrutura fundiária ex-
cessivamente subdividida, na qual os menores estabelecimentos con-
centram os solos mais declivosos e pedregosos.
Todavia, mesmo diante de tal problemática, o perfil de distribui-
ção da população estudada revela, ainda, que, apesar do “esvaziamen-
to populacional” que tem caracterizado a mesorregião, mais especifi-
camente e de forma mais intensa a partir de meados da década de
1990, muitos municípios apresentaram crescimento da população rural
superior ao do estado e, até mesmo, ao do Brasil, atraindo pessoas de
outros municípios e outras regiões.

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236 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

Um dos fatores que têm contribuído para a diversidade na dinâmica


populacional que caracteriza os municípios do Oeste de Santa Catarina é o
deslocamento de agricultores para acampamentos do MST, situados no
interior da própria mesorregião. Esses espaços congregam o conjunto de
municípios considerados atraentes, ou seja, que atraíram um grande núme-
ro de pessoas na última década. Um estudo mais detalhado sobre a dinâ-
mica populacional da mesorregião foi feito por Schappo (2003).
Constata-se que duas microrregiões do Oeste Catarinense, Joaça-
ba e Xanxerê, destacam-se por apresentarem-se atraentes. Tal fato pode
ser, em parte, reflexo do grande número de projetos de assentamento e
de acampamentos do MST lá existentes. Tais projetos têm representa-
do, por parte dos agricultores familiares, resistência frente ao abandono
acentuado dos espaços rurais. O anseio dos agricultores por permane-
cer no meio rural é expresso pelo fato de a grande maioria das pessoas
acampadas e assentadas nessas microrregiões serem da própria mesor-
região, ou seja, de origem oestina, além de terem sido agricultores fami-
liares antes de assentados8.
Assim, configura-se uma migração rural-rural, no interior da pró-
pria mesorregião, com destino a determinados municípios, onde tais mi-
grantes-nômades descobrem, via expressão dos movimentos sociais, a
possibilidade de explicitar suas reivindicações pela ampliação das políti-
cas públicas. No local de “chegada”, encontram algumas conquistas,
obtidas por parte dos agricultores já assentados, em termos de acesso à
terra e infra-estrutura, habitação, escola etc., as quais apontam para
uma ampliação das políticas. Esse cenário incentiva aqueles que para lá
se dirigem a acreditar na melhoria das condições de vida, mesmo que
não sejam imediatas.
Segundo ICEPA (1998), a partir de dados do INCRA (1997), 69,6%
dos acampamentos de Sem-Terra do Estado estão localizados no Oeste
de Santa Catarina, totalizando 2.413 famílias acampadas, o que corres-
ponde a 75,2% do total de famílias acampadas no estado. Destaca-se
que, desse total, 73,2% são oriundas de Santa Catarina, sendo que, des-
sas famílias catarinenses, cerca de 92% são da própria Mesorregião
Oeste Catarinense, o que pode ser observado na figura seguinte:
__________________________________________________
8
Percebe-se também que o meio urbano não condiz com o ideário futuro de grande parte dos
jovens do Oeste Catarinense. Segundo Abramovay (2000), 69% dos rapazes desejam per-
manecer na agricultura como proprietários e apenas 20% anseiam trabalhar e morar na
cidade. Quanto às moças, há desejo maior de trabalhar e morar na cidade (43%), no
entanto, 32% delas gostariam de permanecer na agricultura, como proprietárias.

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Sirlândia Schappo — 237

Figura 1
Origem das famílias acampadas na Mesorregião Oeste
de Santa Catarina

123456789012345678901234567890121234
123456
1234567890112
123456789012345678901234567890121234
123456
1234567890112
123456789012345678901234567890121234
12345612
12345678901
123456789012345678901234567890121234
12345612
12345678901
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123456
12345678901
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12345612 12345 Oeste Catarinense
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12345678901 12345 Região Serrana
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12345 Norte Catarinense
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123456789012345678901234567890121234 12345 Sul Catarinense
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Fonte: INCRA, 1997.

Os dados apontam ainda os beneficiários envolvidos em projetos


de assentamento em Santa Catarina, destacando que 82,67% deles eram
agricultores ou camponeses, antes de serem assentados, sendo que, até
março de 1998, havia, no Estado, 95 assentamentos, com 4.120 famílias,
deles, 68 localizavam-se no Oeste Catarinense, com 3.302 famílias. Da-
dos mais recentes mostram que, em março de 2002, conforme o INCRA
e a Superintendência Regional de Santa Catarina, a Mesorregião Oeste
Catarinense abrigava 78,61% das famílias assentadas em Santa Catari-
na e 68,33% dos projetos de assentamento.
Apesar de ter havido alguns avanços em termos de desconcentra-
ção da terra em Santa Catarina, entre 1985 e 1995, segundo o Índice de
Gini (o qual passou, conforme dados dos censos agropecuários, de 0,682
para 0,671), a demanda por terra no Oeste Catarinense ainda é grande.
Segundo ICEPA (1998), 29% das famílias de agricultores do Oeste po-
dem ser consideradas “carentes de terra”.
Assim, o cenário analisado expressa inter-relação dos processos
migratórios e ampliação dos conflitos de terra, da luta pelo “direito a ter
direito”, em especial, à política agrária e à política de crédito rural, por
parte dos agricultores familiares, migrantes-nômades – a maioria deles
da própria mesorregião. Nela, expressivos deslocamentos caracterizam-se,

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238 — Migrantes-nômades: chegar, partir ou ficar?

rumo aos acampamentos e assentamentos, locais que representam


uma possibilidade, mesmo limitada ou incerta, de acesso à política
agrária e à política agrícola. O local de “chegada” pode significar,
para aqueles migrantes, ampliação (ou possibilidade de ampliação)
das oportunidades de melhores condições de vida. No entanto, o pon-
to de “chegada” pode se tornar em breve um local de “origem” de
um novo deslocamento, sendo que a condição de migrantes-nômades
permanece, tendo em vista a morosidade nos processos de formula-
ção e implementação de políticas públicas destinadas ao meio rural,
em especial, à política agrária.
Pontuou-se, assim, um caso específico de deslocamento populaci-
onal, mas que revela o quanto a utilização genérica do termo êxodo rural
– entendido como um deslocamento de uma sociedade rural para uma
sociedade urbana industrial, como resultado de uma avaliação, por parte
daqueles que migram, de possibilidades de melhoria em termos de “as-
censão social” – torna-se hoje insuficiente para dar conta da ampla va-
riedade dos deslocamentos populacionais existente. Chegar, partir ou
ficar? – essas expressões revelam alargamento da indefinição do per-
curso de uma migração, num contexto de estreitamento das possibilida-
des de ascensão social, em que um ponto de “chegada” pode tornar-se
em breve um ponto de “partida” de um novo deslocamento.
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(Recebido em setembro de 2003 e aceito para


publicação em outubro de 2004)

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.225-240, abril de 2004


RELAÇÃO DOS CONSULTORES AD HOC
Revista número 35

Ana Lúcia Gomes Medeiros (UFSC)


Anita Brumer (UFRGS)
Benilde Maria Lenzi Motim (UFPR)
Breno Augusto Souto Maior Fontes (UFPE)
Cecile Helene Jeanne Raud Mattedi (UFSC)
Daniel Omar. Perez (PUC/PR)
Elio Cantalício Serpa (UFG)
Erly Euzébio dos Anjos (UFES)
Fernando Silva Teixeira Filho (UNESP)
Georgina Carolina Oliveira Faneco Maniakas (UFSCAR)
Hector Ricardo Leis (UFSC)
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Jean Hébette (UFPA)
João Ignacio Pires Lucas (UCS)
Jorge Saba Arbache Filho (UNB)
Marco Antonio de Castro Figueiredo (USP
Marco Antonio dos Santos Reigota (UNISO)
Maria da Conceição Fonseca Silva (UESB)
Maria José de Rezende (UEL)
Maria Juracy Toneli Siqueira (UFSC)
Marilia Luiza Peluso (UNB)
Maurício Roque Serva de Oliveira (UFPR)
Norberto Olmiro Horn Filho (UFSC)
Paulo Pinheiro Machado (UFSC)
Rafael José de Menezes Bastos (UFSC)
Renato Kilpp (UFCG)
Tamara Benakouche (UFSC)
Walquiria Krüger Corrêa (UFSC)
Wilson Ferreira Coelho (USP)
Yan de Souza Carreirão (UFSC)

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