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Consciência e estranhamento
(Descartes e a psicologia da dúvida – Parte II)
Olavo de Carvalho
Esta aula de 1998, transcrita por Fernando Manso e revista por Luciane Amato (responsável
também pelas notas assinaladas N. R.), já deveria constar desta página faz muito tempo, pois
a considero essencial para a compreensão do meu modo de enfocar a filosofia
moderna. Simplemente esqueci de enviá-la ao webmaster. Continuação de Descartes e a
psicologia da dúvida , ela passa da análise lógica da estrutura da dúvida metódica à
análise existencial da dúvida metódica como experiência vivida, levando, passo a
passo, a conclusões surpreendentes, mas, creio eu, exatas. É claro que ainda pretendo dar-lhe
uma redação final, com correções, mas a transcrição não pode mais ficar fora do alcance dos
meus alunos e dos demais visitantes desta homepage. - O. de C.
1. Revisão do itinerário
Examinei na parte anterior o passo inicial da filosofia de René Descartes, a dúvida metódica,
que muitos, entre os quais Husserl, consideram também o passo inicial de toda a filosofia
moderna. É ele que inaugura realmente um estilo de enfoque filosófico que se tornou
dominante do século XVII até hoje. (1) Esse estilo é marcado pela idéia da dúvida preliminar,
de que nenhuma verdade será aceita sem que haja razões suficientes para aceitá-la. Dessa
proposta nasce toda uma linhagem de pensadores cujo último e mais ilustre representante
será Edmund Husserl, o qual, numa série de conferências feitas no Collège de France, que
depois receberam o título de Meditações Cartesianas, afirmou explicitamente que a dúvida
metódica é o começo obrigatório de toda e qualquer filosofia. O primado da dúvida é tido
assim como uma coisa tão óbvia, que não é nem preciso declará-lo: praticamente a filosofia
moderna está identificada com o exercício preliminar da dúvida metódica, ou com aquilo que
Mário Ferreira dos Santos chamava a suspicácia preliminar, uma atitude de suspeita perante
quaisquer afirmativas que tenham pretensão à verdade.
Na seqüência de pensamentos que resume sob o título Meditationes de Prima Philosophia,
René Descartes começa, como todo mundo sabe, por rejeitar todas aquelas verdades
costumeiras que lhe tinham ensinado desde a infância, nas quais ele não visse um fundamento
suficiente.
Ele notava, por exemplo, que os cinco sentidos, nos quais geralmente acreditamos, não são
fundamentos de si mesmos, quer dizer, não trazem consigo a prova das informações que nos
dão. Ele usa, para impugnar a confiabilidade dos sentidos, uma série de argumentos que, na
verdade, não são dele, que são bem antigos, que são da escola pirrônica, e que consistem em
alegar os enganos costumeiros dos sentidos -- a famosa história do pau que, posto na água,
parece quebrado, ou o efeito da perspectiva que dá a ilusão de que as coisas mais distantes
são menores do que as que estão perto. São esses erros ou enganos comuns dos sentidos que
nos mostram, então, que os sentidos podem ser uma fonte de conhecimento, mas não uma
fonte segura. Ademais, existe o fato de que durante o sonho também temos sensações e nem
sempre temos a prova de que o sonho é apenas sonho. Se não temos a prova de que o sonho
é sonho também não temos a prova de que a vigília seja vigília, e assim por diante.
Em seguida, Descartes faz a crítica da memória, dizendo que esta também falha, e o que ele
faz com a memória faz também com a imaginação e, enfim, com todos os seus pensamentos
habituais e as com as crenças do senso comum.
Descartes vai derrubando tudo isso, sempre em busca de qual seria o ponto arquimédico, o
ponto seguro que poderia servir de fundamento à construção de um sistema válido de filosofia.
Não importando agora quais tenham sido as conclusões a que ele chegou, é esse movimento
de negação inicial que é considerado por Husserl o paradigma do movimento filosófico como
tal.
O que fiz no § 1 foi examinar o ato da dúvida metódica, porque Descartes descreve apenas as
conclusões a que foi chegando no exercício da dúvida metódica, mas não faz em nenhum
momento a descrição do próprio estado de dúvida. Se é para fazermos um exame radical do
assunto, então, não podemos saltar essa etapa: temos de nos perguntar o que acontece,
efetivamente, quando estamos em dúvida. Que é estar em dúvida, concretamente falando? A
definição de dúvida todo o mundo conhece, mas só o suficiente para reconhecê-la quando
aparece no exercício real do pensamento, não o bastante para descrevê-la em sua estrutura
interna. Então, é esta pergunta que me faço: qual é a estrutura ontológica, a estrutura real do
ato de duvidar? Vimos em primeiro lugar que a própria conclusão que René Descartes vai
extrair desta parte do exame -- que, enquanto estamos duvidando, não podemos duvidar de
que duvidamos, e que, portanto, o próprio ato da dúvida seria a primeira certeza filosófica
inabalável --, também não é inabalável, porque, se a dúvida é uma alternância entre duas
convicções contrárias, ela não apenas admite a dúvida a respeito de si mesma, mas a exige,
quer dizer: não podemos ter propriamente a “certeza” de que estamos em dúvida. Por que?
Porque estar em dúvida é oscilar entre duas certezas. Se no momento em que pensamos uma
das alternativas, não temos nem uma certeza aparente dela, e ao instalar-nos na outra
também não temos essa certeza, então não estamos em dúvida, porque já negamos as duas.
Então, no momento em que uma das alternativas é pensada, ela não é pensada como dúvida,
mas como uma certeza temporária, que em seguida é destruída pelo confronto com a hipótese
contrária. Portanto, a dúvida não é um estado, a dúvida é a impossibilidade de permanecer
num estado e por isto mesmo ela tem um caráter proliferante que se alastra sobre si mesma.
No fim das contas, não é possível alguém duvidar sem duvidar de que duvida, porque, se a
certeza fosse excluída do horizonte, não existira mais dúvida, existiria simplesmente a
negação. (2)
Em seguida, examinei os outros componentes da dúvida, no seguinte sentido: Quais são as
condições reais necessárias para que o indivíduo esteja em dúvida, no sentido cartesiano da
coisa? Quais são as crenças que estão pressupostas no próprio ato de duvidar? Este exame,
então, é um exame da estrutura lógica da dúvida, que vou completar, neste § 2, com o exame
da estrutura existencial da dúvida. Um tempo considerável foi necessário para que eu saltasse
do primeiro exame ao segundo; porque estas questões são realmente complicadas.
O exame da estrutura lógica da dúvida mostrava quais são os pressupostos lógicos sem os
quais a própria dúvida não é possível (refiro-me à dúvida cartesiana, à dúvida radical, é claro,
não à dúvida vulgar). Um deles é a própria continuidade do eu entre a pergunta e a resposta.
René Descartes diz que o famoso “penso, logo existo” não é um raciocínio, mas um ato
intuitivo. Quando ele afirma: "Eu não posso duvidar de que duvido no momento em que estou
duvidando", diz ele que isto não é uma conclusão lógica, mas um ato intuitivo, uma percepção
instantânea. Porém, essa percepção, ainda que seja instantânea, se refere ao mesmo eu que
estava duvidando antes. Portanto, existe aí uma continuidade do eu no tempo que transcorre
entre essas duas vivências: o estado de dúvida e a certeza intuitiva da dúvida. Não que esta já
não esteja contida potencialmente no primeiro estado, mas o fato é que ela só se atualiza na
consciência após o recuo reflexivo, o giro da atenção que se desvia do objeto inicial da dúvida
para a dúvida mesma enquanto estado.
Mas, de modo mais geral, toda dúvida, na sua própria estrutura lógica, pressupõe a
continuidade do eu entre a primeira alternativa alternativa pensada e a segunda alternativa
que a desmente. Por exemplo, tomemos uma dúvida teológica elementar: nada se cria do
nada, no entanto Deus criou o mundo do nada. Todo o mundo sabe que nada se cria do nada,
mas, pelo que está escrito na Bíblia, Deus criou o mundo do nada. Então, os teólogos têm de
se arranjar com esse problema e discutiram isso durante séculos. Ora, se tenho uma dúvida a
respeito é porque vejo aí uma contradição, e se vejo a contradição é porque vi duas hipóteses
contrárias, e eu permaneci o mesmo enquanto via a primeira e enquanto via a segunda.
Portanto, a continuidade do eu é um pressuposto da dúvida: não é possível ter uma dúvida
sem afirmar, no mesmo ato, a continuidade do eu.
Outro pressuposto da dúvida é a identidade do objeto a respeito do qual tenho a dúvida,
porque se digo uma coisa a respeito do objeto A e a coisa contrária a respeito do objeto B,
elas não se contradizem necessariamente e o confronto das duas afirmações não tem por que
suscitar dúvida. Só dois predicados contrários do mesmo sujeito podem contradizer-se. Se me
dizem que José é gordo, mas Antônio é magro, isso não é contradição, porém, se dizem que
José é gordo e magro, então entro em dúvida.
Além disso, a própria estrutura do raciocínio lógico também está pressuposta na dúvida. Se
não existe princípio de identidade, não tenho como formar a dúvida.
Também está pressuposta na dúvida a continuidade da língua na qual ela se transmite. Não
poderíamos arquitetar esse raciocínio todo sem o auxílio da língua, e essa língua,
evidentemente, sei que não a estou inventando no momento em que estou formulando a
dúvida, sei que estou usando regras de gramática que existem de antemão e que, se eu não
as tivesse recebido, também não poderia produzi-las na hora. Em suma, por baixo do ato da
dúvida, teoricamente uma dúvida radical que coloca tudo em dúvida, existe uma montanha de
certezas, portanto essa dúvida não é radical coisíssima nenhuma, é apenas um fingimento de
dúvida radical.
Se a dúvida metódica não é uma dúvida radical, mas já um produto ou uma dedução de uma
série de certezas anteriores, conclui-se que também está errada a regra de Kant de que o
problema crítico do conhecimento é o primeiro problema, na ordem dos fundamentos da
filosofia. Nunca podemos começar com a crítica do conhecimento; a crítica do conhecimento
pode acontecer, sim, mas ela não pode ser o primeiro capítulo jamais, porque para poder fazê-
la é preciso dar por subentendida não apenas a existência do conhecimento que será objeto de
crítica (coisa que o próprio Kant reconhece), mas uma série de certezas nas quais se apóia o
próprio exercício da crítica.
2. Há um aspecto que não examinei ali, mas que tem sua importância. A pura e simples suspensão do juízo não pode ser identificada
com a dúvida: ela é antes uma superação psicológica da dúvida mediante um distanciamento da pergunta.
3. Neste sentido: [...] Pelo el hombre vive de verdades; admitir cualquier verdad, por relativa que sea, es reconocer que Intellectus
aedequatio rei; la mera afirmación ‘esto es esto’, ya presupone el principio de la unidad de conocimineto y ser [...]. BURCKHARDT,
Titus. Ciencia moderna y sabiduría tradicional. Madrid : Taurus, 1979, p. 102. (N.R.)
4. É claro que as palavras também nos resistem, mas sua resistência é mais sutil e só a sensibilidade literária treinada a percebe. Não
seria errado dizer que a capacidade literária consiste, em última análise, em consciência das dificuldades que a linguagem opõe ao
nosso intuito de usá-la para a auto-expressão, a descrição do mundo exterior e a ação sobre os demais seres humanos. Para o escritor,
sua língua de expressão é um ente real, dotado de identidade e quase que de vontade própria, com o qual ele tem de entrar em acordo
para que consinta em servi-lo. A língua, para o escritor, é uma realidade objetiva, distinta e às vezes hostil em relação aos estados
interiores que ele quer expressar com ela, ao passo que no não-escritor, em geral (e ressalvadas as exceções pessoais e profissionais),
língua e estados interiores se confundem numa mescla nebulosa.
5. Não apelemos preguiçosamente, neste ponto, ao "eu transcendental" de que falariam Kant e Husserl. Primeiro, porque ele é apenas
o ponto de observação mais privilegiado e mais poderosamente iluminante para o qual me retirei, sem sabê-lo, no instante em que
imaginava recuar para as trevas. Segundo, porque a mesma operação que se fez com o eu cognoscente natural se pode repetir com o
eu transcendental — e depois com quantos eus transcendentais se suponha existirem por cima dele —, sempre com o mesmo
resultado. (N.A.)
6. Nas artes, há o exemplo do maestro romeno Celibidache, que foi o maior maestro do mundo. Escutar algo regido por ele dá-nos a
impressão de que faltavam notas em todas as outras execuções. Celibidache, nos ensaios, estudava nota por nota e fazia com que seus
músicos as tocassem inúmeras vezes, para se certificar de que estas notas estavam exatamente no lugar certo com a tonalidade certa.
Foi alguém que, com toda essa meticulosidade, nunca quis ser famoso no show business, e que nunca permitiu que vendessem suas
gravações, as quais eram feitas somente para fins de orientação dos alunos. (N.A.)
7. Leszek Kolakowski, Husserl et la Recherche de la Certitude, trad, Philibert Secretan, Lausanne, l’Âge d’Homme, 1991.
8. Comentando a Ilíada, quando o eídolon de Pátroclo, aparece em sonhos a Aquiles, e se esvai como vapor quando este último tenta
abraçá-lo, Junito de Souza BRANDÃO, explica que: "[...] no Hades, a psiqué, o eidolon, é uma sombra, uma imagem pálida e
inconsistente, abúlica, destituída de entendimento, sem prêmio nem castigo [...]". (Mitologia grega. 1996, v. 1, p. 146). (N.R.)
9. Sobre o mesmo assunto, em outro lugar, o autor comenta: "[...] A doutrina cristã diz que não podemos dizer que o inferno é
somente um estado, é preciso aceitar que o inferno é uma região, um lugar. Mas em que sentido seria um lugar? É um lugar deste
mundo? Não pode ser, pois quando se fala deste mundo, se está falando na Terra, um lugar do universo. Então, é um legar onde você
não está de qualquer maneira, mas, sim em determinado estado. Se é um lugar, não pode ser no sentido espacial-terrestre. É um lugar
em outro sentido, e se é um estado não é um estado no sentido terrestre, é um estado do qual não se pode sair.
"Então, você foi remetido para o estado das possibilidades impossíveis e só pode existir como nostalgia de uma possibilidade perdida.
Este é o maior sofrimento das almas do inferno, porque elas não mais verão a Deus. Acabou. Você se lembra do tempo em que podia
ver, então, se lembra do tempo em que, sofrendo, tinha a esperança. Agora, você não tem mais a esperança, nem a recordação da
esperança, mas tem uma ausência onde houve esperança, onde houve algo que você não lembra mais o que é, que se chama
esperança. É uma dor infinita, algo que acontece fora da temporalidade, ou seja, você está no eternamente impossível.
"Por isso se diz que 'o inferno é pior que o nada', pois se fosse o nada, não aconteceria nada, mas acontece alguma coisa. No inferno,
você quer ir para o nada, porque isso seria melhor. No inferno você quer morrer, no entanto, como é que uma possibilidade negativa
pode morrer? Não pode. Essa possibilidade negativa é infra-existencial, de certa maneira [...]". (CARVALHO, Olavo de. Aulas
referentes ao cap. V do livro Ancients beliefs and modern superstitions de Martin Lings. IAL, abr. 1999). (N.R.)