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Nome da Mesa:
"As ilusões armadas" em questão: história, poder e sociedade no Brasil pós-64
Núcleo Temático Estudos Históricos
Coordenador da Mesa: Adriano Nervo Codato
Resumo
Esta comunicação discute a concepção implícita de ―poder‖ contida nos trabalhos de
análise histórica do jornalista Elio Gaspari a respeito dos governos militares no Brasil pós-
1964 (A ditadura envergonhada (2002) e A ditadura escancarada (2002)). Para o autor, dois
personagens foram preponderantes no período: os generais Geisel e Golbery. Segundo
Gaspari, ―fizeram a ditadura e acabaram com ela‖. Em nossa interpretação, essa hipótese,
que guia a narrativa histórica e dá sentido à extensa documentação inédita analisada, não
leva em conta os condicionantes estruturais da política e exagera o peso das variáveis
centradas exclusivamente na qualidade das lideranças políticas, nas escolhas racionais dos
atores e nos tipos de recursos que eles conseguem mobilizar, resultando a ação política das
interações estratégicas entre as ―elites‖.
Abstract
This paper discuss the implicit conception of "power" contained in the works of historical
analysis of journalist Elio Gaspari regarding the military governments in Brazil after-1964
(A ditadura envergonhada (2002) e A ditadura escancarada (2002)). For the author, two
personages had been preponderant in the period: the generals Geisel and Golbery.
According to Gaspari, "they had made the dictatorship and they had finished with it". In
our interpretation, this hypothesis, that guides the historical narrative and gives sensible to
the extensive analyzed unknown documentation, does not take in account the structural
constraint of the politics and exaggerates the weight of the variable centered exclusively in
the quality of the leaderships politics, in the rational choices of the actors and in the types
of resources that they obtain to mobilize. The action politics is then the result of the
strategical interactions between the "elites".
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Mapeando o passado recente: pressupostos da narrativa histórica sobre a política brasileira contemporânea
Abraham Kaplan
As qualidades dos livros são mais que evidentes. Destaque-se três aspectos,
começando pelo estilo narrativo, que os historiadores profissionais têm deixado de lado.
Elio Gaspari definitivamente conta uma história, ainda que faça questão de enfatizar que seu
objetivo nunca tenha sido escrever a história da ditadura militar brasileira, pois ―falta ao
trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de dois
personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram nos 21
anos de regime militar2‖.
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Adriano Nervo Codato
doze gravações em fita cassete); o Diário de Heitor Ferreira (dezessete cadernos), assistente
de Golbery no SNI (1964-1967), secretário de Geisel na Petrobrás e na Presidência da
República (1971-1979) com suas notas e observações entre 1964 e 19763; gravações secretas
(cento e vinte fitas cassete com cerca de duzentas e vinte horas) de conversas entre o
general Geisel e seus colaboradores feitas entre outubro de 1973 e março de 1974 4, além de
uma série de entrevistas com personalidades políticas (civis e militares) do regime militar e
da oposição liberal e de esquerda (PCB), que somavam aproximadamente cerca de 200
pessoas5.
Há, nesses dois enunciados, três proposições ―teóricas‖, ainda que implícitas, que
poderiam ser evidenciadas: a que informa a concepção de poder subjacente a esse tipo de
interpretação histórica; a que descreve uma certa modalidade de relação entre o(s) ator(es)
individual(ais) e a estrutura político-institucional; e a que representa, segundo um
entendimento específico, a forma ―disfuncional‖ de funcionamento das instituições do
Estado nos regimes políticos de exceção. O que se pretende neste paper é sugerir as
dificuldades que relevam dessa concepção implícita de poder e examinar certos
pressupostos da apresentação (e explicação) do processo histórico concreto. Pode-se assim,
por essa via, chamar a atenção para seus efeitos potenciais sobre o trabalho dos
especialistas em Ciência Política, Sociologia Política e História Política.
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Mapeando o passado recente: pressupostos da narrativa histórica sobre a política brasileira contemporânea
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Adriano Nervo Codato
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Mapeando o passado recente: pressupostos da narrativa histórica sobre a política brasileira contemporânea
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Olhados mais de perto esses processos derivam, a nosso ver, de três fontes
específicas:
Portanto, a consideração dessas três fontes de crise, fontes essas que derivam da
estrutura organizacional particular do sistema institucional dos aparelhos do Estado num
regime ditatorial-militar, põem em evidência a natureza estrutural e não-contingente do seu
caráter ―anárquico‖, além de permitir ler os outros dois problemas – a natureza do ―poder‖
e a questão do ―poder pessoal‖ – em nova chave interpretativa.
Notas
8
Mapeando o passado recente: pressupostos da narrativa histórica sobre a política brasileira contemporânea
6 A ditadura envergonhada, p. 13. Na série de resenhas que se seguiu à publicação dos dois primeiros volumes
houve uma predisposição dos analistas em descobrir e julgar mais as intenções do autor do que o sentido mais
geral do projeto. Assim é que, para comprovar o que se quer dizer, é suficiente avaliar os julgamentos
referidos a um aspecto particular de todo o trabalho: qual a imagem projetada do general Geisel para a
posteridade? E, nessa linha, qual o peso real das suas convicções, das suas ações e das suas omissões no
processo de ―abertura‖? Diante da primeira questão há duas interpretações opostas. Para ficar em poucos
exemplos: Marcelo Ridenti (Gaspari demonstra o sabido sempre negado. Folha de S. Paulo, 15 nov. 2003, p.
E3.) e Mario Maestri e Mário Augusto Jakobskind (A historiografia envergonhada.
http://www.espacoacademico.com.br/024/24res_gaspari.htm. Acesso em: 15 maio 2004) sublinharam a
simpatia do autor diante da sua personagem; Janio de Freitas (Passados esquecidos. Folha de S. Paulo, 30 nov.
2003, p. A5) e Mario Sérgio Conti (A tristeza de ―A ditadura derrotada‖. http://nominimo.ibest.com.br. 11
nov. 2003. Acesso em: 15 maio 2004) enfatizaram, ao contrário, que, todas as contas feitas, a exposição da
posição do general Geisel diante da tortura (como prática e enquanto ―sistema‖) revela, graças às transcrições
feitas, um Geisel mais sombrio que virtuoso. Mario Sérgio Conti lembrou a ironia de Delfim Netto diante
daqueles ―que se surpreenderam com a demonstração categórica de que Geisel apoiava a tortura e o
assassinato de opositores, bem como o desaparecimento dos seus cadáveres. ‗Ah, eu pensei que ele era um
democrata‘, disse Delfim‖ (ibid.). ―A imagem difundida de Geisel, antes ainda de ser ‗candidato‘ à sucessão de
Médici, era a de homem de princípios respeitáveis e rígidos. Os modos prussianos e seu silêncio favoreceram
a construção da imagem. Mas, sobretudo, consolidou-a depois da posse a crônica política da época, por sua
parte principal: tudo era interpretado como indicação de sentimentos e objetivos democráticos, humanitários
e éticos de Geisel, em contraposição à arbitrariedade geral em vigor desde 64. [...] esta versão, intocada até
aqui, não resiste às transcrições feitas em A Ditadura Derrotada. [...] Geisel enfim se torna portador do espírito
antidemocrático (e pior do que isso) que iniciou a ‗lenta, gradual e segura distensão‘ tangido por
circunstâncias mais fortes do que sua prepotência‖ (Janio de Freitas, ibid.). Sobre este ponto em especial, v. a
ascendência das preferências de Golbery (o ―Feiticeiro‖) sobre o ―Sacerdote‖ no andamento da política de
liberalização controlada do regime ditatorial-militar em: Plínio Fraga, Escritos do Feiticeiro. Folha de S. Paulo,
5 nov. 2003, p. E7; e Mino Carta, Deus, perdoai-o, não sabia o que fazia. CartaCapital, Ano IX, n. 218, 4 dez.
2002. Para o último, já a leitura do Ernesto Geisel (op. cit.) demonstrava ―que o protagonista não teve o mais
pálido entendimento quanto ao projeto traçado pelo conselheiro-mor, Golbery do Couto e Silva‖ (ibid.)
7 A ditadura envergonhada, p. 41, grifos meus. Para o coronel Jarbas Passarinho, note-se, a finalidade do projeto,
junto com seu argumento fundamental, revelam desde logo que a história do regime não é apenas contada
destacando dois personagens (Geisel e Golbery). É contada em função do ponto de vista do grupo político-
militar que representavam nas Forças Armadas. ―Pergunta: O senhor tem sérias restrições aos livros do jornalista Élio
Gaspari (da coleção "As Ilusões Armadas", sobre o golpe de 1964). A visão é equivocada? Resposta: Não, é altamente
facciosa, porque se baseou em cinco mil documentos que Golbery (general Golbery do Couto e Silva) deu a
ele. P.: O senhor leu os livros? R.: Vinte páginas. Os documentos do Golbery eram para denegrir Costa e Silva,
Médici etc. P.: Mas os livros foram elogiados. R.: Eu sou a voz de uma grande parcela do exército que não tem
espaço. P.: O senhor usou a expressão facciosa. R.: Sim, facciosa. Quem lê a história dele, lê segundo Golbery.
Gostaria que lesse segundo todos‖. Fernando Rodrigues, Março de 1964 – Entrevista: Jarbas Passarinho.
Jornal de Brasília, 28 mar. 2003.
8Marcelo Ridenti, ainda que não tenha desenvolvido o argumento, chamou a atenção para esse aspecto em:
A ditadura em questão: 40 anos do movimento de 1964 revisitados por Gaspari. Trabalho apresentado na VII
International Conference of the Brazilian Studies Association (BRASA). Pontifícia Universidade Católica. Rio
de Janeiro, RJ. Junho 9-12, 2004.
9 A ditadura escancarada, p. 14, grifos meus.
10 A ditadura derrotada, p. 15, grifos meus.
11A ditadura derrotada, p. 16, grifos meus. Os mecanismos que permitiram ao presidente Geisel atingir seus
objetivos estratégicos serão contados no quarto volume da série.
12 Heloisa Starling, Rastros do regime militar. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 10 maio 2003, p. Especial-
8.
13 Cf. POULANTZAS, Nicos. La crise des dictatures. Portugal, Grèce, Espagne. Paris: Seuil, s/d.
14 Id., ibid., respectivamente p. 35, 107, 55 e 109. As citações textuais são da p. 109. Para uma visão mais
sistemática, cf. em especial o cap. V: Les Appareils d'Etat.
15 Id., ibid., p. 146.
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