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INTRODUÇÃO

Qual será o sabor da crônica? Esse gênero literário muitas vezes pouco divulgado possui um
sabor peculiar, que você poderá apreciar nesse site da TV Cultura.

A idéia de produzir um site que tivesse a crônica como tema central surgiu a partir do
programa "Sabor da crônica", da Rádio Cultura FM. Nele, o jornalista Rodolfo Konder lê
crônicas de sua autoria, levando o ouvinte a refletir sobre acontecimentos passados e
presentes.

Agora, através do site "Sabor da crônica", você poderá degustar antigas e novas tendências,
conhecendo a origem e evolução da crônica, lendo textos de escritores consagrados e até
fazendo sua própria crônica!
A mesa está posta.

Escolha seu prato preferido e bom apetite!

A palavra crônica
deriva do Latim chronica, que significava, no início da era cristã, o relato de acontecimentos
em ordem cronológica (a narração de histórias segundo a ordem em que se sucedem no
tempo). Era, portanto, um breve registro de eventos.

No século XIX, com o desenvolvimento da imprensa, a crônica passou a fazer parte dos
jornais. Ela apareceu pela primeira vez em 1799, no Journal de Débats, publicado em Paris.

Esses textos comentavam, de forma crítica, acontecimentos que haviam ocorrido durante a
semana. Tinham, portanto, um sentido histórico e serviam, assim como outros textos do
jornal, para informar o leitor. Nesse período as crônicas eram publicados no rodapé dos
jornais, os "folhetins".
Essa prática foi trazida para o Brasil na segunda metade do século XIX e era muito parecida
com os textos publicados nos jornais franceses. Alencar foi um dos escritores brasileiros a
produzir esse tipo de texto nesse período .
Com o passar do tempo, a crônica brasileira foi, gradualmente, distanciando-se daquela
crônica com sentido documentário originada na França. Ela passou a ter um caráter mais
literário, fazendo uso de linguagem mais leve e envolvendo poesia, lirismo e fantasia.

Diversos escritores brasileiros de renome escreveram crônicas: Machado de Assis, João do Rio,
Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Henrique
Pongetti, Paulo Mendes Campos, Alcântara Machado, etc.

Ainda hoje há diversos escritores que desenvolvem esse gênero, publicando textos em jornais,
revistas e sites

A crônica é,
primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal. Este, como se sabe, é um
veículo de informação diário e, portanto, veicula textos efêmeros. Um texto publicado no jornal
de ontem dificilmente receberá atenção por parte dos leitores hoje.
O mesmo tende a acontecer com a crônica. O fato de ser publicada no jornal já lhe determina
vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições.

Há semelhanças entre a crônica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter,


o cronista se alimenta dos acontecimentos diários, que constituem a base da crônica.

Entretanto, há elementos que distinguem um texto do outro. Após cercar-se desses


acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos
como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não
contém.

Com base nisso, pode-se dizer que a crônica situa-se entre o Jornalismo e a Literatura, e o
cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia.

A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o
próprio escritor está "dialogando" com o leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma
visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista.

Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está
transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo a sua forma
pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam.

Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a


linguagem oral e a literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o
cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê

Adiante, você verá


algumas dicas para escrever sua própria crônica. Mas, caso você ainda não esteja muito
confiante, aqui vai uma atividade que pode ajudá-lo a observar melhor esse gênero literário.

"Escândalos derrubam financista japonês"

Essa manchete foi publicada no jornal Folha de S. Paulo no dia 23 de julho de 1991. Com base
nela, Ricardo Semler escreveu a crônica abaixo.

Crônica publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 28 de julho de 1991.

É de puxar os olhos

E o camarão se mexeu. O danado estava vivo! Posso parecer um pouco caipira, já tinha
comido peixe cru em restaurante japonês, mas cru e vivo, nunca! Foi só pegar no bicho com
os tais pauzinhos e vuupt, o camarão deu um salto de samurai de volta para o prato. E assim
progredia a visita ao Japão...
Descer no aeroporto de Narita leva à reflexão sobre o que incentiva milhares de nisseis a
abandonarem o Brasil à procura de uma oportunidade no Japão. Logicamente, ganhar dinheiro
verdadeiro é uma razão. Em vez de trocarem o seu esforço por uma moeda-piada do tipo
cruzeiro, cruzado ou cruz-credo, o conforto de botar alguns iens no banco e saber que ainda
estará lá quando for verificar o extrato. Até aí tudo bem. Mas fico pensando se o desespero é
parte vital da decisão e se os nossos nisseis sabem no que estão se metendo.
Esta semana foi interessante aqui. A primeira-ministra da França, Edith "menina-veneno"
Cresson, disse que os japoneses não sabem viver, que mais parecem umas formigas. O
pessoalzinho daqui ficou uma vara. Passados alguns dias, bomba em cima de bomba com
casos magistrais de corrupção nos mais altos níveis (ao leitor distraído reafirmo que estou em
Tóquio e não em Brasília). Começou com o Marubeni, acusado de desvios de propinas para
políticos. Aí, foi a vez da Nomura, a maior corretora de bolsa de valores do mundo, que andou
desviando dinheiro e dando propina para políticos. E, para finalizar a novela da semana, a
Itoman vê os seus executivos saírem algemados por envolvimento em - pasmem! - desvio de
fundos e propinas para políticos. E foram três casos totalmente independentes um do outro...
Rumar para o Japão à procura do pote de ouro do fim do arco-íris é uma ingenuidade. O Japão
é moderno, mas as suas tradições milenares desafiam qualquer análise ou compreensão
superficial. É a meca da inovação, mas é também o país que mais copiou produtos na história
industrial. Tem ares de liberdade de mercado, mas é uma das nações mais protecionistas e
paternais do globo. É líder em tecnologia em diversas áreas, mas só deixa japoneses legítimos
assumirem qualquer cargo de importância nas empresas. Fã do capitalismo livre, é mestre
inigualável de intervenção estatal e poupança forçada. É nação orgulhosa de sua raça, mas os
seus ídolos de comerciais não têm nem mesmo os olhos puxados, a exemplo de um comercial
muito popular por aqui com o nosso "acerera A-i-roton"! Aos nisseis que pensam em vir para
cá, cabe a mesma reflexão que vale para Nova Jersey ou Lisboa. Todas as nações têm muito a
ensinar, mas também muito a aprender. Nivelar as expectativas com os pés no chão fará com
que nossos imigrantes voltem algum dia ao Brasil para ajudar a desatolar o nosso país com o
que vivenciaram fora. É bom colocar tudo no prato para evitar, como no caso do meu camarão
rebelde, que se acabe comendo cru...

Texto extraído do livro


Embrulhando o Peixe - Crônicas de um Empresário do Sanatório Brasil. Ricardo Semler. Editora Best Seller. 2ª ed. São Paulo.
1992. p. 58 - 59.

Atividades com base na crônica

Com base na crônica e na manchete do jornal acima, tente realizar as atividades a seguir:

1) Quais são as idéias defendidas por Semler ao longo do texto? Tente fazer uma lista com
essas idéias.

2) Será que você tem a mesma opinião sobre esse assunto? Faça uma lista com as suas idéias.

3) Em que parte do texto Semler menciona o acontecimento que dá origem à sua crônica? No
início? Ao longo do texto?

4) Como Semler encerra sua crônica? Há alguma ligação entre a frase que encerra e a que
inicia a crônica?

5) O escritor estabeleceu alguma relação entre o Brasil e o fato ocorrido no Japão?

6) Qual o "recado" central que Semler quer dar com esse texto? Existe, na crônica, alguma
frase que sintetize essa idéia?

Muito bem! Você pode fazer exercícios como esse usando crônicas recentes, que são
publicadas em jornais e revistas.
Ricardo Semler
O empresário Ricardo Frank Semler nasceu em São Paulo, em 1959. Ficou bastante conhecido graças ao seu livro Virando a
própria mesa, no qual relata suas experiências ao propor uma gestão democrática em sua empresa. Foi eleito o empresário do
ano em 1990 e em 1992. Mais tarde, passou a escrever crônicas para o jornal Folha de S. Paulo, abordando assuntos
polêmicos de forma crítica e bem humorada.

Agora é a sua vez!

Ao ler crônicas, você conhece a visão de mundo daquela pessoa que escreveu o texto. Tão
interessante quanto isso é você mesmo tentar encontrar a sua forma de ver e questionar o
mundo ao seu redor. Como? Escrevendo sua própria crônica. Além de observar mais
atentamente as pessoas e situações que fazem parte do seu dia-a-dia, você estará exercitado
sua redação ao tentar construir textos claros e, ao mesmo tempo, criativos.
As etapas abaixo podem servir como um guia caso você esteja começando a se aventurar pelo
mundo da crônica. Com o tempo, você desenvolverá seu próprio processo criativo e o texto
surgirá de forma natural, sem que seja necessário seguir etapas definidas.

Etapas para escrever sua crônica:

1. Escolha algum acontecimento atual que lhe chame a atenção. Você pode procurá-lo em
meios como jornais, revistas e noticiários. Outra boa forma de encontrar um tema é andar,
abrir a janela, conversar com as pessoas, ou seja, entrar em contato com a infinidade de
coisas que acontecem ao seu redor. Tudo pode ser assunto para uma crônica.
É importante que o tema escolhido desperte o seu interesse, cause em você alguma sensação
interessante: entusiasmo, horror, desânimo, indignação, felicidade... Isso pode ajudá-lo a
escrever uma crônica com maior facilidade.

2. Muito bem. Agora que você já selecionou um acontecimento interessante, tente formular
algumas opiniões sobre esse fato. Você pode fazer uma lista com essas idéias antes de
começar a crônica propriamente dita.
Frases como as que seguem abaixo podem ser um bom começo para você fazer a sua lista:

"Quando penso nesse fato, a primeira idéia que me vem à mente..."


"Na minha opinião esse fato é..."
"Se eu estivesse nessa situação, eu..."
"Ao saber desse fato eu me senti..."
"Sobre esse fato, as pessoas estão dizendo que..."
"A solução para isso..."
"Esse fato está relacionado com a minha realidade, pois..."

Como você deve ter notado, é muito importante que o seu ponto de vista, a sua forma de
ver aquele fato fique evidente. Esse é um dos elementos que caracterizam a crônica: uma
visão pessoal de um evento.

3. Agora que você já formou opiniões sobre o acontecimento escolhido, é hora de escrever sua
crônica. Seu ponto de partida pode ser o próprio fato, mas esse também pode ser mencionado
ao longo do texto, como ocorre na crônica exemplificativa de Ricardo Semler.
Escreva! Pratique! E procure usar a criatividade para criar seu próprio estilo, pois é isso que
faz de um escritor um bom cronista.

Se você está
interessado em saber um pouco mais sobre crônicas, aqui vão algumas dicas de livros que
você pode consultar:

- A Crônica - O Gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Editora da UNICAMP. São
Paulo.

- A criação literária - Prosa. Massaud Moisés. Editora Cultrix.

- A crônica. Jorge de Sá. Série Princípios. Editora Ática

José de Alencar
Biografia

José Martiniano de Alencar (1829-1877) é um dos grandes nomes da literatura brasileira. Foi
advogado, jornalista, jurista, professor, orador, político, romancista, poeta e dramaturgo.
Escreveu livros que foram marcos do Romantismo brasileiro: O Guarani e Iracema. Escreveu
também algumas crônicas, que foram publicadas no Correio Mercantil em forma de folhetins,
chamados Ao Correr da pena. Mais tarde, esses textos foram reunidos num livro, que recebeu
o mesmo nome.
Na época de Alencar a crônica era um pouco diferente da que conhecemos hoje e parecia-se
muito mais com os folhetins publicados na Europa daquele período. Alencar escrevia textos
comentando fatos ocorridos durante a semana. Com isso, seu texto tinha dois aspectos: um
informativo, já que tinha a função de informar os leitores, e um literário, pois o escritor
desenvolvia um estilo próprio de escrever seus textos.

Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.

Rio, 19 de novembro

 Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às
semanas, como fêz com as horas, não me veria às vêzes em tão sérios embaraços para
escrever esta revista.

 Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas
passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e os
traços para desenhar o meu original.

 Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com uns dias
cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos do sol,
uma semana elegante de teatros e de bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas, de
olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.

 Vestiria a minha fada de branco com algumas fitas côr-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse
com tôda a graça e travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus instantes.

 Ao contrário, se fôsse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem
puros e serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de céu
azul e de estrêlas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha terra, de faces
côr de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.

 Então escreveria uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me


assim de meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria
como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae,
quarum pars parva fuit.

 É verdade que, quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu
procurar um tipo, um modêlo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher,
que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir para o
caso.

 Seu único aspecto (da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um
sermão; na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma
aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica que se
houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a discutir e
argumentar.

 Com efeito, só êste tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada,
a qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma dose de sol,
duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a população desta côrte da
febre de novidades que tem produzido a guerra do Oriente.

 Os antigos, porém, que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de
personificar a semana, e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e
voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.

 Aposto que já estais a rir dêste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são
êstes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que valham
a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.

 Ides ver. Em primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e
qual como as outras. Dêstes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão belos,
tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que vivificava a natureza. As
noites foram quase tôdas de inverno e de teatro.

 No Provisório estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que
devem disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público dilettante
está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar a nova
Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas belli causas.

 Em São Pedro de Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de
entusiasmo e um novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no
Brasil.
 Infelizmente as circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos,
não têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua arte,
que no nosso país ainda se acha completamente na infância.

 É a êste fim que deve presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar
saciada destês triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato
que todos reconhecem. Como ator, já fêz muito para sua glória individual; é preciso que agora
como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de
seu país.

 Se João Caetano compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que
outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns pequenos defeitos,
fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as boas lições do seu talento e a sua
experiência, verá abrir-se para êle uma nova época.

 O govêrno não se negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso
desenvolvimento moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram
engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o apoio e a
animação da imprensa desta côrte.

 Uma das coisas que têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a
que será condenado êste edifício, com o qual decerto se deve despender avultada soma. O
gôverno não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de criá-los, não havendo
elementos dispostos para êsse fim.

 Não temos uma companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena
onde se representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do
francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.

 Dêste modo ficamos reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se
não preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos tôdas as noites de representação, quer cante a
Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo é muito bom, visto que
não há melhor.

 Já algumas vêzes temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se
podem melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até um
elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter tomado de
reparar o edifício e iluminá-lo a gás.

 A polícia também tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis


que se iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam por
afugentar dêle os apaixonados da música de batuque.

 Não é, porém, ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se
esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma fábrica dessa
indústria lucrativa.

 O crime de moeda falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque
ameaça a fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador em
ter punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros falsificadores
bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.

 Todos os dias lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que
apregoam postiços de tôdas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes coisas.
 Entretanto imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para
casa uma mulher tôda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e
mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de
vestidos, onde tôda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria.

 Quando chegar o momento da decomposição dêste todo mecânico - quando a cabeleira, o


ôlho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando
sôbre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos
da indústria humana!

 Nem ao menos as leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra
aquêles que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que
cumpre reparar.

 Um homem qualquer que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis,
falsificada por êle, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aquêles que
falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à nossa custa.

 Deixemos esta importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não
temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o quadro de tôdas
as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do corpo, mas também muitas outras,
como um olhar falso, um sorriso fingido, ou uma palavra mentida.

 Demais, temos ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e
que interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua execução
para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que corremos todos os dias de
encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do hidrófobo.

 Afonso Karr levou dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil
medida de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e muitas vêzes
mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.

 Um dos maiores obstáculos que êle encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros
consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido das
palavras que profere.

 Assim, desde a antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o môdelo da
amizade.

 Êste consentimento unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do
homem. O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a tôdas as vontades
sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos pés de seu senhor e
caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama um amigo!

 Já se vê que o sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Tôdas estas vãs
declamações dos poetas sobre êsse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade,
dão uma bem mesquinha idéia do coração humano.

 Não é, pois, o prazer de possuir um autômato, que se move a nossa vontade, que pode
compensar um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos
indiferentemente.

Texto extraído do livro:


Ao correr da pena. José de Alencar. 2ª edição. Edições Melhoramentos. São Paulo. p. 87-92
Machado de Assis
Biografia

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é considerado o maior escritor realista do Brasil
e, provavelmente, o maior escritor da literatura brasileira. Nasceu numa família muito humilde
e, para ajudar a família, começou a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa
Nacional em 1856. De 1858 em diante escreve para diversos jornais importantes com
regularidade.
Dentre suas principais obras estão seus contos (O Alienista e A Cartomante estão entre os
mais famosos) e os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom
Casmurro. Foi o principal fundador da Academia Brasileira de Letras e o seu primeiro
presidente. A crônica brasileira moderna tem, em Machado de Assis, um dos seus principais
fundadores. Machado escrevia suas crônicas sob pseudônimos. Só 40 anos após sua morte é
que se descobriu o verdadeiro autor das chamadas Crônicas de Lélio.
Na crônica abaixo, Machado de Assis aborda com ironia a questão da abolição da escravatura,
que havia ocorrido no dia 13 de maio de 1888.

Crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888.

Bons dias!

 Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou
como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a
história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes
mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos,
mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e
quinhentos, e dei um jantar.

 Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni
umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito
de lhe dar um aspecto simbólico.

 No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a
taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito
séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira
devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era
um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

 Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés.
Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre
assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos
cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote.
Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais
nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que
a óleo.

 No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:


 - Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um
ordenado, um ordenado que...
 - Oh! meu senhô! fico.
 - ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste
imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu.
Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
 - Artura não qué dizê nada, não, senhô...
 - Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o
seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
 - Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou
sete.

 Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não
escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um
impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle
continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

 Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés,
um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo;
cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

 O meu plano está feito; quero ser deputado,e, na circular que mandarei aos meus eleitores,
direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família,
libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo
tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no
Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que
obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o
digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça
na terra, para satisfação do céu.

 Boas noites.

Texto extraído do livro


Obra Completa, Vol III. Machado de Assis. 3ª edição. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 - 491.

Olavo Bilac
Biografia

Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) é dos fundadores da Academia Brasileira
de Letras e o autor de nosso Hino à Bandeira. Foi jornalista e poeta. Fundou diversos jornais
que duraram pouco tempo. Sempre esteve muito envolvido com política, chegando a ser
perseguido e preso. É um dos principais representantes do Parnasianismo brasileiro,
merecendo destaque poesias como Via-Láctea, Profissão de Fé e O caçador de esmeraldas.
Bilac escreveu, também, diversas crônicas. Precisou, entretanto, simplificar bastante a
linguagem rebuscada que costumava usar em seus poemas e textos em prosa. Essa
maleabilidade de Bilac é um bom exemplo da adaptação que os escritores tinham (e ainda
têm) de fazer na hora de escrever crônicas a fim de tornar o texto mais descontraído e
simples.

Crônica publicada, provavelmente, no jornal Gazeta de Notícias.*

Menor Perverso
 É este o título, com que aparece em todos os jornais a notícia de um caso triste, - uma
criança de três anos assassinada por outra de dez, em condições que ainda não foram bem
tiradas a limpo. Diz-se que o "menor perverso" ensopou em espírito de vinho as roupas da
vítima e ateou-lhes fogo. Propositalmente? parece impossível... Mas nada é impossível na vida.

 O fato é que, consumado o seu ato de perversidade (ou de imprudência?) o pequeno fugiu, e
andou vagando pelas ruas, até que, já tarde, exausto, banhado em lágrimas, foi encontrado na
praça da República e conduzido para uma delegacia policial. E os jornais, terminando a
narração do caso triste, pedem quase todos, em quase unânime acordo de idéia e de
expressão, que "se castigue esse precoce facínora, cujos instintos precisam ser refreados".

 Que se castigue, como? Metendo-o na Correção? mandando-o para o Acre? fuzilando-o?

 A ocasião é oportuna para mais uma vez se verificar quanto estamos mal aparelhados para
atender às múltiplas necessidades da assistência social. Um criminoso de dez anos não é
positivamente um criminoso... Se é verdade que esse menino conscientemente praticou a
maldade de que é acusado, o nosso dever não é castigá-lo: é salvá-lo de si mesmo, dos seus
maus instintos, das suas tendências para o exercício do mal. Como? naturalmente, dando-lhe
uma educação especial, uma certa disciplina de espírito. Mas onde? É aqui que surge a
dificuldade, e é aqui que somos forçados a reconhecer que, se estamos muito adiantados em
matéria de politicagem e parolagem, ainda estamos atrasadíssimos em matéria de verdadeira
civilização...

 Já sei que há por aí uma Escola Correcional. Mas, ainda há pouco tempo, o que se soube da
vida íntima dessa escola serviu apenas para mostrar que, lá dentro, os pequenos maus, pelo
vício da organização do estabelecimento, estão arriscados a ficar cada vez piores. Tudo quanto
se refere à assistência pública ainda está por fazer no Brasil: asilos, escolas correcionais,
penitenciárias, presídios, não têm fiscalização efetiva. Só pensamos nessas casas de
beneficência ou de correção, quando um escândalo, dos que há dentro delas, faz explosão cá
fora, comovendo-nos ou indignando-nos. Então, há uma grita convulsa, um grande
espalhafato, um grande dispêndio de artigos pelas folhas e de atividade pela polícia; mas, logo
depois, tudo volta ao mesmo estado... à espera de novo escândalo.

 Tive muita pena da pobre criança de três anos, morta no meio de horríveis torturas. Mas
tenho também muita pena dessa outra criança, que uma brincadeira funesta (ou uma
inconsciente moléstia moral, perfeitamente curável) levou à prática de um ato tão cruel. Nesse
pequeno infeliz, que os jornais consideram um grande criminoso, há um homem que se vai
perder, por nossa culpa, - porque não lhe podemos dar o tratamento que a sua enfermidade
requer...

Texto extraído do livro:


Obra reunida. Olavo Bilac. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997. p. 737-738.

* No início do livro Ironia e piedade, que integra Obra reunida, Olavo Bilac escreve:
"Quase todas estas páginas foram publicadas na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. (...)" (Obra reunida, p. 715)

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