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Ética e educação

A formação do homem no contexto de crise da razão

Renato José de Oliveira


Universidade Federal de Juiz de Fora
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Introdução do cozidas em um caldo de desigualdades sociais


gritantes, degeneram em obsessões e fanatismos di-
A poucos anos do fim da década, vivemos uma versos, os quais querem afirmar suas verdades a
era de perplexidades e incertezas, ante-sala do novo partir da coação e do exercício da violência, pon-
milênio que se anuncia, repleto de desafios para os do sob risco constante os mais elementares direitos
educadores. Afinal, que papel cumpre a educação da cidadania.
em um mundo simultaneamente atravessado pelo Ser cidadão é poder apropriar-se dos bens so-
desenvolvimento técnico avassalador e pelo cresci- cialmente produzidos, é atualizar “todas as possi-
mento vertiginoso da fome e da miséria? Que sig- bilidades de realização humana abertas pela vida
nifica educar em um tempo em que a violência (po- social em cada contexto historicamente determina-
lítica, étnica, religiosa, esportiva) atinge escala pla- do” (Coutinho, 1994, p. 2). Tal possibilidade de
netária, tornando tênues as fronteiras entre civili- apropriação deixa de existir se no seio da socieda-
zação e barbárie? de se instala a competição exacerbada, expressa
Nesse contexto, múltiplas ações pedagógicas, pelo que aqui no Brasil se conhece por “lei de Gér-
muitas delas visceralmente antagônicas, se dão si- son”: querer levar vantagem em tudo.
multaneamente no dia-a-dia. No círculo familiar, O que sustenta essa “lei” é, sem dúvida, uma
nas salas de aula, nas ruas, nos morros, nas seitas razão de natureza pragmática, a qual se ergue so-
religiosas, nas gangues de jovens, nas torcidas orga- bre os escombros da chamada razão universal. Esta
nizadas, enfim, nos mais diversos espaços sociais, certamente teve no passado seus dias de glória, mas,
diferentes valores morais, éticos e políticos cons- segundo afirma Baudrillard (1995), em um mundo
tróem diferentes concepções de mundo e de homem. onde o que importa é o que aparece, não há mais a
Essas diferenciações — saudáveis em toda sociedade possibilidade de fazer a crítica racional dos valores
que se pretende democrática e pluralista —, quan- artísticos, morais ou políticos, já que o sistema tem

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a inesgotável capacidade de absorver qualquer crí- o que significa ser ético ou agir eticamente? No que
tica, convertendo-a em instrumento de reafirmação a ética difere da moral, se é que cabe a distinção?
de si mesmo. Na visão baudrillardiana, vivemos um Lalande (1993, p. 348) destaca que “histori-
tempo em que o aparente deixa de ser aparente pois camente a palavra ética foi aplicada à moral sob
tudo é na verdade superfície e imagem, o que per- todas as suas formas, quer como ciência, quer como
mite proclamar o fim da história. arte de dirigir a conduta”. No seu entender, cabe
Vendo o momento atual não como termina- então definir ética enquanto ciência cujo objeto são
lidade, mas enquanto transição marcada pelo fim os juízos de apreciação sobre os atos humanos, en-
da centralidade da razão, que não mais desempe- carados como bons ou maus. Como freqüentemente
nha o papel de guia seguro para as ações humanas, o juízo comum mistura as questões éticas com as
Maffesoli (1995) destaca o fenômeno do tribalismo. morais, o autor sublinha a importância de separar
Por não acreditarem mais nos grandes valores mo- as duas instâncias. Moral seria o conjunto das pres-
rais e espirituais pregados pelas religiões nem nos crições admitidas em uma época e em uma socie-
ideais democráticos perseguidos pela ação política dade determinadas, o esforço para que possa haver
coletiva, as pessoas se fecham em grupos ou seitas, conformação a tais prescrições, a exortação a segui-
os quais são capazes tanto de construir algum tipo las. Já a ética, agraciada com o galardão da epis-
de ação solidária como toda a sorte de fanatismos. teme, posto que é situada como ciência, deve pos-
Embora Maffesoli aposte no ajustamento dos diver- suir caráter mais genérico.
sos grupos ou seitas, em um processo de “cinestesia A maior generalidade da ética é sustentada por
social”,1 a crescente tendência à conversão do existir Kant (Vancourt, 1987), que situa como morais os
humano em instrumento exclusivo de realização de eventos que dizem respeito à conduta subjetiva e
fins particulares, de interesses concernentes a esta como éticos aqueles associados à moralidade incor-
ou aquela tribo, é sem dúvida preocupante. porada nas práticas e instituições de determinada
A discussão aqui projetada pretende, então, comunidade, fornecendo critérios consensuais para
suscitar questões capazes de contribuir para a re- que qualquer pessoa faça distinção entre bem e
flexão do educador dentro e fora da sala de aula, mal, entre justo e injusto, entre certo e errado. Para
visto que as questões éticas atravessam, nos mais Kant, aliás, uma norma moral pode ser generaliza-
diferentes níveis, o cotidiano das relações humanas. da e atingir a condição de norma ética, desde que
seja aplicável a todos os seres dotados de razão.
Ética: do esquecimento à notoriedade Esta, tomada enquanto princípio fundante das nor-
mas éticas, estabelece que agir eticamente significa
Alain Badiou (1995) assinala que certos termos orientar-se segundo máximas capazes de estabele-
eruditos, à semelhança de uma solteirona esqueci- cer as formas corretas de conduta. Tais máximas
da que repentinamente se torna a grande atração de são, na visão kantiana, normas estabelecidas pela
um salão de festas, têm às vezes o privilégio de ocu- faculdade do discernimento, que, tendo em vista o
par os espaço da mídia e da publicidade. Tal fenô- universal, institui regras para as situações particula-
meno se aplicaria, por exemplo, à ética. res. Assim, um juízo ético pode ser qualificado de
A despeito da referência pouco lisonjeira às sol- concreto quando engloba tanto a máxima univer-
teiras de mais idade, a questão levantada pelo autor sal, ou seja, o princípio genérico que norteia a ação,
merece ser apreciada. Antes, porém, cabe perguntar: quanto a regra particular, aplicável a cada situação
específica do viver humano.
1 Maffesoli faz aí uma analogia com o ajuste natural Já Maffesoli (1994) considera a moral instân-
das diferentes funções do organismo humano, processo que cia universal e universalizável. A Revolução Fran-
os médicos chamam de cinestesia. cesa teria sido um exemplo típico de movimento que

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difundiu uma certa moral, a burguesa, para todos. der sobre as massas, pois é capaz de produzir fascí-
A ética, por sua vez, estaria referida aos costumes nio, a autora faz uma análise do caso Collor, salien-
particulares, sendo tributária de grupos. Para Maf- tando que os meios de comunicação teriam atuado
fesoli a Máfia seria um bom exemplo de grupo cujo no sentido de produzir um simulacro de realidade
comportamento é condenado pela moral vigente na para crucificar o pecador (Collor) e perdoar o pe-
sociedade mas que possui uma ética própria, segui- cado, isto é, o projeto neoliberal em vias de implan-
da por seus integrantes. Ainda segundo esse autor, tação no Brasil. Ao saírem às ruas para pedir o im-
a entrada na pós-modernidade anuncia a saturação peachment, as massas teriam agido mais em função
do que se poderia chamar de moral universal, a qual de um espetáculo teatral (pintar a cara, vestir-se de
se faz acompanhar pelos particularismos éticos ca- preto etc.) do que em defesa dos ideais éticos e de
racterísticos das tribos. cidadania. As relações entre massa e mídia haveriam,
Ética e moral podem ser, portanto, tomadas então, fundado uma nova ética, corriqueira, descar-
enquanto instâncias intercambiáveis. Considerando tável, prática, assentada no princípio da emoção.
as raízes etimológicas dos dois termos, verifica-se que Se é essa a tônica do agir ético da atualidade,
o vocábulo grego ethos e o latino mos possuem sig- não é a Kant que se retorna, mas ao ceticismo de
nificados correspondentes, referidos à conduta e aos Hume, para quem não há possibilidade de legitimar
costumes humanos. Para os fins da discussão aqui racionalmente os juízos éticos, isto é, conferir-lhes
proposta, interessa trabalhar nos marcos do arca- o caráter de verdade. Se há regras a seguir, estas não
bouço conceptual kantiano, construído com base no derivam da razão mas dos sentimentos, sendo a uti-
que se convencionou chamar de razão universal. lidade o critério norteador de qualquer julgamen-
Enquanto instâncias generalizáveis, as normas to ético. Tal como não pode garantir no dia de ama-
éticas supõem, conforme foi dito, a clara distinção nhã o nascer do Sol, crença que nos é garantida pelo
entre os conceitos de bem e mal. Badiou (1995) re- hábito ou costume de observar cotidianamente o
lativiza esses conceitos: acaso a imagem do bem feita mesmo fenômeno, a razão é incapaz de formular
por um homem branco, ocidental, cristão é a mes- juízos éticos por ser “lenta em suas operações” e
ma feita por um muçulmano xiita? Ou em termos estar “extremamente exposta ao erro e ao equívo-
mais genéricos: as idéias de bem e mal são suficien- co” (Hume, 1939, p. 97-98).
temente óbvias para se imporem por sobre as di- Nessa perspectiva, é possível dizer que o retor-
ferenças culturais? no ao ético é mais um fenômeno produzido no ní-
Do ponto de vista da antropologia contempo- vel do discurso institucional (governos, meios de
rânea, o campo axiológico se acha fragmentado, comunicação, entidades civis, ONGs etc.) do que
revelando uma pluralidade infinita de sistemas nor- no nível dos interesses humanos, os quais estariam
mativos excludentes, cada qual possuindo sua va- marcados, neste final de século, pelo recrudescimen-
lidade específica, conforme o contexto cultural em to dos egoísmos, pela precariedade das políticas de
que é formulado. Nenhum deles é, portanto, melhor emancipação e pela multiplicação das violências
que o outro pois as culturas são incomensuráveis (Badiou, 1995).
entre si. A partir das considerações de Marrach e de
No cerne desse debate, como ficaria, então, o Badiou, cabe levantar, entretanto, uma questão:
problema do retorno ao ético enquanto modismo mesmo sendo modismo a ética deve, como todo
patrocinado pela mídia? Tratar-se-ia da revalori- produto posto à venda, visar a compradores. Como
zação da ética kantiana ou de pôr em evidência uma algo só é comprável se existe alguém potencialmente
ética assentada sobre outros princípios? disposto a comprá-lo, que disposições seriam essas?
Sonia Marrach (1993) aprecia com destaque Em outras palavras, a quais anseios concretos das
essa questão. Considerando que a mídia exerce po- massas o retorno ao ético estaria respondendo?

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Na medida em que a escalada mundial da vio- por exemplo, a saga edipiana permite vislumbrar a
lência atenta contra aquilo que todo indivíduo tem comunhão entre o apolíneo e o dionisíaco: Édipo tem
como fundamental, ou seja, o direito à própria vida, a sabedoria e com ela decifra o enigma que lhe pro-
a preservação desta se coloca como condição-limi- põe a esfinge; contudo, é justamente o saber que o
te. A partir daí é forçoso reconhecer a necessidade condena ao erro e à miserabilidade expressos pelo
de demarcar fronteiras entre um “bem” e um “mal”, ato de matar o pai e desposar a própria mãe. Só que
de sorte que a relativização extremada desses refe- o erro moral é inseparável do êxtase, constituindo-
renciais não pode ser admitida por conduzir a um se o prazer e a dor em sentimentos que se harmoni-
vale-tudo cuja conseqüência é nada mais nada me- zam no curso da existência humana: “tudo que existe
nos que a destruição da espécie humana. é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente
Portanto, se o retorno ao ético possui o cará- justificado. Isso é o teu mundo! Isso se chama um
ter de modismo, ele não se resume apenas a isso, já mundo!” (Nietzsche, 1993, p. 69).
que estão em jogo aspirações maiores que o simples A harmonia teria terminado quando Eurípedes
mercado de imagens sustentado na teatralização do introduziu na tragédia o prólogo, recurso explica-
agir cotidiano. Contudo, em que fórum pode se dar tivo cujo objetivo era racionalizar o drama. A par-
a demarcação das fronteiras referidas supra? Que tir daí, Nietzsche vê a derrocada do dionisíaco e o
dimensão do humano pode traçá-las? A razão uni- conseqüente triunfo do apolíneo, porém não é Apo-
versal? A emoção? lo quem fala pela boca de Eurípedes e sim um in-
Essas questões permitem constatar que o pro- térprete: Sócrates.
blema ético não pode ser suficientemente discutido Avesso a tudo quanto se ligasse ao irracional,
se for posto ao largo do que hoje se chama de crise Sócrates teria dirigido seu olhar retificador contra
da razão. as ilusões que mascaram a realidade, impedindo a
verdadeira compreensão das coisas. A pretensão
Crise da razão ou de um socrática era corrigir o mundo pela razão, desilu-
modelo de razão? dir o homem, ensiná-lo a se colocar no caminho da
verdade. Por trás do “sei que nada sei” haveria, no
Quando se fala em razão tem-se a idéia de que entender de Nietzsche, um projeto nada modesto:
esta se constitui em algo único, universal, capaz de fazer da razão, alçada ao patamar da universalida-
conservar-se incólume através dos tempos históricos. de, o grande guia da conduta humana.
Bem mereceria, nesse caso, ser chamada A Razão e O primado da razão teria então gerado a in-
respeitada como possuidora de estatuto divino. Con- felicidade, já que implica em renunciar ao aqui e
tra ela Nietzsche (1993) dirigiu sua crítica, identifi- agora, ao momentâneo, ao transitório, ao precário,
cando-a com a dimensão apolínea do existir, carac- aos desejos em função de um ascetismo intelectual
terizada pela busca da beleza, da clareza, da retidão fundado na busca da verdade. Como conseqüência
e da justiça. Para esse filósofo, enquanto divindade da cisão entre pensamento e vida surge “esse ho-
ética, Apolo exige dos homens o senso da medida e mem abstrato, guiado sem mitos, a educação abs-
o autoconhecimento, condicionando o belo a esses trata, os costumes abstratos, o direito abstrato, o
dois princípios. Todavia, a existência humana pos- Estado abstrato” (Nietzsche, 1993, p. 135).
sui outra dimensão, a dionisíaca, ligada ao êxtase, Essa crítica peca, entretanto, justamente por
à busca do prazer, às potências da paixão. Em dado considerar que uma mesma e única razão se impõe
momento, as duas dimensões opostas achavam-se no mundo ocidental, subjugando o homem há vários
harmonizadas, momento este representado, segun- séculos. Entretanto, como salienta Pessanha (1989),
do Nietzsche, pelo teatro trágico de Ésquilo (525- as racionalidades grega e moderna diferem substan-
456 a.C.) e de Sófocles (496-405 a.C.). Em Sófocles, cialmente. A razão grega não tinha os mesmos fun-

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damentos da razão moderna, construída sobre o pen- Para Chaim Perelman (1988, p. 21), a razão
samento científico dos séculos XVI e XVII, mas er- argumentativa, apoiada sobre as bases da retórica
guia-se, outrossim, sobre a palavra, sobre o argumen- clássica, declina a partir do século XVI com o ad-
to, o qual deveria convencer, persuadir. vento do pensamento burguês, “que generalizou o
O homem grego era eminentemente político, papel da evidência, quer se tratasse da evidência pes-
isto é, respirava a atmosfera da polis, caracteriza- soal do protestantismo, da evidência racional do car-
da, sobretudo no período clássico (séculos V e IV tesianismo ou da evidência sensível do empirismo”.
a.C.), pelos laços de philia (amizade) entre os cida- A razão moderna, tendo como um de seus pi-
dãos. A despeito da posição social ocupada, um ci- lares o cartesianismo, busca fundamentos nas evi-
dadão via o outro como semelhante (hómoioi), su- dências matemáticas. Afinal, para Descartes, Deus,
jeito de direitos e deveres. É certo que a condição o grande geômetra, criara o universo tendo por fer-
cidadã variava bastante de cidade para cidade, ha- ramenta básica a clareza dos números e das relações
vendo, como sublinha Aristóteles (1991), profun- geométricas, não a ambigüidade das palavras. O
das diferenças entre habitante e cidadão propria- método cartesiano exorta o homem a evitar o erro,
mente dito. Segundo o estagirita, o habitante não o qual pode ter origem na prevenção e na precipi-
fazia senão participar de um modo imperfeito da tação a que está sujeito nosso juízo. Tais atitudes,
vida da polis, seja por estar na condição de escra- certamente danosas ao espírito, ligam-se ao que é
vo, por ser estrangeiro ou por não possuir, como incorporado a partir dos costumes, os quais tendem
no caso do artesão, tempo livre suficiente para cul- a produzir falsos julgamentos:
tivar os ideais de civismo necessários à participação
Desse modo [...] passei a não crer com dema-
no governo. Os cidadãos, ao contrário, não se de-
siada firmeza em nada do que fora inculcado por in-
dicando às atividades servis, podiam participar das
fluência da exemplificação e do costume. E assim me
reuniões públicas (ekklesias) que deliberavam sobre
libertei, pouco a pouco, de inúmeros erros que podem
as questões de Estado.
obscurecer nossa lucidez natural e tornar-nos menos
Embora restritiva do ponto de vista humano,
capazes de entender a razão (Descartes, 1989, p. 57).
já que a condição cidadã não era desfrutada pela
maioria da população das cidades, a sociedade gre- Mas a razão moderna possui também outro
ga não via o ético e o político enquanto esferas se- pilar na ciência experimental, que tem por objeti-
paradas. Para deliberar sobre a justeza dessa ou vo dominar a natureza, colocando-a a serviço do
daquela questão, era preciso pôr em confronto as homem. O empirismo baconiano condena, então,
diferentes opiniões, sendo as controvérsias, além de a investigação filosófica por considerá-la construída
inevitáveis, sadias para o exercício da cidadania. A sobre alicerces frágeis, ou seja, por basear-se mais
razão que sustentava as deliberações possuía, por- na especulação que na coleta de dados em quanti-
tanto, natureza argumentativa, não cabendo dela dade e qualidade desejáveis para formular os racio-
exigir, conforme assinala Aristóteles (1992), a pre- cínios. A correta investigação é, para Bacon, a de
cisão de uma demonstração matemática. Em con- cunho experimental, que deve ser judiciosamente
seqüência, o discurso de um orador era construído dirigida, sob pena de se ver reduzida a um mero
sobre as ambigüidades da situação analisada, não tatear em meio à escuridão:
sobre as verdades intrínsecas das premissas que fun-
damentam os raciocínios científicos. Ele visava um Mas a verdadeira ordem da experiência [...] co-
auditório que iria escolher, após um período de re- meça por, primeiro, acender o archote e, depois, com
flexão, entre alternativas possíveis, como por exem- o archote mostrar o caminho, começando por uma
plo condenar ou absolver Sócrates do crime de cor- experiência ordenada e medida — nunca vaga e errá-
romper espiritualmente a juventude. tica —, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas,

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enfim, estabelecendo novos experimentos (Bacon, prio velho. Mesmo sem se arriscar a ditar “recei-
1973, p. 56). tas para os caldeirões do futuro”,3 Marx entendia
que a superação do capitalismo não era tão-somente
Os tempos modernos vão se caracterizar, en- uma questão de desejo mas conseqüência de uma
tão, pela confiança quase cega no progresso da ciên- lei do desenvolvimento histórico cientificamente
cia, vista não só como instrumento de dominação determinada.
da natureza mas também como redentora da hu- Feito esse breve panorama do processo de
manidade. Para os iluministas, somente uma razão construção das bases científicas da razão moderna,
alicerçada sobre as sólidas bases do conhecimento é possível compreender então por que a razão ar-
científico poderia arrancar o homem das trevas da gumentativa, centrada no domínio da opinião, do
superstição e da ignorância, em última análise res- provável, do plausível e não no campo das certezas
ponsáveis pela penúria e pelos flagelos sofridos por definitivas (Pessanha, 1989), foi sendo progressi-
boa parte do gênero humano. vamente desqualificada. Embora esse declínio não
Como as leis do mundo físico se achassem bem tenha implicado desaparecimento, representa, no
estabelecidas, permitindo o controle e previsão dos curso da modernidade, um evidente desprestígio
fenômenos naturais, o pensamento científico do sé- da argumentação enquanto instância capaz de in-
culo XIX busca agora estabelecer as leis do desen- tervir na busca de soluções para os mais diferen-
volvimento biológico e histórico-social. Surgem, tes problemas humanos.
pois, a teoria de Darwin sobre a evolução das es- Reivindicando o estatuto de universalidade, a
pécies, a qual abala significativamente as teses cria- razão moderna se declara, portanto, como a única
cionistas sustentadas pela religião, e o positivismo legítima, quando na verdade constitui apenas um
comtiano, crítico contundente da metafísica. Se a tipo de razão. Em conseqüência, com a crise dos
natureza possui uma ordem intrínseca que lhe con- ideais da modernidade,4 a razão moderna permite
fere funcionamento harmônico, para Comte a so- que sejam generalizadas contra outras formas de
ciedade lhe segue o exemplo. Quando o homem racionalidade as críticas dirigidas contra si. O ques-
abandonar as elucubrações estéreis, substituindo- tionamento empreendido por Nietzsche é então re-
as por formas positivas2 de pensar, compatíveis com tomado por autores pós-modernos, como por exem-
sua inteligência, haverá de encontrar essa harmonia. plo Maffesoli.
Embora contrários à visão de que a socieda- A abordagem maffesoliana da realidade huma-
de se constitua em todo harmônico, os pensadores no-social nega que exista uma verdade ou um “em
socialistas não se opõem à idéia de progresso. Marx si” por trás das ações humanas. O mundo é tão-
dirá, aliás, que este é movido pelos conflitos, pela somente espetáculo no qual o que acontece — jus-
necessidade de superação do velho por um novo que
nasce das contradições geradas no interior do pró- 3Segundo Konder (1992, p. 45), Marx acrescentou
esse comentário ao posfácio da segunda edição do primei-
ro volume de O capital, polemizando contra os discípulos
2 de Comte.
Para Comte (1978), o termo positivo possui várias
4 Conforme dito anteriormente, o esgotamento dos
acepções. Opõe-se ao quimérico (representado pelas elo-
cubrações teológicas e metafísicas), à indecisão (caracteri- ideais democráticos e da crença na emancipação coletiva
zada pelas dúvidas e pelos debates que não encontram so- seriam, no entender de Maffesoli (1995), sintomas caracte-
luções para as questões que se propõem a discutir), à ocio- rísticos do colapso do projeto da modernidade. A luta pela
sidade (vista como expressão de uma curiosidade estéril, que liberdade e pela transformação social é substituída pela
nada traz de proveitoso para o desenvolvimento do indiví- busca de “liberdades intersticiais” que se colocam como as
duo e da espécie) e à negatividade (ligada ao conhecimento conquistas possíveis no espaço social de atuação das múlti-
desordenado que nada constrói). plas tribos.

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tiça e injustiça, liberdade e opressão etc. — encon- Habermas (1990) assinala que, para ser total,
tra sua justificativa no próprio palco das ações hu- a crítica da razão feita por Nietzsche deve se colo-
manas e não em qualquer sistema normativo que, car fora dos horizontes desta última, projetando-se
apontando para um dever-ser, procure explicar des- a partir da dimensão dionisíaca do existir. Em con-
vios constatados. seqüência, não há outro caminho senão hipostasiar
Nessa perspectiva, os valores éticos se relati- o não-racional e o estético enquanto o outro da
vizam e o político se configura enquanto espaço de razão. Trata-se, assim, não do resgate da harmonia
representação teatral onde não há credulidade ou entre os contrários existente no espírito trágico es-
logro, apenas personagens cujos papéis não cons- quiliano (ou sofocliano), mas do afã de que Dioniso,
tituem simulacros, mas o próprio viver: qual Messias, venha redimir a humanidade sufo-
cada por séculos de racionalidade. A mesma matriz
É difícil opor um país real a um país político,
de pensamento serve também de apoio ao pós-mo-
não existem enganadores e enganados, mas uma ati-
dernismo de Maffesoli.
tude global que faz com que a lucidez não impeça o
Tendo claro que a crise da razão moderna não
investimento, ou mais exatamente uma situação que
representa a crise de toda a racionalidade, Haber-
faz com que a paixão tenha uma grande importância
mas busca retomar o projeto da modernidade, ven-
no funcionamento da razão, perturbando-lhe os efei-
do como alternativa a chamada razão comunicati-
tos (Maffesoli, 1986, p. 110-111).
va. Os pontos de contato e as diferenças em rela-
Ao afirmar que a imagística popular fala da ção à razão argumentativa serão apreciadas no pró-
precariedade, da finitude, do caráter efêmero da ximo tópico, em que se buscará situar a educação
realidade com muito mais pertinência que a razão, em relação à problemática até aqui discutida.
Maffesoli atesta a falência do projeto filosófico da
modernidade, decretando o triunfo da aparência No contexto de crise, qual
sobre a essência, do êxtase em relação à sobriedade, o papel da educação?
do dionisíaco sobre o apolíneo. Os esquemas ma-
croestruturais concebidos pela razão moderna com De acordo com Kramer (1993), a educação
o intuito de analisar o tecido social, como o po- pode ser tomada enquanto prática social à qual se
sitivismo e o materialismo histórico, não podem dar vincula determinada visão de mundo, transforma-
conta de um mundo caótico no qual os mais exóti- dora da realidade ou não. Considerando a dimen-
cos arranjos humanos se fazem e desfazem sem obe- são transformadora, a educação persegue, entre ou-
decer a princípios previamente estabelecidos: tros fins, promover o autoconhecimento do educan-
do enquanto ser pensante e construtor de sua exis-
As partículas elementares constitutivas da ma- tência subjetiva e histórico-social. Trata-se, então,
téria social, se nos permitem esta metáfora, formam de levar quem se educa a se posicionar criticamen-
configurações particulares que podem ser harmonio- te em relação à natureza, à sociedade, ao mundo e
sas ou absolutamente aberrantes, mas elas não obe- ao tempo em que vive.
decem a nenhuma outra lei, salvo aquela da sua di- Nos marcos de uma visão confirmadora do
nâmica própria, é essa dança nietzscheana que propor- existente, os processos educativos desenvolvidos
ciona o mais belo e o pior, é essa dança que proíbe a na família e nos primeiros níveis escolares levam
explicação causal e impede a imposição planificadora primeiro a criança a conhecer o que ela não deve
do controle social, da mesma maneira que proíbe o fazer. Segue valendo, como princípio geral, a nor-
julgamento moral num ou noutro sentido (Maffesoli, ma ética do senso comum: seu direito termina quan-
1986, p. 117). do começa o do outro. Caminhando um pouco
pelas sendas abertas por Badiou (1995), que não-

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ditos podem emergir desse dito popular? O outro, tudo; se perdermos, não perderemos nada, porque não
esse desconhecido anônimo, é alguém que poten- podemos ficar mais pobres do que já estamos.
cialmente me ameaça. Respeito-o, porque não que-
ro ser desrespeitado, não invado seu espaço por- Tendo em vista a complexidade das relações
que não quero ter meu espaço invadido, enfim, o humanas, é possível apostar no consenso como a via
que norteia minhas ações é uma série de nãos. A que resolve todos os problemas? Ou há domínios,
partir daí, o outro será tão mais reconhecido, quan- como a política, impensáveis sem o dissenso (Ran-
to mais se aproximar de minha imagem refletida cière, 1995)?
no espelho. É a mim mesmo que desejo respeitar, Na medida em que as ações políticas se desen-
não a um outro diferente de mim (Badiou, 1995, volvem na disputa pela vitória deste ou daquele pro-
p. 36). jeto ancorado em determinados sistemas de valo-
Nesse ponto, um desafio se coloca para a edu- res, há, sem dúvida, um auditório que deve ser con-
cação: há como superar essa ética do não-mal, cons- vencido, persuadido da justeza desse ou daquele
truindo as bases de uma nova ética? argumento. Conforme frisa Perelman:
Na medida em que o “bem” não é, como foi
Toda argumentação, qualquer que seja, propõe-
dito, um universal abstrato nem tampouco pode ser
se influenciar um auditório — no sentido amplo des-
relativizado a extremos que atentem contra a pró-
sa palavra, que engloba não apenas auditores mas tam-
pria existência humana, a questão central coloca-
bém leitores — e esse auditório não é uma tábua rasa,
da para a nova ética é como validar ou não um dado
antes já admite certos fatos, certas pressuposições,
conjunto de ações humanas. A razão comunicati-
certos valores e certas técnicas argumentativas (apud
va defendida por Habermas pretende atacar esse
Pessanha, 1989, p. 235).
problema, vislumbrando o consenso entre indiví-
duos, construído em um contexto de diálogo, en- Para a razão argumentativa, o importante é
quanto alternativa viável. Segundo Rouanet (1992), obter o aval do auditório e não alcançar o consen-
a interlocução se dá visando estabelecer critérios de so, o qual se configura em elemento circunstancial,
validade quanto a três proposições básicas: as re- transitório, precário, efêmero. Os fóruns de decisão
ferentes ao mundo dos objetos (proposições obje- que, entre outras questões, devem resolver o pro-
tivas), as referentes ao mundo social das normas blema da demarcação de fronteiras entre um “bem”
(proposições normativas) e as referentes ao mundo e um “mal”, não são, portanto, outros senão os
das vivências e emoções (proposições subjetivas). A diversos auditórios cuja persuasão é necessária.
diferença básica com relação à razão moderna é É cabível objetar que, ante as desigualdades
que, no agir comunicativo, não existe validação a sociais existentes no mundo de hoje, os diferentes
priori do que quer que seja: as verdades são cons- sujeitos do diálogo não disputam os auditórios em
truídas pela interação mútua dos indivíduos, cujo pé de igualdade, impondo por outros mecanismos
debate desembocará em soluções consensuais para seus pontos de vista. Isso mostra, porém, que não
as diferentes questões em jogo. só a argumentação mas o próprio solo argumen-
Endossando a proposta habermasiana — que tativo precisa ser construído. Se um dos interlo-
no seu entender tem o mérito incontestável de ofe- cutores possui meios para publicizar seu discurso
recer uma saída para a crise da razão moderna sem e o outro, não, já não há mais disputa: tudo passa
descambar para o irracionalismo —, Rouanet (1992, a ser simulacro, aparência, ilusão.
p. 347) resume bem seu espírito quando afirma: Educar para uma nova ética significa, pois, ter
consciência dessas limitações, não perdendo de vista
Mas, na dúvida, é preferível apostar em Haber- o fato de que o discurso ético, tal como ocorre com
mas no sentido de Pascal: se ganharmos, ganharemos o discurso filosófico, é construído em estado de per-

40 Mai/Jun/Jul/Ago 1996 N º 2
Ética e educação

manente tensão entre a contingência histórica e o KRAMER, Sonia, (1993). Por entre as pedras: arma e so-
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