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DEMOCRACIA VIVA 43

SETEMBRO 2009

Especial

Mudanças climáticas
Marcas de um novo tempo?
Debate sobre o pré-sal
O que esperar da COP 15?
Entrevista
Leonardo Boff
e d i t o r i a l
Dulce Chaves Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV

P or meio da sua revista, Democracia Viva, o Ibase busca intervir no debate


público, levantando problemas e abordando temas que ajudem na construção de um mundo socialmente
justo e ambientalmente sustentável. Um mundo radicalmente comprometido com a democracia, que
seja, ao mesmo tempo, solidário, diverso e igualitário.

Dessa vez, o tema central da revista é a questão ambiental ou, mais especificamente, a
questão climática. Relacionada com essa problemática, a Democracia Viva, de maneira muito oportuna,
traz, também, para o debate, as vantagens e os riscos que a exploração das reservas de petróleo do
pré-sal podem acarretar para o futuro do Brasil. Mas qual o futuro do nosso país? Ou melhor, qual
o futuro do nosso planeta?

Sem dúvida, ingressamos no século XXI com muitas dúvidas, grandes angústias e
poucas certezas. Sabemos, por exemplo, que a sobrevivência da humanidade está sob forte ameaça.
Sabemos, também, que a situação dramática em que o mundo se encontra hoje não é obra do acaso.
Ela é resultado de um modelo de desenvolvimento que, tendo como objetivo crescer e concentrar
riquezas, gerou profundas desigualdades sociais, injustiças ambientais, desrespeitou a vida, degradou
a natureza. Um modelo de desenvolvimento que, como enfatiza Leonardo Boff, na sua bela entre-
vista para esta edição, está pondo em risco a própria continuidade da espécie humana. Segundo ele,
“grande nomes da biociência não acham improvável que, no final deste século, a espécie humana
desapareça. (...) Quando a água chegar até o nariz, os governos, as empresas, enfim, todo mundo vai
querer mudar. O grande problema é acontecer tarde demais. Poucos sobreviverão na arca de Noé.”

De fato, a luta contra o relógio é grande e maior ainda é a angústia de não se ter
certeza se “ainda há tempo”. Por isso, mais do que nunca, é hora de agir. Em dezembro de 2009,
governantes de todo o mundo estarão reunidos em Copenhague. E o Brasil, por sua posição de país
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
3 ARTIGO Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
Justiça Climática, um direito 20040-916 Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
humano negado <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
Jean Pierre Leroy

10 DEBATE Conselho Curador


Sebastião Soares
Pré-sal em questão João Guerra
Célio Bermann Carlos Alberto Afonso
Sebastião Soares Nádia Rebouças
Antonio Barros de Castro Sonia Carvalho

26 ARTIGO Direção Executiva


Dilemas planetários e as Cândido Grzybowski
Dulce Pandolfi
negociações internacionais em Francisco Menezes
entrevista
mudanças de clima: perspectivas da
Leonardo Boff sociedade civil Coordenadores(as)
Rubens Harry Born e Esther Neuhaus Ciro Torres
Fernanda Carvalho
30 ARTIGO Itamar Silva
O Brasil e o futuro do clima – João Roberto Lopes Pinto
Luzmere Demoner
reflexões para Copenhague Moema Miranda
Carlos Minc Renata Lins
34 ARTIGO
Poderá a sociedade civil global
salvar Copenhague? DEMO C RA C IA VIVA
Graziela Tanaka ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral

38 INTERNACIONAL Diretora Responsável


Dulce Pandolfi
Inovações para a concepção
de modelo econômico viável Conselho Editorial
e sociedade duradoura Alcione Araújo
Debate Pierre Calame Cândido Grzybowski
Charles Pessanha
Pré-sal em questão Cleonice Dias
42 ENTREVISTA
Jane Souto de Oliveira
Leonardo Boff João Roberto Lopes Pinto
Márcia Florêncio
58 OPINIÃO IBASE Mario Osava
Mudar mentalidades e práticas: Moema Miranda
um imperativo Regina Novaes
Cândido Grzybowski Rosana Heringer
Sérgio Leite
64 ARTIGO
A saúde frente às mudanças Edição
Ana Bittencourt
Para apoiar os projetos ambientais e climáticas
desenvolvidos pelo Antonio Miguel Vieira Monteiro, Subedição
Carlos Corvalán, Christovam Barcellos, Jamile Chequer
Ibase, escreva para
Helen C. Gurgel, Marília Sá Carvalho,
amigos@ibase.br Paulo Artaxo, Sandra Hacon e Virginia Ragoni Revisão
ou telefone para Ana Bittencourt
70 ARTIGO Jamile Chequer
(21) 2178-9400.
Doações de pessoas
Apropriações sociais das Flávia Leiroz
mudanças climáticas Assistente Editorial
jurídicas podem ser Henri Acselrad Flávia Mattar
abatidas do Imposto
de Renda. 74 CRÔNICA Assessoria de imprensa
Alcione Araújo Rogério Jordão

76 ENTREVISTA-TESTEMUNHO Produção
O Ibase adota a linguagem Roberto Schaeffer Geni Macedo
de gênero em suas publicações Estagiário
por acreditar que essa é uma 82 ARTIGO
Diego Santos
estratégia para dar visibilidade Desmatamento e emissões de GEE
à luta pela equidade entre – Com este Estado e este modelo, Distribuição
mulheres e homens. Trata-se de não dá Elaine Amaral de Mello
uma política editorial, fruto de um Carlos Tautz
Projeto Gráfico e Diagramação
aprendizado e de um acordo entre Mais Programação Visual
os(as) funcionários(as) 86 Entrevista conjuntural
do Ibase. No caso de artigos Marcelo Furtado Foto de capa
redigidos voluntariamente Montagem sobre fotos da Nasa e de Jamile Chequer
por convidados(as), sugerimos 90 MATÉRIA
a adoção da mesma política. Crise ambiental, sociedade civil Impressão
J.Sholna Reproduções Gráficas
brasileira faz a sua parte
Os artigos assinados nesta Diego Santos
publicação não traduzem, Tiragem
5.150 exemplares
necessariamente, a posição 94 SUA OPINIÃO
do Ibase.
96 ÚLTIMA PÁGINA democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Jean Pierre Leroy*

Justiça
Climática,
um direito
humano negado 1

A injustiça climática tem como causas situações de desigualdade que se instauram entre

regiões e países do mundo e, dentro de cada região e cada país, entre grupos sociais,

consequências de um modelo de crescimento baseado, de um lado, na maximização do

lucro, e, do outro, em um modelo de produção e de consumo que, ao impactar de tal

modo o planeta, provocou a crise climática atual. Ao falarmos de injustiça, podemos

entender a crise climática não como um fenômeno natural, uma fatalidade que atingirá

indiferente e inexoravelmente na mesma proporção a todos. Na crise climática mundial


1 Este artigo deve muito ao
trabalho coletivo desenvolvido
operam mecanismos sociopolíticos que destinam a maior carga dos danos produzidos na Federação de Órgãos
para Assistência Social e
Educacional (Fase) com
Julianna Malerba, Maureen
pelas mudanças do clima a populações de baixa renda, segmentos raciais discriminados, Santos, Cecília Mello e no
Projeto Relatores Nacionais
em Direitos Humanos
parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da cidadania. Econômicos, Sociais e
Culturais (Dhescs), com Daniel
Em contrapartida, a Justiça Climática é entendida como o conjunto de princípios que Silvestre.

SETEMBRO 2009 3
artigo

assegura que nenhum grupo de pessoas, a cópia do modelo que supostamente deu
sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, certo, mesmo que, de agora em diante, ele dê
suporte uma parcela desproporcional de um impulso decisivo às mudanças climáticas.
degradação do espaço coletivo provocada
pelo câmbio climático, que compromete
Impactos potencializados
gravemente a qualidade de vida, inviabiliza
sua reprodução e o obriga a migrar. Nesse contexto geral, quais são os indícios
A injustiça climática se manifesta em de injustiça climática no Brasil? Não se tem
vários planos inseparáveis, em escalas mun- um quadro claro e consolidado da situação,
dial e continental, no interior de cada país porque os cientistas, no estágio atual das
e de cada região do mundo pesquisas, hesitam em atribuir às mudanças

Não se tem um e no âmbito local. No plano


mundial, os países industria-
climáticas as catástrofes que já assolam o
país, e até porque os maiores impactos es-

quadro claro e lizados estão reagindo muito


lentamente, e, provavelmente,
tão por vir. No entanto, não há dúvidas que
vários eventos que atingiram e/ou continuam
tarde demais. Se sua res- a afetar populações pobres são, pelo menos
consolidado da ponsabilidade esmagadora é parcialmente, consequências das mudanças
insofismável, sua vontade em climáticas.
situação, porque ajudar os países emergentes e Lembramos em particular de caiça-
pobres a enfrentar a crise cli- ras do litoral norte do Rio Grande do Sul e
os cientistas, mática não passa de discurso. de Santa Catarina, atingidos pelo furacão
Nota-se que, acompanhando Catarina; povos indígenas e populações tra-
no estágio atual seus governos, as populações, dicionais, vítimas da seca na Amazônia em
em sua maioria, tampouco se 2005; pequenos produtores que perderam
das pesquisas, interessam pelos destinos dos sua produção e são, muitas vezes, obrigados
países pobres. Há décadas que a abandonar sua roça devido a secas mais
hesitam em os países do “Norte” tinham- severas e repetidas no Sul e no Nordeste; chu-
-se comprometido a consagrar vas excepcionais que provocam, com maior
atribuir às 0,75% do seu Produto Interno frequência, catástrofes urbanas e rurais, que
Bruto (PIB) à ajuda ao desen- afetam principalmente as populações pobres.
mudanças volvimento. Estão, em geral, Quanto ao futuro, de um lado, os
bem longe dessa meta. cientistas já afirmam que as mudanças no
climáticas as Os Brics (o bloco Brasil, clima não serão todas progressivamente li-
Índia, Rússia e China) – e, den- neares. Haverá aumentos do nível dos mares,
catástrofes que tro dele, o governo brasileiro da temperatura e da desertificação, em parti-
em particular –, insistem, em cular, mas esses aumentos poderão acontecer
já assolam todos os encontros oficiais,
que a “responsabilidade co-
por saltos. Eventos climáticos extremos são
também característicos desses processos.
o país, e mum, porém diferenciada”,
consagrada nos tratados e nos
Estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa) apresentou2 uma
até porque debates da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre a
primeira avaliação sobre as consequências
que as mudanças climáticas poderiam trazer
os maiores temática ambiental, os exime
de responsabilidade imediata.
à agricultura no Brasil. Haverá um desloca-
mento considerável das áreas de produção
Deve-se, de fato, exercer uma da maioria das culturas.
pressão permanente sobre os A avaliação sobre o futuro da agricul-
países historicamente responsáveis, mas, tura no Nordeste é particularmente impres-
convenientemente, esses países e outros sionante. Sobraria para a região a cultura da
emergentes mascaram suas próprias res- mandioca, como para boa parte do Norte
ponsabilidades. Omitem que eles, governos, e do Centro-Oeste. Esse estudo não fala
com a quase totalidade do setor privado e dos agricultores, mas fica subentendida a
2 Embrapa e Unicamp.
Aquecimento Global e a com boa parte das suas sociedades, não condenação da maioria do campesinato que
Nova Geografia da Produção
Agrícola no Brasil, 2008. vislumbram outro desenvolvimento a não ser pratica agricultura familiar. Vale notar que a

4 Democracia Viva Nº 43
Justiça Climática, um direito humano negado

observação empírica mostra, por exemplo, o para com o meio ambiente e a minoração do
fracasso das culturas do café e do feijão em efeito estufa. Assim, juntam-se no fomento
áreas tradicionais de produção e já atesta às injustiças ambientais, e agora climáticas,
essas mudanças. O avanço da linha da maré o passado, o presente e o futuro.
causará grande impacto sobre as populações
de pescadores artesanais e coletores de frutos
Futuro promissor para quem?
do mar e do mangue que ainda resistem à
ocupação predatória do litoral. Populações O governo brasileiro apresenta-se mundial-
urbanas pobres, em particular do Recife e da mente como um exemplo de país em matéria
Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, mo- de cuidado para com o futuro do clima,
rando nas áreas de risco que lhes sobraram, graças, em particular, a sua matriz energéti-
serão as primeiras atingidas. ca, que tem na hidroeletricidade a principal
A falta de água ou sua disponibilidade fonte, e seus programas de agrocombustíveis.
irregular, que já é um problema para parte Paradoxalmente, essas soluções energéticas
da agricultura e para certas cidades, au- levam a numerosas injustiças climáticas. Às
mentará sensivelmente. Os problemas atuais injustiças provocadas pelo modelo atual vêm
(falta de planejamento, repartição desigual, se somar, agora, as causadas pelas soluções
favorecimento da agricultura intensiva sem oferecidas.
preocupação com o consumo de recursos O Movimento de Atingidos por Bar-
hídricos, contaminação e poluição das águas, ragens (MAB) calculava há alguns anos mais
destruição dos ecossistemas produtores de de 1 milhão de pessoas atingidas por bar-
água) serão amplificados. Desde já, novos ragens. Esse número não para de crescer. A
desafios se impõem para a saúde, em parti- condenação pelo Banco Mundial das grandes
cular com a migração de vetores transmisso- barragens já foi esquecida, e o governo bra-
res, a ampliação das zonas de endemias e o sileiro, sem prurido emocional, em nome do
aumento de epidemias. Enfim, sabemos que progresso, constrói e planeja monumentais
o aumento do número e da intensidade de barragens nos rios Madeira, Xingu e Tapajós.
catástrofes provocadas por eventos extremos Evitamos a capciosa discussão sobre o nú-
recairão com maior dramaticidade sobre mero de atingidos diretamente, que seriam
populações vulneráveis. poucos à escala do território. Na realidade,
Esses impactos sobre a população regiões inteiras serão afetadas, assim como
pobre não são fruto da fatalidade. É evidente milhares de pequenos produtores, extrati-
que a crise climática afetará a todos, mas não vistas, pescadores e povos indígenas que
é por acaso que certos grupos populacionais sofrerão um terremoto em suas vidas, mesmo
sofrerão mais que outros. A longa história de que não sejam submergidos.
marginalização social, econômica, política e Faz tempo que Tucuruí foi construída
espacial/territorial dos subalternos prosse- e que os empregos da obra sumiram, mas
guirá com um novo capítulo. E esse passado ficaram os destroços humanos desse tempo,
potencializará e multiplicará os impactos que trabalhadores desempregados, pescadores
sofrerão, bem como dificultará as estratégias sem peixe, agroextrativistas sem terra nem
e as ações de mitigação e de adaptação que floresta. Em contraposição às grandes bar-
lhes permitiriam sair da condição de vítimas ragens, as Pequenas Centrais Hidroelétricas
anunciadas. (PCHs) são apresentadas como ambiental e
O desenvolvimentismo ora em curso socialmente corretas, tendo pouco impac-
permite, particularmente por meio do Progra- to. Não é o que pensam os atingidos e os
ma Bolsa Família, reduzir a miséria absoluta. ambientalistas. São dezenas de barragens,
Porém, o aumento de empregos e de geração sobretudo em Mato Grosso, Minas Gerais
de renda que lhe é associado não muda sig- e no Sul, já existentes ou em projeto, de-
nificativamente o quadro de desigualdade. E, nunciadas por ameaçar a sobrevivência de 3 Governo Federal. Comitê
Interministerial sobre
agora, com o Plano Nacional sobre Mudança comunidades rurais e de povos indígenas, Mudança do Clima. Decreto
do Clima (PNMC)3, tenta-se, em um exercício além de condená-los ao desaparecimento. nº 6.263, de 21 de novembro
de 2007. Plano Nacional
de funambulismo às cegas, equilibrar este Os agrocombustíveis – etanol e bio- sobre Mudança do Clima
(PNMC), Brasil. Brasília,
mesmo “desenvolvimento” com os cuidados diesel – teriam vários méritos, além de sua dezembro de 2008.

SETEMBRO 2009 5
artigo

função climática: incrementar a pauta de oscila entre desenvolvimento e preservação,


exportação do agronegócio, aumentar o mesmo que o pêndulo se incline para o
prestígio internacional do Brasil, fornecer aprofundamento do modelo atual, a maioria
numerosos empregos no campo. É verdade no Congresso demonstra, quase que diaria-
que o governo tenta envolver a agricultura mente, sua opção pelo agronegócio.
familiar na produção de biodiesel. Esses As escolhas produtivas e econômicas
esforços, por enquanto, não produziram que a chamada bancada ruralista, apoiada
resultados significativos. Em compensação, pela maioria, defende vêm acompanhadas
os sojicultores encontraram na produção de um ataque permanente à legislação am-
de óleo de soja para fins energéticos uma biental e às populações indígenas, quilom-
complementação à renda dada pela venda bolas e camponesas que possam apresentar
da soja em grãos e do farelo contenção às suas pretensões totalitárias de
Seria demais e prepara-se na Amazônia a domínio do território e da economia rural.
expansão da cultura do dendê Formam um bloco com o poderoso campo
esperar que – até agora reduzida a poucas de forças unido para viabilizar a maior quan-
áreas do Pará. Com o óleo de tidade possível de obras destinadas ao forne-
um plano dendê, seriam atingidos dois cimento de energia. Assim, o jornal O Globo,
objetivos do PNMC: contribuir de 14 de junho de 2009, pôde intitular um
governamental para o “aumento da partici- artigo “Energia de sobra à espera de obras”,
pação das fontes renováveis e tendo como subtítulo “Questões ambientais
sobre mudanças energias limpas” e para a pro- ou indígenas reduzem em 20% capacidade
moção da “produção florestal de geração no Brasil”.4 Não há mais gente,
climáticas, sustentável (madeireira e não
madeireira) comunitária e em-
somente questões burocráticas. Essa aliança
se estende até a indústria brasileira e grandes
na conjuntura presarial”. O plano prevê pas-
sar de 5,5 milhões de hectares
conglomerados estrangeiros, pois a energia
amazônica interessa mais à produção de
atual, tivesse de plantações de árvores para
11 milhões em 2015, dos quais
alumínio, à siderurgia e a outros setores
importantes da economia internacionalizada
um capítulo 2 milhões de espécies nativas.
Com o dendê, as plantações
do que à região.
Seria demais esperar que um plano

sobre a Justiça de pinus e de eucalipto para


a indústria papeleira ganham
governamental sobre mudanças climáticas,
na conjuntura atual, tivesse um capítulo so-

Climática, pois o um amargo título de nobreza


como protetoras do clima.
bre a Justiça Climática, pois supõe-se que o
desenvolvimento traga benefícios para todos.
Já foi observado e am- A insensibilidade não é total, como mostra
desenvolvimento plamente denunciado o efeito essa citação do PNMC, mas é justamente
perverso do boom do etanol esse desenvolvimento, agora chamado de
é suposto da cana-de-açúcar. Ela provoca sustentável, que salvará “os que sobram”
o deslocamento da pecuária da catástrofe:
trazer benefícios para terras mais baratas da
Amazônia. No Nordeste, ela De forma geral, as populações mais
para todos ressuscita empresas falidas, pobres e com piores índices de desen-
paralisando a implantação de volvimento são as mais vulneráveis à
assentamentos na região. É um mudança do clima, a qual vem inten-
triste paradoxo ver que essa sificar problemas ambientais, sociais e
ocupação crescente do território, destruidora econômicos já existentes. A adaptação
da biodiversidade e da população que ainda passa, portanto, por promover melhores
resiste no campo e na floresta, agora se dá condições de moradia, alimentação, saú-
em nome de “nosso futuro comum”. de, educação, emprego, enfim, de vida,
Nesse panorama, essas populações levando em consideração a interação
minoritárias dentro de um Brasil urbano e entre todos os aspectos e características
4 PAUL, Gustavo. Energia
de sobra à espera de obra. suburbano, impregnado pela ideologia do locais, inclusive as ambientais. É consenso
O Globo, Rio de Janeiro, entre os estudiosos que a promoção do
14 jun. 2009. Economia. desenvolvimento, pesam pouco. Se o governo

6 Democracia Viva Nº 43
Justiça Climática, um direito humano negado

desenvolvimento sustentável é o modo dos direitos não é acompanhada de uma


mais efetivo de aumentar a resiliência à aplicação tão progressiva quanto legislações,
mudança do clima. pactos e declarações internacionais e nacio-
nais poderiam deixar a entender. Guerras
Se a voz geral da nação, pela voz do
localizadas, ações contra o terrorismo, fe-
Executivo federal, dos congressistas e da
chamento de fronteiras aos migrantes, pre-
opinião pública abalizada, clama por desen-
domínio das regras comerciais ditadas pelo
volvimento, como o grito abafado das popu-
neoliberalismo sobre as legislações nacionais
lações urbanas e rurais, dos povos indígenas
etc. indicam que estamos em uma fase de
e das populações tradicionais, de mulheres e
regressão dos direitos.
de jovens sem perspectivas de futuro se fará
Em termos genéricos, os Dhescs são
ouvir? Como transformar sua aspiração por
reconhecidos, mas com a ressalva de que são
justiça em conquista de direitos?
ideais a perseguir e que sua aplicação depen-
Em 1986, a Assembleia Geral da
de das condições dos Estados em realizá-los.
Organização das Nações Unidas promulgou
Na prática, são frequentemente negados. É
a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvi-
assim que o Fórum Mundial da Água, com
mento na qual afirmava:
participação predominante das empresas e
[...] todos os direitos humanos e as dos governos, se recusa a reconhecer a água
liberdades fundamentais são indivisí- como um direito humano. Tem-se a sensa-
veis e interdependentes, e que, para ção de que o direito ao desenvolvimento,
promover o desenvolvimento, devem proclamado pela ONU, mascara os direitos
ser dadas atenção igual e consideração fundamentais.
urgente à implementação, promoção Às catástrofes humanas provocadas
e proteção dos direitos civis, políticos, por guerras ou por eventos ambientais
econômicos, sociais e culturais[...] (furacões, tsunamis, enchentes, erupções
(Introdução) vulcânicas, secas etc.) responde-se com ajuda
humanitária, sem menção a direitos. Não se
O direito humano ao meio ambiente,
pode deixar morrer de fome, de sede e de
não mencionado, não estava então reconhe-
miséria centenas de milhares de pessoas em
cido, o que faria a Constituição Brasileira dois
campos de refugiados, mas a ajuda mínima
anos depois:
que chega não questiona as responsabilida-
Todos têm direito ao meio ambiente des além do imediato, de tal ou tal fatalida-
ecologicamente equilibrado, bem de de, de tal ou tal guerrilha ou ditador. Pior
uso comum do povo e essencial à sa- que isso, as ajudas públicas são seletivas,
dia qualidade de vida, impondo-se ao conforme os interesses políticos dos países
Poder Público e à coletividade o dever dominantes, o que transforma, às vezes, a
de realizá-lo para as presentes e futuras ajuda humanitária em instrumento de poder.
gerações. (Art.225) Nesse contexto, é duvidoso que, no
plano internacional, haja um efetivo reco-
nhecimento dos direitos decorrentes da crise
climática. A situação não é muito diferente
Ajuda humanitária como
no plano nacional, já que se estima que o
instrumento de poder
progresso econômico seja a melhor forma
Se necessidades econômicas e razões de de avançar no cumprimento dos Dhescs.
Estado inspiraram e forçaram ao longo da Essa visão permeia o Plano Nacional sobre
história avanços na formulação e no reco- Mudança do Clima e é ela, provavelmente,
nhecimento dos direitos humanos, como nos que dispensa o plano de ter um capítulo
casos do fim da escravidão e das colônias, sobre Justiça Climática, dedicado às metas
há de se reconhecer que setores ponderáveis e ações de mitigação e adaptação voltadas
das sociedades industriais se sensibilizaram para as vítimas presentes e futuras.
com certas injustiças e o horror decorrente Não há lugar para o otimismo nem
suportado por povos, etnias e classes sociais. para o pessimismo niilsta. Os transtornos em
Infelizmente, a formulação no papel curso não anunciam o fim da humanidade,

SETEMBRO 2009 7
artigo

* Jean Pierre bem como a negação dos direitos humanos


Leroy não significa que o ideário da igualdade foi
Pesquisador da definitivamente enterrado. A desmoralização
Federação de Órgãos da política entre nós e sua redução a interes-
para Assistência Social
ses privados e/ou de classe joga a suspeição
e Educacional (Fase
sobre o projeto de desenvolvimento e de
Nacional), integrante
da Rede Brasileira de
sociedade proposto e implementado pelas
Justiça Ambiental elites. Portanto, há espaço e tempo para a
ação.

Dúvidas e alternativas
As inúmeras denúncias que chegam à Rede
Brasileira de Justiça Ambiental, da qual o como nas cidades, sempre há mais pessoas
autor deste texto é membro, evidenciam que investem na economia solidária, distan-
aquilo que quem está em contato com te da busca do lucro e, por isso, poupadora
os setores sociais mencionados aqui sabe: de recursos. A agricultura camponesa fami-
dentro do modelo de crescimento perse- liar e o agroextrativismo, quando encontram
guido, no que diz respeito às populações condições suficientes para sua reprodução,
urbanas conflagradas pelos riscos ambien- mantêm e produzem biodiversidade, água,
tais que sofrem, se parte delas é integrada cobertura florestal, tudo o que será precioso
à sociedade via emprego, outra parte, em frente às mudanças do clima. Já desenvol-
particular a juventude, não tem espaço na vem experiências de produção de energia
economia de mercado. local. Com a capacidade de produção
Por sua vez, as populações rurais- diversificada de alimentos, mostram que é
-florestais sobram. Não há lugar para elas, possível desenvolver o abastecimento local,
a não ser que cumpram alguma função que contribuindo, assim, com a economia de
sirva aos interesses dominantes. O campo energia em transportes de longa distância.
do agronegócio mostra que, para ele, tam- Na Amazônia, as populações tradicionais e
bém os quilombolas e os povos indígenas os povos indígenas são os últimos anteparos
sobram: ou desaparecem, se integrando, à devastação.
ou subsistem em reservas estreitas como Infelizmente para a humanidade, esses
testemunhos do passado. Olhando o que setores sociais e as soluções que apontam
acontece, pode-se concluir que o sacrifício são marginais. Um número crescente de
de uns é visto como necessário para o pro- cientistas e de formadores de opinião
gresso da maioria. Será mesmo? São esses considera que uma drástica mudança de
“sobrantes” meros restos do passado ou clima mundial é irreversível e que não há
têm algo a dizer sobre nosso futuro? outras soluções a não ser a “artificializa-
O enfrentamento das mudanças climá- ção” do planeta por meio da tecnologia. É
ticas deve se dar em duas direções: 1) na extremamente preocupante, não só porque
reconexão da economia ao planeta, paran- se entreabre uma porta para a ação de
do de consumir mais território e recursos do aprendizes de feiticeiros, a exemplo dos
que o possível; e 2) no plano tecnológico, que ensaiam jogar nanopartículas de ferro
na busca de soluções frente ao inevitável. O no oceano para resfriá-lo; mas porque a
problema é que a primeira direção é abor- aliança entre ciência, tecnologia e empresas
dada sem que seja questionada a ideologia indica que são considerações de ordem
do desenvolvimento e do progresso. privada que orientam a busca de soluções.
Em contraponto, as populações mencio- Podemos daí augurar que a injustiça climá-
nadas ao longo do texto apontam para um tica entre países e entre classes sociais se
caminho. A uma economia devoradora de aprofundará.
recursos naturais e que somente se sustenta
se continuar a produzir sem parar novos
produtos, tanto na floresta e no campo

8 Democracia Viva Nº 43
SETEMBRO 2009 9
d e b a t e

O dilema do já presente
aquecimento global, e as mudanças
climáticas daí decorrentes, suscitam
entre especialistas um debate
urgente e necessário: o Brasil deve
investir esforços para aumentar
sua matriz energética a partir
de combustíveis fósseis? Essa seria
a solução mais ‘ambientalmente
responsável’ diante das
previsões sinistras apontadas
nos últimos relatórios do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC)?

Pré-sal
em Acreditando que debater e refletir
é sempre a melhor pedida antes
de qualquer solução, esta edição
da revista Democracia Viva traz,
a seguir, três análises de
especialistas no assunto:
do professor da USP, Célio Bermann;
do presidente do Conselho Curador
do Ibase, Sebastião Soares; e do
assessor do BNDES, Antonio Barros
de Castro. Esperamos, desta forma,
contribuir para que você, como
leitor(a) e cidadão(ã), também
participe desta reflexão e possa tirar
suas próprias conclusões.

10 Democracia Viva Nº 43
Agência Brasil

SETEMBRO 2009 11
d e b a t e

O petróleo
do pré-sal:
o meio
ambiente
esquecido
Célio Bermann
Professor livre-docente do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), coordenador da
linha de pesquisa Energia, Sociedade e Meio Ambiente
<cbermann@iee.usp.br>

A exploração pelo nosso país do petróleo da encontrado nessa área está a profundidades
camada do pré-sal tem ganhado um enor- que podem superar os 7 mil metros.
me espaço nos recentes debates. Mudanças Essa camada é resultado da decom-
no marco regulatório, criação de uma nova posição de materiais orgânicos situados no
empresa – Petrosal –, destinação da renda a mar fechado, se formou com a separação
ser auferida com a exploração e comerciali- dos continentes anteriormente unidos, e
zação do petróleo são, sem dúvida, questões que deram origem à América do Sul e à
importantes para uma ampla e democrática África. A gênese desse processo ocorreu há
discussão que se faz necessária. Entretanto, cerca de 110 milhões de anos, em condições
as consequências para o meio ambiente das ambientais que possibilitaram um acúmulo
atividades de exploração, desenvolvimento de matéria orgânica como algas e micro-
e produção que estão presentes na cadeia -organismos produzidos sob ação da energia
produtiva do petróleo do pré-sal estão abso- solar. Enquanto que a evaporação do mar deu
lutamente ausentes desse debate. lugar à formação de uma camada de sal, esse
O petróleo da camada do pré-sal con- material orgânico se entranhou abaixo dessa
siste em uma faixa que se estende ao longo de camada em uma feição geológica chamada de
800 quilômetros entre os estados do Espírito microbiólito, onde ocorreu a lenta transfor-
Santo e Santa Catarina, com 200 quilômetros mação em petróleo. Esse petróleo ficou retido
de largura e a 300 quilômetros da costa abaixo da camada de sal à medida que esta
brasileira. O petróleo está abaixo do leito foi se tornando mais impermeável por conta
do mar, e engloba três bacias sedimentares da sua consolidação.
(Espírito Santo, Campos e Santos). O petróleo O conhecimento por parte da Petro-

12 Democracia Viva Nº 43
d e b a t e

bras da existência desse petróleo foi obtido a de reservas provadas da ordem de 1,37 trilhão
partir de esforços técnico-científicos desenvol- de barris, na mais otimista das hipóteses (150
vidos nas últimas décadas, com o desenvolvi- bilhões de barris), o petróleo do pré-sal não
mento de modelos que buscavam interpretar significa mais do que 11% de participação
as características das feições geológicas com no acréscimo. Participação muito aquém
os dados disponíveis. Entretanto, a compro- daquela que a Venezuela poderá acrescentar
vação da sua existência apenas foi obtida em no futuro próximo com o óleo betuminoso
novembro de 2007, com a descoberta, no encontrado na bacia do rio
campo de Tupi, de reservas estimadas de 5 a Orinoco, da ordem de 314
8 bilhões de barris, de um óleo com 28 graus
API, de melhor qualidade comercial do que
bilhões de barris. Ou o Cana-
dá, com depósitos do mesmo
O país poderá
a média do petróleo encontrado no Brasil, e
mais fácil de refinar.
óleo betuminoso da ordem de
270 bilhões de barris.
dobrar as
A partir dessa descoberta, sucedeu-se
uma série de avaliações da dimensão total
suas reservas,
Pré-sal e as mudanças
das reservas no pré-sal. A questão é que
não se sabe ainda, com o rigor científico
climáticas podendo chegar
O mundo consome atualmen-
necessário, se o petróleo existente no pré-sal
está presente uniformemente no continente te 84 milhões de barris por a multiplicar
formado pela área de 160 mil quilômetros dia, ou cerca de 30,6 bilhões
quadrados correspondente, ou se tratam de de barris/ano. Considerando por dez se a
bolsões formando um “arquipélago”. Ou seja, que cada barril de petróleo
se se trata de um campo único ou de uma queimado emite entre 420 estimativa dos
sequência de campos. Tal desconhecimento e 440 quilos de CO 2 (sem
acabou por permitir que se especule reservas contar o carbono emitido ao 150 bilhões
que variam entre 50 e 150 bilhões de barris longo da cadeia produtiva,
de óleo equivalente (considerando petróleo nos processos de extração, de barris se
e gás natural). transporte, refino e distribui-
Além das reservas já mencionadas no ção)1 e que o mundo emite confirmar
campo de Tupi, de concreto o que se tem é a anualmente cerca de 36,3
confirmação da Petrobras de reservas também bilhões de toneladas de CO2 2
no campo de Iara, da ordem de 3 a 4 bilhões (incluindo a queima dos com-
de barris de óleo equivalente, e no campo de bustíveis fósseis – petróleo,
Parque das Baleias, com reservas da ordem gás natural e carvão, além do desmatamento),
de 1,5 a 2 bilhões de barris de óleo equiva- podemos estimar que o petróleo da camada
lente. Além desses três campos, as atenções do pré-sal irá acrescentar às emissões, nas
estão voltadas para a avaliação dos campos próximas décadas, de 33 a 62 bilhões de
de Guará e Carioca, Bem-Te-Vi e Júpiter, este toneladas de CO2.
último com gás natural. Ou seja, se todo o petróleo recuperado
Para um país com reservas estimadas do pré-sal for queimado, as emissões serão
em 14,4 bilhões de óleo equivalente, os cam- equivalentes ao que atualmente o mundo
pos já conhecidos situados no pré-sal indicam emite em um ou dois anos. Esses dados –
um acréscimo na faixa de 9,5 a 14 bilhões de aqui apresentados com a devida cautela
barris de óleo equivalente. Ou seja, no que por serem aproximativos, em função das
1 Cf. cálculos de Schaeffer
já é conhecido, o país poderá dobrar as suas incertezas quanto à extensão das reservas e Horta, publicados no jornal
O Estado de São Paulo,
reservas, podendo chegar a multiplicar por já assinaladas – nos permitem afirmar que de 28/5/2009.

dez se a estimativa dos 150 bilhões de barris a contribuição do pré-sal para a agudização 2 Cf. IPCC-Intergovernmental
Pannel of Climate Change,
se confirmar. do processo de aquecimento global deve ser Quarto Relatório de Avaliação,
fevereiro/2007. Esta avaliação
Para o Brasil, esses números são sig- relativizada, e em termos quantitativos, não estimou uma emissão de
cerca de 234 bilhões de
nificativos, mas estão longe de o serem no é tão significativa como se poderia supor. toneladas de dióxido de

contexto internacional. Para a atual estimativa No entanto, isso não significa que o carbono entre
os anos 2000 e 2006.

SETEMBRO 2009 13
país poderá explorar seu megacampo sem toneladas de CO2, ou menos de três vezes em
preocupações com as mudanças climáticas. 40 anos o que o mundo já emitiu nos seis
Dado o caráter inexorável da humanidade per- primeiros anos deste século. E ainda com o
manecer queimando os combustíveis fósseis risco de esse esforço só representar 80% de
nas próximas décadas, os debates e as ava- chance de alcançar o desejado.
liações científicas passaram a se desenvolver Nessas condições, as emissões decor-
em torno da percepção de que poderíamos rentes do petróleo do pré-sal assumem uma
definir um limite nas emissões futuras dos grande importância pois, independentemente
gases de efeito estufa, de modo a atenuar do ritmo de exploração que podemos esperar,
os efeitos deletérios das mu- elas responderão por cerca de 9,5% do total
danças climáticas. das emissões consideradas como permissíveis.
O desafio que Nesse sentido, parece O desafio que o processo de mudanças
haver um consenso de que climáticas impõe para o mundo é enorme se
o processo o mundo poderia gerenciar forem mantidos os padrões de produção e
os efeitos de um aumento consumo atuais, extremamente dependentes
de mudanças da temperatura não superior dos combustíveis fósseis, e em particular, do
a 2ºC até o ano 2050. Para petróleo.
climáticas impõe tanto, foram desenvolvidos Neste desafio, o Brasil não se apresenta
diversos trabalhos de mode- apenas como o país na dianteira mundial dos
para o mundo lagem do comportamento combustíveis renováveis, cuja quantidade
climático, tendo esse limiar possível de ser produzida, em conjunto com
é enorme se como referência, para em se- os demais países, será incapaz de substituir,
guida verificar qual a quanti- de forma significativa, os combustíveis do
forem mantidos dade de combustíveis fósseis petróleo (gasolina e diesel).

os padrões que poderia ser queimada


nestes próximos 40 anos, de
Ele também se apresenta como um
importante agente no incremento das emis-

de produção e forma a alcançar um com-


prometimento mínimo com
sões a partir das atividades de exploração,
desenvolvimento e produção do petróleo

consumo atuais, o equilíbrio dos vários ecos-


sistemas terrestres em função
localizado no pré-sal. Como vimos, essa par-
ticipação deve ser relativizada em função do

extremamente do aumento da temperatura.


Conforme Meinshau-
contexto internacional.
Se servir de conforto, nosso país não
dependentes sen et al. (2009)3, o limite
da emissão acumulada no
estará só, com seus 80 a 150 bilhões de barris
do pré-sal a serem queimados nas próximas
dos combustíveis período de 2000 a 2049,
de 1 trilhão de toneladas de
décadas. Lembrando que os 1,37 trilhão de
barris de reservas provadas mundiais pro-
fósseis, e em CO2, ,trará uma probabilida-
de de 25% da temperatura
porcionam mais 45 anos de “segurança” se
mantendo o atual ritmo de produção e de
particular, exceder os 2ºC, enquanto consumo, e adicionando a esse total os cerca
que a emissão para o mesmo de 600 bilhões de barris do petróleo betumi-
do petróleo período, de 1,44 trilhão de noso do Canadá e da Venezuela, nada leva a
toneladas de CO2, trará uma crer que assistiremos, em futuro próximo, a
probabilidade de 50%. Ainda uma radical inflexão neste contexto.
conforme esse estudo, o limi- A insensibilidade ambiental parece ser
te de 886 bilhões de toneladas de CO2 trará a regra que prevalecerá. O atual debate sobre
uma probabilidade de 20% da temperatura a proposta do governo Lula para a política do
exceder os 2oC. petróleo do pré-sal, onde a questão ambiental
Isso significa que para que o planeta está ausente, infelizmente apenas confirma
3 Cf. Meinshausen, M. et
al. Greenhouse-gas emission não comprometa de forma irreversível o seu esta asserção.
targets for limiting global
warming to 2ºC. In: Nature, futuro, será necessário que, nos próximos
vol.458, 30/04/2009, pp.
1158-1162. 40 anos, se emita “apenas” 652 bilhões de

14 Democracia Viva Nº 43
d e b a t e

Pré-sal e cenários
de
desenvolvimento
com redistribuição
A exploração das reservas de petróleo do pré-sal em dimensões compatíveis com as necessárias
apresenta muitas oportunidades que, adequa- à construção de uma grande Nação. É disso
damente aproveitadas, podem conformar e que se trata neste artigo.
viabilizar, durante a primeira metade do século
XXI, o mais importante projeto para o Brasil.
Cadeia produtiva do petróleo
É a construção de uma grande nação que seja
e desenvolvimento sustentável
democrática, justa e soberana, bem como so-
cial, ambiental e economicamente desenvolvida. A pesquisa, exploração, produção e o trans-
O território brasileiro constituindo um espaço porte de petróleo bruto; o refino, a produção
que acolha, abrigue e integre uma sociedade e distribuição de derivados; bem como todos
aberta e plural, diversificada e pacífica, sem os segmentos a jusante, no campo da indús-
desequilíbrios, exclusões e discriminações de tria química e petroquímica, compõem um
quaisquer naturezas. enorme conjunto de atividades industriais e de
No entanto, a implementação desse prestação de serviços, interdependentes, que
projeto, em suas vertentes econômica e social, atualmente já têm significativa presença na eco-
mediante o aproveitamento da abundância nomia brasileira. O aproveitamento das reservas
petroleira, implica, essencialmente, promover de petróleo e gás do pré-sal, se adequadamente
uma ampla realocação distributiva de encar- equacionado e implementado, poderá induzir
gos e benefícios. E nossa experiência histórica uma vigorosa expansão dessas atividades e,
demonstra a impossibilidade de que isso possa assim, converter a cadeia produtiva de petróleo
ocorrer exclusivamente por meio dos mecanis- no poderoso vetor que irá estimular, orientar
mos usuais de mercado. São também imprescin- e suportar o processo de desenvolvimento
díveis órgãos e instituições de Estado, políticas sustentável – econômico, social e ambiental –,
públicas e instrumentos peculiares e adequados em benefício da nação brasileira, durante as
ao enfrentamento desse desafio. próximas décadas.
A dinâmica do crescimento por consumo Nessa ordem de ideias, e em primeiro
de massa tem sido bem-sucedida em países lugar, o aproveitamento do pré-sal não pode
com mercado de grande dimensão, tanto pelo converter o Brasil em um grande exportador de
contingente populacional como pela propensão petróleo bruto. É preciso agregar valor ao pro-
ao consumo da população. No Brasil, o modelo duto extraído mediante o refino e a produção
do consumo de massa está consagrado no Plano de derivados e produtos de segunda e terceira
Plurianual até 2011, e a economia brasileira gerações. A partir daí, o amplo espectro de
apresenta condições objetivas para que isso, de setores industriais que utilizam insumos pe-
fato, se efetive. As oportunidades abertas pela troquímicos, tais como fertilizantes, plásticos
descoberta do Pré-sal, e o seu aproveitamento e outros, também agregam valor ao produto.
de forma adequada, pode assegurar, a longo Dessa forma, a diretriz básica a ser adotada é
prazo, a evolução sustentada dessa dinâmica, o suprimento do mercado interno, exportando

SETEMBRO 2009 15
apenas produtos de maior valor agregado. A Janeiro/Centro de Pesquisas da Petrobras); (ii)
comercialização externa de petróleo bruto seria as novas tecnologias para processamento de
tolerada apenas em quantidades marginais e/ petróleo pesado e a produção de insumos e
ou em situações ou condições excepcionais, produtos petroquímicos de primeira e segunda
nas quais o interesse nacional, especialmente gerações que viabilizaram o Complexo Petro-
de caráter geopolítico, as justificasse. químico do Rio de Janeiro (Projeto Comperj);
Em segundo lugar, é indispensável e (iii) a indústria de construção naval asiática,
maximizar as encomendas dos bens e serviços especialmente na Coreia do Sul e em Singa-
às empresas brasileiras aqui instaladas. Desde pura, que, mediante um amplo e diversificado
a construção naval, passando pelas indústrias esforço de pesquisa e inovação tecnológica,
fabricantes de equipamentos para apoio e colocou seus produtos em patamar elevado de
realização de pesquisas, extração, armazena- competitividade.
mento, bem como para o refino e todos os Como dissemos, temos as condições ne-
segmentos down stream, e até segmentos mais cessárias; precisamos, no entanto, realizar uma
sofisticados, como a robótica, deverão ser ma- grande articulação de atores, com interesses e
joritariamente adquiridos no parque nacional. inserções diversas, em torno da questão para
Deverá haver estímulo e apoio tecnoló- a concretização desse objetivo; são eles, sem
gico, fiscal e financeiro para que as indústrias pretender esgotar a lista: Petrobras, Banco Na-
já existentes se ampliem, e também, para que cional de Desenvolvimento Econômico e Social
novas se instalem. Igualmente, no setor de (BNDES), universidades e centros de pesquisas
prestação de serviços deverão ser priorizadas de todo o país, empresas nacionais e suas or-
as encomendas no Brasil, abrangendo todos os ganizações, Financiadora de Estudos e Projetos
ramos da engenharia, nas atividades de desen- (Finep), Ministério da Ciência e da Tecnologia
volvimento, projeto básico e detalhamento de (MCT) e Ministério do Desenvolvimento, Indús-
processos, equipamentos e instalações, passan- tria e Comércio Exterior (MDIC).
do por logística e transporte e alcançando seg- Um quarto aspecto muito importante
mentos específicos, tais como desenvolvimento consiste na absoluta necessidade de que o
de sistemas de informática (soft e hardwares), aproveitamento do pré-sal ocorra sem agressões
treinamento e capacitação de recursos huma- ao meio ambiente. A realização desse objetivo
nos, e outros. A partir de um patamar mínimo apresenta uma extensa interseção com o tema
inicial, por exemplo de 65%/70%, é conveniente do desenvolvimento tecnológico endógeno.
se estabelecerem metas crescentes para os Trata-se de buscar soluções tecnológicas, em
índices de nacionalização, a serem alcançados todas as situações, que sejam “limpas”, isto é,
em determinado prazo. isentas de efeitos danosos ao meio ambiente,
Adicionalmente ao que se expôs ante- ou, quando existentes, que sejam devidamen-
riormente, é preciso realizar um significativo te mitigados. O leito do mar e todo o bioma
esforço de desenvolvimento tecnológico in- marinho da plataforma continental brasileira
terno. Temos as condições básicas necessárias apresentam uma enorme biodiversidade. Em
para isso, no âmbito do denominado Sistema especial, as algas marinhas são consideradas
Nacional de Ciência e Tecnologia, com nossas muito importantes na geração do oxigênio da
universidades e centros de pesquisas, os órgãos atmosfera. Esse nosso patrimônio é muito va-
de Estado voltados a essa temática e um valioso lioso e não pode ser destruído ou malbaratado.
contingente de pesquisadores, em todas as É a Amazônia Azul e precisamos dela cuidar.
regiões do país. Dispomos, também, de alguns A geração de CO2 decorrente do uso
paradigmas exitosos, nos contextos nacional do gás natural ou de combustível derivado do
e internacional, que cabe expandir/multiplicar petróleo como fonte energética nas instalações
ou “aclimatar”. marítimas e nas instalações de terra, bem como
Como exemplos são citados: (i) o de- nas unidades industriais da cadeia produtiva,
senvolvimento tecnológico, para pesquisa e pode ser resolvida ou mitigada com o desenvol-
exploração de petróleo em águas profundas, vimento de tecnologia economicamente viável,
da plataforma marítima, resultado esse que, para captura e armazenamento de carbono
em grande parte, deve ser creditado à par- (CCS – Carbon Capture and Storage).
ceria Coppe-UFRJ/Cenpes (Instituto Alberto As pesquisas estão em fase inicial, e ain-
Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de da não são conhecidas as condições nas quais
Engenharia da Universidade Federal do Rio de

16 Democracia Viva Nº 43
essa solução poderia ser adotada. A propósito, risco geológico de pesquisa e de exploração.
seria muito conveniente e desejável estabelecer, Considerando a agregação de valor ao petró-
em todas as iniciativas e todos os projetos de leo extraído, que se pretende seja uma diretriz
desenvolvimento tecnológico, referentes ou não fundamental do empreendimento, com a expe-
à cadeia produtiva do petróleo, no âmbito do riência do operador que se espera venha a ser
Sistema Nacional da Ciência e Tecnologia, a di- a Petrobras, e com os incrementos naturais de
retriz de dar, sempre, um foco especial na busca produtividade que sempre ocorrem nos projetos
de tecnologias ambientalmente sustentáveis. na medida em que amadurecem, aquela renta-
O quinto ponto a ser tratado diz respeito bilidade confortável, obtida desde o início, será
ao ritmo que deve ser aplicado na implemen- ainda significativamente ampliada.
tação do projeto pré-sal. Neste tema, penso Assim sendo, mesmo que se transfira
ser mandatório que a aceleração aplicada à parcela importante dessa rentabilidade aos ren-
implantação do empreendimento seja aquela dimentos dos trabalhadores, mediante aumen-
compatível com a plena realização dos quatro tos reais dos salários e ainda que se assegure o
objetivos já delineados. Mais que isso, ao longo devido retorno aos investimentos feitos, bem
do tempo, o ritmo deve ser marcado pela velo- como todos os encargos tributários devidos aos
cidade com que se poderá alcançar o objetivo entes federativos, o que sobra corresponde a
mais difícil, ou de implementação mais lenta, um montante muito elevado, e será apropriado
dos quatro apresentados. Em hipótese alguma, pelo dono do petróleo bruto produzido. Se for
devemos nos pautar pela lógica, e o desejo, dos instituído um sistema de partilha da produção
grandes consumidores de petróleo. São econo- pelo novo marco regulatório, e dependendo da
mias desenvolvidas, fortemente dependentes do participação que for destinada à União Federal
petróleo, cujas reservas são hoje muito escassas (por exemplo 80%), esta disporá anualmente
em seus territórios e, por isso, são obrigadas a de um montante elevado de recursos líquidos
buscar o seu abastecimento em geografias dis- e absolutamente disponíveis, medido na escala
tantes, que estão crescentemente conturbadas de dezenas de bilhões de dólares.
por razões políticas. Para esses consumidores, Cabe destacar que tais recursos são
as reservas do pré-sal constituem alternativa de adicionais à atual tributação incidente nessas
suprimento fortemente atrativa. atividades, e destinada às Fazendas municipais,
Quais seriam, então, as consequências estaduais e federal. A sua totalidade estará
para o Brasil? Estaríamos, durante as próximas disponível para a União, em consequência de
décadas, gerando milhões de empregos de disposição constitucional (Art. 20, da Consti-
qualidade distribuídos por todo o território tuição Federal), e será parte denominada em
nacional; realizando investimentos estratégicos, moeda nacional e parte em divisas. Assim
especialmente nos setores fabricantes de equi- sendo, é oportuno constituir com eles um ou
pamentos, com desenvolvimento e incorpora- mais fundo(s) soberano(s), em regime de
ção de modernas tecnologias sustentáveis, com capitalização, com criação e operação adequa-
os correspondentes ganhos de produtividade; e damente reguladas.
alcançando um novo patamar de crescimento Na sua constituição, seria definida a
do PIB. Na realidade, estaria sendo fortalecida, forma e o ritmo da capitalização e da respectiva
ampliada e consolidada a dinâmica do consumo utilização. Nessa etapa, caberá também definir
de massa, realizando-se, assim, e de forma sua destinação e, nesse caso, propõe-se a sua
irreversivel, o desenvolvimento sustentado com aplicação em três vertentes assim denominadas:
distribuição de renda. (i) investimentos sociais; (ii) benefícios para ge-
rações futuras; e (iii) busca de sustentabilidade
ambiental. A primeira vertente, dos investimen-
Destinação dos recursos
tos sociais, corresponde a acréscimos às usuais
decorrentes da exploração do pré-
dotações orçamentárias da União à Educação
sal
e à Saúde. No primeiro caso, reforçando e
Aos patamares atuais dos preços internacionais ampliando os projetos e ações que compõem o
do petróleo – no entorno de US$ 70 por barril Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE),
–, o aproveitamento dos hidrocarbonetos do com ênfase na universalização da educação
pré-sal apresenta excelente rentabilidade. Isso infantil, na ampliação dos cursos técnicos e
decorre basicamente das elevadas dimensões profissionalizantes e do terceiro grau, em todo
das reservas e de não existir, praticamente,

SETEMBRO 2009 17
o território nacional, bem como, melhorando • investimentos no âmbito do Sistema Na-
significativamente a qualidade do ensino em cional de Ciência e Tecnologia em parceria
todos os graus. com os setores produtivos, para o desenvol-
No campo da Saúde, consolidando a vimento de tecnologias “limpas”, citando-se
prestação dos serviços no âmbito do Sistema como exemplo: (i) o aproveitamento da bio-
Único de Saúde (SUS) e estendendo sua co- diversidade existente no bioma amazônico e
bertura, ampliando o número de equipes de do centenário conhecimento e cultura dos
Saúde da Família, de Saúde Bucal e de Agentes povos da floresta, no campo da “medicina
Comunitários de Saúde, de modo a universalizar popular” da região, visando à utilização de
a prestação desses serviços a toda a população produtos fitoterápicos, bem como o desen-
brasileira. E, aqui também, com o objetivo volvimento de novos princípios ativos para a
de melhorar significativamente a qualidade indústria químico-farmacêutica; (ii) captura
do atendimento, em todas as situações e em de carbono na atmosfera (CCS), junto aos
todo o país. grandes consumidores de energia oriunda
Na vertente dos benefícios para as ge- de combustíveis fósseis; (iii) pesquisa e de-
rações futuras, alinham-se, de um lado, as alo- senvolvimento, juntamente com a indústria
cações de caráter social, para a universalização automobilística brasileira e suas associações,
da previdência social para todos os brasileiros, do carro elétrico brasileiro;
com patamares satisfatórios para o valor dos
• investimentos para desenvolvimento tecno-
benefícios previdenciais, ao longo do tempo. E,
lógico e inovação – e também na produção,
também, para ampliar a cobertura e o patamar
distribuição e utilização do álcool combus-
dos recursos alocados no âmbito da Lei Orgâ-
tível e do biodiesel. Desenvolvimento de
nica da Assistência Social (Loas).
uma nova alcoolquímica, como alternativa à
Nesse último caso, o objetivo é a conso-
produção de insumos e produtos derivados
lidação de um conjunto de políticas públicas e
dos combustíveis fósseis.
de uma rede de órgãos e entidades capazes de
prover a proteção social, de efetividade com-
Além dos ganhos diretos para a econo-
patível com a extensão do território nacional e
mia brasileira decorrentes desses aportes pro-
com as necessidades da população brasileira.
venientes do(s) Fundo(s) Soberano(s), sua mera
De outro lado, ainda nessa vertente, seriam alo-
existência constituirá instrumento valioso na
cados recursos em projetos e ações de caráter
viabilização de ações e políticas contracíclicas.
estratégico, para defesa da soberania brasileira
Ademais, o fortalecimento de toda a cadeia
em todo o território nacional, e no mar, até as
produtiva do petróleo, como se tratou ante-
350 milhas de distância do litoral, área que o
riormente, e a continuidade dos investimentos
Brasil considera sob seu domínio, e que está em
que hoje vêm sendo realizados em setores da
fase de reconhecimento pela Organização das
Infraestrutura, principalmente energia elétrica
Nações Unidas (ONU). Nas zonas fronteiriças
e transportes; em Saneamento Básico; em
em terra, especialmente na Região Amazônica,
Habitação; e outros, constituirão um conjunto
e também no mar, onde estão as reservas do
de circunstâncias e situações favoráveis que
pré-sal, é necessário que o Exército, a Marinha e
certamente sustentarão o desenvolvimento
a Aeronáutica tenham recursos para assegurar,
brasileiro nas próximas décadas.
hoje e para as futuras gerações de brasileiros,
Para concretizar essa agenda pré-sal, há
a nossa plena e inconteste soberania sobre
a necessidade de o Poder Executivo desenvolver
essas áreas.
um amplo espectro de articulações políticas
À questão da sustentabilidade ambiental
e institucionais. No plano externo, é preciso
seria destinada a terceira parcela da macroalo-
articular com os países da América do Sul,
cação dos recursos provenientes do(s) fundo(s)
especialmente no âmbito do Mercosul e da
soberano(s). Como exemplos de programas
Unasul (Conselho de Defesa Sul-Americano),
e empreendimentos nesse campo podem ser
com países da África e da Ásia, especialmente
relacionados, sem pretender esgotar tais pos-
Angola, África do Sul, Índia e China. Também
sibilidades:
com os países desenvolvidos, no âmbito do
• investimentos, e aplicações de custeio, para G-20 e com organismos multilaterais, da ONU.
detectar, monitorar e reduzir drasticamente No campo interno são muito necessárias am-
o desmatamento na Amazônia; plas e extensas negociações com o Congresso

18 Democracia Viva Nº 43
Nacional e articulações com o Poder Judiciário (2) a utilização do petróleo destinado à União
e os entes federativos (estados e municípios), – há indicações que a Petrobras será a en-
os meios de comunicação, os empresários e carregada da sua comercialização, mas nada
suas organizações, os sindicatos de trabalha- se anuncia no que concerne à agregação de
dores, as organizações e os movimentos da valor ao petróleo produzido, como ampla-
sociedade civil. mente abordado neste trabalho;
(3) quanto à destinação dos recursos do Fundo
Situação atual Social a ser criado, os objetivos são muito
genéricos, nada havendo em relação a
Os quatro projetos de lei recentemente encami-
importantes finalidades, especialmente as
nhados ao Congresso Nacional constituem pro-
que aqui denominamos como vertente dos
postas do Executivo que, certamente, poderão
benefícios para gerações futuras;
ser aperfeiçoadas pelo Legislativo. Em síntese,
consideramos positivos os seguintes pontos: (4) como será tratada a unitização das reservas
quando ocorrer interseção entre blocos já
(1) o novo marco regulatório consagra o
concedidos e blocos do pré-sal;
modelo de partilha como aquele que será
adotado. È uma sábia decisão, dadas as (5) o aumento do capital social da Petrobras a
características das reservas do pré-sal e o ser promovido pela União, embora meritó-
uso que dela pretendemos fazer; rio e necessário, é operação complexa que
ainda não está claramente encaminhada.
(2) a criação da Petro-Sal, que assumirá, em
nome da União, a parcela que lhe couber Finalmente, como dificuldades que,
na partilha do petróleo extraído e, como desde já, são esperadas na definição dos meios
agente do Estado, exercerá, na exploração e modos de explorar as reservas do pré-sal,
do pré-sal, um importante monitoramento podem ser relacionadas:
de aspectos relevantes para assegurar a (1) a tramitação dos projetos de lei do executivo
plena realização dos objetivos nacionais; no Congresso Nacional;
(3) o papel da Petrobras será bastante relevan- (2) os poderosos interesses nacionais, e inter-
te, a saber (i) será a operadora de todos nacionais, contrariados pelo que se delineia
os blocos explorados, devendo ter uma na equação que está sendo estruturada;
participação acionária expressiva em todos (3) a posição da maioria dos grupos que detêm
eles, para bem desempenhar essa missão; o controle da grande mídia no Brasil;
(ii) poderá ela própria participar dos leilões,
(4) o longo prazo e a complexidade de equacio-
só ou em parceria com outros investidores;
namento de alguns aspectos indispensáveis
(iii) poderá ser contratada diretamente pela
ao sucesso do aproveitamento do pré-sal
União, para explorar os blocos que apresen-
com apropriação pelo país e o seu povo,
tem grande reserva estimada;
dos resultados desse empreendimento.
(4) o BNDES está capacitado e preparado
Face à importância do projeto pré-sal e
para ser o agente financeiro principal no
às oportunidades que ele oferece, bem como
financiamento do projeto. Suas equipes
frente aos riscos existentes, de uma inadequa-
técnicas, seus recursos financeiros, sua forte
da exploração, há um desafio para todos nós:
experiência aportam segurança na execução
devemos nos mobilizar – os trabalhadores e
dessa função.
os empresários; os jovens e os mais velhos; o
Estão ainda imprecisos ou obscuros campo e as cidades; os profissionais liberais;
os equacionamentos propostos em relação a os formadores de opinião; enfim, a sociedade
outras questões, tais como: civil organizada, ou não – para que seja ade-
(1) a própria taxa que caberá à União na par- quadamente equacionada a exploração das
tilha; em cada situação, será estabelecida reservas do pré-sal em benefício do Brasil e de
uma referência mínima, sendo vencedor o sua população.
licitante que oferecer a maior taxa, obvia-
mente acima do mínimo estabelecido. Pelo
exemplo internacional, em situações seme-
lhantes ao pré-sal (magnitude das reservas
e inexistência ou baixo risco geológico), essa
taxa mínima deveria situar-se em 80%;

SETEMBRO 2009 19
d e b a t e

Rumos da
economia –
a questão
reaberta?
Antonio Barros de Castro *1
Assessor da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)

Primeiramente, quero deixar claro que parto da de produtos primários – fenômeno mais que
suposição de que a economia brasileira se en- recorrente, dominante, na América Latina. Mas
contra diante de uma situação inesperada, fora refiro-me também e, sobretudo, a uma questão
da tela, digamos, em termos do debate e dos praticamente ausente, até ontem, nesta econo-
prognósticos acerca da sua evolução. Isto de- mia: a enorme discrepância entre o custo e o
corre, por um lado, das recentes descobertas de valor de mercado da produção, em atividades
novas e grandes oportunidades, especialmente líderes, que marcam ou, mesmo, plasmam o
no campo do petróleo; por outro, de profundas padrão de crescimento vigente na economia.
mudanças em curso na economia mundial. Esta é, no entanto, uma questão muito
Combinadas, estas mudanças tendem a alterar antiga, que volta a adquirir, na atualidade, uma
as possibilidades e até mesmo os rumos, daqui enorme importância. Quem a enfrentou pela
por diante, do crescimento econômico deste primeira vez foi, possivelmente, a Espanha, no
país. Devo sublinhar que as reflexões a seguir século XVI, com o ouro e a prata chegados da
apresentadas estão muito longe de concluídas, América. Por que razão a súbita descoberta de
podendo nelas ser encontradas mais incógnitas abundante riqueza natural tende a acarretar
do que equações. profundas consequências econômicas e sociais?
Até um ano atrás, do ponto de vista do Não é apenas pelo acréscimo imediato de ri-
petróleo, esta economia aspirava apenas suprir queza e renda que daí decorre. Ocorre que a
suas próprias necessidades: uma luta histórica, diferença, que pode ser brutal, entre os custos
que estava, enfim, por ser ganha, após meio de produção ou extração, e o preço a que são
século de esforços. Contra este pano de fun- vendidos os produtos, coloca no centro da
do, o pré-sal, que supostamente acrescenta às vida econômica, social e política da nação, a
reservas brasileiras, algo como cinco vezes o “renda da terra”.
seu valor total, antes da descoberta, introduz Resumidamente, daí por diante, a apro-
uma possível guinada, ou descontinuidade, na priação e os usos dados à renda da terra passam
1 Resumo da palestra evolução da economia. Mais que isto, evoca a condicionar profundamente a economia e a
proferida por Antonio Barros
de Castro, no seminário em lembranças de um tipo de economia e de uma sociedade – que tornam-se também sujeitas
comemoração aos 200 anos
do Ministério da Fazenda, em
problemática há décadas superada neste país. às grandes flutuações de preços típicas dos
10 de setembro de 2008. O Refiro-me à possibilidade, ao que parece mercados internacionais de commodities. Visto
presente resumo foi elaborado
por Ana Bittencourt, editora reencontrada, de que o crescimento da econo- a partir dessa complexa temática, o capitalismo
da revista Democracia Viva,
do Ibase. mia brasileira volte a ser puxado pela exportação parece haver completado dois ciclos – e está

20 Democracia Viva Nº 43
d e b a t e

ingressando em um terceiro. de questões de natureza distributiva que, ao


O primeiro ciclo foi centrado na Ingla- contrário do ocorrido em outros campos de
terra. Ali, sem dúvida, questões como a pressão atividades, não tende, ou mesmo não pode, ser
sobre os recursos naturais, e a renda da terra implícita ou endogenamente equacionada por
daí derivada, constituíam um tema de grande meio dos mecanismos usuais de mercado. Em
importância. O segundo grande ciclo surge outras palavras, políticas públicas, bem como
com a transferência do centro do capitalismo instituições peculiares, são aqui indispensáveis.
para os Estados Unidos. Em contraposição ao Refiro-me, a este propósito, não ape-
caso inglês, os Estados Unidos se caracterizam nas à partição das rendas derivadas do óleo
pela notória abundância de recursos naturais. entre recolhimentos de toda ordem aos cofres
Na perspectiva aqui adotada, o terceiro públicos e apropriação privada, mas, também,
ciclo tem início quando a China, tomando a à distribuição dos papéis e responsabilidades
dianteira da Ásia, começa a efetivamente res- confiados a diferentes atores, públicos e priva-
taurar a escassez de matérias-primas e petró- dos, na pesquisa, exploração, processamento e
leo. Daí decorre o surgimento de um mercado distribuição do óleo.
internacional favorável aos bem dotados em Nos últimos 30 a 40 anos, têm prevaleci-
recursos naturais. De início, são apenas as do, nas novas grandes descobertas, a atribuição
quantidades vendidas que crescem mais rápi- de importantes funções a empresas públicas
do. Posteriormente, digamos a partir de 2003, nacionais, as chamadas National Oil Companies,
também os preços. ou NOCs. No caso do Brasil, contudo, dada a
Tendo por fundamento a pressão co- forte presença da Petrobras, dotada de notória
mandada pela China, a alta dos preços, uma competência técnica, poder financeiro e experi-
vez percebida como tendência, passou a ser ência no convívio e competição com empresas
reforçada pela especulação financeira. Em estrangeiras, e a existência, há 10 anos, da
consequência, “bilhetes premiados” passavam Agência Nacional do Petróleo, boa parte das
a ser concedidos a regiões privilegiadas pela questões e dilemas colocados pela descoberta,
natureza. Que seriam estes bilhetes premiados? em grande escala, de óleo e gás, encontra-se,
Situações em que o retorno obtido na explo- em alguma medida, equacionada.
ração de determinados recursos se mostra não Mas a problemática distributiva trazida
apenas muito maior que os custos como tam- por um novo e grande surto petroleiro longe
bém muito superior ao alcançado nas demais está de esgotar-se nos temas apropriação das
atividades pré-existentes na região. rendas e papéis atribuídos aos grandes atores.
Há também que posicionar-se sobre a complexa
questão da assignação setorial dos recursos do
O caso brasileiro
país: que segmentos da moderna cadeia do
O pré-sal longe está de ser o único bilhete petróleo faz sentido, ou não, promover e im-
premiado recebido pelo Brasil no novo ciclo. plantar no país? E mais: que volume de recursos
Mas, pelo seu gigantismo, e em decorrência domésticos serão dedicados ao desenvolvimen-
de marcantes características do petróleo, é, to de soluções tecnológicas próprias? Além
sem dúvida, o que mais chama a atenção. Na disso, no caso de uma economia continental
realidade, estamos convencidos que a expansão como a brasileira, e sendo o pré-sal localizado
petroleira e suas implicações para a economia numa franja em alto-mar, como ventilar os be-
e a sociedade deverão assumir, daqui por nefícios advindos da sua exploração pelas várias
diante, grande importância no debate sobre regiões do país, privilegiando, no entanto, em
padrões de crescimento e políticas públicas a alguma medida, as áreas a ele mais próximas,
eles associadas. ou naturalmente associadas?
O ciclo que se anuncia, traz, sem dú- Em suma, e insistindo, questões de
vida, possibilidades atraentes, mas, também, natureza repartitiva, de alta densidade política,
ameaças para a evolução, a longo prazo, desta têm de ser enfrentadas – tanto quanto possível,
economia. Para percebê-lo, cabe chamar a através de uma visão de conjunto, e a partir de
atenção para umas poucas grandes questões, uma perspectiva de longo prazo.
evidenciadas em outras experiências de súbita Mas no que concerne aos impactos
descoberta de grandes quantidades de petróleo. sobre a nossa economia de um grande surto
A primeira delas é que a nova riqueza petroleiro, há um outro tipo de problema, que
dá margem ao surgimento de toda uma pauta opera como uma espécie de preliminar de várias

SETEMBRO 2009 21
novas questões. Refiro-me ao conhecido fato externo de uma economia onde acaba de ser
de que a chegada de recursos financeiros rela- encontrado petróleo em abundância traz consi-
cionados aos novos investimentos bem como à go sérios perigos. Vou evocar, a este propósito,
presumível expansão das exportações tende a um episódio ocorrido no México. Ao assumir em
pressionar o mercado de câmbio, traduzindo- 1980 a presidência do país – então em plena
-se em valorização da moeda nacional. Decorre euforia petroleira –, declarou Lopes Portillo:
daí um desestímulo genérico a atividades pro- “De agora em diante, trata-se de administrar a
dutoras de bens que possam ser importados riqueza”. Dois anos depois, o México quebrou,
ou destinados a mercados externos. Escapam, não obstante a exportação de 1,6 milhão de
evidentemente, deste problema, desde que barris por dia – e, 12 anos depois, o país vol-
efetivamente ofereçam ou prometam elevados tou ao colapso, na chamada crise da tequila.
retornos, as atividades integrantes ou fortemen- Esta última quebra, sobretudo, está claramente
te relacionadas com o novo surto. associada a distúrbios de natureza financeira,
O corolário fundamental associados ao boom petroleiro mexicano.
disso é, nada menos, que o Quanto às consequências danosas sobre a
O fácil questionamento da estrutura evolução industrial e tecnológica do país, tanto
pré-existente de assignação de da valorização da moeda local quanto da bru-
endividamento recursos. Em outras palavras, tal instabilidade trazida pelo surto exportador
frente às novas condições, o petroleiro perduram, possivelmente, até hoje.
externo de perfil produtivo que caracteriza E que terapia tem sido indicada para o
a economia dificilmente poderá tipo de problema que acaba de ser menciona-
uma economia ser sustentado. Na sua face
moderna, em particular, ele cris-
do? Existe, hoje, uma recomendação-padrão
para países que se defrontam com a súbita
onde acaba de taliza decisões que não teriam
sido tomadas se se soubesse,
riqueza: “esterilizar” uma boa parte da receita,
mantendo-a em fundos soberanos, em moeda

ser encontrado de antemão, os preços relativos


que teriam vigência no futuro.
estrangeira, e no exterior. A proposta tem seus
atrativos. Desde logo, o derretimento cambial

petróleo em Esta é uma questão que envolve


a conduta de numerosos atores,
ao qual nos referimos é, em princípio, amorte-
cido ou, talvez mesmo – ainda que, dificilmente
e que historicamente se coloca –, eliminado. Além disto, é constituída uma
abundância das mais diferentes maneiras. reserva, que poderá ser usada, contraciclica-
Vejamos alguns exemplos. mente, bem como em benefício das próximas
traz consigo Na Holanda, a descoberta gerações. A Noruega, sabidamente, acumulou
do gás parecia seriamente ame- reservas que lhe permitirão conceder polpudas
sérios perigos açar – via câmbio – as atividades aposentadorias nas próximas décadas. Mas este
industriais, mas o desafio foi con- tipo de solução longe está de ser a panaceia
tornado sem maiores perdas. Já apresentada por muitos.
na Nigéria, as atividades agrícolas Comecemos pelo óbvio: o êxito da ex-
tradicionais foram desorganizadas e sofreram periência depende da qualidade da carteira de
notória involução. No México, a trajetória da aplicações do fundo e, genericamente, do seu
indústria parece haver sido “truncada”, na ex- gerenciamento. A Noruega, por sua enraizada
pressão de um conhecido analista, e involuíram. tradição democrática e a qualidade dos técnicos
Na própria Noruega, experiência repetida e jus- encarregados da gestão pública, passa muito
tamente referida citada como um bom exemplo bem por estes testes. Mas há de se reconhecer:
de assimilação do auge petroleiro, pondera-se trata-se de um caso excepcional. Já em outras
que o desenvolvimento de indústrias high tech experiências, admite-se a existência de graves
foi prejudicado pelos altos custos derivados da problemas, que não se limitam, com certeza, a
ascendência alcançada pelo petróleo. questões de natureza administrativa: há casos
Duas considerações devem ainda ser em que, com ou sem fundo, a súbita riqueza é
acrescentadas nesta sumária caracterização ostensivamente usada para consolidar no poder
do quadro que acompanha o inesperado sur- os que aí se encontram, através de iniciativas
gimento de enormes oportunidades, baseadas da mais variada natureza.
na exploração de recursos naturais. O anterior recomenda que, independen-
Primeiramente, o fácil endividamento temente dos supostos méritos e dificuldades

22 Democracia Viva Nº 43
associados aos fundos, se tenha em conta a BNDES. Estávamos examinando as importações
precedência de questões de outra natureza. e exportações de 2005, quando um de nós
Na perspectiva adotada nesta exposição, nos notou algo estranho. Os dados sugeriam uma
limitamos a uma única ponderação: afinal, repentina mudança na composição das expor-
para que acelerar o avanço da oferta, gerando tações. Concretamente, podia ser facilmente
recursos que não devem, e possivelmente não observada, na comparação com os resultados
serão, proximamente usados? Melhor seria obtidos em 2004, uma queda da importância
controlar, na medida do possível, o seu ritmo de certos tipos de manufaturas – e a ascensão
de expansão, de maneira a conciliá-lo com a de vários produtos primários.
progressão de outras mudanças – e a realização Na realidade, hoje me parece que desde
de outros objetivos. No México, incrivelmente, o que a China assumiu a liderança do crescimento
surto petroleiro acarretou um salto de 5% para asiático, tendo início a grande mudança no
80% do peso do petróleo nas exportações do funcionamento da economia mundial descrita
país, no curto período de 11 anos (entre 1973 no início da palestra, a economia brasileira pas-
e 1984)! Isto seguramente implica dizer que o sou a ser empurrada numa direção imprevista.
avassalador avanço do petróleo subtraiu opor- E isso não foi logo percebido, primeiramente,
tunidades e quebrou expectativas, em prejuízo porque combinavam-se, no começo da presente
de segmentos e negócios cuja evolução, como década, a conclusão, no plano microeconômico,
já foi sugerido, teria sido truncada, ou mesmo da reestruturação levada a efeito por numerosas
anulada. Com mais razão se pode ainda afir- empresas industriais, com os efeitos estimulan-
mar que o moderno salto petroleiro mexicano tes da bem-sucedida desvalorização de 1999.
inviabilizou a implantação de novas atividades Ao que parece, as próprias adversidades no
que exigem o seu tempo de maturação – e cuja plano macro ajudaram o forte avanço das
ausência, no atropelo da expansão, não teria exportações – inclusive industriais.
sido sequer percebida. É claro, por outro lado, A seguir, o atual governo, especialmente
que do ponto de vista do bloco de países con- em seu segundo mandato, soube dar início à
sumidores, o salto mexicano foi algo altamente mobilização de demandas reprimidas, herdadas
benéfico. Estamos, pois, diante de um conflito do longo período de semiestagnação. As ativas
de interesses. E há inclusive que reconhecer políticas de expansão do crédito tiveram aqui
que o conflito encontrará ressonâncias no um papel decisivo. Combinados o destrava-
plano interno. mento do crédito com a vigorosa e múltipla
Algumas pretenderão aumentar os gas- política de apoio ao poder de compra das clas-
tos a partir de pressões políticas e demandas ses de mais baixa renda, o mercado doméstico
sociais, enquanto outros defenderão o uso passou a exibir um dinamismo insuspeitado
da nova riqueza para desenvolver posições que, especialmente no tocante a manufaturas,
dotadas de elevado potencial, bem como para compensava, ou mais que compensava, o bru-
introduzir novas e promissoras transformações. tal crescimento das importações de produtos
Por outro lado, não há que impressionar-se industrializados e a perda relativa de espaço em
com o duvidoso argumento segundo o qual mercados externos das manufaturas brasileiras.
o petróleo está por ser substituído, havendo, A tardia revolução brasileira do consumo de
portanto, pressa em explorá-lo. Afinal, quanto massas, e os investimentos direta ou indireta-
mais verdadeira a ameaça de substituição do mente (via infraestrutura), por ela justificados,
petróleo, mais perigoso se torna reduzir a di- começavam, pois, a promover uma redefinição,
versidade do tecido econômico e empresarial endogenamente determinada, do padrão de
para concentrar e enterrar recursos num setor desenvolvimento da economia brasileira.
com perspectivas de longo prazo que estariam Este conjunto de transformações, ine-
sendo questionadas. gavelmente exitoso, dificultava mais uma vez
Ainda a propósito da diversidade da o entendimento de que a economia brasileira
economia e do seu destino a partir do surto estava, também, e em simultâneo, iniciando
petroleiro, quero chamar a atenção para o fato um processo – não pensado, não decidido –
de que algumas das questões que o pré-sal de adaptação ao terceiro grande ciclo posto
deverá colocar em evidência já poderiam ser em destaque nesta palestra. Passava assim, na
percebidas em 2005. Vou citar um pequeno prática, desapercebido o fato de que somos
incidente, ocorrido na equipe que coordeno no parte integrante de um mundo que vem sendo,

SETEMBRO 2009 23
comercialmente, pelo menos, convertido num sido histórica e definitivamente superada – no
sistema sinocêntrico. Ocidente, pelo menos – a época em que a
Evidentemente, se uma economia apre- administração pública participava de escolhas
senta – contrariamente ao observado no tardio substantivas. Os poderes públicos seriam pro-
surto petroleiro que se anuncia neste país – um tagonistas na definição de regras e normas
tecido econômico pouco diversificado, como a – mediante o processamento de demandas
Noruega ao tempo das descobertas do Mar do procedentes da sociedade – bem como na
Norte, e/ou, pré-moderno, como a Nigéria dos cobrança do seu cumprimento.
anos 1960, o potencial de desenvolvimento O mundo que está emergindo neste
ameaçado pelo petróleo será, por definição, terceiro ciclo é diferente. Nele se dá a mundia-
pouco relevante. Este, porém, não era o caso do lização da chamada revolução do consumo de
México por ocasião das grandes descobertas do massas, iniciada há quase 100 anos nos Estados
Golfo. E muito menos é o caso do Brasil hoje. Unidos e em vias de conclusão, na atualidade,
Sobretudo porque, cabe insistir, esta economia, sob liderança chinesa. Como diversos autores
após um longuíssimo e atribulado inverno, vem advertiram, este fenômeno traz imensos desa-
exibindo sólidos e invejáveis resultados. fios no campo energético, e acarreta enorme
As mudanças incitadas pelo terceiro pressão sobre o meio ambiente. Além disto, a
grande ciclo deverão ser aqui, como, em re- redistribuição e intensificação das competências
gra, por toda parte, muito profundas. A cada competitivas no plano mundial exige autêntico
economia cabe adaptar-se – e, em maior ou reposicionamento de numerosas economias.
menor medida pró-ativamente explorar – o novo Nele, traçar, tentativamente, rumos é funda-
contexto. Que espaços a economia brasileira mental: numa economia como a brasileira,
tem chances de ocupar? Como administrar, da que reconhecidamente se encontra diante de
melhor forma para os brasileiros, a inserção uma pletora de opções, nos Estados Unidos,
desta singular economia no mundo que emerge economia em mais de um sentido posta em
neste início de século XXI? A mera acomodação xeque, na Noruega, onde o ciclo petroleiro está
dificilmente implicaria um bom aproveitamento se esgotando, ou, a rigor, na própria China.
das novas circunstâncias, numa economia re- Novas escolhas, ao que parece, já eram
centemente despertada para o crescimento e necessárias antes do pré-sal. Com ele, a pauta
com muitas oportunidades apenas afloradas. congestionou-se. Possivelmente, algumas das
Valer-se, em proveito de objetivos próprios, atividades que se exercem no Brasil não têm
dos impulsos que podem ser derivados da futuro; outras, pelo potencial nelas contido,
escassez de certos recursos naturais – e das talvez venham a ter um futuro brilhante. Evi-
novas tecnologias disponíveis nos respectivos dentemente, à luz de tudo o que aqui foi dito,
campos – é uma das mais importantes dimen- não há que julgá-las, unicamente, pelo seu
sões do novo jogo. desempenho recente. Lembremos que a reto-
Fomos surpreendidos pela valorização mada do crescimento verificada a partir de 2004
dos recursos naturais, e diversos ramos da in- combinou a bem-sucedida e, a partir de certo
dústria estão sendo apanhados desprevenidos ponto, politicamente deliberada, distensão de
pelos preços e, não raro, pela modernidade, molas comprimidas durante a longa semiestag-
de um crescente número de produtos chineses. nação, com a incipiente entrada em ação do
É necessário, realisticamente, trabalhar este que poderíamos denominar de “efeitos-China”.
quadro, buscando os pontos altos do extenso No meu entender a economia brasileira
e variado potencial produtivo subjacente ao ainda tem muito a ganhar, explorando o que,
tecido econômico deste país. Isso requer uma escrevendo sobre a possível transição para o
administração pública competente, preparada crescimento rápido no Brasil, denominei de
para conceber futuros desejáveis e apoiar, de “vantagens da estagnação”. Vista a questão
maneira seletiva, avanços singulares. Mas de- por este prisma, o Brasil é um país, parado-
pende também, substantiva e decisivamente, da xalmente, privilegiado. Basta ver o que há de
motivação e do engajamento empresarial – o demanda contida por habitação popular, que
que por sua vez demanda bons diagnósticos e apenas começa a ser explorada, mediante
argumentos convincentes. uma fértil combinação de políticas públicas
Há, em suma, mais uma vez, que encarar e iniciativas várias procedentes das empresas.
uma guinada. Nos anos 1990, parecia haver Continuará, pois, vigoroso, o acerto de contas

24 Democracia Viva Nº 43
com o passado. uma via privilegiada de acesso, mediante novas
A história parece haver feito duas genti- tecnologias, à energia solar. Assim também a
lezas com este país. Por um lado, encontramo- exploração de águas profundas deveria ser vista
-nos na fronteira das técnicas, em etanol e como base para a consolidação da indústria
exploração de petróleo em águas profundas, naval, e canteiro para o desenvolvimento de
no momento em que a crise mundial de com- uma vasta pauta de novos produtos, aí incluí-
bustíveis atinge um ponto de grande estresse. dos, com destaque, novos materiais e recursos/
Por outro, a chegada do terceiro grande ciclo soluções para automação. Trata-se, em suma,
nos encontra não apenas encostando em al- de combinar continuidade e mudança, ali onde
gumas fronteiras tecnológicas, como dotados o potencial venha a ser confirmado por diagnós-
de um incipiente, porém, diversificado e, em ticos atualizados. Continuidade é importante,
mais de um sentido, robusto, sistema nacional e mudança é importante.
de ciência e tecnologia. Mais precisamente, o Alguns dos avanços aqui apontados já
país conta, presentemente, com mais de 100 se encontram espontânea e topicamente em
mil pesquisadores doutores, engajados em curso, a partir de iniciativas autônomas, em-
pesquisa científica. Dificilmente, esta não virá a presariais ou públicas. O que talvez não esteja
ser uma substantiva vantagem, para efeitos da claro é que o que vem sendo feito, em resposta
extensa e profunda reciclagem que o aparelho a dificuldades e tropeços, poderia ganhar mais
produtivo do país requer. fôlego e eficácia, caso fosse concebido e tratado
Na realidade, o mero prosseguimento da como aquilo que é, ou, talvez, virá a ser, quan-
revolução do consumo de massas deveria passar do o presente se tornar história. Afinal, estas
a incluir deliberado esforço tecnológico próprio, respostas, em última análise, constituem uma
para que a ampliação dos mercados populares busca sob condições típicas do terceiro grande
incorpore respostas à pressão competitiva ciclo, de meios e soluções para a transição, à
chinesa – inclusive mediante a incorporação brasileira, para a economia do conhecimento.
de soluções adequadas aos mercados locais Na medida em que seja correto o que
e, em determinados casos, a outros destinos acaba de ser dito, diversos procedimentos de-
no hemisfério sul. Passando aos alimentos e veriam ser reavaliados e eventualmente revistos.
matérias-primas de origem agrícola, cabe cha- Exemplificando: o ponto de partida para o
mar a atenção para o fato de que as máquinas exame e avaliação de empresas e/ou regiões
brasileiras no campo não foram concebidas em dificuldade deveria ser o potencial por eles
para as nossas condições, devendo ser revistas. apresentado no novo contexto, e não suas
Existe, a este propósito, uma joint venture da qualidades e problemas no passado recente;
Universidade Federal de São Carlos com a Uni- num outro plano, órgãos públicos, empresas
camp e algumas empresas brasileiras, visando e universidades deveriam conceder grande
passar a limpo a concepção e o desenho de importância ao acompanhamento das soluções
diversas máquinas. Isto é importante, inclusive, que vêm sendo encontradas em outros países,
para atender a novas demandas. Cerca de 40 para problemas típicos do novo contexto. Além
mil tratores estão sendo demandados, este ano, disto, uma atenção muitíssimo maior deveria
pela agricultura familiar, o que era impensável ser concedida ao que ocorre presentemente na
há pouco tempo. Eles poderiam ser concebidos China e às tendências evolutivas que ali podem
e desenvolvidos aqui. Inclusive para cavar novos ser percebidas.
espaços e contribuir para o aumento da produ-
tividade no resto da América Latina e na África.
Quando falo de atividades que no passa-
do eram referidas como primárias, estou, pois,
também me referindo, ao retrabalho do nosso
diversificado patrimônio industrial e tecnológico
com muita high tech, software, uso de satélites
etc. Quando me refiro ao etanol, por sua vez,
não estou me referindo à mera produção de
álcool. Esta é, em si, a vários títulos, meritória,
mas a economia da cana-de-açúcar deve ser
entendida como fonte de múltiplos produtos e

SETEMBRO 2009 25
artigo
Rubens Harry Born*
Esther Neuhaus **

Dilemas
planetários e
as negociações
internacionais em
mudança de clima:
perspectivas
Aproximam-se a 15ª Conferência das Partes (COP 15) da Convenção-Quadro das

Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e a 5ª Reunião das Partes do

Protocolo de Kyoto, que serão realizadas em Copenhague, em dezembro de 2009,

quando deveriam ser tomadas decisões políticas importantes para reorientar as

atividades econômicas e enfrentar as mudanças climáticas. Enquanto cientistas e

sociedade civil organizada reivindicam políticas justas e ações robustas, efetivas

e urgentes para lidar com as causas antrópicas e com os impactos das mudanças

de clima, continuamos a presenciar o jogo de forças poderosas que se valem de


argumentos e estratégias diversos para evitar a alteração dos paradigmas e modelos de

26 Democracia Viva Nº 43
desenvolvimento. O que cabe a cada país e de efeito estufa (GEE) em vários países em
ao Brasil? Quem deve realizar algo, quando desenvolvimento.
e como? Quem paga a conta das altera-
ções? Essas são questões explicitadas nas
Pilares das negociações
negociações sobre mudanças climáticas e
devem ser parte do debate nacional sobre o No caminho para a COP 15, as negociações se
desenvolvimento. concentram em cinco blocos temáticos. Visão
O regime multilateral estabelecido compartilhada trata do cenário desejado de
pela UNFCCC não é uma ação coordenada médio e longo prazos, o que implica deter-
de gestão ambiental, mas sim um regime minar o limite de emissões globais de gás de
que deve lidar com as transformações eco- efeito estufa e, consequentemente, deduzir
nômicas, sociais e políticas motivadas pela as emissões que todos os países poderão ter.
degradação ambiental e pelos distúrbios no Diversos países, como a China e os Estados
sistema climático. Soluções não podem se li- Unidos, por exemplo, não aceitam um teto
mitar a meras ações “superficiais” de ajustes, global de emissões. O Brasil tem pautado
que aparecem na forma de uso eficiente de suas posições pela defesa questionável de
energia, substituição de combustíveis fósseis direito ao crescimento das emissões dos
por etanol e biodiesel, fomento de energia países em desenvolvimento como forma de
renovável ou implantação de tratamento promover o “desenvolvimento” econômico.
adequado de resíduos, mesmo via projetos O bloco Mitigação trata de metas e
do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo ações nacionais e internacionais adicionais
(MDL) estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto. para reduzir as emissões. Será necessário de-
Embora essas ações sejam necessárias, finir as metas para os países industrializados
por si não são suficientes ou determinantes após 2012, quando se encerra o primeiro pe-
da alteração do modelo de desenvolvimento. ríodo de compromisso do Protocolo de Kyoto.
Repensar a mobilidade de pessoas e o trans- Existem várias propostas na mesa,
porte de cargas na busca da sustentabilidade especialmente no sentido de pressionar esses
implica, por exemplo, privilegiar sistemas de países a assumir metas profundas. Por outro
transporte público e individual associados ao lado, os países ricos esperam sinais muito
planejamento do uso do solo urbano e rural. claros dos países em desenvolvimento, es-
Existem, obviamente, diferenças gri- pecialmente dos grandes emissores de GEE,
tantes entre os países em desenvolvimento, como China, Índia e Brasil, com um objetivo
e entre estes e os países industrializados. E, de curto prazo de estabilizar e, na próxima
em prol da sobrevivência e dignidade de vida década, iniciar a redução das suas emissões.
de centenas de milhões de pessoas, avanços Já no tema Adaptação, pretende-se
profundos no regime multilateral precisam definir a cooperação internacional necessária
ocorrer para que a inação ou inadequação para apoiar a adaptação dos países e das co-
da ação de alguns não signifique morte de munidades mais afetadas pelos impactos das
muitos. Argumentos como crise financeira, mudanças climáticas. Por muito tempo, esse
direito ao crescimento econômico como tema foi negligenciado, com o argumento
forma de desenvolvimento, busca de alter- de desviar a atenção do objetivo principal de
nativas mais baratas em outros países são mitigação. Infelizmente, há impactos inevi-
frequentemente usados por aqueles que ten- táveis, e as comunidades mais vulneráveis e
tam evitar opções comprometedoras e sérias pobres sofrerão mais com os impactos. Por
relacionadas a uma necessária mudança nos isso, é importante ter políticas e medidas
padrões de produção e consumo. que possam ser executadas desde já. No
Isso nos leva a dilemas que envolvem a regime multilateral, fica claro que os países
expectativa de obter metas e ações robustas industrializados devem dar contribuições
dos países industrializados como objetivos fundamentais.
mensuráveis de redução de crescimento, Outra área-chave para garantir avan-
limitação e redução de emissões de gases ços em Copenhague é a da Transferência de
Tecnologias. Muitos países em desenvolvi-

SETEMBRO 2009 27
artigo

mento entendem que as inovações e tecno- senvolvimento lançar um Plano Nacional de


logias relacionadas às mudanças climáticas Mudanças do Clima e estabelecer alguma
devem ser de domínio público, e não estar meta para reduzir o desmatamento e realizar
sob um regime privado de monopólio de pa- mudanças no uso do solo, responsáveis por
tentes que obstaculiza e encarece sua trans- 75% das emissões do país. Porém, o pla-
ferência. Ao mesmo tempo, é fundamental no, que se limita a ser nada mais que uma
apoiar a formação da capacidade endógena coleção de iniciativas, não é reconhecido
desses países para inovar, produzir e exportar; como referência para programas e políticas
assim como garantir a participação popular setoriais.
nas escolhas de tecnologias adequadas aos Dessa forma, é necessário denunciar
contextos local e nacional. a falta de coerência entre o plano e os com-
O último bloco, Recur- promissos assumidos pelo Brasil na própria

As perspectivas sos Financeiros, deve definir


o financiamento para apoiar
UNFCCC e demais planos e políticas gover-
namentais, como o Programa de Aceleração

de organizações ações de mitigação, adapta-


ção e cooperação tecnológica.
do Crescimento (PAC). Já o Plano Decenal de
Expansão de Energia 2008-2017 dá destaque

da sociedade Existem muitas propostas


na mesa, desde a criação de
para termoelétricas, aumentando as emissões
de CO2 provenientes desta fonte em 172%, e

civil são um mecanismo vinculado ao


Banco Mundial, passando
usinas hidroelétricas, que apesar de renová-
veis, quando executadas sem o atendimento

diferentes das por taxação dos transportes


marítimo e aéreo, até a dispo-
de critérios de impactos socioambientais de
curto e longo prazo, podem não atender
de governo, nibilização de 1% do Produto
Interno Bruto (PIB) dos países
critérios de sustentabilidade.
As perspectivas de organizações da
em virtude industrializados.
O grande risco é que
sociedade civil (OSC) são diferentes das de
governo, em virtude de diferentes referências
de diferentes a discussão ocorra somente
sobre a ótica de mercado. Para
e abordagens. Os governos agem em função
de sua “soberania” e territórios nacionais,
referências o Brasil, é importante que o
governo não fique dependen-
usando como referência o interesse nacional.
No entanto, o mesmo serve, em muitas opor-
e abordagens do de contribuições externas; tunidades, como pretexto, já que não fica
mas que assuma a obrigação claro quem o define, a que tipo/modelo de
moral perante a população e desenvolvimento se refere, e quem de fato se
o planeta de alocar recursos beneficia com sua incorporação na definição
para lidar com mitigação e adaptação. dos planos e programas governamentais.
A sociedade civil usa como referência
valores que se baseiam nas temáticas de
Dicotomia entre posição externa
sustentabilidade ambiental, inclusão social,
e políticas nacionais
justiça e equidade. Com relação a princípios
O Brasil assume um papel fundamental nas usados, pode haver até convergência e
negociações internacionais sobre mudança consenso para fortalecê-los (como é o caso
do clima. Porém, seu protagonismo tem das responsabilidades comuns, porém dife-
sido marcado por posições defensivas, de renciadas, nas negociações de clima), mas
resistência a compromissos vinculantes, e de as propostas e posições que são derivadas
ausência e ineficiência de políticas domésticas deles podem eventualmente ser diferentes.
de enfrentamento das causas das emissões Atualmente, observamos um aumento
brasileiras. O Plano de Ação para Prevenção do número de organizações da sociedade
e Controle do Desmatamento na Amazônia, que se engajam ao tema mudanças climáti-
por exemplo, está à mercê de ingerências e cas. A sociedade é diversa e, mesmo tendo
interesses políticos e econômicos diversos. como base considerações comuns, mas com
Reconhecemos o fato de um país em de- finalidades distintas, as OSC buscam, ao se

28 Democracia Viva Nº 43
Dilemas planetários e as negociações internacionais em mudança de clima: perspectivas da sociedade civil

envolver com o regime multilateral, consoli- longo prazo (redução de 80% das emissões * Rubens
dar suas respectivas visões de mundo. até 2050, o que permitiria a alguns países Harry Born
Uma das primeiras formulações de mais pobres terem um “espaço ambiental” de Representante do Vitae
Civilis Instituto para o
justiça climática, conceito cada vez mais carbono na busca do seu desenvolvimento).
Desenvolvimento, Meio
popular, emergiu na rede CAN1, ainda em Há grupos da sociedade que deman- Ambiente e Paz <www.
2001, para poder ser instrumental para as dam que a concentração na atmosfera desses vitaecivilis.org.br>,
organizações que então estavam envolvidas gases recue para menos de 350 ppm (partes há 18 anos, acompanha
as negociações
com o regime e obter dos negociadores as por milhão), para que tenhamos reais chan-
internacionais em
soluções que atendam critérios de equidade ces de evitar efeitos catastróficos. Do lado mudança de clima.
e justiça. de governos e empresas, diz-se que é melhor É membro do Conselho
Desde então, essas organizações atuar agora quando é mais barato. Outros da Campanha Global de
Ações para a Proteção
defendem a Justiça Climática, no sentido dizem que ainda não podem agir se os que do Clima (GCCA) e
de não fazer incidir ônus nas comunidades possuem mais condições e maior responsa- coordenador estratégico
mais vulneráveis e menos responsáveis pelas bilidade não tomarem a dianteira nas ações. da Campanha Brasileira
mudanças climáticas, e de evitar alternativas Todos argumentos compreensíveis, mas o (GCCA-BR) <rborn@
vitaecivilis.org.br>
de mercado que agravam concentrações de dilema fica: ninguém avança, pois ninguém
renda, desigualdades sociais e degradação avança. Aliás, o que avança é a tentativa de
** Esther Neuhaus
ambiental, em vez de adotar um novo mo- salvar, com trilhões de dólares, um modelo
Jornalista e geógrafa,
delo de desenvolvimento baseado em justiça econômico que ignora os impactos sociais e é gerente executiva
social e sustentabilidade ambiental. ambientais, que mantém na miséria milhões do FBOMS (www.fboms.
Para a CAN, há que se obter em Co- de pessoas e degrada os serviços ecossistê- org.br)
e faz parte da
penhague um acordo que objetive redução micos em todo o planeta.
Coordenação Executiva
adicional de pelo menos 40%, com relação da Campanha Brasileira
aos níveis de 1990, das emissões dos países de Ações para a
industrializados, com vistas a atingir metas de Proteção do Clima
(GCCA-BR) <www.
tictactictac.org.br> /
<estherneuhaus@uol.
O tempo urge! É hora de ação climática!

O relógio continua a marcar a passagem atuais negociações sobre mudança do cli-


do tempo. Ouçam o tic-tac-tic-tac e, a ma é o sentido de urgência. É indispensá-
cada instante, imaginem quantas mortes, vel que o Brasil assuma seus compromissos
de seres humanos e de outros seres, ocor- históricos, atuais e com a sustentabilidade
rem por conta da manutenção das atuais futura do país, crie um senso de urgência
1 CAN – Climate Action
políticas e práticas econômicas. Para não e trate o tema com responsabilidade. Network é uma rede mundial
ser vítima nem cúmplice das consequên- A campanha pretende ampliar a de ONGs que, desde 1990,
tem centrado suas ações
cias das mudanças de clima, é importante interação e cooperação de grupos da no monitoramento das
negociações internacionais
que cada cidadã e cidadão seja agente de sociedade que atuam em diversos campos sobre mudanças climáticas.
transformações dos próprios hábitos de como defesa do meio ambiente, direitos A CAN tem reiterado a
obrigação ética e política
consumo e, mediante instrumentos demo- humanos, erradicação da pobreza, acesso dos países industrializados
cráticos, das políticas públicas e estratégias à justiça, agroecologia, segurança alimen- em cooperar, com recursos
financeiros e tecnológicos,
empresariais pertinentes à promoção de tar, governança e cidadania, movimentos de forma que países em
justiça e sustentabilidade ambiental, social sindicais e sociais, grupos religiosos e ju- desenvolvimento possam
honrar seus compromissos
e cultural dentro de novos padrões de ventude. Esse tipo de iniciativa demonstra com a Convenção, mas
produção e consumo. que sociedade civil e movimentos sociais exigindo dos primeiros a
redução substancial de
Essa é uma das razões para o enga- organizados podem levar os governos a GEE em seus próprios
jamento de pessoas e organizações na terem posições mais firmes no enfrenta- territórios. Tal postura
reconhece a limitação dos
campanha global para ações de proteção mento da crise ambiental e das mudanças instrumentos de flexibilização
do clima (Global Campaign for Climate climáticas. O mote da campanha é “Tic- do Protocolo de Kyoto,
que permite investimentos
Action/GCCA), que articula as demandas tactictac: É hora de ação climática. É hora por “créditos” de carbono.
da sociedade para resultados efetivos da de justiça climática. É hora de soluções A CAN foi formada por
entidades ambientalistas,
COP 15. climáticas! Antes que seja tarde!” mas, recentemente, conta
O que mais move a sociedade civil nas com o engajamento de ONGs
de desenvolvimento social
e direitos humanos <www.
climatenetwork.org>.

SETEMBRO 2009 29
artigo
Carlos Minc*

O Brasil
eo
futuro
do clima
A mudança do clima é provavelmente o problema mais grave que a humanidade deverá

enfrentar neste século. Se não conseguirmos reduzir drasticamente as emissões de ga-

ses de efeito estufa, as consequências serão desastrosas: aumento do nível dos mares,

aumento na intensidade e frequência de eventos extremos, como furacões, enchentes e

secas, aumento da área de doenças endêmicas, como malária e dengue.


Em 2004, o Catarina foi considerado o primeiro furacão extratropical no Atlântico Sul

30 Democracia Viva Nº 43
e também o primeiro a atingir o Brasil. Ele fósseis foi responsável, em 2000, por mais de
deixou no seu rastro pelo menos três mortos 50% das emissões mundiais. A outra metade
e 100 mil casas destruídas, mas também vem de várias fontes e gases distintos.
deixou um alerta que não pode ser negligen-
ciado. Os modelos climáticos que simulam
Esforço global
as consequências do aumento de energia na
atmosfera indicam a possibilidade de surgi- Uma das principais características do pro-
mento de furações nessa região. Isso é muito blema é que ele não tem uma solução única
preocupante por ser mais uma evidência de que envolva apenas um gás, um setor ou um
que os impactos da mudança do clima já país. A solução tem de ser global. Por isso
estão em curso. Os impactos não se restrin- mesmo, o fórum mais adequado para decidir
gem àqueles de natureza violenta. Para nós, a estratégia de enfrentamento da mudança
no Brasil, os impactos podem vir na forma do clima é o das Nações Unidas. A dificuldade
de savanização da Floresta Amazônica, de desse fórum é que envolve a participação
redução das chuvas e consequente redução de cerca de 200 países com características e
nos níveis dos reservatórios e do potencial de interesses diferentes. No caso da Convenção
geração de hidroeletricidade, de redução de do Clima, todas as decisões são tomadas
área agricultável, por exemplo a área para a por unanimidade, o que torna demorado
cafeicultura, de inundações etc. o processo decisório de um problema cuja
O problema já é bastante conhecido solução é urgente.
e a cada novo relatório do Painel Intergo- Os principais causadores da mudança
vernamental sobre Mudanças Climáticas do clima são os países desenvolvidos que,
(IPCC) ou estudo divulgado, a gravidade do desde a revolução industrial, vêm consu-
problema só vem se confirmando ou até mindo combustíveis fósseis, desenvolvendo
mesmo aumentando. As causas são bem processo industriais que emitem gases de
conhecidas e podem ser atribuídas ao modelo efeito estufa, enfim, criando o modelo de
de desenvolvimento inaugurado com a revo- desenvolvimento responsável pela situação
lução industrial, com particular acentuação atual. A chamada contribuição histórica dos
a partir da segunda metade do século XX. países desenvolvidos é reconhecida na Con-
Esse modelo de desenvolvimento está base- venção do Clima, assim como a sua capaci-
ado na farta disponibilidade de combustíveis dade para enfrentar o problema. Justamente
fósseis que, ao serem queimados, liberam o por serem desenvolvidos, têm recursos, tec-
dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera, nologias e devem contribuir para a solução
principal gás de efeito estufa, aumentando do problema de duas formas: reduzindo suas
a propriedade de reter calor na atmosfera. próprias emissões e ajudando com recursos
Segundo o World Research Institute (WRI), o e tecnologias os países em desenvolvimento.
CO2 liberado pela queima dos combustíveis Todas as contas mostram que ne-
nhuma solução será possível se os países
em desenvolvimento seguirem os mesmos
O Plano padrões de produção e consumo, e portanto
As emissões do Brasil têm um perfil bastante de emissões, dos países desenvolvidos. Isso
particular. A nossa principal fonte de emissão se deve ao fato de que as emissões que a
de CO2 é o desmatamento. Também temos
emissões significativas na área da agropecu-
atmosfera ainda é capaz de suportar, com
ária e do transporte de carga pelo uso do um mínimo de segurança para que não ve-
diesel. No geral, a nossa matriz energética nhamos a enfrentar uma situação perigosa
é muito limpa, por conta da participação no planeta, são poucas. Esse espaço de car-
de fontes renováveis, como o etanol e a hi-
bono é pequeno e deverá ser dividido entre
droeletricidade, mas precisamos cuidar para
que a participação das energias renováveis todos os países do planeta segundo algum
continue alta. O Plano Nacional de Mudança critério. Existem vários critérios e todos têm
do Clima tem metas claras de redução da um grau de subjetividade porque envolvem
taxa de desmatamento e de manutenção da
questões éticas, econômicas etc. O certo é
matriz energética.
que o esforço de redução deverá ser amplo.
Acreditamos que o esforço global de redu-

SETEMBRO 2009 31
artigo

ção de emissões só poderá ser enfrentado Posição confortável


de forma eficiente e justa se forem levados
No fim do ano, em Copenhague, os países
em consideração suas dimensões científica,
deverão chegar a um acordo sobre essas e
econômica e ética.
outras questões. Para o Brasil, é muito im-
A ciência vai dizer qual o espaço de
portante garantir que o acordo seja forte o
carbono que ainda existe disponível. Os rela-
suficiente para assegurar que a temperatura
tórios do IPCC dizem que a melhor estimativa
média do planeta não exceda a fronteira
para esse espaço é de 1.800 Gt CO2e (bilhões
dos 2ºC acima da época pré-industrial, que
de toneladas) neste século, o que daria em
configuraria uma situação perigosa para o
média 18Gt CO2e por ano. As emissões mun-
sistema climático.
diais em 2005 já superaram 45 Gt CO2e. Se as
Para o Brasil, também é muito im-
emissões continuarem no ritmo atual, antes
portante garantir o seu desenvolvimento
de 2030, ultrapassaremos esse limite máxi-
em bases sustentáveis. Temos boa vontade e
mo. Isso indica o tamanho do
seremos criativos para encontrar saídas que
esforço que tem de ser feito
Neste momento no âmbito mundial em prazo
não signifiquem restrições ao crescimento,
e sim novas oportunidades de desenvolvi-
relativamente curto.
de transição, A economia deverá in-
mento. Poderemos estimular novos setores
da economia, por exemplo, a fomentar a
dicar quais as alternativas de
economia da floresta de forma que ela seja
o Brasil tem de menor custo para a sociedade
mais lucrativa, traga mais benefícios para a
como um todo. O IPCC, no
população locar e crie mais conhecimento
saber usar as sumário executivo do relatório
sobre mitigação da mudança
do que a economia predatória do desmata-
mento. A maior garantia de permanência da
suas vantagens do clima (AR4), identifica as
alternativas de redução de
floresta é o interesse econômico nela em pé.
O que não interessa de fato ao Brasil
comparativas emissões e os custos asso-
ciados para tentar mapear as
são as soluções que não sejam suficiente-
mente eficazes para conter o aumento da
com ousadia alternativas disponíveis. Al-
gumas ações têm até mesmo
temperatura do planeta, que sacrifiquem o
desenvolvimento do país, ou que não ajudem
para não custo negativo, mas não são
implementadas por barreiras
a transição do país para uma economia de
baixo carbono.
perder o trem várias. Outras alternativas são
extremamente caras e sua
Nesse sentido, alguns pontos devem
ser ressaltados. A descarbonização necessá-
implementação necessitaria
da história importante aporte financeiro.
ria é de tal monta que somente medidas de
eficiência e economia não serão suficientes.
Os instrumentos econômicos
O que o mundo tem pela frente é uma trans-
para viabilizar essa transição
formação radical da sua matriz energética e
de uma economia de alto carbono para uma
tecnológica. Neste momento de transição, o
economia de baixo carbono estão sendo
Brasil tem de saber usar as suas vantagens
desenhados.
comparativas com ousadia para não perder o
A dimensão ética, a mais subjetiva e
trem da história. Temos de encarar o desafio e
a principal peça na negociação é aquela que
incorporar essa nova variável no planejamen-
vai determinar a responsabilidade sobre essas
to, nas decisões de investimento, nas políticas
reduções. Em outras palavras, quem paga a
públicas, enfim em todas as instâncias.
conta. As melhores oportunidades para redu-
Não podemos correr o risco de sair
zir emissões com tecnologias disponíveis e a
atrás para mais adiante entrar de forma
custos baixos podem não estar nos países que
atabalhoada nesse novo mundo onde impera
contribuíram mais para a mudança do clima
a lógica verde e descarbonizada. Além do
e que têm maior capacidade para enfrentá-la.
mais, várias das alternativas que estão na
A forma de pagar essa conta inclui criação
mesa também podem ter efeito anticíclico
de fundos, mecanismos de financiamento,
neste momento de crise mundial.
transferência de tecnologia, entre outras.
O Brasil se encontra em situação
extremamente confortável. Nossa matriz

32 Democracia Viva Nº 43
O Brasil e o futuro do clima – reflexões para Copenhague

energética é limpa e faremos todo o possível em todos os biomas, inclusive de ampliação * Carlos Minc
para não sujá-la. Agora, além da matriz ener- da área da Mata Atlântica. Ministro do Meio
gética limpa, temos o Plano Nacional sobre O desmatamento da Amazônia este Ambiente
Mudança do Clima, temos metas e temos o ano será o menor dos últimos 20 anos. Essa
Fundo Amazônia operando e que já aprovou é uma grande vitória, pois atingiremos as
os primeiros cinco projetos. Estamos lutando metas do plano provavelmente antes do
para que o Fundo Clima seja aprovado o mais previsto. Essas metas, que tantos criticaram
rapidamente possível para viabilizar a política pela dificuldade em serem atingidas. Não
de mudança do clima. tem país no mundo, nem dentro nem fora
Uma das metas do plano assinado do Protocolo de Kyoto, que tenha conseguido
pelo presidente Lula, em dezembro de 2008, tamanha redução nesse período.
cortar em 70% o desmatamento da Amazô- Fazendo nossa parte, temos legiti-
nia até 2017, reduzirá as emissões em 4,6 midade para cobrarmos dos países desen-
bilhões de toneladas de CO2, mais do que volvidos, os grandes responsáveis pela crise
o compromisso total assumido em Kyoto climática, que façam a sua parte, que, no
pelos países desenvolvidos. E nós faremos nosso entendimento, inclui metas fortes de
mais; temos de ampliar as metas de redução redução de emissões domésticas, além de
para os setores da economia e de redução apoio financeiro e tecnológico para que os
do desmatamento para os demais biomas. países em desenvolvimento possam fazer a
Até o início de 2008, monitorávamos sua parte.
só a Amazônia; sem série histórica, não
havia como traçar metas para o Cerrado, a
Caatinga, a Mata Atlântica, o Pantanal e o
Pampa. Na atualização do plano, em 2010,
definiremos a diminuição do desmatamento

SETEMBRO 2009 33
artigo
Graziela Tanaka*

?
Poderá a
sociedade civil
global salvar
Copenhague
Cada vez mais, a sociedade civil ganha destaque nas decisões políticas internacionais, assim

como, cada vez mais, os debates internacionais são levados para a sociedade civil global.

A política internacional é complexa, o processo de negociação entre países, governantes

e delegados geralmente é um processo técnico e tedioso, muitas vezes restrito à diplo-

macia de portas fechadas, no qual poucas pessoas têm acesso. Os interesses poderosos

da indústria e das elites vinham antes da real preocupação expressada pela sociedade

civil. Ou pelo menos era assim. Hoje, com a Internet, a democracia vai além – além de

fronteiras nacionais ou físicas e de interesses de uma minoria política –, a democracia

pode chegar a qualquer um que, conectado à Internet, se preocupe com questões globais

e esteja disposto a se mobilizar.


Desde 2007, a Avaaz.org tem levado a voz da sociedade civil global diretamente para os

34 Democracia Viva Nº 43
meios de tomada de decisão internacional, uma ação pequena e individual, somada a todas
sejam os encontros da Organização das Nações as outras e direcionada para um fim específico,
Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas, seja acaba tendo um impacto enorme.
do G-8 ou encontros multilaterais regionais. Políticas públicas são influenciadas, elei-
O uso da tecnologia e do ciberativismo aliado ções podem ser definidas, a reputação de um
a uma estratégia política ágil e eficiente têm chefe de Estado pode ser consagrada ou des-
possibilitado a democratização desses fóruns, moralizada. Esse é o poder que todos nós temos
antes restritos a diplomatas e delegados repre- por meio da mobilização online direcionada e
sentantes dos países envolvidos. Se as notícias coordenada. O resultado das campanhas é uma
hoje em dia podem se alastrar na velocidade da comunidade realmente global, que abrange
luz, por que não usar a Internet também para 13 línguas e já acumulou mais de 3,6 milhões
fins políticos, mobilizando milhões de pessoas de apoiadores de todos os países do planeta.
por questões que realmente importam?
Foi pensando assim que a Avaaz foi
Foco no meio ambiente
lançada, organizando campanhas pelo fim
da guerra no Iraque, contra o aquecimento Um dos grandes focos da Avaaz é a questão
global, denunciando abusos de direitos hu- climática. Em 2007, houve grande despertar
manos, lutando contra a fome, entre muitas global sobre o imenso, e possivelmente trá-
outras campanhas. Com o uso da Internet e gico, impacto das mudanças climáticas. Entre
da tecnologia, é possível alcançar milhões de todos os assuntos que assolam o planeta hoje,
pessoas do mundo todo com apenas um clique pode-se dizer que nenhum outro unifica toda
do mouse, e a combinação das ações de cada a humanidade em torno da necessária busca
pessoa se transforma em uma voz poderosa por uma solução conjunta como as mudanças
capaz de influenciar líderes políticos, negocia- climáticas. Literalmente, não há um ser humano
ções e tratados. que não seja impactado.
A Avaaz foi fundada com a missão de Porém, a solução não depende de cada
“fechar a lacuna entre o mundo em que vive- um de nós, mas está nas mãos dos nossos go-
mos e o mundo que queremos”. Essa missão vernantes, nas reuniões da ONU e nos encontros
parte do princípio que a maioria das pessoas de países emissores e grandes economias. São
do mundo quer proteções mais fortes para o nesses encontros que as decisões serão toma-
meio ambiente, respeito maior pelos direitos das, os tratados serão assinados e nos quais
humanos, esforços concretos para acabar com o futuro do planeta será definido. Por mais
a pobreza, a corrupção e a guerra. Nem sempre que ações e mudanças de hábitos individuais
a vontade da sociedade civil é representada nos sejam importantes, só atingiremos as metas
meios de decisão, por isso a Avaaz foi criada de redução das emissões de carbono se países
como um mecanismo para unificar as vozes se comprometerem e implementarem políticas
sobre questões globais e levá-las para nossos públicas que regulem a indústria e seu consumo
governantes. de energia.
A ascensão de um novo modelo de de- Infelizmente, nem sempre os líderes
mocracia participativa, guiado pela sociedade globais defendem os interesses do planeta ou
civil por meio da Internet, está mudando países, a vontade da opinião pública. Pelo contrário,
da Austrália passando pelas Filipinas até os Esta- na maioria das vezes, os governos estão ao lado
dos Unidos. A Avaaz levou essa tendência para do lobby industrial, representando as elites em-
a escala global, conectando pessoas além das presariais, que não querem ser reguladas nem
fronteiras e trazendo nova voz para a política multadas pela sua poluição. Ainda mais com a
internacional que antes era inacessível para a crise econômica global, o lucro e o crescimento
população. econômico estão batendo de frente com metas
Cada alerta da Avaaz contém informa- mais ambiciosas para a redução das emissões
ções sobre algum problema ou crise global e de carbono. Nesse contexto, a opinião pública
um convite para as pessoas participarem de uma global assumiu papel decisivo nas reuniões cli-
ação concreta: uma petição, a oportunidade de máticas internacionais. Foi preciso um grande
enviar mensagens para governantes ou de con- esforço da sociedade civil para se opor ao lobby
tribuir para financiar uma campanha midiática. industrial, baseando-se nas pesquisas científicas
Cada pessoa que participa está se mobilizando e definindo, assim, quais as expectativas míni-
com outras centenas de milhares de vozes de mas para um acordo internacional. O espaço
todos os cantos do planeta. O que aparenta ser nos encontros da ONU precisou ser conquistado

SETEMBRO 2009 35
artigo

de forma que as delegações de representantes fisicamente nas conferências internacionais.


dos países presentes não pudessem ignorar as
demandas da sociedade civil. Para isso, foi pre-
Marcha virtual
ciso organizar ações de visibilidade, conquistar
espaço na mídia, mobilizar números massivos Em Bali, durante a COP 13, três países – Esta-
de apoiadores e dialogar diretamente com os dos Unidos, Japão e Canadá – formaram uma
países presentes. aliança recusando-se a negociar qualquer meta
O ciberativismo permitiu que essa par- concreta para redução de emissões de gases de
ticipação fosse além – que qualquer pessoa efeito estufa. O posicionamento desses países
conectada à Internet, de qualquer lugar do só foi divulgado durante as negociações, por
mundo, pudesse ser informada, em um curto isso a reação e a mobilização precisavam ser
espaço de tempo, sobre como seus países estão feitas de forma ágil e direcionada.
se posicionando e tendo, com essa informação, A Avaaz rapidamente acionou sua
a oportunidade de se manifestar instantane- lista de milhões de pessoas denunciando o
amente pela Internet. Dessa forma, qualquer posicionamento desses países e começou a
pessoa que se preocupe com a questão cli- colocar pressão em todas as frentes. Um aler-
mática tem à sua disposição uma ferramenta ta foi enviado para os apoiadores da Avaaz,
para influenciar as negociações e ver seus ideais convocando-os a participar de uma “marcha
representados, mesmo não estando presente virtual”. Em poucos dias, mais de 550 mil pes-
soas participaram da ação online, que foi levada
diretamente para o centro da conferência em
Bali. Os “ativistas virtuais” foram representados
pelas bandeiras de seus países e capturaram
a atenção da mídia. No dia seguinte, a foto
da manifestação pedindo metas concretas foi
publicada em vários jornais ao redor do mundo.
Mas seria necessário muito mais que
isso para fazer Japão, Canadá e Estados Unidos
mudarem o posicionamento nas negociações.
Vimos que seria preciso acionar os apoiadores
desses três países para colocar mais pressão
sobre seus governantes. Enviamos alertas espe-
cíficos para eles denunciando a intenção desses
países de boicotar um acordo climático forte
e pedindo para que as pessoas entrassem em
contato com seus chefes de Estado.
Milhares de membros japoneses da
Avaaz enviaram e-mails para o primeiro-ministro
Fukuda, membros estadunidenses enviaram
uma mensagem dizendo “ignore a equipe do
Bush, ela não nos representa” e membros ca-
nadenses financiaram um anúncio em seu país
denunciando a posição do primeiro-ministro
Stephen Harper.
A pressão continuou, era preciso deixar
claro que um posicionamento fraco não seria
tolerado. A próxima etapa foi a publicação de
um anúncio no Jakarta Post imitando o poster
do filme “Titanic”, com o rosto de Bush, Fukuda
e Harper, que dizia: “Sem metas. Sem icebergs.
Somente um desastre global – se aproximando”.
O jornal foi distribuído para todas as pessoas
presentes no encontro, envergonhando publica-
mente os três países. No último dia do encontro,
Japão e Canadá, em uma virada surpreendente,
aderiram à meta de reduzir as emissões em no

36 Democracia Viva Nº 43
Poderá a sociedade civil global salvar Copenhague?

mínimo 25% a no máximo 40% até 2020. Es- um sinal claro para o presidente: os brasileiros * Graziela Tanaka
tados Unidos ficaram completamente isolados. estão prontos para agir quando se trata de Socióloga, coordenadora
Somente no encerramento do encontro, depois um assunto tão importante como a Floresta de Campanhas Globais
de uma vaia de todos os países presentes, os Amazônica. Os alertas se disseminaram rapi- no Brasil da Avaaz
delegados estadunidenses, finalmente, anun- damente em listas de discussões pela Internet
ciaram que iriam aderir ao consenso. afora, provando que o modelo de mobilização
A experiência em Bali mostrou que a online, quando direcionado para uma campa-
pressão popular e o vexame público podem nha concreta, é capaz de mobilizar dezenas de
ter grande impacto nas decisões tomadas. Em milhares de pessoas rapidamente.
Póznan, na COP 14, a história se repetiu. Dessa O potencial da Internet de mobilização
vez, a Alemanha que, no ano anterior, havia para fins políticos ainda é pouco explorado.
sido um grande aliado contra as mudanças Sabemos que, sem a Internet, talvez o atual
climáticas, começou a sofrer forte pressão da presidente dos Estados Unidos, Barack Obama,
indústria poluidora nacional para não assumir não tivesse conseguido arrecadar uma quantia
metas de redução da emissão de carbono. recorde para sua campanha, que o levou à vitó-
Com a crise econômica global, a primei- ria. Sabemos que, sem a Internet, os protestos
ra-ministra Angela Merkle se viu dividida entre recentes no Irã não teriam ganhado o mundo,
os interesses ambientais e o lobby industrial. A minuto a minuto pelo Twitter, e milhões de
Alemanha, que antes apoiava um tratado forte, pessoas não teriam testemunhado a triste morte
agora dava sinais de que não se compromete- de Neda Agha-Soltan.
ria. A Avaaz rapidamente mobilizou sua lista, A visibilidade dos protestos nos mostra-
conseguindo arrecadar fundos para financiar ram que, até nos países com menos liberdade
outro anúncio polêmico para as negociações. de expressão, ainda há pessoas com força para
Os anúncios mostravam a primeira-ministra fazer valer sua voz. Sem a Internet, talvez não
como “Darth Merkle”, responsabilizando in- ficaríamos sabendo dos abusos dos direitos
teiramente a Alemanha pelo possível fracasso humanos escondidos nas selvas peruanas ou
das negociações. no interior do Zimbábue. Porém, vivemos em
Depois da publicação do anúncio, que um mundo onde temos a oportunidade e a
foi disseminado por todo o centro de conven- opção de nos manter informados e, agora,
ções, chegando à mídia e às delegações dos temos também a opção de nos mobilizar e agir.
países presentes, uma ação virtual foi lançada e Daqui a poucos meses, o mundo todo
milhares de pessoas do mundo inteiro enviaram estará reunido em Copenhague, onde o tratado
mensagens para Angela Merkle pedindo que pós-Kyoto será assinado e, assim, definido o
ela voltasse a ser uma aliada do movimento futuro da humanidade. Ainda há muita resis-
climático. A pressão popular, as mobilizações tência política por parte dos grandes emissores
e o lobby político direto com os delegados e de carbono, e ainda é difícil prever qual o posi-
diplomatas, mais uma vez, influenciaram o cionamento político de cada país. A Avaaz está
resultado. se preparando para ter a mesma agilidade de
Bali, Póznan e da campanha brasileira, pronta
para mobilizar pessoas do mundo todo e expor
Em casa
aqueles que tentarem diluir um tratado global
Recentemente, o Brasil também comprovou o vinculante, justo e forte. Hoje, temos a opção
poder da mobilização popular virtual na influ- que não tínhamos a apenas duas décadas atrás,
ência de decisões políticas. O Senado aprovou podemos todos estar em Copenhague prontos
a Medida Provisória 458, que privatizaria 67 para agir e fazer nossas vozes chegarem aos
milhões de hectares da Floresta Amazônica. En- ouvidos de nossos representantes.
quanto a MP aguardava a sanção do presidente
Lula, a Avaaz convocou os membros brasileiros,
para que pressionassem o presidente pedindo
o veto dos pontos mais perigosos da MP. Em
menos de três dias, 14 mil pessoas ligaram para
o gabinete de Lula e, duas semanas depois, 30
mil pessoas enviaram e-mails.
A MP foi sancionada e os dois pontos
criticados pela campanha foram vetados. A
agilidade e o tamanho da mobilização enviaram

SETEMBRO 2009 37
intern
internacional
Pierre Calame*

Depois de mais de 20 anos, opera-se uma tomada de consciência: nosso modelo atual

de desenvolvimento não é viável em longo prazo. Apenas 20% da população mundial

desfrutam de um padrão material a que todos os demais aspiram, e já agora o consumo

total de nossas sociedades não é compatível com a manutenção dos grandes equilíbrios

ecológicos do planeta.

O que acontecerá quando todos desfrutarem disso? E como recusar a 80% que

não têm, até o presente, as migalhas do festim do consumo sua vez de sentar-se à mesa?

Todo mundo começa a ficar transtornado.


[Traduzido do francês por
Ligia Filgueiras] O aquecimento climático se anuncia mais rápido e mais forte do que jamais se pôde

38 Democracia Viva Nº 43
acional
imaginar. Mas todo esse transtorno de nada
adianta. Os grandes países ditos emergentes,
a começar pelo Brasil e pela China, não veem
porque deveriam sacrificar o desenvolvimento
rumo ao padrão de vida dos países ricos. E isso
bem-estar; rumo a uma economia responsável,
plural e solidária; quando a economia torna-
-se econômica; rumo à ecologia territorial e à
sociedade da utilização.

serve para justificar a devastação das florestas.


Da economia de acumulação
Cada um se exime de responsabilidade.
à economia do bem-estar
Pior que isso, como demonstra a crise financeira
e econômica mundial atual, todo mundo fica Chegou ao campo da economia aquilo que se
transtornado quando se arrefece o crescimento. verifica nas obras humanas: os meios terminam
Cada país tem o próprio plano de recuperação. por sobrelevar os fins. Se a busca do bem-estar
A economia atual tem um só pedal para o freio para todos era precisamente o fim destinado à
e o acelerador. economia, a acumulação de riquezas materiais
De um lado, é preciso frear para evitar tornou-se o meio quase único. Com tal método,
a catástrofe da mudança climática; de outro, é o bem-estar acabou se tornando como o ho-
preciso acelerar para evitar a catástrofe social. rizonte, que se afasta cada vez que queremos
Mas o único pedal que resta é o da moeda. nos aproximar dele! Existe ainda uma relação
Medem-se o consumo de energia e o consumo entre o enriquecimento das sociedades e seu
do trabalho humano com as mesmas unidades bem-estar?
de medida, os mesmos dólares! Uma série de pesquisas mostrou que,
Todo mundo sabe que é necessário após 30 ou 40 anos, o crescimento constante
passarmos por ampla transição que pressupõe do Produto Interno Bruto (PIB) por habitante é
uma nova concepção da economia. No entanto, acompanhado de uma estagnação do sentimen-
como aplicar uma igualmente ampla estratégia to de felicidade, de bem-estar. Tais pesquisas,
de mudança? No livro Ensaio sobre a economia por outro lado, mostram que, dispondo da
– que utiliza a ortografia antiga “oeconomia”, e mesma riqueza, o grau de felicidade nos países
não “economia”, para destacar que a expressão pode ser extremamente diferente.
significa em grego “as regras de gestão do lar, Verifica-se, por exemplo, que não é
do espaço doméstico” –, pesquisei a ponto de somente a quantidade de produção que conta,
compreender o que seria necessário para orga- mas também a maneira de produzir. A coerência
nizar tal estratégia de transformação. entre aquilo que se faz e aquilo em que se crê,
Particularmente, mostrei que seria ne- a riqueza da vida social e, o prazer de viver, são
cessário a cooperação entre si de quatro tipos mais determinantes que a riqueza material. É
de atores frequentemente ignorados: os inova- preciso, pois, retornar às próprias finalidades
dores, que “inventam” soluções para responder da atividade econômica, nos diz esse primeiro
a uma situação que lhes parece inaceitável; os tipo de inovador.
teóricos, capazes de repensar todo o sistema; A segunda corrente, feita de inovações
os propagadores, capazes de transformar expe- de saída diversificadas, fragmentadas, pouco
riências e reflexões de pequena dimensão em a pouco se conscientiza de sua coerência e da
processos mais amplos; os reguladores, enfim, complementaridade das inovações originadas
os poderes públicos em geral, capazes de mo- separadamente, mas todas em reação a uma
dificar o contexto em que agem uns e outros. economia dominante, internacionalizada, que,
Vou me fixar, aqui, em uma das catego- em nome da economia de escala e da divisão
rias: os inovadores. São numerosos, em todo internacional do trabalho, produzia muita
o mundo, aqueles que não se resignam ao exclusão social ou mantinha na miséria certos
absurdo. São os precursores. Não pretendem atores do processo internacional de produção,
repensar todo o sistema, mas quem quer que anônimos aos olhos do consumidor final.
deseje conceber novos caminhos deve prestar Eu assinalaria aqui quatro movimentos:
grande atenção a eles. Hoje, podemos vislum- o microcrédito; as moedas complementares; o
brar quatro grandes direções de inovação: da comércio equitativo; e a renovação da economia
economia de acumulação a uma economia do social e solidária.

SETEMBRO 2009 39
internacional

Sobre o microcrédito, os sistemas de Média, na Europa, diferentes tipos de moeda


crédito mútuo comunitário existentes, sob coexistiram, uma destinada a trocas locais, que
diversos nomes, na maioria das sociedades era impossível entesourar, outra destinada a tro-
baseiam-se nas relações sociais e no controle cas mais distantes e a constituição de reservas.
social que permitem tais relações para ajudar, Além do número modesto de pessoas
alternadamente, aqueles que necessitam. que se beneficiam dessas moedas complemen-
O mérito do economista Mohamed tares e da importância limitada dos fluxos de
Yunus, de Bangladesh, recente Prêmio Nobel câmbio que geram, essa inovação permite uma
da Paz, foi o de teorizar essas práticas e de nova visão de moeda.
dar a elas uma grande visibilidade no cenário A terceira inovação é o comércio equi-
internacional, permitindo que se desenvolvam tativo. Esse conceito vem com a tomada de
em grande escala. consciência de consumidores dos países ricos
Ele desmentiu o adágio “não se em- de que o consumo de café, bananas, brinque-
presta senão aos ricos”. Lá, dos e computadores era proporcionado por
onde os ricos, para obter sistemas internacionais de produção nos quais
O sistema de crédito, empenham seu pa- os produtores de base não obtinham mais que
trimônio, os pobres, por meio migalhas do bolo com o qual tinham contribu-
produção é a do microcrédito, empenham ído para pôr na mesa, havendo mesmo casos
a honra perante seus familia- em que crianças ou adultos eram praticamente
base de uma res. Depois dessa inovação, reduzidos à escravidão.
Mohamed Yunus mostrou Para esses consumidores, a contradição
interdependência, que, em um sistema “univer- era flagrante entre seus valores, frequentemente
salizado”, o desenvolvimento envoltos em cristianismo social, e a realidade
daí uma demandava uma combinação do impacto de seu consumo. Tomaram também
de iniciativas orientadas pela consciência do desconhecimento quanto às
solidariedade base. grandes cadeias internacionais de produção
Por seu lado, as moe- que conduziam aos produtos que adquiriam. O
em potencial das complementares reagem sistema de produção é a base de uma interde-
ao absurdo de uma econo- pendência, daí uma solidariedade em potencial
entre produtores, mia que se pretende eficaz, entre produtores, distribuidores e consumido-
mas que, no entanto, deixa res, mas o sistema econômico atual rompe essa
distribuidores coexistir, no mesmo lugar, relação, relegando-a ao anonimato.
sobre o mesmo território, os Esses consumidores descobriram, então,
e consumidores braços ociosos e os necessi- que seus atos de consumo tinham ainda mais
tados insatisfeitos. Quando importância que a cédula eleitoral, que uma
a economia, a quem cabe, cidadania econômica é tão importante quanto
logicamente, esse papel, não a cidadania política. O movimento permaneceu
consegue assegurar a conexão entre os capa- por muito tempo marginal, mas criou progres-
citados e os necessitados, é preciso encontrar sivamente novas referências nas mentes de
outros métodos. consumidores. A exigência de rastreabilidade
Redescobriu-se, então, iniciando em (conhecimento das etapas e dos fatores da
pequena escala, sistemas de troca de tempos produção) levaria ainda 20 anos após a que de-
de trabalho. Na Argentina, por exemplo, no terminou a qualidade do produto. Ela abrange
momento da crise econômica da década de hoje as próprias condições de produção.
1990, desenvolveu-se um sistema de troca ge- Por fim, a quarta inovação. Observa-se
neralizada que, de parente a parente, acabou atualmente uma renovação das antigas estru-
mobilizando mais de 1 milhão de pessoas. turas de economia social, como as grandes co-
Essa inovação também não tinha nada operativas e os fundos mútuos, e o surgimento
de novo. Nasceu na Áustria, um século antes, de numerosas iniciativas ditas de economia
igualmente em situação de crise. E, voltando solidária privilegiando a auto-organização.
mais atrás, descobriu-se que, durante a Idade O caráter de todas essas iniciativas

40 Democracia Viva Nº 43
Inovações para a concepção de modelo econômico viável e sociedade duradoura

consiste em recusar a ideia de que as empresas com transporte, com aquecimento ou com a * Pierre Calame
têm por única vocação produzir lucro, de se climatização dos alojamentos. Isso restitui um Diretor geral da
interessar tanto pela natureza da riqueza cria- espaço de iniciativa considerável no plano local. Fundação para
o Progresso do
da como pela sua repartição, e pelo direito de Esse é outro ângulo de enfoque. Há
Homem (FPH)
cada participante do processo de produção de interesse, de início, nas relações que possam
não ser um simples executante, mas também existir entre indústrias localizadas sobre o
um ator. mesmo território. Cada uma absorve energia e
matérias-primas e, a seguir, rejeita os resíduos.
Cada uma funciona separadamente. Por que,
Quando a economia torna-se
se são chamadas de promotoras da ecologia
econômica
industrial, não raciocinar inspirando-se nos
Essa terceira corrente de inovação, estimulada ecossistemas naturais?
pelas crises petroleiras de 1974 e de 1980, parte Em um ecossistema complexo, o máximo
da constatação de que, durante decênios, o de benefício é extraído das fontes da energia
crescimento da riqueza foi acompanhado de solar por meio de sistemas de troca entre
um crescimento proporcional dos consumos todos os elementos do ecossistema. E quanto
de energia e de matérias-primas. Era preciso mais um ecossistema é rico, mais os ciclos de
romper essa relação. É o que se chama de de- troca se fecham, o rejeito de um tornando-se
sacoplagem: graças a uma melhor “eficiência a matéria do outro.
energética”, é preciso produzir mais riqueza e Assim, foram instaurados os primeiros
bem-estar com menos energia e matéria-prima. sistemas de “simbiose industrial”, nos quais
Dito assim, isso parece evidente, mas é se procurariam as complementaridades entre
preciso lembrar que os atores mais bem-orga- as atividades de produção em um mesmo
nizados – empresas petrolíferas, companhias território.
de produção e distribuição de eletricidade, em- Essas primeiras iniciativas provocaram,
presas de aquecimento coletivo, construtores, e também, uma tomada de consciência do péssi-
mesmo produtores de automóveis –, são todos, mo conhecimento que se tinha da inserção da
de um modo ou de outro, interessados em que atividade humana nos ecossistemas.
o esbanjamento continue: são frequentemente Essa reflexão desvendou aquilo que
remunerados pela energia produzida e vendida se denomina “a sociedade de utilização”. É
ou têm interesse, como os construtores, em também uma velha ideia reaplicada aos inte-
oferecer os produtos menos caros possíveis sob resses atuais. Depois de muito tempo, alguns
condição, em seguida, de que os proprietários viriam a se indignar com o que se denomina
ou locatários elevem os custos de aquecimen- de “a obsolescência incorporada aos produtos
to ou de climatização, ou ainda, no caso dos industriais”. A sociedade de utilização se opõe
produtores de automóveis, se lancem a uma a essa tendência.
corrida pela potência. Se, para se chegar a uma sociedade
Pode-se dizer que em 2009, se os atos duradoura, é necessário que cada um encontre
ainda não estão à altura dos discursos, a toma- uma atividade, expressão de sua utilidade para
da de consciência da necessidade da desaco- com os outros, e que se economize a matéria-
plagem está presente. Contudo, assim como na -prima e energia, será preciso passar do tudo
questão do comércio equitativo, o movimento a jato para o tudo reparável. Generalizando, é
é freado pela enorme ignorância que temos preciso sistematicamente substituir os bens pe-
sobre a energia e a matéria-prima que fazem los serviços. Isso pressupõe outra concepção dos
parte daquilo que consumimos. produtos industriais, que devem ser modulares
O interesse em que essa economia torne- em vez de integrados, e isso faz da criação de
-se econômica é também de nos reconduzir a normas um verdadeiro bem comum.
uma aproximação mais concreta da produção
e do intercâmbio. Sabe-se, por exemplo, que
o essencial da eficiência energética tem a ver
com a organização dos territórios, as despesas

SETEMBRO 2009 41
ENTRE
Entrevista

VISTA
Leonardo
Boff
O refúgio em Jardim Araras (região ecológica do município
de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro), onde fauna, flora
e seres humanos convivem em plena harmonia, é uma mostra
de como as escolhas e os caminhos traçados por
Leonardo Boff apontam, antes e primordialmente,
para o respeito aos ambientes natural e
espiritual e a todos os seres que neles
habitam. Chegar nesse cenário é como
mergulhar em um dos seus
70 livros (que tratam essencialmente
de teologia, ecologia, espiritualidade,
filosofia, antropologia e mística), nos
quais, de diversas formas,
o conceito de bem viver é veemente
defendido. Assim é Leonardo Boff
e o lugar onde escolheu passar a vida,
com sua companheira, a educadora
e ativista social Márcia Maria Monteiro
de Miranda, e sua prole ‘por
afinidade’: cinco filhos, uma filha e
cinco netos(as).
Filósofo, teólogo, ativista social,
árduo defensor dos direitos
humanos, ambientalista,
escritor, religioso,
ex-frade franciscano, um dos
principais idealizadores da
Teologia da Libertação, que
revolucionou
a Igreja Católica a partir da
década de 1970, bem como
Democracia Viva (DV) – Quando quase todos eles. Meu pai enfrentava de fato as
e onde você nasceu? situações de preconceito tentando desmontá-las.
Leonardo Boff – Nasci em Concórdia, uma A maioria era muito preconceituosa, os italianos,
cidade de referência por ser a sede da Sadia e da alemães, poloneses, e o são até hoje. Rejeitavam
Perdigão, é uma cidade de imigrantes italianos. os moradores originais de lá. Meu pai os defen-
Meus avós eram do grupo dos desbravadores da dia, defendia as terras deles, trazia-os para a
região, derrubaram matas, abriram estradas e escola, quando não queriam vir, por medo, pois
ajudaram a construir o município de Concórdia. alguns até apanhavam por serem ‘brasileiros’ e
Nasci nesse contexto. Somos 11 irmãos e somos não italianos, alemães ou poloneses.
poucos, a maioria dos nossos vizinhos tinham Ele era um humanista nesse sentido, mas
mais, 15 e até 28 filhos, e com a mesma mulher. não era muito religioso no sentido de frequen-
DV – Como eram sua mãe tar a Igreja, preferia ler a Bíblia em casa, sabia
e seu pai? É família religiosa? latim, e o ensinava para nós. Por exemplo, eu fui
Leonardo Boff – Sim, de uma dupla re- para o seminário sabendo a origem de algumas
ligiosidade. Minha mãe, Regina Fontana Boff, palavras, em latim, em grego, todo mundo no
era analfabeta e falava só um dialeto italiano, seminário ficou espantado com isso. O primeiro
o vêneto, falava pouco o português, muito pie- livro que eu li, e é interessante porque este ano
dosa, daquela piedade bem italiana, familiar. é o centenário de nascimento dele, foi A origem
Era extremamente afetiva. Era ela quem levava das espécies, seleção natural, de Charles Darwin,
a casa para o meu pai poder trabalhar. Ela era tinha 8 anos. Meu pai falava da evolução, que
camponesa, plantava trigo e tudo o que preci- não tínhamos vindo dos macacos, mas de um ser
sasse, ela puxava a enxada e nós, pequeninos, antes dos macacos, e eu lia aquilo tudo. Depois, li
tínhamos que ajudar. Eu era o mais relutante, tópicos de Hegel [Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
sempre gostei mais de estudar, de livros. filósofo alemão], não entendia nada, decorava
Meu pai, Mansueto Boff, foi quase um jesu- as frases para impressionar os outros e fui para
íta, era uma pessoa crítica. Por um lado, apren- o seminário com essa bagagem familiar.
demos a rezar o rosário, ali de joelhos, em casa; DV – Seu pai e sua mãe fizeram
e depois, escutando meu pai, que fazia críticas questão que os(as) filhos(as)
rigorosas à Igreja, aos padres, à forma como a estudassem?
Igreja se organiza, centralizada no poder, nada Leonardo Boff – Como as terras lá eram
participativa. Então, já nascemos com esse espí- baratas e minha família tinha terras, havia duas
rito crítico de ver a religião como algo que não opções: meus tios educaram os filhos por lá
é perfeito. Ele era professor de escola e entendia mesmo, ganharam um pedaço de terra e conti-
ser sua missão a de distribuir livros para o povo. nuaram como camponeses. Nesse caso, a maioria
Na região, ninguém falava português, tinha migrou para Paraná, Mato Grosso, Rondônia e
o grupo polonês, o italiano e o alemão, e só se Acre, foram subindo. A outra opção era o estudo,
falavam essas línguas em casa, e na escola tinha meu pai fez essa opção. Fizemos por lá a escola
que se aprender português – eu mesmo até os 10 secundária e, depois, quando chegou o tempo
anos falava mais o italiano. Ele dava as aulas em da universidade, fomos para Curitiba, a família
português, mas ninguém aprendia direito. Então, mudou pra lá. E eles foram vendendo cada
se valeu de um estratagema interessante: se fez pedaço de terra que tinham, inclusive a nossa
representante de uma firma de Porto Alegre que casa, para custear nossos estudos. Assim, os 11
vendia rádios e montou um rádio a bateria em se formaram, todos fizemos universidade, os
cada casa para eles escutarem os programas em homens, somos cinco, fizemos doutorado, uma
português e, aos poucos, aprenderem a língua. das meninas também fez. Os homens estudamos
Ele criou uma biblioteca popular e, durante fora, Estados Unidos, Bélgica, eu na Alemanha.
a semana, o pessoal tinha que pegar um livro e, Essa foi a opção deles.
depois da reza do rosário, aos domingos, fazia-se DV – Tiveram liberdade de escolha
uma roda e todo mundo contava para o grupo em suas profissões?
o que tinha lido. Nós, pequeninos, ficávamos Leonardo Boff – Total liberdade de escolha,
escutando, falavam tudo errado, misturavam uma foi ser bibliotecária; a outra, advogada;
o português com os outros idiomas, mas eram tenho uma irmã no Rio, uma freira, que é pro-
obrigados a falar em português. Assim, ele edu- fessora na PUC; e um irmão que é professor de
cou toda uma geração utilizando o instrumento Matemática e Estatística na UFRJ. Tenho um
mais moderno da época, que era o rádio. irmão que estudou nos Estados Unidos, ocu-
DV – Seu pai, então, era um pava um cargo importante no setor de vendas
verdadeiro humanista? da Editora Vozes, mas com a intervenção do
Leonardo Boff – Com certeza, uma carac- Vaticano, foi deposto. Ele mantém uma ONG
terística dele que acho bonita, e todos da família na Baixada, junto ao rio do Suruí, uma região
a herdaram: ele sempre defendia os negros, os de muita violência e de depósito de cadáveres,
caboclos e os índios. Por exemplo, na escola, onde nada chega.
ninguém queria sentar com os filhos e as filhas DV – Você nasceu durante o Estado
dos negros e dos índios, e ele nos obrigava, a Novo, quando havia forte repressão
nós seus filhos, a fazer isso. Ele era padrinho de a grupos estrangeiros. Lembra de

SETEMBRO 2009 43
entrevista

algumas dessas situações? Joaçaba, no Vale do Rio do Peixe. Fiquei lá dois


Leonardo Boff – Lembro, sim. A polícia anos porque era muito novo. Depois, fui para
vinha pelo porão, à noite, espionar as casas para Rio Negro, fiquei em um seminário em forma
saber se falávamos em português ou não e, aos de castelo alemão, belíssimo, onde se educaram
domingos, vinha verificar se rezávamos o rosário os principais frades do Sul do Brasil. Me adaptei
em português. Uma vez, vieram quatro policiais rapidamente porque havia colegas da região lá.
a cavalo para interditar a igreja, o povo cercou A gente ia para casa de dois em dois anos e,
o grupo com foices e paus e queria matá-los. depois, de cinco em cinco. Meu pai me visitou
Meu pai interviu e eles foram embora. Não era só uma vez porque não havia ônibus para lá, era
uma questão de resistência organizada, como tudo barro, o asfalto só chegou em 1970. Fui
eles respondiam na época, ‘nós não sabíamos em casa para vê-los quando estava com 14, 15
o brasiliano mesmo’, mas sofremos repressão anos, e depois de cinco anos novamente.
direta por causa disso. E meu pai resolveu ajudar DV – Não ficava triste com isso?
com essa ideia do rádio porque acreditava que a Leonardo Boff – Isso faz parte da formação
população tinha mesmo de saber falar em por- eclesiástica, os educadores criam aquele universo
tuguês. Mas não tinha jeito, eram só uns poucos fechado onde a Igreja é tudo. Quando voltava
que chamávamos os outros de brasileiros. Eu para casa, estranhava tudo. Por exemplo, nesse
mesmo não me considerava brasileiro, quando período, nasceu um irmão que não conhecia.
já no seminário, perguntaram, respondi que era Quando chegava, minhas irmãs me abraçavam,
italiano. Para nós, ser brasileiro tinha um sentido beijavam, e eu estranhava muito, porque semi-
pejorativo, umas coisas de caboclo, gente que só narista não pode ser tocado, nem mesmo olhar
queria dançar; nós, os italianos, alemães, éramos as mulheres nos olhos, temos sempre que baixar
gente séria, vivíamos trabalhando. os olhos para não cair em tentação. E depois
DV – Seu pai era contra ou a favor que entramos no convento, no meu caso foi
de Vargas? em 1959, veio o Noviciado em Rodeio, perto
Leonardo Boff – Isso não lembro, mas a de Blumenau; depois, dois anos de Filosofia
obsessão dele era ser contra a UDN [União De- em Curitiba; mais quatro anos de Teologia em
mocrática Nacional], contra o moralismo deles. Petrópolis. Só depois que já havia me tornado
Ele era a favor do PSD [Partido Social Democrá- padre é que voltei para visitar a família. Fiquei
tico], era um homem de esquerda, um homem sete anos sem vê-los. A Igreja era muito rígida
crítico. Ele era um professor de escola primária nesse sentido, diria até cruel.
diferente. Ensinava aos filhos dos colonos como DV – E depois da formatura?
construir uma casa, como medir os terrenos, Leonardo Boff – Depois de formados, pode-
como fazer os contratos. Ele era também juiz mos ser transferidos para qualquer lugar. A mim
de paz, resolvia todas as discussões de famílias, foi destinado fazer o doutorado na Alemanha.
e agente de saúde. Era o único que conseguia Fui para lá em julho. Meu pai morreu no mes-
as penicilinas, que salvou muita gente. Ele ia até mo dia em que embarquei, de navio, e eu nem
de madrugada, atendendo as famílias. soube. Naquela época, não havia a facilidade
DV – Como foi a opção pelo que temos hoje de telefone. Ele tinha mudado
seminário? de Concórdia para Alegrete, no Rio Grande do
Leonardo Boff – Eu tinha 10, 11 anos, foi Sul, para chefiar uma empresa que exportava
uma coisa misteriosa porque nunca pensei em madeira para o Uruguai e para a Argentina. Lá,
ser padre, queria ser chofer de caminhão. Haviam ele morreu de enfarte fulminante, aos 54 anos
conseguido abrir as estradas e por lá passavam de idade, deixando os 11 filhos dispersos por aí,
caminhões, achava extraordinário aquilo, um ho- estudando. Só soube mesmo quando cheguei à
mem dirigindo um monstro daqueles, o cheiro da Europa. Estudei lá de 1965 a 70.
gasolina era a melhor coisa do mundo. Chegou DV – Quando sua forma de pensar
um padre, celebrou a missa e fez um sermão começou a se chocar com o que a
sobre São Francisco. Em dado momento, ele Igreja pregava?
disse: ‘Quem quiser ser padre levante a mão’. Leonardo Boff– Tive a felicidade de ter
Engraçado, posso contar isso agora, que tudo como professores de Teologia no Brasil eminentes
passou, senti um calor dentro de mim e alguém teólogos. Estudávamos uma teologia de tradi-
levantou a mão em mim. O padre comia sempre ção alemã muito crítica. Até a Segunda Guerra
na casa do professor, então, na hora do almoço, Mundial, a teologia era dada em alemão aqui,
ele disse: ‘Olha aqui, ele vai para o seminário’. filhos de imigrantes italianos, como eu, tinham
Eu não queria saber nada daquilo, queria ser de falar alemão fluentemente, e eles falavam. A
chofer de caminhão, relutei, chorei, nem quis tradição alemã em diálogo com a teologia pro-
mais comer, fui embora. Mas havia levantado testante sempre foi a mais crítica face à Roma,
a mão na igreja. Já se jogara o meu destino. E e a gente nasceu nesse espírito muito crítico
depois, meu pai disse que eu tinha de ir mesmo, com o Vaticano, com o papa. Isso se confirmou
acabei indo, estava com 12 anos. quando fui para a Alemanha, lá era o centro da
DV – Onde era o seminário? Ficou nova teologia, mais acadêmica, mais filosófica, e
muito tempo longe de casa? só aprofundou o que eu já havia estudado. Mas
Leonardo Boff – Era em Luzerna, perto de a matriz da teologia que estudava aqui no Brasil,

44 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

apesar de moderna, era a neoescolástica. E na


Alemanha, entrei em contato com Heidegger
[filósofo alemão] e seus discípulos, como Karl
Rahner, considerado o grande teólogo católico
do século XX – de quem pude ser aluno por
três anos e, mais tarde, seu amigo. Ele vinha da
analítica existencial de Heidegger e fazia uma
teologia totalmente diferente. Isso abriu meus
horizontes e deu origem a minha tese doutoral
sobre a presença da Igreja dentro da experiência
do mundo em processo de mudanças. Essa visão
mais aberta, o diálogo com as culturas, com as
religiões, o cristianismo sem arrogância como
uma das propostas de humanização, não a única,
me ajudou muito a criar minha própria síntese.
DV – Como foi retornar ao Brasil
em plena ditadura militar?
Leonardo Boff – Quando cheguei aqui, em
1970, tive um choque enorme. Primeiro, fiquei
fechado em um convento durante vários anos.
Lógico, tinha trabalhado nas periferias, mas não
era nada sistemático. Levei um choque enorme
com a pobreza e com a riqueza, a ponto de ficar
indignado, pensando que a teologia tinha de
tomar uma posição. E tive outro susto, cheguei
de navio, cheio de caixas de livros, pegaram meu Brasil] era no Rio. Dom Aloísio Lorescheider,
passaporte e me levaram para uma sala para in- que era o presidente, chamou o frei Ludovico
terrogatório, pensei: ‘Ih, vou ser torturado’. Mas e a mim e disse: ‘Soubemos que hoje à noite o
não fui. Cheguei aqui no dia 17 de fevereiro de DOI-CODI vai invadir a Vozes’. A gente publicava
1970, defendi minha tese em 28 de janeiro, em na Revista Eclesiástica Brasileira todas as torturas
Munique. O chefe que pegou meu passaporte, e, como era uma revista da Igreja, os deputados
disse: ‘No dia 28, você defendeu publicamente, e senadores a citavam no parlamento sem temor,
em Munique, a legitimidade de uma revolução era o que se podia fazer. Nós escondemos tudo
armada’. A gente tinha que produzir 32 teses, o que podia nos comprometer. Algumas foram
escritas em latim, e a banca, que tinha mais de tão bem escondidas que não achamos nunca
20 professores, escolhia uma aleatoriamente, mais. Mas, naquela tarde, ocorreu o sequestro
no caso a escolhida foi a tese de número 14, do embaixador suíço, o que desmontou todo o
que dizia isto, que dentro de certos contextos esquema da invasão. Assim, nós ficamos livres,
de opressão prolongada, temos direito à resis- escapamos. Mas eu era muito vigiado pelas
tência, à rebelião, como ato ético era legítimo publicações que fazíamos.
fazer uma revolução. E a polícia sabia porque, DV – O que o inspirou a escrever
em Munique, havia vários espiões, já que tinha Jesus Cristo Libertador, obra
mais de 200 estudantes brasileiros lá. Fiquei que fundamenta a Teologia da
apavorado, e ele me disse: ‘Se você não se cuidar, Libertação?
vai ter o mesmo destino dos dominicanos, que Leonardo Boff – Esse processo começou
estão todos presos’. Aqui, assumi a cátedra de em julho de 70, quando fui para Manaus pregar
professor no Instituto Franciscano de Teologia um retiro para missionários da Selva Amazônica.
de Petrópolis e fui nomeado chefe do editorial Gente que dizia que estava há duas semanas
religioso da Editora Vozes. viajando só para chegar ali, de barco, a cavalo,
DV – Veio da Alemanha já a pé, gente que veio lá dos interiores, eram 25
articulado com a Vozes? pessoas, religiosas e padres. Comecei a dar o
Leonardo Boff – Não, a Vozes é dos fra- curso baseado na teologia crítica europeia, mas
des, existe o Instituto de Teologia e junto está a via nos olhos deles que não chegava. Pedi para
editora Vozes e a gráfica. Logo que cheguei, o trabalharem em grupos para elaborarem per-
diretor, frei Ludovico Gomes de Castro, pessoa guntas e eles perguntavam: ‘Como vou salvar
importante na resistência intelectual ao regime seringueiros que estão brigando com indígenas,
militar, disse: ‘Você vai dirigir a Revista Concílium, que estão se exterminando? Como vou salvar
a Revista Eclesiástica Brasileira, vai ser chefe do os ribeirinhos que estão tomando água poluída
editorial religioso..’. Assumi esses compromissos, do Rio Madeira por causa da mineração? Como
não sem riscos. Por duas vezes, a polícia veio, fica o diálogo entre o cristianismo e os povos
sequestrou coisas, levou o secretário da Revista originários?’. Aí, vi que toda a minha teologia e
Vozes preso e parece que o torturaram. filosofia crítica não respondiam. Me dei conta de
Uma vez, particularmente, senti muito medo. que precisava fazer uma teologia diferente e, em
A CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do agosto, comecei a lecionar cristologia, doutrina

SETEMBRO 2009 45
entrevista

sobre Cristo. Lecionava e escrevia cada aula, em linha da Teologia da Libertação para atingir os
dezembro daquele ano, o livro estava pronto. jovens.
Curiosamente, ainda não tinha escutado o Simultaneamente, Frei Betto e Frei Ivo saí-
nome de Gustavo Gutiérrez [teólogo peruano], am da prisão. Achávamos que não adiantava a
Juan Luis Segundo [padre uruguaio], Sergio teologia sem uma base social. Então, bolamos
Torres [padre chileno] e, simultaneamente, no articular o que estava separado: as comunidades
mesmo ano, lá em seus países, eles começavam eclesiais de base [CEBs] e as pastorais sociais,
a falar sobre Teologia da Libertação. Parece que formadas por sem-terra, sem-teto, indígenas,
a coisa irrompeu, é como Hegel explica, é o negros. Elas é que levam a prática para frente,
“espírito do mundo”(Weltgeist), quando irrompe passamos a pensar a partir daquela prática e
em todas as partes, emerge, e o sujeito disso unidos. Junto com bispos que eram considera-
não somos nós, somos apenas o instrumento dos profetas daquela época, como Dom Hélder
por meio do qual essa força histórica se utiliza Câmara, Dom José Maria Pires, Dom Fragoso,
para se manifestar. Assim, começou a Teologia Dom Luis Fernandes, Dom Paulo Evaristo Arns.
da Libertação. A maioria dos bispos era dessa linha. Fazíamos
DV – Seu papel como disseminador teologia com um entusiasmo sem censuras e
da Teologia no Brasil foi decisivo. sem temor.
Pode relatar essa experiência? DV – A CNBB apoiava esse
Leonardo Boff – Como chefe do editorial movimento integralmente
religioso da Vozes, já publicava os textos da ou havia divisão?
sociologia crítica de Fernando Henrique Car- Leonardo Boff – Inicialmente, o apoio
doso, Florestan Fernandes, que eram a nossa era total, eles enfrentavam os militares e nós
base sociológica para entender que pobreza dávamos a eles bons argumentos na área dos
não é pobreza, é dependência, é opressão, é a direitos humanos. Aqui em Petrópolis, criamos,
teoria da dependência. Não devemos partir da com muito risco porque a polícia estava de olho,
compreensão comum da realidade porque ela uma articulação de todos os movimentos de di-
é ideológica, temos de decodificá-la numa boa reitos humanos no Brasil. Conseguimos o apoio
sociologia crítica. Fizemos isso com os nossos de Dom Paulo Evaristo, que era corajoso, para
sociólogos daqui e todos tinham a vertente mar- o nosso primeiro encontro, realizado em 1974.
xista, e, simultaneamente, com a antropologia A polícia toda ao redor, tentando nos impedir.
de Darcy Ribeiro. Publicamos toda a obra dele, DV – Participou da organização
que valorizava muito o indígena, a mistiçagem do livro de Dom Paulo Evaristo,
brasileira. Tomei uma decisão arriscada na época Brasil Nunca Mais?
em termos de Igreja e de sociedade. Comecei Leonardo Boff – Lógico! Fui buscar o livro
a publicar todos os textos sobre a Teologia da em São Paulo, porque era tudo segredo, não
Libertação, mandando traduzir e criando aqui podia ir nada pelo correio. Participei da con-
uma verdadeira biblioteca. Ao mesmo tempo, fecção final, dentro da Vozes. Não participei da
favorecendo que se publicassem catequeses na elaboração porque era um segredo tão grande
que pouquíssimas pessoas sabiam, era preciso
fazer em absoluto sigilo. Dom Paulo Evaristo
continuamente mudava os locais dos encontros,
escondia os documentos, era uma vigilância
muito grande, fez uma cópia de segurança de
todo o material e conseguiu fazer chegar a uma
universidade estrangeira, no caso de os originais
serem destruídos. E depois de concluído, veio o
problema? Como publicar? Tinha de ser a Vozes.
Coloquei hábito de frade, porque assim a
polícia respeitaria mais, e trouxe um dos ma-
nuscritos em uma maleta. Um outro veio por
outro caminho que não lembro mais, por razões
de segurança. A Vozes trabalhou dia e noite
para produzir o livro dentro de uma semana.
Aproveitamos uma sexta à noite para ampliar o
máximo possível a distribuição, para São Paulo,
Rio, Belo Horizonte, para que, na segunda-feira,
já estivesse nas livrarias. Se a polícia viesse a
recolher, seria difícil fazê-lo em todos os cantos.
E avisamos aos principais livreiros e intelectuais.
Temíamos que eles assaltassem a Vozes, nos
sequestrassem e arrebentassem as máquinas.
Então, nem os funcionários sabiam do que se
tratava, só trabalhávamos à noite.
DV – Quando começaram seus

46 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

problemas políticos com a Igreja? outro, Sacramentos da vida, vida do sacramento.


Leonardo Boff – Na verdade os tive desde o É pequeninho, uma tentativa de resgatar o mun-
começo. Nos processos, ganhamos um número do simbólico e sacramental dentro do mundo
que permanece o mesmo. Como estudante, técnico e científico.
já comecei a escrever sobre teologia. Escrevi DV – Como foi o processo
um artigo em 1963 sobre a inspiração bíblica. presencial?
Dizia que a inspiração não é singular da Bíblia Leonardo Boff – Aí é realmente um pro-
cristã, que outros textos sagrados religiosos são cesso doutrinário que segue normas canônicas,
também inspirados. E o Santo Ofício veio em jurídicas. E é um processo extremamente iníquo,
cima, pedindo uma pequena retratação. Levei o já que a mesma instância que acusa é a que julga
maior susto porque ainda nem era padre, era só e a que pune. Nenhum Estado do mundo, por
estudante, era secretário de um dos assessores mais ateu que seja, tem os três poderes unidos,
do Vaticano II e professor meu, Frei Boaventura por uma questão de justiça. Uma instância
Kloppenburg. O susto foi o de ter de fazer a acusa, outra julga e a terceira executa, todas
retratação, o que me provocou um complexo com autonomia. Eu logo reclamei: ‘Quero um
de vigilância enorme, pois nem formado era e advogado’. ‘Não existe isso de advogado aqui,
já estava sendo colocado sob vigilância. Fui para você tem de responder pela sua fé’.
Europa, estudei, naqueles anos todos não tive Desconfiava que o problema não era comigo.
problemas. Mas quando publiquei, em 1971, Eles, dos de Roma, não queriam atingir a mim,
Jesus Cristo Libertador, começaram os processos. queriam atingir a CNBB. Mas atingir a CNBB era
Praticamente, a cada livro que escrevia, vinham muito difícil, eram mais de 300 bispos. Roma
perguntas, e eu segurava até a última data, até evita os conflitos de frente. Então, escolheram
que diziam que tinha uma semana para respon- a mim, um assessor, para atingir a CNBB. Os
der, aí respondia. Para ganhar tempo, é lógico. alemães tinham um dito bastante interessante:
DV – Quais questionamentos bater no saco pensando no burro que o carrega.
eram feitos? Nesse caso, eu era o saco e o burro era a CNBB.
Leonardo Boff – Por exemplo, sobre Jesus Como os bispos descobriram isso, Dom Paulo
Cristo, eu dizia: ‘Jesus Cristo lentamente foi Evaristo e Dom Aloísio Lorscheider, que eram
crescendo, de criança não sabia que era Deus, e cardeais, foram junto comigo, e também o pre-
foi lentamente descobrindo que ele era enviado sidente da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter. Disseram:
de Deus’. Eles diziam: ‘Não, como filho de Deus, ‘A teologia é um bem da Igreja local, é uma
e pela encarnação, desde pequeno, mesmo no teologia boa. Nós, como pastores, testemunha-
ventre materno, estava fazendo adoração ao mos isso, faz bem para a comunidade. Vamos
Pai e fazendo seu sacrifício redentor.’ São pen- até lá para defender esse tipo de teologia’. Isso
samentos que considero absurdos, mas que na escandalizou Roma.
teologia tradicional persistem. Aquilo é uma espécie de ritual. A gente re-
DV – Como se davam esses cebe as acusações e tem de fazer a defesa por
processos? escrito. Há três modalidades: ou se usa o texto
Leonardo Boff – A Congregação para a e responde lendo; ou se fala abertamente, um
Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, lê o livro e diálogo, sem texto nem nada; ou se misturam as
manda perguntas para clarificação. É um tipo duas formas, a parte mais difícil, mais técnica,
de interrogatório oficial, só que por escrito. E lendo e a outra parte falando. Eu disse: ‘Não vim
aquilo nunca tem fim, para cada resposta dada, aqui defender um livro, vim defender a Igreja,
há outras perguntas. Escrevi vários livros sobre as comunidades de base’. Peguei uma pasta e
cristologia: Paixão de Cristo, Ressurreição, Cristo mostrei os apoios que recebi, foram mais de cem
cósmico, Reencarnação, ao todo uma obra de mil do mundo todo. ‘Não tenho uma biblioteca
cerca de mil páginas. Os questionamentos não atrás, tenho uma Igreja’, falei. Isso irritou o
tinham fim, até que chegamos a um acordo: es- cardeal interrogador, que hoje é o papa Bento
crevi um artigo não corrigindo, mas modulando XVI, o cardeal Joseph Ratzinger.
minhas afirmações, eles aprovaram, e teve de ser Foram três horas, é um interrogatório duro,
publicado em várias línguas, aí me deram uma na verdade, trata-se mais de um julgamento,
folga. Agora, quando publiquei Igreja, carisma um confronto. Por exemplo, ele perguntou:
e poder, eles disseram: ‘Agora, chega de cartas, ‘O que é uma comunidade de base, lá vocês
agora você vai ter de sentar aqui na cadeirinha’. fazem treino com armas?’. Imagina isso, logo
Como Galileu Galilei, tive de ir lá em 84. Escrevi de saída. Eu disse: ‘Mas por que vocês estão
o livro em 82 e meu irmão, que é teólogo, disse: perguntando isso?’ E ele: ‘Porque toda hora
‘Se o Vaticano não condenar esse livro é sinal de vocês dizem – Como vai a luta?’. A gente diz
que eles não estão mais valendo nada’. Fiz uma isso no sentido de perguntar como vai a vida,
edição pequena, achei que era muito técnica, e não como vai a guerra. Eu disse: ‘Excelência,
pensei “Ih, esse não vai vender nem mil exem- acho ridículo o senhor me perguntar isso, o
plares em cinco anos’. Vendeu tudo em pouco que mais nós fazemos lá é rezar’. E ele achava
tempo e foram várias edições. que eram pequenas células do marxismo que
DV – É o seu livro mais vendido? usavam a capa do cristianismo. Ele disse: ‘Isso
Leonardo Boff – Não, o mais vendido é é um cavalo de troia, o marxismo vai entrar na

SETEMBRO 2009 47
entrevista

América Latina por meio de vocês. E nós temos leigos; até lá embaixo, no último degrau, onde
o dever de defender a fé do povo’. Era um total é seu lugar. Sobre esta concepção de hierarquia,
equívoco na leitura e na interpretação. eles não admitem a mínima crítica, quem a cri-
DV – E acabou sendo condenado? tica é imediatamente afastado, porque rompe
Leonardo Boff – Pois é, isso foi em 1984. a espinha dorsal que sustenta tal edifício. Eu
Em 85, um portador da Nunciatura me traz um sempre afirmei que é uma construção histórica,
livreto de 30 páginas, impresso pela Poliglota do é uma instituição humana, que vive de uma fé,
Vaticano. Continha a minha condenação. Depois mas que de si não é divina, ou é divina como
que li, ele perguntou: ‘Você aceita ou não?’. tantas outras coisas são divinas porque contêm
Eu digo: ‘Aceito porque eu também condeno a presença de Deus.
aquelas afirmações; elas não são minhas, é um DV – Chegou a ser expulso
pastiche feito de pedaços de frases com outros da Igreja?
pedaços para me condenar. Mas pode servir Leonardo Boff – Não. Minha condenação
como base para podermos conversar’. E ele: ‘Mas foi algo curioso. Na verdade, eles, de Roma,
aceita ou não?’ Eu respondi no sentido anterior não apontaram nenhum erro doutrinário meu e
dizendo:’Aceito’. Vi que ele ficou contente. E minha defesa escrita e falada fora contundente.
emendou: ‘Porque se você não aceitasse...’, No livreto, eles criticavam a linguagem, meio pro-
e aí me mostrou um envelope, ‘deveria lhe testante, que não respeitava as autoridades. E no
impor imediatamente as penas canônicas aqui fim, dizem: ‘Condenamos o livro Igreja, carisma
contidas’. Ou seja, estava me coagindo mesmo. e poder pelas opções que o autor faz, que põem
Mas fui esperto, porque as penas, em termos em risco a fé dos fieis’. Eles não condenam uma
jurídicos, só valem quando a gente recebe o doutrina, mas uma opção política e religiosa.
documento oficial em mãos. Houve greve dos Estou em ótima companhia, pois Jesus fez as
Correios durante 15 dias. Quando finalmente opções dele e foi perseguido por isso. Também
chegaram, aconselhei-me com um diploma- é curioso que o cardeal Joseph Ratzinger tenha
ta, o Silveira, na época ministro das Relações publicado um livro com todas as condenações
Exteriores, amigo meu de anos antes, que me impostas pela Igreja ao longo da história, e
disse: ‘É fundamental, é estratégico você não tenha incluído a que eu sofri como um novo
se confrontar com essa instituição milenar que tipo de condenação, que não é doutrinária, não
é a Igreja. Assim, você vai estar perdido e levará é questão de moral, são opções por um outro
junto a condenação das comunidades eclesiais tipo de Igreja, que nasce de baixo, que é mais
de base e a Teologia da Libertação. Elas têm de democrática, participativa, mas que não é aquela
ser salvas. Então, comece dizendo que nunca foi instituição hierárquica, um modelo de Igreja que
marxista, que a Teologia da Libertação não tem coloca em questão o princípio de autoridade,
Marx nem como pai nem como padrinho, mas centralizado no papa e na hierarquia. O que eles
os Profetas e a prática de Jesus; que você acolhe alegam contra nós, e contra mim, é que esse
a missão social da Igreja, defendendo a justiça e tipo de Igreja não consegue manter a unidade.
os direitos humanos e que aceita o princípio da Apontam como exemplo as Igrejas Protestantes
autoridade. O que Roma não aceita, de maneira que se atomizaram.
nenhuma, é que você questione a hierarquia DV – Como foi sair da Igreja e
como um todo’. Fiz essa carta com todas essas partir para uma nova vida?
instruções e o papa, por meio do cardeal Casa- Leonardo Boff – Não senti muito a mudan-
roli, respondeu: ‘Agora, sim, poderemos fazer ça, e isso é raro entre os teólogos. Geralmente,
uma boa Teologia da Libertação’. quando o teólogo sai, ele perde seu campo de
DV – A questão girava em torno atividade, que é a Igreja. A Igreja cuida muito
da hierarquia da Igreja? bem dos seus quadros. Acolhe pequenininhos,
Leonardo Boff – O Vaticano tolera todo com 10, 12, 15 anos de idade, lhes dá a melhor
tipo de injúria, mas não tolera que se ques- formação possível, envia para as melhores uni-
tione a autoridade absoluta do papa. Não se versidades, dá infraestrutura: a cama, a comida
pode mexer no princípio da autoridade, porque e a boa biblioteca, dá tudo. Agora, saiu disso,
é o que sustenta este modelo de Igreja. Por vira peão.
isso, as autoridades romanas não gostam da Tive a sorte de poder continuar como teó-
categoria teológica de Povo de Deus, que está logo, escrevendo livros e fazendo o mesmo que
nos documentos oficiais do Concílio Vaticano fazia antes. A Uerj [Universidade do Estado do
II. Para elas, povo está lá embaixo, é só simples Rio de Janeiro] me cedeu uma cátedra, como
fiel, é gari, não manda nada, quem manda é a professor visitante, e aceitei por um ano. Mas
hierarquia que tem um poder sagrado, recebido queria entrar como todo mundo, por concurso.
pela ordenação. Eu questionava isso, dizia que a Fiz e passei como professor de Ética e Filosofia
Igreja é fundamentalmente Povo de Deus, todo da Religião e Ecologia Filosófica. Como tive apoio
mundo é irmão e irmã, é igual, e a hierarquia é dos bispos, continuei dando assessoria às comu-
de serviço e não de poder. Ele dizem que não, nidades e até pregando em retiros para frades
que o papa, por meio de São Pedro, recebeu e freiras, curiosamente. Eles viram que minha
todo o poder de Cristo, que o distribuiu entre ruptura era com um certo tipo de Igreja, e não
os bispos; estes entre os padres; estes entre os com a fé cristã. Mantive minha teologia. Agora

48 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

mesmo, houve um encontro com mais de 55 a melhor teologia.


bispos, em Porto Velho, e era a maior amizade, DV – Em sua obra, há uma
muitos pediram para que eu continuasse com dimensão feminista muito forte.
o meu trabalho intelectual porque a reflexão os Isso se deve à influência de sua
ajudava bastante. mãe?
DV – Ainda ministra os Leonardo Boff – Sempre tratei o tema do
sacramentos, batiza, faz feminino e do masculino. Um livro meu que
casamentos? considero importante é O rosto materno de Deus,
Leonardo Boff – Muita gente não se iden- que surgiu de uma provocação da Rose Marie
tifica mais com a Igreja tradicional, mas se sente Muraro, uma grande feminista. Trabalhávamos
ligada à mensagem de Cristo e aos Evangelhos e juntos na Vozes e ela me obrigava a pensar na
quer batizar os filhos, então eu faço o batismo e dimensão teológica disso. O livro mais forte que
faço casamentos. Faço enterros, tem muita gente escrevemos juntos foi Masculino e feminino:
que me pede, e como recusar-se a enterrar os paradigma novo para uma nova relação. Ela
mortos? É uma obra de misericórdia mínima. estava muito doente, e eu disse: ‘Antes que você
DV – A Igreja o proíbe? morra e eu fique totalmente com Alzheimer,
Leonardo Boff – Os bispos sabem e discre- vamos fazer um apanhado do nosso trabalho e
tamente apoiam, dizem: ‘Você ainda continua também fechar a pesquisa científica sobre isso’.
no campo pastoral’. Mas para a Igreja, eu sou Escrevemos o livro. É um livro interessante e de
um leigo. Só posso fazer os ritos em extrema referência. Já saíram várias edições e vai sair
necessidade. Se acontecer um acidente, posso uma nova agora.
ministrar a absolvição como fazem os padres. Não dá para ter uma experiência completa
Como a Igreja brasileira é um fracasso institu- como ser humano só a partir de um dos pólos,
cional, pois deveríamos ter 120 mil padres, e só feminino ou masculino. Somos feitos à imagem
temos 17 mil, as pequenas comunidades ficam e semelhança de Deus enquanto homens e
sem padres e, às vezes, eles pegam o texto mulheres. A Igreja que mutilou um dos lados,
bíblico que fala da eucaristia e o ritualizam. o feminino pagou um preço alto: ela se auto-
Usam o cupuaçu como o pão da região, que flagelou, se desumanizou. A grande escola de
é repartido como se fosse o pão eucarístico. humanismo e de cristianismo é o matrimônio.
Quando me pedem para celebrar, eu faço. Não Ele ensina a conviver com as diferenças, a expe-
chamo de missa porque missa é um conceito rimentar de verdade o que é o amor, a suportar
canônico, está tudo prescrito, e eu não quero as pessoas com suas arestas e com sua dimensão
criar conflitos. Chamo todo mundo ao redor da de sombra e de luz. Se alguém quer ser virtuoso,
mesa, fazemos a Ceia do Senhor com pão, vinho case. Você vai aprender virtudes. Se um padre
e todas as orações. O que fazemos é eucaristia quer ser santo, case, crie filhos, aprenderá muito
como presença sacramental de Cristo, segundo e se humanizará.

SETEMBRO 2009 49
entrevista

DV – Quando se casou? a mensagem de Jesus. Tudo o que Jesus queria


Leonardo Boff – Em 1992, quando fui obri- era serviço, doação, nada de poder, ele rejeitou
gado a sair. Durante a ECO-92 me colocaram a o poder como tentação, e a Igreja se estruturou
alternativa: ou você vai para Coreia e Filipinas ou ao redor da ‘sacra postestas’, do poder sagrado.
sai da Ordem Franciscana. Perguntei se poderia DV – E considerando esse modelo,
ensinar teologia naqueles países e a resposta foi: como avalia a Igreja?
‘Não, só no convento!’. Eles me queriam longe Leonardo Boff – Esse modelo não tem
da América Latina. Casei e herdei seis filhos futuro, a globalização tornou absolutamente
que a Márcia já tinha. Nós nos conhecemos no isolado o cristianismo, quase como um oásis
trabalho de base, no grande lixão de Petrópolis. de autoritarismo, de patriarcalismo. É a única
DV – Como é a sua relação monarquia teocrática do mundo, não tem ca-
com a Igreja hoje? pacidade de ser proposta às culturas mundiais,
Leonardo Boff – Nós, da Igreja da base, é uma parte do Ocidente que cada vez mais é
não temos nenhuma pretensão de romper com um acidente.
a Igreja hierárquica. Pelo contrário, queremos A tese que defendo – e tenho dado cursos
ver os bispos todos juntos. Quem quer isso é a por aí, na Europa e na América Latina – é a do
extrema direita, que rompe, faz cisma mesmo, cristianismo feito em rede de comunidades, que
como o pessoal de Lefebvre. Nosso grupo nunca inclua várias Igrejas, não importa quais, é uma
fez isso. Eles não admitem mudanças, especial- proposta de sentido para a humanidade. E ele
mente com referência às mulheres, que são mais se encarna nas culturas locais e se encarna me-
da metade da Igreja e são as mães e as irmãs da lhor quando há um encontro na base entre fé,
outra metade, que são os homens. E também evangelho e cultura, nos seus hábitos cotidianos.
com referência ao celibato dos padres, eles não Isso se dá pelas comunidades de base, que criam
fazem nenhuma concessão nesse sentido. Foi no grandes redes, renunciam a toda pretensão de
século IV, com Constantino, quando a Igreja fez arrogância de ser a única portadora da verdade
a opção pelo poder, que, na minha opinião, foi e da revelação, procura, junto com os outros,
a pior opção que ela poderia fazer. Jesus teve manter essa dimensão espiritual de ser humano
as famosas três tentações, a tentação do poder e cumpre uma missão importante de civilização.
profético, da palavra que transforma pedras Roma não quer saber de nada disso, tem uma
em pão; a tentação do poder sagrado, que do visão imperial da missão. Este papa, então, é um
templo controla a sociedade; e a tentação do flagelo para a fé.
poder político, que é a aliança entre os reinos do DV – Por quê?
mundo. Jesus rejeitou as três. A Igreja caiu nas Leonardo Boff – Porque ele repete a tese
três: assumiu o poder político, assumiu o poder medieval de que fora da Igreja não há salvação,
sacerdotal e assumiu o poder da palavra, só ela então todo mundo tem que aderir à Igreja; de
que fala. O cristianismo histórico, nesse recuo que as religiões são braços estendidos ao céu,
que temos de 2 mil anos, fez uma opção, marcou mas não sabemos se Deus acolhe esses braços;
a cultura ocidental, transformou profundamente de que as religiões todas estão em suficiência e
risco de perdição, porque não pertencem à Igreja
Católica; de que as Igrejas Protestantes não são
Igrejas, têm apenas elementos eclesiais – isso,
por sinal, gerou uma discussão muito dura co-
migo nos interrogatórios do ex-Santo Ofício. A
expressão que ele usou foi a seguinte: casa é só
a Igreja Católica, os protestantes roubaram um
telhado, uma janela, um pedaço de vidro, e tudo
o que foi roubado tem de ser devolvido, eles não
são casa. E o caminho é o da conversão, mas eles
não podem ser coagidos. Daí, toda a estratégia
de diálogo, de benevolência, visa facilitar esta
volta à casa católico-romana. Então, as Igrejas
se veem obrigadas a renunciar às suas tradições
e a ser outra coisa. Essa estratégia proposta
irritou todas as Igrejas Protestantes porque se
sentiram ofendidas.
Este papa cometeu vários erros de governo,
com os muçulmanos, com os judeus, com as
mulheres, com a questão da Aids na África e com
os tradicionalistas de Lefebvre, da extrema direita
religiosa e política. Ele os acolheu, introduziu o
latim de novo, reinaugurou a liturgia do papa
Pio V, do século XVI. Esse papa é um homem,
eu diria, não mais conservador, ele é reacionário
e militante em seu reacionarismo. E tem uma

50 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

visão absolutamente negativa de toda a cultura CNBB, aí já vai se gestando uma nova mentali-
moderna. Por isso, faz um enfrentamento direto dade de comunhão e de colegialidade. Depois,
com tudo o que é da modernidade, acusando-a ele é convidado a visitar várias experiências de
de difundir a ditadura do relativismo, esquecen- dioceses onde há trabalho específico com a
do que a ditadura das verdades absolutas (a dele) juventude, de base, pastoral, com os sem-terra
é tão nefasta quanto a outra. ou com favelas. Roma nomeia um conservador
DV – Na década de 1980, a e quando este entra em contato com a realidade
Igreja Católica lançou o Processo concreta e sofrida do povo, passa geralmente por
Lumen 2000, uma disputa com os um processo de transformação o que desmonta
protestantes na busca por fieis a muito a estratégia de Roma.
partir dos meios de comunicação A CNBB sempre resistiu. Soube de fonte se-
de massa. Os carismáticos são fruto gura, de pessoa que trabalha diretamente com
da realização desse projeto? o papa, que, visitando o Brasil, ele ficou tão
Leonardo Boff – Os carismáticos ganharam entusiasmado que não se cansa de falar disto, até
força com João Paulo II porque o projeto dele mesmo nos discursos oficiais: ele não imaginava
não era um projeto voltado para o mundo e que houvesse aqui um cristianismo tão vivo, tão
diálogo com as culturas e as religiões. Era um alegre, tão jovem, e com os pensamentos dos
projeto voltado para dentro, fortificar a Igreja bispos e teólogos tão ligados a essas práticas.
como instituição, o princípio de autoridade, Acho que agora ele se deu conta do significado
o direito canônico, a doutrina. A base de sus- da Teologia da Libertação. O que ele viu foi essa
tentação desse projeto não era nem a Igreja articulação feliz entre base, pensamento teológi-
do Vaticano II, nem os teólogos progressistas, co e coordenação das comunidades e da Igreja.
nem a Teologia da Libertação, nem os bispos DV – Como se aplica a Teologia
mais progressistas da América Latina. Eram os da Libertação entre as
movimentos conservadores que resistiram ao comunidades de base?
Vaticano II, e o grupo mais forte era o Opus Leonardo Boff – Essa ligação é orgânica
Dei, que apoiou financeiramente o Vaticano, e porque nasceram juntas e se frutificaram mu-
continua apoiando; depois, os Carismáticos, que tuamente. Nossos textos refletiam a base e a
ganharam força porque é uma coisa de aviva- base se reconhecia nos textos. Como assessores
mento da fé, sem nenhuma referência ao que é permanentes, o que mais fazemos foi acompa-
conflitivo na sociedade, à justiça, aos direitos dos nhar grupos de base. Eu mesmo vou a encontros
pobres. Para eles, o importante é rezar, é dizer regionais das CEBs, fui recentemente ao encontro
Pai Nosso, é festejar a graça. E também outros nacional, com 4 mil pessoas. Eles nos sentem
grupos menores, como os Cruzados de Cristo como companheiros de caminhada, vamos
e, de certa forma, a Comunhão e Libertação, juntos. A pretensão da Teologia da Libertação é
embora seja um pouco mais aberta. ser uma palavra segunda, a primeira palavra é a
Articulado com esses grupos estava o então prática, que se dá em duas vertentes: a prática
cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, cuja tese cen- das comunidades, onde se lê a Bíblia, confron-
tral é dizer: o importante não é sermos muitos, tada com a realidade, se celebra a liturgia, onde
mas sermos poucos e muito puros. Só que esses se forma a Igreja na base – até cunhamos a
poucos estão cheios de pedófilos, ladrões de expressão eclesiogênese, que circula na comu-
banco e corruptos. A Igreja se desmoraliza com nidade teológica, que é a gênese da Igreja; e a
esses fatos, com a moral sexual, com a questão segunda são as pastorais sociais por terra, por
do aborto, do divórcio, segundas núpcias, rejei- teto, por saúde, por direitos humanos, em favor
ção de toda e qualquer participação das mulhe- dos indígenas, dos negros, das crianças que
res na direção da Igreja. Nem mais fisicamente envolvem a militância político-social, e o mais
a mulher pode se aproximar do altar. Antes, ela forte desses movimentos é o MST.
até que podia, apenas como coroinha, agora A maioria desses movimentos sociais nasceu
não pode mais, de jeito nenhum. Elas têm de dentro da Igreja, são expressões da Igreja da li-
estar longe do altar. bertação. É um bloco muito forte, que tem a sua
DV – Como analisa a atuação parte prática e sua reflexão teórica. E tem tam-
da CNBB? bém a sua parte celebrativa, o rito e símbolo, as
Leonardo Boff – Primeiro,a Igreja brasilei- chamadas ‘místicas’ que são muito importantes
ra foi uma das poucas Igrejas de significação porque são a argamassa que amarra tudo, que
mundial, de resistência, porque tinha uma fala para o profundo das pessoas. Não é possível
coesão interna muito forte e soube resistir com um encontro do MST, que reúne 5 mil, 10 mil
muita inteligência a João Paulo II, às investidas pessoas, sem uma ‘mística’ uma celebração,
de se desmoralizar essa conferência, de se fazer envolve elementos políticos e outros religiosos
nomeações de bispos a partir dos grupos con- porque o povo é religioso, mas fundamental-
servadores. A CNBB tem uma estratégia muito mente dá forma à dimensão simbólica da luta,
inteligente: todo padre que é nomeado bispo da vida dos companheiros. Não dá para separar
tem de passar alguns dias em Brasília, na sede comunidades de base da Teologia da Libertação.
da CNBB, fazer um curso de como ser bispo, tem Ela nunca foi uma teologia só acadêmica. Ela
de conhecer as opções pastorais e teológicas da sempre vem articulada com uma prática popular.

SETEMBRO 2009 51
entrevista

dessa opção tem de entrar o grande pobre, o


planeta Terra, que é o mais explorado de todos,
devastado por essa lógica perversa. A mesma
lógica que explora o trabalhador, explora as clas-
ses, explora o país, explora também a natureza.
Já percebia isso na década de 1970, mais por
causa da tradição franciscana que sempre deu
centralidade à natureza, mas era voz meio isola-
da, não se escutava. Em 72, fizemos uma festa
ao Burle Marx, o grande paisagista brasileiro de
quem era amigo. Fizemos um livro e eu escrevi
um artigo sobre ‘a não modernidade de São
Francisco’, donde derivava uma ecoteologia da
libertação. Isso não era secundado por ninguém
porque a questão era enfrentamento capital/
trabalho, marxismo, capitalismo etc. Mas sempre
me envolvi na questão da ecologia até que, a
partir de 1980, me dediquei mais intensamente
com seus aspectos mais científicos.
Na carta que, através o Cardeal Casaroli,
João Paulo II me dirigiu, dizia que eu deveria
me mostrar mais sério, pensei: ‘Como vou me
mostrar mais sério? Eu serei sério!’ Aí, resolvi
deixar crescer a barba, que mantenho até hoje.
O outro ponto foi aprofundar os temas que re-
almente são importantes. Pensei, o papa pediu?
Pois vou mostrar que sou sério e vou tomar a
sério seu pedido. Mas logo percebi que nenhum
dos temas que presumivelmente eram sérios para
Roma o eram objetivamente. E eu já trabalhava
alguns desses temas que pouco tinham a ver
Por exemplo, aqui em Petrópolis, dava aula com Igreja, como a globalização, o capitalismo
no Instituto de Teologia, que, sem favor, é um mundial, a devastação da natureza. Aí, pensei,
dos mais importantes do Brasil, tem mais de cem o tema principal será o da ecologia, esse vai ser
anos, tem a maior biblioteca teológica, são mais decisivo para o futuro da Terra e da humanidade.
de 300 mil livros, recebe mais de 400 revistas do Depois da ECO-92, no Rio, fui convidado pelo
mundo inteiro, junto com a editora, que também grupo que trabalhava uma Carta da Terra, no
produz farta literatura religiosa. Então, vivia uma qual estava Mikhail Gorbachev e outros para
situação de privilégio, fazia os textos, os man- participar na elaboração de um documento-guia
dava imprimir e distribuir. Tinha todo o circuito a fim de enfrentar a crise ecológica que já se
ideológico na mão. Eu fazia teologia, ao mesmo anunciava.
tempo, dava assessoria às comunidades de base Para mim, a ecologia foi desde o começo
do Brasil e, junto com a Márcia, trabalhava no essencial e, hoje, é o grande tema da teologia,
lixão de Petrópolis. Todo fim de semana, nós desde Porto Alegre, no Fórum Social Mundial –
organizávamos, mais ela que eu, as 202 famílias que este ano se realizou em Belém –, e também
que viviam da catação de lixo, até criar uma no encontro nacional das CEBs, cujo título foi
comunidade, uma escola, o centro comunitário, “Do ventre da terra ouvir o grito da Amazônia”.
a fábrica de beneficiamento do lixo, uma creche Hoje, a Teologia da Libertação ganhou muita
comunitária, até virar um bairro autônomo. Não força porque acompanha essa discussão mundial
dá para pensar a Teologia da Libertação só como da crise do sistema e também as ameaças que
teologia, ela tem um pé na realidade e um pé pesam sobre a vida. E desde o começo, nós, e eu
na reflexão, daí vem a sua força. pessoalmente, estávamos na fundação do Fórum
DV – Como a preocupação com a Mundial da Teologia da Libertação, acoplado ao
natureza surge nessa reflexão? Fórum Social Mundial. Sempre tem vindo muita
Leonardo Boff – A Teologia da Libertação gente, de todos os continentes, Ásia, África,
nasceu escutando o grito do oprimido. Primeiro, América Latina, aí a gente sente o pulso dessa
foi o oprimido econômico, o pobre, o explorado. teologia. Ela não é muito visível porque não é
Depois, vimos que o oprimido e o pobre tem mais conflitiva, já foi assimilada na cultura, mas
muitas caras, é o indígena, o afrodescendente, o não é ausente, está presente.
negro, são as mulheres, que desde o neolítico são DV – O temor do aquecimento
oprimidas. Também nos demos conta, a partir de global pode fazer com que os
1980, que as águas, a terra, os animais gritam, a governantes mudem de postura em
floresta grita. Se a marca registrada da Teologia relação ao meio ambiente?
da Libertação é a opção pelos pobres, dentro Leonardo Boff – O último relatório publi-

52 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

cado, feito por 2.700 cientistas, dá o estado do extremamente favoráveis à produção de energias
aquecimento, que é muito mais grave do que alternativas, tem um capital de biomassa talvez
se imaginava. A aceleração é muito maior, o o maior do planeta e uma riqueza natural que
planeta já se aqueceu em 0,7 graus Celsius; nos não existe igual no mundo porque, ademais,
próximos três anos serão mais 0,5 graus, isso dá os espaços foram todos ocupados. O Brasil e a
quase 2 graus. O grande problema mundial é Amazônia são dos poucos lugares onde ainda
como estabilizar a Terra em 2 ou 3 graus, aí os se pode pensar em grandes projetos e, por isso,
efeitos não serão tão perversos. Se ultrapassar são cobiçados pelos grandes conglomerados.
isso, será um desastre ecológico humanitário de O Brasil não tem uma política clara sobre a
proporções nunca vistas. A humanidade inteira Amazônia, não tem uma acumulação de cons-
está despertando. O Vaticano foi um dos últimos ciência científica e crítica nem tem consciência
a despertar, com a última Encíclica do papa, que da sua importância. A Fundação Getúlio Vargas
achei muito fraca, não está à altura das ameaças, fez há alguns anos um cálculo em termos eco-
da crise, não tem nenhum senso profético. Até nômicos – porque há uma economia da natureza
escrevi um artigo dizendo como faz falta um e uma economia humana – que os serviços que
pouco de marxismo ao papa. Não basta fazer a Floresta Amazônica presta à humanidade em
descrição, tem que dizer quais são as causas. Ele termos de umidade, equilíbrio de chuvas, ferti-
acha que são disfunções do sistema, o sistema lidade, climas equivale a 40 bilhões de dólares/
é bom, essa é a grande ilusão na qual não po- ano, algo que o Brasil dá de graça para a huma-
demos cair. É ocupar os canais de comunicação, nidade sem qualquer compensação.
é perder uma oportunidade, em um momento O Brasil não tem essa consciência, não sabe
urgente da espécie humana e do planeta Terra, da sua importância, e corre o risco de que as
de passar uma mensagem inspiradora, e ele não políticas do PAC acabem se perdendo, caso haja,
souber fazer isso. Os cristãos têm de fazê-lo, as como previsto, um desastre ecológico de grandes
Igrejas locais. proporções por causa do aquecimento global e
O Brasil está fazendo isso muito seriamente, da destruição da biodiversidade. Só para a Região
fez uma Campanha da Fraternidade sobre a Ama- Amazônica, foram projetadas 57 hidroelétricas.
zônia, vai fazer sobre aquecimento global agora. Se as previsões do IPCC [Painel Intergovernamen-
Há uma grande mobilização nas CEBs. Em Porto tal sobre Mudanças Climáticas] se confirmarem
Velho, no encontro nacional, ficou decidido que de que, com o aquecimento global, boa parte
não mais se chamarão apenas comunidades da Amazônia vai se transformar numa savana,
eclesiais de base, e sim comunidades eclesiais e então poderá ocorrer um desequilíbrio em todos
ecológicas de base. Fiquei extremamente admira- os climas do mundo. Cada árvore grande da
do, pois os participantes estudaram durante dois Amazônia produz 300 litros de umidade por dia:
anos um caderno que fizemos com especialistas são chamadas de rios voadores, a floresta inteira
na área sobre ecologia e a Amazônia. Todo mun- produz tanta umidade que alimenta de chuvas
do estava afiadíssimo. Conheciam muito bem todo o Centro-Oeste e o Sudeste. E, em parte,
as questões amazônicas e com senso altamente empurra para o Norte chegando até a Califórnia,
crítico. Dizendo que o PAC [Programa de Acele- que antes era um deserto e hoje é fértil. O que
ração do Crescimento] do Lula, com seus grandes conta na Amazônia não é o solo, e a reforma
projetos e hidroelétricas, representa a presença que o governo fez foi apenas a legalização fun-
do macrossistema econômico mundial, que vem diária. O que conta é o que está em cima do
de cima para baixo, não dialoga com os indíge- solo, é a floresta em pé, é a biodiversidade, é a
nas, com os ribeirinhos, com quem conhece a imensa pletora de insetos e de animais. O solo
situação ecológica das regiões, são estratégias é todo lixiviado, dos mais pobres do mundo,
absolutamente autoritárias. E eles dizem: ‘Nós o importante é segurar a Amazônia em pé, a
só podemos resistir. Estão construindo como missão dela não é ser derrubada para dar lugar
querem e a nossa tarefa é minimizar os efeitos à soja ou à criação de gado, mas é ficar em pé
perversos’. Mas estão buscando dialogar com como um reservatório da vida, não há vida sem
as autoridades, oferecendo suas experiências, floresta, não há água sem mata ciliar. O Brasil
com profundo sentido crítico a respeito dos não despertou para esses aspectos mais funda-
megaprojetos. mentais. Há que se lamentar enormemente essa
DV – Como deveria ser a inconsciência que beira à irresponsabilidade.
participação do Brasil na A proposta a ser levada oficialmente à Cope-
COP 15, em Copenhague? nhague sobre os limites de emissão de gases de
Leonardo Boff – Pela experiência que tenho efeito estufa é ambígua. O Brasil, por meio do
na participação em grupos que estudam o pro- Itamaraty, deixou claro que não aceita cotas de
blema do aquecimento global, se constata que o emissão de carbono, mas que fará uma inflexão
Brasil é decisivo para o equilíbrio da Terra. Detém em seu curso. Ou que vai decidir ainda e só
as maiores florestas tropicais do planeta, a maior revelará nos dias da conferência quais números
reserva hídrica do mundo e, daqui a pouco, o apresentará. Isso não é tomar a sério os sinais
grande problema será o da água doce. O Brasil que a Terra está inequivocamente dando. Che-
tem a maior biodiversidade, a maior extensão gamos a um ponto em que a humanidade tem
de solo agricultável, sol o ano todo, tem ventos de estar no centro, e não o nosso desenvolvi-

SETEMBRO 2009 53
entrevista

mento. E aqui nem o desenvolvimento está no pontual. Fazer os projetos respeitando as ca-
centro, é o crescimento, um projeto do século pacidades dos ecossistemas locais, dentro dos
XIX, absolutamente equivocado, antiecológico, ciclos da natureza, consultando as populações
na contramão da história. do território, porque o elemento cultural é muito
Isso é tudo lastimável e, na campanha do importante para uma solução mais includente
ano que vem, devemos suscitar essa questão em e socialmente responsável. Uma ecologia que
nome da humanidade. Não podemos permitir supere a sua visão ambiental e entre na ecologia
que se renove uma discussão uma vez levantada social, mental, integral, o que supõe um processo
por Gorbatchev, e apoiada por várias plêiades, de de diálogo com as populações em presença.
que o Brasil renunciasse parte de sua soberania Quem sabe conservar a Amazônia e o Cerrado é o
entregando a Amazônia à administração inter- habitante da Amazônia, é o caboclo do Cerrado,
nacional, por razões ecológicas e humanitárias, eles conhecem a capacidade de suporte desses
por amor à vida e à natureza. Argumentavam ecossistemas. É preciso conversar com quem
dizendo que nós não temos políticas, não temos mora lá há dezenas de gerações e conhece as
tecnologia, não sabemos como tratar a floresta plantas, os animais, as chuvas e os ventos, enfim,
e continuamos a desmatar para dar lugar à soja os ciclos da natureza.
e ao gado. Só do ano passado para cá, foram DV – Qual a tarefa da sociedade
1.048 quilômetros quadrados e ainda significou civil em relação à questão
60% menos que no ano anterior, mas são mais ambiental?
de mil quilômetros quadrados, isso é uma devas- Leonardo Boff – Nossa tarefa é transformar
tação! Não me admira que, um dia, a Amazônia a questão ambiental em uma questão política
seja, efetivamente, internacionalizada, por efeito fundamental. Primeiro, ela é essencial em âmbito
do clima global e termos que escutar: ‘Vocês não mundial. O que for decidido em Copenhague,
sabem cuidar; não é só o Brasil, é toda a Região em dezembro, será decisivo. A tendência é que
Amazônica, que envolve sete nações’. a decisão a ser tomada lá torne-se obrigatória,
DV – O que achou da troca no quem não cumprir, sofrerá punições. O Proto-
Ministério do Meio Ambiente, da colo de Kyoto era apenas uma proposta, quem
Marina Silva para o Carlos Minc? quisesse seguir, seguia. Diferentemente do mo-
Leonardo Boff – Vejo que o governo en- mento atual, quando a situação é tão grave em
controu um ecologista, cujo trabalho conheço termos mundiais que exige obrigações globais,
e respeito. Ocorre que ele é mais político e, por assumidas por todos.
isso, mais flexível, o que pode ser perigoso em O ideal seria diminuir entre 60% e 80% as
termos de ecologia. Marina Silva tinha uma emissões de CO2, mas os governantes dos pa-
concepção da Terra diferente. O Minc mantém íses participantes da COP 15 devem se acertar
uma concepção capitalista da Terra, a vê como em 40%, o que será insuficiente. O Brasil reluta
um meio de produção, só que tudo tem que ser em aceitar essa tese, não aceita determinações
feito de forma racional. Mas a Terra é mais que internacionais que impeçam seu processo de
isso, coisa que a Marina enxerga. Para ela, a Terra crescimento, quer ter autonomia. Aí vem a
é a mãe, é fonte da vida, é Gaia. Mãe a gente questão na qual eu estou trabalhando agora no
não compra, não vende nem agride. A gente grupo da ONU, que se ocupa com a elaboração
respeita, ama, trata bem. Como, então, tratar a de princípios básicos sobre o Bem Comum da
Terra, que está doente, com febre e pilhada em Terra e da Humanidade. Vivemos ainda sob o
recursos escassos? Devemos continuar com um regime das soberanias nacionais e percebemos
projeto que a devasta continuamente ou trocar claramente que os limites nacionais são relativi-
os modos de produção? Esta é a discussão de zados porque a contaminação e o aquecimento
base. Suspeito que Lula nunca entendeu esse global não se atêm aos limites geográficos das
discurso. Marina deixou o ministério por causa nações. Englobam tudo. Cada país tem de dar
dessa diferença fundamental de olhar. Resta sua colaboração ao Bem Comum da Terra e da
decidir qual olhar é o mais adequado face à crise Humanidade. O Brasil é país-chave para essa
atual do sistema-Terra. questão. Por exemplo, a FAO calcula que daqui
DV – Como fica a questão há cinco, sete anos a grande crise não será nem
do desenvolvimento para o aquecimento, mas a crise do abastecimento de
quem governa? É fácil transformar água potável. E o Brasil é a potência das águas.
este modelo? DV – E quais consequências
Leonardo Boff – O desafio é como fazer vislumbra a partir desse cenário?
a passagem. É preciso conservar uma coisa e Leonardo Boff – Vão acontecer guerras
inaugurar outra. Como Lula fez com o projeto de grande devastação para garantir acesso às
macroeconômico, ele o conservou, mas reforçou fontes de água potável. O Brasil precisa ter
muito a política social e transformou o Brasil uma estratégia mundial de abastecimento para
nesse sentido. Não é fácil incluir 50 milhões de a humanidade. O pavor que a FAO anuncia é o
pessoas, como ele incluiu, que hoje comem e cruzamento das duas linhas: do aquecimento
com isso vivem melhor. Ele deveria, nos proje- global e da falta de água. Haverá uma frus-
tos de médio e longo alcance, incluir a causa tração mundial de colheitas porque ocorrerão
ecológica como estratégica, e não como algo secas enormes, oceanos que vão subindo, um

54 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

desequilíbrio climático de grande magnitude. as plantas e os animais também precisam da


Isso poderá criar entre 150 e 200 milhões de biosfera, e sem eles não poderíamos sobreviver.
refugiados climáticos, que não vão aceitar o seu A humanidade vai fazer isso como medida de
veredito de morte sobre eles, que irão invadir desespero, como forma de sobrevivência, mas
outros países em busca da sobrevivência. Ou a isso será provavelmente antecipado por uma
humanidade se prepara para tais eventualidades, situação caótica.
caso contrário chegaremos tarde demais. Todo caos tem um momento destrutivo e um
A dimensão do problema é tão grande que outro criativo. Destrói o que havia antes e cria
não há como enfrentá-lo adequadamente. Assis- o novo, dando um salto de qualidade rumo a
tiremos à agonia de milhões de seres vivos e de mais complexidade e a mais ordens. Em 23 de
humanos, sem falar que, com a mudança climá- setembro de 2008, os institutos que acompa-
tica, bactérias, vírus e outros micro-organismos nham a pegada ecológica geral da humanidade
deixarão seus habitats naturais e poderão se forneceram os dados principais. Foi constatado
espalhar por aí e afetar perigosamente milhões que consumimos 40% a mais do que aquilo que
de pessoas. Grandes nomes das biociências não a Terra pode repor. A Terra não consegue mais
acham impossível que, no final deste século, a atender às demandas, vai haver escassez, fome
espécie humana possa até desaparecer. crônica. Por culpa nossa. Esse dia foi chamado de
DV – Acredita em uma mobilização ‘The Earth overshotting day’, o dia da ultrapas-
por parte das nações ou só haverá sagem das possibilidades da Terra. Por exemplo,
esforço quando as catástrofes os norte-americanos são 4,5% da população
começarem a acontecer? mundial e consomem 70% das riquezas do
Leonardo Boff – Eu cito sempre uma frase planeta. Quem conhece as cidades americanas
do Hegel, que está no último capítulo do livro fica horrorizado com o consumo. Não é nem
Filosofia da História: ‘O ser humano aprende da pelo comércio, mas é a cultura do consumo
história que não aprende nada da história, mas e do desperdício. Acredito que a crise vai nos
aprende tudo do sofrimento’. Quando a água impor grandes constrangimentos, assistiremos a
chegar até o nariz, os governos, as empresas, grandes dizimações e a humanidade vai dizer:
enfim, todo mundo vai querer mudar. O grande ‘Ou a gente se reúne e organiza de outra forma
problema é que poderá ser tarde demais. Poucos o planeta ou aceitamos desaparecer.
sobreviverão na Terra, feita pequena arca de Noé. DV – Como seria, na prática,
DV – Aposta em uma guinada do o conceito de bem viver?
capitalismo diante dessa situação? Leonardo Boff – Temos de superar a
Leonardo Boff – Não. Acredito que ele seja monocultura da economia, a monocultura do
suicidário, tenho escrito sobre isso e disto estou neoliberalismo, da visão ocidental do mundo.
convencido. Tentará levar seu projeto até o fim, Precisamos olhar para o exemplo da China. O
até ao limite extremo. Mas penso que não o
conseguirá, pois será ele também vítima do caos.
A pressuposição que afirmo é que o instinto de
vida é mais forte que o de morte. Temos hoje
tecnologia e já foram feitos cálculos que apon-
tam que se utilizássemos 0,2% dos 630 trilhões
de dólares que circulam no mercado especulativo
e fizéssemos um fundo, seria possível responder
todas as demandas dos pobres, equilibrar todos
os climas e a Terra voltaria a ser um jardim do
Éden, com fartura de alimentação, de saúde,
de moradia, educação. Mas a humanidade é
tão desumanizada, tão insensível, cruel e sem
piedade, que prefere ver a morte de milhões
a investir em algo tão insignificante, mas com
salvadoras consequências.
Estamos no olho de uma incomensurável cri-
se e é preciso discutir qual será o próximo passo,
não da economia, mas da humanidade. Minha
hipótese é que a humanidade vai se descobrir
como espécie, como família, e nos aceitaremos
como irmãos e irmãs, com diferentes rostos e
culturas, habitando numa mesma Casa Comum,
pequena, velha, com recursos escassos, mas
sempre aberta a produzir vida. Penso que, dentro
de pouco tempo, seremos todos socialistas, não
por convicção ideológica, mas por necessidade.
Vamos dividir tudo o que precisamos entre to-
dos, junto com a comunidade de vida, porque

SETEMBRO 2009 55
entrevista

grande sucesso daquele país está no fato de a da Terra e o velho que quer continuar como se
China utilizar-se de todos os modos de produção, tudo estivesse em ordem. Serra e Lula pertencem
até a produção mediante a força física humana. ao velho, Marina Silva e todo um grupo ao seu
Eles utilizam a agricultura familiar, a cooperativa redor fazem o novo. Voltará a discussão que foi
socializada, mista, particular, capitalista, estatal. esvaziada pelo PT nas bases: qual é o melhor
Enfim, todas as formas com um tremendo prag- sonho para o Brasil? Que Brasil queremos? É
matismo. Por isso, ela cresce tanto, pois agiliza importante mobilizar a sociedade em torno desta
todos os modos de produção possível. Nós, ao discussão. Se não a fizermos, vamos repetir o
contrário, somos vítimas do único modo de velho esquema do século XIX, do puro cresci-
produção, o capitalista. mento material. Se a oposição ganhar, talvez
Ignacy Sachs, grande teórico da nova econo- venha a ressuscitar, embora meio desmoralizada,
mia, polonês de origem vivendo na França, onde a ideia de privatizações, coisa que não faz mais
dirige um centro de estudos sobre o Brasil, país sentido hoje. Mas o PT está também privatizando
que conhece muito bem, pois trabalhou aqui, aeroportos, estradas, só que o faz nas caladas,
tem um projeto chamado de ‘biocivilização’ ou mas está fazendo. Na minha opinião, estamos
a ‘Terra da boa esperança’, que tem como centro em uma encruzilhada histórica de graves conse-
não a produção, mas a vida. O protótipo da vida quências para o nosso futuro comum.
é o bem viver porque o sentido da vida é viver DV – Quando nós, brasileiros(as),
e viver feliz, não é produzir, é viver com alegria, vamos começar de fato a ter
é irradiar. E com a máxima preservação possível consciência socioambiental?
da natureza porque pertencemos à natureza e Leonardo Boff – Quando converso sobre
temos uma permanente interação com ela. Se isso, sempre digo: ‘Não quero consolar ninguém,
fizermos isso, vamos reencontrar não o paraíso quero trazer angústia, pois a angústia é o que
perdido, pois não é mais possível resgatá-lo, mas faz pensar, faz ler, conversar, faz as pessoas
uma humanidade em profunda harmonia com a se mobilizarem’. Porque esta é a última hora,
Terra, com a natureza que a todos acolhe e nutre. não temos muito tempo, nem temos muita
Hoje, há uma disputa por hegemonia. Para sabedoria, somos insensíveis e sem piedade, o
mim, a discussão do ano que vem, por ocasião capitalismo nos criou para isto, para não pensar
da campanha presidencial, não será entre Serra na subjetividade e nos nossos sonhos, mas só
e Lula, mas entre o novo exigido pela situação no consumo e na exploração da natureza e das

56 Democracia Viva Nº 43
Leonardo Boff

pessoas. Ou a gente muda ou teremos de aceitar representante americana não quis aceitar de jeito Participaram desta
uma tragédia ecológica humanitária que possi- nenhum, riscou 10 pontos do acordo e levou entrevista
velmente se abaterá duramente em certas regiões para o Obama, que disse: “Aprova!”. Ela voltou Entrevistadores(as)
da Terra, tornando-a hostil à vida humana. Por humildemente. Foi aprovado. Resta saber se vai
Do Ibase:
exemplo, o drama que envolve o derretimento ser levado à pratica. Ana Bittencourt
da Antártica, que está sendo muito acelerado, DV – O que isso significa? Carlos Aguillar
é que ela guarda uma quantidade enorme de Leonardo Boff – Na ONU, o que conta Diego Santos
metano, que é 23 vezes mais poluente que o é o Conselho de Segurança e o Conselho Dulce Pandolfi
Fabiana Born
dióxido de carbono. Se esse metano for liberado Econômico. Os demais departamentos Flávia Mattar
pelas geleiras que vão derretendo, acrescentando possuem pouco peso. Agora, com a Geni Macedo
ainda o aquecimento das águas oceânicas, em eventual criação do Conselho Internacional Íris Patrícia Batista
três, quatro anos, o mar poderá subir quase Econômico, há a chance de se antecipar Jamile Chequer
Luciana Badin
um metro. Será uma catástrofe para as nossas à crise e de lentamente se criar uma Nahyda Franca
cidades costeiras. governança global, necessária para um
DV – Como foi representar gerenciamento dos recursos escassos, Convidada:
Cleonice Dias,
a sociedade civil brasileira necessários para a vida das populações. O conselheira da revista
em uma assembleia da ONU? eixo agora não é mais só a economia, mas Democracia Viva
Leonardo Boff – Tive oportunidade de a suportabilidade, a sustentabilidade do
participar de duas assembleias gerais da ONU, planeta e o equilíbrio climático da Terra. As
em abril e em junho, numa na qual pude falar. economias dos Estados Unidos e da China Realização
A reunião era para votar um projeto das nações sugam os principais recursos. Não é mais Decupagem
indígenas sobre a proclamação do Dia da Mãe admissível esse consumo tresloucado que, Ana Bittencourt
Terra. Os países ricos não queriam saber de nada a continuar, em 15, 20 anos, a Terra não Diego Santos
disso porque, para eles, a Terra é para ser explo- aguentará e iremos ao encontro do pior. Edição
rada. Não tem nada disso de ser mãe. Mas com Ademais, Miguel D’Escoto criou um grupo Ana Bittencourt
as articulações feitas durante dois anos e dada à de conselheiros, do qual faço parte, Produção
crise ecológica mundial, criou-se uma atmosfera que está elaborando uma Declaração Geni Macedo
favorável. A mim coube fazer a fundamentação Internacional do Bem Comum da Terra da Iris Patrícia Batista
científica e ética dessa ideia da Terra como Mãe. Humanidade. Ela é necessária para unificar Fotos
O projeto foi aprovado por unanimidade. as políticas globais e sobre esse tema há Marcus Vini
A segunda foi nos dias 24, 25 e 26 de junho. pouquíssima acumulação teórica e muito Transporte
O secretário geral da ONU, Miguel D’ Escoto, menos prática. Somos umas 10 pessoas de Fernando Cabral
convocou os 192 países para uma grande as- vários países. Eu estou lá porque D’Escoto,
sembleia para discutir com todos uma saída para que foi ministro das Relações Exteriores da
a crise econômico-financeira mundial. O G-8, Nicarágua sandinista, se inscreve dentro da
principalmente Estados Unidos e França, fizeram Teologia da Libertação. Isso nos aproximou
tudo para desmoralizar o encontro, porque se e o tenho ajudado na elaboração de
arrogam a missão de decidir sobre o futuro de importantes discursos oficiais. Ele é tão
todos. Apesar disso, a reunião aconteceu. Foram respeitado que todos, sem exceção,
poucos chefes de Estado, mas estavam lá seus também muçulmanos e chineses, o
representantes. O nosso chanceler Celso Amo- chamam de Padre, que ele continua a ser
rin fez um discurso razoável, mas todo mundo com muita honra e respeitabilidade.
perguntava a nós porque Lula não estava lá. E
comentavam: ‘É que ele agora pertence ao grupo
do G-20.’ Estes colocam a questão de como sal-
var o sistema enquanto os outros se perguntam
como salvar a vida, o planeta e a humanidade.
São dois interesses e dois olhares diferentes e
até opostos. Mas produziu-se um documento
importante a partir das falas dos representantes
dos povos e do grupo de estudos articulado pelo
Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, criado pelo
presidente da Assembleia, Miguel D’Escoto. Aí,
se fazem várias sugestões importantes, como a
criação do Conselho Econômico, que acompa-
nha as duas formas do capital, o especulativo
e o real, para evitar desvios graves, se sugere,
ao invés da globalização, a regionalização da
economia e do sistema financeiro, um acom-
panhamento sistemático dos problemas ecoló-
gicos globais e outras medidas. O documento
final foi aprovado por unanimidade. Mesmo os
europeus perceberam que teriam um desgaste
político muito grande se não o aceitassem. A

SETEMBRO 2009 57
Ibase
opinião
Cândido Grzybowski*

Mudar
mentalidades
e práticas:
um
A crise climática é a consequência mais evidente, mais imediata e mais ameaçadora

do modelo industrial, produtivista e consumista em que se baseia a nossa economia e

o modo de vida que levamos. Não se trata de algo conjuntural, mas de esgotamento

de um sistema que tem como motor o ter e o acumular, ou seja, um desenvolvimento

que tem como pressuposto básico o crescer, crescer mais, sem parar, sem respeitar

limites naturais, tudo para concentrar riquezas. Como condição para desenvolver,

não importa a destruição ambiental que possa provocar, nem que a geração de ri-

queza seja, ao mesmo tempo, geração de pobreza, exclusão social, desigualdades de

todo tipo. O aquecimento global e a crise do clima são, por isso, expressões de uma
inviabilidade intrínseca deste desenvolvimento. Tanto de um ponto de vista ambiental como social,

58 Democracia Viva Nº 43
não dá para tornar sustentável tal desenvol- A ruptura é espinhosa. O desenvolvi-
vimento. Não importa o lugar que ocupamos mento está encrustado na gente, é um valor.
neste planeta único e finito, o fato é que Desenvolvimento lembra imediatamente pro-
precisamos mudar. Esse é, hoje, um imperativo gresso. E quem não quer progresso? O pro-
ético, de vida, está em questão a integridade blema é que deixamos de discutir a qualidade
da vida e de sua visceral relação com o meio de vida que nos traz o progresso. Quanto de
ambiente, e, portanto, da humanidade inteira. lixo, poluição e destruição estão associados a
A crise está aí. Não a vê quem não quer. este progresso! Basta lembrar aqui o carro, um
Não adianta pensar que dá para se safar, que dos protótipos atuais do modelo de desenvol-
não é com a gente. O clima, como bem co- vimento. As nossas cidades são desenhadas
mum, tem a virtude de ser cosmopolita, para o para eles e não para nós, cidadãs e cidadãos.
bem e para o mal. Só que a mudança climática E no entanto, quase não andamos por conta
resultante do tipo de economia que temos, em dos monumentais engarrafamentos. Será que
especial sua base energética, afeta e afetará para viver bem precisamos sempre de mais?
particularmente os 80% da humanidade que Ter mais e mais bens, trocando sempre porque
pouco ou nada receberam deste modelo de estragam logo (feitos para não durar) ou pela
desenvolvimento. Ainda mais agora na sua compulsão, que o ideal nos impõe, de adquirir
modalidade globalizada, de interdependência o último modelo. Isso só gera destruição em
quase total. Ouso dizer que estamos conde- todo ciclo, da extração das matérias-primas
nando a esmagadora maioria a ser refugiada ao lixão onde jogamos os bens em desuso.
ambiental sem eira nem beira, à deriva, como Já paramos para pensar quem está ganhando
os barcos de migrantes clandestinos no Caribe nesta história?
e no Mediterrâneo ou a espantosa expansão Não há dúvida que existem enormes
de favelas nas grandes cidades já anunciam. necessidades não atendidas. Muita gente tem
Estamos diante de uma crise civiliza- seus direitos econômicos, sociais, culturais e
tória, é isto que precisamos reconhecer para ambientais não atendidos. Grupos e povos
poder reagir enquanto ainda é tempo. A lógica inteiros estão condenados à exclusão, miséria,
do desenvolvimento, gestada com a revolução fome, pobreza, privações de todo tipo. Mas
industrial, tornou-se o motor econômico, polí- por quem e como isto é gerado? Quanto mais
tico e cultural do mundo nos últimos séculos. se desenvolve o mundo na base deste modelo
Não se trata mais de um embate nos velhos ter- – como agora, com a globalização, ficou mais
mos – capitalismo x socialismo –, no marco da evidente ainda –, mais e mais desigualdade se
civilização industrial e seus desdobramentos. gera no mundo. Apenas 20% da humanidade
Estamos diante da crise da própria civilização consome mais de 80% dos recursos naturais
industrial e de seus modelos de organização e dos bens e serviços produzidos por este
econômica e política – a dominante capitalista sistema. E o pior é que se fosse generalizá-lo
e a desafiante e subalterna socialista – para a para atender a todos os seres humanos, aí
sociedade. São os fundamentos desse tipo de faltaria planeta, faltariam recursos naturais!
civilização que se esgotaram. Literalmente, der- Foi criada a pegada ecológica (foot print),
reteram, foram consumidos pelas suas próprias pelos ecologistas, exatamente para avaliar essa
contradições. E ameaçam o planeta inteiro. apropriação indevida da natureza pelas cama-
das privilegiadas da população e pelos países
mais desenvolvidos. Para viver, na média de
Nova civilização, novo paradigma
um norte-americano, a humanidade precisaria
Estamos diante de uma urgência e uma de uns cinco planetas. Por isso, mudar é uma
radicalidade: aqui e agora, precisamos trans- condição sine qua non.
formar nossos ideais, modos de pensar e os Impõe-se uma grande revolução de
sistemas políticos, econômicos e técnicos que mentalidades e de sistema de valores. Precisa-
sustentam o desenvolvimento. A ruptura tem mos superar a ideologia do progresso e voltar
de ser total, de ponta-cabeça. Passar de uma a colocar no centro a justiça social e ambiental
civilização industrial e produtivista para uma com a ideia de bem viver para todas as pessoas.
biocivilização, comprometida com a vida no Isto enquanto ainda é tempo, pois se não mu-
planeta, implica verdadeira revolução. darmos já... amanhã será tarde. Comecemos

SETEMBRO 2009 59
opinião ibase

disputando sentidos e significados do desen- cidadã que deles esperamos!


volvimento que nos é dado como salvação. Há Mas o fundamental é estarmos conven-
uma ditadura de pensamento econômico no cidos que outro mundo é possível. A dúvida só
debate e nas decisões políticas, como se nada retarda a ação efetiva. Pior, permite que seja-
pudesse ser feito sem crescimento econômico mos presas fáceis de um falso discurso sobre a
como condição prévia. Considerações ambien- necessidade de agredir o meio ambiente para
tais e sociais são custos na visão economicista nos desenvolver, para resolver nossos gritantes
dominante e não bases nas quais se assentam problemas sociais. Uma coisa é encarar nossas
as próprias sociedades. Repolitizar tudo é a necessidades inadiáveis, outra é confundir
palavra. Trata-se de submeter o econômico e o isso com apoio aos grandes conglomerados
mercado, a ciência e as técnicas, as estratégias econômicos e financeiros para que tratem do
de desenvolvimento a uma filosofia de vida que problema. Isso vai das grandes hidroelétricas
vê os seres humanos como parte intrínseca ao agrocombustível, do desmatamento para
do meio natural e em íntima interação com criação de bois e dos grandes desertos verdes
todos os seres vivos, em sua biodiversidade, para celulose ao apoio às grandes empreitei-
seus territórios. ras porque criam empregos. Nenhuma ação
Estamos diante da política de mudança poderá acontecer se nós,
Nenhuma ação necessidade de um novos cidadãs e cidadãos, não acreditarmos que ela
paradigma ético, analítico pode, precisa e queremos que aconteça. Sobre
política de e estratégico para iniciar- a mudança de paradigma, a bola está com a
mos aqui e agora a mu- cidadania. Está em nossas mãos a possibilidade
mudança poderá dança. Precisamos de uma
infraestrutura mental, de
de o Brasil agir diferentemente, nós que somos
detentores de um dos maiores patrimônios
acontecer se uma revolução cultural
como diria nosso Betinho,
naturais da humanidade.

nós, cidadãs que reponha tudo no


lugar, o lugar da vida, da
Bases para começar

e cidadãos, não natureza, das ideias, de


nossa enorme capacidade
Compartir o mundo, este é o segredo simples
de uma nova consciência ética e cidadã, de

acreditarmos que coletiva de criar, de inven-


tar. Ponhamos isso tudo a
dimensões planetárias. Precisamos compartir
entre nós, e com gerações futuras, aquilo

ela pode, precisa serviço de um re-encontro


entre nós mesmos, seres
que generosamente recebemos, como dom
da própria natureza. Precisamos compartir,
humanos, com a diversi- também, o que produzimos, respeitando a
e queremos dade do que somos e do vida e o meio ambiente a partir do gênio
que sabemos fazer e criar. coletivo – ou alguém tem dúvida que o co-
que aconteça Mas nosso reencontro, nhecimento humano é algo essencialmente
também, precisa ser com coletivo, produzido na interação e troca que a
o meio ambiente do qual linguagem e a inteligência nos permitem? – e
sugamos a vida e do qual da aplicação prática como ciência e tecnologia
somos parte integrante. na criação de bens e serviços úteis para todos
Trata-se de criar um grande movimento e todas. Compartir significa se solidarizar e ser
de ideias, uma espécie de religião, onde cre- responsável. Compartir quer dizer reconhecer
mos e agimos com determinação. Isso pode nos outros e outras os mesmos direitos que
fazer a diferença hoje e fazer balançar a polí- queremos para nós mesmos.
tica – a única arena possível para enfrentar e Um fundamental desafio para mudar
levar a cabo a nossa responsabilidade coletiva tudo é recolocar no centro os bens comuns,
diante do desastre que se anuncia – do local, aqueles que são condição de vida para todos os
lá onde vivemos, ao mundial. Não dá para seres humanos. Aqui cabe lembar, em primeiro
esperar! A Conferência sobre o Clima, em lugar, os bens comuns dados, como a água, o
Copenhague, já está quase se realizando. ar que respiramos, o clima, a biodiversidade,
Pressionemos nossos negociadores para que os enormes recursos que a natureza contém
assumam a responsabilidade republicana e acumulados ao longo do tempo, enfim, a

60 Democracia Viva Nº 43
Mudar mentalidades e práticas: um imperativo

bioesfera como um sistema único em sua diver- A mídia pode ser contra, sem dúvida, * Cândido
sidade. Mas, também, são fundamentais para mas não ao longo do tempo. Sempre, na Grzybowski
outro estilo de vida os bens comuns criados ao história, são mobilizações vindas do seio da Sociólogo, diretor
longo da história humana, sejam as línguas, o sociedade em ação que levam a mudanças. do Ibase

canto e a música, a arte e a cultura em geral, Diante das poderosas empresas, de suas
como os conhecimentos, a ciência e a técnicas, estruturas que a tudo parecem dominar, pre-
as filosofias. A preservação, o fortalecimento e cisamos inventar modos cidadãos de controle
o uso responsável desses bens é condição de social e público que as constranjam, inibam e
vida em sociedade e de uma relação saudá- obriguem a mudar de estratégias e práticas.
vel, justa e sustentável com a natureza. Uma Afinal, empresa nenhuma resiste a um boicote
tarefa urgente e incontornável é desprivatizar cidadão. Elas precisam reassumir seu papel de
e desmercantilizar os bens comuns – hoje, organizações de produção de bens e serviços,
uma das maiores ameaças produzidas pelo não para elas, mas para a felicidade cidadã.
modelo de desenvolvimento que temos e, Está evidente neste percurso que faço
portanto, um dos fatores determinantes do o esforço de libertação. Sim, libertação de
aquecimento global. dogmas, de ideais e valores, de estruturas de
Na busca de definição das bases de um pensar e agir. Ciente de minha responsabilida-
novo mundo, não podemos esquecer de con- de como diretor geral do Ibase, quero instigar,
quistas humanas que se revelam estratégicas e motivar, desencadear um poderoso movimento
que precisam ser potencializadas. Trata-se da de mudança interna que nos leve a ousadas
democracia como método de transformação propostas e novas práticas. O Ibase precisa
e como modus operandi de uma sociedade ser participante ativo na construção de uma
baseada na justiça social e ambiental. Para nova agenda, dentro e fora do Brasil, agenda
ampliar o espaço da política sobre a econo- da cidadania por um mundo justo e diverso,
mia, do espaço público sobre o privado, do com justiça social e ambiental. Radicalmente
poder cidadão sobre o poder do dinheiro e comprometidos com a democracia como es-
das empresas, é fundamental a democracia. tratégia de mudança social, devemos tomar o
Mas a democracia é essencial para reposicionar desafio de uma nova agenda para o Brasil e o
a questão ambiental como uma questão de mundo como a agenda da própria cidadania.
justiça social, desta e das futuras gerações. A questão do aquecimento global e da
Quando falamos em sociedades susten- mudança climática e, junto com ela, a proble-
táveis, em vez de desenvolvimento sustentável, matização do desenvolvimento, exige de nós
estamos sobrepondo o direito coletivo cidadão uma reflexão e uma prática capazes de fazer
de ter o suficiente e digno para viver segundo emergir na sociedade uma nova visão sobre as
as condições históricas – comida, roupa, casa, bases que precisamos construir para atender
saúde, cultura e felicidade –, segundo um ra- às nossas necessidades e ao que a cidadania
dical princípio de igualdade com valorização planetária espera de nós. Por pequena que seja
da diversidade, sobre o direito individual e nossa contribuição, como sempre digo, não
privado de acumular sem limites. A democracia podemos esquecer que, em nossa pequenez
traz ao centro a participação, ou seja, o direito de pulga que pica e incomoda, podemos fa-
e a responsabilidade cidadã de definir o tipo zer diferença no modo de andar do elefante
de justiça social e ambiental que a sociedade político e econômico, o Estado e a economia.
pode garantir para todos os seus integrantes. Comecemos imaginando o que e como, um
Novamente, o problema está no mode- ato libertário nele mesmo.
lo dominante, mas a possibilidade de mudança
está nas mãos da cidadania ativa. Ou seja,
mais que nos desiludir pelo que fazem nossos
representantes e os responsáveis pelas formu-
lação e gestão das políticas, precisamos exercer
nossa capacidade de constituintes do poder
político e dos governos. Digamos, em alto e
bom som, o que queremos e o que pensamos
que o mundo precisa e espera que façamos.

SETEMBRO 2009 61
opinião ibase

Trilhas a transformar
Em uma tentativa de identificar mo-
vimentos já existentes, que podem e nome de economia solidária. Trata-se, a globalização promovida pelas grandes
devem ser fortalecidos pelo seu poten- fundamentalmente, de modos de orga- corporações econômicas e financeiras
cial de mudança, lembro aqui alguns. nização social e econômica, baseados que organizam o mundo em função
Não é uma lista exaustiva e nem define na cooperação e responsabilidade so- de suas estratégias de acumulação. A
prioridades. Prefiro que os tomemos cial, que visam, em primeiro lugar, servir localização e territorialização partem do
como emergências e sinais de um outro à vida e não à acumulação. O compartir reconhecimento do bem comum maior,
mundo possível. vem junto com o repartir no ato mesmo o planeta, a biosfera, a biodiversidade,
Destaco, em primeiro lugar, a radi- de constituir um empreendimento eco- com o ar, os oceanos e o clima. Mas
calidade contida na proposta de por em nômico solidário, em qualquer setor de reconhecem também as potencialidades
questão a medida de valor da riqueza atividade humana. Está aí um princípio e os limites diversos de cada canto do
comumente usada. Afinal, o que é a revolucionário, na prática, de constru- planeta, de cada sociedade humana aí
riqueza? O Produto Interno Bruto (PIB) ção de vida e sociedade sustentáveis. ancorada. Subsidiariamente, todos e
é uma degradação, uma elegia à destrui- No centro das iniciativas e da rede todas dependemos uns dos outros. Mas
ção ambiental e social que a mercanti- de economia solidária – ela mesma ativamente, devemos buscar o possível e
lização de tudo provoca como se fosse constituinte de um novo tecido eco- decidir por nós mesmos(as) segundo as
geração de riqueza. Exclui quem não nômico de trocas humanas, mais que possibilidades do lugar que ocupamos na
está no mercado e o que não se faz com trocas mercantis – está a busca, como crosta terrestre. Ninguém tem o direito
o propósito de vender. Não considera condição de viabilidade do próprio em- de nos tirar a capacidade de decidir
geração de valor o trabalho doméstico, preendimento, do reequilíbrio dos siste- por nós mesmos(as), impondo soluções
do cuidado e da própria reprodução da mas bioecológico, socioeconômico e do de fora. Claro que nós, também, não
vida humana. O meio ambiente é uma técnico e científico, na base de qualquer temos o direito de decidir ignorando as
externalidade, tanto pelo seu uso como atividade humana de produção de bens consequências sobre todos os outros.
pelo que nele se joga, não interferindo e serviços. Ainda em sintonia com a Localizar e territorializar é reencon-
no valor. Trata-se de uma medida do que economia solidária, cabe registrar aqui tar-se entre nós mesmos e de nós com
se ganha e não do que a humanidade toda uma nova tendência de reciclar e o meio ambiente. Por isso, precisamos
perde. No PIB está embutido muito da conservar os bens, mais que produzir de formas de organização que nos
destruição ambiental e da injustiça social novos a se jogar fora. São raízes de permitam internalizar tudo o que pode
que vemos. uma nova economia, seja na relação ser internalizado, produzindo aqui para
Já existem contestações sobre a entre os seres humanos com a natureza, consumir aqui, decidindo aqui o que
medida da riqueza e a hegemonia do como na relação entre eles mesmos ao concerne aos cidadãos e às cidadãs da-
PIB. O bem viver aponta, mais que uma produzir, repartir e consumir os bens. qui, tendo a cultura e a identidade que
medida, outra base para se considerar a Diante da crise ambiental, e levan- nos convêm. Tudo o que diz respeito ao
riqueza. Já existem inciativas no sentido do em conta a pegada ecológica, a bem comum coletivo maior, tudo o que
de construir índices de felicidade humana humanidade deve inventar formas de precisamos e não temos, tudo o que
ou de bem-estar bruto. O Indice de De- produzir riqueza menos materializadas. temos a mais e outros têm pouco, tudo
senvolvimento Humano (IDH), proposto A economia da informação e do co- isso deve ser organizado e decidido em
pelo Programa das Nações Unidas pelo nhecimento, hoje com grande impacto instância maior, seja nacional, regional
Desenvolvimento (Pnud), vai no sentido nas nossas vidas, pode ir nesse sentido ou mundial.
da contestação da hegemonia de cará- se não for presa dos grandes conglo- Tomemos a energia – vilã da crise
ter econômico e financeiro do PIB, mas merados capitalistas. Afinal, produzir climática – como exemplo. São diversos
ainda não é uma ruptura, pois o próprio mais riqueza, mais felicidade, sem usar e desiguais os recursos e as próprias
PIB per capita é ainda um de seus qua- destrutivamente a natureza, é o que necessidades de energia nos diferentes
tro componentes. Além do mais, o IDH mais precisamos. A desmaterialização territórios humanos do planeta. A ges-
ignora o impacto sobre os bens comuns. da produção é um imperativo que já tão de tais recursos só pode ser local
Alguns princípios devem ser lem- se impõe para toda a atividade de pro- e subsidiariamente assentar em outros
brados aqui para a criação de qualquer dução de bens materiais. Usar menos planos. O que não pode acontecer é a
nova medida de valor, capaz de apontar energia e menos recursos naturais não imposição de formas de exploração e
um mundo mais igualitário e diverso, é mais uma opção para as organizações uso dos recursos como até aqui, sempre
com justiça social e ambiental. Tal me- econômicas para sobreviver diante da determinadas de forma colonial, de fora,
dida deve levar em conta a interação catástrofe ambiental. A opção é apenas seja dos centros econômicos mundiais,
entre os seres humanos, a comunidade, do modo de fazê-lo. seja dos pólos industriais no interior dos
vizinhos(as) e amigos(as). Também deve Um outro aspecto fundamental a países, sem considerar as necessidades
considerar a experiência mais direta com destacar, como algo que emerge e pre- dos grupos humanos locais envolvidos.
a natureza. Indispensável é levar em con- cisa ser fortalecido pelo que sinaliza, é
ta o sentir-se bem, a realização pessoal a relocalização e a reterritorialização do
e coletiva, a criação e a possibilidade de poder e das economias. Não se trata de
participar para além da acumulação de ignorar ou inverter a interdependência
bens e patrimônios materiais. planetária, condição mesma da vida.
Um segundo movimento a registrar Mas isso não pode ser confundido com
aqui é o que pode ser abrangido pelo

62 Democracia Viva Nº 43
SETEMBRO 2009 63
artigo
Christovam Barcellos(a)
Antonio Miguel Vieira Monteiro e Virginia Ragoni(b)
Carlos Corvalán(c)
Helen C. Gurgel(d)
Marilia Sá Carvalho e Sandra Hacon(e)
Paulo Artaxo(f)

A saúde
frente
às mudanças
ambientais A ocorrência do processo de mudanças climáticas, principalmente as causadas pelo aque-

cimento global induzido pela ação humana, foi pela primeira vez alertada na década de

1950. Já no fim do século XIX o pesquisador sueco Svante Arrherius havia levantado a

possibilidade de aumento de temperatura devido a emissões de dióxido de carbono. Ao

longo da década de 1980, cresceu a preocupação de pesquisadores ligados a questões

ambientais com o impacto dessas mudanças sobre ecossistemas. Na década de 1990,

foram desenvolvidos modelos que permitiram, de um lado, explicar a variabilidade de

1 Trechos do artigo, clima ocorrida ao longo do século; de outro, avaliar a contribuição de componentes
gerado para uma Oficina
da 7ª Expoepi, – realizada em
Brasília, em 2007 –,
e publicado pela Organização naturais (vulcanismo, alterações da órbita da Terra, explosões solares etc.) e antropo-
Pan-Americana de Saúde
da Organização Mundial de
Saúde gênicos (emissão de gases do efeito estufa, desmatamento e queimadas, destruição de
(Opas/OMS), em 2008
e republicado em
Epidemologia e Serviços ecossistemas etc.) sobre essas variações.
de Saúde, Brasília, 18 (3):
285-304, jul-set, 2009. O primeiro relatório global sobre mudanças climáticas e saúde foi publicado pela Organização

64 Democracia Viva Nº 43
Mundial de Saúde (OMS) em 1990.2 Durante Brasil em 2004; a seca no oeste da Amazônia
a ECO-92, foi instalada a convenção sobre em 2005, mesmo sem consenso para suas de-
mudanças climáticas, junto com as convenções terminações causais, contribuíram para trazer
sobre diversidade biológica e desertificação. à tona e reforçar o debate sobre as origens e
No entanto, o tema das mudanças climáticas os efeitos das mudanças climáticas em escala
somente tomou a mídia com maior intensidade global.
nos últimos anos, repercutindo sobre agendas
de governos, pesquisas e imaginário popular.
Dinâmica da atmosfera
A divulgação do quarto relatório de
e problemas de saúde
avaliação do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC-AR4), em fevereiro Acredita-se que os problemas de saúde humana
de 2007, o filme “Uma verdade inconveniente”, associados às mudanças climáticas não têm
ganhador do Oscar de melhor documentário de sua origem, necessariamente, nas alterações
2007, e o tratamento midiático dado a uma climáticas. A população humana sob influência
série de eventos extremos, do ponto de vista das mudanças climáticas apresentará os efeitos,
climático, e catastróficos, do ponto de vista de origem multicausal, de forma exacerbada ou
social, como o furacão Katrina, que destruiu intensificada. Muitas são as pesquisas, com foco
Nova Orleans; a onda de calor na Europa em nas questões de saúde pública, que tentam se 2 WHO (1990). Protential
health effects of climatic
2003, quando foram registradas mais de 35 relacionar com as mudanças climáticas. change. Report of a
mil mortes; o Catarina, que atingiu o Sul do No entanto, a avaliação dos efeitos WHO Task Group,
Doc. WHO/PEP/90.10.

SETEMBRO 2009 65
artigo

sobre a saúde relacionados aos impactos das ao sistema de saúde.


mudanças climáticas é extremamente comple- A conjunção de envelhecimento, po-
xa e requer uma análise integrada com uma breza, isolamento e problemas de acesso a
abordagem interdisciplinar dos profissionais serviços de saúde, associado ao aumento de
de saúde, climatologistas, cientistas sociais, temperatura, condenou grupos sociais urba-
biólogos, físicos, químicos, epidemiologistas, nos abandonados por suas famílias e pelos
dentre outros, para avaliar as relações entre serviços públicos especialmente no período de
os sistemas sociais, econômicos, biológicos, férias de verão.5 Nesse e em diversos outros
ecológicos e físicos, e deles com as alterações casos, a avaliação dos riscos à saúde devidos
climáticas.3 às mudanças climáticas globais não podem ser
As mudanças climáticas podem produzir dissociados das análises sociais, que consideram
impactos sobre a saúde humana por diferentes as desigualdades sociais fator estrutural da
vias. Por um lado, influencia de forma direta, sociedade atual.
como no caso das ondas de calor ou mortes As flutuações climáticas sazonais pro-
causadas por outros eventos extremos, como duzem um efeito na dinâmica das doenças
furacões e inundações. Mas muitas vezes, essa vetoriais, por exemplo, a maior incidência da
influência é indireta, sendo mediado por altera- dengue no verão e da malária na Amazônia
ções no ambiente, como a alteração de ecossis- durante o período de estiagem. Os eventos
temas e de ciclos biogeoquímicos, que podem extremos introduzem considerável flutuação
aumentar a incidência de doenças infecciosas, que pode afetar a dinâmica das doenças de
mas também de doenças não transmissíveis, veiculação hídrica, como leptospirose, hepatites
que incluem desnutrição e doenças mentais. virais, doenças diarreicas, etc. Essas doenças po-
Deve-se ressaltar, no entanto, que nem todos dem se agravar com as enchentes ou secas que
os impactos sobre a saúde são negativos. Por afetam a qualidade e o acesso à água. Também
exemplo, a alta de mortalidade que se observa as doenças respiratórias são influenciadas por
nos invernos poderia ser reduzida com o au- queimadas e os efeitos de inversões térmicas
3 McMichael, A.J. (2003).
Global climate change and mento das temperaturas. Também o aumento que concentram a poluição, impactando dire-
health: an old story writ
large, p 1-17. In: McMichael, de áreas e períodos secos pode diminuir a tamente a qualidade do ar, principalmente nas
A.J.; Campbell-Lendrum,
D.H.; Corvalan, C.F.; Ebi, K.L.;
propagação de alguns vetores. áreas urbanas.
Githenko, A.; Scheraga, J.D.; Entretanto, em geral, considera-se que Além disso, situações de desnutrição
Woodward, A. (eds).
Climate change and human os impactos negativos serão mais intensos que podem ser ocasionadas por perdas na agricul-
health. Risks and responses.
WHO, Genebra, 322p. os positivos. As consequências do aumento de tura, principalmente a de subsistência, devido
4 McMichael, A.J.; variabilidade e de eventos climáticos extremos a geadas, vendavais, secas e cheias abruptas. A
Woodruff, R.E.; Hales, S
(2006). Climate change and são de difícil previsão para a saúde pública. variação de respostas humanas relacionadas às
human health: present and
future risks. Lancet. 367:
Alguns modelos devem ser buscados para mudanças climáticas parece estar diretamente
859-869. concatenar processos climáticos com eventos associada às questões de vulnerabilidade indi-
5 Fleuret, S; Séchet, de saúde. vidual e coletiva.
R (2004). Géographie sociale
et dimension sociale O aquecimento global pode ter conse- Variáveis como idade, perfil de saúde,
de la santé. Colloque ESO.
Disponível em <http:// quências diretas sobre a morbidade e mortali- resiliência fisiológica e condições sociais contri-
eso.cnrs.fr/evenements/
contributions_10_2004/ dade, por meio da produção de desastres como buem diretamente para as respostas humanas
fs.pdf>.
enchentes, ondas de calor, secas e queimadas. relacionadas às variáveis climáticas.6 Estudos
6 Martins MC, Fatigati FL,
Vespoli TC, et al. (2004).
Uma onda de calor ocorrida na França em 2003 também apontam que alguns fatores que
Influence of socioeconomic causou cerca de 15 mil óbitos, principalmente aumentam a vulnerabilidade dos problemas
conditions on air pollution
adverse health effects entre mulheres, idosos, residentes em grandes climáticos são uma combinação de crescimento
in elderly people: an analysis
of six regions in Sao Paulo, cidades, viúvos ou solteiros. Parte dessas mortes populacional, pobreza e degradação ambien-
Brazil. J Epidemiol Community
Health; 58(1):41-46. pode ser atribuída às mudanças climáticas glo- tal,7 especialmente em crianças, com aumento
7 IPCC (2001a). International bais.4 Mas o fato de que uma parcela conside- de doenças respiratórias e diarreicas resultantes
Panel on Climate Change. The
Science of Climate Change – rável de óbitos pudesse ter sido evitada colocou de aglomerado humano em locais muitas vezes
The Scientific
Basis – Contribution of
em xeque todo o sistema de saúde e proteção inadequados.8
Working Group 1 to the social do país. O aumento na mortalidade deve As condições atmosféricas podem in-
IPCC, The assessment report
Cambridge Univ. ser tomado como uma conjunção de fatores fluenciar o transporte de micro-organismos,
8 Vide nota de rodapé n.3. extrínsecos (climáticos e sociais) e intrínsecos assim como de poluentes oriundos de fontes

66 Democracia Viva Nº 43
A saúde frente às mudanças ambientais e climáticas

fixas e móveis e a produção de pólen.9 Os efeitos sociação entre altas temperaturas e elevadas
das mudanças climáticas podem ser potencia- concentrações de poluentes atmosféricos pode
lizados, dependendo de características físicas gerar um incremento das hospitalizações,
e químicas dos poluentes e de características atendimentos de emergência, consumo de
climáticas como temperatura, umidade e preci- medicamentos e taxas de mortalidade.15 A in-
pitação. Essas características definem o tempo terface entre poluição e clima também deve ser 9 Moreno, A.R. (2006).
Climate change and human
de residência dos poluentes na atmosfera, que considerada como fator de risco para doenças health in Latin America:
drives, effects, and policies.
podem ser transportados a longas distâncias do coração, seja como consequência de estresse Environmental Change, 6:
157-164.
em condições favoráveis de altas temperaturas oxidativo, infecções respiratórias ou alterações
10 Pope CA III, Thun MJ,
e baixa umidade. Esses poluentes associados hemodinâmicas. O aumento da temperatura Namboodiri MM et al. (1995).
às condições climáticas podem afetar a saúde também está associado ao incremento de par- Particulate air pollution as
a predictor of mortality in
de populações distantes das fontes geradoras tículas alergênicas produzidas pelas plantas, a prospective study of U.S.
Adults. American Journal of
de poluição. aumentando o número de casos de pessoas Respiratory and Critical Care
Medicine, 151: 669-674.
As alterações de temperatura, a umida- com respostas alérgicas e asmáticas.16, 17
11 Organización
de e o regime de chuvas podem aumentar os Em áreas onde a poluição do ar é mais Panamericana de la salud
(2005). Evaluación de los
efeitos das doenças respiratórias, assim como intensa, os idosos encontram-se em um cenário efectos de la contaminación
alterar as condições de exposição aos poluen- de maior vulnerabilidade que, somados aos epi- del aire en la salud América
Latina y el Caribe.
tes atmosféricos. Dada a evidência da relação sódios de altas temperaturas ambientais, causa 12 Anderson HR, Ponce de
entre alguns efeitos na saúde causados pela estresse aos organismos humanos e perda de Leon A, Bland JM, Bower JS e
Strachan DP. (1996).
variações climáticas e os patamares de poluição resiliência fisiológica. Condições sociais como Air pollution and daily
mortality in London:
atmosférica, tais como os episódios de inversão situação de moradia, alimentação e acesso aos 1987-92. BMJ, 312 (7032):
665-669.
térmica, aumento da poluição e o aumento de serviços de saúde são fatores que aumentam a
13 Rumel D, Riedel LF,
problemas respiratórios, parece inevitável que vulnerabilidade para as populações expostas aos Latorre MR, Duncan BB.
(1993). Myocardial infarct
as mudanças climáticas de longo prazo possam episódios das mudanças climáticas que, juntos and cerebral vascular
exercer efeitos à saúde humana globalmente. à exposição a poluentes atmosféricos, poderão disorders associated with
high temperature and carbon
Em áreas urbanas, alguns efeitos da ex- apresentar efeitos sinérgicos com agravamen- monoxide in a metropolitan
area of southeastern Brazil.
posição a poluentes atmosféricos são potencia- to do quadro clínico. Em áreas sem ou com Rev Saude Publica:
27(1):15-22.
lizados quando ocorrem mudanças climáticas, limitada infraestrutura urbana, principalmente
14 Cifuentes LA, Borja-Aburto
principalmente as inversões térmicas. Isso se em países em desenvolvimento, todos esses VH, Gouveia N, Thurston G,
Davis DL. (2001) Assessing
verifica no aumento de casos de asma, alergias, fatores podem recair sobre as populações mais the health benefits of urban
infecções broncopulmonares e infecções das vulneráveis e, consequentemente, mais pobres, air pollution reductions
associated with climate
vias aéreas superiores (sinusite), principalmen- pressionando a infraestrutura de saúde pública, change mitigation (2000-
2020): Santiago,
te nos grupos mais susceptíveis, que incluem causando uma superrocupação de serviços e Sao Paulo, Mexico City,
and New York City. Environ
crianças menores de 5 anos e indivíduos maiores aumentando os gastos em saúde.18 Health Perspect.;109
(Suppl 3):419-425.
de 65 anos de idade. As emissões gasosas e de material
15 Disponível em <http://
Os efeitos da poluição atmosférica na particulado para a atmosfera derivam princi- www.epa.gov/globalwarming/
saúde humana têm sido amplamente estudados palmente de veículos, indústrias e da queima impacts/health/index.html>.

em todo o mundo. Estudos epidemiológicos de biomassa. No Brasil, as fontes estacionárias 16 Zamorano A, Marquez
S, Aranguis JL, Bedregal P,
evidenciam um incremento de risco associado e grandes frotas de veículos concentram-se nas Sanchez I. (2003) Relación
entre bronquiolitis aguda
às doenças respiratórias e cardiovasculares, áreas metropolitanas localizadas principalmente con factores climáticos y
contaminación ambiental.
assim como das mortalidades geral e específica na Região Sudeste, enquanto a queima de bio- Rev Med Chil.: 131(10):1117-
1122.
associadas à exposição a poluentes presentes massa ocorre em maior extensão e intensidade
17 United States Department
na atmosfera. 10, 11, 12, 13, 14 na Amazônia legal, situada ao Norte do país. of State (2007). U.S.
Segundo a OMS, 50% das doenças Segundo o inventário brasileiro de Climate Action Report,
Washington, D.C. Werneck,
respiratórias crônicas e 60% das doenças respi- emissões de carbono, 74% das emissões ocor- G. L, Rodrigues, L. Jr, Araújo,
L. B, Santos, M. V, Moura,
ratórias agudas estão associadas à exposição a rem por meio das queimadas na Amazônia, L.S, Lima, S.S, Gomes,R.B.B,
Maguire, J.H, Costa, C.H.N.
poluentes atmosféricos. A maioria dos estudos em contraste com 23% de emissões do setor (2002). The burden of
Leishmania chagasi infection
relacionando a poluição do ar com efeitos à energético. Quanto mais próximo for o local de during an urban outbreak
of visceral leishmaniasis in
saúde foi desenvolvida em áreas metropolita- exposição aos focos de queimadas, geralmente Brazil. Acta Tropica, 83(1):
nas, incluindo as grandes capitais da Região maior é seu efeito sobre a saúde. Mas a direção 13-18.

Sudeste do Brasil. e a intensidade das correntes aéreas têm muita 18 Vide notas de rodapé n.
6 e n. 7.
Alguns estudos evidenciam que a as- influência sobre a dispersão dos poluentes at-

SETEMBRO 2009 67
artigo

mosféricos e sobre as áreas afetadas pela pluma de desafio. As mudanças climáticas ameaçam
oriunda do fogo. Se os ventos predominantes conquistas e esforços de redução das doenças
dirigirem-se para áreas densamente povoadas, transmissíveis e não transmissíveis. Ações para
um número maior de pessoas estará sujeito aos construir ambiente mais saudável poderiam
efeitos dos contaminantes. Esse é o caso do reduzir um quarto da carga global de doenças,
Sudeste asiático, onde queimadas e evitar 13 milhões de mortes prematuras.22 Do
provocam névoa de poluentes de ponto de vista epidemiológico, se as mudanças

O setor saúde extensão regional com impactos


na saúde de centenas de milhões
climáticas representam uma série de exposições
a diversos fatores de risco, a causa mais distal

se encontra de pessoas.19
Na região do arco do des-
dessas exposições é a alteração do estado am-
biental devido à acumulação de gases do efeito

frente a um matamento, que abrange os esta-


dos do Acre, Amapá, Amazonas,
estufa. Isso significa que não é possível, a curto
prazo, evitar essas exposições. As modificações

grande desafio. e parte do Maranhão, de Mato


Grosso, do Pará, de Rondônia,
plausíveis de serem promovidas para alterar esse
quadro globalmente podem consumir décadas
As mudanças Roraima e Tocantins, foram de-
tectados, em 2005, mais de 73%
até se obter um efeito estabilizador do clima.
Portanto, o setor de saúde deve tomar
climáticas dos focos de queimadas do país.
Desses, o estado de Mato Grosso
medidas e intervenções de “adaptação”, para
reduzir ao máximo os impactos via ambiente,
ameaçam foi o que concentrou o maior que, de outra maneira, serão inevitáveis. Essa
percentual de área desmatada e adaptação deve começar por: discussões inter-
as conquistas focos de queimadas, com 38% e setoriais, uma vez que as ações (inclusive de
30%, respectivamente.20 luta contra a emissão de gases e redução do
e os esforços No estado de Mato Gros- consumo) dos outros setores afetam as ações
so, as doenças do aparelho respi- do setor de saúde; investimento estratégico em
de redução ratório foram as principais causas programas de proteção da saúde para popu-
das internações de crianças me- lações ameaçadas pelas mudanças climáticas
das doenças nores de 5 anos, respondendo e ambientais, como sistemas de vigilância de
por 70% dos casos na região de doenças transmitidas por vetores, suprimento
transmissíveis Alta Floresta. Dentre as principais de água e saneamento; e a redução do impacto
categorias de internações por de desastres.
e não doenças do aparelho respirató- Por outro lado, os determinantes das
rio nessa faixa etária, estão as mudanças climáticas globais podem somente
transmissíveis pneumonias, responsáveis por ser superados a longo prazo, com medidas
73% das internações no estado, de “mitigação”. Também nesse caso o setor
seguida pela asma, respondendo de saúde pode ter papel importante. Deve-se
por 14% das internações por ressaltar que o modelo de desenvolvimento e a
doenças do aparelho respiratório.21 própria produção de energia causam mudanças
19 Ribeiro .H; Assunção, J.V.
(2002) Efeitos das queimadas Em Rio Branco, no Acre, um dos prin- climáticas, mas também problemas de saúde
na saúde humana. Estudos
Avançados. 16(44): 125-148. cipais impactos negativos ocasionados pela provocados pela poluição do ar, que resultam
20 Ibama (Instituto Brasileiro poluição do ar por meio das queimadas está em mais de 800 mil óbitos por ano; que aciden-
do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais). Disponível na taxa de mortalidade que, no período de tes de trânsito, causam 1,2 milhão de óbitos por
em www.ibama.gov.br/ 1998 a 2004, apresentou uma diferença de ano e que a redução da atividade física resulta
proarco. Acesso em 22 de
outubro de 2007. cerca de 21% no período de queimadas com em 1,9 milhão de óbitos por ano.23 Isso significa
21 Mourão, D.S.; Viana, relação ao período de não queimadas. Durante que uma mudança na infraestrutura de produ-
L.; Hacon, S.; Barcellos, C.
Impacto das emissões as queimadas, a taxa de mortalidade foi de 3,3 ção, consumo e circulação pode, por um lado,
de queimadas para a saúde
em duas áreas do Estado por mil/habitantes, enquanto no período de não representar uma redução de emissões de gases
de Mato Grosso – Amazônia
Legal. In: XV Reunião Anual queimada essa taxa foi de 2,7. efeito estufa e, por outro lado, a diminuição
de Iniciação Cientifica,
Rio de Janeiro, 2007.
de várias causas importantes de mortalidade.
O mundo vem passando por mudanças
22 Pruss-Ustun, A.; Corvalan, Para além das mudanças climáticas
C. (2006) Ambientes que não estão limitadas apenas a aspectos cli-
saludables y prevención de
enfermedades.OMS. O setor de saúde se encontra frente a um gran- máticos. Paralelos aos processos de mudanças

68 Democracia Viva Nº 43
A saúde frente às mudanças ambientais e climáticas

climáticas, vêm se acelerando a globalização marcadas pelas desigualdades, diferentes capa- (a) Christovam
(aumentando a conectividade de pessoas, cidades de adaptação, resistência e resiliência. Barcellos
mercadorias e informação), as mudanças am- Essas avaliações são baseadas no pres- Centro de Informação
Científica e Tecnológica,
bientais (alterando ecossistemas, reduzindo suposto de que grupos populacionais com
Fundação Oswaldo Cruz
a biodiversidade e acumulando no ambiente piores condições de renda, educação e moradia
substâncias tóxicas) e a precarização de sistemas sofreriam maiores impactos das mudanças am- (b) Antonio Miguel
de governo (reduzindo investimentos em saú- bientais e climáticas. No entanto, como ressalta Vieira Monteiro e
de, aumentando a dependência de mercados Guimarães,24 as populações mais pobres nas Virginia Ragoni
Divisão de
e aumentando as desigualdades sociais). Os cidades e no campo têm demonstrado uma
Processamento de
riscos associados às mudanças climáticas glo- imensa capacidade de adaptação, uma vez que Imagens, Instituto
bais não podem ser avaliados separadamente já se encontram excluídas de sistemas técnicos. Nacional de Pesquisas
desse contexto. Se a vulnerabilidade é maior entre pobres, não Espaciais

Ao contrário, deve-se ressaltar que os se pode afirmar que a parcela incluída e mais
(c) Carlos
riscos são produtos de perigos e vulnerabili- afluente da sociedade esteja isenta de riscos; Corvalán
dades, como costumam ser medidos nas en- ao contrário, sua capacidade de resposta (imu- Coordenação de
genharias. Os perigos, no caso das mudanças nológica e social) é mais baixa. Intervenções para
globais, são dados pelas condições ambientais A possível expansão de áreas de trans- Ambientes Saudáveis,
Organização Mundial de
e pela magnitude de eventos. Já as vulnerabili- missão de doenças não pode ser compreendida
Saúde
dades são conformadas pelas condições sociais, como um regresso de doenças como malária,
febre amarela, dengue, leptospirose, esquistos- (d) Helen C.
somose, entre outras. Ou melhor, a possibilida- Gurgel
Projeto Observatorium de de retorno dessas doenças se dá sobre bases Centro de Previsão
de Tempo e Estudos
Lançado em junho deste ano, o Observatório históricas completamente diferentes daquelas
Climáticos, Instituto
Nacional de Clima e Saúde é uma parceria do existentes no século XIX. Nacional de Pesquisas
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
As transformações sociais e tecnológicas Espaciais
e da Fundação Oswaldo Cruz, com apoio da
Organização Pan-americana de Saúde (Opas)/ ocorridas no mundo nas últimas décadas per-
(e) Marilia Sá
OMS. Coordenado pelos professores Christo- mitem antever que essas doenças adquiriram,
Carvalho e
vam Barcellos e Antonio Miguel Vieira Mon- ao longo dessas décadas, outras características, Sandra Hacon
teiro, nos aspectos relacionados à capacidade além dos fatores biológicos. A possibilidade de
de diagnóticos e análise, oferece: Escola Nacional de
prevenir, diagnosticar e tratar algumas pessoas Saúde Pública Sergio
• análises de situação e identificação de ten-
e excluir outras desses sistemas aprofundou as Arouca, Fundação
dências e padrões de clima e condições de Oswaldo Cruz
saúde, ainda que básicas, com apresentação diferenças regionais e sociais de vulnerabilida-
de gráficos de tendência qualitativos; des e transformou as desigualdades sociais em (f) Paulo Artaxo
• contribuição para os sistemas nacionais de um importante diferencial de riscos ambientais. Instituto de Física,
alertas e acompanhamento de situações de Cabe ao setor de saúde não só prevenir
emergência associadas a eventos climáticos esses riscos, fornecendo respostas para os im-
relativos às emergências de saúde pública;
pactos causados pelas mudanças ambientais e
• criação de suporte para ampliar a necessária
climáticas, mas atuar na redução de suas vul-
(PD&I) Pesquisa, Desenvolvimento e Inova-
ção, envolvendo as relações entre mudanças nerabilidades sociais, com base em mudanças
ambientais e climáticas e seus efeitos sobre no comportamento individual, social e político,
a saúde da população, ainda incipiente no por um mundo mais justo e mais saudável.
Brasil;
• acompanhamento, por parte do cidadão e 23 World Health
Organization. Qunatifying
sociedade civil, das condições climáticas, am- environmental health impacts.
bientais e de saúde, bem como participação Genebra:
WHO, 2007. Disponível em:
ativa nesse acompanhamento por meio de <www.who.int/quantifying_
inserção de informações sobre ocorrências ehimpacts/en. Acesso em nov.
2007.
de saúde e sobre eventos climáticos ou
tendências. 24 Guimarães, R.B. (2005)
Health and global changes
in the urban environment. In:
Fonte: Observatório Nacional de Clima e Saúde / Projeto
P.L.S. Dias,W.C. Ribeiro
Observatorium – Definições e proposta metodológica.
e L.H. Nunes, A contribution
to understand the regional
impact of globalchange
in South America.
USP, São Paulo.

SETEMBRO 2009 69
artigo
Henri Acselrad *

É difícil fazer uma sociologia da disputa energética planetária que subjaz ao debate sobre mu-
danças climáticas. O campo de forças pertinente é multiescalar, o jogo de escalas é pouco estável,
“glocal”, expressão utilizada por alguns num esforço de captar a “política de escalas”, como
diz o geógrafo Erik Swyngedouw.1 Os climatologistas, por exemplo, não conseguem enxergar
os gradientes de variação da vegetação sob a ação de desmatamento, que os biólogos, por sua
vez, observam em escala micro. O mesmo podemos dizer das alianças e estratégias de atores
sociais que, nesse campo, se configuram: como construir um quadro sistemático de análise
da circunstancial aliança entre os interesses petrolíferos dos Estados Unidos e a agroindústria
canavieira brasileira em torno do etanol, sem fazer intervir também o fator conjuntural da ação
1 Swyngedouw, E.
Globalisation or glocalisation? do governo Chávez na Venezuela? E tudo isso, ademais, apresentado em nome do equilíbrio
Networks, Territories and
Rescaling Cambridge Review climático e do bem comum: ou seja, interesses econômicos e geopolíticos em jogo legitimam-se
of International Affairs,
Volume 17, Number 1,
April 2004. tendo por base os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
2 Cf. M. Hajer, Politics of
Environmental Discourse: A análise deveria considerar, pois, o modo pelo qual os discursos a constituem como objeto de
Ecological Modernization
and the Policy Process, política para poder supô-la solúvel, legitimando, assim, as soluções propostas.2
Oxford, 1995.
Vale ressaltar, inicialmente, a discussão em curso entre os autores da sociologia da ciên-

70 Democracia Viva Nº 43
cia ambiental que sublinham, por um lado, menos industrializados: alegando-se um défi-
a historicidade de seu objeto e, por outro, cit de “pegada ecológica” com relação àquela
os problemas associados aos usos sociais da dos países mais industrializados, reivindica-se
incerteza.3 Quanto ao primeiro aspecto, na o direito de poluir.
imbricação da socionatureza em movimento, No seio dos países menos desenvolvidos,
convém reconhecer as múltiplas escalas de os atores sociais hegemônicos culpam os pobres
observação e considerar os enunciados em (“atrasados”, impedem as barragens de ener-
vinculação a seus contextos: admitir respostas gia dita “limpa” e desmatam, emitindo gases
múltiplas à mesma questão. Só recentemente, estufa; além, é claro, de “travar o desenvolvi-
por exemplo, o conceito de sistema terrestre, mento”); ambientalistas e críticos do modelo
na climatologia, incorporou os sistemas sociais, de desenvolvimento acusam os ricos (usam
assumindo comportamentos não lineares na energia para consumo de luxo) ou o bloco de
interação dinâmica entre todos os diferentes poder que faz da ideia de desenvolvimento
elementos do sistema. Há, é claro, aspectos no Sul uma forma de exportar energia barata
éticos e políticos envolvidos na discussão, mas para as economias do Norte. No seio dos paí-
também questões propriamente epistemológi- ses mais industrializados, por sua vez, críticos
cas: a evidenciação da incerteza, sustenta Jean do modelo industrialista energético-intensivo
Louis Fabiani, não exprime o reconhecimento culpam os capitais que detêm o controle da
de uma impotência do saber racional, mas sim indústria de combustíveis fósseis e apontam
uma redefinição de seus critérios de produti- que, quando ocorrem catástrofes climáticas,
vidade – reconsidera-se, assim, o que se pode os pobres pagam o preço do consumismo dos
esperar socialmente da produção científica. É ricos ou, como no caso do furacão Katrina, por
preciso reconhecer que a controvérsia científica exemplo, pagaram os custos da concentração
(demanda por conhecimento) tem temporalida- dos recursos públicos na invasão do Iraque.6
de distinta da controvérsia política (demanda Eric Klinenberg mostrou como na seca
por ação) e que o saber especializado não é de 1995, em Chicago, os negros pobres mais
3 B. Wynne, Scientific
mais capaz, por si só, de fechar o debate no idosos, socialmente isolados e desprovidos de Knowledge and the Global
interior da própria ciência, mas, sim, de abrir o recursos foram as vítimas fatais.7 Pesquisas re- Environment, in M. Redclift
–T. Benton (eds.), Social
debate sobre valores. As condições de validade centes no Brasil mostram como as populações Theory and the Global
Environment, Routledge,
e os compromissos sociais e morais da ciência de mais baixa renda são as mais ambiental- NY, 1994, p. 169-189 e
expõem-se, pois, à discussão pública.4 mente desprotegidas, morando em regiões J.L.Fabiani, “Principe de
Précaution et Protecion de la
Há, por outro lado, interesses envolvi- com as condições mais vulneráveis e sujeitas a Nature”, in O. Godard (org.),
dos na própria controvérsia científica – uma inundações e doenças.8 O mesmo aconteceu Le Principe de Précaution
dans la Conduite des Affaires
indústria do conhecimento e grupos de peritos no caso do tsunami, dada a ausência de um Humaines, INRA, Paris, 1997,
pp.297-310.
pressionam os governos com vistas à abertura plano de emergência para os países asiáticos
4 J.L.Fabiani, Op. Cit.
de mercados para seus serviços. Com base na menos desenvolvidos. Katrina, tsunami e outros
incerteza, a pesquisa científica dita “dura” ten- não são manifestações comprovadas do aque- 5 S. Boehmer-Christiansen,
“Reflections on the Politics
de a sugerir políticas “intensivas em pesquisa” e cimento global, mas servem para exemplificar a Linking Science, environment
and Innovations”,
soluções meramente tecnológicas, via de regra socionatureza da chamada “injustiça climática”, in Innovation, vol. 8, n. 3,
sob hegemonia do complexo técnico-industrial expressão atmosférica da injustiça ambiental. 1995, pp. 275-287.

das economias centrais.5 Como sabemos, as Pode-se supor, de forma plausível, que os 6 No caso do furacão Katrina,
é sabido que os planos de
inovações ligam problemas a soluções, mas os agentes hegemônicos tenham com relação evacuação não deram atenção
processos políticos é que as tornam necessárias. aos males das mudanças climáticas previstas à população “com baixa
mobilidade”; assim; fatores
pelos modelos matemáticos climatológicos, como raça
e classe foram consideradas
padrões de comportamento análogos aos que
Culpa de quem? dimensões fundamentais
têm demonstrado ante catástrofes climáticas da catástrofe.

Isso posto, quais os contextos dos enunciados e já ocorridas. 7 P. Dreier, Katrina in


Perspective: The disaster raises
diagnósticos correntes relativos às mudanças cli- Seja no âmbito das relações Norte-Sul, key questions about the role
of government in American
máticas? No que diz respeito às relações Norte- seja nas lutas socioterritoriais em curso no seio society, in Dissent, summer,
-Sul, estão em jogo as formas de integração das dos países industrializados ou dos menos indus- 2005.

economias periféricas no mercado mundial: ora trializados, vemos um processo diversificado 8 H. P. da Fonseca Alves,
Desigualdade ambiental
culpa-se “o Sul”, ora “o Norte” – ou seja, por de apropriação social do fato científico. Nas no município de São
um lado, manifesta-se um neomalthusianismo esferas políticas, ainda parecem contar pouco Paulo: análise da exposição
diferenciada de grupos sociais
animado por conservadores – e mesmo por cer- as evidências do IPCC, assumidas basicamente a situações de risco ambiental
através do uso
to ambientalismo dos países industrializados (a por certos países europeus como legítimas e de metodologias de
culpa seria “do bebê indiano”), por outro lado, merecedoras de orientar algumas mudanças geoprocessamento,
XII Encontro Nacional
um desenvolvimentismo próprio aos países nas políticas (ou, então, de justificar práticas, da ANPUR, Belém, 2007.

SETEMBRO 2009 71
artigo

por outras lógicas questionadas, como a da uma apropriação da denúncia ambientalista do


energia nuclear no caso francês). capitalismo e do modelo vigente de negócios
No ano de 2007, governantes como para fins de dinamizar o capitalismo e os ne-
George W. Bush e Lula passaram a apresentar-se gócios – após o furacão Katrina, por exemplo,
como ambientalmente preocupados quando o as ações das empresas que ganharam contra-
argumento ecológico pôde justificar lucros para tos para a limpeza e reestruturação das áreas
os capitais, divisas para o equilíbrio monetário, afetadas – as mesmas que atuam no Iraque
promessa de empregos para os eleitores ou – elevaram-se em 10%.
força suplementar na trama geopolítica. Há Steve Erie, da Universidade da Cali-
indícios de que o argumento ecológico só ten- fórnia, assinala como a expansão imobiliária
deria a ser abraçado por forças hegemônicas no sudoeste dos Estados Unidos e na Baixa
quando aparentemente pudesse servir como Califórnia está comercializando milhares de
reforço aos modelos de dominação vigentes – quilômetros quadrados na frágil ecologia dos
fundados no agronegócio canavieiro, no nuclear desertos, apostando no aumento tendencial
e na hidroeletricidade, por exemplo. dos custos da água e em sua dessalinização
No Brasil, pouco se avançou no campo para abastecer a suburbanização descontrolada
das energias alternativas, da eficiência energéti- que promovem.12 Ou seja, o ônus do ajuste
ca e da repotenciação de usinas instaladas, por do novo ciclo climático e hidrológico, susten-
exemplo. Por isso, é sintomática a enunciação ta Mike Davis, cairia, nessa região, sobre os
recente, por uma autoridade do setor elétrico, ombros dos grupos subalternos, notadamente
da vigência de um chamado “paradoxo am- dos trabalhadores rurais imigrantes cujo fluxo
biental”, segundo o qual o “burocratismo” dos para os Estados Unidos tenderia a aumentar,
órgãos de licenciamento ambiental “tem feito justificando acusações de “roubarem a água
com que seja mais simples produzir energia dos americanos”.13 Esse tipo de processo em
elétrica queimando carvão e petróleo, que con- que os custos da degradação ambiental são
tribuem para o efeito estufa, do que utilizando concentrados sistematicamente sobre os mais
água”.9 Percebe-se aqui o recurso a uma sutil despossuídos, ainda mais quando parte dos
chantagem do efeito estufa, via ameaça de interesses dominantes consegue auferir lucros
multiplicação de usinas termoelétricas, para com degradação, é compatível com o entendi-
favorecer tanto a desmontagem do sistema de mento dos movimentos sociais ditos de “justiça
licenciamento ambiental brasileiro como para ambiental”: segundo eles, não haverá nenhu-
responsabilizar quilombolas e índios pelo aque- ma iniciativa dos poderosos para enfrentar os
cimento global, por contestarem a construção problemas ambientais, enquanto for possível
de hidroelétricas no Rio Madeira. concentrar os males deles decorrentes sobre
os mais pobres. Seu corolário é que todos os
esforços deveriam ser concentrados na prote-
Não no quintal dos ricos
ção ambiental dos mais pobres, de modo que,
Há, pois, por um lado, por parte das forças interrompendo-se a transferência sistemática
hegemônicas, uma “irresponsabilidade orga- dos males, as elites venham a considerar se-
nizada”, diria Ulrich Beck10, mas “classista”, riamente a necessidade de mudar modelos de
acrescentaria Mike Davis: poucos recursos são produção e consumo. Nessa ótica, por exemplo,
destinados para proteger ou remediar o risco quilombolas e indígenas do Rio Madeira, ao
sofrido por grupos sociais “menos móveis” – contrário do que propugnam representantes de
pobres, negros e minorias étnicas – acusados empreiteiras e desenvolvimentistas pouco refle-
“de saber que moram em áreas arriscadas e de xivos, estariam na linha de frente do combate
querer que os contribuintes paguem por sua es- contra o aquecimento global, favorecendo, por
9 “Investimento em
poluição”, O Globo
colha residencial” (tal como expresso no jorna- sua resistência, energias alternativas e eficiência
21/5/2007, p.16 lismo televisivo dos Estados Unidos em matérias energética.
10 Ulrich Beck, From posteriores ao furacão Katrina).11 Parece vigorar A pesquisa relacionada às mudanças cli-
Industrial Society to Risk
Society: questions of survival, uma espécie de percepção confiante de que os máticas desenvolvida na Comunidade Europeia
social structure and ecological males atingirão apenas os mais despossuídos. só começou a tratar dos aspectos tecnológicos,
enlightenment,
in Theory, Culture & Society, Uma espécie de NIMBY – “não no meu quintal” sociais e econômicos relevantes para apoiar a
vol.9, 1992, pp. 97-123.
exclusivo das elites, ou seja, mecanismos pelos formulação de políticas, inclusive com a defini-
11 M. Davis, Clima Pesado, ção do foco na eficiência energética, como re-
Caderno MAIS, Folha de SP,
quais os tomadores de decisão detêm os meios
6/5/2007, p.4-5. de se distanciar das consequências ecológicas sultado da politização do efeito estufa em 1986.
12 M. Davis, op. Cit. das próprias ações. Mais que isso, em tempos Para a formulação de políticas de combate às
13 M. Davis, op. Cit. de liberação das forças de mercado, observa-se mudanças climáticas, esse efeito ambiental teve

72 Democracia Viva Nº 43
Apropriações sociais das mudanças climáticas

de ser traduzido nos termos de um problema 5.000 dólares. Poderíamos disto inferir que os * Henri Acselrad
“tratável” e politicamente “administrável”. 14 baixos índices de desenvolvimento inibem a Professor do Instituto
Dessa forma, configurou-se o procedimento luta contra a poluição?.18 Se considerarmos, de Pesquisa
chamado por Maarten Hajer de “fechamento do hipoteticamente, que tal correlação possa ser e Planejamento
problema”, pelo qual os discursos constituem a estendida aos problemas menos imediatamente Urbano e Regional da
mudança ambiental como objeto de políticas, visíveis, como o das mudanças ambientais glo- Universidade Federal
de modo a poder apresentá-la como passível bais, seria esperável que a mobilização socio- do Rio de Janeiro (Ippur/
de solução.15 A transformação de evidências cli- política em torno de tal tema venha a crescer UFRJ) e pesquisador do
Conselho Nacional
matológicas nos termos de uma trama política paralelamente ao crescimento da renda per
de Desenvolvimento
passou assim pela seleção de ações relativas à capita. Tal mobilização pode associar-se, como
Científico e Tecnológico
busca de eficiência energética, o que permitiu vimos, ao eventual envolvimento de elites urba-
(CNPq)
que os esperados benefícios ambientais fossem nas que venham a distinguir nos impactos das
associados à obtenção simultânea de benefícios mudanças globais um problema que lhes diga
econômicos. respeito, que pareça afetar substancialmente
Buttel e Taylor sustentam que, após seus projetos, que configure motivo suficiente
um período inicial de “lua de mel” durante para engajar a sua capacidade de se fazer ouvir
o fim da década de 1980, a modelagem do na esfera pública. Nada impede, porém, que
clima global, as estimativas de perda de bio- representações de setores populares também
diversidade e outros estudos das implicações distingam e coloquem em evidência as articu-
das mudanças ambientais tornaram-se objeto lações globais de lutas locais – notadamente
de disputas científicas e, consequentemente, por moradia segura, saneamento urbano
políticas. Segundo eles, prevaleceu por muito e transporte coletivo apropriado – por eles
tempo uma “construção moral dos problemas desenvolvidas no meio urbano. A experiência
ambientais globais que enfatiza o interesse pregressa de Chico Mendes e das articulações
comum nos esforços de seu enfrentamento, ambientais globais das lutas dos seringueiros
desviando a atenção das dificuldades políticas na Amazônia sugere não ser impossível que o
resultantes da diversidade de interesses sociais mesmo venha a acontecer com movimentos
e de nações envolvidos neste enfrentamento”.16 sociais urbanos.
Já em 1988, o relatório Swedish perspective on Em sua parábola da “Ética do Bote Salva
human dimensions of global change chamava a Vidas”, o ecólogo Garret Hardin simulava uma
atenção para os processos de construção social situação futura, segundo ele previsível, em que
do conhecimento científico sobre mudança glo- dado o crescimento incontrolável de população, 14 cf. Liberatore, A.,
bal, destacando o papel da história e da cultura a nave-terra deveria escolher a quem reservar Facing Global Warming:
the interaction between
na definição dos temas científicos e políticos. É os poucos lugares disponíveis nos botes salva- science and policy-making
intje European Community, in
nesse contexto de construção social do proble- -vidas.19 Hardin, numa perspectiva claramente M. Redclift – T, Benton (eds.),
ma que, em 1992, o relatório da U.S. National social-darwinista, sustenta que seria lógico Social Theory and
the Global Environment,
Research Council sobre mudanças ambientais reservá-los àqueles, na humanidade, que mais Routledge, London, 1994,
p. 192.
globais destacava “a importância da geografia, tenham acumulado tecnologia e civilização – ou
das distâncias entre os assentamentos humanos seja, a seu ver, as populações dos países mais 15 Cf. M. Hajer, Politics
of Environmental Discourse:
– e da demografia – por exemplo, da dispersão industrializados. As populações “menos produ- Ecological Modernization
and the Policy Process,
das populações em subúrbios – na determina- tivas” deveriam, supõe-se, ser deixadas ao largo. Oxford, 1995.
ção do padrão de consumo energético”.17 A relutância das elites em assumir medidas 16 cf. F. Buttel – P. Taylor,
Em analogia com o que se verificou na compatíveis com o princípio de precaução em How We Know We Have
Global Environmental
experiência europeia, caberia perguntar: de que matéria climática parece sugerir que a Ética do Problems? Science and
the Globalization of
dependeria a construção desta “administrabi- Bote Salva-Vidas encontra-se hoje em operação. Environmental Discourse,
lidade” das mudanças ambientais em um país Seja nos bairros negros de Nova Orleans, nas in Geoforum v. 23, n. 3,
1992, p. 406.
como o Brasil? Parece relativamente pequena zonas em vias de desertificação da África, nas
17 cf. U.S. National Research
a presença de justificativas relacionadas a mu- moradias de risco no Brasil ou, ainda que sob Council, Committee on
danças climáticas no debate brasileiro sobre pretensas razões ecológicas, nos processos de the Human Dimensions
of Global Change, Global
políticas urbanas. Essas políticas não parecem trabalho extenuantes observados nos canaviais Environmental Change:
Understanding the Human
integrar de forma substantiva os temas políticos brasileiros. Dimension, Washington D.C.,
nos quais têm sido traduzidas as questões das National Academy, 1992.

mudanças climáticas globais no país. 18 cf. J. Bindé, Ville et


Environnement au XXI Siècle,
Segundo pesquisa citada pelo The Eco- vol. 1, Les Enjeux, GERMES,
nomist, a qualidade do ar começa a tornar-se Paris, 1998, p. 105.

preocupação de política pública a partir do 19 G. Hardin, “Living on


a lifeboat”, in Bioscience,
momento em que o PIB por habitante alcança 1974, n.2, vol. 24, out.

SETEMBRO 2009 73
c r ô n i c a

Apague a
luz,
A convocação chegou por telefone, internet A casa sumiu num breu que evoquei a me-
e correio: para salvar o planeta, desligar mória para descer a escada sem corrimão
todas as lâmpadas da casa, das 20:30h às – usar vela ou lanterna fraudaria o pacto
21:30h de sábado, 28 de março. Não me que era ficar no escuro!
faltava motivação, após visita ao navio E me deparei com a miríade de
Arctic Sunrise, do Greenpeace, com a ex- luzinhas vermelhas, que noite e dia me
posição “Salvem o Planeta”, e ver a mostra espionam dos eletrônicos. Sem rumo pela
“Intempéries”, na Oca, em São Paulo. Mas casa, admirei os efeitos da ausência de cor
tinha dúvida da eficácia do ato doméstico, nos meus surrados domínios, e vislumbrei
solitário e às escuras para salvar um planeta as nuances do escuro. Animou-me ver a
inteiro. Na dúvida, participei. Desisti do vizinhança quase toda apagada. Mas havia
jornal da TV: a luz azulada trairia o ato. janelas no tom azul de TV. O planeta acaba
Para ser pontual, atendi à ligação da amiga, e veem TV! No escritório, salta aos olhos a
e adiei a conversa, animando-a a participar: inutilidade dos livros no escuro. Desligo o
ela aderiu atônita. E apaguei todas as luzes. computador que dormiu me esperando: sua

74 Democracia Viva Nº 43
luz trairia o ato. No escuro a sensação era o planeta!” para alguém que ignorava o ato. Alcione Araújo
de um mundo mais silencioso, e de ruídos “Apague a luz, salve o planeta!” pedem os alcionaraujo@uol.com.

mais audíveis e nítidos. inocentes herdeiros, tentando melhorar o


Sem ter o que fazer no breu, deu de- futuro, presente deles. Atendidos, gritaram
sejo de tomar vinho. Trairia o ato? Antes de “Obrigado, você salvou o planeta!”. E meu
chegar à garrafa, onde ficam os fósforos? E coração se inundou de esperança.
me dei conta de que nada sei da minha casa, Pacífico, solitário e simbólico, o ato
dirigida por secretária-doméstica! Sim, luz se repetiu em 4 mil cidades, de 88 países.
de geladeira trai o pacto! Tateio armários, Na escuridão anônima, 1 bilhão de pesso-
prateleiras, gavetas à volta do fogão: eis as defenderam o futuro da vida. Infunde
a caixa de fósforos! Tanto palito riscado, nobreza civilizatória juntar tanta gente na
como ler o rótulo!? – a Terra se acaba e eu vigília de amor e pavor pelo planeta agoni-
escolhendo vinho à luz da chama! Tateio zante. A mudança climática é um dramático
para achar a taça e o saca-rolha. Escuro salto no abismo, comparada aos desastres
aguça o paladar, e vinho no silêncio pede ecológicos. Cientistas avisam que é muito
música. Trairia o ato? Não, decidi! Mahler, pior do que pensavam e mais próxima do
nº 5, baixinho. que imaginavam. Mas os governantes falam
Vinho, silêncio, escuro: a imaginação em reduzir 80% das emissões em 2050 – se
decola. Mas as urgências impõem o medo. agissem hoje estariam atrasados! Tomara
Descargas de gases, efeito estufa, rombos que o valor simbólico de 1 bilhão de pesso-
na camada de ozônio, aquecimento global, as unidas pelo escuro comova os poderosos
geleiras derretendo, elevação do nível do para a urgência de reduzir as emissões e
mar, tsunamis, enchentes, desertificação... deter as mudanças climáticas, como me
Nossa maneira de viver tornou o planeta in- comoveu o coro infantil do “Apague a luz,
sustentável. O alívio só veio quando ouvi o salve o planeta!”.
coro de vozes infantis “Apague a luz, salve

SETEMBRO 2009 75
ENTREVISTA- E n t r e v i s ta -t e s t e m u n h o

Roberto

1 Confira também o vídeo


disponível no Portal do Ibase
<www.ibase.br>.

76 Democracia Viva Nº 43
Democracia Viva – O que leva uma Engenharia Elétrica, na época em que morava
pessoa a adotar um estilo de vida em Curitiba. Depois, voltei para o Rio para
ambientalmente correto? fazer mestrado na Coppe, na época, ligado à
Roberto Schaeffer – De maneira geral, Engenharia Nuclear, sou mestre em Engenharia
vejo uma grande contradição entre o que as Nuclear e Planejamento Energético. Depois, fui
pessoas falam e lecionam e o que de fato fa- para os Estados Unidos, onde fiz doutorado e
zem. Talvez, isso tenha a ver com a questão da pós-doutorado na área de energia. Voltei para
educação e da história das famílias. A minha o Brasil em 1993, primeiro como bolsista do
história familiar mostra isso. CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento
Meus pais nasceram na Alemanha. Meu Científico e Tecnológico] e, depois, a partir de
pai já faleceu e minha mãe tem 83 anos. Eles 1995, já como professor da Coppe.
vieram fugidos na época da guerra, meu pai DV – E o que o levou a essas
chegou a ficar preso no que seria um início de escolhas?
campo de concentração. Ele estava na então Roberto Schaeffer – Nem eu nem meu
Tchecoslováquia quando Hitler invadiu o país, irmão, Renato (sete anos mais velho que eu, já
era judeu, e foi preso. Minha mãe, nessa época, falecido) gostávamos de engenharia. Mas, por
era uma menina de 7, 8 anos de idade, e o acaso, a gente tinha certa habilidade matemáti-
pai dela era um economista em Berlim, judeu ca. E, naquele tempo, ter essa habilidade quase
também, envolvido com política, e frequen- que naturalmente levava a fazer engenharia.
temente era preso. Minha mãe já era órfã de Havia também a preocupação de, com um pai
mãe e lembra de o pai ficar preso alguns dias idoso, ter de sustentar a família. Engenharia era
durante a semana e de ficar sozinha, em casa, o caminho mais fácil para arranjar emprego.
cuidando do irmão menor, que tinha 2, 3 anos. Quando vim para o mestrado na Coppe,
Populações que viveram situações desse era um programa de planejamento energético
tipo, toda a geração que viveu guerras ou situ- interdisciplinar, no qual o perfil típico era de
ações de conflito, passaram, talvez, a criar seus engenheiros, mas também havia economistas,
filhos de maneira diferente. Lembro que nunca sociólogos e até uma médica. Era uma maneira
tivemos excessos, nunca houve, por exemplo, elegante de largar a engenharia sem dizer que
em um almoço, dois bifes para alguém, era tudo estava largando, e tinha uma abertura mais para
contado. O banho tinha tempo determinado o social. Tanto que a tese de mestrado que de-
porque não se podia gastar muita água. Quem fendi, em 1986, foi sobre impactos ambientais
vai para a Europa hoje, ainda percebe esse tipo de grandes hidroelétricas no Brasil, a primeira
de hábito entre as pessoas mais velhas. da Coppe sobre a questão ambiental. Há 20
DV – Onde você nasceu? anos, a preocupação com a questão ambiental
Roberto Schaeffer – Nasci aqui no Rio, era vista como algo esquisito.
moramos um tempo em Curitiba, depois volta- DV – E quando essa preocupação
mos. Pertencíamos à classe média baixa. Minha começou a ser mais comum?
mãe trabalhava de costureira, que era um dos Roberto Schaeffer – Foi um pouco des-
empregos que os estrangeiros conseguiam che- pertada aqui na própria Coppe, criada no fim
gando ao Brasil, sem saber falar o português. dos anos 70. Aos poucos, foi influenciada por
Sou da primeira geração da minha família com movimentos de contracultura internacionais nos
curso superior, e só estudei em escola pública. quais a questão ambiental ganhava força. Nessa
Notava que, nesse ambiente em que eu época, também foi criado o Clube de Roma,
vivia, minha educação era meio diferente. Há um grupo que reuniu alguns professores que
certa cultura do desperdício entre os brasilei- escreveram o livro Os limites do crescimento.
ros. Lembro que minha mãe enviava sapatos Era uma denúncia de que, dada a dependência
e roupas para tingir, afim de aproveitá-los por do mundo às reservas de petróleo conhecidas,
mais tempo. Lembro que na minha infância o mundo se encaminhava para um colapso
tínhamos um padrão de vida razoável, meu ambiental. Na época, começava a se desenvol-
pai tinha carro. Essas preocupações não eram ver uma visão mais ecologista de mundo em
explicitamente ambientais, mas no sentido de que questões como desigualdade de renda e
que não valia a pena desperdiçar nada. Minha ambientais também tinham de fazer parte do
primeira bicicleta não foi nova. Respeitadas as planejamento energético. Esse trabalho do
devidas proporções, isso se reproduz em minha Clube de Roma foi publicado em 1972, pouco
maneira de ser. Tudo é regrado, e isso vale para antes do primeiro choque do petróleo, ocorrido
a maneira de lidar com objetos e pessoas. em 73, quando, de fato, a questão energética
DV – Qual é a sua formação? assumiu uma dimensão impensada. O Clube
Roberto Schaeffer – Fiz graduação em de Roma ganhou muita força por causa disso.

SETEMBRO 2009 77
E n t r e v i s ta -t e s t e m u n h o

Por conta dessa influência, quando fui para Para a iluminação, quanto mais abrir a janela,
os Estados Unidos, também comecei a me en- melhor, não há necessidade de acender luzes
volver com isso. No meu grupo, fui a primeira durante o dia. Nós também só usamos lâmpa-
pessoa a começar a me preocupar com a ques- das fluorescentes compactas, isso faz com que
tão das mudanças climáticas, isso em 1987, o nossa conta de luz seja mais baixa.
IPCC nem existia. Naquele momento, minha DV – A opção cotidiana pelo meio
preocupação energética já era muito mais uma ambiente é pesada?
questão energético-ambiental que energética Roberto Schaeffer – Ter uma vida alterna-
pura e simplesmente. tiva não significa fazer sacrifícios, significa ter
DV – Como é seu estilo de vida? de se organizar para isso. Não posso cobrar do
Roberto Schaeffer – Tenho um filho de meu filho que não assista à TV e deixar ele ali,
10 anos, o Bernardo. Temos uma televisão em sem fazer nada. Desde criança, fui acostumado
casa há três anos, mas só é usada a cada duas a levar para cama um livro para ler antes de
semanas porque ele gosta de assistir às corridas dormir. Meu filho faz o mesmo. Mas a maioria
de Fórmula 1. É engraçado porque já participei das pessoas não lê, fica difícil fazer isso de
de vários programas de TV e, em geral, os entre- repente. A gente tem de criar esse ambiente.
vistadores perguntam se conheço o programa Por exemplo, nosso programa típico de fim de
deles e a resposta é sempre negativa. semana é ir à praia, gosto de ‘pegar jacaré’, isso
Como não temos o hábito de ver TV, nas não é um sacrifício. Minha vida é conformada
horas livres, meu filho escreve um livro de fic- de tal maneira que tudo o que considero cor-
ção científica. Ele tem um prazer enorme em reto fazer, por acaso, posso fazer, então, está
fazer isso. Ele criou também uma tudo perfeito.
linha de carros e está preparando as DV – Os produtos orgânicos têm
Ter uma vida reportagens que sairiam na revista um custo alto, não é?
Quatro Rodas comentando a nova Roberto Schaeffer – Isso é porque são
alternativa não linha. Hoje, quando eu chegar em praticamente artesanais. Por exemplo, é muito
casa, vamos jogar futebol de botão. mais fácil ter uma grande produção de arroz
significa fazer Meu filho nunca comeu carne.
Aliás, minha esposa e eu já não co-
branco, jogar tudo em um mesmo lugar para
limpar e tirar a casca do que ter de separar uma

sacrifícios, memos carne faz mais de 20 anos.


A gente só come comida orgânica
parte para colocar em uma máquina especial
que tira só a primeira casca, não tira tudo. É
e praticamente não anda de carro. mais caro porque é realmente alternativo, vai
significa ter Tudo o que fazemos, minha esposa contra o modelo de grande escala. Além disso,
meu filho e eu, é a pé ou de bicicleta. em materiais orgânicos, o índice de perda é
de se organizar Claro, moro no Leblon, talvez se eu muito alto. Isso está melhorando, mas não dá
morasse em um bairro mais perifé- para comparar. Por que uma maçã de super-
para isso rico... mas não posso me queixar.
Tenho um padrão de vida que me
mercado não estraga? Por causa da quantidade
de agrotóxico, nem o bichinho come.
permite tomar atitudes que outras Por outro lado, a comida orgânica ainda é
pessoas talvez não teriam como. muito mais barata que outros produtos adquiri-
Alguém pode dizer, por exemplo, que comida dos só para se manter a fachada. Por exemplo,
orgânica é muito cara. Pode ser, mas é uma o carro é um símbolo de status, as pessoas se
questão de opção. quebram para adquirir um carro novo ou do
Meu carro tem 23 anos, é todo enferrujado, ano, não tê-lo, para esta sociedade, pode ser
um Voyage à álcool. Dependendo de como você sinal de fracasso. Mas meu carro custa, por
cria alguém, o que poderia ser uma vergonha, ano, de oficina, cerca de R$ 300, nem IPVA eu
pode se transformar em algo positivo. Faço pago mais. Nesse sentido, posso comprar toda
questão de ter esse carro, serve para mostrar a comida orgânica que quiser, mesmo que seja
que aquilo não é importante. Há pouco tempo, mais cara.
a escola onde meu filho estuda pediu que as DV – Por que essa necessidade
crianças levassem as contas de luz das suas desenfreada de consumir?
casas. Nem a professora, que mora sozinha, Roberto Schaeffer – A maioria das pessoas
apresentou uma conta de luz tão baixa quanto que conheço tem os celulares mais modernos,
a nossa. Não temos aparelho de ar condiciona- TVs de plasma. Por quê? Porque talvez elas
do, talvez porque eu more no Leblon e possa ainda não tenham parado para pensar que a
deixar as janelas abertas. Mas, de todo jeito, gente não precisa ser assim. Mas, diante do
por princípio, não usaria. Se é verão, não me bombardeio da mídia, fica difícil mesmo, elas
parece absurdo sentir um pouco mais de calor. foram convencidas disso. Sinto que as pessoas

78 Democracia Viva Nº 43
Roberto Schaeffer

ainda não se libertaram, ainda não tiveram a na qual a população começa a se estabilizar, se
coragem, ou clareza, para entender que não os bens fossem muito duradouros, as fábricas
precisa ser assim. fechariam. Para as fábricas venderem cada vez
A sociedade é de consumo, pensa em consu- mais, tudo precisa ficar velho rapidamente e
mo, mas não dá para continuar assim. Isso nos a população sente a necessidade de adquirir
remete ao livro-denúncia do Clube de Roma. um novo bem sem nem mesmo precisar dele.
Há certos valores hoje que não são condizentes Por isso, as pessoas estranham o fato de eu
com preocupações ambientais. ter um Voyage de 23 anos. E que só é lavado
DV – A nova geração se preocupa quando chove. A água no Brasil é de excelente
mais com o meio ambiente? qualidade, com flúor, cloro, para que vou gastá-
Roberto Schaeffer – Há muita contra- -la no carro? Para ele não ter cáries?
dição. De fato, se compararmos, o que meu DV – A que se deve o nosso caótico
filho aprende hoje no colégio é muito mais modelo de transporte público?
interessante, muito mais esclarecido, do que se Roberto Schaeffer – Isso começa com
aprendia em minha época. Por outro lado, por Juscelino Kubitschek, quando o Brasil optou
mais que se tenha mais acesso a informações pelo sistema rodoviário que temos por várias
sobre viver em harmonia ou preservar o meio razões: era uma época de petróleo abundante
ambiente, o padrão de vida atual é tão mais e energia não era problema; esse também era
elevado que torna tudo pior. Se a minha conta o modelo americano, em um momento em que
de luz não chega a 200 quilowatts por mês, a economia americana era a grande economia
há colegas da sala do Bernardo que trouxeram mundial; e na época a facilidade de se conseguir
contas com gastos de 1.500 quilowatts! dinheiro externo e de criar uma indústria no
De maneira geral, as crianças são mais país dependia muito da escolha desse modelo.
conscientes, mas, seguramente, o desperdício Assim, a Volkswagen, a Ford, a General Motors
é muito grande. Só não é maior porque elas vieram para o Brasil. Quando se cria um mo-
são conscientes, mas isso não é suficiente para delo desse tipo, fica-se preso a ele e começa
contrabalançarmos a questão do consumo. Por a ocorrer uma série de círculos viciosos. São
exemplo, na classe do Bernardo, já há crianças Paulo se torna uma cidade importante, o setor
com celulares. Eu não tenho e nem faço ques- automobilístico se torna muito importante no
tão de ter. Brasil e, quanto mais importante, mais difícil é
DV – Como você imagina um se desvencilhar dele.
modelo energético para o Brasil? Nosso atual presidente é um metalúrgico
Roberto Schaeffer – De fato, não há como e a primeira atitude dele quando a economia
os países crescerem e se desenvolverem sem entra em colapso é baixar IPI de carro e isso é
energia. A questão toda é se é preciso tanta muito difícil. Por outro lado, as pessoas também
energia. Defendo que daria para fazer tudo com querem isso, o primeiro dinheiro a mais que al-
muito menos energia do que se faz. Por exem- guém ganha é para comprar carro novo. Então,
plo, sou muito crítico da arquitetura brasileira a solução é o governo investir em transporte
que tenta reproduzir modelos arquitetônicos público, mas as pessoas têm de querer usar
que foram pensados para países de clima frio. esse transporte. Porque mesmo as pessoas que
Claro, se você constrói um prédio preto, todo moram em lugares acessíveis não querem usar,
de vidro, por definição, precisará de ar-condi- é uma questão de status.
cionado o dia todo; se prédios são feitos sem Por isso, em países europeus se criam
a boa utilização das áreas de janela, ventilação dificuldades para o uso do carro particular e,
e iluminação natural, precisarão de muito mais contraditoriamente, o Brasil cria facilidades para
lâmpadas e aparelhos de ar-condicionado. Isso que se tenha mais carros. No Rio, por exemplo,
vale para tudo. são construídos estacionamentos subterrâneos
É normal precisar de mais energia para se para facilitar a ida de carro para o centro. É
desenvolver, crescer. Mas poderíamos precisar inimaginável alguém pensar em ir para o cen-
de muito menos se repensássemos os padrões tro de Londres, Nova Iorque ou Paris de carro.
de desenvolvimento. Viver bem não significa A gente tem uma indústria que precisa desse
viver da maneira como se vive hoje, não significa modelo, temos governantes que facilitam esse
cada pessoa ter seu carro, mas talvez signifique processo, bem como pessoas que querem isso. É
ter transporte público de boa qualidade. Tería- preciso chegarmos a uma situação caótica como
mos de pensar em equipamentos que, quando a de São Paulo para pararmos para repensar
dessem defeito, em vez de serem substituídos, a situação do trânsito, mas nesse caso é uma
pudessem ser consertados. O problema é que, situação que não tem volta.
em uma sociedade de consumo como a nossa, DV – Acredita que é possível

SETEMBRO 2009 79
E n t r e v i s ta -t e s t e m u n h o

reverter essa situação? luto, como China, Índia, Brasil. Nos Estados
Roberto Schaeffer – Em qualquer cidade Unidos, há uma população de 290 milhões de
de grande porte, a única solução inteligente em habitantes e cerca de 190 milhões de carros, o
termos de transporte público é o metrô. O do que significa um pouco mais de um carro por
Rio é um dos mais caros do mundo, porque é habitante habilitado a dirigir. Na China, há uma
uma cidade de rochas, cada 50 ou 100 metros população de 1,3 bilhão de habitantes e não
significam milhões de dólares. Isso explica, em mais que 40 milhões de carros. Hoje o mundo
parte, porque São Paulo tem um metrô tão mais todo tem cerca de 800 milhões de carros. Se
avantajado. Isso não ocorreria se optássemos a China tivesse o padrão de motorização ame-
pelo metrô de superfície. Mas politicamente, ricano, sozinha, duplicaria a frota mundial.
não é trivial fazer isso porque envolve outros Como falar para um chinês que ele não poderá
interesses. Por exemplo, aqui no Rio temos a ter seu carro porque chegou atrasado? Enfim,
contradição de linhas de trens e de ônibus alguns países terão, de fato, de consumir mais
correndo paralelas, é um absurdo completo. Ao energia, já outros poderiam consumir muito
longo do tempo, foram sendo criadas facilida- menos, mas aí é um problema. Entramos no-
des trocadas por votos para que o sistema de vamente na questão dos padrões de consumo.
transporte público de ônibus O americano hoje tem dois ou três carros e ele
beneficiasse certos grupos. não precisa disso. Mas às vezes, é mais difícil
Um mundo Isso é um problema. dizer para uma pessoa nessas condições utilizar
Agora, a solução defini- o transporte público do que para alguém que a
dependente tiva seria, simultaneamente,
criar dificuldades para o uso
vida toda andou de metrô ou ônibus.
Claro que todos temos de reduzir nossa de-

apenas de fontes do carro e facilidades para


o uso do transporte público.
pendência aos combustíveis fósseis. Hoje ainda,
o combustível mais importante do mundo é o
Não adianta impedir a ida de petróleo, seguido pelo carvão e pelo gás natu-
renováveis carro para o centro e deixar ral. No Brasil, essa relação é diferente, mas o
tudo por isso mesmo. Ônibus petróleo também é o mais importante. Dado o
também não é investimento privado; Me- padrão de consumo de energia no mundo não
trô é investimento público, há alternativa em curto prazo que substitua o
poderá ser um investimento do Estado, se
não há dinheiro para investir,
carvão ou o petróleo. Não dá para, de uma hora
para outra, dizer que todos os carros serão à

mundo como fica complicado. Entendo que


priorizar o metrô, às vezes
álcool ou elétricos ou dizer que toda a energia
do mundo será baseada no gás natural ou em
é politicamente complicado. hidroelétricas.
o nosso, vai Mas isso não deveria ser justi- Já se sabe que, de agora a 2030, não só o
ficativa para não fazer o que consumo de combustíveis fósseis será maior,
ter de ser um é necessário. É preciso buscar como o seu valor relativo. A gente vai se tornar
mecanismos mais inteligentes ainda mais dependente dessas fontes. Simul-
mundo diferente para resolver isso.
A questão das mudanças
taneamente, é preciso começar a introduzir as
alternativas, eólica, solar, mas que, sozinhas,
climáticas e ambientais vem não conseguem segurar o padrão de vida atual.
nos acompanhando há algum Vamos ter de usar o petróleo principalmente, o
tempo, no entanto seu verda- carvão e o gás natural para preparar a transição
deiro impacto não será visto hoje ou amanhã, para um mundo descarbonizado.
mas sim daqui a 20, 30 e até 50 anos. Nesse Um mundo dependente apenas de fontes
sentido, é complicado tomar uma decisão po- renováveis também não poderá ser um mundo
lítica hoje para ver os benefícios da solução de como o nosso, vai ter de ser um mundo diferen-
um problema muito mais à frente. O sistema te. As pessoas estão preparadas para isso? Elas
político não está preparado para isso. Assim, terão de ser convencidas, educadas. As pessoas
a questão das mudanças climáticas envolve, que terão de abrir mão de alguma coisa são
antes de tudo, decisões éticas, já que não vão aquelas que vivem em regiões do planeta tão
gerar tanto impacto para nós agora, mas para ricas que, talvez, não precisem abrir mão de
gerações futuras. nada. Por exemplo, vamos considerar que um
DV – Em tempos de aquecimento, dos impactos das mudanças climáticas seja a
como fica nossa dependência aos elevação do nível dos mares. A Holanda já está
combustíveis fósseis? elevando seus diques. Ou seja, alguns países
Roberto Schaeffer – Alguns países terão vão preferir lidar com o problema ambiental se
de aumentar seu combustível em valor abso- fortificando ou optando por decisões imedia-

80 Democracia Viva Nº 43
Roberto Schaeffer

tistas, empurrando o problema com a barriga. positivas; outras mais negativas. Até 2008, Realização:
Vários problemas ambientais são tratados dessa o cenário de emissão real do mundo era pior Entrevista
forma, isso atende bastante bem aos interesses que o cenário mais negativo traçado pelo IPCC Flávia Mattar
Jamile Chequer
da sociedade atualmente. As fontes renováveis em 2000.
têm de crescer em importância, mas, talvez, só Isso nos leva a concluir que se o cenário de Decupagem e edição
Ana Bittencourt
com eventos climáticos extremos as pessoas emissão é pior, provavelmente, a concentração
começarão a levar isso a sério. atmosférica será maior, assim como o aqueci- Edição do vídeo
Diego Santos
DV – A curto ou médio prazo, você mento e as mudanças climáticas. Mas há ainda
não acredita em uma mudança uma incerteza muito grande sobre as verdadei-
de postura das populações do ras consequências das mudanças climáticas.
planeta? Por exemplo, quanto e como o padrão de
Roberto Schaeffer – Não. Hoje, já se tem chuvas no Brasil vai se alterar? Dos 15 a 20
um discurso muito mais frequente nessa linha modelos internacionais mais respeitados para
do que havia há 10 ou 5 anos, mas ainda está gerar esses cenários, aquele que mais facilmente
muito longe do discurso passar à ação. Pelo tivemos acesso foi um modelo inglês, que traça
menos, já está se falando nisso, é um ganho. um cenário mais negativo para o Brasil. Dentre
DV – Mas vai dar tempo? os modelos existentes, é aquele que mostra a
Roberto Schaeffer – Depende para quê. Se Amazônia e o Nordeste mais secos, além do
a gente quiser de fato controlar a temperatura assustador impacto sobre o setor energético.
do planeta em níveis hoje ainda considerados Não sou catastrofista, mas, acreditando naquele
seguros, entre 2 e 2,4 graus mais altos que na modelo, o resultado é este. Porém, quero ava-
época pré-industrial, até o ano 2100, já subindo liar também a partir de outros modelos para
em 0,7 graus, teríamos de ter um pico de emis- comparar esses resultados.
são no mundo não depois de 2015, e chegar a DV – O que isso significa em
2030 com as emissões no nível do ano 2000 e, termos de impactos para o Brasil?
em 2050, mais ou menos 80% mais baixo do Roberto Schaeffer – Na região mais cen-
que era em 2000. Houve uma reunião do G-8 tral ou no Sul do Brasil, praticamente todos
recentemente e é fácil as pessoas, da boca para os modelos internacionais apontam para os
fora, dizerem que 80% em 2050 dá. Por que é mesmos resultados, e lá as consequências para
fácil? Porque estamos em 2009. Em 2050, nem a área de energia não são tão grandes. Agora,
vou estar mais aqui, já terei morrido, então pos- para o Norte e o Nordeste, se as previsões
so prometer qualquer coisa e o resto que se vire. estiverem corretas, as consequências serão
Dessa questão de se chegar a 2015 com pico de muito sérias.
emissão, a gente fala que vai ter de ser assim, De todo jeito, mesmo diante das incertezas,
a China, a Índia, o Brasil chegando lá, mas não um ponto de certeza é que todos os cenários
acredito que será possível. Se perdermos esse nos levam a situações muito mais complicadas
marco, provavelmente, vamos perder o outro, do que as de hoje. Não se pode esperar de
e aí já começamos a cair em uma situação mudança climática nada de bom. Por isso, já
que não dá para saber o que vai significar. No não basta mais termos estratégias de mitigação.
caso do Brasil, há cenários que apontam que, Paralelamente à redução das emissões, temos
dependendo do aumento da temperatura, a de começar estratégias de adaptação a um
Amazônia se desmatará por si só; o Nordeste, mundo diferente.
que já é um semiárido, vai virar um deserto; No caso da agricultura, temos de começar
várias plantas das quais dependemos hoje não a pesquisar novas espécies de plantas mais
vão crescer em temperaturas mais elevadas. robustas, que suportem temperaturas mais
DV – Como avalia o último altas. Temos de pensar em torres de linhas
cenário apontado pelo relatório de transmissão mais robustas para aguentar
do IPCC, tido como o mais ventos mais fortes; eventualmente, começar a
tenebroso até agora? pensar que um novo loteamento em Paraty ou
Roberto Schaeffer – Isso funciona assim: Cabo Frio tem de estar mais longe da costa.
existem cenários de emissões, que vão levar a Enfim, temos de começar a nos adaptar para
cenários de concentração de gás na atmosfe- um clima que já está mudando e que irá mudar
ra, que levam a cenários de aquecimento do ainda mais.
planeta que, por sua vez, levam a cenários de
mudanças climáticas. É uma cadeia na qual cada
um dos cenários tem certo grau de incerteza.
De fato, no ano 2000, o IPCC gerou uma nova
família de cenários de emissões, umas mais

SETEMBRO 2009 81
artigo
Carlos Tautz*1

Desmatamento e

Em junho de 2009, duas das mais importantes organizações ambientalistas do

Brasil – o Greenpeace e a Amigos da Terra Amazônia Brasileira – divulgaram

estudos provando que a produção de commodities agrícolas (soja e gado, entre

outros) era a principal indutora do desmatamento e das queimadas na Região

Amazônica. O caso – gravíssimo, porque mais de 70% das emissões de gases do

efeito estufa (GEE) vêm dos incêndios naquele bioma – ajudou a mostrar que o

desflorestamento planejado e sistemático é parte do sistema econômico predo-

minante na região. E, pior, o próprio Estado participa de cada etapa do sistema

1 Algumas das reflexões


contidas neste texto
e integra o controle acionário de várias empresas que extraem intensivamente
emergiram do ambiente de
debates permanente na linha
de pesquisa Desenvolvimento
e Direitos, do Ibase, e no
recursos naturais.
correr da Plataforma BNDES. Os maiores frigoríficos instalados na região recebem generosos recursos de um ente estatal,

82 Democracia Viva Nº 43
e emissões de
Com este Estado
e este modelo, não

Refazer o Estado e o modelo econômico é

o Banco Nacional de Desenvolvimento Econô- economia-mundo, que vê a Amazônia apenas


mico e Social (BNDES), que não apenas provê como uma enorme plataforma de exportação
os recursos financeiros como também possui de commodities? Como superar esses impasses,
participação acionária expressiva em vários de- dadas as relações de poder (do âmbito local ao
les. Valendo-se de incentivos de inúmeros tipos internacional) que emergem de territórios re-
e da fiscalização intencionalmente frouxa, os configurados por grandes projetos econômicos?
frigoríficos se transformaram em um dos mais
importantes instrumentos de degradação da
Vetores da destruição
floresta por comprarem, em larga escala, gado
criado em áreas oriundas de desmatamento e/ Ainda é preciso aguardar até dezembro para
ou de queimadas. que se possa conhecer o inventário nacional de
Esse caso mostra que a imbricação de emissões de gases, pesquisa que não será (como
interesses entre Estado e agentes econômicos deveria ser) divulgada no bojo de uma política
é tão grande que antes de definir estratégias de enfrentamento das mudanças no clima.
para enfrentar o desmatamento e a emissão de Exatamente como na edição anterior (2004), o
gases é necessário saber: como trazer a zero o inventário de 2009 será apenas mais uma peça
desmatamento, e retirar o Brasil do incômodo de defesa contra as críticas sobre a omissão
posto de quinto maior emissor mundial de GEE, oficial na área das mudanças climáticas. Ele será
se o próprio Estado apoia, financia e viabiliza publicado às vésperas de mais uma Conferência
a queima da floresta? É possível imaginar das Partes dos países signatários da convenção
essa redução sem alterar a nossa inserção na das mudanças climáticas. Nesse caso, a 15ª

SETEMBRO 2009 83
artigo

Conferência, a se realizar em dezembro, em A tática mais comum é o afrouxamento da re-


Copenhague, capital da Dinamarca. gulação e da fiscalização de grandes projetos
Porém, o mero acompanhamento empí- de infraestrutura ao redor dos quais são fecha-
rico da destruição ambiental na Amazônia ao dos um sem número de acordos (nem sempre
longo das últimas décadas já permite identificar republicanos). Um exemplo típico e recente é
algumas importantes fontes do desmatamento a construção das hidrelétricas Jirau e Santo
e de emissões de GEE. Algumas provêem de Antônio (no rio Madeira – RO), que proverão
atividades legais e de outras nem tão legais de energia empreendimentos tremendamente
assim. Em seu conjunto, conformam aquilo que devastadores de florestas e, indiretamente,
se convencionou chamar de “modelo” econô- agravantes do processo de emissão de gases.
mico. Sem grandes esforços, pode-se identificar O Estado é o maior financiador dos
os principais vetores desse modelo degradador, empreendimentos (mais de 80% dos créditos)
que termina por desbastar a camada florestal e comprador de última instância, por meio
e intensificar as emissões. de suas empresas no setor hidroelétrico (Ele-
1. O Estado brasileiro, por meio de trobrás, Cemig etc.), da energia a ser gerada.
várias de suas instâncias, mas em especial Se o esquema furar, não há problema (para o
do BNDES e de todo o sistema financei- agente privado). Afinal, o Estado sempre entra
ro público. Ao longo dos anos, foi sendo como emprestador, repetindo uma lógica que
montado um sistema de interesses cruzados também se verifica em projetos de construção
em que participações acionárias se combinam de estradas, de mineração etc.
com financiamentos e objetivos políticos de 2. O capital financeiro, inclusive o
curto, médio e longo prazos, desde o âmbito privado, é outro vetor do desmatamen-
local até o internacional, colocando lado a lado to. Direta ou indiretamente, ele se apropria
empresas públicas e privadas e o poder políti- (de forma legal ou não) de largas porções de
co. A miscigenação é tão intensa que, muitas territórios, seja financiando projetos, seja parti-
vezes, é impossível distinguir o lugar de onde cipando dos blocos controladores das empresas
um determinado agente está falando. que os operam, porque encontram nessas
Nesse cenário, a descoberta de que o obras duas importantes vantagens: primeiro,
Banco financia e participa do controle dos gran- seus projetos têm enorme retorno financeiro
des frigoríficos que induzem ao desmatamento devido à utilização de recursos (humanos, na-
mostra um modus operandis que avança por turais e financeiros) baratos; e pela alocação de
outras áreas e setores, mas sempre mantendo recursos em projetos materiais, que funcionam
a lógica do conluio entre o público e o privado. como reserva de valor indispensável a agentes
que aportam enorme volume de recursos no
mercado especulativo.
Atingidos 3. Os grandes esquemas de legaliza-
ção de dinheiro também buscam na região
Nos dias 23 a 25 de novembro, a Plataforma
meios de fazer reservas de valor. Chama a
BNDES organiza, no Rio de Janeiro, o evento
atenção a desenvoltura com que grandes em-
Atingidos – I Encontro Sul-Americano de
presários, tradicionalmente alheios a projetos na
Populações Afetadas por Grandes Projetos
Amazônia, agora articulam contatos políticos e
Financiados pelo BNDES. A proposta é fa-
zer uma reflexão crítica sobre a atuação do
adquirem enormes porções de território.
Banco em vários setores e ouvir o relato dos
impactados pelos projetos financiados pelo Alternativas de longo curso
BNDES sobre as consequências práticas da
irresponsabilidade do Banco na viabilização de Observando-se a posição das forças políticas
obras estruturantes sem qualquer consulta a institucionalizadas quanto à cumplicidade entre
comunidades locais. Outro objetivo é avançar o Estado brasileiro e seus agentes econômicos
no debate sobre a corresponsabilidade do preferidos, facilmente se conclui que não é
BNDES nos efeitos dos projetos que ele apoia provável que apareça em curto ou em médio
e na reparação dos problemas causados. prazo qualquer ator político capaz de alterar o
curso do sistema econômico no Brasil. Não há
no horizonte qualquer opção política e eleitoral
que aponte no sentido de uma reformulação

84 Democracia Viva Nº 43
Desmatamento e emissões de GEE

radical no Estado e na aposta de outro modelo recompondo um bloco social que nas últimas * Carlos Tautz
econômico que objetivamente induza à redução cinco décadas participou de alguns dos mais Jornalista e pesquisador
da escala das emissões amazônicas de GEE. importantes momentos da história brasileira, do Ibase
O Ibase vem contribuindo, de várias com marco inicial no golpe civil e militar de
maneiras, para o debate qualitativo do desen- 1964, que interrompeu as reformas de base
volvimento, o que necessariamente nos leva do ex-presidente João Goulart.
à discussão sobre o modelo econômico e as Várias dessas organizações estiveram
alterações do clima. Uma dessa maneiras é juntas na resistência à ditadura e na luta pela
a participação, desde o início, na Plataforma anistia, reencontraram-se na redemocratização
BNDES. O conjunto de organizações sindicais, e, posteriormente, nas Diretas Já. Atuaram na
populares, não governamentais que a compõe, Constituinte e, logo depois, na primeira eleição
desde 2004, pressionam pela reorientação do presidencial pós-ditadura. Agora, de novo,
BNDES. Devido aos seus crescentes desembolsos vão se constituindo em grupo que questiona
e à capacidade de elaboração de propostas o padrão de desenvolvimento, motivadas não
estruturantes da economia, o Banco se transfor- apenas pelas injustiças que o modelo produz,
mou em um dos principais agentes do modelo mas, também, pela premência de soluções para
econômico movido a emissões crescentes de o problema climático.
GEE. São blocos como esses as únicas forças
Junto com entidades como MST, CUT, políticas que podem trazer o debate sobre
Movimento dos Atingidos por Barragens, Fórum a mudança nos padrões da economia e, por
Brasileiro de Economia Solidária, CNBB e ABI, conseguinte, dar a sua contribuição para so-
entre outras, o Ibase se insere no crescente rol lucionar a gravidade das mudanças no clima.
de entidades que percebe a necessidade e a Em verdade, ou essas organizações puxam para
oportunidade de reposicionar a discussão dos si essa responsabilidade ou nada se alterará.
rumos do Brasil e da América Latina em uma
perspectiva de chegar a alternativas factíveis ao
nosso padrão econômico.
É interessante notar que a presença
dessas entidades no debate vai de certa forma

As emissões de GEE
Uma descrição precisa da situação amazônica
é encontrada em Redução das emissões de médias anuais na ordem de 200 milhões de
carbono do desmatamento no Brasil: o papel do toneladas de carbono equivalente.
programa Áreas Protegidas na Amazônia (Arpa), No início da década de 2000, houve um
produzido pela UFMG, Ipam, The Woods Hole período de ascensão vertiginosa do desmata-
Research Center e WWF-Brasil: mento, quando a taxa anual alcançou 27 mil
km² em 2004. As pastagens, a maioria de baixa
No princípio da década de 70, a floresta produtividade, cobrem atualmente mais de
amazônica brasileira ocupava uma área total 70% da área desmatada na região (Margulis,
de 4,18 milhões de km2. Atualmente, o desma- 2003, Alencar et al., 2004), sendo a pecuária
tamento acumulado já ultrapassa 650 mil km2 o principal vetor de desmatamento. Além da
‘– 15% de sua extensão original –,’ uma área pecuária, a expansão do agronegócio, a profu-
maior que a França e quase o dobro da Alema- são de projetos de assentamentos e a abertura
nha. Grande parte do desmatamento ocorre ao e pavimentação de estradas contribuíram para
longo do chamado arco do desmatamento que a manutenção de elevadas taxas de desmata-
se estende do nordeste do estado do Pará ao mento. A esses vetores somam-se os mercados
leste do estado do Acre e abriga a maior fron- ilegais de terras e de madeira e as dificuldades
teira agrícola em expansão no mundo (Morton do Estado em controlar ações criminosas, como
et al., 2006). As taxas anuais de desmatamento a grilagem de terra.
situaram-se em torno dos 17 mil km² ao longo
da década de 90, correspondendo a emissões

SETEMBRO 2009 85
ENTREVISTA Entrevista conjuntural
Por Equipe Ibase

Marcelo
Furtado
O debate sobre mudanças climáticas envolve temas como
Economia, Justiça Ambiental, Inclusão Social, entre outros. Em

Democracia Viva (DV) – O que


as mudanças climáticas têm
a ver com a economia?
Marcelo Furtado – A discussão sobre
mudanças climáticas não é ambiental. É sobre
mudança do paradigma de desenvolvimento.
É tão verdade isso que o debate internacional
com ministros do Meio Ambiente e das Relações
Exteriores não andou e vai ser encaminhado por
chefes de Estado. Isso mostra que a questão
engloba políticas econômicas, sociais e ambien-
tais. Uma vez que se trata de uma discussão de
desenvolvimento em função de um indicador
ambiental, a sociedade tem de fazer um acor-
do, uma negociação entre o que quer, espera
e aceita como uma receita de solução. Porque
haverá impactos e oportunidades ao mesmo
tempo em todas as áreas: Economia, Saúde,
Habitação e Política Industrial.
DV – Como está esse debate
no Brasil?
Marcelo Furtado – Estagnado, porque os
países, inclusive o nosso, demoraram a reconhe-
cer que existia um problema. E mais: o Brasil
negou por muitos anos a nossa contribuição
para o agravamento do problema, que é uma
parte significativa. Com isso, falta informação
© Greenpeace / Rodrigo Baleia

em todas as instâncias, desde o trabalhador


que toma um café no bar antes de pegar o
ônibus ao ministro de Estado. E falta diálogo
entre os setores da sociedade sobre qual é o
verdadeiro problema e quais são os caminhos
para a solução.

86 Democracia Viva Nº 43
DV – Se o debate não foi presença do Estado e aplicação da lei, mas, ao
incorporado pela sociedade, mesmo tempo, temos de eliminar os vetores de
o trabalho do setor ambiental desmatamento, como o avanço da soja sobre
foi desperdiçado? a floresta. Assim, seguimos com a defesa da
Marcelo Furtado – Por muito tempo, havia governança e da legalidade, mas não deixa-
uma resistência muito grande nos setores fora mos a floresta ir embora. Essa estratégia não
da esfera ambiental em entender e assumir foi bem-recebida ou talvez bem-entendida em
esse desafio. Não é um assunto fácil. A ciên- princípio, mas sua aceitação ficou mais explí-
cia é complexa e as soluções são complexas, cita após dois anos de moratória, quando os
porque elas contemplam vários elementos. primeiros casos de violação do acordo foram
Em segundo lugar, havia a preocupação de expostos e condenados. Além disso, em Santa-
fragmentar e esvaziar o volume de recursos e a rém, vimos que o número de casos de violência
vontade política para lidar com questões como no campo caiu. Nesse momento, a sociedade
pobreza, geração de renda e ocupação de solo. percebeu que a conversa de desmatamento
Aqui, houve uma falha de todo o movimento, zero era para valer.
inclusive o ambiental. A gente não mostrou DV – Faltou diálogo entre
um para o outro que tudo faz parte da mesma os movimentos?
agenda. Há outro complicador. Não é possível Marcelo Furtado – O Fórum Social Mun-
resolver todos os dilemas ao mesmo tempo, dial foi um dos vários palcos escolhidos para
em um prazo curto, como o que a ciência diz essa discussão, mas continuamos falando da
ser necessário para lidar com as mudanças do agenda ambiental e da social de maneira não in-
clima. Mas essa urgência passou não tanto a tegrada e não construímos propostas conjuntas
engajar e sim a preocupar o movimento social. concretas para atender a esse novo paradigma
Temos de priorizar algumas ações. Em vez de de desenvolvimento. A preocupação continua
lutarmos juntos por recursos adicionais e um em trabalharmos um discurso correto e não
plano de ação integrado com uma política de necessariamente da solução. Pois, com tempo
desenvolvimento compatível com o desafio, limitado e prioridades a serem elencadas, não
competimos pelas migalhas oferecidas pelo atu- podemos nos preocupar em estar ‘certos’, mas
al modelo que trata a questão socioambiental sim em vencer esse desafio, pois o que está em
como tema menor. jogo é a nossa sobrevivência.
DV – De qual forma? DV – Há uma receita de solução?
Marcelo Furtado – No momento que a Marcelo Furtado – Estamos na era do
gente diz que o desafio é de desenvolvimento, pragmatismo visionário. Este é o momento de
não ambiental, essas outras questões entram di- romper com o Brasil do passado e engajar com
retamente na balança, de maneira fundamental. o Brasil de 2020, 2030 e 2050. Devemos desen-
Para discutir mudanças climáticas, precisávamos volver uma visão de país, de planeta e exercer
conversar com o setor produtivo, o dono da liderança. Construir um caminho crítico para
chaminé. A gente precisava falar com o con- uma economia verde inclusiva e justa. Romper
sumidor, que, dependendo do seu hábito de com as práticas da corrupção, ilegalidade e,
consumo, promove o aumento da intensidade acima de tudo, apatia.
da fumaça da chaminé ou da expansão das Precisamos nos juntar e ir para as ruas
áreas plantadas, em geral derrubando floresta porque, a não ser que consigamos pressionar
virgem, cuja área é posteriormente abandona- governantes, Parlamento e setor produtivo
da. Mas não conversamos estrategicamente conjuntamente, não mudaremos essa realidade.
com os setores como os sindicatos que viam Quanto ao governo, o primeiro passo é reco-
nisso um possível obstáculo, uma ameaça à nhecer o problema. O segundo é desenvolver
geração de empregos e aos existentes e com uma visão de país; em seguida, discutir e de-
os movimentos sociais que viam como ameaça senvolver com a sociedade um caminho crítico
à geração e distribuição de riqueza. a ser trilhado conciliando, de verdade, e não
Um exemplo: de um lado o movimento na retórica, sustentabilidade e desenvolvimento.
ambientalista diz que a moratória da soja Neste momento, o grande desafio é pensar uma
integra o desafio das mudanças climáticas a economia de baixo carbono, maior número
um novo padrão de atuação da indústria no de empregos, maior e melhor distribuição de
bioma amazônico. Já o movimento social olha renda. Mas ao olhar o perfil das emissões bra-
isso como uma sedimentação de um modelo sileiras de gases do efeito estufa identificam-se
econômico desigual para uma região onde já facilmente duas lições de casa fundamentais.
existe falta de governança e impunidade. Nós Uma é lidar com o uso do solo e da floresta,
sempre defendemos a bandeira da legalidade ou seja, agricultura e desmatamento. A outra
e governança plena e continuamos exigindo a é a questão energia, desde a geração ao uso.

SETEMBRO 2009 87
Entrevista conjuntural

DV – Mas o governo não lançou Novos estudos sobre empregos verdes apontam
uma Política Nacional de Mudanças claramente que as indústrias e tecnologias de
Climáticas? baixo carbono empregam duas vezes mais que
Marcelo Furtado – De novo, o governo as fontes sujas. Está nas mãos dos sindicatos e
brasileiro demorou muito tempo para desen- dos movimentos sociais influenciar essa agenda.
volver uma política para o país. O resultado Quando o governo diz que vai investir em uma
foi uma costura de ações já existentes, baixa nova refinaria, uma usina nuclear ou um projeto
inovação e pouca ambição no alcance das de siderurgia, ele usa o dinheiro público para
ações. Ou seja, pensou no Brasil de 2010, e alavancar esses projetos – ou com renúncia
não no futuro. O governo tardou em assumir fiscal ou com investimento público direto – in-
alguma meta de redução de emissões. Hoje, dicando que é esse o futuro que o Brasil almeja.
temos um compromisso nacional com a redu- DV – Não é esse o futuro do Brasil?
ção do desmatamento, mas não o fim dele, o Marcelo Furtado – Perante o desafio das
chamado desmatamento zero. Além disso, não mudanças climáticas, não. Existe um período
existe uma estratégia para outros setores da de transição pelo qual todos os países passa-
economia como geração de energia, transporte, rão, mas esse não é o futuro. Essa transição
agricultura etc. O discurso do Lula indica a clara será mais ou menos dolorosa de acordo com
preferência de passar o mico para os outros, o preparo das redes de segurança social que
exigindo que a lição de casa seja feita por todos, os países têm hoje. A proposta para a matriz
menos o Brasil ou que, sem recursos de fora, a energética brasileira é de projetos menores,
gente não tem condição de fazer nada. de menor impacto ambiental, com tecnologias
DV – Como se integra justiça diversificadas, sem energia nuclear, sem carvão,
social ao combate às mudanças sem diesel. Em vez de gastar R$ 8 bilhões para
climáticas? fazer uma usina nuclear nova no Rio de Janeiro
Marcelo Furtado – O desafio posto é en- que produza 1.200 MW por hora, eu faria uma
tender e entrar em um acordo sobre as pautas Itaipu de vento no Nordeste, onde a luta pela
de prioridades. Significa olhar o que a ciência melhoria da educação, pobreza e empregabi-
apresenta, com o tempo indicado para resolver lidade poderia ser positivamente impactada.
e agir, de uma a duas décadas, no máximo. O Esse parque eólico no Nordeste produziria mais
problema cai no colo da nossa geração. Se eu energia, pelo mesmo valor ou menos. A região
não fizer a lição de casa hoje, o que entregarei torna-se um pólo, com uma indústria muito
é um trem em rota de colisão, não um país e mais sofisticada, limpa e sustentável, com mais
um planeta viáveis. empregos qualificados de longo prazo.
Depois, é preciso enxergar e entrar em DV – Investimentos em obras de
acordo a respeito das oportunidades que exis- vulto como o pré-sal não fornecem
tem. Quando se fala do desafio da geração essa qualificação e crescimento?
de energia, e energias renováveis como uma Marcelo Furtado – O pré-sal é um bom
solução para os combustíveis fósseis, duas ca- exemplo. A discussão ambiental não existia.
racterísticas atendem às demandas sociais. Uma Só se discutia o que fazer com os royalties e
é a descentralização. Hoje, hidroelétricas na acreditava-se que, com esse volume de recursos,
Amazônia geram energia para as populações do os problemas sociais do país seriam resolvidos.
Centro-Sul do Brasil, enquanto as comunidades Na verdade, quando o Brasil estiver trabalhando
do entorno ora foram deslocadas pelo alaga- de forma madura com essas reservas, o país já
mento dos reservatórios, ora as que sobraram terá metas obrigatórias de corte da emissão
na área não têm eletricidade. É uma política de gases do efeito estufa, pois, entre 2020 e
que ignora o alto impacto das megausinas e 2025, todos os países ricos ou pobres estarão
as demandas dos movimentos sociais. Ao falar no mesmo barco. Tendo essa perspectiva em
de energias renováveis descentralizadas, essas vista, os recursos prometidos para a área social
unidades atenderão à rede, mas também ao serão aplicados em longo prazo? O desafio
entorno com eólica, solar, pequenas centrais social é meramente resolvido com recursos
hidroelétricas e biomassa. Com energia limpa, adicionais? Ou ele passa pela velha discussão
essas comunidades podem se desenvolver com não resolvida da distribuição interna de renda?
mais sustentabilidade. E se, devido ao paradigma climático no futuro
DV – Produzindo o quê? próximo, tivermos de abandonar os combustí-
Marcelo Furtado – Os empregos que qui- veis fósseis para salvar o planeta? Não se trata
sermos para o futuro. Uma nova refinaria de de ter ou não petróleo, mas sim se poderemos
petróleo ou uma nova siderúrgica a carvão é o ou não o queimar.
que o Brasil quer? Ela vai gerar 9 mil empregos? Não existe mais espaço para pequenas
Mas esses empregos existirão em 10, 20 anos? vitórias. Precisamos mudar o padrão de de-

88 Democracia Viva Nº 43
Marcelo Furtado

senvolvimento, gerar os empregos, a energia sar de recursos, ele deve ter a quem recorrer e
e a renda que o Brasil precisa, mas de maneira obter um direcionamento para uma realidade
justa e limpa. Essa é, indiscutivelmente, uma voltada a esse desafio. No quesito ambiental,
agenda de país. Ela nos força a discutir e refletir os pequenos podem causar grandes danos,
exatamente que nação queremos em 2020, mas ao mesmo tempo podem ser os agentes
2030 e 2050. fundamentais da transformação e um ponto
DV – O que é fundamental de oportunidade de se unir o debate ambiental
nessa agenda? com o social.
Marcelo Furtado – Muitas pessoas olham DV – Quais serão os impactos das
esses investimentos com um olhar sobre o pre- mudanças do clima no campo?
sente, não sobre o futuro. Um dos pleitos que Marcelo Furtado – Haverá mudança de
temos é o mapa de vulnerabilidades do país. É local de áreas produtivas e alguns cultivares
uma ferramenta fundamental para qualquer go- não vão sobreviver a alterações na temperatu-
vernante pensar em política de desenvolvimento ra. Por outro lado, mudanças serão requeridas
social. Ele ajuda a responder duas perguntas do ponto de vista de tecnologia. Um exemplo
fundamentais: onde haverá comida e onde é o fim da queima de cana e o desafio social
haverá água? Quando se pensa onde colocar que isso representa para o trabalhador, pois a
um pólo industrial, escolas, hospitais, onde mecanização é indubitável e um compromisso
crescerão os centros urbanos, é preciso saber legal estipulado por lei. Situações como essa,
quais são as áreas mais e menos afetadas pelas seja na indústria da cana, da soja, da pecuária,
mudanças climáticas. Hoje mesmo já sofremos vão acontecer em todo o leque do agronegócio.
com isso. No semi-árido, existe um processo Isso vai acontecer em um Brasil que convive
de desertificação acontecendo que tende a se ainda com denúncia de mão-de-obra escrava,
agravar. Como sociedade, a gente tem a respon- com desmatamento ilegal, violência agrária e
sabilidade de encontrar alternativas para essa impunidade.
comunidade, e não adensar mais uma região DV – Assentamentos figuram
sabidamente desafiadora. entre vetores de desmatamento
DV – Uma das lições de casa a ser na Amazônia. Como encaixar a
feita é controlar o desmatamento. demanda pela terra e a demanda
Ele não é um processo inerente ambiental?
ao crescimento? Marcelo Furtado – Quando a gente fala
Marcelo Furtado – O setor produtivo ex- de reforma agrária, uso do solo e desenvolvi-
portador é o primeiro a dar sinais que começou mento de melhores tecnologias para o setor,
a entender que, se o Brasil não se adequar a não falamos que não se pode discutir ao
uma nova realidade de produzir com baixo car- mesmo tempo acesso à terra, condenação de
bono, fica fora da competição econômica. Mas grilagem e de ilegalidade. Isso tem de ser feito
os produtores brasileiros, em geral, ignoram ao mesmo tempo. Precisamos estabelecer um
essa questão. Ou a gente muda esse setor ou diálogo e colocar esta como uma pauta polí-
a gente não sobrevive. O que está em jogo é tica fundamental. O governo, quando fala de
uma questão de vida ou morte, de sobrevivência reforma agrária, fez seu movimento justamente
da sociedade, da indústria e de seus próprios na parte do país onde há menor governança e
agricultores. A maneira radicalizada que a maior impunidade: a Amazônia. Quando essas
bancada ruralista coloca a questão ignora, por agendas – a ambiental e a social – parecem
exemplo, o fato de que, sem a Amazônia, não tensionadas, no fundo, elas devem ser trabalha-
haverá água para a agricultura brasileira. A das em conjunto. Esses aparentes silos deram a
maior parte dos agricultores deste país ainda impressão de que a gente não poderia juntar as
não entendeu essa ligação tão simples. forças para confrontar a não ação do governo,
DV – O mesmo vale para os(as) do Parlamento, do setor produtivo.
pequenos(as) agricultores(as)? DV – Há uma agenda de Justiça
Marcelo Furtado – Quando a gente diz Socioambiental?
agronegócio, não se trata apenas dos 25% Marcelo Furtado – Desenvolver uma agen-
de grandes propriedades. Trata-se, também, da comum é o único caminho. A pergunta é
dos 75% da agricultura familiar. As decisões quando. Diz-se que, como não podemos mudar
desse grupo terão um forte impacto na nossa a ciência, mudemos os políticos. Nesse caso,
capacidade de reação ao desafio das mudanças mudemos nossos padrões de comportamento.
climáticas. As políticas que forem estabelecidas A iniciativa da revista do Ibase, de trazer o
para a agricultura familiar não podem contribuir assunto com a ótica social, é fundamental. A
para piorar o problema, e sim devem solucioná- ciência também nos coloca o imperativo de que
-lo. Porque, quando o agricultor familiar preci- precisamos mudar nossas cabeças e aprender

SETEMBRO 2009 89
MAT É RIA
Diego Santos

Crise ambiental,
sociedade
civil
brasileira faz Há mais de 20 anos, as questões ambientais vêm tomando a pauta do dia. Em todo

o mundo, milhares de organizações, conferências, seminários, estudos e teses fo-

ram criados a fim de garantir um bom futuro para o planeta. Mudanças climáticas,

escassez de recursos e desmatamento, esses e outros temas tornaram-se motivos de

políticas públicas, acordos internacionais e protocolos.

Do fim da década de 1980, por exemplo, podemos listar uma série de fa-

tos e processos que marcaram um período de intensas interações entre diferentes

segmentos organizados da sociedade civil brasileira, nas vertentes sociais e am-

bientais, como o processo de formulação e aprovação dos direitos sociais coletivos

e do meio ambiente na Constituição Federal de 1988. Outro evento que ganhou


destaque foi a campanha da Aliança dos Povos da Floresta, em 1989 – liderada pelo seringueiro

90 Democracia Viva Nº 43
e ambientalista Chico Mendes. Nesse mesmo Norte a Sul do país, as ONGs têm se dedicado
ano, foi realizado o Encontro dos Índios, em a diminuir, por meio de ações e cobrança por
Altamira, no Pará, para protestar contra um políticas públicas, os impactos das mudanças
grande plano oficial de aproveitamento hidre- climáticas e dos desgastes ambientais.
létrico da Bacia do rio Xingu. Presente no Brasil desde 1992, o Gre-
Nesse cenário, fez-se necessária a enpeace está em mais de 40 países. De acordo
criação de instituições que pudessem avaliar, com informações colhidas no site institucional,
pesquisar e até mesmo cobrar a criação de procura atuar em defesa do meio ambiente
políticas ambientais. Em 1990, era criado o Fó- e concentra os esforços de suas ações para
rum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais “inspirar as pessoas a mudarem de atitudes e
para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento comportamentos”. A ONG também defende
(FBOMS), em uma sala da Faculdade de Saúde soluções economicamente viáveis e socialmen-
Pública da Universidade de São Paulo (USP). te justas, que ofereçam esperança para “esta
O FBOMS nasceu com o objetivo de e para as futuras gerações.”
facilitar a participação da sociedade civil no Criado em 1994, o Instituto Socioam-
processo da Conferência das Nações Unidas biental (ISA) é uma organização da sociedade
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, co- civil de interesse público (oscip) desde 2001 e
nhecida por ECO 92. Durante esse processo. incorporou o patrimônio do Programa Povos
foi estabelecida a Agenda 21, um programa de Indígenas no Brasil do Centro Ecumênico de
ação baseado em um documento de 40 capí- Documentação e Informação(PIB/Cedi) e o
tulos, que constitui uma ousada e abrangente Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) de Brasília.
tentativa para promover, em escala planetária, O ISA procura defender bens e direitos sociais,
um novo padrão de desenvolvimento, conci- coletivos e difusos relativos ao meio ambiente,
liando métodos de proteção ambiental, justiça ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e
social e eficiência econômica. dos povos por meio de campanhas e pesquisas
Para a criação do documento contri- e tem escritórios em seis estados do país.
buíram governos e instituições da sociedade Enquanto isso, em Bauru, São Paulo,
civil de 179 países em um processo prepara- era criado o Instituto Ambiental Vidágua, com
tório que durou dois anos e culminou com a o objetivo principal de articular a sociedade
realização da ECO 92, no Rio de Janeiro. O civil na defesa do meio ambiente. O instituto
evento que, por sua vez, marcou a história, desenvolve programas de proteção ambiental,
com alianças estabelecidas e acordos realiza- realiza estudos, pesquisas, projetos, planos
dos, foi o pontapé inicial para uma reflexão e obras de abrangência regional e nacional,
mais profunda sobre a temática ambiental no para promover ou incentivar a recuperação
Brasil e no mundo. dos recursos hídricos; promover cursos, pales-
tras, ciclos de debates e publicações a fim de
proporcionar educação ambiental ao público.
Rede cidadã
Uma das inciativas do Vidágua é o
De lá para cá muito foi se modificando, as programa radiofônico “Atitude”, que aborda
preocupações foram aumentando e a quanti- as principais temáticas ambientais de forma
dade de instituições trabalhando em prol do interativa, lúdica e explicativa. Já foram abor-
meio ambiente cresceu consideravelmente. Em dados temas como educação ambiental, água,
levantamento realizado neste ano, a Análise lixo e vegetação. O programa é realizado em
Editorial concluiu que existem no Brasil cerca parceria com a rádio Unesp FM, da Universi-
de 276 mil ONGs, das quais 1.656 atuam na dade Estadual Paulista.
proteção ao meio ambiente e cerca de 130 Partindo para Fortaleza, em 1999,
estão instaladas na Amazônia e no Pantanal. surgia a Associação Alternativa TerrAzul, que
Segundo a pesquisa, as ações estão desenvolve ações socioambientais nos âmbitos
centralizadas na construção de uma consci- local, regional, nacional e internacional, por
ência crítica da população e a transformação meio de parcerias e participação em redes,
de suas ações em políticas públicas. Os temas como o FBOMS. Atualmente, a organização
defendidos por essas organizações variam des- tem dado ênfase a temas como Agenda 21,
de as florestas até os oceanos. Espalhadas de Juventude, Economia Solidária, trabalhando a

SETEMBRO 2009 91
matéria

questão do consumo consciente, integração Onde encontrar?


dos povos e clima.
www.vitaecivilis.org.br
A instituição também mantém a Escola www.fase.org.br
de Formação da Juventude, que vem amplian- www.greenpeace.org.br
do o debate sobre meio ambiente, em especial www.avaaz.org.br
sobre as mudanças climáticas, discutindo as www.terrazulç.m024.net
causas e consequências e buscando ações que www.vidagua.org.br
www.socioambiental.org
levem à mitigação e à redução dos danos e à
www.justicaambiental.org.br
construção de alternativas, além de integrar
www.fboms.org.br
a Campanha internacional das Mudanças www.ibase.br
Climáticas, por meio do FBOMS, no Grupo de
Trabalho sobre o Clima.
Além dessas instituições, existem
muitas outras que, por questões de espaço,
não puderam ser citadas aqui, mas que têm Kyoto – compromisso estabelecido pelos países
contribuído muito no debate sobre os direitos que assinaram a Convenção da ONU sobre
humanos ambientais e a preservação do pla- Mudança do Clima de reduzirem, de 2008 a
neta. Passeando pelas páginas desta edição, 2012, suas emissões poluentes em pelo menos
você poderá conhecer algumas iniciativas e/ ou 5% em relação aos níveis verificados em 1990.
reflexões de representantes de organizações Estamos no segundo ano de vigência
fundamentais nessa luta, como a Federação de do Protocolo de Kyoto e o mundo agora dis-
Órgãos para Assistência Social e Educacional cute o que fazer depois dele, a partir de 2012.
(Fase); Vitae Civilis Instituto para o Desenvol- O mapa do caminho foi traçado em 2007
vimento, Meio Ambiente e Paz; Rede Brasileira na COP 13, realizada em Bali (Indonésia) e,
de Justiça Ambiental; Observatório Nacional agora, os países voltam a se reunir, desta vez
de Clima e Saúde, uma parceria do Inpe e em Copenhague, para discutir o acordo global
da Fundação Oswaldo Cruz; e Avaaz Brasil, que vai suceder o protocolo.
entre outras. O próprio Ibase também vem Na pauta de debate estão o estabeleci-
investindo na defesa da justiça socioambiental, mento de metas mais rígidas de redução das
desde sua fundação, em 1981, seja por meio emissões de gases do efeito estufa, além das
de projetos específicos, seja dando ênfase à bases para um esforço global de mitigação e
questão em todos os seus outros projetos de adaptação às mudanças climáticas. E é ne-
forma transversal. Um destaque dentre essas cessário que se estabeleça um plano de ações
iniciativas foi ter garantido a comunicação eficaz para que se garanta um bom futuro
ao público participante durante a ECO 92, para a nação.
disponibilizando acesso à Internet, por meio Em decorrência disso, é muito im-
do primeiro provedor da sociedade civil orga- portante que os trabalhos gerados a partir
nizada, o AlternNex. E, como um dos principais da discussão pública e da inciativa de ONGs
fomentadores e organizadores do processo possam realmente incidir no debate público
Fórum Social Mundial, a partir de 2001. a fim de garantir o estabelecimento de metas
concretas e possíveis.
Todas essas negociações na COP 15 são
COP 15
importantes para que as nações tenham inicia-
Este ano, será realizada a décima quinta Con- tivas para minimizar as consequências geradas
ferência das Partes (COP15) e representantes pela degradação ambiental produzida por
de cerca de 200 países estarão em Copenha- séculos, dispondo de recursos e tecnologias
gue (Dinamarca), de 7 a 18 de dezembro. A a serviço de todas as pessoas. Nelas se discu-
primeira Conferência das Partes foi realizada tem as causas, os impactos e as alternativas
em Berlim, na Alemanha, no ano de 1995, envolvendo cientistas, Estado e a sociedade
quando foi decidida a criação, até 1997, de civil organizada.
um protocolo com metas para a redução de
emissões. A reunião da ONU ocorreu em Kyoto,
no Japão, e lá surgiu, então, o Protocolo de

92 Democracia Viva Nº 43
SETEMBRO 2009 93
s u a o p i n i ã o

Crônica Cândido Grzyboswski. Estamos organizando


Olá Alcione! Acompanho na revista Democra- uma seleção de textos – “Fontes históricas de
cia Viva suas crônicas e, além de adorá-las, as uma pedagogia latino-americana” – e queremos
aguardo ansioso. Leio-as para meus amigos e incluir também os povos da floresta. O livro
amigas que vêm até minha casa. Quero deixar está disponível para a distribuição nas livrarias
uma sugestão de tema para uma crônica futura: ou tem de ser diretamente com vocês? Se for o
a questão habitacional (mais especificamente, o último caso, aguardamos orientações para saber
déficit habitacional), pessoas que não têm casa. como proceder.
Ivanio Dickmann Telmo Adams
Centro de Assessoria em Educação Popular, Unisinos/ Ciências Humanas – PPPG Educação/RS
Cooperativismo e Economia Solidária (Habesol)/RS Resposta da redação: a edição do livro está
esgotada, enviaremos uma cópia. O áudio da
entrevista está disponível em <www.radiotube.
DV 42
org.br>
Senhora diretora responsável, acuso o recebi-
mento e agradeço a gentileza da remessa do
exemplar da edição a seguir enunciada do in- Saudações
formativo Democracia Viva e felicito a instituição Gostaria de congratular a todos os que partici-
pela qualidade da publicação (nº 42, maio de pam da elaboração da revista Democracia Viva.
2009). Com as expressões do nosso apreço. Realmente, publica informações de qualidade
Maurício Azêdo e sobre os temas socioambientais mais atuais.
Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)/ Aproveito este e-mail para solicitar a mudan-
RJ ça do meu endereço de correspondência para
receber a revista. Saudações e longa vida para
DV 41 esta maravilhosa publicação.
Recebi aqui, no Iser um exemplar da revista, Edson Cunha, geólogo/RJ
que li e gostei muito, especialmente dos textos
sobre Obama, Araguaia-Tocantins (comecei a ler Saudações II
a publicação por causa desse artigo), Amazônia,
Em nome do Programa das Nações Unidas para
Chico Mendes, a maravilhosa e desafiadora en-
o Meio Ambiente (Pnuma), gostaria de acusar
trevista do Raimundo Pereira etc.
o recebimento e agradecer o envio de exemplar
Parabéns pela revista e pela militância de
da revista Democracia Viva, nº 42, do Ibase.
vocês pela justiça e dignidade humanas.
Aproveito a oportunidade para renovar nossos
Clemir Fernandes cordiais protestos de estima e consideração a
Instituto de Estudos da Religião – Iser/RJ
essa entidade.

Mais DV 41 Nota da redação


Recebemos, com muita satisfação, o número Agradecemos ao público leitor por todas as
41 (janeiro – 2009) da publicação Democracia mensagens e todos os artigos recebidos no
Viva, pelo qual muito agradecemos. O fascículo endereço eletrônico da revista e no Portal do
foi imediatamente incorporado ao acervo e Ibase. Informamos que os textos serão avalia-
encontra-se disponível para todos os usuários dos e, se possível, publicados. Lembramos que
de nossa biblioteca. Reafirmamos nosso interesse também é possível fazer comentários, enviar
sugestões e ler o conteúdo da revista no orkut.
em continuar recebendo os próximos fascículos
Esperamos que esse possa se tornar mais um
publicados.
espaço de troca e estreitamento de nosso con-
Marcelo Pivatti tato com vocês.
Unifieo – Centro Universitário Fieo / Fundação Instituto Agradecemos, também, por todas as cartas
de Ensino para Osasco enviadas, informando que, de acordo com a
Biblioteca/ Setor de Periódicos/SP necessidade editorial, essas serão publicadas
com cortes.
Esperamos que vocês continuem colaboran-
O homem da floresta do com a revista Democracia Viva: escrevam,
Na edição nº 41, p. 44, tem um artigo intitulado opinem, critiquem, mantenham contato!
“O testemunho do homem da floresta”, com <democraciaviva@cidadania.org.br>
base em depoimento histórico de Chico Mendes.
Gostaríamos de receber o livro organizado por

94 Democracia Viva Nº 43
SETEMBRO 2009 95
última página
Nani
43
A agenda da revista Democracia Viva é ampla

VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com

DEMOCRACIA
a cidadania e com a democracia.

Democracia Viva não se alinha com partidos

nem religiões, mas toma partido desde que

esteja em jogo a possibilidade de aprofundar

a democracia. Não disputa poder, mas quer

exercer um papel de vigilância, monitoramento

e avaliação; com toda autonomia e independência,

das políticas públicas e das ações governamentais,

bem como das práticas empresariais e das

relações econômico-financeiras. Quer ser ativa

como interpeladora de consciências e vontades,

questionando práticas e valores que limitam

a democracia, estimulando a participação cidadã.

Sua qualidade é a força das reflexões, análises,

propostas e dos argumentos.

SETEMBRO 2009

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