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Quem traduzirá literatura latina no Brasil?

*
Mauri Furlan
 
Dentro da proposta temática destas Jornadas do projeto de Literatura Traduzida, o título desta comunicação sugere
variadas abordagens, seja um levantamento estatístico das escolas e instituições de nível superior que ensinam o
Latim, com seus respectivos números de formandos na língua latina, seja uma apresentação da situação do
mercado editor e leitor brasileiro de literatura latina, seja a secular constatação da decadência do ensino da língua
latina e sua conseqüente redução de candidatos a tradutores com suficiente conhecimento da língua dos Romanos,
entre outros temas possíveis.
 
Aproveitando-me deste momento histórico em que o ensino de nível superior no Brasil defronta-se mais uma vez
com a incumbência de reelaborar seus currículos escolares, tento uma reflexão sobre a situação do latim nas
universidades brasileiras e no microcosmos de nossa universidade, considerando a possibilidade de que entre nós
pudesse haver uma redução ou mesmo eliminação total do ensino de Latim na graduação.
 
Sou professor de Latim, como sabeis, e a esta atividade me dedico com empenho e orgulho. Bem recordava outro
dia Luiz Henrique Queriquelli da posição singular que ocupa um professor de latim no sistema universitário
brasileiro. Certamente o número destes exemplares é muito reduzido. Do que podemos concluir que ser avis rara
implica em privilégios, mas também penúrias, e uma grande responsabilidade enquanto últimos bastiões das
moribundas Humanidades. Ao escolher falar-vos hoje sobre este assunto, entro conscientemente para o rol das
vozes que clamaram no deserto.
 
A questão central, sempre de novo recolocada, formula-se em nossos dias de forma simples e clara: por que
estudar latim? Uma questão que, ao longo dos séculos e de acordo com os diferentes momentos históricos, foi
distintamente interpretada e respondida. A questão do estudo do Latim poderia ser investigada através da história
da educação no Ocidente: uma pesquisa que provavelmente revelaria importantes aspectos da relação sociedade
vs. cultura. O percurso histórico da civilização ocidental conferiu à língua latina um caráter de expressão cultural.
Vale aqui um esboço dessa história.
 
(1) Língua materna de nossa civilização ocidental, o Latim, quando de seu apogeu, e à imitação da língua grega, se
opunha ao Bárbaro, embora sempre mantendo uma política aberta e pacífica em relação à aceitação e manutenção
das línguas dos povos conquistados. Mas o Latim era a língua oficial!
(2) Com o fim do Império Romano, o Latim passa de língua hegemônica, de status quo, a língua da resistência, de
luta contra o barbarismo que invadia a Europa e a destituía de sua civilização. Com a desintegração da civilização –
no sentido de cidade e predomínio de vida no campo -, e portanto, desintegração da cultura, stricto sensu, são os
mosteiros que passam a organizar e educar as comunidades de seu entorno.
(3) A Igreja Católica se conscientiza de seu poder e de sua responsabilidade: proclama-se herdeira do Império
Romano, com a missão de reunificar, e sua expressão primeira de detentora do poder é a posse do Latim. Bem ou
mal, é a ela que, em última instância, devemos grande parte da preservação e transmissão da cultura da civilização
clássica; foi ela a grande e única força coesionadora do Ocidente durante toda a Idade Média. E o Latim foi mais
que veículo mediador e língua franca daqueles tempos: conhecer o Latim significava possuir cultura e adquirir
poder.
(4) Com o advento do Renascimento – desejo de transformação ocorrido por volta do século XVI com a revitalização
da cultura clássica –, os humanistas reintroduzem no sistema educacional os valores clássicos de conhecimento
universal. A rejeição à escolástica e a reestruturação do ensino trazem em seu bojo os germes da laicização na
educação. O Latim e o Grego são resituados como línguas de cultura e o Latim passa definitivamente a ser
ensinado como língua estrangeira. A busca dos humanistas pelo conhecimento profundo das culturas antigas e pelo
domínio do Latim, em seu afã de serem continuadores dos Antigos, revela, na verdade, o momento maior de ruptura
e conscientização de diferenças entre as culturas. O Latim definitivamente já não é a língua-mãe. As línguas
vernáculas, sobretudo as neolatinas, já se impuseram então como expressões nacionalistas. Para que uma língua
fosse considerada rica, segundo os requisitos clássicos, não bastava com que possuísse um número suficiente de
palavras, deveria possuir um excesso de palavras: copia et abundantia. As novas línguas já preenchiam tais
requisitos.
(5) A universidade, fundada como instituição nos finais da Idade Média, reforça no Renascimento sua vocação de
campo de cultura geral, universal: reimplanta o sistema educacional clássico grego da enkyklios paideia, que
consistia na aquisição de uma cultura geral, enciclo-pédica. O Latim assume então, ademais do papel de língua de
cultura, o de língua acadêmica e científica, permanecendo assim até praticamente o século XVIII, início do XIX. Por
isso, felizmente, quase todos os textos literários, científicos e teológicos escritos até esse período são em latim: o
que faz com nossos alunos, ao se tornarem investigadores científicos e precisando recorrer às fontes primárias de
suas ciências, se deparem novamente com o Latim.
(6) Nos últimos dois séculos, talvez mais acentuadamente a partir da revolução industrial, e, por pressão do
capitalismo, a educação vai mudando de posição. A cultura geral, stricto sensu, cede espaço ao pragmatismo e
utilitarismo. O desenvolvimento econômico atrelado ao da tecnologia determina o caráter do mercado de trabalho, e
conseqüentemente o da formação dos trabalhadores. Em oposição radical ao ideal de formação clássico que
investia nas chamadas artes liberais (gramática, retórica, dialética, aritmética, música, geometria e astronomia) –
artes que não serviam para ganhar dinhero –, em oposição a estas artes, o ensino moderno opta pelas chamadas
artes mecânicas, que, em princípio, referiam-se apenas às atividades manuais, mas que hoje incluiriam todas as
ciências relacionadas a elas. Aqui nos encontramos.
 
Já abordei tangencialmente o ponto aonde quero chegar.
Brasil, UFSC, 2005. Um professor do Centro Tecnológico afirma não entender porque ainda existem cursos de
Letras. Deduz-se que o que não for técnica e tecnológico não tem valor. E nós, velhos humanistas indefesos, nos
calamos. A realidade é muito mais profunda do que a percebemos e de como a apresentamos. O pensamento
daquele professor é repulsivo, mas também profundamente entristecedor. Para mim, o ponto último a que aponta
uma tal concepção técnico-pragmático-utilitarista da educação, fruto de um capitalismo desumanizador, é o de que
nosso sistema o cegou para o fato de que EXISTE VIDA ALÉM DO TRABALHO E DO FATOR ECONONÔMICO !
EXISTE VIDA ALÉM DO TRABALHO! E VIDA É CULTURA! ¡¿Seria necessário que eu me estendesse com
argumentos e exemplos sobre estas afirmações?!
Podemos reinterpretar aqui o belíssimo pensamento de São Mateus (XVI, 26) “De que adianta ao homem ganhar o
mundo inteiro e perder sua alma?”, questionando sobre o valor da técnica sem a cultura, do trabalho sem o prazer
da vida. O que é que caracteriza essencialmente o ser humano senão a capacidade de desenvolvimento do
intelecto e do espírito? Minha perspectiva aqui é existencialista, sim! E não temo ser tachado de anacrônico.  Não
podemos ser apenas a técnica e a esteira mecânica.
 
O espaço das Humanidades dentro da Universidade deve ser defendido. A dignidade do ser humano deve ser
garantida! Não se questiona que a universidade deve adequar o sistema educacional à necessidade de mão-de-
obra para o desenvolvimento industrial, e, oxalá, social, mas sem perder o lado humano.
A defesa da sobrevivência do ensino do latim é, em última instância, a defesa da aquisição de cultura, de nossa
história, de conhecimento de um longo passado que nos forjou, de auto-conhecimento (”Conhece-te a ti mesmo!”,
dizia o oráculo na entrada do templo de Apolo, em Delfos. Do que resultou o pensamento socrático de “sei que nada
sei”, que caracteriza o mesmo homem aristótelico naturalmente amante do saber. Este “sei que nada sei”
paradoxalmente ao seu primeiro sentido, não é fruto da ignorância mas de um profundo conhecimento originado
pela reflexão e cultivo do pensamento).
 
Sou professor de Latim do curso de Letras, mas confesso que não deixo de surpreender-me com os alunos de
outros cursos (Direito, Filosofia, História, Ciências Sociais, Medicina…) que frequentam minhas aulas buscando
aprender a língua do Lácio, buscando ampliar seus conhecimentos culturais. São alunos que, pela não
obrigatoriedade do aprendizado do Latim, pertencem manifestamente à Resistência, não se resignam à limitação
impingida pelo sistema desumanizador do pragmatismo e utilitarismo.
 
A defesa da sobrevivência do ensino do latim vai além da defesa de seu caráter pragmático e utilitarista, mas se sua
sobrevivência depende de tais fatores, também podem ser apresentados:
A importância da língua dos Romanos em nossos cursos acadêmicos de Português e Línguas Estrangeiras – os
únicos onde atualmente se ensina latim na UFSC - pode ser abordada por dois aspectos, o de cultura geral e o
língüístico.
(1) Boa parte de nossos estudantes dirigem-se profissionalmente para o ensino da língua e literatura em que se
formaram. Estes professores de língua e literatura, talvez mais do que os de outras ciências, exercem um papel
fundamental na formação dos alunos, porque ao ensinar a própria língua ou as línguas estrangeiras eles
inevitavelmente ensinam também cultura, história, educação, etc., e repassam aos aprendizes valores sociais e
políticos. O materialismo histórico nos ensinou o quanto somos seres datados e assinalados com as marcas de
nosso tempo. Reproduzimos nosso meio naquilo que produzimos, nos inscrevemos naquilo que escrevemos… Daí
a importância da boa formação dos professores de Português e de Línguas Estrangeiras. Para transmitirmos nossos
valores culturais aos alunos precisamos primeiramente conhecê-los. De pouco adianta afirmarmos por exemplo que
a base cultural do Ocidente é greco-romano-judaica, se não conseguimos mostrar de que forma isso pode ser
observado e comprovado. Que sabemos nós da cultura grega, da romana e da judaica? Conhecer a si mesmo é
também conhecer as próprias raízes: o ensino do Latim é muito mais do que o conhecimento do sistema lingüístico
latino, embora por si só isso já seja bastante. Ensinar a língua latina é ensinar os valores sociais, culturais, políticos,
etc. dos que falaram essa língua, e perceber o legado que nos deixaram, e nos reconhecermos naquilo que somos.
Reitero: junto com o ensino da língua está o da história, da sociedade, da cultura, da literatura…
 
(2) Por outro lado, se nos detivéssemos a avaliar apenas lingüísticamente a importância da língua latina no ensino
da língua portuguesa e das línguas estrangeiras, veríamos como muitas vezes a língua latina serve de suporte para
o aprendizado sistematizado destas línguas, como a gramática latina pode ajudar a compreender as gramáticas
tradicionais, como os alunos podem enriquecer seu acervo vocabular e o conhecimento etimológico das palavras
portuguesas ou estrangeiras, muito mais: COMO APRENDEM A REFLETIR E A PENSAR ATRAVÉS DA ANÁLISE
DE CADA FRASE LATINA. E se tomamos a língua latina como uma língua estrangeira, podemos observar como os
alunos crescem a partir da experiência de confrontar as línguas entre si; algo semelhante ao que aconteceu entre os
Romanos quando, do confronto de sua língua com a grega, passaram a reconhecer as ‘propriedades’ de sua língua,
aquilo que a singularizava e lhe dava especificidades. O conhecimento do sistema lingüístico latino é para o
aprendizado do português e das línguas estrangeiras o mesmo que a cultura romana é para nosso auto-
conhecimento. Nossos estudantes devem ser formados com um conhecimento geral das ciências a que se dedicam
aprender! As línguas vernaculares do Ocidente não podem prescindir do Latim! É parte de sua história e formação!
 
Estamos vivendo um momento histórico, dizia anteriormente, no qual repensamos o currículo de ensino acadêmico
que formará nosso aluno ideal, nosso profissional de amanhã, que nos substituirá em nossas funções. Temos duas
opções: ou formamos um homem de cultura ou um homem técnico. Ou criamos uma universidade com valores
humanos ou nos igualamos aos cursos técnico-profissionalizantes que pululam por aí.
 
Diante desta visão pouco otimista que nos pode oferecer o ensino na Universidade brasileira, devo apresentar uma
pequena vitória local. O novo currículo que está sendo elaborado no Departamento de Língua e Literatura
Vernáculas da UFSC aprovou um aumento de carga horária para o ensino de Língua e Literatura Latinas: no
currículo atualmente vigente no LLV, temos 3 semestres de 45 horas cada para o ensino de Língua Latina, e 1
semestre de 45 horas para o de Literatura Latina. Passaremos a partir do próximo ano a três semestres de 72 horas
cada para o ensino de Língua, e dois semestres de 45 horas cada para o de Literatura Latina. A obrigatoriedade do
ensino do Latim em nosso currículo deve ser defendida como o é a das outras disciplinas obrigatórias, porque é
parte fundamental das ciências estudadas.
Estamos curiosos para conhecer a posição que assumirão nossos colegas do Departamento de Língua e Literatura
Estrangeiras na elaboração de seus currículos.
 
Se ainda imbuídos do espírito pragmático-utilitarista nos perguntássemos se o latim que se ensina aqui bastaria
para a formação de tradutores competentes nesta língua, eu responderia que a possibilidade latente existe. Nossos
alunos de graduação em Letras-Português atualmente – e mais ainda no futuro próximo – adquirem o conhecimento
básico necessário para continuarem sozinhos seus estudos da língua latina. Estamos começando a semear. O
terreno é árido, mas confiamos que algum fruto dará.
 
Os tradutores de latim no Brasil, acredito, em geral, continuarão a sair da meia dúzia de cursos universitários
existentes no país com graduação em Letras Clássicas. São nossa última esperança de conservação da língua de
Cícero – a Igreja Católica brasileira já não é mais uma guardiã diligente da língua latina. Embora a literatura de
língua latina se apresente hoje em dia com um número limitado e determinado de obras, dentro de um sistema
fechado e acabado por ser uma língua morta – no sentido de não estar em evolução e produção dentro de uma
sociedade viva –, este número limitado de obras ainda se mostra, em grande parte, desconhecido em nosso país
porque não foi traduzido. E quando reclamamos que uma determinada obra latina não foi traduzida ao português,
não pensamos muito em suas possíveis causas. É hora de deixarmos a postura de que apenas os outros são
responsáveis por nossas carências. Com relação ao Latim, depende apenas de nós querermos ou não.
 
* (Comunicação apresentada no IIº Simpósio do Grupo de Pesquisa Literatura Traduzida, CCE, UFSC, 2005)
  
Floripa, 28/04/05

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