Professional Documents
Culture Documents
da reconciliação
Animais que apreendem, os homens sentiram-se feridos ao
perceber, com a teoria da evolução, que não são produtos
transcendentais nem resultado de um desígnio divino
por Edgard de Assis Carvalho
Desde que o mundo passou a ser explicado pela ciência, a fronteira entre
humanos e não-humanos nunca foi suficientemente explicada. A princípio,
resolveu-se o impasse afirmando que a Natureza era constituída não apenas
por terra, água e ar, mas também por animais de toda ordem, aí incluídos os
primatas não humanos, ou seja, gorilas, orangotangos, gibões, chimpanzés
e bonobos.
Em fins do século XIX foi fácil colocá-los numa seqüência evolutiva linear
composta de primitividade, barbárie e civilização. Com a civilização
européia no comando do mundo, tudo aquilo que não se conformasse com
o padrão cultural dominante era simplesmente colocado na esfera inferior
da evolução social.
Sapiens ao quadrado
O que nos resta é admitir que somos naturais porque inscritos numa
complexa evolução biológica, e culturais porque capazes de elaborar e
acumular estratégias de sobrevivência e adaptação onde quer que nos
encontremos. Em resumo, somos 100% natureza e 100% cultura, ou,
melhor dizendo, seres “uniduais”, carregamos conosco uma trajetória
biológica milenar, ao mesmo tempo que somos portadores de um vasto
acervo cultural constitutivo da memória coletiva da espécie.
Considerados como os únicos seres vivos verdadeiramente racionais,
porque falamos, comunicamos, planejamos, calculamos e competimos,
amamos e odiamos, essas características acabaram por nos conferir uma
superioridade ímpar perante os demais seres vivos. É preciso entender,
porém, que em cada um de nós existe algo que escapa a essas
características normativas demasiado sistemáticas.
Sim, evoluímos como homens, mas essa condição não nos torna superiores
a nenhum outro homem. Não resta dúvida de que a flexibilidade mental e
comportamental são marcas da nossa evolução. Afinal de contas, conforme
Stephen Jay Gould (1941 - 2002), os humanos não são nada mais do que
animais que aprendem. Diante disso, é preciso estender o olhar para longe e
perceber que, sob a diversidade humana, existe um árduo processo sempre
apto a fornecer respostas semelhantes para os enigmas da vida e das
espécies.
---
Box:
---
Edgard de Assis Carvalho é professor titular de antropologia,
coordenador do núcleo de estudos da complexidade – Complexus
– e do programa de pós-graduação em ciências sociais da PUC de
São Paulo.
A falsa medida do homem. Stephen Jay Gould. Tradução de Valter Lellis Siqueira.
Martins Fontes, 1999.
Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. Felipe
Fernández-Armesto. Tradução de Rosaura Eichenberg. Companhia das Letras, 2007.
Par-delà nature ET culture. Phillippe Descola. Gallimard, 2005.
---
In:
HISTÓRIA Nº 7