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Lernss Q'@ rousoress 1 2 3, A ordem do diseurso Michel Foucault Sete ligdes sobre 0 ser Jacques Maritain Aristoteles no século XX Enrico Berti ‘As razies de Aristételes Enrico Berti MICHEL FOUCAULT A ORDEM DO DISCURSO AULA INAUGURAL No COLLEGE DE FRANCE, PRONUNCIADA EM 2 DE DEZEMBRO DE 1970 ‘Tradugio: Laura Fraga de Almeida Sampaio ‘Tuolo orignal andre du dacours, Legon inaugural a College de France pronance le 2 décembre 1970 (© Francine Fruchaud e Denys Foucault, Pais ‘Publicado na rang por Editions Gallia, Pars, 1971 aicto de texto: Marcos Jose Marconlo Indicago editorial Prot Dr Salma Tanmas Mucail Edges Loyola Rua 1622 n 347 Ipiranga 4216-000 Sao Paulo, SP. Caixa Postal 42.335 (04200.070 Sao Paulo, SP Bone (O++11) 6914-1822, Fax (O11) 6163-4275 Home page ¢ vendas: ww-loyola.com.br email: loyola@ibm.net ‘dos ot direitos reserodos, Nenhursa parte desta obra pore sor eprodusida ou tranamitida por qualquer forma lou quaiequer mos (eletrnico ou macnico, ncluindo fotocspiae gravegdo) ou arquivade em qualguer sistema fou banco de dador sem permissdo eseria da Rditore. ISBN: 85.15-01359-2 58 edigao: setembro de 1999 (© EDIGOES LOYOLA, Sto Paulo, Br il, 1996 Gxt me insmua sub epic mente no discurso que devo pro- nunciar hoje, € nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de to- mar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo comeco possivel. Gostaria de perceber que no mo- mento de falar uma voz sem nome me pre- cedia ha muito tempo: bastaria, entao, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alo- jasse, sem ser percebido, em seus intersti- ios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, sus- pensa. Nao haveria, portanto, comeco; ¢ em ‘Nota do Editor: Por motivo de horri, certas pas sagens foram encurtadas © modifcadae a leis, Ess psssgens foram aqul reproduzidas na integra, vez de ser aquele de quem parte 0 discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, ‘uma estreita lacuna, 0 ponto de seu desapa- recimento possive. Gostaria de ter atrés de mim (tendo tomado a palavra ha muito tempo, dupli- cando de antemio tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: “E preciso continuar, eu nao posso continuar, ¢ preciso continuar, € preciso pronunciar palavras enquanto as ha, € preciso dizé-las até que elas me en- contrem, até que me digam — estranho castigo, estranha falta, € preciso continuar, talvez ja tenha acontecido, talvez ja me te- nnham dito, talvez me tenham levado ao li- miar de minha historia, diante da porta que se abre Sobre minha historia, ew me surpre- enderia se ela se abrisse”. Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de nao ter de comecar, tum desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de con- siderar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrivel, talvez de maléfico. essa aspiragdo tio comum, a instituicao res- ponde de modo ironico; pois que torna os comeces solenes, cerca-os de um circulo de atengao ¢ de silencio, e lhes impoe formas ritualizadas, como para sinalizé-los a dis tancia O deseo diz: “Eu nao queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categorico e decisivo; gostaria que fosse a0 meu redor como uma transparéncia cal- ‘ma, profunda, indefinidamente aberta, em que 05 outros respondessem a minha ex- pectativa, e de onde as verdades se elevas- sem, uma a uma; eu no teria senao de me deixar levar, nela e por ela, como um des- tro¢o feliz”. E.a instituicao responde: “Voce nao tem por que temer comecar; estamos todos ai para The mostrar que 0 discurso estd na ordem das leis; que ha muito tempo se cuida de sua aparicao; que the foi prepa- rado um lugar que o honra mas o desarma; € que, se The ocorre ter algum poder, € de nos, $6 de nés, que ele the advem” Mas pode ser que essa instituicdo € esse desejo nao sejam outta coisa sendo duas ré- plicas opostas a uma mesma inquietacao inquietacéo diante do que é 0 discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietagao diante dessa existén- cia transitoria destinada a se apagar sem dii- vida, mas segundo uma duragto que nao nos pertence; inquietagao de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, po- deres e perigos que mal se imagina; inquie- tacio de supor lutas, vitérias, ferimentos, dominacoes, servidoes, através de tantas pa- lavras cujo uso ha tanto tempo reduzi as asperidades. Mas, 0 que ha, enfim, de tao perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus dis- cursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, estd 0 perigo? Eis a hipotese que gostaria de apresen- tar esta noite, para fixar 6 lugar — ou tal- vez 0 teatro muito provisério — do traba- Tho que faco: suponho que em toda socie- dade a produgao do discurso ¢ ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada € redistribuida por certo ntimero de proce- dimentos que tem por fun¢ao conjurar seus poderes ¢ perigos, dominar seu aconteci- mento aleatorio, esquivar sua pesada e te- rivel materialidade Em uma sociedade como a nossa, co- hecemos, € certo, procedimentos de exclu- sao. O mais evidente, 0 mais familiar tam- bem, ¢ a interdicao, Sabe-se bem que nao se temo direito de dizer tudo, que nao se pode falar de tudo em qualquer circunstancia, que qualquer um, enfim, nao pode falar de qual- quer coisa. Tabu do objeto, ritual da cir cunstancia, direito privilegiado ou exclusi- vo do sujeito que fala: temas at o jogo de tés tipos de interdigdes que se cruzam, se reforcam ou se compensam, formando uma grade complexa que nao cessa de se modi- ficar. Notaria apenas que, em nossos dias, as regides onde a grade € mais cerrada, onde 95 buracos negros se multiplicam, sto as regides da sexualidade e as da politica: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualida- de se desarma e a politica se pacifica, fosse tum dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temiveis poderes. Por mais que o discurso seja apa- rentemente bem pouca coisa, as interdicoes que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligagio com o desejo e com o poder. Nisto nao ha nada de espantoso, visto que 0 discurso — como a psicandlise nos mos- trou — nao € simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) 0 desejo; ¢, também, aquilo que € 0 objeto do desejo; e visto que — isto a historia nao cessa de nos ensinar — 0 discurso nao ¢ simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domi- naga, mas aquilo por que, pelo que se luta, © poder do qual nos queremos apoderar. Existe em nossa sociedad outro prin- cipio de exclusio: ndo mais a interdicao, mas uma separacao € uma tejeicio. Penso nna oposigao razao ¢ loucura. Desde a alta Idade Média, 0 louco ¢ aquele cujo discurso io pode circular como dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula € nfo seja acolhida, nao tendo verdade 10 nem importancia, nao podendo testemunhar na justiga, nao podendo autenticar um ato ou um contrate, nao podendo nem mesmo, no sacrificio da missa, permitir a transubs- tanciacio e fazer do pao um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se Ihe atribua, por oposicao @ todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, 0 de pronunciar 0 futuro, 0 de cenxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros nao pode perceber. E curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco nao era ouvida, ‘ou entdo, se era ouvida, era escutada como ‘uma palavra de verdade. Ou cata no nada = rejeitada tao logo proferida; ow entao nela se decifrava uma razao ingémua ou astuciosa, uuma razo mais razodvel do que a das pes- soas razoaveis. De qualquer modo, excluida cou secretamente investda pela razdo, no sen- tido restrito, ela nao existia, Era através de stas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separacio; mas nao etam nunca recolhidas nem escutadas. Jamais, antes do fim do sécu- lo XVIII, um medico teve a idéia de saber 0 u que era dito (como era dito, por que era dito) nessa palavra que, contudo, fazia a diferenca. Todo este imenso discurso do louco retornava 40 ruido; a palavra s6 the era dada simbolica- mente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e reconciliado, visto que represen- tava ai o papel de verdade mascarada, Dir-se-d que, hoje, tudo isso acabou ou esté em vias de desaparecer; que a palavra do louco nao esté mais do outro lado da separacao; que ela nao é mais nula € nao- -aceita; que, a0 contrario, ela nos leva a es preita; que nds ai buscamos um sentido, ou 0 esbogo ou as ruinas de uma obra; ¢ que chegamos a surpreendé-la, essa palavra do louco, naquilo que nés mesmos articula- ‘mos, no distirbio minsculo por onde aqui- lo que dizemos nos escapa. Mas tanta aten- 0 nao prova que a velha separagio nao ‘yoga mais; basta pensar em todo o aparato de saber mediante o qual deciframos essa palavra; basta pensar em toda a rede de instituigdes que permite a alguém — médi- o, psicanalista — escutar essa palavra e que permite ao mesmo tempo ao paciente vir R trazer, ou desesperadamente reter, suas po- bres palavras; basta pensar em tudo isto para supor que a separacao, longe de estar apa- gada, se exerce de outro modo, segundo linhas distintas, por meio de novas institui- es € com efeitos que nao sto de modo algum os mesmos. E mesmo que 0 papel do medico no fosse senao prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na ma- nutengio da cesura que a escuta se exerce. Escuta de um discurso que € investido pelo desejo, € que se cré — para sua maior exaltagao ou maior anguistia — carregado de terriveis poderes. Se € necessario o silen- cio da razao para. curar os monstros, basta que 0 silencio esteja alerta, € eis que a se- paragao permanece. Talvez seja arriscado considerar a opo- sigdo do verdadeiro € do falso como um terceiro sistema de exclusio, ao lado daque- les de que acabo de falar. Como se poderia razoavelmente comparar a forga da verdade com separagées como aquelas, separagdes que, de saida, sto arbitrarias, ou que, a0 menos, se organizam em torno de contingéncias his- B toricas; que nao sao apenas modificaveis, mas esto em perpétuo deslocamento; que sio sustentadas por todo um sistema de institui- es que as impdem e reconduzem; enfim, ue ndo se exercem sem pressio, nem sem 20 ‘menos uma parte de violencia. Certamente, se nos situamos no nivel de uma proposigao, no interior de um dis- curso, a separacio entre 0 verdadeito € 0 falso nao € nem arbitraria, nem modificavel, nem institucional, nem violenta. Mas se ros situamos em outra escala, se levanta- mos a questio de saber qual foi, qual € constantemente, através de nossos discut- sos, essa vontade de verdade que atravessout tantos séculos de nossa historia,-ow qual é, em sua forma muito geral, 0 tipo de sepa- ragdo que rege nossa vontade de saber, en- Wo € talvez algo como um sistema de ex: clusto (sistema histérico, institucionalmen- te constrangedor) que vemos desenhar-se. Separagao historicamente constituida, com certeza. Porque, ainda nos poetas gre- gos do século VI, 0 discurso verdadeiro — no sentido forte e valorizado do termo — “4 o discurso verdadeiro pelo qual se tinha res- peito € terror, aquele a0 qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era 0 dis- curso pronunciado por quem de direito ¢ conforme o ritual requerido; era 0 discurso que pronunciava a justiga e atribuia a cada qual sua parte; era 0 discurso que, profeti- zando o futuro, ndo somente anunciava 0 que ia se passar, mas contributa para a sua realizagio, suscitava a adesto dos homens € se tramava assim com o destino. Ora, eis, que um século mais tarde, a verdade a mais, clevada ja nao residia mais no que era 0 discurso, ou no que ele fazia, mas residia rno que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, efi- caz € justo, de enunciagdo, para o proprio ‘enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relagdo a sua referencia, Entre Hesiodo e Plato uma certa divisio se esta- beleceu, separando 0 discurso verdadeiro € © discur8o falso; separagao nova visto que, doravante, 0 discurso verdadeito nao ¢ mais © discurso precioso € desejavel, visto que no € mais 0 discurso ligado a0 exercicio do poder. O sofista € enxotado. 15 Essa divisto historica dew sem duvida sua forma geral @ nossa vontade de saber. Mas nao cessou, contudo, de se deslocar: as ‘grandes mutagdes cientificas podem talvez ser lidas, as vezes, como consequéncias de uma descoberta, mas podem tambem ser lidas como a aparicdo de novas formas na vontade de verdade. Hé, sem duvida, uma vontade de verdade no século XIX que nao coincide nem pelas formas que poe em jogo, nem pelos dominios de objeto aos quais se dirige, nem pelas técnicas sobre as quais se pola, com a vontade de saber que caracte- riza a cultura clissica, Voltemos um pouco atras: por volta do século XVI ¢ do século XVII (na Inglaterra sobretudo), apareceu tuma vontade de saber que, antecipando-se a seus contetidos atuais, desenhava planos de objetos possiveis, observaveis, mensurd- veis, classificéveis; uma vontade de saber que impunha a0 sujeito cognoscente (e de certa forma antes de qualquer experiencia) certa_posicao, certo olhar € certa funcdo (ver, em vez de ler, verificar, em vez de co- mentar); uma vontade de saber que pres- crevia (¢ de um modo mais geral do que 16 qualquer instrumento determinado) 0 nivel téenico do qual deveriam investit-se 0s co- inhecimentos para serem verificaveis e uteis. Tudo se passa como se, a partir da grande divisio platonica, a vontade de verdade ti- vesse sua propria historia, que ndo é a das verdades que constrangem: historia dos pla- nos de objetos a conhecer, historia das fun- es e posigdes do sujeito cognoscente, his- toria dos investimentos materiais, técnicos, instrumentais do conhecimento, (Ora, essa vontade de verdade, como os ‘outros sistemas de exclusio, apoia-se sobre lum suporte institucional: € a0 mesmo tem- po reforcada € reconduzida por todo um compacto conjunto de priticas como a pe- dagogia, € claro, como o sistema dos livros, da edigdo, das biblioteca, como as socieda- des de sabios outrora, 05 laboratérios hoje. Mas ela € wmbém reconduzida, mais pro- fundamente sem duvida, pelo modo como © saber ¢ aplicado em uma sociedade, como € valotizado, distribuido, repartido e de certo modo atribuido, Recordemos aqui, apenas a Uitulo simbolico, o velho principio. grego wv ‘que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democraticas, pois ela ensina 2s relagdes de igualdade, mas somente a geome- tria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporgoes na desigualdade Enfim, creio que essa vontade de ver- dade assim apoiada sobre um suporte ¢ uma istribuigao institucional tende a exercer sobre 0s outros discursos — estou sempre falando de nossa sociedade — uma especie de pressao ¢ como que um poder de coer- a0. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante sé- ‘culos, no natural, no verossimil, na sinceri- dade, na ciencia também — em suma, no discurso verdadeiro. Penso, igualmente, na ‘maneira como as priticas econdmicas, co- dificadas como preceitos ou receitas, even- twalmente como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentarse, racionalizar- se e justificarse a partir de uma teoria das riquezas ¢ da producto; penso ainda na maneira como um conjunto tdo prescritivo quanto o sistema penal procurou seus su- portes ou sua justificagio, primeiro, € certo, 18 em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociologico, psicologico, médico, psiquidtrico: como se a propria palavra da lei nao pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, sendo por um discurso de verdade. Dos és grandes sistemas de exclusao que atingem o discurso, a palavra proibida, segregacao da loucura e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais lon- gamente. E que, ha séculos, os primeiros 1ndo cessaram de orientar-se em sua direcao; € que, cada vez mais, 0 terceiro procura reto- ma-los, por sua propria conta, para, ao mes- ‘mo tempo, modifici-los e fundamenté-los; € que, se 05 dois primeiros nao cessam de se tomar mais frageis, mais incertos na medida em que sio agora atravessados pela vontade de verdade, esta, em contrapartida, ndo cessa de se reforcar, de se tornar mais, profunda e mais incontornavel. E, contudo, € dela sem duivida que ‘menos se fala, Como se para nés a vontade de verdade ¢ suas peripécias fossem masca- radas pela propria verdade em seu desenro- Ww lar necessério. E a razao disso ¢,talvez, esta: € que se 0 discurso verdadeiro nao € mais, com efeito, desde os gregos, aquele que res- ponde ao desejo ou aquele que exerce 0 poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, 0 que esta em jogo, sendo 0 desejo € 0 poder? O dis- ‘curso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo € libera do poder, ndo pode reconhecer a vontade de verdade que 0 atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impde a nds ha bastante tempo, € tal que a verdade que ela quer nao pode deixar de mascaré-la Assim, 36 aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, for- ‘ea doce ¢ insidiosamente universal. E igno- ramos, em contrapartida, a vontade de ver~ dade, como prodigiosa maquinaria destina- da a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa historia, procuraram con- tornar essa vontade de verdade € recolocé- sla em questao contra a verdade, [4 justa- mente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdicao € definir a loucura; 20 todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora nos servir de sinais, alvos sem duivida, para o trabalho de todo lia Existem, evidentemente, muitos outros procedimentos de controle e de delimitagao do discurso. Aqueles de que falei até agora se exercem de certo modo do exterior; fun- cionam como sistemas de exclusto; concer- rnem, sem daivida, a parte do discurso que Oe em jogo o poder e o deseo. Pode'se, creio eu, isolar outro grupo de procedimentos. Procedimentos internos, visto que sdo os discursos eles mesmos que exercem seu proprio controle; procedimen- tos que funcionam, sobretudo, a titulo de principios de classificacao, de ordenagao, de istribuicao, como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensio do discurso: a do acontecimento ¢ do acaso. Em primeiro lugar, 0 comentario. Su- ponho, mas sem ter muita certeza, que nao a hha sociedade onde nao existam narrativas ‘maiores que se contam, se repetem e se fazem variar, formulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram, conforme circunstancias bem determinadas; coisas ditas uma vez € que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como lum segredo ou uma riqueza, Em suma, pode-se supor que hi, muito regularmente ras sociedades, uma espécie de desnivela- mento entre os discurs0s: 05 discursos que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, que passam com o ato mesmo que 0s promunciou; e os discursos que estao na origem de certo mimero de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, inde- finidamente, para além de sua formulacao, sdo ditos, permanecem ditos ¢ estao ainda por dizer. Nos os conhecemos em nosso sistema de cultura: sio 05 textos religiosos ou juridicos, sao também esses textos cu- riosos, quando se considera 0 seu estatuto, € que chamamos de “literarios”; em certa medida textos cientificos. 2 E certo que esse deslocamento nao € estavel, nem constante, nem absoluto. Nao ha, de um lado, a categoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou ctiadores; ¢, de outro, a massa daqueles que Fepetem, glosam € comentam, Muitos tex- tos maiores se confundem e desaparecem, €, por vezes, comentarios vem tomar o pri- ‘meiro lugar. Mas embora seus pontos de aplicacao possam mudar, a funca0 perma- nece; € 0 principio de um deslocamento encontra-se sem cessar reposto em jogo. O desaparecimento radical desse desnivelamen- to nao pode nunca ser senio um jogo, uto- pia ou angustia. Jogo, a moda de Borges, de Jum comentario que nao sera outra coisa senao a reaparicao, palavra por palavra (mas desta vez solene ¢ esperada), daquilo que le comenta; jogo, ainda, de uma critica que falaria at€ o infinito de uma obra que nao existe. Sonho litico de um discurso que renasce em cada um de seus pontos, abso- utamente novo e inocente, e que reaparece sem cesar, em todo frescor, a partir das coisas, dos semtimentos ou dos pensamen- tos. Angtistia daquele doente de Janet para B quem 0 menor enunciado era como “pala- va de Evangelho”, encerrando inesgotaveis tesouros de sentido e merecendo ser indefi- nnidamente relancado, recomecado, comen- tado. “Quando eu penso, dizia ele logo que lia ou escutava, quando penso nesta frase que vai partir para a eternidade e que eu talvez ainda nao tenha compreendido ple- rnamente.” Mas quem nao ve que se trata af, cada vvez, de anular um dos termos da relagao, € nao de suprimir a relagio ela mesma? Rela- lo que nao cessa de se modificar através do tempo; relagdo que toma em uma- €poca dada formas multiplas € divergentes; a exegese juridica € muito diferente (¢ isto ha bastante tempo) do comentatio religioso; ‘uma mesma e tinica obra literatia pode dar lugar, simultaneamente, a tipos de discurso bem distintos: a Odisséia como texto pri- meiro ¢ repetida, na mesma época, na tra- dugto de Bérard, em infindaveis explicacdes de texto, no Ulysses de Joyce. Por ora, gostaria de me limitar a indi- car que, no que se chama globalmente um comentatio, 0 desnivel entre texto primeiro » € texto segundo desempenha dois papeis que sao solidarios. Por um lado permite cons- twuir (¢ indefinidamente) novos discursos: © fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanéncia, seu estatuto de discurso sem- pre teatualizavel, o sentido multiplo ou oculto de que passa por ser detentor, a reticencia e a riqueza essenciais que Ihe atribusmes, tudo isso funda uma possibil dade aberta de falar. Mas, por outro lado, 0 comentario nao tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, sendo 0 de dizer enfim 0 que estava articulado silencio- samente no texto primeiro, Deve, conforme uum paradoxo que ele desloca sempre, mas a0 qual nao escapa nunca, dizer pela pri- meira vez aquilo que, entretanto, j4 havia sido dito e repetir mcansavelmente aquilo que, no entanto, nao havia jamais sido dito. A repetigao indefinida dos comentarios é twabalhada do interior pelo sonho de uma repeticao disfarcada: em sew horizonte nao ha talvez nada além daquilo que ja havia em seu ponto de partida, a simples recita- fo. O comentario conjura o acaso do discut= so fazendo-Ihe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a con- digdo de que o texto. mesmo seja dito € de certo modo realizado. A multiplicidade aber- ta, 0 acaso sto transferidos, pelo principio do comentario, daquilo que arriscaria de ser dito, para o ntimero, a forma, a mascara, a circunstancia da repetigo, O novo nao esta no que é dito, mas no acontecimento de sua volta Creio que existe outro prinetpio de rarefagao de um discurso que , até certo ponto, complementar ao primeiro. Trata-se do autor. O autor, nao entendido, € claro, como 0 individuo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas 0 autor como principio de agrupamento do discurso, como unidade € origem de suas significacdes, como foco de sua coeréncia. Esse principio ‘nao voga em toda parte nem de modo cons- tante: existem, ao nosso redor, muitos dis cursos que circulam, sem receber seu senti- do ou sua eficécia de um autor a0 qual se- riam atributdos: conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que pre sam de signatarios mas nao de autor, recei- 26 tas técnicas transmitidas no anonimato. Mas nos dominios em que a atribuigio a um autor € de regra— literatura, filosofia, cien- cia — ve-se bem que ela nao desempenha sempre 0 mesmo papel; na ordem do dis- ‘curso cientifico, a atribuigao a um autor era, rna Idade Media, indispensdvel, pois era um indicador de verdade. Uma proposicao era considerada como recebendo de seu autor seu valor cientifico, Desde o século XVII, esta fungao nao cessou de se enfraquecer, no discurso cientifico: 0 autor s6 funciona para dar um nome a um teorema, um efei- to, um exemplo, uma sindrome. Em con- rapartida, na ordem do discurso literario, ¢ a partir da mesma €poca, a fungao do autor indo cessou de se reforcar: todas as narrati- vvas, todos 0s poemas, todos os dramas ou comédias que se deixava circular na Idade Media no anonimato a0 menos relativo, eis que, agora, se Ihes pergunta (e exigem que respondam) de onde vém, quem os escre- vveu; pede-se que 0 autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome; pede- -se-Ihe que revele, ou a0 menos sustente, © 27 sentido oculto que os atravessa; pede-se-Ihe que os articule com sua vida pessoal e suas experiéncias vividas, com a historia real que os viu nascer. O autor é aquele que da a inquietante linguagem da ficcao suas uni- dades, seus nos de coeréncia, sua insergto no real Bem sei que me vio dizer: “Mas voct fala aqui do autor tal como a critica 0 rein- venta apés 0 fato consumado, quando so- breveio a morte e nao resta sendo uma massa confusa de escritos ininteligivets; é preciso, centao, repor um pouco de ordem em tudo isso; imaginar um projeto, uma coeréncia, uma tematica que se pede a consciéncia ou a vida de um autor, na verdade talvez um pouco ficticio. Mas isso nao impede que ele tenha existido, esse autor real, esse homem que irrompe em meio a todas as palavras usadas, trazendo nelas seu genio ou sua desordem”. Seria absurdo negar, ¢ claro, a existén- cia do individuo que escreve e inventa. Mas penso que — ao menos desde uma certa €poca — o individuo que se poe a escrever 28 uum texto no horizonte do qual paira uma obra possivel retoma por sua conta a fun- cao do autor: aquilo que ele escreve ¢ 0 que nao escreve, aquilo que desenha, mesmo a titulo de rascunho provisério, como esboco da obra, € 0 que deixa, vai cair como con- versas cotidianas. Todo este jogo de dife- rencas € prescrito pela fangao do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez, a modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicional que se faz de um autor, seré a partir de uma nova posicto do autor que recortar, em tudo o que poderia ter dito, em tudo 0 que diz todos os dias, a todo momento, o perfil ainda trémulo de sua obra, © comentario limitava 0 acaso do dis: ccurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repeticao e do mesmo, O princi pio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu. Seria preciso reconhecer também no que se denomina, nao as ciéncias, mas as “disci- plinas", outro prinefpio de limitagao. Prin- 29 cipio este também relativo € mével, Prinet- pio que permite construir, mas conforme tum jogo restito. A organizacto das disciplinas se opde tanto ao principio do comentario como a0 do autor. Ao do autor, visto que uma di plina se define por um dominio de objetos, tum conjunto de métodos, um corpus de proposicdes consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definigdes, de técnicas de instrumentos: tudo isto constitu uma espécie de sistema andnimo a disposicdo de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor. Mas 0 princfpio da disciplina se opde também 20 do comentério: em uma disciplina, diferente- mente do comentario, 0 que € suposto no pponto de partida, nao € um sentido que pre- ‘isa ser redescoberto, nem uma identidade que deve ser repetida; € aquilo que € requerido para a construcao de novos enunciados. Para que haja disciplina € preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular in- definidamente, proposigies novas. 30 Mas ha mais; e ht mais, sem diivida, para que haja menos: uma disciplina nao é a soma de tudo 0 que pode ser dito de verdadeito sobre alguma coisa; nao é nem ‘mesmo 0 conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propésito de um mesmo dado, em virtude de um principio de coeréncia ou de sistematicidade, A medicina nao € consti- tuida de tudo 0 que se pode dizer de verda- deiro sobre a doenca; a botanica nao pode ser definida pela soma de todas as verdades que concemem as plantas. Ha, para isso, duas razdes: primeiro, a botanica ou a me- dicina, como qualquer outra disciplina, sto feitas tanto de erros como de verdades, er- 10s que ndo sto res{duos ou corpos estra- ‘hos, mas que tém fungées positivas, uma cficacia historica, um papel muitas vezes indissociavel daquele das verdades. Mas, além disso, para que uma proposicao per- tenca a botdnica ou a patologia, & preciso que ela responda a condigdes, em um sen- tido mais estritas e mais complexas, do que a pura e simples verdade: em todo caso, a 31 condigdes diferentes. Ela precisa dirigir-se a tum plano de objetos determinado: a partir do fim do século XVII, por exemplo, para que uma proposigao fosse “botanica” era preciso que ela dissesse respeito a estrutura Visivel da planta, ao sistema de suas seme- Ihancas proximas ou longinquas ou a mecd- nica de seus fluidos (e essa proposicao nao podia mais conservar, como ainda era 0 caso no século XVI, seus valores simbolicos, ou © conjunto das virtudes ou propriedades que Ihe eram atribuidas na antigaidade). Mas, sem pertencer a uma disciplina, uma pro- posicao deve utilizar instrumentos concei- tuais ou técnicas de um tipo bem definido; a partir do século XIX, uma proposigao nao ‘era mais médica, ela caia “fora da medici- na” e adquiria valor de fantasma individual ou de crendice popular se pusesse em jogo nogdes a uma s6 vez metaféricas, qualitati- vvas e substanciais (como as de engasgo, de liquidos esquentados ou de sélidos resseca- dos); ela podia e devia recorrer, em contra- partida, a nogdes to igualmente metafori- cas, mas construidas sobre outro modelo, funcional e fisiologico (era a irritacao, a 32 inflamagio ou a degenerescéncia dos teci- dos), Ha mais ainda: para pertencer a uma disciplina uma proposicao deve poder ins- crever-se em certo horizonte te6rico: basta lembrat que a busca da lingua primitiva, tema perfeitamente aceito até século XVIII, cra, na segunda metade do século XIX, su- ficiente para precipitar qualquer discurso, ndo digo no erro, mas na quimera e na divagacao, na pura e simples monstruosida- de linguistica, No interior de seus limites, cada disci- plina reconhece proposigdes verdadeiras € falsas; mas ela repele, para fora de suas ‘margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciéncia ¢ mais e menos povoado do que se cré: certamente, ha a experiéncia imediata, os temas imaginarios que carregam ¢ reconduzem sem cessar cren- ‘eas sem memoria; mas, talvez, nao haja erros em sentido estrito, porque 0 erro so pode surgir e ser decidido no interior de uma pratica definida; em contrapartida, rondam ‘monstros cuja forma muda com a historia do saber. Em resumo, uma proposicao deve 3B preencher exigencias complexas € pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como divia M. Canguilhem, *no verdadeiro” Muitas vezes se perguntou como os botanicos ou os bidlogos do século XIX puderam nao ver que 0 que Mendel dizia era verdade, Acontece que Mendel falava de objetos, empregava métodos, situava-se num horizonte te6rico estranhos a biologia de sua epoca, Sem duivida Naudin, antes dele, sustentara a tese de que os tracos heredita- rios eram descontinuos; entretanto, embora esse principio fosse novo ou estranho, po- dia fazer parte — a0 menos a titulo de ‘enigma — do discurso biologico. Mendel, entretanto, constitui o traco hereditario como objeto bioldgico absolutamente novo, ‘gracas a uma filtragem que jamais havia sido utilizada até entdo: ele 0 destaca da especie € tambem do sexo que 0 transite; € 0 dominio onde o observa ¢ a série indefini- damente aberta das geracdes na qual 0 tra- ‘co hereditirio aparece segundo regularida- 34 des estatisticas. Novo objeto que pede no- vos instrumentos conceituais € novos fun- damentos tebricos. Mendel dizia a verdade, ‘mas nao estava “no verdadeiro” do discurso biologico de sua época: nao era segundo tais regras que se constitufam objetos € conceitos biolégicos; foi preciso toda uma mudanga de escala, 0 desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia para que Mendel centrasse “no verdadeiro” © suas proposigées aparecessem, entio, (em boa parte) exatas. Mendel era um monstto verdadeiro, 0 que fazia com que a cigncia nio pudesse falar nele; enquanto Schleiden, por exemplo, uns trinta anos antes, negando, em pleno século XIX, a sexualidade vegetal, mas conforme as regras do discurso biolégico, nao formu- lava sendo um erro disciplinado. E sempre possivel dizer 0 verdadeiro no espago de uma exterioridade selvagem; ‘mas. nio nos encontramos no verdadeiro senao obedecendo as regras de uma “polt- ia” discursiva que devemos reativar em cada sum de noss0s discursos, 35 ‘A disciplina ¢ um principio de controle da produgao do discurso. Ela the fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizacao permanente das regras. ‘Tem-se o habito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comen- trios, no desenvolvimento de uma discipli- na, como que recursos infinitos para a cria- ‘20 dos discursos. Pode ser, mas nao deixam de ser principios de coergto; e € provavel que nao se possa explicar seu papel positi- vvo € multiplicador, se nao se levar em con- sideragao sua funcao restritiva e coercitiva Creio que existe um terceiro grupo de procedimentos que permitem 0 controle dos discursos. Desta vez, nao se trata de domi- nar os poderes que eles tém, nem de conju- rar os acasos de sua aparicao; trata-se de determinar as condigdes de sew funciona- mento, de impor aos individuos que os pronunciam certo ntimero de regras ¢ assim 36 de nao permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefaco, desta vez, dos su- Jeitos que falam; ninguém entraré na ordem do discurso se nao satisfizer a certas exi- géncias ou se nao for, de inicio, qualificado para fazé-lo, Mais precisamente: nem todas as regides do discurso so igualmente aber- tas € penetraveis; algumas sao altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrigao pré- via, a disposicao de cada sujeito que fala Gostaria de recordar, sobre este tema, uma anedota tio bela que, se teme, seja verdadeira, Ela reduz a uma s6 figura todas as coergdes do discurso: as que limitam seus poderes, as que dominam suas aparicdes aleatérias, as que selecionam os sujeitos que falam. No inicio do século XVII, 0 xogum ouvira dizer que a superioridade dos euro- pes — em termos de navegacio, coméicio, politica, arte militar — devia-se a seus co: mhecimentos de matematica. Desejou apo- derar-se de saber tio precioso. Como The hhaviam falado de um marinheiro ingles que 37 possuia o segredo desses discursos maravi- Ihosos, ele o fez vir a seu palacio € af 0 reteve. A s6s com ele, tomou ligdes. Apren- dew a matematica. De fato, manteve 0 po- der e teve uma longa velhice. Foi no século XIX que houve matematicos japoneses. Mas a anedota nao termina ai: tem sua versio européia, A historia conta, com efeito, que aquele marinheiro inglés, Will Adams, fora uum autodidata: um carpinteiro que, por ter trabalhado em um estaleiro naval, aprende- ra a geometria, Deve-se ver nesta narrativa a expressio de um dos grandes mitos da cultura européia? Ao saber monopolizado € secreto da tirania oriental, a Europa oporia ‘a comunicacao universal do conhecimento, ‘a toca indefinida e livre dos discursos. Ora, € certo que este tema nao resiste ao exame. A troca e a comunicagao sto fi- guras positivas que atuam no interior de sistemas complexos de restricdo; € sem duvida nao poderiam funcionar sem estes. A forma mais superficial e mais vistvel des- ses sistemas de restricao € constituida pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; 38 © ritual define @ qualificagao que deve possuir os individuos que falam (e que, no Jogo de um didlogo, da interrogacao, da recitagao, devem ocupar determinada posi- ‘cao e formular determinado tipo de enun- ciados); define os gestos, os comportamen- tos, as circunstancias, ¢ todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficacia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coergio. Os discursos religiosos, judiciarios, terapeuticos e, em parte também, politicos indo podem ser dissociados dessa pratica de tum ritual que determina para os sujeitos que falam, a0 mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos. Com forma de funcionar parcialmente distinta ha as “sociedades de discurso”, cuja funcao € conservar ou produzir discursos, mas para fazé-los circular em um espaco fechado, distribui-los somente segundo re- ‘gras estritas, sem que seus detentores sejam. despossuidos por essa distribuigao, Um desses modelos arcaicos nos € dado pelos 30 ‘grupos de rapsodos que possufam 0 conhe- cimento dos poemas a recitar ou, eventual- mente, a fazer variar ¢ a transformar; mas esse conhecimento, embora tivesse por fi- nalidade uma recitacao de carater ritual, era protegido, defendido ¢ conservado em um grupo determinado, pelos exercicios de meméria, muitas vezes bem complexes, que implicava; sua aprendizagem fazia estar 20 ‘mesmo tempo em um grupo € em um se~ gredo que a recitagao manifestava, mas nao divulgava; entre a palavra ea escuta os papeis nao podiam ser trocadbos. E certo que nao mais existem tais “so- ciedades de discurso”, com esse jogo ambi- ‘guo de segredo e de divulgacto. Mas que ninguem se deixe enganar, mesmo na oF dem do discurso verdadeiro, mesmo na or- dem do discurso publicado e livre de qual- quer ritual, se exercem ainda formas de apropriagao de segredo ¢ de nao-permuta- bilidade. E bem posstvel que 0 ato de escre- ver tal como esta hoje institucionalizado no livro, no sistema de edigdo € no persona- gem do escritor, tenha lugar em uma “so- 40 ciedade de discurso” difusa, talvez, mas certamente coercitiva. A diferenca do escri- tor, sem cessar oposta por ele mesmo a ati- vidade de qualquer outro sujeito que fala ou escreve, 0 carater intransitivo que em- presta a seu discurso, a singularidade fun- damental que atribui ha muito tempo a “escritura”, a dissimetria afirmada entre @ “eriagao” e qualquer outra pratica do siste- ‘ma linguistico, tudo isto manifesta na for- mulagio (e tende, aids, a reconduzit no jogo das praticas) a existéncia de certa “socieda- de do discurso”. Mas existem ainda muitas ‘outras que funcionam de outra maneira, conforme outro regime de exclusividade € de divulgagao: lembremos 0 segredo técnico ou cientifico, as formas de difusto e de circu Tagao do discurso médico, os que se apro- priam do discurso econdmico ou politic. A primeira vista, as “doutrinas” (reli- giosas, politicas, filosoficas) constituem 0 inverso de uma “sociedade de discurs0” nesta, 0 niimero dos individuos que fala- vam, mesmo se nao fosse fixado, tendia a ser limitado; ¢ so entre eles 0 discurso po: 4 dia circular e ser transmitido. A doutrina, a0 contraio, tende a difundirse; e € pela partilha de um sé e mesmo conjunto de discursos. que individuos, t20 numerosos quanto se queira imaginar, definem sua pertenga reciproca. Aparentemente, a tinica condigdo requerida ¢ 0 reconhecimento das mesmas verdades e a aceitacao de certa te- gra — mais ou menos flexivel — de confor- midade com os discursos validados; se fos- sem apenas isto, as doutrinas nao seriam tio diferentes das disciplinas cientificas, € 0 controle discursivo trataria somente da for ma ou do contetido do enunciado, nao do sujeito que fala, Ora, a pertenca doutrinaria questiona ao mesmo tempo o enunciado € 6 sujeito que fala, ¢ um através do outro, Questiona o sujeito que fala através e a partir do enunciado, como provam os procedimen- tos de exclusio ¢ 05 mecanismos de reje ‘¢20 que entram em jogo quando um sujeito que fala formula um ou varios enunciados inassimilaveis; a heresia e a ortodoxia nao derivam de um exagero fandtico dos meca~ rnismos doutrinarios, elas Ihes pertencem fundamentalmente. Mas, inversamente, a 2 doutrina questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em que a doutrina vale sempre como o sinal, 4 ‘manifestacao e 0 instrumento de uma per- tenga prévia — pertenga de classe, de status social ou de raca, de nacionalidade ou de interesse, de Iuta, de revolta, de resistencia ou de aceitacao. A doutrina liga os indivi- duos a certos tipos de enunciacao e thes profbe, consequentemente, todos 0s outros, mas ela se serve, em contrapartida, de cer- tos tipos de enunciago para ligar indivi- duos entre si e diferencié-los, por isso mes- mo, de todos os outros. A doutrina realize ‘uma dupla sujeicio: dos sujeitos que falam 0s discursos € dos discursos a0 grupo, a0 ‘menos virtual, dos individuos que falam. Enfim, em escala muito mais ampla, € preciso reconhecer grandes planos no que poderiamos denominar a apropriacao social dos discursos, Sabe-se que a educacio, em- bora seja, de diteito, o instrumento gracas a0 qual todo individuo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribui- 8 co, no que permite € no que impede, as linhas que estao marcadas pela distancia, pelas oposicdes ¢ lutas sociais. Todo siste- rma de educagao € uma maneira politica de manter ou de modificar a apropriacdo dos discursos, com os saberes ¢ 08 poderes que eles trazem consigo. Bem sei que € muito abstrato separar, como acabo de fazer, os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos dou- trindrios ¢ as apropriagdes sociais. A maior parte do tempo, eles se ligam uns 20s ou- tros e constituem espécies de grandes edifi- cios que garantem a distribuigao dos sujei- tos que falam nos diferentes tipos de dis- curso € a apropriagio dos discursos por certas categorias de sujeitos. Digamos, em uma palavra, que sto esses 05 grandes pro- cedimentos de sujeicdo do discurso. O que € afinal um sistema de ensino senao uma ritualizagio da palavra; sendo uma qualifi cagio € uma fixagdo dos papéis para os sujeitos que falam; senao a constituicio de ‘um grupo doutrinario ao menos difuso; endo uma distribuigao e uma apropriacao 4 do discurso com seus poderes e seus sabe- res? Que € uma “escritura” (a dos “escrito- res") sendo um sistema semelhante de su- jeigao, que toma formas um pouco diferen- tes, mas cujos grandes planos so andlogos? Nao constituiriam 0 sistema judiciario, 0 sistema institucional da medicina, eles tam- bem, sob certos aspectos, ao menos, tais sistemas de sujeicto do discurso? Eu me pergunto se certo nimero de temas da filosofia nao vieram responder a cesses jogos de limitacdes e de exclusbes e, talvez também, reforgé-los. Responder thes, em primero lugar, pro- pondo uma verdade ideal como let do dis- curso € uma racionalidade imanente como Principio de seu desenvolvimento, recondu- zindo também uma ética do conhecimento que 6 promete a verdade ao proprio desejo da verdade e somente a0 poder de pensé-la, 6 Reforgé-los, em seguida, por uma de- negacdo que recai desta vez sobre a realida- de especifica do discurso em geral Desde que foram excluidos os jogos e © comércio dos sofistas, desde que seus paradoxos foram amordacados, com maior ‘ou menor seguranga, parece que 0 pensa- ‘mento ocidental tomou cuidado para que 0 iscurso ocupasse 0 menor lugar possivel entre o pensamento e a palavra; parece que tomou cuidado para que o discurso apare- ‘esse apenas como um certo aporte entre pensar ¢ falar; seria um pensamento reves- tido de seus signos e tornado visfvel pelas palavras, ou, inversamente, seriam as estru- turas mesmas da lingua postas em jogo ¢ produzindo um efeito de sentido, Esta antiquissima elisao da realidade do discurso no pensamento filos6fico tomou muitas formas no decorrer da historia. Nos a reencontramos bem recentemente sob a for- mma de varios temas que nos sto familiares. Seria possivel que o tema do sujeito fundante permitisse elidir a realidade do 46 discurso, O sujeito fundante, com efeto, esta encarregado de animar diretamente, com suas intencoes, as formas vazias da lingua; € ele que, atravessando a espessura ou a inéreia das coisas vazias, reapreende, na in- tuicdo, 0 sentido que ai se encontra deposi- tado; € ele igualmente que, para além do tempo, funda horizontes de significagdes que a historia nao terd senao de explicitar em seguida, ¢ onde as proposicdes, as ciéncias, 0s conjuntos dedutivos encontrarao, afinal, seu fundamento, Na sua relacao com o sen~ tido, 0 sujeito fundador dispde de signos, areas, tragos, letras, Mas, para manifesta- -los, nao precisa passar pela instancia sin- gular do discurso. O tema que corresponde a este, 0 tema da experiencia originaria, desempenha um papel analogo. Supde que no nivel da expe- rigncia, antes mesmo que tenha podido re- tomar-se na forma de um cogito, significa- Ges anteriores, de certa forma ja ditas, percorreriam 0 mundo, dispondo-o ao re- dor de nos e abrindo-o, logo de inicio, a uma espécie de reconhecimento primitivo. 7 Assim, uma cumplicidade primeira com 0 mundo fundaria para nés a possibilidade de falar dele, nele; de designé-lo e nomeé-lo, de julgi-lo e de conhect-lo, finalmente, sob a forma da verdade. Se 0 discurso existe, 0 que pode ser, entio, em sua legitimidade, sendo urna discreta leitura? As coisas mur- muram, de antemao, um sentido que nossa linguagem precisa apenas fazer manifestar- -se; € esta linguagem, desde seu projeto mais rudimentar, nos falaria ja de um ser do qual © tema da mediagao universal ¢ ainda, cxeio eu, uma maneira de elidir a realidade do discurso. Isto, apesar da aparéncia. Pois parece, & primeira vista, que a0 encontrar em toda parte o movimento de um logos que eleva as singularidades até 0 conceito € que permite a consciéncia imediata desen- volver finalmente toda a racionalidade do mundo, é 0 discurso ele proprio que se si tua no centro da especulaco. Mas este logos, na verdade, nao € senao um discurso jé pronunciado, ow antes, sto as coisas mes- mas € 05 acontecimentos que se tornam 48 insensivelmente discurso, manifestando 0 segredo de sua propria essencia. O discurso nada mais € do que a reverberagio de uma verdade nascendo diante de seus proprios colhos; €, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando ido pode ser dito € 0 discurso pode ser dito a propésito de tudo, iss0 se da porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sen- tido, podem voltar a interioridade silencio- sa da consciéncia de si, Quer seja, portanto, em uma filosofia do sujeito fundante, quer em uma filosofia da experiencia originaria ou em uma filoso- fia da mediacdo universal, 0 discurso nada mais € do que um jogo, de escritura, no primeiro caso, de leitura, no segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura € essa escritura jamais poem em jogo senao 95 signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante. Que civilizacdo, aparentemente, teria sido mais respeitosa com o discurso do que a nossa? Onde teria sido mais ¢ melhor 9 honrado? Onde, aparentemente, teria sido mais radicalmente libertado de suas coer- ‘goes e universalizado? Ora, parece-me que sob esta aparente veneracao do discurso, sob essa aparente logofilia, esconde-se uma es- pécie de temor, Tudo se passa como se in- terdigoes, supressoes, frontetras e limites tivessem sido dispostos de modo a domi- nar, ao menos em parte, a grande prolifera- ‘20 do discurso. De modo a que sua rique- 2a fosse aliviada de sua parte mais perigosa ‘e que sua desordem fosse organizada segun- do figuras que esquivassem 0 mais incon- twolavel; tudo se passa como se tivessem querido apagar até as marcas de sua irrupca0 nos jogos do pensamento e da lingua. Ha, sem diivida, em nossa sociedade €, imagi- no, em todas as outras mas segundo um perfil e facetas diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo des- ses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo 0 que possa haver af de violento, de descontinuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zum- bido incessante desordenado do discurso. 30 > E se quisermos, nao digo apagar esse temor, mas analisi-lo em suas condicdes, seu jogo e seus efeitos, € preciso, creio, optar por trés decisdes as quuals nosso pensamen- to resiste um pouco, hoje em dia, ¢ que correspondem aos trés grupos de funcoes que acabo de evocar: questionar nossa von- tade de verdade; restituir ao discurso seu cardter de acontecimento; suspender, enim, a soberania do significante Tais slo as tarefas ou, antes, alguns dos temas que regem o trabalho que gostaria de realizar aqui nos proximos anos. Podem-se perceber, de imediato, certas exigencias de método que implicam, Primeiramente, um principio de inver- sao: la onde, segundo a tradicao, cremos reconhecer a fonte dos discursos, 0 prines- pio de sua expansio ¢ de sua continuidade, nessas figuras que parecem desempenbar um 31 papel positivo como a do autor, da discipli- na, da vontade de verdade, é preciso reco- nhecer, ao contratio, o jogo negativo de um recorte € de uma rarelacio do discurso. Mas, uma vez descobertos esses princi- pios de rarefacio, uma vez que se deixe de considerd-los como instancia fundamental € criadora, 0 que se descobre por baixo deles? Dever-se-ia admitir a plenitude vir- tual de um mundo de discursos ininter- ruptos? E aqui que se faz necessario fazer intervir outros prinefpios de método. Um principio de descontinuidade: 0 fato de haver sistemas de rarefacdo nao quer dizer que por baixo deles e para além deles reine um grande discurso ilimitado, continuo silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado € que nés tivéssemos por missto descobrir restituindo-Ihe, enfim, a palavra. Nao se deve imaginar, percorrendo o mun- do ¢ entrelacando-se em todas as suas for- mas € acontecimentos, um nao-dito ou um impensado que se deveria, enfim, articular ‘ou pensar. Os discursos devem ser tratados como praticas descontinuas, que se cruzam 2 por vezes, mas também se ignoram ou se excluem, Um principio de especificidade: nao transformar o discurso em um jogo de sig- nificagdes prévias; no imaginar que 0 mundo nos apresenta uma face legivel que terfamos de decifrar apenas; ele nao € ctim- plice de nosso conhecimento; nao ha provi- dencia pré-discursiva que 0 disponha a nosso favor. Deve-se conceber 0 discurso como uma violencia que fazemos as coisas, como uma pritica que Ihes impomos em todo 0 caso; e € nesta pratica que 0s acon- tecimentos do discurso encontram o prine!- pio de sua regularidade. Quarta regra, a da exterioridade: nao passar do discurso para o seu nucleo inte rior € escondido, para 0 amago de um pen- samento ou de uma significagdo que se manifestariam nele; mas, a partir do pro- prio discurso, de sua aparicdo € de sua re- gularidade, passar as suas condigdes exter- nas de possibilidade, aquilo que da lugar & série aleatoria desses acontecimentos ¢ fixa suas fronteiras, 3 Quatro nogoes devem servir, portanto, de principio regulador para a analise: a nnocao de acontecimento, a de série, a de regullaridade, a de condigao de possibilida- de. Vemos que se opdem termo a termo: 0 acontecimento a criagao, a série a unidade, a regularidade a originalidade e a condicao de possibitidade a significacao. Estas quatro tiltimas nogoes (significacao, originalidade, unidade, criagao) de modo geral domina- ram a historia tradicional das ideias onde, de comum acordo, se procurava 0 ponto da criagio, a unidade de uma obra, de uma epoca ou de um tema, a marca da origina lidade individual e o tesouro indefinido das, significagdes ocultas. Acrescentarei apenas duas observagoes. Uma conceme a historia, Atribui-se muitas ‘vezes a historia contemporanea ter suspen- dido os privilegios concedidos outrora ao acontecimento singular e ter feito aparecer as estruturas de longa duracio. E verdade. Nao estou certo, contudo, de que 0 traba- Iho dos historiadores tenha sido realizado precisamente nessa diregdo. Ou melhor, nao oo penso que haja como que uma razto inver- sa entre a contextualizagio do acontecimen- to e a andlise da longa duracio, Parece, 20 contrario, que foi por estreitar ao extremo 0 acontecimento, por levar 0 poder de resolu- «a0 da analise historica até as mercuriais, as atas notariais, aos registros paroquiais, aos arquivos portuatios seguidos ano a ano, semana a semana, que se viu desenhar para além das batalhas, dos dectetos, das dinas- tias ow das assembleias, fendmenos macicos de alcance secular ou plurissecular. A histé- ria, como praticada hoje, nao se desvia dos acontecimentos; 20 contrario, alarga sem ccessar 0 campo dos mesmos; neles desco- bre, sem cessar, novas camadas, mais super- ficiais ou mais profundas; isola sempre no- vos conjuntos onde eles so, as vezes, nu merosos, densos ¢ intercambiaveis, as ve- 265, raros e decisivos: das variagoes cotidia- nas de preco chega-se as inflacoes secula- es. Mas o importante € que a historia nao considera um elemento sem definir a série dda qual ele faz parte, sem especificar 0 modo de andlise da qual esta depende, sem procu- rar conhecer a regularidade dos fenomenos € 05 limites de probabilidade de sua emer- sgéncia, sem interrogar-se sobre as variacbes, as inflexdes e a configuracdo da curva, sem querer determinar as condigdes das quais dependem. Certamente a historia ha muito tempo nao procura mais compreender os acontecimentos por um jogo de causas € efeitos na unidade informe de um grande devir, vagamente homogeneo ou rigidamente hierarquizado; mas nao € para reencontrar estruturas anteriores, estranhas, hostis a0 acontecimento. E para estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentes muitas vvezes, mas nao autonomas, que permite circunscrever 0 “lugar” do acontecimento, as margens de sua contingéncia, as condi- bes de sta aparicao. As nogées fundamentais que'se impoem agora nao sio mais as da conscigncia e da continuidade (com os problemas que Ihes slo correlatos, da liberdade e da causalida- de), nao sao também as do signo e da estruc tura. Sao as do acontecimento ¢ da série, com o jogo de nogoes que Ihes sao ligadas; 56 regularidade, casualidade, descomtinuidade, dependéncia, transformacao; € por esse con- junto que essa andlise dos discursos sobre a qual estou pensando se articula, nao certa- mente com a tematica tradicional que os filosofos de ontem tomam ainda como a historia “viva”, mas com trabalho efetivo dos historiadores. Mas ¢ por af que esta andlise suscita problemas filos6ficos ou tedricos realmente assustadores. Se 0s discursos devem ser tra- tados, antes, como conjuntos de aconteci- rmentos discursivos, que estatuto convém dar a esta nogdo de acontecimento que foi tao raramente levada em consideracao pelos fi- 6sofos? Certamente o acontecimento nao é nem substancia nem acidemte, nem qualida- de, nem proceso; 0 acontecimento nao € da ordem dos corpos. Entretanto, ele nao ¢ material; € sempre no ambito da materiali- dade que ele se efetiva, que € efeito; ele possui seu lugar e consiste na relacio, coe- xisténcia, dispersio, recorte, acumulacao, selecao de elementos materiais; nao € 0 ato nem a propriedade de um corpo; produz-se 37 como efeito de e em uma dispersto mate- nial. Digamos que a filosofia do aconteci- ‘mento deveria avancar na direcao parado- xal, a primeira vista, de um materialismo do incorporal Por outro lado, se os acontecimentos discursivos devem ser tratados como séries homogeneas, mas descontinuas umas em relacdo as outras, que estatuto convém dar a esse descontino? Nao se trata, bem en- tendido, nem da sucessio dos instantes do tempo, nem da pluralidade dos diversos sujeitos pensantes; trata-se de cesuras que Tompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posigdes e de fun- bes possiveis, Tal descontinuidade golpeia € invalida as menores unidades tradicional- mente reconhecidas ou as mais facilmente ‘contestadas: 0 instante € 0 sujeito. E, por debaixo deles, independentemente deles, € preciso conceber entre essas séries descon- tunuas relagdes que nao sto da ordem da sucessao (ou da simultaneidade ) em uma (ou varias) consciencia; € preciso elaborar — fora das filosofias do sujeito e do tempo 38 — uma teoria das sistematicidades descontinuas. Enfim, se ¢ verdade que essas séries discursivas e descontinuas tem, cada uma, entre certos limites, sua regularidade, sem diivida nao € menos possivel estabele- cer entre 05 elementos que as constituem nexos de causalidade mecanica ou de ne- cessidade ideal. E preciso aceitar introduzir a casualidade como categoria na producio dos acontecimentos. Af também se faz sen- tira auséncia de uma teoria que permita pen- sar as relagdes do acaso ¢ do pensamento. De sorte que o tenue destocamento que se propoe ptaticar na historia das idéias ¢ que consiste em tratar, nao das representa ‘goes que pode haver por tris dos discursos, ras dos discursos como séries regulares & distintas de acontecimentos, este ténue des- Jocamento, temo reconhecer nele como que ‘uma pequena (¢ talvez odiosa) engrenagem que permite introduzir na raiz mesma do pensamento 0 acaso, 0 descontinuo € a ma- terialidade. Triplice perigo que certa forma de historia procura conjurar narrando © desenrolar continuo de uma necessidade 59 ideal. Tres nodes que deveriam permitir ligar a pratica dos historiadores a historia dos sistemas de pensamento. Trés direcdes que 0 trabalho de elaboragio tedrica devera seguir. Seguindo esses principios referindo- -me a esse horizonte, as andlises que me Proponho fazer se dispocm segundo dois conjuntos. De uma parte, o conjunto “criti 0", que poe em pritica o principio da in- ‘versio: procurar cercar as formas da exclu sao, da limitacao, da apropriagio de que falava ha pouco; mostrar como se forma- ram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que forca exerceram efetivamente, em que me- dida foram contornadas, De outra parte, 0 conjunto “genealogico” que poe em pritica (8 tr€s outros principios: como se forma- am, através, apesar, ou com apoio desses sistemas de coergao, series de discursos; qual foi a norma especifica de cada uma e quais 60 foram suas condigdes de aparicao, de cres- cimento, de variacao. © conjunto critico, primeiro. Um primei- ro grupo de anilises poderia versar sobre © que designei como funcoes de exclusio. Acon- teceu-me outrora estudar uma € por um pe- iodo determinado: tratavase da separacao entre loucura e razio na época clissica. Mais tarde, podertamos procurar analisar um siste- ma de interdigao de linguagem: 0 que con- cere & sexualidade desde 0 século XVI até 6 século XIX; tratar-se-ia de ver nao, sem diivida, como ele progressivamente ¢ feliz~ ‘mente se apagou; mas como se deslocou e se rearticulou a partir de uma praitica da cconfissao em que as condutas proibidas eram nomeadas, classificadas, hierarquizadas, e da rmaneira a mais explicita, até a aparigao ini- cialmente bem timida, bem retardada, da tematica sexual na medicina e na psiquiatria do século XIX; no sto estes send marcos tum pouco simbélicos, ainda, mas se pode desde ja apostar que as escansdes nao sto aquelas que se cré, € que as interdigées nao ocuparam sempre 0 lugar que se imagina, 6 De imediato, € a0 terceiro sistema de exclusio que gostaria de me ater. Vou encard-lo de duas maneiras. Por um lado, gostaria de tentar perceber como se reali- zou, mas também como se repetiy, se reconduziu, se deslocou essa escolha da verdade no interior da qual nos encontra- mos, mas que renovamos continuamente. Situar-me-ei, primeiro, na época da sofistica € de seu infcio com Sécrates ou ao menos com a filosofia platonica, para ver como 0 discurso eficaz, 0 discurso ritual, carregado de poderes € de perigos, ordenou-se aos poucos em uma separacdo entre discurso verdadeiro e discurso falso, Em seguida, vou situar-me na passagem do século XVI para © XVII, na época em que apareceu, princi- palmente na Inglaterra, uma ciencia do olhar, da observacao, da verificagdo, uma certa filosofia natural inseparavel, sem dii- vida, do surgimento de novas estruturas po- Iiticas, insepardvel também da ideologia re- ligiosa: nova forma, por certo, da vontade de saber. Enfim, o terceiro ponto de refe- réncia sera o inicio do século XIX, com os 62 grandes atos fundadores da ciencia moder- na, a formacio de uma sociedade industrial € a ideologia positivista que a acompanha. Tres cortes na morfologia de nossa vontade de saber; trés etapas de nosso filistetsmo. Gostaria também de retomar a mesma questo, mas sob um angulo bem diferente: medir o efeito de um discurso com preten- sto cientifica — discurso médico, psiquia- trico, discurso sociolégico também — so- bre 0 conjunto de priticas € de discursos prescritivos que o sistema penal constitu. E 0 estudo das pericias psiquidtricas e de seu papel na penalidade que servird de pon- to de partida e de material basico para esta andlise. E ainda nesta perspectiva critica, mas fem outro nivel, que se deveria fazer a and- lise dos procedimentos de limitacao dos discursos, dentre os quais designei ha pou- co o principio do autor, o do comentario ¢ © da disciplina, Nesta perspectiva, se pode conceber tim certo nitmero de estudos. Pen- so, por exemplo, em uma andlise que ver sasse sobre a historia da medicina do século \ 63 XVI ao século XIX. Nao se trataria de assi- nalar as descobertas feitas ou os conceitos laborados, mas de detectar, na construcao do discurso médico — mas também em toda a instituigao que o sustenta, transmite € reforca — como funcionaram os prineipios do autor, do comentario e da disciplina; procurar saber como vigotou o principio do grande autor: Hipdcrates, Galeno, € certo, ‘mas também Paracelso, Sydenham ou Boerhaave; como se exerceu, em pleno sé- culo XIX, a pratica do aforismo e do co- ‘mentirio, como aos poucos foi substituida pela pritica do caso, da coleta de casos, da aprendizagem clinica a partir de um caso concreto; conforme que modelo, afinal, a medicina procurou constituir-se como dis- ciplina, apoiando-se primeiramente na his- toria natural, em seguida na anatomia € ma biologia Poderiamos também considerar a ma- neira pela qual a critica e a historia litera rias nos séculos XVIII e XIX constituiram 0 personagem do autor € a figura da obra, oF utilizando, modificando e deslocando os procedimentos da exegese religiosa, da cri- tica biblica, da hagiografia, das “vidas” his- \Gricas out lendarias, da autobiografia e das ‘memorias. Ser preciso também, um dia, estudar o papel que Freud desempenha no saber psicanalitico, muito diferente, sem diivida, do papel de Newton na fisica (e de todos os fundadores de disciplina), muito diferente também do que pode desempenhar ‘um autor no campo do discurso filoséfico (mesmo que estivesse, como Kant, na ori- gem de outra maneira de filosofar). Eis, portanto, alguns projetos para o aspecto critico da tarefa, para a analise das instancias de controle discursivo. Quanto a0 aspecto genealégico, este conceme a for- rmacao efetiva dos discursos, quer no inte- rior dos limites do controle, quer no exte- rior, quer, a maior parte das vezes, de um lado € de outro da delimitagao. A critica analisa os processos de rarefacao, mas tam- bem de reagrupamento e de unificagao dos \ discursos; a genealogia estuda sua formacio ‘a0 mesmo tempo dispersa, descontinua € 6 regular. Na verdade, estas duas tarefas nao sao nunca inteiramente separiveis; nao ha, de um lado, as formas da rejeicao, da exclu- sto, do reagrupamento ou da atribuicdo: e, de outro, em nivel mais profundo, 0 surgi- ‘mento espontaneo dos discursos que, logo antes ou depois de sta manifestacto, sto submetidos a selecdo € ao controle. A for- ‘macao regular do discurso pode integrar, sob certas condigdes e até certo ponto, os procedimentos do controle (é 0 que se pas- sa, por exemplo, quando uma disciplina toma forma e estatuto de discurso cientfi co); e, inversamente, as figuras do controle podem tomar corpo no interior de uma formagao discursiva (assim, a critica literé- ria como discurso constitutivo do autor) de sorte que toda tarefa critica, pondo em questao as instancias do controle, deve ana- lisar ao mesmo tempo as regularidades dis- cursivas através das quais elas se formam,; e toda descri¢ao genealogica deve levar em conta os limites que interfere nas forma- es reais. Entre o empreendimento critico € 0 empreendimento genealogico, a diferen- 66 a nto € tanto de objeto ou de dominio mas, sim, de ponto de ataque, de perspec- tiva e de delimitacao Hi pouco eu evocava um estudo possi- vel: 0 das imterdicdes que atingem o discur so da sexualidade. Seria dificil e abstrato, em todo caso, empreender esse estudo sem. analisar a0 mesmo tempo os conjuntos dos discursos, literarios, religiosos ou éticos, biologicos e médicos, juridicos igualmente, rnos quais se trata da sexualidade, nos quais esta se acha nomeada, descrita, metaforizada, explicada, julgada. Estamos muito longe de haver constitufdo um discurso unitatio € regular da sexualidade; talvez nao chegue- ‘mos nunca a isso e, quem sabe, ndo esteja- ‘mos indo nessa direcdo. Pouco importa. AS interdicdes nao tém a mesma forma € nao interferem do mesmo modo no discurso li- terario e no da medicina, no da psiquiatria eno da direcdo de consciéncia, E, inversa- mente, essas diferentes regularidades discur sivas nao reforgam, nao contornam ou nao deslocam os interditos da mesma maneira. O estudo so podera ser feito, portanto, con- or forme pluralidades de séries nas quais in- terfiram interditos que, ao menos em parte, Sejam diferentes em cada uma delas. Poderiamos considerar, também, as sé- ries de discursos que, nos séculos XVII € XVII, referem-se & riqueza e @ pobreza, a moeda, a producao, ao comércio, Trata-se, entio, de conjuntos de enunciados muito heterogéneos, formulados pelos ricos ¢ pe- los pobres, pelos sabios ¢ pelos ignorantes, protestantes ou catolicos, oficiats do rei, co- merciantes ow moralistas. Cada qual tem sua forma de regularidade, ¢ igualmente seus sistemas de coergao. Nenhum deles prefi- ura exatamente essa outra forma de regu- laridade discursiva que tomara forma de uma disciplina e chamar-se-a “andlise das rique- 228", depois, “economia politica’. E, contu- do, a partir deles que uma nova regularida- de se formou, retomando ou excluindo, jjustificando ou descartando alguns dos seus enunciados, Pode-se pensar, também, em um estu- do que trataria dos discursos sobre a here- ditariedade, tais como podem ser encontra- 68 dos, repartidos € dispersos até o inicio do século XX em meio a disciplinas, observa- G0es, técnicas e receitas diversas; seria pre- iso mostrar, entdo, mediante que jogo de articulagao essas séries se recompuseram, finalmente, na figura, epistemologicamente coerente € reconhecida pela instituicao, da ‘genética, Esse € o trabalho que acaba de ser feito por Frangois Jacob com um brilho ‘uma ciencia inigualaveis. Assim, as descrigdes criticas € as des- crigdes genealogicas devem alternar-se, apoiar-se umas nas outras e se completa em. A parte critica da andlise liga-se aos sistemas de recobrimento do discurso; pro cura detectar, destacar esses principios de ordenamento, de exclusao, de rarefacto do discurso. Digamos, jogando com as pala- vras, que ela pratica uma desenvoltura aplicada, A parte genealogica da andlise se detem, em contrapartida, nas séries da for- magio efetiva do discurso: procura apreende- -lo em seu poder de afirmagio, e por ai entendo no um poder que se oporia a0 poder de negar, mas o poder de constituir 69 dominios de objetos, a propésito dos quais se poderia afirmar ou negar proposigdes vverdadeiras ou falsas. Chamemos de posit vidades esses dominios de objetos; e, diga- ‘mos, para jogar uma segunda vez com as palavras, que se 0 estilo critico € o da de- senvoltura estudiosa, 0 humor genealégico seré 0 de um positivismo feliz. Em todo caso, uma coisa ao menos deve ser sublinhada: a analise do discurso, assim entendida, nao desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra a luz do dia 0 jogo da rarefacao imposta, com um poder fundamental de afirmacao. Rarefacao € afir- macio, rarefagao, enfim, da afirmagao e nao ‘generosidade continua do sentido, € nao mo- narquia do significant. E agora, os que tém lacunas de voca- bulario que digam — se isso Ihes soar melhor — que isto € estruturalismo. Sei bem que nao poderia empreender estas pesquisas, cujo esboco tentet apresen- 70 tar-hes, se nao tivesse, para deles me valer, modelos e apoios. Creio que devo muito a M. Dumézil, pois foi ele que me incentivou 40 trabalho em uma idade em que eu ainda acteditava que escrever é um prazer. Mas devo muito, também, a sua obra; que me perdoe se afastei de seu sentido ou desviei de seu rigor esses textos que so seus e que nos dominam hoje; foi ele que me ensinou & analisar a economia interna de um discur- so de modo totalmente diferente dos méto- dos de exegese tradicional ou do formalis- mo linguistico; foi ele que me ensinow a detectar, de um discurso 20 outro, pelo jogo das comparacdes, o sistema das correlagoes funcionais; foi ele que me ensinou como descrever as transformagdes de um discurso €-as relagoes com a institwigao. Se eu quis aplicar tal método a discursos totalmente diferentes das narrativas lendaias ou miti- cas, esta idéia me ocorreu, sem diivida, pelo fato de eu ter diante dos olhos os trabalhos dos historiadores das ciéncias e, sobretudo, de M, Canguilhem; € a ele que devo o fato de ter compreendido que a historia da cien- n cia ndo se acha presa necessariamente a alternativa: cronica das descobertas ou des- crigoes das idéias e opinides que cercam a ciencia do lado de sua genese indecisa ou do lado de suas origens exteriores; mas que se podia, se devia fazer a historia da ciencia como de um conjunto ao mesmo tempo coerente e transformavel de modelos teéri- cos e de instrumentos conceituais, Penso, no entanto, que minha divida, em grande parte, 6 para com Jean Hyppolite. Bem set que sua obra se coloca, aos olhos de muitos, sob o reinado de Hegel e que toda a nossa época, seja pela logica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzs- che, procura escapar de Hegel: € 0 que pro- curei dizer ha pouco a propésito do discur- 0 € bem infiel ao logos hegeliano. Mas escapar realmente de Hegel supoe apreciar exatamente o quanto custa separar- -se dele; supoe saber até onde Hegel, insidio- samente, talvez, aproximou-se de nds; supde saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda € hegetiano; e medir em ‘que nosso recurso contra ele ¢ ainda, talvez, n tum ardil que ele nos opée, a0 termo do qual nos espera, imével e em outro lugar. Ora, se somos muitos os devedores de Jean Hyppolite, € porque, infatigavelmente, le percorren para nos ¢ antes de nds esse caminho através do qual nos afastamos de Hegel, tomamos distancia, através do qual nos encontramos de volta a ele mas de outra maneira, logo em seguida obrigados a deixé- -lo novamente, Em primeiro lugar, Jean Hyppolite teve © cuidado de tornar presente essa grande sombra, um pouco fantasmagorica, de Hegel que rondava desde o século XIX e com a qual nos batiamos obscuramente. Foi por meio de uma traducao, da Fenomenologia do Espirito, que ele deu a Hegel essa presen- ca:ea prova de que Hegel, ele proprio, estt bem presente nesse texto francés, ¢ que aconteceu aos alemaes consultarem-no para compreender melhor aquilo que, por um ins- tante a0 menos, se tomava a versio alema ra, Jean Hyppolite procurou e percor- reu todas as saidas desse texto como se sua B ‘inquietagao fosse: pode-se ainda filosofar, la onde Hegel nao € mais possivel? Pode ain- da existir uma filosofia que nao seja hege- liana? O que € nao-hegeliano em nosso pensamento € necessariamente nao-filos6fi- co? E 0 que ¢ antifilosofico ¢, forcosamen- te, nao-hegeliano? Ainda que nao procuras- se fazer apenas a descricdo historica ¢ ‘meticulosa dessa presenca de Hegel que nos havia dado: queria fazer dela um esque- ma de experiéncia da modernidade (€ pos- sivel pensar a maneira hegeliana as cién- cias, a historia, a politica e o sofrimento de cada dia?), e queria, inversamente, fazer de nossa modernidade o teste do hegelianismo e, assim, da filosofia. Para ele, a referencia a Hegel era o lugar de uma experiencia, de um enfrentamento em que nao tinha nunca a certeza de que a filosofia sairia vitoriosa Nao se servia do sistema hegeliano como de um universo trangailizador; via, ali, 0 risco extremo assumnido pela filosofia Dat, cteio eu, os deslocamentos que ele operou, nao digo no interior da filosofia hegeliana, mas sobre ela e sobre a filosofia "4 tal como Hegel a concebia; dat também toda ‘uma inversio de temas, Em vez de conce- ber a filosofia como a totalidade enfim ca- paz de se pensar e de se aprender no movimento do conceit, Jean Hyppolite fa- ia dela o fundo de um horizonte infinito, ‘uma tarefa sem término: sempre a postos, sua filosofia nunca estava prestes a acabar- -se, Tarefa sem fim, tarefa sempre recome- cada, portanto, condenada forma e a0 pa- radoxo da repeticao: a filosofia como pen- samento inacessivel da totalidade era para Jean Hyppolite aquilo que poderia haver de repetivel na extrema irregularidade da ex- periencia; aquilo que se da € se esconde como questio sem cessar retomada na vida, nna morte, na memoria: assim, o tema hhegeliano da perfeicao na consciéncia de si, ele 0 transformava em um tema da interro- acto repetitiva. Mas, visto que ela era re- peticto, a filosofia nao era ulterior a0 con- ceito; ela ndo precisava dar continuidade a0 edificio da abstragap, devia sempre manter- se retiada, romper com suas generalidades adquiridas ¢ recolocar-se em contato com a ry nao-filosofia; devia aproximar-se, 0 mais pos- sivel, ndo daquilo que a encerra mas do que a precede, do que ainda nao despertou para sta inquietagao; devia retomar, para pensé- -las, nao para reduzi-las, a singularidade da historia, as racionalidades regionais da cien- cia, a profundidade da meméria na cons- ciencia; aparece, assim, o tema de uma filo- sofia presente, inquieta, mével em toda sua linha de contato com a nao-filosofia, nao existindo sendo por ela, contudo, ¢ revelan- do o sentido que essa nao-flosofia tem para ‘nos. Ora, se ela existe nesse contato repeti- do com a ndo-filosofia, o que é 0 comeco da filosofia? Ja esta 14, secretamente presente no que nao ¢ ela, comecando a formular-se @ meia-voz no murmurio das coisas? Mas, entio, 0 discurso filossfico nao tem mais, talvez, razio de ser; ou, entdo, deve ela comecar sobre uma base a0 mesmo tempo arbitréria e absoluta? Vé-se substituir-se, assim, 0 tema hegeliano do movimento pré- prio ao imediato pelo tema do fundamento do discurso filosofico e de sua estrutura formal 76 Finalmente, tiltimo deslocamento que Jean Hyppolite operow na filosofia hegelia- za: se afilosofia deve comecar como discur so absoluto, 0 que acontece com a histéria eo que € esse comeco que se inicia com um. individuo singular, em uma sociedade, em tuma classe social € em meio as lutas? Estes cinco deslocamentos, conduzin- do ao limite extremo da filosofia hegeliana, fazendo-a passar, sem duivida, para 0 outro lado de seus proprios limites, convocam, alternativamente, as grandes figuras maio- res da filosofia modema que Jean Hyppolite nao cessou de confrontar com Hegel: Marx, com as questoes da historia, Fichte com © problema do comeco absoluto da filosofia, Bergson com o tema do contato com 0 nao- -filos6fico, Kierkegaard com o problema da repetigio e da verdade, Husserl com o tema da filosofia como tarefa infinita ligada a historia de nossa racionalidade. E, além dessas figuras filosoficas, percebemos todos os domjnios de saber que Jean Hyppolite invocava a0 redor de suas proprias ques- toes: a psicanalise com a estranha logica do n desejo, as matemiticas ¢ a formalizagao do discurso, a teoria da informacao e sua apli- cacao na analise do vivente, enfim, todos os dominios a partir dos quais se pode colocar a questo de uma logica e de uma existén- cia que nao cessam de atar € desatar seus lagos. Penso que essa obra, articulada em al- ‘guns grandes livros, mas investida ainda mais em pesquisas, no ensino, em uma aten- ‘do perpétua, em um alerta € uma genero- sidade de todos os dias, em uma responsa- bilidade aparentemente administrativa © pedagogica (quer dizer, na realidade, dupla- mente politica), cruzou, formulou os pro- blemas os mais fundamentais de nossa épo- ca, Somos muitos os seus inti devedores. tamente E porque tomei dele, sem diivida, 0 sentido e a possibilidade do que faco, ¢ porque muitas vezes ele me esclareceu quan- do eu tentava as cegas, que eu quis situar ‘meu trabalho sob seu signo e terminar, evo- cando-o, a apresentacao de meus projetos. E em sua diregao, em direcao a essa falta — 78 eat ltt tt em que experimento ao mesmo tempo sua auséncia € minha propria caréncia — que se cruzam as questdes que me coloco agora. Visto que the devo tanto, compreendo que a escolha que vocés fizeram convidan- do-me a ensinar aqui é, em boa parte, uma homenagem que Ihe prestaram; sou-thes profundamente reconhecido pela honta que me dispensaram, mas nao hes sou menos ‘grato pelo que cabe a ele nesta escolha. Se nao me sinto a altura de sucede-lo, sei, em contrapartida, que se essa felicidade nos fosse dada, eu seria, esta tarde, encorajado por sua indulgencia. E compreendo melhor porque eu sen- tia tanta dificuldade em comecar, ha pouco. Sei bem, agora, qual era a voz que et gos- taria que me precedesse, me carregasse, me convidasse a falar e habitasse meu proprio discurso, Sei 0 que havia de tao temivel em tomar a palavra, pois eu a tomava neste lugar de pnde 0 ouvi e onde ele nao mais esta para escutar-me, 7°

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