Em breve consulta ao Dicionário Aurélio versão online, aprendi o
significado de “olhar”: fitar os olhos em; tomar conta de; examinar; tomar em consideração; estar voltado para; ocupar-se de; mirar-se, ver a si próprio. Todas estas definições são corretas e elucidadoras e todas, apontam para o detalhe de que uma linha de comunicação é aberta através do olhar mas, penso que a última é filosoficamente perfeita: mirar-se, ver a si próprio. É exatamente assim que percebo o olhar, como um espelho de humanidade, onde olhamos o outro e, em alguma medida esse olhar nos transporta para nosso interior. O outro, embora diferente se nos assemelha. A troca de olhares é fundamental, portanto, para a própria existência humana! Mas, deixando me levar aqui por estes devaneios, esqueço-me do motivador desta breve incursão ao Aurélio, experiência anterior que ora relato… Tarde dessas – fria e chuvosa -, a bordo de um ônibus com destino ao Rio de Janeiro – oriundo de Volta Redonda -, em meio a Serra das Araras, ocorreu- me um das mais inusitadas experiências que já tive e que viria a me marcar profundamente. Tudo não passou de uma troca de olhares e ainda que a rapidez do ocorrido não sugira desdobramentos posso afirmar que muito foi dito nestes poucos segundos em que meu olhar encontrou o dela. Não, não foi uma troca de olhares com conotação sexual! Não se tratou mesmo de um breve olhar que sugerisse um momento de azaração e quando escrevo isso devo confessar certo alívio ao saber que minha mulher – após ler esta crônica – não vai trocar a fechadura de casa. Na verdade, ainda que toda a experiência não tivesse algo de íntimo, não posso furtar-lhe uma ausência completa de intimidade. A chuva e o consequente frio embalavam a descida e a paisagem – sempre deslumbrante – da Serra das Araras. Não sei se o leitor já vivenciou uma viagem destas mas a baixa temperatura, a chuva e as curvas favorecem e muito, num primeiro momento, a contemplação e por fim, a absorção completa em pensamentos. Me agradam estes momentos em que sei que alguém está conduzindo meu corpo para um destino que escolhi, de forma segura, dentro de uma previsão de horário por mim já conhecida. Permito-me então gozar de um mar de tranquilidade já raro em meu cotidiano. Vivendo esse clima, entre uma curva e outra pude perceber um carro emparelhando com o ônibus. Sabe quando seus olhos se voltam para um objeto e ainda assim você não o enxerga? Não sei dizer como e por que despertei mas fato é que dentro do carro, no banco detrás, uma menina sentada ao lado de um rapaz me despertou a atenção. Meu olhar encontrou o dela e o que ela me devolveu me inquietou. Havia um sentimento de confusão, de grande confusão. Seu olhar me dizia que havia arrependimento. Um arrependimento típico de crianças travessas. Lembrei-me – mais tarde -, das inúmeras vezes em que eu, criança, fazia alguma coisa errada e era pego em flagrante por minha mãe, por meu pai ou por algum outro personagem do “mundo adulto”, o que sempre levava-me, de uma forma ou de outra, a estar diante de meus pais na desagradável condição de réu. Aí não havia mais o que fazer a não ser arrepender-se. Por vezes, escondia o meu rosto entre as mãos, esperançoso de que tudo não passasse de um pesadelo, de um susto. Com o passar dos anos, conforme fui amadurecendo e me fazendo ser integrante desse estranho “mundo dos adultos”, fui percebendo que as consequências de meus atos poderiam – e, invariavelmente o eram – ser bastante dolorosas. Mas voltemos à bela jovem, dona do olhar que me hipnotizou. O ônibus acelerou na curva seguinte e o carro ficou para trás. Aguardei com ansiedade que o mesmo nos alcançasse na próxima curva, o que, de fato ocorreu. Em câmara lenta o carro foi se aproximando, e pude perceber sua cor e, com alguma surpresa, identificá-lo como uma viatura de polícia. No banco detrás nossos olhares voltaram a se cruzar. Busquei suas mãos e as vi entrelaçadas às mãos de seu acompanhante. E vi algo mais. A dona do olhar que me cativara e intrigara, estava algemada. A posição que unia seus braços aos de seu acompanhante fazia com que, necessariamente ficasse um pouco curvada. De imediato pensei que o que considerei como uma troca de olhares havia sido, na verdade apenas minha interpretação unilateral dos fatos. Mas eis que em outra curva o carro ficou para trás novamente e, por alguns segundos, fiquei procurando um ângulo melhor, em que pudesse voltar a ter visão da parte traseira do carro. Uma curva adiante, pescoço esticado para trás pude vê-la, buscando-me pela janela do ônibus. Nossos olhares se encontraram então mais uma – e essa haveria de ser a derradeira – vez. Ali, naquele instante pude dizer-lhe que sabia da sua condição de reclusa, de aprisionada e, de alguma forma, era-lhe solidário em sua insegurança, e seu medo, em seu olhar de animal capturado. Ela, por sua vez, devolveu-me o olhar me pedindo senão socorro, sem dúvida cumplicidade. Alguns metros adiante, sustentando meu olhar de perplexidade, ela pareceu entender que na próxima curva nossa comunicação já não seria possível. Olhou então para suas mãos algemadas, olhou de volta para mim e, apenas sorriu. Um sorriso triste sem dúvida! De desesperança, de resignação. Sorriso de despedida. Retribui com um leve aceno de cabeça e uma vez mais nos olhamos… Nunca mais a vi, nada sei sobre ela, sequer sobre o crime que cometeu. Sei que nesta região é comum o tráfico de drogas e mais corriqueira ainda a prisão de jovens que atuam como “mulas”. Mas, confesso-me impressionado até hoje com aquele olhar, com a silenciosa comunicação que estabelecemos naquele momento e, acima de tudo com a absoluta tristeza expressa por aquela menina. Desde este dia, não raro me pego a imaginar que seu delito não foi grave, que a mesma era primária, de boa família e que um bom advogado a livrou de cumprir pena em um presídio. Confesso todavia, que estou romantizando a cena. Afinal, aquela menina pode ser exatamente o contrário do que descrevi aqui, pode estar longe de ter cometido o primeiro delito, pode ser uma criminosa perigosa e experiente e pode, porque não, estar apodrecendo agora em uma cela de presídio. Mas, na verdade, penso que nada, absolutamente nada disso importa- me. Interessa-me apenas o contato estabelecido nesta simples e fulgás troca de olhares e o triste semblante daquela menina. Nunca vou me esquecer daquele sorriso que em sua resignação tanto tinha prá dizer e, de alguma forma, sei que ao mirar aquela menina – a exemplo do que me trouxe o Aurélio – , estive diante de mim mesmo, de meus medos, de minha fragilidade e porque não, de meus próprios e secretos delitos.