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Senhor
Esplendor da verdade, fulgor da bondade
Amados irmãos,
Fixo-me num passo apenas, do diálogo entre Jesus e Pilatos. Diálogo que este não
concluiu na altura, mas nós teremos de levar por diante: “Jesus respondeu-lhe. ‘É como
dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz’. Disse-lhe Pilatos: ‘- Que é a
verdade?’.
Foi com superficialidade e displicência que o governador romano soltou aquele “- Que é
a verdade?”. Superficialidade e displicência em que tantos o seguiram e seguem hoje em
dia. Da verdade se abusou muito, sempre que foi encerrada em códigos ou imposta em
ideologias, de sinal contrário aliás. Da verdade se desiste hoje em demasia, como se já
não contássemos realmente com Deus, nem connosco…
Uma verdade em que “caibamos” todos, mesmo o próprio Deus – em si mesmo maior
do que qualquer compreensão nossa – só pode ser reconhecida e servida, nunca
delimitada e possuída. O mesmo Jesus referia que “quem é da verdade, escuta a sua
voz”. Quem é da verdade, não quem a “possui” a ela. Ele sim, “dava testemunho da
verdade”, verdade do Pai e verdade nossa, transparecendo a primeira e abrindo a
segunda, não absorvendo nenhuma; antes esclarecendo as duas, nele existencialmente
unidas.
De “compreender” Deus acabou por desistir Job, como também foram desautorizados os
seus amigos. Estes, por Lhe diminuírem as contas, fazendo-O quase pagador
“mecânico” de méritos ou deméritos; Job, por de algum modo não sair daí, pois Lhe
respondia ainda com a sua ausência de deméritos, como que à espera de outro
tratamento (cf. Jb 42, 1 ss). De compreender Deus nos desautorizam outros versículos
lapidares: “Os meus planos não são os vossos planos, os vossos caminhos não são os
meus caminhos – oráculo do Senhor. Tanto quanto os céus estão acima da terra, assim
os meus caminhos são mais altos que os vossos, e os meus planos mais altos que os
vossos planos” (Is 55, 8-9). E nos desautorizaria a própria vida humana, sempre trágica
e surpreendente, apesar de todas as previsões e equações. De um deus à nossa medida –
mesmo à nossa grande medida – melhor seria de facto sermos “agnósticos” e até
“ateus”, como eram acusados de o serem os primeiros cristãos, por desacreditarem nos
deuses do império da altura.
Sabemos, por outro lado, que as ideologias mais recentes tentaram definir e impor a
verdade – social e culturalmente delimitada – como política concreta e obrigatória para
todos. Foram os vários “ismos” que retalharam a humanidade do século XX e tanta
destruição mútua originaram. A eles se contrapôs depois a desistência pós-moderna em
relação às meta-narrativas e a atual resistência difusa a qualquer definição vital
coletivamente respeitada. Prefere-se a contradição à unanimidade, o subjetivismo ao
essencialismo.
De nos compreendermos “em” Deus (cf. Ac 17, 28), como na própria verdade, não
podemos nem devemos desistir nunca, para não nos desfazermos na insignificância. A
vida é grande demais para isso, ainda na sua tragicidade inegável, própria e alheia. Mas
atenção: abeiramo-nos de Deus como quem se abeira da vida, da vida toda, sem
exclusões a priori, nem pré-seleção limitadora. Melhor diríamos que, em relação a Deus,
mais nos apercebemos duma presença total do que O percebemos como objeto de
entendimento. Presença total, mas não totalitária, ali estava Jesus diante de Pilatos. Era 2
a surpreendente verdade de Deus, diante da costumeira distração do homem.
Aliás, se ainda aceitarmos que a verdade está na adequação da mente ao objeto, então
não diminuamos nem a subjetividade nem a objetividade. Com a humildade de quem
sabe que só vai ao todo pela parte e precisamente onde esta se abre ao todo, por não
deixar de fora nenhuma possibilidade do humano e do divino; do divino no humano,
como Pilatos o poderia ter entrevisto em Jesus, diante de si.
Mas Pilatos detivera-se no limite estrito dum império a defender, senão mesmo na
urgência de se livrar de apuros, mesmo à custa da justiça… Saiu-lhe aquele “- Que é a
verdade?”, como poderia ter saído outra expressão qualquer, pois no cinismo tudo
equivale a coisa nenhuma. Por idênticas más razões, parecem tantos desistir hoje do
mais necessário, isto é, duma base sólida, filosófica e jurídica, onde indispensavelmente
assente a convivência humana, sem excluir nada nem ninguém.
O Papa Bento XVI tem sido incansável em requerê-la, nem precisando de argumentos
imediatamente teológicos para tal. Como no seguinte trecho do seu livro mais recente:
“… se a verdade nada conta, que sucede? Então, que justiça será possível? Não deve
porventura haver critérios comuns que garantam verdadeiramente a justiça para todos,
critérios esses subtraídos à arbitrariedade das opiniões mutáveis e à concentração do
poder? Não é verdade que as grandes ditaduras existiram em virtude da mentira
ideológica e que só a verdade pode trazer a libertação? “ (Jesus de Nazaré. Da Entrada
em Jerusalém até à Ressurreição, p. 157-158).
Diante de si, Pilatos tinha toda a verdade de Deus, como dramaticamente se apresentava
em Jesus. Não a acolheu ele, devemos acolhê-la nós. Aceitemos coerentemente a
natureza relacional da verdade, coincidente com a nossa própria natureza relacional de
pessoas, imagens de Deus precisamente aqui. Verdade do bem de todos, verdade da
inocência divina, tão humanamente oferecida.
Pilatos teve uma oportunidade única para a entrever, uma vez que atestou de Jesus, logo
a seguir: “Não encontro neste homem culpa alguma”. Positiva e maximamente o 3
declararia depois um discípulo da Verdade: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros,
porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao
conhecimento de Deus. Aquela que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é
amor” (1 Jo 4, 7-8). E alguns versículos à frente, igualmente explícito: “A Deus nunca
ninguém o viu; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor
chegou à perfeição em nós” (1 Jo 4, 12).