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Sangue-Relíquia

Uma meditação possível sobre a santidade do Beato João Paulo II


Pe. José Nuno, capelão do Hospital de S. João

Quem, no Domingo da Pascoela, o Domingo da Divina Misericórdia, esteve na Praça de São


Pedro, experimentou a vibração íntima dos momentos únicos, particularmente durante o rito
da beatificação do Papa João Paulo II, logo no início da celebração. Este rito incluiu a
apresentação e veneração de uma relíquia. Cresceu a emoção e a aclamação da assembleia
reunida quando os muitos grandes ecrãs permitiram ver a Ir. Marie Simon Pierre, cuja cura da
doença de Parkinson constituiu o milagre necessário à beatificação, acompanhada pela Ir.
Tobiana, que acompanhou sempre o Papa vindo de longe, avançando em direcção a Bento
XVI, levando o relicário com sangue do novo Beato. O Papa
olhou e beijou a relíquia.

Que relíquia! Não poderia ser encontrada melhor memória de


João Paulo II, para expor à veneração dos crentes, que o seu
sangue: sangue-relíquia. Ele foi o Papa que o mundo pôde ver
ensanguentado por amor do mundo, num momento crucial,
quase no início do seu longuíssimo pontificado, a 13 de Maio de
1981, quando, em plena Praça de São Pedro, sofreu o atentado
que veio a definir o sentido do seu percurso, vinculando-o a
Fátima e à sua Mensagem, nomeadamente à terceira parte do
Segredo que, por sua iniciativa, foi divulgado no ano 2000,
oferecendo a imagem de um bispo de branco, caindo sob o fogo
de armas.

Um Papa em sangue. João Paulo II ofereceu, aos olhos dos homens deste tempo, algo já
esquecido nas lonjuras da Igreja nascente: o sangue de um sucessor de Pedro. Escolher o seu
sangue como relíquia é trazer para o século XXI a lembrança do sinal de contradição que o
acontecimento do atentado constituiu nos fins do século XX. A sua vida como Papa, sabemo-
lo, obedeceu a esse desígnio: introduzir a Igreja no terceiro milénio. O seu sangue, de ora em
diante exposto à compreensão ou à incompreensão dos homens, crentes ou não, reveste-se de
grande significado, convoca, para o milénio que começa, a trama global em que viveu o seu
múnus pontifício. Discípulo de Cristo e seu Vigário, do chamado a concretizar nestes tempos
a missão do primeiro dos apóstolos, nada de mais significativo poderia ser oferecido aos
tempos, como sinal e interpelação, que o seu próprio sangue. Este permanecerá perenemente
como lugar de enraizamento de um milénio que se escreve diferente desde o princípio, porque
João Paulo II, Papa entre dois tempos, não temeu derramá-lo.

Vale a pena determo-nos sobre a origem desta relíquia. Pouco tempo antes da sua morte, no
contexto do tratamento que recebeu, foi recolhido algum do seu sangue, para eventual
transfusão futura. Não tendo esta sido necessária, o sangue foi conservado em quatro
pequenas ampolas. Duas destas foram levadas para a Polónia pelo seu secretário pessoal,
Stanislaw Dziwisz, hoje Cardeal Arcebispo de Cracóvia. Outras duas foram conservadas pela
comunidade das irmãs do hospital Bambino Gesù, cujos serviços haviam feito a colheita,
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acrescentando ao sangue uma substância anti-coagulante, o que explica o facto de este se
conservar em estado líquido. A Santa Sé tem tido grande cuidado em fornecer este
esclarecimento, para evitar possíveis interpretações sobrenaturais deste facto, que desviariam
do verdadeiro sentido da relíquia. A ampola exposta é uma destas duas conservadas pelas
religiosas do hospital pediátrico romano.

Vale ainda mais a pena determo-nos sobre leituras possíveis do sangue-relíquia de João Paulo
II. Ele pede para ser trazido à luz pelas palavras, dadas as muitas evocações que sugere.
Algumas me ocorrem e partilho.

João Paulo II, todos o conhecemos, todos convivemos com ele, todos o sentimos, apesar da
distância do pontificado, próximo, um de nós, visitante incansável dos nossos lugares. A sua
santidade, o seu modo de ser santo apresenta-se-nos na concretude de um contemporâneo, de
um homem a quem conhecemos feitos e defeitos, qualidades e limites. Gostámos de algumas
coisas, de outras discordámos, algumas não compreendemos, quantas não saberemos… A sua
santidade é próxima, real, nada tem de etéreo ou angelismo. É de carne e de osso, de olhares e
sorrisos, palavras serenas e palavras duras, palavras de compreensão e palavras de censura,
palavras de compaixão e palavras de beleza… e gestos, muito gestos, muitos gestos e actos de
sentido profético inesgotável. Místico, não fugiu ao mundo nem se voltou sobre si em
misticismo desencarnado. Actuante, não caiu em activismo. Viajante, imobilizava-se em
longos silêncios orantes. Atlético e saudável, soube envelhecer sem se esconder nem permitir
que o escondessem, como hoje tanto acontece. Confiado aos cuidados médicos e neles
confiante, recusou o encarniçamento terapêutico e acolheu a morte na sua hora. A sua
santidade foi uma santidade corpórea, tangível, situada no tempo e no espaço, tecida das
múltiplas relações que estabeleceu, mas profundamente enraizada na experiência quotidiana
da Páscoa de Cristo, acontecimento culminante da divina Misericórdia. O sangue diz a
santidade totalmente humana que corria nas artérias e veias do corpo que foi e que nós vimos
e ouvimos, tocámos e sentimos. Só o sangue poderia expressar esta totalidade, porque só o
sangue não é dizível como uma parte do corpo que a pessoa é. O sangue chega a todo o corpo.
Chegou a todo o corpo que João Paulo II foi, naturalmente bombeado por um coração
incansável, levando e trazendo, cumprindo a troca que possibilita a vida; só o sangue,
elemento corpóreo culturalmente símbolo de martírio e doação, poderia expressar a
radicalidade que em cada um dos seus compromissos foi visível. Nada como o sangue seria
relíquia adequada do Beato João Paulo II. Sangue-relíquia.

É belo, também, lembrar que o sangue deste Papa, sendo sangue derramado, é sangue
recebido. Sangue recebido de anónimos homens e mulheres que, na dádiva do seu próprio
sangue, dão vida, como deram vida a João Paulo II, nas muitas circunstâncias da sua
existência em que precisou do sangue de outros para continuar vivo, nomeadamente na
sequência do atentado. Quem seriam? Quem terá, sem o saber, dado do seu sangue ao Papa?
Toda a tradição bíblica do sangue como princípio de vida e, em Jesus, princípio de vida nova,
oferece um horizonte de compreensão para visitarmos a relíquia do sangue do Papa de todas
as gentes, que todo o mundo visitou. O sangue do Papa das gentes resulta da mistura dos
sangues de pessoas várias, em momentos críticos vários da sua existência. Sangue derramado
que é sangue recebido, que é sangue dado. A relíquia surge, assim, liberta de toda e qualquer
enviesamento de interpretação pietista ou marcada pela superstição, como uma narrativa de

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amor, expressão do elevado patamar de comunhão, tão global quanto interpessoal, que este
Pastor universal atingiu. É sangue-relíquia líquida na transparência do seu sentido.

O sangue-relíquia de João Paulo II oferece-se, ainda, a uma outra reflexão que é oportuno
fazer. Este sangue foi colhido por razões clínicas e clinicamente conservado para a
eventualidade de ser medicamente necessário. O pontificado do Papa que se atreveu, contra o
espírito do tempo, a não esconder o envelhecimento e a doença, estendeu-se ao longo de um
largo período que conheceu a radicalização de um dos fenómenos mais determinantes, para o
melhor e para o pior, da cultura contemporânea: a medicalização da existência, aliás da
própria condição humana. O sangue do Papa que escreveu a Encíclica Evangelium Vitae
assume-se, neste contexto, uma relíquia moderna, obtida pelo recurso à ciência e às
tecnologias médicas, de algum modo resgatando a veneração das relíquias, ligada ao culto dos
santos, dos resquícios de crendice e de irrazoabilidade que muitas vezes anda associada a esta
devoção. É de sangue que se trata, não fragmento de osso ou de veste ou objecto. É sangue e o
sangue é o que é, é biografia da própria pessoa, líquida epifania do seu ser, estado de alma que
se exprime na cor do rosto, estado físico que se avalia nos valores analíticos que mostra, vida
que se esvai quando em hemorragia imparável, vida que se dá no acto simples da dádiva.
Tinha que ser sangue, a relíquia de João Paulo II, e sangue colhido clinicamente, para deste
modo se inscrever, como rasgo de transcendência, no íntimo do movimento imparável da
medicalização que define esse traço característico dos passos presentes da história dos
homens.

A este propósito, justifica-se recordar que João Paulo II foi o Papa que instituiu a Pastoral da
Saúde como campo específico e organizado da missão eclesial. Por estes dias, muito tem sido
recordado da acção e magistério deste gigante da história da Igreja na transição de milénio.
Não tem, contudo, sido realçado o seu compromisso com a causa do mundo da doença e da
saúde, do sofrimento e da morte; o seu empenhamento com os doentes e os sofredores, os
cientistas e os cuidadores, profissionais e voluntários. A história irá sublinhar a sua
capacidade de perceber, agindo consequentemente, o claro sinal dos tempos que constitui a
acima referida medicalização do fenómeno humano, a par da tantas vezes desorientada
idolátrica valorização da saúde. A sua própria vida o conduz à identificação desta realidade.
Em 1981 sofre o atentado. Três anos após, na memória da Senhora de Lourdes, publica a
Carta Apostólica Salvifici Doloris, primeira tentativa de síntese sobre o sentido salvífico do
sofrimento humano realizada por um Pontífice. No ano seguinte, na mesma data, pelo Motu
Proprio Dolentium Hominum, institui o órgão que viria mais tarde a chamar-se Conselho
Pontifício da Pastoral da Saúde. Decorria 1985. A 13 de Maio de 1992, dez anos após a sua
vinda a Fátima, agradecer a “mão materna que desviou a bala”, institui a Jornada Mundial do
Doente, que se celebra cada ano na memória da Senhora que, em Lourdes, dirigiu à criança
enferma, Bernadette Soubirous, a mensagem da especial proximidade do céu aos doentes, a
11 de Fevereiro. Cada ano, desde aí, nesta data, chamou a atenção do mundo para as questões
relativas a esta questão maior da cultura contemporânea e para os olhados como menores pela
sociedade que esta anima, porque doentes, inválidos ou deficientes. As suas Mensagens para o
Dia Mundial do Doente, em conjunto com a imensidão de outros documentos, como homilias,
discursos e intervenções em múltiplos momentos, desde congressos científicos a celebrações
com doentes em hospitais, audiências várias a profissionais do mundo da saúde e outros

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constituem um corpus doutrinal ímpar, indispensável a quem quer que pretenda aprofundar a
reflexão sobre a antropologia, a ética, a teologia ou a espiritualidade neste domínio.

As datas marianas, 13 de Maio e 11 de Fevereiro, marcam este percurso. O percurso de um


Papa de arreigada devoção à Mãe de Deus; um Papa a quem a própria história pessoal
consentiu descobrir, na maternidade de Maria ao pé da Cruz, a figura da Igreja, rosto da
misericórdia e ícone da compaixão, pela participação na Paixão do Filho, nas paixões de todos
os filhos; uma Igreja a aprender-se a si mesma neste lugar materno e compassivo que é a
figura de Mãe acompanhando o derramar do sangue de Jesus. O acontecimento do sangue
derramado de João Paulo II, em 13 de Maio de 1981, assinala um caminho pessoal, que se
tornou eclesial, de valorização dos que sofrem na Igreja e no mundo, como se a experiência
pessoal do sofrimento permitisse, de um modo mais real, descobrir o verdadeiro valor dos
sofredores e o sentido que resgata o sofrimento inevitável das sombras do absurdo.

O sangue-relíquia do Papa que, já sem voz, teimava comunicar e comunicava, nunca permitirá
à Igreja esquecer ou ignorar este facto, que a vida e a morte de João Paulo II deixam como
herança inalienável. Pode a comunidade eclesial ocupar-se em mil e uma tarefas e pastorais
específicas muito importantes, muito de ponta, mas enquanto não descobrir a centralidade
desta, evangelicamente aprendida do seu Senhor, corre o risco de se desviar do núcleo do
Evangelho. O sangue-relíquia do convocador da Nova Evangelização, porque remete para o
Sangue derramado na Cruz, exige-nos reconhecer, procurar e integrar os que completam em si
mesmos a Paixão de Cristo, no dizer do Apóstolo dos gentios, como João Paulo II
intimamente viveu e, por ter vivido, compreendeu. Experimentando-o escrito com o próprio
sangue, compreendeu este mistério com aquela lucidez imperativa das experiências que fazem
a pessoa. E propô-lo à Igreja, que nesta dimensão pastoral encontra hoje uma das principais
linhas de fronteira a transpor, a fim de corresponder à convocação para a tarefa sempre
inconclusa da Nova Evangelização, que não lhe permite furtar-se ao encontro com o Homo
dolens, o homem confrontado com os mistérios confins do sofrimento e do mal, da morte e da
culpa. Também para esta responsabilidade histórica nos remete o sangue-relíquia do Beato
João Paulo II que a Igreja propõe à nossa veneração, falácia, se não encontrar consequência
em opções concretizadas.

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