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Escassez de água cria nova injustiça: a exclusão hídrica
Estoques de água doce estão sendo diminuídos pelo despejo diário de 2 milhões de
toneladas de poluentes, alertam especialistas do PNUD

Carlos Ferreira de Abreu Castro(*) e Aldicir Scariot(**)


do PNUD

A crise silenciosa

A água é vida para as pessoas e para o planeta. A água doce é, por si só, o
elemento mais precioso da vida na Terra. É essencial para a satisfação das
necessidades humanas básicas, a saúde, a produção de alimentos, a energia e a
manutenção dos ecossistemas regionais e mundiais. “Embora se observe pelos
países mundo afora tanta negligência e tanta falta de visão com relação a este
recurso, é de se esperar que os seres humanos tenham pela água grande respeito,
que procurem manter seus reservatórios naturais e salvaguardar sua pureza. De fato,
o futuro da espécie humana e de muitas outras espécies pode ficar comprometido a
menos que haja uma melhora significativa na administração dos recursos hídricos
terrestres”. (1)

O acesso à água já é um dos mais limitantes fatores para o desenvolvimento


socioeconômico de muitas regiões. “A sua ausência, ou contaminação, leva à
redução dos espaços de vida, e ocasiona, além de imensos custos humanos, uma
perda global de produtividade social.” (2) A competição de usos pela agricultura,
geração de energia, indústria e o abastecimento humano tem gerado conflitos
geopolíticos e socioambientais e afetado diretamente grande parte da população da
Terra. Mais de 2,6 bilhões de pessoas carecem de saneamento básico e mais de um
bilhão continuam a utilizar fontes de água impróprias para o consumo. Por falta de
água limpa, metade dos leitos hospitalares disponíveis no mundo é ocupada e cerca
de 5 milhões de pessoas (3) , na sua maioria crianças, morrem anualmente. Apesar
destes dados assustadores, a crise da água é uma crise silenciosa.

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A qualidade e quantidade de água têm impactos diretos nos meios de vida das
populações mais pobres, na sua saúde e na sua vulnerabilidade a crises de todos os
tipos. Também afetam grandemente o estado do meio ambiente, a capacidade dos
ecossistemas de fornecer serviços ambientais e a probabilidade de desastres
ambientais. Em todo o mundo, a falta de medidas sanitárias e de tratamento de
esgotos polui rios e lagos; lençóis freáticos são rapidamente exauridos e
contaminados por métodos de exploração inadequados; águas superficiais são
superexploradas pela irrigação e poluídas por agrotóxicos; populações de peixes são
sobre-exploradas, áreas úmidas, rios e outros ecossistemas reguladores de águas
são drenados, canalizados, represados e desviados sem planejamento (4). Os
estoques de água doce estão sendo intensamente diminuídos pelo despejo diário de
2 milhões de toneladas de poluentes (dejetos humanos, lixo, venenos e muitos outros
efluentes agrícolas e industriais) nos rios e lagos. A salinidade, assim como a

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contaminação por arsênico, fluoretos e outras toxinas, ameaçam o fornecimento de
água potável em muitas regiões do mundo.

Uma das conseqüências mais perversas deste mau uso é a exclusão hídrica. Hoje,

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apenas metade da população das nações em desenvolvimento tem acesso seguro à
água potável. A escassez de água aumentará significativamente nos próximos anos,
devido ao aumento do impacto combinado resultante do aumento do uso per capita
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de água e dos efeitos das mudanças climáticas. O aumento da população e da renda
reflete diretamente no aumento do consumo de água e na produção de resíduos
poluentes. A população urbana dos países em desenvolvimentos aumentará
dramaticamente, gerando demanda muito além da capacidade, já inadequada, de
infra-estrutura para fornecimento de água e saneamento. Em 2050, pelo menos uma
em cada quatro pessoas provavelmente viverá em um país afetado por escassez
crônica ou recorrente de água potável. Isto poderá restringir seriamente a
disponibilidade de água para todas as finalidades, particularmente para a agricultura,
que atualmente responde por 70% de toda a água consumida. (5) A falta de
conciliação entre todos esses usos e funções da água, o aumento da demanda
aliado aos conflitos já existentes e a assimetria de poder entre os interesses
envolvidos criou uma nova categoria de injustiça social, a exclusão hídrica, os “povos
sem água”.

O cenário de escassez provocado pela degradação e pela distribuição irregular gera


conflitos, seja dentro dos próprios países ou entre nações. Historicamente, dominar o
uso da água dos rios fez com que algumas civilizações se utilizassem disso como
forma de exercer poder sobre outros povos e regiões geográficas. Um exemplo de
conflito moderno pelo uso da água é vivenciado por israelenses e palestinos. Israel
depende das águas subterrâneas que estão no território palestino ocupado e retira
cerca de 30% da disponibilidade do aqüífero, comprometendo a capacidade de
recarga desse reservatório. (6)

O estoque de água já é grandemente desigual. A Ásia, com 60% da população


mundial, detém apenas 36% da água doce mundial. As disparidades continuarão a
crescer. Hoje, vinte países enfrentam uma dramática falta de água. Em 2050, se
mudanças profundas não ocorrerem, a escassez de água afetará 7 bilhões de
pessoas em 60 países (7) . É uma crise silenciosa, é uma crise dos que não têm voz.

A água e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

Como afirmou Nitin Desai, secretário-geral da Cúpula Mundial sobre

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Desenvolvimento Sustentável, não é possível melhorar a difícil situação dos pobres
do mundo sem fazer alguma coisa em relação à qualidade da base de recursos de
que dependem: as terras e os recursos hídricos. Melhorar a utilização dos recursos
hídricos é decisivo para todas as outras dimensões do desenvolvimento sustentável.
Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a água é um
ponto de partida catalítico nos esforços para ajudar os países em desenvolvimento
na luta contra a fome e a pobreza, na salvaguarda da saúde humana, na redução da
mortalidade infantil e na gestão e proteção dos recursos naturais.

Durante a Conferência do Milênio, promovida pela Organização das Nações Unidas


em setembro de 2000, 191 países — a maioria dos quais representados na
conferência por seus chefes de estado ou governo — subscreveram a Declaração do
Milênio, que estabeleceu um conjunto de objetivos para o desenvolvimento e a
erradicação da pobreza no mundo, os chamados Objetivos de Desenvolvimento do

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Milênio (ODM). Os oitos objetivos fixados pela Conferência do Milênio são:

* A erradicação da pobreza e da fome


* A universalização do acesso à educação primária

* A redução da mortalidade infantil


* A melhoria da saúde materna U
* A promoção da igualdade entre os gêneros
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* O combate à AIDS, malária e outras doenças.
* A promoção da sustentabilidade ambiental
* O desenvolvimento de parcerias para o desenvolvimento

Dada esta lista de oito objetivos internacionais comuns, 18 metas e mais de 40


indicadores foram definidos, tendo em vista possibilitar entendimento e avaliações
uniformes dos ODM, nos níveis global, regional e nacional. A meta 10 visa reduzir
pela metade, até 2015, a parcela da população sem acesso seguro e duradouro a
água potável.

“Nenhuma medida poderia contribuir mais para reduzir a incidência de doenças e


salvar vidas no mundo em desenvolvimento do que fornecer água potável e
saneamento adequado a todos”. Essa afirmação do secretário-geral da ONU, Kofi
Annan, define de forma categórica o papel fundamental que a água e o saneamento
desempenham na erradicação da pobreza e para assegurar o desenvolvimento
humano sustentável.

No contexto dos ODM, a água desempenha um papel central devido à sua


importância para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza, propiciar
segurança alimentar, melhorar as condições da saúde ambiental e proteger os
ecossistemas. A expansão do acesso ao fornecimento doméstico de água e aos
serviços de saneamento contribuirá para o alcance de vários Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, visto que a água está intrinsecamente ligada a eles. É
difícil imaginar como pode haver avanços significativos sem primeiro assegurar que
as pessoas tenham um fornecimento duradouro e confiável de água e instalações
sanitárias adequadas.

A crise da água no Brasil

O Brasil detém 12% das reservas de água doce do mundo, sendo que cerca de 70%
desse total estão na Bacia Amazônica, onde a densidade populacional é a menor do
país. Por outro lado, a região mais árida e pobre do Brasil, o Nordeste, onde vivem

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cerca de 28% da população, possui somente 5% da água doce. A alta densidade
populacional, a poluição e a agricultura, aliadas à visão de que a água é um recurso
infinito, já provocam o aumento na escassez de água de qualidade nas regiões Sul e
Sudeste do país, onde vive 60% da população.

Os índices de abastecimento de água mostram que há enormes desigualdades entre


regiões e entre ricos e pobres. Os mais prejudicados são aqueles que vivem nas
favelas, periferias e pequenas cidades. Somente um terço dos 40% mais pobres
dispõe de serviços de água e saneamento, enquanto que para os 10% mais ricos
esse valor sobe para 80%. O saneamento básico atinge somente 56% dos domicílios
urbanos e meramente 13% dos domicílios rurais. As classes mais altas, com
rendimentos acima de 10 salários mínimos, têm cobertura 25% maior em água e
acima de 40% em esgoto que a população com renda inferior a 2 salários mínimos,
cujos índices de cobertura desses serviços estão abaixo da média nacional. (8)

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A Meta 11 dos ODM estabelece que, até 2020, deve haver melhora significativa na
qualidade de vida de 100 milhões de habitantes de moradias inadequadas em todo o
mundo, incluindo-se acesso a esgotamento sanitário (indicador 31). A análise dos

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dados demonstra que diminuiu, em termos relativos, a proporção da população sem
acesso a esgotamento sanitário — apesar de, em número absolutos, ter havido
aumento da população brasileira e da população sem acesso a esses serviços. De
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fato, em 1991, havia 75,1 milhões de pessoas (61,6%) sem acesso à rede de esgoto
e, em 2000, esse número subiu para 93,7 milhões, o equivalente a 55,6% dos
habitantes. Se o ritmo de queda percentual continuar o mesmo, em 2015 ainda
haverá 45,5% da população sem acesso a esgotamento sanitário. A projeção desses
dados indica que pouco menos da metade da população do Brasil (42,3%)
continuaria sem acesso à rede de esgoto em 2020. (9) Essas disparidades
demonstram o quanto o Brasil ainda tem de avançar nessa questão.

O acesso à água e saneamento é uma questão ética

A crise da água vem aumentando, mesmo com alguns avanços obtidos para atingir
os objetivos estabelecidos em 2000. O Projeto do Milênio das Nações Unidas foi
estabelecido em 2002 para desenvolver um plano de ação que habilite os países em
desenvolvimento a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a reverter
o massacre da pobreza, da fome e das doenças que atinge bilhões de pessoas. As
equipes das dez forças-tarefas do Projeto Milênio, congregando 265 especialistas de
todo o mundo, foram desafiadas a diagnosticar os principais impedimentos ao
alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a apresentar
recomendações de como superar os obstáculos, colocando as nações no caminho
certo para atingir as metas até 2015.

No início de 2005, a força-tarefa sobre Água e Saneamento recomendou ações


críticas para minorar a crise global de água e saneamento e promover a gestão
adequada dos recursos aquáticos. Entre essas ações estão:

Governos nacionais e outras partes envolvidas devem assumir o compromisso de


definir a crise do saneamento como prioridade máxima em suas agendas.
Investimentos em água e saneamento devem ser ampliados e devem focalizar a
provisão sustentável de serviços, em vez de apenas construir instalações.
Governos e agências doadoras devem fortalecer as comunidades locais com a
autoridade, recursos e capacidade profissional necessários para a gestão do
fornecimento de água e a provisão de serviços de saneamento.

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Dentro do contexto das estratégias nacionais de redução da pobreza, os países
devem elaborar planos coerentes de desenvolvimento e gestão dos recursos
hídricos.
A inovação deve ser incentivada para acelerar o progresso, e assim alcançar
diversos Objetivos de Desenvolvimento simultaneamente. Por exemplo, o
desenvolvimento de novas formas de reutilização da água recuperada na agricultura
poderia aumentar o rendimento das colheitas e reduzir a fome, melhorando também
o saneamento.
Mecanismos de coordenação devem ser implementados para melhorar e avaliar o
impacto das atividades financiadas por agências internacionais no âmbito nacional.

Estas recomendações mostram claramente que, após cinco anos, a ONU continua
conclamando os países a assumir o acesso seguro à água potável como prioridade
máxima em suas agendas. O mais grave é o fato de que as metas estabelecidas

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para 2015 não visam a eliminar, e sim reduzir, a tremenda injustiça social da falta de
acesso seguro à água e ao saneamento básico para todos os habitantes da Terra.
De acordo com a força-tarefa, expandir a cobertura de água e saneamento não
requer somas colossais de dinheiro (10), nem descobertas científicas inovadoras.

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Quatro em cada dez pessoas no mundo não têm acesso nem a uma simples latrina
de fossa não-asséptica e são obrigadas a defecar a céu aberto. Obviamente, o
conhecimento, as ferramentas e os recursos financeiros estão disponíveis para pôr
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fim a esta infâmia.

Como afirma Mohamed Bouguerra (11), o fornecimento de água para a humanidade


articula-se estreitamente às prioridades estabelecidas pelos homens. Os usos que
damos à água refletem, no fim das contas, os nossos valores mais profundos. “A
água é, primeiramente, uma questão política e ética. Nenhuma outra questão merece
mais atenção por parte da humanidade. Ela determina a paz universal e o futuro de
todos os seres vivos”. A posição de Wally N'Dow (12) , para quem grande parte dos
conflitos políticos e sociais no futuro deixarão de ter como causa o petróleo e serão
provocados pelas disputas em torno da água, é hoje praticamente um consenso.

O alerta feito por Bouguerra não pode ser ignorado. Necessitamos, hoje, da
formulação de uma política global para a água, fundada sobre o plano da ética, e que
sirva de guia para definir uma partilha equilibrada dos recursos. “Dessa maneira se
poria fim aos embates indignos que os detentores do poder e alguns grupos de
pressão exercem sobre este recurso. Se a política da água precisa ser integrada à
viabilidade econômica, não é menos indispensável que ela englobe também a
solidariedade social, a cooperação com os países mais desprovidos, a
responsabilidade ecológica e a utilização racional desse recurso, para não
comprometer as necessidades das gerações atuais e futuras e dos demais seres
vivos que partilham conosco a água do globo”.
________________________________________________

Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Coordenador da Unidade de Meio


Ambiente, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD/Brasil
Doutor em Ecologia, Analista de Projetos, Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento — PNUD/Brasil

1 — J.W.Maurits la Rivière - "Threats to the World's Water" - Scientific American,


special issue - Managing Planet Earth, 1989
2 — Ladislaw Dobor. In “A Reprodução Social” Volume 2 Política Econômica e
Social : os desafio do Brasil. 2001

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3 — Dados do relatório da Força-tarefa da ONU. Água e Saneamento do Projeto do
Milênio. 2005. Na literatura especializada, estes dados variam muito, com números
até cinco vezes maiores.
4 — WWF-Brasil “Programa Água para a Vida - Conservação e Gestão de Água
Doce”
5 — UN/WWAP (United Nations/World Water Assessment Programme). 2003. UN
World Water Development Report: Water for People, Water for Life. Paris, New York
and Oxford: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization and
Berghahn Books.
6 — Instituto Socioambiental – ISA. Almanaque Brasil Socioambiental, 2004.
Relatos de diferentes conflitos entre intra e inter nações, bem como resultantes do
crescente processo de privatização dos serviços de águas e saneamento pode ser
visto em Evaristo Miranda. Água na natureza e na vida dos homens. Idéias e Letras.
2004 e em Mohamed Bouguerra .As Batalhas da Água: por um bem comum da

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humanidade. Editora Vozes, 2004.
7 — The United Nations World Water Development Report 2003,
UNESCO-WWAP).
8 — Ministério das Cidades 2004. Saneamento Ambiental. Cadernos MCidades,
vol. 5.

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9 — Centro de Pesquisa de Opinião Pública – DATAUnB. Relatório Nacional ODM
7 “GARANTIR A SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL”. UnB, 2004.
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10 — Estima-se que sejam necessários apenas 4% dos gastos militares com
armamentos no Mundo para prover água potável e saneamento adequado para toda
a humanidade.
11 — Mohamed Bouguerra .As Batalhas da Água: por um bem comum da
humanidade. Editora Vozes, 2004. 238p.
12 — Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Habitações
Humanas (Habitat II)

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