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RESUMO
A proposta deste artigo é mostrar que a interpretação de Marcuse
da obra de Freud não pode ser compreendida fora da relação entre
a psicanálise freudiana e o marxismo, uma relação que não é nem
de oposição, nem de síntese (união), mas dialética – é neste
contexto que a teoria freudiana revela toda a sua importância. Para
compreendermos a interpretação de Freud realizada por Marcuse,
optamos por analisar a crítica de Paul Robinson, segundo a qual
Marcuse teria tentado “unir”, em Eros e Civilização, Marx e Freud.
O trabalho baseado nesta crítica se mostrou muito frutífero, pois
permitiu estabelecer uma série de pontuações em relação à
interpretação de Marcuse. A fim de argumentarmos contra a leitura
ABSTRACT
The proposal of this paper is to show that Marcuses’interpretation
about Freud’s work can not be understood out of relation between
the Freudian Psychoanalysis and the Marxism, a relation that is not
of opposition neither of synthesis (union), but dialetic – at this
context that Freudian Theory reveal its whole importance. To
understand the interpretation about Freud achieved by Marcuse, we
chose for analyse the Paul Robinson’s criticism. According to
Robinson’s interpretation, Marcuse tried to unite, in Eros and
Civilization, Marx and Freud. The work based in that criticism was
very productive, because it provides to establish many topics
regarding interpretation of Marcuse. To argue against the
Robinson’s reading, we exposed the proper differences between
Marcuse and the Neo-freudian Revisionism, since interpretation of
Freudian Theory achieved by Marcuse only can be understood
inside the context of criticism to the Revisionism. It is here that it
reveals its peculiarity: Marcuse try to save Freudian Theory from
american psychologism of fifities and sixties age, showing it like a
essentially critical theory. We recovered some concepts such as
Repressive Desublimation, Surplus-repression and Performance
Principle, formulated by Marcuse, as well as we recovered the
Introdução
Pretendemos apresentar neste artigo um trecho da discussão
desenvolvida no trabalho de dissertação de mestrado, encerrado no
final de 20021, a respeito de uma questão que se mostrou fundamental
para a compreensão da obra de Marcuse: a da relação entre o
marxismo e a psicanálise freudiana. No decorrer deste estudo,
uma questão se mostrou fundamental para a compreensão da obra
de Marcuse: a da relação entre o marxismo e a psicanálise
freudiana. A polêmica que esta questão suscita se refere ao estatuto
da teoria freudiana e do marxismo na obra Eros e Civilização, uma
vez que se encontrou uma variedade de leituras divergentes entre os
autores que trataram da questão. Faremos aqui uma tentativa de
esclarecê-la, a partir de uma determinada perspectiva que pareceu
ser a mais plausível, mas sem a intenção de esgotá-la por completo.
Esta problematização a respeito da relação do marxismo e da
psicanálise freudiana2 poderia ser estendida ao conjunto da teoria
crítica, uma vez que todos os seus integrantes trataram da questão
em diversos textos; mas isto ultrapassaria os limites deste trabalho.
Este empreendimento foi realizado por Rouanet, no seu excelente
livro Teoria Crítica e Psicanálise, que utilizaremos no decorrer da
argumentação.
Nosso objetivo é especificar a relação entre Marx e Freud na
obra de Marcuse, o que, por sua vez, permitirá compreender a
particularidade da interpretação marcuseana da psicanálise. A
tese que se defende é a de que Marcuse não realiza uma “síntese”
ou “união” de Marx e de Freud em Eros e Civilização, tal como
proposto por Paul Robinson em A Esquerda Freudiana, um livro que,
para além de nossas divergências em relação a alguns pontos,
contém uma excelente apresentação do pensamento de Marcuse.
Segundo Robinson, Marcuse tentou “sintetizar as categorias
freudianas e marxistas” (1971, p.161), ou então, “correlacionar a teoria
psicanalítica com os pressupostos do marxismo” (1971, p.157). Esta
REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE / FORTALEZA / V. IV / N. 1 / P. 23 - 64 / MAR. 2004 25
ARTIGOS MARILIA MELLO PISANI
A “Dessublimação Repressiva”
O conceito de “dessublimação repressiva” permite
compreender a dinâmica da sociedade contemporânea que, por um
lado, possibilita uma maior “liberdade” e satisfação das necessidades,
ao mesmo tempo em que, por outro lado, essa “liberdade” atua como
um poderoso instrumento de dominação, sendo absorvida pelo
sistema, adquirindo a função de manipulação e controle dos
indivíduos, de suas consciências, de seus desejos e necessidades.
A “sublimação”, tal como Freud definiu, corresponde ao
processo psíquico pelo qual as pulsões sexuais (“parciais”) perdem
sua meta sexual imediata e se satisfazem em objetos não
diretamente sexuais: é a capacidade de trocar uma meta
originariamente sexual por uma outra meta, não exatamente sexual,
mas aparentada a ela (Laplanche & Pontalis, 2001, p.495). Ela conduz
a uma “dessexualização”. A “sublimação” é uma das vicissitudes das
pulsões e representa a restrição quanto à possibilidade de satisfação
pulsional imposta pelo choque com o mundo exterior. A vida em
sociedade só é possível a partir da “sublimação”, a partir do
adiamento da satisfação pulsional, sem o que não seriam possíveis
as relações entre as pessoas como a família e a amizade, pois estas
dependem de inibição dos fins sexuais imediatos (apesar desta não
ser descrita por Freud como sublimação, mas como muito perto
dela), nem haveria o trabalho social, o progresso, a investigação
intelectual e a criação artística.
Segundo Marcuse, essas grandes realizações da humanidade
possibilitadas pela “sublimação”, como a arte, a literatura, a religião, a
ciência, a filosofia e a música, representam uma recusa em aceitar a
realidade injusta, o “princípio de realidade” que impõe a modificação
repressiva das pulsões. Na arte, sobrevive a imagem de um mundo
diferente, a denúncia e a necessidade de libertação – ela “conserva a
A Crítica Imanente
Voltemos agora à questão que suscitou este debate: saber se
Marcuse introduz concepções exteriores à psicanálise, a fim de
historicizá-la, tal como afirma P. Robinson. Nós nos propusemos a
explicar esta questão a partir da crítica de Marcuse à escola
revisionista, segundo a qual estes psicanalistas revisionistas teriam
introduzido concepções sociológicas e históricas exteriores à
psicanálise. Retomemos uma citação de Marcuse a respeito do
assunto:
As conseqüências [da interpretação revisionista] da teoria
freudiana são muito graves. O aperfeiçoamento
revisionista da teoria freudiana, e sobretudo a adição de
fatores culturais e sociais, consagra uma pintura falsa da
civilização, e particularmente da sociedade atual. Ao
reduzirem a extensão e a profundidade do conflito, os
revisionistas proclamam uma solução falsa, mas fácil.
(Marcuse, 1963, p.217)
Conclusão
Tentaremos fazer agora um apanhado das colocações
expostas até aqui, a fim de termos uma visão mais geral de nossas
posições e ver até onde elas nos conduziram.
A obra de Marcuse Eros e Civilização não pode ser
compreendida fora do contexto teórico ao qual ela pertence. Marcuse
tem um objetivo específico, que somente em referência ao contexto
geral de seu pensamento é possível esclarecer. O pensamento de
Marcuse (assim como da teoria crítica de modo geral), possui uma
preocupação central que o liga a toda a tradição da história da filosofia:
a preocupação com a “felicidade” humana. No entanto, a noção de
felicidade é redefinida, tendo em vista o novo contexto histórico
surgido com o desenvolvimento capitalista.
A questão da felicidade deve ser analisada tendo em vista a
existência da possibilidade real de libertação da luta pela existência,
proporcionada pelo nível elevado de desenvolvimento atingido pelas
forças produtivas. É aqui que a teoria freudiana se vê questionada, na
medida em que ela afirma a impossibilidade da felicidade na
civilização. A noção de felicidade em Marcuse se refere a uma
“felicidade material, objetiva e universal”: somente estando livre da luta
pela existência e que as necessidades básicas de sobrevivência
tenham sido saciadas, pode o indivíduo ser feliz; mais do que isso,
somente quando esta possibilidade é dada universalmente, para
todos os indivíduos, ela é de fato uma felicidade “verdadeira”.
Para Marcuse, a questão da felicidade só pode ser posta no
atual estágio de desenvolvimento técnico atingido pela sociedade. Por
isso, ele retoma a teoria freudiana e põe em questão a relação
estabelecida por Freud entre infelicidade e civilização. As distinções
estabelecidas por Marcuse entre “verdadeiras” e “falsas”
necessidades e interesses, “verdadeira” e “falsa” felicidade, “mais-
obscurecida.
Neste sentido, dizer que Marcuse tenta unir Marx e Freud é um
grande erro, pois elimina a relação de oposição entre indivíduo e
sociedade que é insistentemente afirmada por ele, tendo em vista que
ele pretende criticar a “sociedade unidimensional”, uma sociedade
que absorve os antagonismos e contradições. É por isso que ele
retoma a teoria freudiana - nela esta oposição é mantida.
Entretanto, seria um engano afirmar que as duas teorias
possuem o mesmo estatuto no pensamento de Marcuse. Ele é um
pensador marxista (não ortodoxo), que viu, na teoria freudiana, a
possibilidade de repensar o próprio marxismo (ortodoxo), introduzindo
neste uma preocupação com o indivíduo: aqui a teoria freudiana lhe
fornece o suporte teórico. Mas, para se tornar uma teoria “crítica”, a
teoria freudiana precisa ser questionada e este processo se dá
através da crítica imanente aos seus conceitos, tendo em vista as
transformações históricas ocorridas – esta crítica elucida o
“movimento” desses conceitos.
A teoria freudiana possibilita o objetivo de “crítica” somente
decifrando a dialética histórica de seus conceitos: assim ela pode dar
origem a algo de novo e sua crítica à civilização pode se tornar
construtiva – ao contrário da interpretação revisionista, que imobiliza
a sua “função crítica”. Essa “função crítica” da teoria freudiana está na
denúncia do elo entre infelicidade e civilização: na medida em que os
revisionistas afirmam a possibilidade da felicidade na civilização
(nesta civilização) e não questionam os seus fundamentos, eles
tornam-se ideológicos.
Freud foi um crítico feroz da civilização, pois ele tinha
consciência do vínculo que une progresso e infelicidade. Se ele afirma
a infelicidade como uma condição necessária da civilização, é porque
ele é muito mais humano do que aqueles que crêem na possibilidade
da felicidade se realizar nesta sociedade. Se a felicidade for concebida
apenas individualmente, ela é falsa. A felicidade, para Marcuse, é uma
condição que só pode ser concebida quando todos os indivíduos
tiverem acesso às riquezas produzidas pela “sociedade da
abundância” e não apenas um grupo restrito de pessoas, e,
sobretudo, quando a produção desta riqueza não estiver mais
Notas
Referências
Adorno, T. W. (1985) Capitalismo tardio ou sociedade industrial. In G.
Cohn (Org.), Obras escolhidas (pp. 62-75). São Paulo: Ática.
(Originalmente publicado em 1968).
Freud, S. (1998) Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1919).
Freud, S. (2000a). L’avenir d’une illusion. Paris: Quadrige.
(Originalmente publicado em 1927).
Editora Unesp.
Marcuse, H. (1999). Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do
pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos. (Originalmente publicado em 1959).
Pisani, M. (2003). Marcuse e Freud: Uma interpretação polêmica – um
estudo de “Eros e Civilização”. Dissertação de Mestrado,
Universidade de São Carlos, São Carlos.
Robinson, P. (1971). A esquerda Freudiana: Wilhelm Reich, Geza
Roheim, Herbert Marcuse. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Rouanet, S. P. (1989). Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro.