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O MEL E A CICUTA

ALBERTO MADEIRA

“O que mais nos interessa na História, a nós que não somos historiadores, é o lado
pitoresco e psicológico”.
Henri Robert, da Academia Francesa

À minha irmã Maria do Carmo Madeira Portella, a cujo estímulo fraternal devo a
publicação de “O Mel e a Cicuta”.
É grande também o débito para com a minha filha Claudia Virmond Madeira pelos
ajustes e sugestões feitos no decorrer do seu trabalho de revisão do original deste livro.
PREFÁCIO

Platão, depois da morte de Sócrates, narra o professor espanhol Julian Marias, afastou-
se de Atenas com asco e indignação, e decidiu realizar seu grande sonho político em
Siracusa, grande e populosa cidade do sul da Itália Grega. “Foram quarenta anos
destinados a essa empresa: três viagens à Sicília, com travessias perigosas por mares em
guerra, prisões, escravidão, ameaças de morte e intrigas palacianas. Um jogo arriscado
com os tiranos, entre o temor e a esperança, com o apoio apenas do seu grande discípulo
Dion”. Até aqui Julian Marias.

Os acontecimentos desta odisséia platônica, despida de dissertações filosóficas,


constituem, por si só, um formidável romance de aventuras, um relato de sedutora
beleza e misteriosas emoções que poderia ter sido escrito por um ficcionista como
Daniel Defoe ou Herman Melville.

Parra narrar estes eventos, raros na vida de um filósofo e comuns aos navegantes e
descobridores, tomei emprestado o nome de Aristipo de Cirene, um filósofo menor,
divergente do grupo socrático, cujas obras não chegaram até nós. Aristipo, entretanto, é
citado por seus contemporâneos como um crítico irreverente e mordaz de sua época,
uma espécie de Voltaire da Antigüidade. Este pensador morreu sem saber que lançara as
sementes do “epicurismo” moderado, sabedoria que busca conter o sofrimento, evitando
os excessos emocionais e físicos.

Will Durant relata que Aristipo era fisicamente belo, querido das mulheres, requintado
de maneiras, hábil no falar e, por onde passava, ia conquistando simpatias. Em Rodes,
náufrago e sem vintém, dirigiu-se a um ginásio, fez discursos e, a tal ponto seduziu os
ouvintes, que eles lhe forneceram todo o conforto possível, o que levou Aristipo a
observar que os pais deviam suprir os filhos com essas riquezas (sabedoria e filosofia),
bens que podem ser salvos no caso de naufrágio. Diz, ainda, Durant que Aristipo
suportava com igual graça a pobreza e a riqueza. Quando o tirano Dionísio de Siracusa
perguntou-lhe por que os filósofos batem às portas dos poderosos enquanto estes não
procuram os filósofos, Aristipo respondeu: “Os filósofos sabem o que lhes falta, os ricos
não”.

Como este livro foi supostamente escrito por um homem da Antigüidade, com o
objetivo de criar atmosfera de época, tentei imitar, com moderação, o estilo dos
escritores antigos, conforme transparece nas edições vertidas para o nosso idioma.
Algumas expressões destas traduções foram usadas, sempre que as mesmas aparecem
em diferentes traduções, o que caracteriza maneira própria de expressar-se do homem
antigo, como ocorre com nossas expressões idiomáticas. Sei que enfrento um desafio,
mas Chesterton lembra que até um tiro que falha se enobrece se for disparado em um
duelo.

O AUTOR
O GOLPE DE ESTADO

Dizem em Atenas que na política os bons são virtuosos e os maus são cruéis, como se o
mesmo terreno produzisse o saboroso mel e a mortífera cicuta. (1)

O macedônio Aristóteles, filho de Nicômaco, e o mais talentoso discípulo de Platão,


dizia que para fazer política o homem tem que se colocar abaixo ou acima de si mesmo:
ser fera ou deus.

Nas minhas viagens por cidades gregas e bárbaras, testemunhei que na prática da
política os povos são iguais, embora se diferenciem pelo idioma e pelos costumes. E
continuarão a ser sempre assim.

Eu, Aristipo natural de Cirene, cidade grega bastante povoada no litoral da Líbia, vim
para Atenas seduzido pela fama de Sócrates. Fui discípulo deste filósofo e depois
fundei, na minha cidade natal, uma escola própria que tomou o nome de Escola
Cirenaica.

Disto falarei mais adiante. Tenho pressa de narrar fatos mais importantes em virtude de
uma enfermidade que contraí, de causa desconhecida, e que vem se agravando.

(1) Plutarco

como febre maleitosa, e traz o meu corpo debilitado. Decidi, por isso, omitir
acontecimentos pessoais e evocar certos fatos ligados à cruel ditadura dos Trinta,
imposta
por Esparta que, pelos desmandos praticados por atenienses traidores que colaboraram
com o inimigo, deixaram a vida em Atenas sempre alterada. Quero falar, também, da
injusta condenação de Sócrates por uma democracia assustada, e das três viagens de
Platão à Sicília.
Apenas para dar uma idéia ao leitor da atmosfera política que reinava naquela época, e
dos sofrimentos que todos enfrentamos enquanto durou a Tirania dos Trinta, começo
recordando aquela noite terrível quando o orador Lísias do partido democrata,
perseguido pela ditadura, procurou-me. Lembro que reboava sobre Atenas violenta
tempestade. Eu havia ceado e recostei-me ao leito acolchoado para ler. Adormeci. Tive,
naquele momento, um sonho estranho: Apolo apareceu envolto em um manto surrado e
envelhecido, de forma a causar horror, descarnado como uma múmia egípcia, e
apontando o dedo para o alto, advertiu-me com voz cansada que mais parecia um
sussurro:
- De tantos males, Aristipo, a natureza cobre a velhice, que até aqueles que foram belos
tornam-se feios. Lembra-te do conselho que te deu o mais sábio dos homens: os estudos
nobres, na mocidade servem de adorno, na velhice, de refúgio.

O motivo pelo qual eu sabia que aquela figura decadente e crepuscular era Apolo ou
Febo, como o chamam os deuses, sem que ele houvesse mencionado seu nome, nem por
que se encontrava naquele mísero estado, e ainda o porquê de nada disso ter me causado
estranheza enquanto sonhava, são coisas que a razão desconhece. Somente os mistérios
dos sonhos explicam.

Um espantoso e violento estrondo reboou nos céus. Alguém sacudia o meu ombro.
- Senhor! Senhor! Estão batendo à porta.
Era meu servo Calímaco que me despertava. A noite estava vermelha de relâmpagos. O
vento uivava lá fora.
-Quem é? gritei junto à porta.
- Lísias! sou eu, Lísias!
Pedi que tornasse a dizer quem era para reconhecer bem a voz. Era, realmente, o orador
Lísias do partido democrata.

Calímaco abriu a porta. A lufada de vento torceu a chama das candeias. Lísias,
encharcado e transtornado, abraçou-me.
- Aristipo, mataram meu irmão!
-Polemarco?
- Sim. E não penses que foi porque ele desaprovava o atual regime. Foi por causa de
seus vinhedos e olivais. A ditadura precisa de dinheiro. Decidiram prender os cidadãos
que apoiavam a democracia, mas que possuíam fortuna, a fim de confiscar-lhes os bens.
Prendem também gente comum para dar a impressão de que agem apenas por motivos
políticos. Mataram meu irmão por causa da fortuna de nossa família. Eu serei o
próximo.
- Quem te disse?
- Crítias, tio de Platão, tem cargo importante na junta ditatorial. Sabe que Platão me
considera e mandou me avisar.
Confesso que o pavor apoderou-se de mim, mas não podia abandonar Lísias naqueles
apuros. Abracei-o, comovido. Fi-lo trocar a túnica e o manto, e ordenei às mulheres da
casa que servissem ceia ao recém-chegado.
Lísias pertencia a uma rica família siracusana. Era grande orador. Escrevia discursos
para os chefes democratas que a ditadura derrubara. Fora discípulo do famoso sofista
Protágoras na cidade de Tulii e não perdia as palestras do “professor”, como ele o
chamava, sempre que este vinha à Atenas. Lísias acreditava de boa fé que aquele que
fala bem, age bem. Jamais tentei demovê-lo desta crença ingênua.

Enquanto comia, Lísias narrou-me a desventura de sua família que, além de possuir
terras e plantações, tinha também, em Atenas, uma oficina de escudos com cerca de
duzentos escravos.

- Eratóstenes prendeu Polemarco na rua - continuou - e na prisão obrigaram-no a beber


cicuta. Nem sequer disseram por que ele tinha que morrer. Meu irmão foi retirado morto
da prisão, não obstante possuir três casas. De nenhuma deixaram sair o enterro.
Alugaram um telheiro e ali o expuseram. À minha cunhada, arrancaram-lhe das orelhas
os brincos de outro que ela trouxera da casa dos pais. Entraram nas nossas oficinas e
arrolaram os escravos e todos os bens que ali encontraram. Perguntei a Eratóstenes se
por dinheiro me salvaria. Respondeu-me que sim, se fosse quantia grossa. Prontifiquei-
me a dar um talento de prata. Abri meu cofre. Pisão avançou e carregou tudo o que este
continha, apoderando-se, não da quantia ajustada, mas de três talentos de prata, doze mil
dracmas e quatro jarros, de grande valor de estimação para a nossa família. E ainda
disse que me desse por satisfeito em ter a vida poupada (2). E aqui estou eu, Aristipo.
Em nome de nossa velha amizade, preciso de tua proteção.
Acreditei em tudo que acabara de ouvir. Embora Lísias fosse propenso a denúncias
extravagantes, eu sabia que os crimes dos Trinta eram de tal vulto, que nem
(2) Contra Eratóstenes, oração de Lísias
mentindo se poderiam assacar fatos mais terríveis do que os que haviam acontecido, e
nem querendo dizer a verdade, referir todos. (3)
- Acalma-te, Lísias. Antes do amanhecer colocar-te-ei fora das muralhas e te levarei à
quinta de um amigo. Possuo salvo-conduto por causa das aulas que dou fora da cidade.
Tu, com manto e capuz, por causa do mau tempo, passarás por meu servo.

A tempestade amainava e o vinho embotava nossos sentidos. Esvaziada a jarra de vinho,


logo adormecemos; Lísias, no quarto de hóspedes, e eu, ali mesmo, no leito acolchoado
das minhas leituras.

Mal raiara o dia, meus escravos aparelharam duas montarias. Deixei minha filha Areta
com a ama e partimos. A cidade estava envolta em uma névoa espessa sob um céu que a
oprimia.

Cruzamos o umbral da grande porta sem dificuldades. Os campos estavam encharcados.


Bestas carregadas de fardos molhados passavam por nós rumo à cidade. Olhando para
trás vi, através da neblina, a cidade murada em todos os lados, cujas casas e templos,
com suas colunatas, escalavam as verdes colinas. Um menino com túnica de lã de
carneiro, presa em um só ombro, corria ao lado de um rebanho de cabras. Um cão nos
acompanhou por algum tempo latindo. Carros de boi chiavam, transportando cereais
para o mercado. Ao longo da estrada encontrávamos, de quando em vez, túmulos de
mortos esquecidos, cobertos pela vegetação.

(3) Idem

Logo que deixamos para trás as ricas vilas dos nobres retirados da vida pública, moderei
a andadura do cavalo para emparelhar com o de Lísias, que me seguia cabisbaixo,
encapuzado e silencioso como um servo. Precisava colocar meu amigo a par da
personalidade de Timon de Atenas, aquele que ia ser seu hospedeiro.
TIMON DE ATENAS

Timon de Atenas era um tipo curioso. Os infortúnios da nossa cidade e a perda da


fortuna inspiraram-lhe profundo ódio contra o gênero humano. Tornou-se um impiedoso
misantropo. Dizia-se filósofo, seguidor de Heráclito de Héfeso, mas não passava de um
charlatão. Nos tempos da opulência, conquistara a frívola sociedade ateniense com
banquetes aparatosos, aos quais concorriam poetas, músicos, políticos e prostitutas
famosas. Estas festas terminavam em bacanais, com homens idosos possuindo formosos
adolescentes e mulheres lascivas, deitadas em esteiras, agarradas às próprias amigas. No
meio destes tratantes amáveis, Timon, nu, com um enorme membro viril, taça de vinho
na mão, cantava versos obscenos, enfim, coisas que neste livro não cabe narrar.

Desde que Timon perdera o patrimônio nos azares do comércio e fora processado por
abuso de confiança e malversação do dinheiro público, praticada nos altos cargos que
ocupara, os amigos desapareceram. Timon caíra na miséria. Eu, de quando em vez,
enviava-lhe dinheiro, lembrando-me de que em outros tempos ele ajudara Sócrates. Há
dois anos, o misantropo vivia na companhia de uma escrava síria, numa cabana de
troncos no meio de uma espessa floresta, distante meia jornada de Atenas.

Timon, antes de entregar aos credores sua luxuosa casa, fora ao mercado na hora mais
concorrida e, subindo num carro de boi, chamou o povo aos gritos. Todos acorreram
curiosos, visto que Timon há muito que não falava com ninguém.
-Vou entregar minha casa a dois miseráveis agiotas - anunciou ele - mas devo antes, a
pedido destes pusilânimes credores, derrubar uma grande figueira que fica no fundo do
quintal, cujas raízes estão pondo em risco as paredes da casa. Eis porque vos venho
prevenir das minhas intenções, a fim de que os que queiram se enforcar apressem-se a
fazê-lo, antes da figueira ser derrubada.

Ao deixar a cidade, Timon prestou homenagem a Alcebíades. Quando lhe perguntaram


por que se curvava até o chão, quando encontrava este general, Timon explicou:
- Presto a Alcebíades todas as homenagens porque sei que por obra sua hão de os
atenienses sofrer grandes males e ter grandes perdas.
O oráculo délfico não teria vaticinado sentença tão profética. Alcebíades foi, realmente,
a maior praga política que caiu sobre Atenas.

Voltemos à Lísias. Com os animais emparelhados, entramos numa floresta úmida e


espessa.
- Tu achas, Aristipo - perguntou-me o orador - que este homem de obscuro
entendimento possa compreender um pensador como Heráclito de Éfeso?
- Copiam-se os defeitos dos grandes homens quando não podemos imitar-lhes as
virtudes. Tu sabes, Lísias, que Heráclito foi um homem de paixões ardentes e, também,
um misantropo. Seus pensamentos eram elevados, mas possuía temperamento orgulhoso
e cheio de desprezo pelos outros, como transparece em muitos de seus escritos.
Considerava sua cidade natal totalmente depravada. Os efésios, em sua opinião, deviam
ser todos enforcados, poupados, apenas, os imberbes. E isto porque os habitantes de
Éfeso haviam desterrado Hermedoro, que Heráclito considerava o melhor de todos os
cidadãos. Ele achava também que Homero merecia ter sido expulso dos certames dos
poetas e açoitado, e Arquíloco, igualmente. Este aspecto contraditório dos pensamentos
de Heráclito abalou a mente de Timon, propensa a idéias paradoxais. Mas não te
preocupes, Lísias, tu vais encontrar um homem mergulhado numa raiva amarga, mas
que te hospedará pelo tempo necessário, a preço de moeda.

A cabana de Timon apareceu oculta pelas ramagens das árvores. Ouvindo o tropear dos
cavalos, Timon assomou à porta da choça, alto, esguio, envolto num esburacado manto
de cor indefinida, barba e cabelos crescidos, mãos nos quadris, na postura de quem
aguarda intrusos.

Apeamos. Fiz as apresentações. Os olhos duros do misantropo observaram Lísias.


Timon havia envelhecido. No seu rosto esquálido e barbudo viam-se, agora, apenas as
duas expressões das máscaras cênicas do teatro grego que vem de Téspis: a da máscara
satírica quando falava dos outros, e a da máscara trágica, quando falava de si mesmo.

Frio e desdenhoso, olhando de quando em vez a bolsa de moeda que eu trazia presa ao
cinto, Timon não se furtou às leis da hospitalidade tão gratas ao povo grego. Logo ficou
à vontade. Lísias era homem de falar festivo, e Timon conservara dos velhos tempos o
respeito pelas coisas bem ditas.
Ceamos mais cedo, já que eu tinha pressa de voltar à cidade. Passadas as primeiras
libações e amabilidades, Timon avisou à escrava:
- O professor Aristipo é vegetariano. Traga-lhe capim.
Comi de tudo com prudência e escolha. Em casa alheia prolongo a refeição, adotando a
ordem comum. Ao entardecer voltei à Atenas.
No mês seguinte enviei carta a Lísias, e dinheiro a Timon. De volta, meu escravo trouxe
a resposta de Lísias. Estava ansioso por retornar a Atenas. Agradeceu-me o trato e os
cuidados que dediquei a ele e à sua família. Contou-me que numa noite de luar dissera à
Timon:
- Que bela noite, Timon!

Ao que o misantropo lhe respondeu:


- Bela seria se eu estivesse aqui sozinho.
Decorridos alguns meses, Lísias pôde voltar a Atenas. Os motivos de sua volta devem-
se a Trasíbulo, de quem falarei adiante.

Interrompo o fio de minha narrativa para falar do destino de Timon de Atenas, visto que
o leitor já está familiarizado com esta prolixa personagem. Timon sentia pela morte
invencível aversão, acreditando que Atenas inteira alegrar-se-ia com seu
desaparecimento do mundo dos vivos.

Este homem de ridículo pessimismo morreu aos setenta e oito anos de idade, sufocado
de prazer entre as pernas da escrava síria. Deixou um pedido que não foi atendido.
Queria ser sepultado à beira-mar, no ponto onde as ondas lambem as areias, para que os
atenienses ignorassem o local de sua sepultura. Seu corpo foi largado numa cova em
uma das espessas florestas da Ática.

Atenas ignorou sua morte. Eu o soube por intermédio de Astério, um agiota cretense
que veio cobrar a dívida que o misantropo contraíra com ele, na qual eu fora honrado -
assim dissera Timon - como avalista. Não era quantia de dar cuidado.
SÓCRATES

Quero falar agora dos acontecimentos que precederam a condenação de Sócrates e dos
motivos que levaram a democracia ateniense, amedrontada e vacilante, a mandar para a
morte o seu maior filósofo.

Peço aos deuses que me ajudem neste intento, pois não me surpreenderei se o leitor não
me der crédito.

A Tirania dos Trinta, imposta à Atenas por Esparta, durou apenas um ano, mas neste
curto período cometeu mais crimes do que déspotas de longa vida. Nesta época foi
governada por colaboracionistas que se submeteram ao jugo espartano, mas foi um
ateniense, Trasíbulo, filho de Lico, quem libertou Atenas dos ditadores. Esta figura
merece ser admirada mais pelo mérito do que pela fortuna. Companheiro de Alcebíades
na guerra do Peloponeso, conquistou pela bravura o posto de general. O próprio
Alcebíades, que não primava pela modéstia, costumava dizer que nas vitórias
conquistadas por ambos, ele devia muito a Trasíbulo enquanto que este nada lhe devia.

Quando declarou guerra à ditadura, Trasíbulo acusou os atenienses de falarem mais do


que lutarem pela liberdade. Com apenas trinta companheiros, refugiou-se em Files,
fortaleza da Ática. Quando se entrincheirou em Muníquia, já comandava setenta
patriotas. Exército tão pequeno não preocupou a ditadura, o que foi fatal para os
colaboracionistas. Este fato me leva a recordar aquela máxima que diz: “Na guerra nada
se deve desprezar".
Duas vezes apenas a ditadura entrou em combate com Trasíbulo e seus homens. No
segundo combate, morreu Crítias, o mais cruel dos tiranos, tio de Platão e um dos piores
discípulos de Sócrates.

Morto Crítias, os espartanos procuraram um acordo com Trasíbulo que determinava a


anistia para os cidadãos atenienses, exceto para os trinta tiranos e os dez cidadãos que
executavam suas ordens, e que seriam julgados por seus crimes. O tratado determinava
que Atenas tivesse um governo democrata. Só então, Lísias pôde abandonar a
companhia do excêntrico filósofo e voltar a Atenas, retomando posse de seus bens.
Trasíbulo, para cumprir a palavra e honrar a promessa de anistia, enfrentou
ressentimentos de muitos atenienses que queriam se vingar das crueldades sofridas.
Durante algum tempo, ele foi um dos chefes do novo governo, almejando. restaurar a
democracia nos moldes de Péricles. Cedo decepcionou-se. Os demagogos logo
dominaram a Assembléia do Povo.

Desiludido, abandonou a política e partiu para a Ásia, comandando uma expedição que
tinha por objetivo reconquistar províncias perdidas. Na Cilícia, encontrando-se
deficientemente guardado seu acampamento pelas sentinelas, fizeram os bárbaros uma
investida noturna e o assassinaram em sua tenda. Assim, morreu o último dos autênticos
democratas atenienses. (4)
(4) Vida de Trasíbulo, de Cornélio Nepote

O domínio dos demagogos logo fez grassar a execrável corrupção. Só então o povo
passou a entender melhor o sentido da palavra democracia e o valor de Péricles, que
dominara Atenas pelo período de mais de uma geração. Acusado de almejar a ditadura,
o estadista lograva arrasar seus adversários com sua oratória eloqüente sem, no entanto,
recorrer à perseguição política. Mas não dava tréguas aos demagogos e corruptos,
tornando-se senhor absoluto da Assembléia Popular.
Só agora, cinqüenta anos depois, compreendia o povo que aquela autoridade, malvista
em sua época fora, na verdade, o baluarte salvador da Constituição e do Estado.

Foi a democracia dos demagogos, e não a de Péricles, figura inesquecível para todos
nós, que condenou Sócrates à morte. A crítica socrática aos maus governos tinha
endereço certo. Havia um motivo político encapuzado dentro do processo movido
contra ele. Preferiram acusar o filósofo de irreligiosidade e de corruptor da juventude.
Para que a razão desta injusta acusação se conheça, passo agora a falar de Sócrates, o
cidadão, o pai de família, o amigo e mestre.

Há na Grécia muitos Sócrates, alguns famosos - um que se dedicou à História, um outro


que compunha interessantes epigramas, outro ainda que enaltecia os deuses e heróis -
mas este Sócrates de quem vou falar foi de todos o maior.
Falo daquele que nasceu em Alopeca, povoado da Ática, filho de Sofronisco, escultor e
jardineiro e de uma parteira chamada Fenereta. Graças à sua precoce sagacidade, foi
alvo, desde menino, da admiração de seus mestres. Anaxágoras, preceptor de Péricles,
impressionou-se de tal forma com seu talento e espírito, que resolveu iniciá-lo nos
estudos da Geometria e da Física. Com a condenação e exílio de Anaxágoras, Sócrates,
adolescente, passou-se para as aulas de Arquelau, o físico, assim chamado por ter sido
o último representante da Filosofia naturalista, aquela que estuda o universo. Mas
Sócrates foi o primeiro filósofo que realmente incluiu a Moral no estudo da Filosofia - o
que lhe foi fatal - e também o primeiro filósofo da Grécia que morreu condenado pela
justiça. (5)
Algumas observações de Arquelau em sua obra “Da Filosofia das Leis, do Bom e do
Justo”, bem como aquela sua máxima, segundo a qual, “O justo e o injusto não estão na
natureza, e sim nas leis” chamaram a atenção de Sócrates para o grave problema da
moral daqueles que formulam as leis e dirigem o Estado.
Sócrates morava em um casebre num bairro pobre de Atenas. Era casado com duas
mulheres: Xantipa, pessoa de gênio difícil, a quem Sócrates suportava com paciência, e
Mirto, filha de Aristides, o Justo, que nem dote tinha para o casamento.
Os atenienses, querendo povoar a cidade depois de tantas guerras e epidemias,
decretaram que um homem podia se casar com duas mulheres. De Xantipa, Sócrates
teve Lamprocles, rapaz duro e insolente, a quem o pai tornou moderado para que
respeitasse a mãe. De Mirto, mulher apática, teve dois filhos: Sofronisco e Menexeno.
Mirto, depois do casamento, recebeu pensão do Estado, como reconhecimento da cidade
pelos serviços prestados por seu ilustre pai.
Eu ia muitas vezes à casa de Sócrates, e constatava que seus filhos demonstravam por
ele grande afeto. O filósofo falava pouco de sua vida familiar. Uma vez, apenas, eu o
ouvi dizer que tendo suportado Xantipa, estava apto a conviver com qualquer pessoa.
Em outra ocasião, ouvi os dois discutindo e, quando Sócrates juntou-se a nós, Xantipa
atirou-lhe uma bacia d’água.
(5) Nota do Autor: Sócrates referia-se à moral subjetiva, isto é, o cumprimento do dever
pela vontade, e não à moral objetiva, aquela que determina os costumes e as leis. É,
entretanto, a primeira vez em que a consciência individual aparece na História humana,
separada do Estado, da Polis. Por isso referi-me a essa idéia como fatal.
- Depois da trovoada, a chuva - foi o comentário de Sócrates.
As discórdias domésticas, entretanto, não o abalavam. Conservava ânimo constante e
amável. A um discípulo que lhe perguntou se o homem deve casar-se ou não,
respondeu: “Te arrependerás se casares ou não.” Basta quanto à sua vida familiar.

Sócrates era homem de estatura mediana, ventre proeminente e de feições grosseiras.


Costumavam compará-lo a Silene, velho sátiro que fora preceptor de Baco, cujo busto
se encontra na rua das tavernas. O vulgo, incapaz de perceber a alma, se apega às
aparências. Para seus discípulos, a fisionomia do mestre transmitia tranqüilidade e
sabedoria.

O filósofo usava túnica presa num só ombro e andava descalço. No inverno, enrolava-se
em um manto grosseiro. No exército, chamava a atenção de seus comandantes pela
maneira como enfrentava o frio e a fome sem se queixar. Cuidava do corpo e era
cauteloso com a alimentação. Xantipa, que era excelente cozinheira, nos servia
excelentes jantares, sempre que lá íamos cear. Sócrates comia ervas, peixe e queijos.
Vinho bebia misturado com dois terços de água. Era o suficiente para Xantipa queixar-
se. O marido desculpava-se dizendo que aquele que come com fome não necessita de
comidas esquisitas e que ele comia para viver e não para comer. Para prolongar nossa
permanência, Sócrates, depois da ceia, tocava lira e dançava ao som da flauta tocada por
um de seus filhos. Moças que freqüentavam a casa, muito alegres, dançavam com ele.

É oportuno lembrar que Sócrates tinha saúde de ferro. Jamais caiu doente, não obstante
as epidemias que grassavam em Atenas. Era comum vê-lo alhear-se, como se estivesse
com o pensamento distante. Após essas ausências da mente costumava dizer coisas
profundas e bem pensadas. Era muito cuidadoso em gastar dinheiro. Quando
passávamos pela rua das tendas costumava dizer: “Tantas coisas de que eu não
preciso...”

Este homem, o maior mestre de nosso tempo, jamais lecionava a troco de dinheiro. Nós,
socráticos, o ajudávamos. Eu, que ensinava por estipêndio, trazia minha bolsa na cintura
cheia de moedas, o que chamava sua atenção. Sócrates perguntou-me certa vez:
- De onde tiras tanto dinheiro?
- De onde tu não tiras nada - respondi.
Mas Platão, rico, era quem realmente provia todas as necessidades econômicas de seu
mestre e o dinheiro rendia muito, tal a parcimônia de Sócrates em gastar. Timon de
Atenas, com sua língua ferina dizia que Sócrates emprestava, a juros, o dinheiro que
Platão lhe dava. Sócrates queixava-se: “Este não aprendeu a falar bem.”

Na guerra militou nos combates em Anfípolis, quando salvou Xenofonte, mais tarde seu
discípulo, que caiu da montaria. Nos reveses dos combates, quando os atenienses
fugiam em pânico, Sócrates recuava a passos lentos, voltando-se a todo momento para
defender-se dos que tentavam golpeá-lo. Citado por heroísmo na expedição de Potidea,
cedeu a honraria a Alcebíades, seu companheiro de tenda.

Dizia-se em Atenas que Sócrates ajudava Eurípedes na composição de suas tragédias.


Vários poetas confirmaram isso. Aristófanes, em sua comédia “As nuvens”, diz: “Este
Eurípedes famoso que escreve tragédias e o faz com o auxílio daquele filósofo que fala
de todos os assuntos, e assim elas se tornam belas e sábias.” (6)
(6) Sócrates, Diógenes Laércio.
Os dois eram muito amigos e algumas vezes viajavam juntos. Tendo Eurípedes
perguntado a Sócrates sobre as obras de Heráclito de Éfeso, o filósofo respondeu:
- A parte que eu compreendi é boa. Acredito que a parte que eu não entendi também o
seja.
Para o mestre só havia um bem, a sabedoria, e um mal, a ignorância. Aristófanes,
mordaz por natureza, costumava dizer que Sócrates era capaz de tornar boa as causas
más, e vice-versa, visto que tinha a mesma força para persuadir como para dissuadir.
Timon, em suas sátiras referia-se a Sócrates nos seguintes termos: “Aquele sábio
aparente e simulador, burlador e semi-atenienese.”

Para nós, socráticos, a ironia do mestre não era burladora, e sim um método dialético.
Como educador, Sócrates conseguia tornar moderada muita gente violenta por natureza,
como aconteceu com seu filho mais velho que sempre fora grosseiro. Muitos jovens
atenienses freqüentavam suas aulas, induzidos pelos pais, para aprender a não se
exceder em nada. Dissuadiu o irmão de Platão de entrar na política, por considerá-lo
incapaz, e induziu Carmides a dedicar-se à coisas pública, por considerá-lo apto para tal.
Sócrates detestava os sofistas, acusando-os de empregarem a dialética de má fé, como
os comerciante fazem para vender suas mercadorias.Era orador veemente. Muitas vezes,
durante as discussões, alterava-se de tal forma, que passava a dar murros na cabeça ou a
puxar os poucos cabelos que possuía, o que levava muita gente a debochar dele. Mas o
filósofo tinha paciência ilimitada para sofrer incompreensões e injustiças.

Era incansável quando se tratava de ajudar os amigos. Quando soube que Fédon, jovem
de grande beleza, cujos pais Sócrates conhecera, fora vendido em Atenas como escravo,
por ser prisioneiro de guerra, e forçado a se prostituir pelo próprio dono, o mestre
conseguiu a importância necessária para o resgate, vindo a transformá-lo em um de seus
melhores discípulos. Muitas vezes, Sócrates falava de um gênio que o inspirava. Nós
sabíamos que este gênio era a inspiração ou intuição, e que a ele assim se referia, para
facilitar o entendimento àqueles que se iniciavam nos estudos.

A vida de Sócrates começou a mudar quando Pítia, sacerdotisa do Templo de Delfos,


testemunhou àquele oráculo o que todos na Grécia repetem: “Sócrates é o mais sábios
dos homens.” Este oráculo desatou a inveja de muitos, entre eles os seus acusadores
Melito, Anito e Licon. Os adversários políticos de Sócrates induziram estes três
oportunistas a fazerem a acusação contra o filósofo. Deles falarei adiante.

Já os ditadores impostos por Esparta detestavam Sócrates, por ele haver se recusado a
obedecê-los no caso de Leonte e de Salamina. Coubera ao filósofo, por sorteio, prender
Leonte para ser executado. Como a pena era injusta, ele negou-se a cumprir a ordem,
colocando em risco a própria vida. Os democratas também não o viam com bons olhos,
em virtude das criticas constantes de Sócrates aos demagogos e corruptos que
dominavam de forma nefasta a Assembléia do Povo. Daí a perseguição movida contra
ele por simpatizantes das duas correntes. O motivo da acusação, puramente político, foi
transformado numa denúncia em defesa da religião e dos costumes. É sobre seu
julgamento que passo falar agora.

A acusação jurada contra Sócrates foi formulada por três cidadãos que, não podendo ser
notados pelo mérito, o fizeram pela infâmia: Anito, Melito e Licon. Foi formulada nos
seguintes termos: Sócrates quebrou as leis atenienses negando a existência dos deuses
que a cidade tanto venera, e age contra as mesmas leis, corrompendo a juventude. Anito
representava os artesãos e magistrados do povo, Melito, os poetas, e Licon, os oradores.

Anito era um político ricaço que fracassara como general dez anos antes. Processado
pela derrota, salvou-se, corrompendo os juízes. Abandonou o Partido Aristocrata e
passou-se para o Partido Popular, tornando-se muito influente. Melito - este eu conheci
pessoalmente - era um poeta de segunda ordem, um desequilibrado que vivia o drama
cotidiano de conviver consigo mesmo. Quanto a Licon, escrevia discursos para os
políticos carreiristas e não passava de um bajulador. Estes eram os homens que
acusaram Sócrates de maquinar calamidades e revoluções. O tribunal foi convocado
por meio de arautos e editais. Uma corte de justiça de quinhentos e trinta juízes se
reuniu para o julgamento.

Platão era muito jovem naquela ocasião. Subiu ao púlpito e começou assim seu
discurso:
- Sendo eu, atenienses, o mais jovem dentre aqueles que neste lugar subiram...
Os acusadores e seus companheiros começaram a bater os pés e a gritar:
- Desce! Desce!
Platão, que tinha voz débil, não conseguiu se fazer ouvir. Sócrates o fez descer do
púlpito, abraçou-o, e ocupou a tribuna.
Fez-se um profundo silêncio. O filósofo começou pedindo a atenção dos juízes,
lembrando que o mérito do juiz é escutar; e o do orador, dizer a verdade. Num estilo
franco e atrevido, fez uma defesa de grande beleza. Ele sabia, melhor do que ninguém,
dispor e ordenar os argumentos com a maior perfeição. Rebateu, sem excessos, todas as
acusações imputadas contra ele:
- Das muitas aleivosias que os meus acusadores assacaram contra mim, uma sobretudo
me assombrou: a recomendação de cautela a fim de não se deixar embair pelo orador
formidável que sou! formidável? creio que esta gente considera formidável quem diz a
verdade, eis o que me pareceu o maior descaramento. Verdade, senhores, eles não
proferiram nenhuma, ou quase nenhuma. De mim, porém, ides ouvir a verdade inteira.
E Sócrates leu de forma pausada a acusação que fora formulada contra ele: “Sócrates é
réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê, e sim em uma
divindade nova! “
O mestre lembrou que qualquer um ali poderia perguntar: “Afinal, Sócrates, qual é tua
ocupação" ? De onde procedem as calúnias a teu respeito? Tu não estarias aqui e não
haveria esse falatório, se não tivesses uma ocupação muito fora do comum ou
praticasses alguma extravagância.
- Pois eu vos respondo - replicou - Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência,
e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes Querofonte, de certo. Era meu
amigo de infância e, também, amigo do partido do povo. Ele já morreu, mas seu filho se
acha nesse tribunal e poderá confirmar o que vou dizer. Querofonte, tendo ido a Delfos,
arriscou uma consulta ao oráculo. Perguntou se havia alguém mais sábio do que eu.
Respondeu a sacerdotisa do templo que não havia ninguém mais sábio do que Sócrates.
- O provável, senhores, é que, na realidade, sábio seja o deus que ditou o oráculo.
Apolo quis dizer que pouco ou nenhum valor tem a sabedoria humana. E se usou meu
nome, Sócrates, foi como se dissesse: “O mais sábio dentre vós é quem, como Sócrates,
compreendeu que a sabedoria é verdadeiramente desprovida de valor.”
O filósofo confessou então que a partir da consulta ao oráculo de Delfos, ficara
apreensivo. Poetas e sábios rançosos passaram a ter aversão por ele. Seus acusadores
que representavam estes cidadãos decidiram trazê-lo ao tribunal na suposição de lhe
causarem dano, e não por sua maneira de pensar.
- Imaginemos se dissésseis - conjecturou - “Sócrates, por ora, não atenderemos a
acusação e te deixaremos ir, mas com a condição de abandonares suas investigações e a
filosofia.” Pois eu vos responderia: “Enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais
deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações e de ministrar ensinamentos. E mais,
minha inclinação para a filosofia é tão forte que negligenciei justamente naquilo que
cuida toda gente: riquezas, negócios, postos militares, tribunas, funções públicas, altos
cargos, conchavos e lutas próprias da políticas, enfim, coisas nas quais eu me considero
por demais escrupuloso para me imiscuir sem me perder.”

Sócrates lembrou ainda ao tribunal que nas guerras em que participou, quando jovem,
permaneceu no posto designado pelos chefes e ali enfrentou a morte. Assim aconteceu
na expedição de Anfípolis e na batalha naval de Potidea. Quando se toma uma posição
qualquer que seja, porque tal foi a ordem do comandante ou da consciência, nesta
situação deve-se permanecer diante dos perigos, sem considerar o risco de morte ou
qualquer outro. Lembrou que em toda a sua vida atuou na política só quando lhe coube,
por sorteio, fazer parte da delegação que age em nome do governo, delegação esta que
chamamos de prítanes. (7)

(7) Como na Grécia antiga não havia as magistraturas de um estado moderno para a
execução das ordens emanadas do poder público, o governo, por sorteio, designava uma
comissão chamada de “prítanes” destinada a facilitar o andamentos das resoluções
políticas.

- Naquela ocasião - advertiu - fui o único dos delegados que se opôs às ações ilegais
tanto no regime democrático como na ditadura dos Trinta. Esses tiranos ordenaram que
nossos delegados fossem a Salamina buscar Leonte Salamínio para ser condenado à
morte. Os ditadores se valiam de uma delegação em certas ações a fim de comprometer
o maior número de pessoas na prática de uma iniqüidade. Pois bem, por atos, e não por
palavras, neguei-me a praticar qualquer injustiça. Quatro delegados, entretanto,
sorteados como eu fui, dirigiram-se a Salamina e trouxeram Leonte para morrer. Eu
permaneci em casa. Quiseram prender-me. Achei do meu dever correr o perigo da
prisão e da morte, mas ficar do lado da lei e da justiça. Bem poderia ter sido morto, se a
ditadura não tivesse caído. Há muitas testemunhas deste fato aqui no tribunal e na
cidade.
- Pode ser - avisou ainda o réu - que aborrecidos porque eu vos despertei, como fazem
as abelhas com uma ferroada, deis ouvidos à acusação e me condeneis levianamente à
morte. Depois voltaríeis a dormir o resta da vida, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos
enviar algum outro, que se dedique inteiramente à cidade, e que não cesse de vos
despertar, persuadir e repreender. Mas ficai certos de uma coisa: se me condenardes por
ser eu como sou, causareis a vós próprios maior dano do que a mim. Neste momento,
atenienses, longe de atuar na minha defesa, como poderíeis crer, atuo na vossa, evitando
que, com a minha condenação, cometais uma falta para com a dádiva que recebemos do
deus. Assim a sentença que este tribunal decidir não deve ser, somente, a melhor para
mim. Deve ser, também, a melhor para vós.
Os juízes, perdidos nas astúcias forenses, pareciam indecisos. Inquietos, falavam uns
com os outros com voz ciciada. Deviam condenar Sócrates à morte ou ao pagamento de
multa? (8)
(8) A multa imposta nos casos de indignidade cívica, na Grécia antiga, era uma
degradação.
Sócrates desceu da tribuna e disse:
- Se eu tivesse dinheiro, estipularia uma multa dentro das minhas posses. Não sofreria
nada com isso. Infelizmente não tenho mesmo, salvo se quiserdes estipular tanto quanto
eu possa pagar. Talvez possa pagar uma mina de prata. É quanto estipulo no momento.

Platão aproximou-se do mestre e falou-lhe ao ouvido.


- Aqui está Platão, atenienses - disse Sócrates apontando para seu discípulo -
Juntamente com Críton, Critóbulo e Apolodoro pede que se estipule trinta minas, sob
sua fiança. Estipulo, pois essa quantia. Serão fiadores estas pessoas idôneas.

O presidente do tribunal, o mais idoso dos juízes, com voz de homem fatigado ao
extremo, pediu que se fizesse a votação. Um a um, em fila, os juízes depositaram seus
votos na urna. Os que queriam a condenação de Sócrates colocavam pedrinhas pretas,
os que o absolviam, pedrinhas brancas.

Sócrates foi condenado à morte por duzentos e oitenta votos, trinta a mais do que os que
o absolviam. Platão quis falar, mas a voz travou-se-lhe na garganta. Voltou para seu
lugar e chorou. Sócrates estava pálido e falou de forma pausada.
- Para que eu me conforme com este resultado concorrem muitas razões, entre elas a de
não se tratar de fato inesperado. Eu imaginava que a decisão seria esta, não por pequena,
mas por grande margem. Constato que com a transposição de apenas trinta votos, eu
estaria absolvido.
Jogando para o ombro a dobra do manto, o filósofo voltou-se para os cidadãos presentes
e, agora com voz hostil e fria, continuou:
- Nas batalhas, atenienses, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as armas e
suplicando piedade aos inimigos. De mim não ouvireis lamentos e gemidos, coisas que
declaro indignas. Não é difícil escapar à morte, difícil é escapar da maldade.
Voltando-se para os juízes, advertiu:
- Eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão
para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo vos
alcançará logo após a minha morte. Serão numerosos os que vos pedirão contas. Até
agora eu os continha e vós não percebíeis. Eles serão tão mais importunos, quanto mais
jovens são.
À minoria que votara pela sua absolvição, disse, para seu consolo:
- A morte, quer seja aniquilamento do ser ou ingresso em outra vida imortal não é um
mal, pois que não há males para o homem bom, vivo ou morto. Peço apenas que tratem
meus filhos como sempre tratei meus concidadãos: corrigindo-os e estimulando-os a
serem virtuosos.
E concluiu:
- Já é hora de partirmos, eu, para a morte e vós, para a vida. A quem caberá melhor
sorte, ninguém sabe, somente as divindades.
Dois oficiais da Guarda Carcerária levaram Sócrates de volta à prisão.
Uma peregrinação a Delfos, em homenagem a Apolo, adiou a execução de Sócrates.
Manda uma lei que, a partir do momento em que se começa a tratar de uma
peregrinação religiosa, enquanto ela durar, a cidade não pode ser maculada por
nenhuma execução capital em nome do povo.

Com o término da peregrinação, os magistrados ordenaram a execução. Na véspera da


chegada do barco, Críton anunciou-lhe:
- Amanhã terás que morrer.
- Em boa hora - respondeu o filósofo - se assim o desejarem os deuses, assim seja.
Críton suplicou-lhe que aceitasse a fuga que os amigos lhe haviam preparado.
- Não se atraiçoe a si próprio, nem aos filhos e amigos recusando o nosso plano.
- A única coisa que importa - redargüiu Sócrates - é viver honestamente, sem cometer
injustiça, nem mesmo para retribuir uma injustiça recebida. Se no momento da fuga, as
leis me fossem apresentadas e me perguntassem se, subtraindo-me ao seu mandato,
desejo desprezá-las, e cometer a maior impiedade contra a pátria, que poderia eu
responder?
Críton deu-se por vencido.
- Basta, pois, Críton, e vamos pelo caminho por onde os deuses nos levam. (9)
As autoridades entregaram uma lista designando as pessoas que podiam acompanhar
Sócrates em seu último dia de vida. Além dos familiares do condenado, autorizaram
Fédon a escolher doze discípulos que poderiam ficar no cárcere e acompanhar a
execução. Fédon, o escravo que Sócrates libertara, havia se tornado um de seus mais
ardentes seguidores. Platão, enfermo e submetido a grande tensão emocional, não
compareceu. Eu e Colombroto estávamos viajando. Coube-nos, por sorteio, fazer parte
de uma delegação à cidade de Engina.

Fédon contou-nos que, no dia da execução encontrara Sócrates tranqüilo, embora


sofrendo de uma dificuldade para urinar. Recordo-me que o mestre queixava-se, há
muito, da eliminação lenta e dolorosa da urina. (10)
(9) Foram usados trechos da “Defesa de Sócrates” escrita por Platão (col. “Os
Pensadores, trad. Jaime Bruno, Ed. Victor Civita e de “Sócrates”, R. Mondolfo, trad.
Lycurgo G. Costa, ed. MestreJou.
(10) Carta de Platão

Ao ver Fédon e os outros discípulos, mostrou-se alegre. As mulheres de sua casa


estavam ao seu lado. Xantipa teve uma crise de nervos e, com a chegada dos amigos do
marido, começaram a chover maldições e palavrórios como só ela sabia proferir.
Gritava que a condenação de Sócrates fora injusta. Sócrates procurava acalmá-la
dizendo: “Querias que a minha morte fosse justa, mulher? “
Vendo que Xantipa se tornava cada vez mais enfurecida, o filósofo pediu a Críton que
levasse a mulher para casa. Em seguida, com suavidade, pediu a Mirto e aos filhos que
o deixassem a sós com os discípulos. A mulher e os filhos o abraçaram, chorando, e se
retiraram.

O carcereiro aproximou-se e pediu a Fédon que não deixasse Sócrates falar muito.
- Falando muito - explicou o homem - a pessoas se aquece, contrariando a ação do
veneno. Caso ele fale em demasia - insistiu - a morte será mais lenta e talvez seja
necessário dar duas ou três doses, para o veneno surtir efeito. Depois de tirar as
correntes do prisioneiro, o carcereiro se retirou.

Sócrates, esfregando as pernas, queixou-se de entorpecimento dos membros. Pediu aos


discípulos que se sentassem em torno dele, e perguntou a Fédon se ele iria cortar os
cabelos. O jovem, que tinha cabelos longos, respondeu que sim. O filósofo acariciou os
cabelos do discípulo e pediu que não o fizesse. Desencolheu as pernas e, massageando-
as, começou a conversar.
- Pois, amigos, quanto a mim, parece que vou hoje mesmo, uma vez que os atenienses
assim o ordenaram.
Fédon, que fora ao cárcere angustiado, mas com a intenção de encorajar o mestre,
constatou que acontecera o contrário. As palavras de Sócrates é que o fortaleciam.
O filósofo teve, então, com seus discípulos sua última palestra. Tomando em
consideração uma proposta feita por Cebes sobre a licitude do suicídio, que ele,
Sócrates, condenava, evocou uma imagem que lhe ficara na memória dos tempos em
que, de lança na mão e escudo no braço, lutara nas batalhas de Anfípolis e Potidea, sem
jamais abandonar o posto - imagem essa que já tinha usado em sua defesa:
- A vida, Cebes, é um posto que o destino nos deu e que não podemos abandonar.
Temos que aguardar a determinação da sorte. E quando este dia chegar, devemos estar
preparados. Aquele que aplicou toda a sua vida à Filosofia não faz mais do que se
preparar para a morte. Praticar o bem e a justiça enquanto vivemos nos encoraja no
momento extremo. Essas virtudes nos levam à sabedoria, e a verdadeira sabedoria não
teme a morte.
Tendo alguns discípulos expressado suas dúvidas sobre a imortalidade da alma,
Sócrates falou longamente sobre o destino da alma após a morte.
- O que faz o corpo viver é a alma - disse ele - e esta leva em si a vida, que é imortal. E
por ser imortal, temos que cuidar da alma antes de tudo, levando-a para o bem e a
justiça. Nosso corpo não possui nenhum sentido para apreciar o belo, o bem e a
grandeza. Para atingirmos a sabedoria que nos leva à verdade, servimo-nos da alma,
isolando-a do corpo, das fraquezas e das ilusões deste: amores, enfermidades e temores.
Sócrates falou longamente sobre este tema. Confesso que ultrapassa as minhas
faculdades expor seu raciocínio sobre a imortalidade da alma. Minha doutrina vê este
tema sob outro ângulo. Mais tarde, Platão veio a escrever sobre este assunto um belo
diálogo, chamado “Fédon”. Declaro que não sei onde termina Sócrates e começa Platão
neste escrito. Os dois se confundem, tamanha era a afinidade entre ambos.
A certa altura, Sócrates levantou-se, passou para um pequeno quarto e se banhou, a fim
de que os outros não tivessem o trabalho de lavar seu cadáver.

Ao voltar do banho, sentou-se novamente, mas a conversa durou pouco. Logo se


apresentou o carcereiro que falou com humildade e voz incerta:
- Sócrates, por certo não me darás a mesma razão de queixa que tenho contra outros
condenados que se enchem de cólera e me cobrem de imprecações quando os convido a
tomar veneno, porque tal é a ordem dos magistrados. Tu, conforme tive ocasião de
verificar, és um homem corajoso e brando.
Sócrates levantou-se, colocou a mão no ombro do carcereiro, e voltando-se para nós,
disse:
- Durante toda a minha permanência aqui, este homem várias vezes veio me ver, e até
conversou comigo. Excelente homem! Pois bem, avante! Que me tragam o veneno.
O carcereiro pareceu emocionado e nós começamos a chorar.
- Que estais fazendo? - lamentou Sócrates - Se mandei as mulheres embora, foi
sobretudo para evitar semelhante cena, pois segundo me ensinaram, é com belas
palavras que devemos morrer. Acalmai-vos, vamos! Dominai-vos!
O carcereiro saiu e retornou depois de alguns instantes com uma taça. Sócrates
perguntou:
- Então, meu caro! Tu que tens experiência disto, o que é preciso que eu faça para
facilitar a ação do veneno?
- Nada mais - explicou o homem - do que dar umas voltas caminhando, depois de haver
bebido, até que as pernas se tornem pesadas, e deitar-se. Desse modo o veneno
produzirá seu efeito mais rapidamente.

Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este a recebeu, conservando a serenidade.


- Dize-me, é ou não permitido derramar no chão algumas gotas, em homenagem aos
deuses, como fazemos nos banquetes?
- Só sei, Sócrates, que trituramos a cicuta na quantidade suficiente para produzir seu
efeito, nada mais.
- Entendo - respondeu Sócrates.
Levantou a taça e, cerrando os olhos, recitou uma prece. Em seguida, sem relutar,
bebeu até o fundo.
Nesse momento, nós, que havíamos nos controlado atendendo ao pedido do mestre, não
pudemos mais nos conter, e prorrompemos em pranto, abraçando-nos uns aos outros.
Sócrates, mais uma vez, insistiu para que nos controlássemos. Sua fisionomia estava
contraída em virtude do amargor da poção. Assim ficou alguns momentos, mas logo
voltou à expressão serena que lhe era habitual. Pôs-se, então, a andar de um lado para
outro como aconselhara o carcereiro. Este, vendo que o prisioneiro esvaziara a taça,
retirou-se.
Sócrates, depois de andar um pouco, sentiu as pernas pesadas. Deitou-se, então, de
costas, como lhe havia recomendado o homem. Passados alguns momentos, momentos
esse que foram os mais trágicos que vivemos, lembraria Fédon alguns anos depois, o
carcereiro voltou e apalpou os pés e as pernas de Sócrates. E assim continuou a fazê-lo a
intervalos. Num certo momento, depois de apertar os pés, perguntou a Sócrates se o
sentia. O mestre sussurrou que não. Depois disso, tocou o tornozelo e, subindo aos
poucos, nos fez ver que Sócrates começava a ficar frio e a enrijecer-se. O filósofo, com
voz sumida, chamou Críton. Este se debruçou sobre Sócrates.
- Críton - murmurou - devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de pagar esta
dívida (11)
(11) Sócrates refere-se a alguma oferenda a Asclépio, deus hábil na ciência de curar.
Seus templos foram os primeiros hospitais da Grécia antiga.
- Assim farei - prometeu Críton, com voz embargada.
Ao cabo de alguns instantes, Sócrates fez um movimento. Ouviu-se um longo suspiro e
seu corpo ficou imóvel. O olhar estava apagado e fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a
boca e os olhos. O carcereiro ainda se demorou alguns momentos. Depois de cobrir o
corpo, retirou-se. Nós chorávamos. Apolodoro, com gritos de dor e de cólera, abraçou-
se ao corpo do mestre. (12)
Assim morreu Sócrates, o homem mais justo de nosso tempo.
Depois de sua morte, Platão e outros de seus discípulos, buscaram refúgio na casa de
Euclides (13), em Mégara, a oeste de Atenas, cidade debruçada sobre a baía de
Salamina.

Desejo dizer duas palavras sobre este filósofo maçante e amável, para depois me voltar
para Platão. Euclides fora seguidor de Parmênides, e depois estudou com Sócrates. Era
enérgico nos debates e muito cuidadoso na escolha das palavras. Assim agia, porque seu
primeiro mestre escrevera que se alguma palavra é usada com algum sentido é porque
quer dizer algo, não nada, e portanto, o que a palavra significa deve existir de algum
modo.

Quando estive em Mégara, ceando em sua casa, num ambiente de moderada animação,
lembrei aquele trecho da tragédia de Sófocles, quando Electra encontra seu irmão
Orestes. Euclides me interrompeu para corrigir:
- Electra não sabia que Orestes era seu irmão, quando este voltou a Argos para vingar a
morte do pai.
(12) A cena foi baseada no diálogo “Fédon” de Platão (col. “Os Pensadores, ed. Victor
Civita)
(13) Não se trata do famoso geômetra

- Mas Electra era irmã de Orestes - insisti.


- Ela não o reconheceu de imediato - teimou Euclides - a palavra irmão não tinha
nenhum significado para Electra naquele momento.
Euclides usava a significação das palavras com extremo rigor. Sócrates costumava
criticar-lhe os argumentos, por serem excessivamente minuciosos. O mestre, que aos
vinte anos conhecera Parmênides já em idade avançada, afirmava que o próprio filósofo
não era tão exigente na escolha das palavras, como seu discípulo fazia crer. Euclides
estava sendo, neste assunto, mais realista que o rei. Voltemo-nos agora para Platão.

Quando Sócrates morreu, Platão tinha vinte e sete anos. Obras como “Górgias”, “O
Banquete”, “Fédon”, e a “República” já andavam de mão em mão. Cinco anos depois,
foram publicadas. Platão ficara em evidência e sabia que os demagogos não lhe dariam
trégua. De Mégara, não voltou a Atenas. Velejou para Cirene, minha cidade natal, e se
fez discípulo de Teodoro, o matemático. De Cirene foi para a Itália, onde estudou com
os pitagóricos Filolao e Eurito. De lá viajou para o Egito, acompanhado de Eurípedes, o
escritor de tragédias. No Egito, caiu enfermo e os sacerdotes o curaram com banhos de
mar, o que levava Platão a dizer: “O mar lava as doenças dos homens.” e lembrava que
o próprio Homero escrevera que no Egito todos são médicos.

Depois de estudar com os magos, foi para a Sicília, fugindo das guerras asiáticas. Lá
voltamos a nos encontrar e reatamos nossa amizade depois de longos anos de
desentendimentos. Nesta ilha, Platão viveria sua grande aventura política na corte dos
dois Dionísios, tiranos que pouco caso faziam do bem comum.

Eu já havia estado na Sicília em outros tempos. O primeiro dos dois Dionísios, que se
fizera generalíssimo nos tempos das guerras contra Cartago, assumira o poder absoluto.
Este tirano era uma figura estranha: culto, velhaco, vingativo, embriagava o povo com
festas, jogos e banquetes públicos. Defendia a iniqüidade dos oligarcas, ao mesmo
tempo em que encurtava as rédeas da aristocracia. Pagava oradores para elogiá-lo em
praça pública. Todos os cargos importantes em Siracusa, centro político mais
importante da ilha, eram ocupados por parentes seus ou por pessoas de sua confiança.
Era, entretanto, um político hábil, bom negociador, fundara várias feitorias e fizera de
Siracusa uma cidade bastante procurada por mercadores fenícios, sírios, persas e
egípcios. Os tiranos das cidades gregas do sul da Itália e da Sicília eram militarmente
protegidos por Esparta, adversária de Atenas. Quinze anos antes da morte de Sócrates, o
ateniense Alcebíades, numa malograda expedição, tentara tirar esta região do domínio
de Esparta, mas foi vencido. Ainda hoje os atenienses choram seus mortos.

Quando jovem, na época das guerras cartaginesas, Dionísio casara-se com a filha de um
rico cidadão de Siracusa. Houve uma conspiração contra ele. Sua esposa, apavorada,
suicidou-se. Impressionado com este acontecimento, o ditador, depois de se consolidar
no poder, casou-se com duas mulheres ao mesmo tempo, como que para se precaver
contra a viuvez. Vivia em harmonia com as duas, não se sabendo com qual delas dormiu
a primeira noite. Tratava-as igualmente na mesa e na cama.

Doris, uma das esposas, era de Locres, cidade opulenta do sul da Itália. A outra, de
nome Aristômaca, pertencia a uma importante família de Siracusa. Era irmã de Dion,
cidadão da mais alta reputação que, pela sua natural disposição para a sabedoria,
tornara-se amado discípulo de Platão e personagem importante nesta narrativa.

Das duas esposas de Dionísio, a estrangeira de Locres foi a primeira a lhe dar um filho.
Este fato tornou Dionísio impopular, parecendo aos siracusanos que a linha de
descendência se desviaria para a família italiana.

Atormentado por este problema, Dionísio, sabendo que eu me encontrava na ilha,


mandou-me chamar, visto que os pitagóricos da cidade não se cansavam de falar dos
meus conhecimentos de drogas e purgas. Depois que fui revistado pela guarda, Dionísio
recebeu-me com um amável sorriso.

Vou direto aos conselhos que dei ao tirano. Disse-lhe que “no ato sexual, para engendrar
novo ser, certas posições do corpo são preferíveis a outras. Os esposos devem fazer a
união carnal na posição dos quadrúpedes porque a elevação das costas favorece a
direção do fluido gerador. Disse-lhe ainda que os movimentos lascivos pelos quais a
mulher procura excitar o marido são prejudiciais para a fecundação, visto que pode
afastar o arado do sulco. Pedi-lhe que observasse os animais entre os quais a fêmea se
conduz com modéstia e calma. (14)

Meses depois, indo ao sul da Itália, Arquitas de Tarento contou-me que Dionísio
mandara matar a sogra, a mãe da italiana, acusando-a de celebrar mistérios ocultos para
que Aristômaca, a esposa siracusana, não tivesse filhos. Não falei a Arquitas dos
conselhos que dei ao tirano nem das ervas afrodisíacas que prescrevi. Os compromisso
hipocráticos não me permitiam.

(14) Ensaios de Montaigne

O tirano Dionísio, que mostrava na guerra uma coragem que beirava a temeridade,
trazia, na paz, a mente fustigada por pavores e maus sucessos. Não dormia
duas noites consecutivas no mesmo quarto. Mandou cavar prisões em plena rocha para
os condenados políticos, com corredores estreitos, cuja acústica lhe permitia ouvir, num
sítio secreto, as conversas dos prisioneiros. Ninguém entrava no vestíbulo de sua sala
sem ser revistado, e até mesmo desnudado, para provar que não portava punhal ou
estilete. Seu irmão, que apanhara a lança da sentinela para mostrar, no piso, a forma
geométrica de um terreno que adquirira, provocou no tirano um tal pavor que ele passou
a recriminar o irmão aos berros e matou, ali mesmo, o guarda por ter cedido a lança
sem esboçar reação. A um tal Marsias, a quem dera um importante posto de comando,
mandou matar em virtude de um sonho que tivera, no qual Marsias o assassinava. Basta
isso quanto a Dionísio. Falemos da Sicília.

A ilha da Sicília tem a forma de um amplo triângulo. Uma trirreme leva oito dias para
contorná-la. Está separada do continente italiano por um ínfimo estreito de vinte
estádios (15) Na parte oriental da ilha ficam as cidades gregas, na ocidental, as cidades
cartaginesas, visto que, deste lado, elas estão mais próximas de Cartago. O rio Halicos,
que deságua no sul da ilha, separa os dois povos que durante tantos anos viveram em
guerra.
(15) 3,5 quilômetros.
AS TRÊS VIAGENS DE PLATÃO A SIRACUSA

Após a morte de Sócrates, ao longo de quarenta anos, Platão, já filósofo de reconhecida


notoriedade, navegou três vezes para a Sicília. A primeira, para conhecer a ilha e
observar o vulcão Etna, sendo então senhor de Siracusa o tirano Dionísio de quem falei
há pouco. Na segunda vez, veio à Sicília para pedir ao jovem Dionísio, filho do anterior,
que reconstruísse e repovoasse as cidades gregas destruídas pelos cartagineses. O tirano
prometeu, mas não cumpriu. Na terceira e última vez, já velho, saciado de sabedoria e
cansado de desilusões, voltou pela última vez para encorajar seu amado discípulo Dion,
ministro e tio do ditador, a transformar a tirania em uma monarquia constitucional.

Em todas estas viagens, Platão enfrentou grandes perigos ”mares infestados de piratas,
jogo arriscado com os dois tiranos, intrigas palacianas, escravidão e ameaças de morte
sob suspeita de tramar para derrubar a tirania.”(16).

De volta de jornada médica ao sul da Itália, eu soube que Platão havia chegado a
Siracusa há mais de uma semana. No porto, um marujo me informou que o filósofo
descera à praia e se dirigira ao local onde se faz a raspagem do casco das embarcações.

(16) “A Filosofia Grega desde sua Origem até Platão”, de Julian Marias

Disse-me ainda que Platão estava a procura do piloto Hacóris para entregar cartas para
amigos em Corinto.

Lá, realmente, encontrei Platão palestrando com o piloto. Após abraços e saudações,
afastei-me a fim de que os dois terminassem a conversação. A trirreme que trazia, no
extremo da proa, uma carranca de monstro marinho de cores berrantes, pareceu-me
gigantesca posta a seco, sobre troncos de madeira. Os remos soltos lembravam as asas
de um pássaro ferido. Homens da tripulação, reluzentes de suor, trabalhavam em torno
de caldeirões fumegantes de pez e alcatrão.

Observei o filósofo. Bronzeado do sol, espadaúdo, vestia uma túnica de linho siciliano,
cingida no ventre por um cinto largo do qual pendia uma bolsa de couro. O piloto era o
mesmo que me trouxera um ano antes. Era de raça fenícia, nariz adunco, barba negra,
sem bigode. Trajava túnica colorida à moda persa, trazia anéis em todos os dedos e
usava colares e braceletes que tilintavam com os gestos exagerados de homem
habituado a expressar-se também com mímica no comércio com povos de todas as
raças. Hacóris, entretanto, falava grego sem sotaque. Homem rude, calejado pelos
perigos do mar, costumava se deliciar com o pavor dos passageiros nos momentos
difíceis da viagem.

Terminadas as instruções de Platão ao piloto, os dois vieram ao meu encontro. Platão


me disse que fora alegremente hospedado, na cidade, pelo pitagórico Amiclas.

Antes de nos despedirmos, o piloto Hacóris, que era dado a gracejos, como todo
oriental, contou a Platão que no ano anterior, quando me trouxera em seu barco, caíra
sobre nós uma negra tempestade, na altura da ilha de Chipre. Tal havia sido o meu
pavor, que levara ele, Hacóris, a perguntar de que servia a minha filosofia, se numa
desgraça comum eu me lamuriava. E eu lembrei, rindo, a resposta que havia lhe dado
naquele momento no barco: “ Oh, Hacóris, se houver um naufrágio hoje à noite, entre
nós dois, a perda não será a mesma.” (17)
Platão observou:
- Não te envergonhes do medo, Aristipo, desde que continues a enfrentá-lo.
Tudo terminou em risos e abraços. Hacóris retornaria a Atenas no dia seguinte,
comandando, além de sua galera, dois barcos mercantes com carregamento de trigo para
os habitantes da cidade.

De volta à muralha, informei a Platão que Dionísio parecia preocupado com a presença
dele na cidade. O ditador perguntava-me constantemente o que vinha o filósofo fazer na
ilha. Aconselhei-o a visitar o tirano. Platão sacudiu os ombros sorrindo e me explicou
que estava fatigado com a viagem, e se deixara ficar por ali alguns dias sem
compromisso. Iria, entretanto, pedir uma audiência a Dionísio como mandam os bons
costumes.

Soube depois que Platão fora levado à presença de Dionísio pela mão de Dion, discípulo
inflamado do filósofo e ministro do tirano. Logo percebi a razão pela qual Platão,
estando na ilha há mais de uma semana, se mostrara evasivo ao me dizer que,
oportunamente, pediria audiência ao ditador. Na verdade, ele aguardava o retorno de
Dion, que fora a Acragas, cidade muito concorrida na ilha, chefiando uma delegação.
Tudo havia sido ajustado, por cartas, quanto Platão se encontrava em Tarento, no sul da

(17) Diógenes Laércio


Itália, em visita a Arquitas, tirano daquela cidade. Compreendi, então, que a política era
para Platão o chão firme por onde caminhavam suas idéias. Sem a política, o filósofo
não tinha onde arrimar-se. A viagem de Platão a Siracusa tivera, portanto, um propósito
há muito amadurecido por ele e Dion.
Dion, muito jovem, mostrara possuir um caráter altivo, magnânimo e corajoso. Culto,
amante do trabalho, ocupava o posto mais importante na cidade depois de Dionísio. Seu
sonho era aperfeiçoar as instituições políticas da parte grega da ilha, transformando a
tirania em monarquia, com leis iguais para todos. Com este objetivo, aconselhava-se,
sempre, com Platão.
A política externa era o calcanhar de Aquiles do governo de Dionísio. A dependência
militar de Esparta e as difíceis relações com os cartagineses podiam, a qualquer
momento, desgraçar a cidade. Dion, pela energia no trato e fidelidade à palavra
empenhada, inspirava aos bárbaros um respeito que nenhum grego conseguira até então.
O tirano sabia que o cunhado era a face boa de seu governo. Sentia por ele sincero afeto
e o distinguia com honrarias, embaixadas e comissões. Dionísio dera ordem ao seu
tesoureiro para colocar à disposição de Dion, sem prestação de contas, qualquer
importância de que ele necessitasse. As virtudes de Dion e os postos que ele ocupava na
Sicília grega levaram Platão a ver nele o monarca esclarecido e justo do seu ideal
político. Isso viria a ser fatal para ambos, como veremos adiante.
O clarividente Prometeu, para libertar os homens, desafiara os senhores do Olimpo.
Platão e Dion, para libertar os gregos da ilha da negra tirania, iriam enfrentar Dionísio e
uma oligarquia empedernida, egoísta e ambiciosa. A funesta Caríbidis,(18) como o
próprio Platão chamava a Sicília, estava com o olhar sinistro pousado no filósofo e em
seu discípulo.
(18) Mulher que, por ter roubado dois bois a Hércules, foi fulminada por Júpiter e
transformada em perigoso golfo que se encontrava no estreito da Sicília.
Platão fundou outra academia em Siracusa. Cidadãos de todas as idades acorriam para
ouvir suas palestras. Dionísio, também, animava-se com a idéia de transformar Siracusa
num centro de estudos de filosofia, matemática e poesia, visto que pensadores, poetas e
escultores pareciam desiludidos com os acontecimentos em Atenas.

Na ilha, todos pareciam felizes. Ao anoitecer havia no palácio música, dança, tertúlias
regadas a vinho e ceias prolongadas por discussões filosóficas. Dionísio, mostrando o
apreço que tinha por Platão, convidou-o a participar do Conselho e, para tê-lo à vista,
persuadiu-o a mudar-se para a casa pequena, bem acabada, rodeada de roseiras, nos
fundos do jardim do palácio. Platão não pôde recusar, mas viu nesta amabilidade
hospitaleira certa astúcia. O tirano estaria assim informado de todos os seus passos e das
visitas que recebia.

Com o andar do tempo, as coisas foram mudando. Durante uma ceia, à qual Platão não
comparecera, e tampouco Dion, por estar viajando, nós falávamos de leis. O tirano
aproveitou para reprovar a opinião de Platão, exposta na noite anterior e, com um olhar
estranho voltado para nós, exclamou:
- O que quis Platão dizer? Ele ontem falou de leis como se condenasse as instituições
siracusanas.

Eu cuidadosamente ponderei que Platão não tivera a intenção de criticar os costumes de


Siracusa. As leis estão sujeitas a aperfeiçoamento, conforme o rumo dos
acontecimentos. Submetê-las a críticas é melhorá-las.

Dionísio, que estava reclinado em coxins, ergueu-se, apoiando-se no cotovelo e


lembrou:
- Todos aqui ouviram! Platão falou como se não houvessem leis em Siracusa!

Os convidados concordaram numa só voz, todos se lembravam. Sentido-se apoiado, o


tirano inchou de cólera e berrou:
- Boas máximas e bons costumes transmitidos de pai para filho são melhores do que leis
escritas.
Como se discutia política - ponderei - o que Platão disse é que o bom governo é aquele
que tem boas leis e se submete a elas.
Dionísio levantou-se pesadamente e se inclinou como se fosse me abraçar, como era de
seu hábito com os amigos. Mas não. Cuspiu-me na cara. Gargalhadas explodiram na
sala. Pálido, ele voltou a se reclinar nos coxins. Limpei o rosto com a toalha.
- Os pescadores se molham pescando sardinhas - murmurei - Eu me molhei tentando
pescar uma baleia. (19)
Dionísio, mais tranqüilo, sentenciou:
- Os fatos determinam as leis, e não as idéias, como pensa Aristócles.
Pela primeira vez, ouvi Dionísio chamar Platão pelo nome de nascimento, e não pelo
apelido tão familiar a todos nós. Um abismo se abrira entre os dois.

Dias depois, por ocasião do meu aniversário, o tirano, como se quisesse reparar a
grosseria que me fizera, mandou-me dois talentos de prata. (20)
À noite decidi ir ao palácio agradecer a dádiva. Antes passei na Taverna dos
Marinheiros para entregar ao piloto de uma trirreme cartas para minha filha. Lá, na
(19) Diógenes Laércio
(20) Equivalente a 12 mil dólares

companhia de amigos, prolongando o vinho por amor à conversação, embotei de tal


forma meu espírito, a ponto de me tornar inconveniente. No palácio, ajoelhei-me aos
pés de Dionísio, como é costume nas cortes de potentados, pronunciando palavras de
gratidão. Platão, que nos observava de longe, chamou-me à parte e, num tom de
censura, murmurou:
- Um cidadão ateniense não se ajoelha diante de um tirano!
Tentei justificar minha humildade:
- Mas Dionísio tem os ouvidos nos pés.
Em Siracusa corriam rumores de que Platão não gozava mais das graças do tirano. Os
amigos de Dionísio - o grupo partilhava uma amizade de lobos - sentiam um prazer
perverso quando ouviam o tirano censurar Platão.

Nós, socráticos, reconhecíamos a importância histórica de Dionísio na preservação do


domínio grego da ilha. Se os bárbaros tivessem dominado toda a Sicília, teriam,
também, conquistado o sul da Itália. Dionísio fora o baluarte que impedira esta
catástrofe. Milcíades, Temístocles, Leônidas, Pausânias e Aristides, ao derrotarem os
persas, salvaram a Grécia continental. Dionísio e seu cunhado Dion fizeram o mesmo,
derrotando os cartagineses. Um, com as armas, e outro, com tratados e alianças.

As cidades gregas do sul da Itália produziram filósofos e matemáticos de suma


importância. Pitágoras veio de Samos e estabeleceu-se lá, fundando uma das mais
eminentes escolas de filosofia e matemática. Os pitagóricos educaram várias gerações
de jovens gregos na Itália. Empédocles era siciliano, Parmênides e Zenon, itálicos. Os
bárbaros teriam destruído as obras destes pensadores e assassinado seus seguidores.

Achava Platão que terminadas as guerras, cabia aos tiranos da região o aperfeiçoamento
das instituições políticas. Foi neste ponto que começaram os desentendimentos entre
Platão e Dionísio. Silenciado o fragor das armas, os donos do poder deveriam
estabelecer leis justas que conciliassem a clemência e a justiça. Os príncipes, no entanto,
continuavam a governar com as leis de guerra, como se o povo fosse o grande inimigo.

Dion concordava com seu mestre. As crueldades e iniqüidades do cunhado todo-


poderoso o consumiam. Pensara muitas vezes em exilar-se com a família. Platão o
dissuadiu da idéia: ele, Dion, era o elemento moderador do governo de Dionísio e
deveria continuar no posto de Primeiro-Ministro do tirano para o bem dos gregos da
ilha.

Dionísio, o generalíssimo, já cumprira sua missão. Dionísio, o chefe de estado devia,


agora, dizer ao povo o que pretendia. O conselho de Platão a Dion desencadeou o drama
que passarei a narrar.

Naquela tarde, quando Amiclas, amigo de Platão em Siracusa, bateu à minha porta,
fiquei preocupado. O pitagórico trazia-me notícias que demandavam cautela. Eram
confidenciais.
- Dionísio decidiu demitir Platão do Conselho - queixou-se - e ordenou-lhe que deixasse
a ilha.
Fiquei perplexo. Eu sabia que os pitagóricos, cuja seita acreditava na transmigração das
almas, vaticinavam calamidades até para depois da morte. Aquela notícia, entretanto,
caiu sobre mim como um raio.
- E Platão, o que disse?
- Que não sendo um hóspede do agrado do príncipe, deixaria a ilha depois do próximo
Conselho. Ocupara um alto cargo e não poderia embarcar na calada da noite, como
fugitivo. Queria primeiro explicar ao Conselho suas verdadeiras intenções. Viajaria em
seguida.
- E Dionísio concordou?
- Discutiram muito. Dionísio cedeu. Tu sabes como Platão é inflexível quando defende
suas idéias.
Eu nada falei a Platão, conforme me pedira Amiclas. Mas fiquei com a mente turvada.
No dia seguinte, avisaram-me que o Conselho fora convocado para dali a três dias. Vi
que Dionísio tinha pressa em se desfazer de Platão.

Quis avisar a Dion, que viajara para Tarento, credenciado que fora junto à corte de
Arquitas, tirano daquela cidade. A mão do tempo, entretanto, não colocaria Dion em
Siracusa no dia da realização do Conselho. Preferi não enviar qualquer notícia a
Arquitas, homem violento e amigo de Platão, pois poderia praticar algum desatino, o
que tornaria mais arriscada ainda a situação do filósofo.

Na ausência de Dion, o Conselho era presidido pelo próprio tirano. A intenção de


Dionísio era clara: prolongar a estada de Dion em Tarento e livrar-se de Platão antes da
volta do cunhado.

O Conselho de Siracusa reunia-se, eventualmente, por edital afixado na praça. Os trinta


cidadãos mais importantes da cidade compunham a comissão. Era pura formalidade,
que tinha por objetivo dar apoio institucional a Dionísio nas relações de Siracusa com as
outras cidades.

Eu participava do Conselho como auxiliar de Dionísio nas questões matemáticas das


despesas e dos cálculos das obras. Sentava-me numa mesa, ao lado do tirano,
juntamente com um servo que portava a tábua de cálculos.

O Conselho já estava reunido quando eu cheguei. No pátio onde, usualmente, havia dois
guardas, achava-se formado todo o corpo da guarda do palácio. Dionísio cruzou a sala
com arrogante rapidez e deu início à sessão. Mostrava-se mal-humorado. Foram votadas
questões relativas à exportação de cereais, construção de barcos mercantes e obras para
a ampliação do porto. A pedido do príncipe, eu desci ao porão para buscar documentos
relativos às obras das casas de banho e das fontes públicas, cujas despesas deveriam ser
apreciadas. Quando voltei, ouvi vozes confusas. Platão havia chegado e falava. As
palavras saíam lentas e contadas. Vi que ele se dirigia ao Conselho.
- Durante minha longa estada junto de vós, como ministro do vosso poder, cabia-vos o
proveito e a mim as calúnias, por mais duras que fossem.
Dionísio, irritado, mexeu-se na cadeira.
- O Conselho é soberano - disse com voz áspera. - As decisões foram submetidas à
votação.
Platão, impassível, continuou:
- Todos aqueles que participam da vossa administração dão disso testemunho, esses que
em tão grande número socorri e salvei de terríveis castigos, pois sabiam bem que
nenhuma só das vossas crueldades me seriam atribuídas.

Ouviram-se protestos. Dionísio, com um gesto, pediu silêncio. E Platão continuou:


-Depois de ter sido muitas vezes, responsável absoluto pela guarda de vossa cidade, vi-
me despedido ignominiosamente, como não seria lícito esperar que se fizesse a um
mendigo expulso com ordem de embarcar, eu, que tanto tempo passei junto de vós! “
Os membros do Conselho se entreolhavam, vigiando os gestos do tirano. Foi então que
Platão pela primeira vez dirigiu-se ao Príncipe.
- A tão avultada quantia que me mandastes para a viagem, o portador irá devolver-te.
Era insuficiente para a despesa da jornada e sem nenhuma outra utilidade além dessa.”
Dionísio replicou irritado:
- Eu apenas enviei a importância que te devia, visto que foi atendendo ao apelo de Dion
que eu te chamei. Eu te reembolsava da despesa que fizeste em meu nome.
- Aliás, só te traria a ti, que a davas, a pior das desonras, e a mim, acaso a aceitasse, um
não menor quinhão de ignomínia. Por isso recuso.
- Não vejo nenhum desdouro em recebê-la - insistiu Dionísio.
- Sem dúvida que para ti não tem qualquer importância receber ou dar qualquer quantia.
Assim, guarde-a e aproveita-a para com ela adulares teus amigos, como a mim próprio
adulaste. E por ti já o fui demasiado.”
- Respeitava apenas aqueles que te consideram o maior filósofo vivo - explicou Dionísio
com voz trêmula. - Baseado nesta informação te chamei. Dinheiro não me falta. Posso
chamar a Siracusa todos os filósofos famosos.
- Já vi tiranos caídos, sem amigos - disse Platão - mas sem dinheiro nunca vi. Adeus.
Reconhece os grandes erros que cometestes para comigo, a fim de melhor te poderes
conduzir com ou outros (21)
(21) As palavras de Platão foram retiradas de trechos de cartas que ele escreveu a
Dionísio.
Assim falou Platão na grande sala do Conselho de Siracusa. E mais não quis dizer. Com
passos lentos, retirou-se.
Ao contrário do que todos pensavam, Dionísio não reteve o filósofo. Parecia até
aliviado. Provara ao Conselho que tinha razão quando decidira expulsar Platão da ilha.
Pálido e calmo, perguntou:
- De que assunto trataremos agora?
Platão decidiu deixar Siracusa o mais rápido possível para não criar dificuldades para
Dion.
Encontrava-se ancorada no porto de Siracusa, naquela época, uma trirreme com partida
marcada para a Grécia dali a três dias. A nave era comandada por um almirante
espartano de nome Pólis, que viera visitar Dionísio como embaixador, a serviço de sua
cidade. Depois de ajustar com Platão as condições da viagem, o comandante foi
ocultamente ao palácio a fim de consultar o tirano, que autorizou a viagem do filósofo.
Gente do palácio, entretanto, contou-me que o Dionísio e o espartano conversaram
longamente , caminhando os dois a passos lentos no jardim. Pólis deixou o palácio,
noite alta, com a fisionomia descorada e sombria. A preocupação do navegador tinha
origem num murmúrio secreto do tirano em seu ouvido. Ele foi visto na taverna dos
marinheiros, de madrugada, com a cabeça apoiada nas mãos, cismando com os olhos
cerrados. Quais os motivos que atormentavam a mente do espartano? Interrompo aqui o
fio da minha narrativa a fim de expor um fato que chegou ao meu conhecimento anos
mais tarde, para depois voltar a ela, na ordem certa dos acontecimentos.
Eu soube posteriormente em Engina, cidade grande e fortificada no sul de Atenas, que
Dionísio pactuara com o comandante da trirreme matar Platão em alto-mar e atirar o
corpo aos peixes. Na opinião do tirano, Platão devia morrer porque tentara desviar Dion,
provocando transtornos no seu governo e prejuízos à aliança com Esparta. Dizem que
Dionísio pagara uma vultosa quantia ao espartano para a prática de tão infame tarefa.
Mas Pólis, cavilando à noite na taverna, preferiu tirar proveito daquele jogo de
celerados e malfeitores. Decidiu vender Platão como escravo em Engina. Esta cidade
estava em luta com Atenas e, pelas leis de guerra, qualquer cidadão inimigo,
aprisionado ou vendido, seria considerado escravo, acontecendo o mesmo do lado
oposto. Se fosse cidadão importante, como no caso de Platão, estaria sujeito a resgate.

Desse modo, a astúcia e a cupidez do comandante salvaram Platão da morte certa.


Depois de longas e exaustivas negociações, os discípulos de Platão conseguiram
levantar a importância exigida para a sua libertação, e o filósofo voltou, são e salvo, à
sua cidade e à sua Academia. Dion ignorava estes acontecimentos.
Volto agora à Siracusa, na época em que Platão deixou a cidade por ordem de Dionísio.
Dion retornou de Tarento alguns dias depois da partida de seu mestre. Após ler a longa
carta deixada por ele, instando-o para que não deixasse o cargo de ministro do tirano
para o bem da cidade, tornou-se silencioso e sombrio. A ele, Dion, o tirano contara que
Platão fora chamado às pressas a Atenas em virtude da guerra que sua cidade travava
contra Engina. Sorrindo, tentou um gracejo:
- Platão veio à Siracusa à procura de um homem de bem. Creio que não o encontrou.
Alguns meses depois, Dionísio caiu gravemente enfermo. Passava as noites caminhando
pelo quarto com dores e gemidos. Excrementava, com raridade, vertendo sangue.
Aflito, por causa da febre, da sede interminável e da debilidade, o tirano caiu em
profundo abatimento. Pedia aos médicos, e eram vários em torno de seu leito, que lhe
dessem uma poção que o fizesse vomitar a enfermidade. Um regime de infusões e
purgas não lhe trouxe melhores. Em virtude do agravamento da doença, Dion tentou
falar com o cunhado a sós, sobre a questão da sucessão. O jovem Dionísio, filho mais
velho do tirano, receando que Dion tramasse a favor de sua irmã Aristômaca, que tinha
dois filhos siracusanos de sangue, enquanto ele era filho da italiana Dóris, ordenou aos
médicos que dessem um narcótico ao pai. Na mesma noite, o velho Dionísio juntou o
sono com a morte.

Este foi o motivo das discórdias entre o segundo Dionísio e Dion, inimizade agravada
pelo tempo, embora, por necessidade política, houvesse aparentemente entre os dois um
convívio de fingida amabilidade. (22)

Os funerais do velho Dionísio foram realizados com grande pompa. O féretro desfilou
pelas ruas da cidade, seguido pela guarda e pelos mercenários que lutaram sob seu
comando. As ruas estavam apinhadas de gente que chorava e carpia, rasgando as vestes
aos gritos, de tal forma o herói das guerras cartaginesas superara as recordações das
crueldades do déspota. Dionísio, o velho, foi, entretanto, rapidamente esquecido.

Retornando a acontecimentos já narrados, recordo, aqui, o casamento simultâneo do


primeiro Dionísio com as duas mulheres: Dóris, de família italiana, e Aristômaca, de
família siracusana. De Dóris nasceu o primogênito que tomou o nome do pai, de
Aristômaca, dois varões, Hiparinos e Niseus, e duas filhas, Sofrosine e Arete. Esta
última casou-se com seu tio Dion e Sofrosine, com seu meio-irmão, Dionísio.

De fato, havia sido para colocar Hiparinos no poder que Dion tentara falar,
secretamente, com o tirano enfermo. Vimos como o jovem Dionísio antecipou-se ao tio
e conseguiu dos médicos a poção narcótica que fez o pai mergulhar em seu sono de
morte.
(22) Cornélio Nepote

Este rapaz, inteligente e de falar fluente, tinha, entretanto, costumes pervertidos. Era
inclinado aos dados e ao vinho. Cercado, desde adolescente, de amigos endoidados,
corria pelas ruas da cidade, altas horas da noite, aos gritos e à rédea solta dos cavalos.
Freqüentava mulheres fáceis, banquetes ruidosos e criava cavalos de raça. Seu meio-
irmão, Hiparinos, dois anos mais jovem, era o oposto do filho da italiana. Mostrara-se
desde cedo estudioso e de ânimo prudente. Era rapaz sóbrio, sem afetação, sentencioso e
de poucas palavras. A todos inspirava um respeito amável e natural. Estas foram as
razões pelas quais Dion preferia Hiparinos como sucessor do velho Dionísio.

O Conselho, entretanto, levando em consideração que o falecido tirano não deixara


vontade expressa sobre a sucessão, comunicou à cidade, por meio de arautos e editais,
que o jovem Dionísio era o novo chefe de Estado. E, por cautela, o ato determinava que
Dion continuaria no cargo de primeiro-ministro do novo governo. A posse, uma semana
depois da morte do velho tirano, foi aparatosa, com festas, banquetes públicos e corridas
de carros que duraram três dias.

Assim, o jovem tirano e seu experiente e cauteloso tio ficaram amarrados um ao outros
mais pela discórdia do que pela concórdia. O segundo Dionísio não pôde dispensar
Dion dos altos cargos que ocupava. Teve que degluti-lo na chefia do Conselho por
razões de Estado. Dion conhecia todos os problemas da ilha, falava o idioma dos
bárbaros, que tinham por ele o maior respeito, além do que, o povo o considerava como
o lado bom do governo. Do outro lado da ilha, os cartagineses, informados pelos
mercadores fenícios de todos estes acontecimentos, comunicaram ao jovem tirano que
os tratados de paz entre os dois povos continuariam válidos, desde que Dion
permanecesse na direção da política externa dos gregos da ilha.

Por longos anos, uma concórdia discordante paralisou o governo de Siracusa. O


segundo Dionísio não podia agravar a tirania como seria do seu interesse, nem Dion
podia aperfeiçoar as leis. Os dois arrastavam o governo como uma dupla de bois no
arado, suportando a pesada canga do poder. Dion vinha ao palácio apenas para as
reuniões do Conselho. Vivia mais para a família, preocupado com um filho doente dos
nervos. Dedicava-se à administração das suas fazendas de plantio e criação de gado. Era
imensamente rico, parte pelos bens deixados pela família, e parte pelas dádivas
generosas do falecido tirano que sentia por ele verdadeira afeição.

Já fazia vinte anos que Platão voltara a Atenas, quando apareceu em Siracusa aquele
que faria o filósofo empreender sua segunda viagem à ilha: seu sobrinho, Euspesipo.
Euspesipo era filho de Potona, irmã de Platão, e seguidor do filósofo nos ensinamentos,
mas não nos costumes. Entregue aos prazeres da mesa era, de comum, mal-humorado.
Comparecia aos casamentos de familiares e amigos por causa dos banquetes. Quando
chegou à ilha, mancava de uma perna devido a uma semi-paralisia. Platão ensinava
filosofia de graça, Euspesipo, embora rico como o tio, o fazia a troco de estipêndio. Eu
tolerava os alunos que atrasavam o pagamento. Euspesipo não perdoava. De
temperamento colérico, entregava-se à ira de tal forma, que certa vez arrojou um cão no
fundo de um poço por causa dos latidos do animal. Era grande matemático e estudioso
dos mistérios e dos fatos ocultos. Diógenes, seguidor de Antístenes (23), sentia por
Euspesipo insuportável antipatia. Certa vez, Euspesipo, carregado numa liteira devido a
uma doença, saudou-o:
- Salve, Diógenes!
Diógenes respondeu:
- Não digo o mesmo de ti que, sendo o que és, ainda continuas vivo.
(23) Antístenes e Diógenes, foram os antecessores dos “hippies” da época de hoje.
Faziam parte de uma seita que tinha desprezo pela propriedade e pelas convenções
sociais, doutrina esta que tomou o nome de “Cínica”, palavra que na Antigüidade tinha
significado diferente do atual. Para os cínicos, ingênuos simplificadores dos hábitos e
dos costumes, visando à purificação dos sentimentos, Euspesipo, pela arrogância e
riqueza ostensiva, devia, à sombra de seu famoso tio, Platão, parecer um indivíduo
repulsivo.
Euspesipo era irreverente e maldoso. Vendo um amigo rico ao lado da esposa, mulher
feia, comentou:
-Que necessidade tens disso? Por dez talentos te arranjo uma mulher formosa (24)
Foi este homem que se tornou amigo do tirano, de tal forma as afinidades se buscam,
para o bem e para o mal. Ouvi muitas vezes Platão queixar-se do temperamento
insuportável do sobrinho. Tolerava-o, contudo, por causa do parentesco e do vigor
demonstrado por Euspesipo no trabalho acadêmico e nas viagens a serviço da causa
platônica.

Euspesipo presenteou Dionísio com as obras de Platão já publicadas, Górgias, O


Banquete, Fédon e República, que os copistas da Academia tinham dado ao público
logo após a morte de Sócrates. Desde então, passei a ver o segundo Dionísio, à sombra
do caramanchão, lendo Platão. O novo tirano não tinha o espírito preparado pelos
estudos, mas, graças à sagacidade natural e à fluência no falar, impressionava as
pessoas. Depois de ler Platão, passou a ter acessos intermitentes de falsa sabedoria nas
tertúlias e nos banquetes. Lançava mão de argúcias dialéticas procurando triunfar nas
discussões a partir de argumentos capciosos, com total desprezo pela verdade. Dionísio
chegara aos problemas políticos e éticos pela vala negra do charlatanismo intelectual.
(24) Diógenes Laércio
A frivolidade do jovem Dionísio revelava-se nos seus caprichos de potentado, pela
maneira como se divertia com aqueles que não podiam contestá-lo. Nas reuniões,
propunha questões que se demonstrariam falsas quaisquer que fossem as respostas, tais
como: pergunta-se se mente aquele que confessa que mente. Chamá-lo de mentiroso
seria falso, pois não mente aquele que diz que mente. Não chamá-lo de mentiroso seria,
também, falso, visto que ele próprio afirmou que mentira. Lembro-me de que propôs
ainda este outro tema: havia uma cidade cercada de muralhas, em cuja porta só
entravam as pessoas que dissessem a que vinham. Aquele que mentisse seria enforcado.
Um viajante afirmou que vinha para ser enforcado. Os juízes afirmaram que nada havia
contra o recém-chegado, e que o forasteiro mentira. Criou-se a dúvida se o estrangeiro
devia ou não ser enforcado, visto que se assim o executassem, o homem teria dito a
verdade, e se não o enforcassem, ele teria mentido e, portanto, deveria morrer. (25)
Essas e outras falácias divertiam o tirano mais do que as questões filosóficas, dando
rédea solta ao seu espírito ardiloso e enganador. A leitura das obras de Platão, que
Euspesipo lhe dera, levaram Dionísio a reflexões sérias, mostrando que sabedoria é uma
coisa, e destreza mental, outra bem diversa. Dion surpreendeu-se com as modificações
surgidas na mente do sobrinho e achou que era oportuno - como grande discípulo do
filósofo que era - explicar corretamente as idéias do mestre. Os dois passaram a
conversar longamente sobre assuntos que nada tinham a ver com os acontecimentos
imediatos ocorridos no governo da ilha.

Os meses seguintes foram definitivos para os acontecimentos políticos de Siracusa.


Dion convenceu Dionísio a chamar Platão pela segunda vez à ilha. Seguiu-se uma
intensa troca de cartas entre Dion e o filósofo, mas este se recusava a voltar.
(25) Notas do professor de grego José Ortiz y Sanz para”Vida dos filósofos ilustres” de
Diógenes Laércio
Devo esclarecer que o segundo Dionísio ignorava a ordem que seu pai dera ao almirante
espartano Pólis de matar Platão, embora soubesse pelos membros do Conselho que
houvera desentendimentos entre o velho tirano e o filósofo.

Dionísio estava encantado com as obras de Platão. Decidiu, ele mesmo, escrever-lhe
uma carta. Disse, com habilidade que o mestre tinha fama de grande pensador político,
mas temeroso dos problemas de ordem prática no governo das cidades. Para fechar a
boca de pessoas mais versadas em intrigas do que em sabedoria, pedia a Platão que
viesse a Siracusa para aconselhá-lo nos graves problemas que enfrentava, com o povo
inquieto e os poderosos propensos a corrupção e conjuras.

Platão concordou em voltar à Sicília, não obstante as humilhações e perigos que


enfrentara trinta anos antes. Tinha agora sessenta e um anos de idade e era
celebradíssimo entre seus discípulos.

Na época em que se formam as espigas de trigo, o filósofo chegou a Siracusa. Foi


recebido no porto por um séqüito dos mais notáveis da cidade. Dion, Euspesipo e os
pitagóricos o levaram ao palácio, onde, em grande gala, cercado por seus auxiliares, o
tirano o aguardava. Platão estava no auge do seu vigor e maturidade, e seu aspecto não
denunciava a idade que tinha na época. Alto, largo de ombros, rosto bronzeado, barba e
cabelos ainda negros, vestia uma túnica branca, como de hábito, e manto violáceo.

Dionísio o abraçou carinhosamente, e apresentou Platão a seus auxiliares como sendo o


homem mais estimado por gregos e bárbaros. Houve festa com banquete, música e
dança até tarde da noite.

Durante meses, nos altos círculos de Siracusa, só se falava de filosofia e geometria, as


duas matérias que mais uniam platônicos e pitagóricos. Novos alunos, filhos das
famílias mais importantes da cidade, inscreveram-se na academia local, fundada por
Euspesipo, semelhante nas acomodações, ensinamentos e até nos jardins à Academia de
Atenas. Dionísio tornou-se mais sóbrio. Bebia menos e já não propunha aos seus
convidados os argumentos enganadores de outros tempos. Estudava filosofia com
seriedade.

O ideal de Platão continuava o mesmo: leis justas que se aplicassem igualmente a todos,
inclusive aos poderosos, bem como a reconstrução e povoamento das cidades gregas da
ilha destruídas pelos bárbaros. Dionísio, diante de todos, prometeu atendê-lo.

Naquela ocasião, eu viajei para Cirene, minha cidade natal, a fim de fundar a Escola
Cirenaica que considera a prudência o fundamento da felicidade, nega a existência dos
deuses e defende o cosmopolitismo. Voltei um ano depois em virtude dos
compromissos assumidos com Dionísio, o único chefe de Estado que pagava com
prodigalidade os meus conhecimentos de matemática e de medicina, visto que eu fiz
passar uma lei que punia com gravidade aquele que urinasse nos riachos e fontes.

De volta, encontrei em Siracusa uma figura sinistra, o historiador Filisto, homem de


mente prodigiosa, mas de ambições mesquinhas. Sua ligação com a cidade devia-se
mais ao seu amor pela tirania do que pelo tirano. O velho Dionísio já o havia exilado em
virtude de falatórios que surgiram de relacionamentos de portas adentro entre Filisto e
familiares do tirano. Voltava agora a Siracusa a pedido dos poderosos da cidade. Filisto
chegara com o objetivo de contrabalançar a influência de Platão sobre o segundo
Dionísio. A funesta Caríbidis tudo tramara do alto do rochedo do estreito itálico. Platão
tinha agora pela frente um adversário perigoso que sabia manejar a língua e o punhal.
Historiador emérito, Filisto escrevera uma minuciosa História do Egito e um
formidável relato que abrangia desde o estabelecimento da tirania de Gelo, em Gela, na
Sicília, quase cem anos antes, até os dias do velho Dionísio. Fora nomeado alto
comandante da armada siracusana devido à sua habilidade e arrojo em entrar e sair dos
perigos nos combates navais.

A crise política causada por Filisto teve origem numa mudança de palavras, feita por
Dionísio, no texto da oração solene comemorativa de uma data importante. Em vez de
ler “vida longa para a tirania”, o arauto deveria ler “vida longa para o atual governo”.

Filisto mostrou-se surpreso. Ali estava a influência nefasta de Platão. Passou a pedir a
seus amigos que não faltassem com a memória e a prudência, enquanto evocava:
- Quando eu era jovem, os atenienses enviaram contra Siracusa uma expedição militar
comandada por Alcebíades. Não conseguindo, naquela época, vencer-nos pelas armas,
enviam-nos agora este sofista para nos hipnotizar com palavras vãs, como fazem os
flautistas sírios com as serpentes. (26)
Filisto acusou Dion de seguir os conselhos de Platão com o objetivo de dissolver a
força militar de dez mil mercenários - a quem, ele, Filisto, chamava de assalariados - e
que eram a base e garantia de ordem na cidade. Como comandante supremo da armada,
ele não iria permitir que Dion transformasse as trezentas naves de guerra em barcos
mercantes. Acusava, ainda, Platão de induzir os jovens a buscar na Academia o tão
celebrado bem supremo, em vez de apegar-se aos costumes dos antepassados.

(26) Plutarco

- Quando Platão enfraquecer a tirania - dizia - Dion se apossará do poder a favor dos
sobrinhos Hiparinos e Niseus, filhos de sua irmã Aristômaca.
Filisto propalava estas e outras acusações contra Dion e Platão no palácio, nas ruas e no
mercado. Seus agentes conseguiram, nesta época, interceptar uma carta de Dion aos
grandes de Cartago, que foi imediatamente entregue ao tirano. O ministro pedia aos
generais cartagineses que não discutissem questões de fronteira com Dionísio sem sua
presença.
O tirano não demonstrou a ninguém a agitação que a carta lhe causou. Dias depois, com
afetada indiferença, chamou Dion à parte, e lhe mostrou a mensagem. Com calma, este
procurou explicar o verdadeiro sentido de suas palavras. A política externa das cidades
gregas na Sicília era extremamente complicada. Esparta protegia os gregos da ilha, mas
via os cartagineses como inimigos. Cartago não suportava a presença da Grécia tão
perto de seu território. Siracusa vivia entre dois povos hostis e aguerridos. A paz fora
conseguida à custa de pacientes concessões e nebulosos tratados. Qualquer deslize de
uma das partes poderia provocar novas guerras.
- Como mandante de teu pai - explicou Dion - eu tinha poder absoluto para tratar com
os cartagineses. Não podemos deixar a paz na ilha ao sabor dos caprichos de Esparta e
da insensatez dos bárbaros. Nosso povo já padeceu de enormes sofrimentos. Vivemos
num lodaçal de intrigas pelo domínio da ilha. Luto, apenas, pela paz entre os dois
povos.

Dionísio abraçou Dion. Com fingida reconciliação, ordenou a ele, como se quisesse
protegê-lo de graves riscos, que deixasse a Sicília e fosse viver algum tempo no
Peloponeso. Até mesmo um tirano não governa sozinho. Dion fizera inimigos
poderosos, colocando no Conselho cidadãos de Corinto em prejuízo de habitantes da
ilha com antepassados gloriosos. Ele, Dionísio, não poderia garantir sua segurança e a
de seus familiares. Com o tempo, tudo se resolveria, e todos poderiam voltar. Colocou,
ainda, à sua disposição duas trirremes para o seu transporte, bem como de servos e
amigos mais chegados. (27)
- Não se trata de exílio - explicou Dionísio, com um sorriso descorado - e sim de uma
peregrinação para evitar males maiores.
Ao mesmo tempo, o príncipe queria que a viagem fosse feita com ostentação, para
mostrar ao mundo o poder do tirano de Siracusa. Não conhecendo a verdadeira natureza
de Platão, Dionísio achou por bem, para evitar que o filósofo, levado pela ira por causa
da saída de Dion do governo, praticasse alguma insensatez. Pediu-lhe que se mudasse
para a cidadela como proteção simulada por uma benigna hospedagem.

Dionísio temia que Platão acompanhasse o discípulo na viagem, dando ao mundo


testemunho das injustiças praticadas pelo governo. A cidade, inquieta com os boatos e a
inesperada viagem de Dion, viveu dias de incertezas e silêncio. O tirano procurava
acalmar os amigos do tio com gentilezas e dádivas. Às mulheres de sua família fazia
crer que, assim agindo, as protegia, e que cedo todos estaria novamente unidos.

Depois que Dion viajou para Corinto, a atenção de Dionísio voltou-se para Platão. O
tirano admirava e temia o filósofo. Receava que ele deixasse Siracusa e desacreditasse o
governo, usando de seu prestígio como maior filósofo da época. Amigos do tirano
também me confidenciaram que Dionísio temia ser derrubado por Dion, que era amado
pelo povo, tendo sido este o verdadeiro motivo de seu afastamento. E tão prolixa era a
alma deste déspota, que tinha a intenção, ainda, de substituir Dion no coração de
(27) As mulheres da família de Dion, que não o acompanharam na viagem, eram
parentes próximas do tirano Dionísio
Platão, tendo chegado a prometer-lhe que faria mudanças nas leis da cidade, conforme
este aconselhava, desde que ele renunciasse à amizade do discípulo. Ao mesmo tempo,
para acalmá-lo, assegurava que traria Dion de volta no próximo verão. Eram tantas as
promessas e tantas as contradições, como ocorre com os amantes tresloucados, que o
filósofo já não podia mais dar crédito às palavras de Dionísio.

Confesso que eu achava divertido ver o filósofo vexado com aquela súbita paixão do
tirano, justamente por ele, que tanto valor dava à coerência, à moderação e à lealdade.
Vi muitas vezes Dionísio, com passos de raposa, caminhado ao redor da cidadela, à sua
procura, temeroso, ao mesmo tempo, de perturbar a meditação ou mesmo o sono do
pensador. Platão, avisado, vinha ao seu encontro. O tirano o recebia com olhares de
amante “recusado na soleira da porta”. (28)
- Tu estás sempre ocupado quando preciso de ti!
Platão já não queria mais ficar a sós com Dionísio que, a todo momento, com rogos e
anseios, procurava sua companhia, buscando os menores pretextos para tê-lo junto de si.
O filósofo passou a recear mais a afeição do que o ódio do tirano. Quando ia ao palácio,
por cautela, pedia a um dos pitagóricos que o acompanhasse.

Os deuses, entretanto, pareciam proteger Platão. Um fato imprevisível veio quebrar


aquele ridículo idílio de um só. Como uma trovoada reboando no horizonte, veio a
guerra. Dionísio teve que partir com suas tropas para honrar tratados e alianças. Cidades
do sul da Itália pediam ajuda ao tirano de Siracusa. O mensageiro, depois de duas
jornadas de seis mudas, chegara à grande porta tarde da noite. Levado à presença de
Dionísio, ainda ofegante e empoeirado, informou que as tropas lucanianas haviam
(28) Figura integrante da comédia grega
chegado até as margens do rio Crathis, pondo em risco Crotona e Locres, esta última, a
cidade natal da mãe do tirano. Toda a planície além do rio Crathis, disse o mensageiro
com um gesto largo, estava coberta de cavalos, escudos e lanças das tropas invasoras.

Durante a ceia, na casa do pitagórico Amiclas, Platão nos disse que Dionísio sofrera
uma verdadeira transformação diante do mensageiro, como alguém que desperta de um
sono letárgico. Chamou Filisto e os comandantes dos mercenários para combinar os
aprestos de guerra. Eu mesmo havia sido chamado ao palácio para fazer os cálculos das
despesas com o abastecimento de víveres e com a forragem dos cavalos para o prazo de
três meses.

Platão deixou a cidadela e hospedou-se na casa de Amiclas. O próprio Dionísio fora


buscá-lo no forte. Abraçou-o com amabilidade. Prometeu-lhe que logo que voltasse da
guerra chamaria Dion de volta. Tudo se resolveria bem, desde que Platão colaborasse.
Dionísio não queria se separar do filósofo sem esclarecer os desentendimentos
ocorridos.
Peço apenas - disse - que sejas coerente e me digas como devemos nos comportar um
com o outro.
- Vim para a Sicília - explicou Platão - com a reputação de ser muito melhor do que
todos os outros filósofos. Vim a Siracusa para receber de ti um testemunho de fé, a fim
de que na minha pessoa, a filosofia recolhesse as homenagens da própria multidão. Não
o consegui, afinal. (29)
- Neste ponto, discordo de ti - objetou Dionísio.
Impassível, Platão continuou:
- Não pretendo repetir o que muitos invocariam, mas tu pareces não ter já grande
confiança em mim.
(29) Carta de Platão ao segundo Dionísio
- Agora entendo - ponderou o tirano - mas deixa-me observar. Não discordei do
filósofo, e sim do político.
- Afirmo que a verdadeira opinião que se tiver sobre a filosofia será a melhor forma, se
formos honestos. A nossa malícia obteria resultados contrários. Ouve bem o que é justo
fazer-se, pois é desse modo que respondo à pergunta que me formulas: como devemos
nos comportar um com o outro.
- É exatamente o que desejo - insistiu o tirano.
Platão não se deu por vencido, e explicou:
- Se realmente desprezas a filosofia, então dize-lhe adeus! Mas, se junto de outro ou por
ti próprio, não encontraste algo melhor do que aquilo que te dei, então honra o que
achaste. Se, por acaso, foram os meus ensinamento que te satisfizeram, nesse caso, sou
eu o quem tu deves honrar acima de tudo. Honrado por ti, honrar-te-ei. Desprezado por
ti, deixarei de intervir. Numa palavra, se me honrares, será tanto para mim como para o
outro uma vantagem. Mas se for eu a fazê-lo, será desonra para ambos.
Dionísio, então confessou comovido: não queria que Platão, ressentido com ele, o
desacreditasse junto aos gregos ou se referisse a ele em termos desagradáveis.
Platão acalmou o tirano:
- Na tua opinião, não deveria ser eu apenas a guardar silêncio a teu respeito, mas até
todos os meus amigos, salvo Dion, devem evitar dizer ou fazer o que quer que seja que
te desagrade. Ora, precisamente tal expressão, “salvo Dion”, dá a entender que não
tenho nenhuma influência sobre meus amigos, pois se tivesse, como afirmas, sobre eles,
sobre ti ou Dion, sem dúvida que nós e todos os outros gregos teríamos muito a lucrar
com isso.
Dionísio, com leve sorriso, observou que Platão apresentava naquele momento melhor
aspecto do que quando chegara a Siracusa. O filósofo respondeu com frieza:
- O que faz agora a minha força resulta do fato de viver de acordo com os meus
princípios. (30)
Três dias depois, Dionísio passou revista às tropas, cujos escudos polidos brilhavam ao
sol da manhã. Partiu para o norte da ilha, montado num cavalo de raça com freio de
ouro, à testa de cinco mil mercenários, dois mil ginetes e centenas de carros com as
rodas munidas de foices. As naus comandadas por Filisto, abastecida de víveres, já
estavam ancoradas em Zanclé para o transporte de tropas para o outro lado do estreito.
Várias naus mercantes, transformadas em embarcações-estábulos, transportavam
cavalos para a muda, no caso da guerra se prolongar.

Antes de voltar para Atenas, Platão ainda terminou uma série de palestras organizadas
pelos pitagóricos sobre os legisladores e filósofos de Solon até Sócrates. Numa destas
palestras, fez uma declaração que eu achei interessante registrar: “Não há obras de
Platão e nunca haverá. O que hoje se designa com esse nome é de Sócrates, quando
estava no esplendor da juventude. (31)
O filósofo viajou para a Grécia continental. Este homem de alma tranqüila, celebérrimo
no mundo grego pelos seus numerosos discípulos, apresentava, aos sessenta anos, um
tão forte encanto pessoal e tal vigor físico e mental que espantava a todos.

Soube por Amiclas que Platão conseguira de Dionísio a promessa de considerar,


oficialmente, a vigem de Dion como peregrinação de estadista e não como exílio. Este
reconhecimento era importante, a fim de que as vultosas rendas de Dion ficassem
depositadas no tesouro à sua disposição, visto que os exilados pelos tiranos tinham seus
bens confiscados.
(30) Trechos de carta de Platão ao segundo Dionísio
(31) Carta de Platão aos amigos de Dion
A guerra durou dois meses. Com o recuo dos lucanianos para o norte do rio Crathis fora
evitado o avanço rumo a Locres, cidade amada por Dionísio. Não lobrigando inimigos,
e vendo os seus carros de guerra rodando à toa, Dionísio procedeu à contagem de seus
homens, arrumou os feridos e doentes nos carros de bois, as bagagens ao lombo das
azêmolas. Ergueu as tendas e colocou as colunas em marcha de volta à sua cidade. No
sul da Itália, deixou tropas aquarteladas sob o comando de Filisto para assegurar que os
lucanianos observassem rigorosamente os tratados.

Dionísio não cumpriu a promessa feita a Platão de chamar Dion logo que terminasse a
guerra. Como se quisesse suavizar essa deslealdade, passou a enviar a Dion, em Atenas,
através dos banqueiro fenícios que comerciavam com Siracusa, as rendas de suas muitas
propriedades.

Em Atenas, e muitas vezes em Corinto, Platão procurava manter a disciplina e a ordem


mental de Dion dentro da adversidade, ministrando-lhe estudos filosóficos. Eu havia
feito um trato com Dionísio de ficar na ilha oito meses por ano a seu serviço. Não podia
me dar ao luxo de dispensar as suas dádivas, com as quais eu mantinha a Escola
Cirenaica, por mim fundada. No verão eu viajava para Cirene, na Líbia, e ficava à testa
da escola, tendo minha filha Areta, aficionada seguidora da minha doutrina, que -
sempre insistirei no meu ponto de vista - considera a prudência como fundamento de
todo prazer físico e mental, partindo do princípio de que o homem não necessita de
auxílio alheio para conseguir a felicidade, o sossego e o repouso.

Voltemos a Dion: o exilado era um dos mais assíduos freqüentadores da Academia de


Platão. Este centro de estudos fica no arredores de Atenas, num terreno adquirido pelo
filósofo. Lá ele mandou construir um casa vasta e cômoda, cercada de densa vegetação
que envolve o ambiente numa atmosfera verdejante e suave. A palavra academia deriva,
dizem, de certo herói mitológico chamado Ecademo que dera seu nome ao bosque ali
existente, mas por que Ecademo transformou-se em Academia, só os deuses sabem.

Quando lá estive, há anos, uma porção de escravos dirigidos pelo incansável Euspesipo,
sobrinho de Platão, dava os últimos retoques no reboco, na caiação da casa e na
construção de um belo peristilo. Era um jardim murado nos fundos da habitação, com
um tanque cheio de peixes das mais variadas cores, repuxos e fontes jorrando água, uma
das quais exibia uma cabeça de monstro, com a goela escancarada, esculpida na pedra.

Cidadãos de toda a Grécia vinham buscar os ensinamentos de Platão. Ali havia aulas de
filosofia, oratória, matemática, leis e outras disciplinas. Dion criou para a Academia um
curso de música e formou um coral de jovens afinados. Morava então na casa de Calipo
e recebia, anualmente, as rendas de suas propriedades na Sicília por intermédio de
Pasion, um escravo liberto que se transformara em banqueiro, favorecido pela herança
do seu antigo senhor. Pasion representava em Atenas os banqueiros fenícios da Sicília.
Dion, muito prestigiado em Atenas e Corinto, recebia convites de várias cidades gregas
para pregar a doutrina de Platão. Esparta concedeu-lhe mercês e dignidades, chamando-
o de cidadão espartano.

Estes fatos chegaram ao conhecimento de Dionísio, cuja mente não necessitava de


muitas novas para perturbar-se. Ficou de tal forma transtornado com o sucesso do
exilado no exterior, que decidiu não mais enviar as rendas a que Dion tinha direito.
Privado delas, cismava o tirano, não poderia freqüentar os cidadãos ricos e poderosos,
visto que era homem orgulhoso e amante da ostentação. Aos amigos, o tirano
confessava, amargurado - nisto era sincero - o dilema que se criara com sua
incompatibilidade com Platão. E aquele homem de homéricos embustes, imaginou,
naquela ocasião, uma política oportunista: transformar Siracusa em uma cidade
protetora de sábios e artistas, cujas atividades seriam custeadas pelas rendas públicas.
Platão, homem de numerosos discípulos, não poderia ignorar este movimento cultural.
Os pitagóricos do sul da Itália, amantes do saber, seriam os primeiros a chamá-lo de
volta à Sicília.

Nomes famosos da cultura grega encetaram palestras em Siracusa sobre filosofia e


matemática pagas com dinheiro farto do tesouro da cidade. Neste propósito, Dionísio
teve o apoio de Arquitas de Tarento, governante pitagórico com quem Platão vivia nos
melhores termos. A partir de então, Arquitas e os pitagóricos da ilha se tornaram
fiadores das boas intenções de Dionísio para com o filósofo. A irmã e a esposa de Dion
passaram a enviar cartas a este pedindo que convencesse Platão a voltar a Siracusa, e a
participar do movimento cultural que se iniciara, insinuando que isso melhoraria as
relações do tirano para com ele, Dion.

Platão, pressionado pelos dois lados - seus amigos e o próprio Dion - decidiu voltar pela
terceira vez à ilha da Sicília. Desta vez, a funesta Caríbidis soltou uma sonora
gargalhada de vitória do alto do estreito itálico, onde Zeus a aprisionara por ter roubado
os bois de Hércules.

Contava Platão naquela altura sessenta e seis anos. Viera de Atenas com uma só
intenção: reconciliar Dion com Dionísio. E, como nas outras viagens, insistiu também
no aperfeiçoamento das leis e no restabelecimento das cidades gregas destruídas pelos
cartagineses. O relatório, cintilante de lógica, redigido por ele e Dion, aconselhava
também a redução do número das cidades gregas a partir do rio Haliscos, sugerindo,
ainda, a concentração dos seus habitantes. Este planejamento geográfico, há muito
sonhado por Platão para a Sicília, tinha o claro objetivo político e militar de defender a
civilização grega na região.
- A dispersão da população helênica na Sicília - advertira sempre Dion - representa
riscos dos quais os bárbaros saberão tirar proveito mais cedo ou mais tarde.

Para a execução deste projeto, Platão contava com o apoio de Arquitas de Tarento,
tirano itálico, urbano e franco, que se fizera - e bom lembrar - fiador da segurança de
Platão nesta terceira viagem.
Arquitas, tirano de Tarento, era uma figura interessante. Homem de incrível força física,
entregava-se à dança e à filosofia com o mesmo vigor com que lançava o disco ou o
dardo. Era muito admirado pelos pitagóricos, cuja seita seguia, em virtude de seus
conhecimentos matemáticos. Bastava um curto momento de reflexão para Arquitas
resolver os mais complicados problemas matemáticos. Sua realização mais importante
nesta matéria foi a duplicação do cubo, isto é, a descoberta do processo para calcular o
comprimento do lado de um cubo cujo volume é o dobro do volume de um cubo dado.
Era hábil, também, em resolver questões mecânicas. Foi o inventor do chocalho para
crianças. Queixava-se de que seus filhos faziam barulho quebrando coisas. Com o
chocalho - explicava - fazem alarido sem danificar meus jarros. (32)
Com a chegada de Platão e o apoio ostensivo de Arquitas, Filisto eclipsou-se. Deixou
recados e avisos - ninguém pedira - informando que fora a Catane adquirir barcos para
transportes. Mesmo ausente, tomava conhecimento de tudo por intermédio de amigos.
Sua influência sobe o jovem Dionísio fora nefasta. Se Dion, havia sido o lado
(32) Diana Bowder
bom do pai, conforme confessara o primeiro Dionísio, Filisto fora o lado mau do filho.
Com banquetes, mulheres e caçadas, conservava o jovem tirano afastado do centro das
decisões políticas. Cercado de sofistas velhacos e bajuladores, Dionísio se considerava
um homem feliz. Certa noite, em que esvaziávamos uma jarra de vinho, contei-lhe a
história de Creso, o rei da Lídia, que se jactava de ser o homem mais feliz da terra por
possuir belas mulheres, ouro e grandes palácios. Sólon, o sábio, advertiu-o: Só na hora
da morte, o homem pode dizer se foi feliz ou não. Vencido na guerra e despojado de
todos os seus bens, Creso foi levado à forca por Ciro, rei dos Persas. Já com o baraço no
pescoço, degradado e nu como um escravo, Creso gritou: “Oh, Sólon! Oh, Sólon!” (33)

Com esses lamentos, Creso confessava o quanto fora sábia a advertência que fizera
Sólon chamando a atenção para a instabilidade das coisas humanas e para as ciladas do
destino.

Nesta terceira viagem, Platão se fez acompanhar de Xenócrates, seu jovem discípulo.
Este rapaz, de curta inteligência, sentia por Platão uma espécie de fanatismo religioso.
Comparado com outro jovem discípulo de Platão, o macedônio Aristóteles, que tinha
uma disposição natural para a sabedoria, Platão dizia: “Xenócrates necessita acicate,
Aristóteles, freio.” (34) O macedônio costumava irritar Platão com sua hábil dialética, o
que levava o mestre a dizer aos outros discípulos: “Aristóteles me escoiceia como os
potros fazem com a égua mãe.”(35)
(33) Ensaios, Montaigne
(34) Diógenes Laércio
(35) Idem

A volta de Platão à ilha causou alvoroço e alegria ao povo siracusano. Uma comitiva de
cidadãos veio com seus familiares e servos saudar o filósofo. Gente do povo nas
estradas e nos campo informava festivamente aos amigos sobre sua chegada. Todos
acreditavam que ele iria contrabalançar a perniciosa influência que o historiador Filisto
exercia sobre o governo da cidade. A fama de Platão obrigava Dionísio a cumulá-lo de
honrarias. O filósofo era convidado a fazer palestras em todas as cidades vizinhas. Isso
preocupava Dionísio, que certa vez lhe disse:
- Não quero que tu me recrimines junto aos teus discípulos!
Ao que Platão respondeu:
- Tenho tantos assuntos para tratar, que não me sobra tempo para pensar em ti. (36)
Em virtude dos desatinos de Dionísio, Siracusa atravessava situação de extremo perigo.
Parecia que somente com a volta de Dion haveria ordem e cessariam os tumultos. Dos
cárceres cavados nas rochas, vinham lamentos e gritos. Cadáveres deformados e
inchados eram devolvidos à praia pelo mar espumante. O povo, sobrecarregado de
dívidas, mostrava-se inquieto. Cidadãos dignos viviam expostos a acusações e
difamações. Nas ruas os jovens da nobreza derramavam sangue pelas esquinas, na
prática de torpes vinganças. A alta sociedade vivia apenas para banquetes e orgias.

Esta situação escandalizou Platão, visto que Dionísio filho lhe parecera, de início, ter
melhor índole do que o pai. Que vida era aquela? Um luxo irresponsável, festins dia e
noite, homens inescrupulosos cometendo toda casta de violências em nome do Estado.
Platão sentia horror vendo as coisas públicas à deriva. Crise política e moral desgraçava
as cidades gregas (37). Para Platão, somente a educação em todos os níveis do homem
grego poderia modificar este estado de coisas.
(36) Carta de Platão a Dionísio
(37) “A Filosofia Grega desde sua Origem até Platão”, de Julian Marias.
O filósofo passou a buscar o ensejo de falar a sós com Dionísio. Freqüentava com mais
constância o palácio, acompanhando o tirano nas festas e jogos. Ele, Platão, já dissera a
que vinha. Cabia agora a Dionísio dizer por que o chamara. Voltara à Sicília
enfrentando riscos e vicissitudes, por causa das carta de seus familiares, das insistências
de Arquitas de Tarento e dos pedidos de Dionísio e do próprio Dion. O que estava ele
fazendo em Siracusa? Era isso que desejava saber.

Num dia de descanso, ausentes os cortesãos e estando Sofrosina, a esposa do tirano na


ala das mulheres, Platão apareceu de surpresa no palácio. Eu aproveitara aquele dia, sem
trabalho, para colocar em ordem as contas do governo. Estava à minha mesa, na sala do
Conselho, com o escravo-escriba sentado no chão ao meu lado, com a tábua de cálculos
sobre o joelho, quando vi o filósofo falando com Cilônio, o secretário de Dionísio. Com
um aceno, Platão cumprimentou-me. Logo o tirano veio ao seu encontro e o abraçou
amavelmente. Os dois foram para o pórtico e, com passos lentos, começaram a
caminhar lado a lado. Da minha mesa eu os via andando entre as colunas e ouvia de
quando em vez uma ou outra frase. A conversação prolongava-se. Ouvi Dionísio altear
a voz:
- És insidioso na argumentação, Platão. Explica-te com mais clareza.
Ouvi o filósofo responder:
-Peço-te apenas que sejas coerente contigo mesmo. Vim a Siracusa chamado por ti. (38)
Os dois se desentendiam. À medida que o tirano levantava a voz, Platão também
elevava a sua. Dionísio, com os olhos em chispas, passou a gritar, mas o filósofo
mantinha-se impassível, argumentando e encarando o interlocutor com o olhar severo.
(38) Carta de Platão ao segundo Dionísio.

Falava com voz pausada e firme:


- Nas tuas cartas dizias-me que se viesse a Siracusa os assuntos de Dion arranjar-se-iam
segundo os meus desejos. Senão seria o contrário. Todos, a começar por Dion, são da
opinião de que eu deveria embarcar. Ah, eu teria tanto a dizer sobre as muitas
promessas feitas por ti e que nunca mantiveste! (39)
Dionísio gritou:
- Pois então nada mais tenho a falar contigo!
E aconteceu o que ninguém em Siracusa julgaria ser possível. Dionísio, pálido de
cólera, com a boca espumando, deixou o pórtico. Ao passar defronte da minha mesa,
gritou:
- Platão conseguiu me irritar! Não muda de opinião e não muda de assunto!
Foi para o seu gabinete, fechando o cortinado com um gesto brusco.
A qualquer momento, poderia vir o comandante da guarda prender Platão. Aproximei-
me dele e pedi:
- Vem comigo, Platão. Eu te acompanho até a casa de Amiclas.
O filósofo meneou a cabeça tristemente. Apoiando-se numa coluna, ficou olhando o mar
distante e azul como a sua túnica.

Dionísio não voltou mais ao salão. Depois de algum tempo, Platão retirou-se.
Preocupado com o agravamento das relações entre o tirano e o filósofo, dirigi-me à casa
de Amiclas. Recordo-me de que era uma noite negra com céu estrelado e lua minguante.
Embrulhado no manto, atravessei a cidade acompanhado de um escravo que portava a
tocha.
(39) Idem

Amiclas habitava uma casa vasta com muitos cômodos no caminho que conduz aos
banhos públicos. Platão já lá estava, acompanhado de amigos, todos reclinados em
leitos em torno da mesa. Ceia copiosa fora servida. O pitagórico era um anfitrião amável
e atento. Ordenou a um escravo que colocasse ao meu lado uma jarra de vinho diluído
em água em uma vasilha de barro com um primoroso peixe. Candeias suspensas em
argolas de ferro, presas nas paredes, projetavam sombras vacilantes, alongadas no
lajedo. Todos ouviam Platão que, com a alma turvada, falava dos últimos
acontecimentos:
- Dionísio me acusa de lhe roubar os projetos de restabelecer as cidades gregas da ilha e
do intuito de transformar a tirania em realeza. Segundo ele me disse, eu o teria desviado
deste objetivo para agora encarregar Dion de realizar estes mesmos desígnios, roubando
assim suas idéias. (40)
- E com que intenção farias isso? - perguntaram.
- Eu e Dion estaríamos planejando tirar-lhe o poder. Acusei-o de faltar com a verdade.
Disse-lhe que já bastavam as calúnias contra mim assacadas por Filisto e seus amigos
junto aos mercenários e ao povo. (41)
Não é inoportuno relembrar que, na viagem anterior, Platão propusera a Dionísio o
estabelecimento de uma realeza com leis às quais o próprio rei estaria sujeito, dizendo:
“Um tirano precisa de mercenários, um rei não”. Queria dizer que as leis garantiriam a
ordem, bastando a guarda nos tempos de paz, e o povo armado nos tempos de guerra.
Os mercenários souberam por intermédio de Filisto deste conselho que o pensador dera
ao tirano. Filisto acrescentara ainda aos soldados assalariados: “Dionísio ouve Platão
em tudo! “ A partir de então o filósofo passou a ser odiado também pelos mercenários.

(40) Idem
(41) Carta de Platão aos amigos de Dion

- Em questões políticas - continuou Platão naquela noite durante a ceia - se eu consenti


em partilhar até certo ponto dos trabalhos do governo foi apenas, a princípio, por supor
que podia prestar alguns serviços. E salvo assuntos de pouca importância, só me ocupei
um pouco mais a sério dos projetos de autoria de Dionísio e de membros do Conselho.
Outros redigiram estes projetos e as diferentes redações saltarão aos olhos de quem quer
que esteja em condições de apreciar meu estilo. Tenho, portanto, que deixar bem claro
dois pontos: primeiro, mostrar que eu tive razão em recusar toda a participação no
governo da cidade, e segundo, quero provar que não vieram de mim os obstáculos que
Dionísio aponta para o restabelecimento das cidades gregas, ou que eu o teria impedido
de realizar este propósito. (42)
- Oh, Aristipo - exclamou Xenócrates - os deuses falaram por tua boca quando
anunciaste que Platão e Dionísio se tornariam inimigos!
Fez-se na sala um silêncio envergonhado. Xenócrates possuía um alma simples, não
obstante ter o espírito preparado pelos estudos. Ele não percebeu que aquela observação
era imprópria. Platão afagou a mão do discípulo e murmurou:
- Ainda não te acostumaste, meu caro Xenócrates, às observações extravagantes de
Aristipo.
Confesso que fiquei vexado. Explicarei ao leitor a razão deste infeliz gracejo. O
astrônomo e matemático Helicon de Cícico, amigo de Platão, previu um eclipse solar
que realmente aconteceu. Dionísio, admirado, deu-lhe um talento de prata. Eu achei que
era oportuno esclarecer que não houve profecia, visto que há previsões de fatos
conhecidos pela experiência ou concluídos pela intuição. Numa tertúlia regada a vinho,
gracejos e gargalhadas, anunciei com voz pomposa:

(42) Carta de Platão aos amigos de Dion


- Se Helicon de Cícico é profeta porque previu um eclipse do sol, eu vou então fazer
minha profecia: Platão e Dionísio, muito em breve, tornar-se-ão inimigos.
Foi uma pilhéria de mau gosto, reconheço. Como havia na mesa gente que gosta de
investigar mistérios e que se delicia com o oculto, quis, com esse gracejo impensado,
dar uma lição de lógica. Helicon de Cícico, baseado na matemática e na ciência dos
astros, previra o eclipse. Eu, apoiado nos recentes acontecimentos políticos, vaticinara
desentendimentos graves entre Platão e Dionísio.

Platão, que ouviu a minha explicação, sossegou-me, à maneira de desculpas:


- Conheço tua alma, Aristipo. Eu, quando me calo diante das evidências sombrias, é
porque não quero profetizar senão a felicidade. (43)
Dias depois, uma notícia caiu como um raio na cidade. Platão, por ordem de Dionísio,
mudara-se para o forte da Acrópole, onde ficavam aquartelados os mercenários.

Sempre que eu dava um passeio fora dos muros da cidade, observava aquela construção
maciça e sombria logo abaixo do Templo: um gigantesco quadrado de altos muros,
encrespado de ameias, com quatros torres de pedras nas esquinas.

Os amigos de Platão, angustiados, perguntavam-se qual seria a secreta intenção de


Dionísio internando Platão no forte da Acrópole. Evitar que ele fosse assassinado pelos
homens de Filisto ou expô-lo, deliberadamente, ao risco de ser morto pelos
mercenários? Era pelo menos o que se dizia. As causas do ódio dos soldados
assalariados por Platão já foi explicada, e volto a lembrar: nas reformas que o filósofo
preconizava, os mercenários seriam dispensados.
(43) Carta de Platão aos amigos de Dion

Depois de angustiosas considerações, decidimos informar Arquitas de Tarento, que se


fizera fiador de Platão junto a Dionísio nesta terceira viagem do filósofo a Siracusa. O
fiel Xenócrates prontificou-se a ser o mensageiro da carta. Nós o levamos até a Grande
Porta para o caso dos guardas impedirem sua saída, visto ser praticamente um
desconhecido na cidade.
Nunca as patas dos cavalos nos pareceram tão sonoras nas pedras do caminho, como
aquelas que ouvimos quando Xenócrates, curvado sobre a montaria, mergulhou a
galope, nas trevas da noite.

Tínhamos agora que suportar o passar do tempo, enquanto nosso amigo percorria a
distância entre as duas cidades. Nas ceias, à luz mortiça das candeias, na casa de
Amiclas, ficávamos cavilando quais seriam os planos de Dionísio. Sabíamos que os
mercenários andavam inquietos e insolentes em virtude do descaso do tirano para com
eles. Os salários estavam atrasado e eles viam nesse desapreço a influência de Platão.
Os assalariados recordavam com nostalgia os tempos do velho Dionísio, que militava
com eles nos combates, pagava dinheiro grosso às tropas tanto na guerra quanto na paz,
além de distribuir os saque das cidades vencidas. O pai do atual tirano comia e bebia
com eles nos banquetes públicos, rindo às gargalhadas das obscenidades narradas pelos
soldados. O filho, entretanto, embebido das doutrinas dos sofistas - assim falava Filisto
a eles - só pensava em construir edifícios magníficos com colunas marmóreas
sustentando pórticos lavrados por artistas de alto preço. Os mercenários, quando
desciam ao mercado, lançavam olhos endurecidos para os filósofos e artistas recém-
chegados a Siracusa. Falava-se, também, dos donativos e presentes dados pelo jovem
tirano àquela gente efeminada que jamais pegara numa espada ou num arco. Filisto
espalhava que o tesouro que o pai deixara prenhe, o filho deixava magro. Os nobres,
agora aliados a Filisto, apontavam Platão como culpado, repetindo que Dionísio ouvia
Platão em tudo.

Os pitagóricos eram da opinião que Dionísio fazia jogo duplo. No caso de Platão ser
assassinado a mando de Filisto, ele ficaria comprometido, visto ser este, na época, o
segundo homem do governo. Na suposição do crime ser cometido pelos mercenários,
Dionísio denunciaria com alarde a rebelião e, com a ajuda dos tiranos aliados das
cidades próximas - sempre houvera, para o caso de motim, acordo nesse sentido -
crucificaria centenas de soldados fora dos muros da cidade, ao longo dos caminhos,
com ordem de deixá-los apodrecer na cruz, comidos pelos abutres. Para o mundo grego,
o fato pareceria verossímil e a crucificação dos mercenários, um ato de justiça.

Confesso que fiquei esperançoso quando Demerato entrou no caso. Ele era um rico
cidadão siracusano em cuja opulenta fazenda, Dionísio caçava e repousava no verão.
Eram companheiros desde a infância. Amadurecidos - um pelo poder, e o outro pela
riqueza - continuaram amigos e confidentes. Tratei muitas vezes com Demerato.
Pacificador, maneiroso, de falar nobre e discreto, pronunciava as palavras como se
estivesse ditando uma carta. Com voz suave e olhar prestativo, colocando a mão amiga
no ombro do interlocutor, mostrava com decência e lógica qual o caminho a seguir,
mesmo que fosse o da forca. No caso de Platão, entretanto, eu achava que Demerato
tentaria evitar o pior.

Ainda me recordo das idas e vindas de Demerato entre o palácio e a Acrópole, bem
como de suas longas conversas, no pátio do forte, com Araspas, capitão dos
mercenários. Era um persa gigantesco, fugitivo da corte do segundo Artaxerxes, que
Dionísio acolhera a pedido de Esparta. Com o tempo, por vê-lo inexcedível nas artes da
guerra, fê-lo comandante. Quando eu ia visitar Platão no forte da Acrópole, costumava
ver Demerato, com a mão pousada no ombro do persa, falando com suavidade
ameaçadora.

A volta de Xenócrates devolveu-nos a força de ânimo. O jovem, coberto de poeira,


entrou como uma rajada de vento na casa de Amiclas. Trazia num rolo lacrado a carta
de Arquitas para Dionísio.

Arquitas era homem capaz de ir aos maiores extremos para socorrer um amigo. Ao
tomar conhecimento da situação em que Platão se encontrava, enviou, além de uma
carta a Dionísio, uma embaixada formada por ilustres cidadãos de Tarento para
deputarem junto a este a proposta de embarcar Platão de volta a Atenas. Uma trirreme
armada viera ancorar próximo a Siracusa com o objetivo de apoiar Dionísio, no caso
dos oligarcas causarem perturbações.

Depois que Xenócrates banhou-se e ceou, fomos, acompanhados dos pitagóricos,


solicitar uma audiência. O tirano mostrava grande respeito por este grupo de estudiosos,
visto que sua seita é muito considerada no sul da Itália. Recebeu-nos amavelmente.
Passadas as saudações, entregamos-lhe a carta de Arquitas. A fisionomia de Dionísio,
até aquele momento serena, transformou-se, tornando-se desdenhosa e fria. Quebrou o
lacre com as mãos trêmulas e desenrolou o manuscrito. Seus olhos assumiram uma
expressão dura, ao correr da leitura. Enrolou a carta com um olhar distante e me
ordenou que a arquivasse. O tirano preferiu não tratar do assunto de forma confidencial
com o objetivo de que todos soubessem dos riscos que Siracusa correria, caso Platão
não partisse livremente para Atenas. Era um advertência dirigida a Filisto e aos nobres.
A carta foi redigida nos seguintes termos:
“Arquitas a Dionísio:
Saudações:
Nós, amigos de Platão, enviamos Lamisco e Fótidas , a fim de que lhes entregues aquele
varão conforme combinamos. Sei que nos atenderás, recordando-te o interesse com que
pediste que nós encorajássemos Platão a empreender esta terceira viagem a Siracusa,
visto que tu o receberias dignamente e que lhe permitirias permanecer na cidade ou
retornar a Atenas livremente. Aproveito a oportunidade para lembrar-te o quanto o
admiraste na viagem anterior, mais do qualquer outro filósofo. E se aconteceu entre ti e
ele algum desentendimento, convém que ajas com humanidade e o deixes partir, sem
lhe causar nenhum dano. Assim procedendo, tu serás justo e nos agradarás. “ (44)

Recordo-me de que naquele dia, Xenócrates, que era simplório, perguntou a Dionísio:
- Então, senhor, podemos buscar Platão no forte?
Dionísio olhou-o com frieza.
- A paciência, jovem, é a arte de esperar. Aqui fora Platão pode encontrar pessoas que
queiram cortar-lhe o pescoço.
E passou a mão acima do peito, fazendo o gesto da degola. Xenócrates apontou para a
própria garganta e retrucou:
- Ninguém cortará o pescoço de Platão, antes de cortar este!
Dionísio teve uma reação surpreendente. Com um olhar de espanto, deu uma risada
áspera e voltou aos seus aposentos desfeito em risos.

Não existia para nós, àquela altura, nada que demandasse tanta pressa quanto o
embarque de Platão para Atenas. Demerato, extremado nas providências e
imperturbável no trato, pedia paciência. Eu, Xenócrates e os pitagóricos visitávamos
Platão diariamente.
(44) Diógenes Laércio
O filósofo escrevia muito. Eram cartas a vários amigos da Itália, visto que não se
cansava de dizer que, em virtude da idade, não pretendia mais viajar. Ia realizar seu
velho sonho: dedicar-se inteiramente à filosofia e à sua Academia em Atenas.
Semanas depois, aportou em Siracusa a nave que devia levar Platão de volta a Atenas.
Demerato providenciou o transporte de seus pertences para a embarcação. Na véspera
do embarque, Dionísio ofereceu um banquete em homenagem ao filósofo. Apenas os
amigos mais íntimos de ambos foram convidados. A guarda do palácio foi reforçada.
Uma preciosa baixela e vasos ricamente pintados pelos melhores oleiros de Corinto,
usados apenas em banquetes oferecidos a chefes de Estado, foram retirados das arcas e
colocados na mesa naquela noite. Nós nos sentíamos felizes com a volta de Platão são e
salvo a Atenas, conforme pedira Arquitas de Tarento. A funesta Caríbidis devia olhar
aquela viagem com repugnância e antipatia.

Na noite do festim, atrasei-me por causa de uma aula que dera fora dos muros da cidade.
Ao subir a escadaria, ouvi vozes e aplausos. Um servo retirou o meu calçado e lavou
meus pés. Entrei de mansinho no salão iluminado por dezenas de candeias suspensas
por correntes de ouro. Observei que Demerato, hábil conhecedor de muitas coisas,
atendia os convidados e dava ordens aos escravos. Dionísio, ao seu lado, parecia
tranqüilo e sem malícia. Justifiquei ao tirano o meu atraso e reclinei-me num dos leitos
ao lado das mesas. Eram descansos de pouca altura com patas de animais esculpidas nos
pés e rodeados de leitos almofadados onde os comensais, recostados, palestravam. De
repente fez-se silêncio. Platão, de pé, com a taça na mão, fazia um brinde:
- Alegra-te, Dionísio, alegra-te. Terei eu encontrado a melhor forma de te fazer um
brinde? Ou antes, como é meu costume, quando me dirijo aos amigos, devia desejar-te
boa sorte? Tu próprio, conforme me informaram os que foram testemunhas, saudaste o
deus em Delfos precisamente por esta forma, e dizem que pediste que o deus alegrasse e
conservasse feliz a vida de um tirano. Por mim, não quereria exprimir tais votos a um
homem, quanto mais a um deus: a um deus porque os meus desejos seriam
incompatíveis com a natureza divina, que está além do prazer e da dor; a um homem
porque, a maior parte das vezes, prazer e dor são fontes de desgosto. E aqui fica a
minha saudação. Cabe a ti escolheres a que te parece melhor.”(45)

Dionísio então se ergueu e, conforme os costumes, ofereceu a terceira taça aos deuses.
Nós repetimos a libação e em coro cantamos o Péan. Reclinados nos leitos, iniciamos a
refeição . O vinho nos tornara amáveis e alegres. Foram servidas carne de carneiro e de
perdizes com legumes. Veio, em seguida, um primoroso peixe. Jovens, trajando túnicas
das mais variadas cores, continuavam a verter vinho nas taças e a trinchar a carne. Um
grupo de músicos, para não perturbar a conversação, tocava no fundo da sala melodias
suaves nas cítaras e flautas.

Falei há pouco dos famosos vasos de Corinto, da baixela de Dionísio, usados apenas nos
momentos solenes e que Demerato ordenara fossem colocados na mesa naquela noite.
Eram de rara beleza. Vasos e travessas de duas asas com figuras pretas de atletas e
animais em fundo rosado, ou figuras vermelhas em fundo preto, fabricados por oleiros
famosos, verdadeiros artistas de Corinto.

Depois de nos banquetearmos, voltamos para casa de Amiclas com passos pesados.
(45) Carta de Platão a Dionísio

Dionísio despedira-se de Platão no palácio. Os dois haviam conversado a sós. Na casa


do pitagórico, Platão nos falou longamente desta sua terceira viagem à Sicília,
dirigindo-se, principalmente, a Lamisco e Fótidas, embaixadores de Arquitas de
Tarento, que vieram a Siracusa como negociadores da paz entre o filósofo e Dionísio.
Platão realçou, mais uma vez, que viera à ilha atendendo solicitação de Dion, seu sábio
conselheiro em assuntos itálicos, cujo pedido ele não podia desprezar.
- Conheço bem Dion, meu discípulo há longos anos. Homem generoso e justo, em plena
força e maturidade de espírito, condições absolutamente indispensáveis a pessoas
chamadas a deliberar sobre questões tão graves como são os assuntos do governo de
Dionísio. Este, eu conheci muito jovem, totalmente desprovido de experiência e até
então desconhecido para mim. Depressa Dion foi banido e Dionísio ficou sozinho
entregue a uma multidão de homens perversos, que ele julgava comandar, não fazendo
senão obedecer a essa gente, em vez de exercer o poder. Devo acusar um homem, um
deus ou à fortuna ajudada por Dionísio?
Nós sabíamos que com Dion ausente, Platão não poderia participar dos assuntos
políticos de Siracusa.
- Tendo perdido aquele meu sábio companheiro - continuou o filósofo - qual deveria ser
a minha atitude? Não seria aquela que fui forçado a tomar? Dizer adeus, a partir de
então, aos assuntos políticos, precaver-me contra as calúnias dos invejosos e empregar
todos os meios, apesar das divisões e discórdias, para reatar a amizade entre Dion e
Dionísio? Eu vim, então, pela terceira vez a Siracusa. O próprio Dionísio me chamou
pedindo que viesse sozinho. A Dion, ele prometia fazê-lo voltar mais tarde. Relutei,
então, em viajar, provocando o descontentamento de Dion, que julgava preferível que
eu viesse e me submetesse às ordens de Dionísio. Naquela época, aportou em Atenas
um barco trirreme com cartas deste, nas quais ele me dizia que se eu viesse a Siracusa,
os assuntos de Dion se arranjariam segundo os meus desejos. Senão, vejam bem,
senhores, seria o contrário. E passei, então, a receber cartas de Dionísio, da Itália, daqui
da Sicília, dos meus familiares e amigos. Todos me incitavam a vir e suplicavam que eu
obedecesse ao tirano. Portanto, todos, a começar por Dion, eram da opinião de que
deveria embarcar sem vacilar. Em vão eu dava como pretexto para não viajar a minha
idade, quase setenta anos, e insistia no fato de que Dionísio seria incapaz de resistir aos
que me caluniassem, sonhando ver-nos como inimigos. Contudo, pus de parte todas
estas razões e vim pela terceira vez a Siracusa. Eu não queria que meus amigos
pudessem me acusar de ter abandonado Dion, por negligência, quando podia salvá-lo.
Eu vim, pois, e todos sabem bem tudo que se passou. Quero deixar bem claro, antes da
minha viagem, que eu insisti com Dionísio para que, segundo as promessas que
continham as cartas que ele me enviou, chamasse Dion de volta. Seria melhor para ele,
para os siracusanos e para todos os gregos. Assim pelo menos eu acreditava. Pedi
também que confiasse os bens de Dion à sua família e não a administradores que apenas
ele, Dionísio, conhecia. Deixei bem claro que era preciso enviar a Dion, todos os anos,
os rendimentos habituais e até aproveitar a minha estada aqui para os aumentar e não
para diminuir. Não conseguindo nada, pensei em partir. Dionísio persuadiu-me a ficar,
visto que ele liquidaria toda a fortuna de Dion para enviar metade a este e o resto a seu
filho. Oh, eu teria muito a dizer sobre as tantas promessas feitas por Dionísio, e que
nunca foram mantidas. Mas onde eu quero chegar com este discurso? Quero que
Dionísio não me calunie mais, e disse isso há pouco a ele, não me calunie, pretendendo
que eu o impedi de restabelecer as cidades gregas destruídas pelos bárbaros e de aliviar
o peso da tirania. Eu poderia, aliás, desmenti-lo com argumentos mais claros ainda, se
houvesse um tribunal competente para provar que os conselho vinham de mim e as
recusas, dele. Disse-lhe também há pouco, quando nos despedimos: Se negas ter
pronunciado as palavras que disseste, pedirei satisfações. Se confessas, se te resolveres
a imitar a retratação de todo o homem sábio, passa, então, da mentira à verdade. (46)
(46) Carta de Platão aos amigos de Dion.
Assim falou Platão aos amigos na última noite que passou em Siracusa. No dia seguinte,
o filósofo compareceu a várias homenagens que lhe foram prestadas e tomou parte no
banquete público. E quando o sol estava quase no ocaso, com ventos vindos da África,
embarcou. Xenócrates o acompanhou.

Observando o piloto debruçado na proa, com a sonda em punho como se temesses os


baixios, perguntei a Demerato quem era aquele comandante que parecia não conhecer o
porto de Siracusa. Ele me respondeu que se tratava de navegador de inteira confiança de
Arquitas de Tarento. Eu e os pitagóricos nos tranqüilizamos.
Com a saída de Platão, a luta pelo aperfeiçoamento das instituições políticas da Sicília
perdeu toda a grandeza. Os oligarcas festejaram sua partida como se tivessem se livrado
da peste. Dionísio tornou-se mais cínico e debochado ainda. Dizia sempre: “Aquele que
viver ao lado de um tirano, se torna escravo, mesmo que seja cidadão livre.” Perdeu
também o interesse pelos estudos filosóficos. Perguntou-me certa vez:
- Que diferença há entre um filósofo e um homem comum?
- Coloque os dois numa cidade sem lei e verás a diferença - respondi. (47)
A disputa pelo poder na Itália Grega voltou a ser uma perversa e mesquinha luta de
lobos e chacais. Dionísio pensava em fazer novas alianças políticas para se fortalecer na
região e, naquela altura, via Arete, esposa de Dion, como moeda de troca. Rica e sem
igual em formosura, conquistaria facilmente as graças de algum príncipe. Platão ficara
de tocar neste assunto com Dion que, todos sabiam, não se dava bem com a esposa.
Assim, ele também ficaria livre para fazer novas alianças.
(47) Diógenes Laércio

O plano de Dionísio era casar Arete, sua meia-irmã, com Timócrates, importante
cidadão siracusano, chefe do partido dos proprietários das ricas terras que cercam a
cidade, além de ser pessoa protegida pelo Tirano de Rhegion.
Logo que Platão chegou a Corinto, onde naquela altura morava Dion, escreveu carta a
Dionísio comunicando que aquele se sentiria insultado se fosse levado a cabo o seu
plano de casar Arete com outro homem. Dionísio não recuou. Fazendo uso do seu
poder, como tirano, de anular casamentos, não somente casou Arete com o poderoso
Timócrates, como também confiscou os bens de Dion e adotou seu filho, que há muito
vivia no palácio com a mãe e a avó, madrasta do tirano. A outra esposa do velho
Dionísio vivia, naquela época, em Locres, no sul da Itália. Estes acontecimentos
colocaram Dion em ânimo de guerra contra Dionísio.

DION

Antes de narrar os trágicos acontecimentos que terão lugar em Siracusa, em virtude do


lodaçal no qual Dion e Dionísio se lançaram, não é inoportuno lembrar que, em situação
semelhante, o pai do tirano se portou melhor do que o filho. Polixeno, seu cunhado,
desavindo-se com ele, fugiu. A princípio, o velho Dionísio julgou que havia conluio
entre sua irmã, Testes, e o marido. Interpelou-a. Testes era mulher de forte
personalidade e muito querida na cidade. Costumava visitar os bairros pobres levando
alimentos e roupas. Respondeu nos seguintes termos: Pensas, meu irmão, que sou tão
mal casada, tão infeliz com meu marido que se soubesse da sua intenção de abandonar a
ilha não o teria seguido para participar de sua sorte? Pois te digo: não sabia dos planos
de Polixeno. E digo mais: daqui em diante prefiro que me chamem de esposa de
Polixeno do que de irmã de um tirano! “ (48)

Dionísio retirou-se, admirado com as palavras de sua irmã. Continuou a tratá-la com
toda a consideração. Parece-me que, evocando este fato, não me desviei do assunto
principal.

Em Corinto, Dion convocava os desterrados de Siracusa para formarem um exército e


invadirem a Sicília grega. Heráclides, que havia sido chefe da cavalaria siracusana e
fora
(48) Plutarco
expulso da ilho pelo próprio Dionísio, uniu-se a Dion. Ambos começaram os
preparativos para a guerra. Platão, pretextando idade avançada e o fato de ter sido
hóspede de Dionísio, não se uniu a eles. Euspesipo, sobrinho de Platão e os demais
filósofos que haviam visitado Siracusa e conheciam bem a opinião do povo, exortavam
os dois a libertar a população siracusana. Em carta dirigida a seus amigos, Dion
explicava que depois de longa prosperidade via-se, agora, humilhado pelas desgraças
impostas por Dionísio. Foram-lhe confiscados os bens que lhe permitiam viver com
dignidade no estrangeiro e sua esposa fora obrigada a se casar com outro homem por
um capricho do tirano. Aquela grandeza moral, imposta por Platão nas decisões
políticas da cidade durante sua estada na ilha, procurando aperfeiçoar as leis e os
costumes para tornar o povo mais feliz, transformaram-se num espetáculo hediondo de
infâmias e humilhações. Os conselhos de sabedoria e prudência encontraram ouvidos
moucos. O ferro e o fogo falariam agora.

Dion e Heráclides passaram a recrutar, em segredo, tropas mercenárias, aquartelando-as


numa ilha sinistra e sombria, afastada da costa, lugar propício para empreendimentos
obscuros. Ficou acertado que Dion comandaria a tropa e Heráclides, as naves.
Siracusanos e sicilianos exilados uniram-se à expedição, jurando derrubar o governo
despótico. Mais adiante veremos que muitos deles odiavam o tirano, e não a tirania.

Em pleno verão, quando os preparativos de guerra chegaram ao auge, já abastecido de


víveres, Dion, tendo formado em ordem a infantaria, a cavalaria e a frota na praia, fez
um sacrifício a Apolo, acompanhado em grande pompa pelos soldados. Depois dos
sacrifícios e libações, os chefes ofereceram aos combatentes um lauto banquete em
mesas preparadas na areia, deixando-os maravilhados com a riqueza dos pratos, vasilhas
e jarros de ouro e prata, abastança mais própria de uma cidade do que de um único
cidadão.

Ao cair da tarde a expedição partiu rumo à Sicília, com ventos favoráveis e mar
tranqüilo. Os soldados brandiam as armas, soltando urros como incentivo à força e à
coragem.

Em alto mar, os combatentes tomaram conhecimento de que iam fazer guerra a


Dionísio, tirano de Siracusa, cidade grande e bem fortificada. Todos ficaram surpresos e
aturdidos, considerando a empresa temerária, visto que teriam que atacar uma tirania de
quase cinqüenta anos, considerada muito sólida.

Uma proclamação escrita por Dion foi lida em todas as naves: “Sicilianos e siracusanos
esperam-nos na ilha para abraçarem a mesma causa. Eu, Dion, meu irmão Mégacles e o
ateniense Calipo, homens maduros e exercitados nos assuntos de guerra, possuidores de
muitos bens e riquezas na Sicília, não se arrojariam a empreendimento de tamanha
magnitude sem certeza da vitória e da ajuda de amigos e aliados na própria Sicília, que
lhes oferecerão grandes e custosos auxílios.”

Depois de doze dias, com vento favorável, a esquadra se viu envolta por uma fúnebre
calmaria, em meio a denso nevoeiro; parecia que o céu e o mar se confundiam.

Navegando ao longo da costa africana, onde o Mediterrâneo se estreita, as naves de


Dion deslizaram durante três dias, lentamente, como sombras, num mar acinzentado, a
fim de evitar as galeras de proa pontiaguda de Filisto. De repente, o céu clareou e um
vento úmido inflou as velas das estrebarias flutuantes, que levavam cavalos e forragem.
As galeras a remo dos combatentes puderam então avançar. Dois dias depois, atingiram
a costa da Sicília, no ponto onde está situada Minoe, povoado cartaginês.

Após curto desentendimento com a guarda do forte, Sinato, comandante da praça,


amigo de longa data de Dion, proporcionou alojamento aos soldados e ofereceu àquele
coisas de necessidade naquela emergência.

O cartaginês informou a Dion que Dionísio partira para o sul da Itália com oitenta
naves, deixando Siracusa entregue a mãos sem firmeza. A razão da viagem do tirano
com toda a sua armada não parecia fazer sentido. Teria Dionísio julgado que Dion
atacaria primeiro o sul da Itália, como outros inimigos já haviam feito? Cabia aproveitar
a oportunidade que os deuses lhe ofereciam. Dion decidiu, então, investir diretamente
contra Siracusa. Temócrito, que se casara com sua esposa, ficara no governo da cidade.
Tomando conhecimento de que Dion se aproximava com um grande exército, ao qual já
se haviam unido centenas de cidadãos do sul da Sicília, entrou em pânico e enviou um
veloz mensageiro ao tirano. Ao estafeta ocorreu um fato jamais esclarecido: não chegou
ao destino e jamais foi visto. A armada de Filisto, em virtude de circunstâncias que
narraremos adiante, nada pôde fazer. Quis o destino que Dionísio soubesse tarde demais
do ataque à sua cidade.

Diante de Siracusa, Dion deteve a marcha, ergueu tendas, fez sacrifícios aos deuses e
ouviu dos adivinhos promissores augúrios. Na cidade, sobre as muralhas, a multidão,
louca de alegria, atirava flores. No lado oposto à porta principal, os guardas, mudos de
espanto, viram Timócrates e seus amigos, curvados sobre as montarias, fugindo à rédea
solta.

Dion e seu exército entraram em triunfo na cidade. Nobres, vestidos de gala,


acompanhados de suas famílias, comerciantes com seus escravos, artesãos e suas
mulheres acorreram para receber o homem que vinha libertar Siracusa. Dion,
vistosamente armado, montando um corcel branco, seguido dos soldados que entoavam
hinos de guerra e dos carros munidos de foices nas rodas, desfilou pelas ruas da cidade
engalanada para recebê-lo.

Assim, Dion se apoderou da parte da Sicília que antes lhe obedecia, exceto do alcazar,
quase na entrada do porto, na ilha de Ortígia, que continuou sob o domínio de
Apolócrates, filho de Dionísio, cuja libertação dependia da armada comandada por
Heráclides, que ainda não havia chegado.

Na praça, Dion falou à multidão, exortando-a a lutar pela liberdade. Cercado de seus
principais auxiliares, assinou uma anistia que beneficiava os prisioneiros políticos.
Como prova de gratidão e apreço, os cidadãos mais eminentes o nomearam chefe do
governo com a finalidade de dar uma constituição à cidade. Os magistrados
empossaram um novo conselho, composto de cidadãos residentes em Siracusa e de
exilados que retornaram com Dion.

Informado por boatos incertos de que sua família deixara a cidade, Dion correu à sua
casa. Seu velho servo, Damon, contou chorando que as duas mulheres e o menino, por
ordem de Dionísio, haviam sido levados para o forte da ilha de Ortígia, aos cuidados de
Apolócrates, filho do tirano. As mulheres não sofreram nenhuma violência.
Concordaram em partir temendo os perigos da cidade inquieta. Dion, desolado,
caminhou pela casa abandonada que lhe parecia triste e sinistra. Nada havia sido tocado,
tudo estava em seu lugar, como antigamente. Mostrava-se, no entanto, árida como um
deserto.

Mais uma vez, Dion procurou interpretar as verdadeiras intenções de Dionísio, de tal
forma aquele homem de alma escorregadia sabia ser amável na baixeza, e cruel nas
afeições. Teria ele colocado sob sua proteção as duas mulheres que também eram
parentas suas, ou estaria usando Arete, Aristômaca e Hiparinos como garantia para
conseguir concessões? O certo era que Dion não poderia mais atacar o forte da ilha de
Ortígia, estando lá sua esposa e filho. Na manhã seguinte, mandou abrir valas em torno
da cidade e nomeou os comandos das guarnições que se encarregariam de sua vigilância
e defesa. Sete dias depois, um alarido se fez ouvir no alto das muralhas. Dionísio
acabara de chegar diante de Siracusa com um poderoso exército. Os campos do lado
norte ficaram coalhados de ginetes e tendas. Ouviam-se ruídos de armas e relinchos de
cavalos. Os comandantes de Dion reuniram-se em conferência.

Com o objetivo de avaliar o poder dos exércitos de Dion, Dionísio, sob pretexto de
dirimir divergências, enviou delegados à cidade para parlamentarem com ele. Mandou
também espalhar na praça e no mercado promessas aos siracusanos de moderar os
tributos e de não obrigá-los à guerra, a não ser no caso da invasão de bárbaros. A Dion,
ele pedia que permitisse a volta à cidade dos nobres que o haviam acompanhado ao sul
da Itália, e que possuíam família e propriedades em Siracusa. Não se cansava também
de agradecer a Dion, com alarde, o apoio que dele recebera, durante tantos anos, para o
fortalecimento da tirania. Lembrava ainda que o seu pai, o primeiro Dionísio, que fora
tirano mais poderoso da Itália Grega, conservara o poder graças aos relevantes serviços
prestados por Dion.
Dion respondeu aos emissários que trataria dos assuntos de Dionísio - propriedades e
rendas - por meio de um procurador escolhido por este, a partir do momento em que ele
abdicasse da tirania. Foi então que reapareceu Demerato, aquele cidadão astuto e de
agudeza de ânimo, muito versado em transes difíceis.

Em colóquio reservado com Dion, Demerato propôs uma solução política nova e
desusada naquelas regiões, e que em sua opinião, atenderia aos interesses de ambas as
partes: Dion, em virtude de suas boas relações com os cartagineses, governaria a Sicília
Grega, inclusive cidades grandes e ricas como Catane, Tauremonin, Naxos e outras.
Dionísio ficaria com o sul da Itália e seu filho Apolócrates governaria exclusivamente a
cidade de Siracusa. Desta forma, ponderou Demerato com a mão no ombro de Dion,
estaria garantida a paz eterna para sicilianos, itálicos e cartagineses. Tão forte era o
encanto pessoal de Demerato - e Dion o tinha em grande apreço - que o assunto ficou
para ser resolvido pelo Conselho das cidades envolvidas ou mesmo por um plebiscito.
Dion nada mais prometeu, não ficando esclarecido se seria assinado pacto, ajuste ou
simples proposta.

Ao mesmo tempo, era voz corrente na cidade que Dionísio abdicaria da tirania por sua
própria vontade e não por pressão de Dion. Tudo isso, porém, não passava de tretas e
enganos.

Dois dias depois, a cidade se cobriu de pânico. Dionísio atacou o lado norte das
muralhas. Os siracusanos, apavorados, correram com as mulheres e filhos para o lado
oposto. Megácles, irmão de Dion, atravessou a cidade a cavalo, tentando conter a fuga e
ordenando aos mercenários que contra-atacassem. Dion, espada na mão e escudo no
braço, correu para o local do combate seguido de soldados. Parte das tropas de Dionísio
já haviam atingido o topo das muralhas, e outros tentavam o mesmo, brandindo as
armas e soltando urros.

A luta foi renhida. O próprio Dion correu grande risco, batendo-se com valentia e
arrojo, debruçado sobre as ameias, tendo sido ferido no braço, tantas foram as setas e as
duras bolas de barro disparadas contra ele pelos arqueiros e fundibulários. Diante da
reação dos soldados de Dion, os invasores bateram em retirada ao toque de trombeta.

Dias depois destes acontecimentos, os guardas do alto da Acrópole viram cinco galeras
trirremes colhendo as velas na entrada do porto. Era Heráclides, outro exilado que
chegava. Tendo se indisposto com Dion ainda em Corinto, onde buscara refúgio depois
de ter sido banido por Dionísio, decidira armar seus homens e vir por conta própria.
Bom militar, tinha a fama de possuir mão forte no comando. Rico e querido do povo,
possuía, entretanto, caráter dúbio e sabia ser arrojado tanto na luta quanto na deserção.
(49)
Foi naquela ocasião que eu o conheci. Heráclides era homem incensado pelos nobres
por causa de sua perícia nos combates navais, e detestado pelos magistrados em virtude
de sua arrogância no trato com a coisa pública. Era mais baixo do que a média dos
homens, sendo, entretanto, tão bem proporcionado que não se notava ser ele de pequena
estatura, caso não tivesse ao seu lado uma pessoa mais alta. Tinha humor cortante,
maneiras esquisitas e fala rápida. Seria belo se não tivesse o lábio lascado abaixo do
nariz mostrando um dente, o que emprestava à sua fisionomia uma expressão
desdenhosa.
(49) Cornélio Nepote

Dion, necessitando de aliados naquela hora difícil, recebeu-o amavelmente, não


obstante os desentendimentos ocorridos em Corinto. Com o exército de Dionísio
acampado defronte da cidade, o Conselho nomeou Heráclides comandante da armada.

Antes de chegar a Siracusa, Heráclides, navegando pela costa, teve a surpresa de ver os
navios de Filisto tomando uma rota paralela à sua, como se estivesse à espreita de
ocasião favorável para um ataque. Num assomo de audácia, Heráclides deu ordem às
suas naves para que atacassem as naus inimigas e, aproveitando um vento forte que
soprou a seu favor, lançou-se sobre as forças de Filisto com tal ímpeto, espatifando os
remos da nau capitânia, que não permitiu aos adversários manobras em qualquer
sentido. Filisto, vendo-se cercado, suicidou-se. As outras naves, valendo-se da
tempestade, fugiram.

Heráclides ordenou que o corpo de Filisto fosse exposto na praça, para que não pairasse
dúvidas sobre o seu feito. O povo arrastou o cadáver pelas ruas da cidade com uma
corda amarrada em uma das pernas, com gritos de escárnio, lembrando que Filisto
costumava dizer a Dionísio que não abandonasse a tirania correndo, e sim saltando
numa só perna, sem pressa.

Informado do que estava acontecendo, Dion desceu à praça e ordenou que se desse
sepultura ao corpo de Filisto. Falando ao povo, recordou que o comandante ofendera
gravemente a cidade, quando tramara o assassinato de Platão, mas que ainda assim, seu
corpo devia ser enterrado, visto que sua alma tomara o caminho escuro de onde
ninguém volta. Lembrou ainda que Filisto fora um dos maiores historiadores de sua
geração. Sua “História do Egito”, “História da Sicília” e uma rica biografia do primeiro
Dionísio eram consideradas obras perfeitas na narrativa dos fatos e na beleza de estilo.
(50) Como
(50) Cornélio Nepote
homem público, entretanto, Filisto cavara a própria ruína, praticando toda casta de
violências. Nada mais fizera Heráclides do que lhe aplicar o corretivo merecido. Assim
falou Dion diante do cadáver do seu inimigo, e não voltou mais a tocar em seu nome.
Heráclides tivera sua primeira vitória a favor dos siracusanos, mas a Dion, ele iria trazer
amargos desgostos e cruéis dissabores. Mas disto falarei mais adiante.
Dion ausentava-se constantemente da cidade, em fatigantes jornadas, acompanhado de
auxiliares e de sua guarda pessoal, para fiscalizar o trabalho dos operários nas cidades
restauradas. Ele e seus amigos dormiam muitas vezes em péssimas condições de
alojamento, enrolados em mantos, dentro de úmidos telheiros. Nestas ocasiões, seu
irmão Mégacles assumia o governo da cidade. Para fortalecer o tesouro, criou um
imposto sobre capital e ganâncias, a fim de angariar fundos para as despesas dos
sacrifícios públicos, de utilidades comuns e para a guerra.

Assumindo o comando da nau do Estado em meio a inquietações e cuidados, Dion


procurou o rumo do bom governo. Cercando-se de homens da mais alta reputação,
impôs à cidade dieta rigorosa nos gastos públicos, como fazem os médicos aos doentes,
com sangrias e poções, a fim de colocar em ordem o tesouro que Dionísio deixara
definhado. (51)
Dirigindo-se aos ricos por meio de palestras e audiências palacianas, fez ver que a
riqueza só é um bem quando dela desfrutam as massas empobrecidas por meio de
salários justos, benefícios e proteção, de maneira que encontra cada um sua
conveniência num pacto mútuo e solidário entre as classes sociais. Isto é, Dion esperava
dos ricos uma conversão moral que beneficiasse os mais pobres. Só assim aqueles
formariam no seu próprio meio os “melhores cidadãos” para o governo da cidade. (52)
(51) Plutarco
(52) “As origens do pensamento grego” , Jean Pierre Vernant
Ao povo miúdo, nos banquetes públicos, cumprimentando cada cidadão pelo nome,
graças à sua excelente memória, pedia respeito às leis, dedicação à família e empenho
na defesa da ordem pública, como faziam os combatentes na defesa das muralhas. Aos
desempregados e ociosos, propensos à prática da violência, Dion prometia amplos lotes
de terras e ricas pastagens, com charrua e parelha de bois, situados nas cidades gregas
que estavam sendo reconstruídas. Informava também que estas cidades, logo que os
pedreiros e agrimensores as entregassem prontas, seriam governadas por legados seus
com leis retas e justas. As cidades recuperadas teriam templo e fortaleza, constituindo-
se em centro religioso e militar, como defesa avançada contra os bárbaros.
Na parte política, Dion já havia proposto ao Conselho um plano, que seria submetido à
votação do povo, para a transformação da tirania em monarquia. Tudo viria a seu
tempo, visto que a monarquia pressupõe magistraturas com delegação de poderes, o que
não ocorre com a tirania, que é o poder de um só homem. Durante a execução deste
plano, houve intensa troca de cartas entre Dion e Platão.

Depois da morte de Filisto, Dionísio enviou Demerato como mediador, propondo sob a
fé de um tratado, retirar-se para o sul da Itália, desde que Dion enviasse as rendas de
suas propriedades, assunto que este deixara pendente para ser decidido pelo Conselho. E
mais, queria ainda que fossem pagos cinco meses de salário aos mercenários. Em uma
reunião tumultuada por Heráclides e seus amigos, o Conselho recusou as propostas de
Dionísio. Tornou-se evidente que aquele, na condição de comandante da armada
siracusana, desejava prolongar a guerra para beneficiar-se do poder militar.

Diante desta situação, Dionísio entregou o comando de suas forças ao norte da Sicília a
seu filho, Apolócrates, e, com parentes e amigos, fez vela para o sul da Itália, sem que
Heráclides o percebesse. Da Itália, enviou mensageiro com carta para Dion. Nela o
tirano deposto pedia ao tio que conservasse a tirania. “Se afrouxares a rédea do poder -
observava ele - o povo se tornará afoito, os nobres arrogantes, e o Conselho usará os
debates apenas para protelar as reformas preconizadas por ti”. Terminava a missiva com
uma consideração que poderia ser uma ameaça ou uma advertência: “Teus familiares e
amigos sofrerão as conseqüências de teus atos.”(53)

Dion tinha agora inimigos dentro e fora das muralhas. Não passava despercebido que
Heráclides, obsequioso na presença de Dion, tramava ocultamente contra ele,
mancomunado com dois cidadãos de costumes obscuros: Sósis, conhecido por sua
maldade e insolência, e o agitador Hipon, que sonhava implantar em Siracusa uma
democracia uniforme com grande matança de nobres. Aos mercenários, Heráclides fazia
crer que Dion tentara a paz com o objetivo de despedir as tropas assalariadas, enquanto
ao povo, queixava-se dos impostos e do arrocho do tesouro. No mercado e na praça,
seus amigos comentavam, à boca pequena, que Dion havia dado a cada mercenário cem
minas como recompensa após a fuga de Dionísio. Sósis e Hipon não tinham permissão
para entrar no palácio, mas a Heráclides, Dion tratava com consideração, procurando
abrandá-lo e corrigi-lo. E assim, ia Dion rolando para o incontrolável e o imprevisível.
Passadas muitas luas, a Assembléia do Povo foi convocada para eleger os magistrados
que auxiliariam o governo por um ano no comando da Armada, na execução da justiça,
na cobrança dos impostos e na guarda do tesouro.

Dion não era inclinado a superstições, mas sabia que nas cidades gregas nenhum ato
público pode acontecer sem a consulta aos auspícios. A deusa protetora da ilha era
(53) Plutarco
Perséfone, aquela que foi raptada por um deus horrendo quando colhia flores nos prados
da Sicília. Mégacles, irmão de Dion, foi ao templo da deusa, situado no alto de uma
colina para informar aos sacerdotes sobre a convocação, a fim de que a deusa recebesse
as homenagens do povo, deixando claro que a Assembléia só aconteceria no caso dos
augúrios não decidirem o contrário. Pedia ainda que eles designassem um sacerdote
para presidir os sacrifícios não sangrentos.

Arautos e editais afixados na praça e no mercado informaram ao povo a data da consulta


popular. O agitador Hipon, na hora em que o mercado estava mais concorrido, pedia
aos passantes que exigissem do governo a inclusão na pauta da votação de proposta para
a dispensa dos mercenários como economia para o tesouro, e a formação de um exército
popular com generais escolhidos por plebiscito.

Dion sabia que era prematuro aceitar as propostas de Hipon, uma vez que o exército de
Apolócrates, filho de Dionísio, havia erguido suas tendas a uma jornada da cidade. A
tirania que dominara Siracusa durante cinqüenta anos deixara o povo debilitado, visto
que Dionísio negligenciara a instrução e a disciplina militar. Seria uma temeridade,
àquela altura, despedir os mercenários. Por outro lado, Heráclides e seu tio Teodotes,
dominados pela ambição, espalhavam entre os mercenários boatos alarmantes de cortes
e dispensa, explorando a fácil credulidade de homens rudes e ignorantes que viviam sob
o acicate do perigo. Dion encontrava-se agora num lodaçal de intrigas e lutas pelas
posições de mando.

Depois que os sacerdotes do culto a Perséfone, com brancas vestes, colocaram a


Assembléia sob a proteção da divindade, Dion conclamou o povo a votar em homens
íntegros para a direção dos negócios públicos. Neste momento, ouviram-se gritos vindos
da ladeira que leva à rua dos prostíbulos. Sósis, amigo do tirano deposto, aproximava-
se, sujo e ensangüentado, denunciando, aos gritos, que fora vítima de uma atentado.
Houve grande agitação entre o povo que se encontrava na praça para votar. Dion pediu a
todos que se acalmassem, e lembrou que Sósis era irmão de um arqueiro da antiga
guarda pessoal de Dionísio. (54)

Médicos que se encontravam na praça para votar examinaram Sósis, a pedido de Dion, e
constataram que os ferimentos eram superficiais, diferentes daqueles que são causados
por espadas, e sem a profundidade das feridas produzidas por punhal. Não havia lesões
provocadas por cacetadas ou pedradas. (55)

Demerato, amigo desprendido de Dionísio, ali presente, perguntou a Sósis, com


suavidade ameaçadora, onde ele deixara o punhal, visto que a bainha presa à cintura
estava vazia. Cidadãos que rodeavam o ferido lembraram que Sósis costumava levar um
punhal com cabo de ouro.

A votação continuou. Sósis, até que o caso se esclarecesse, ficou sob custódia na casa
de Símias, presidente do Conselho. No dia seguinte, ele foi denunciado por uma
vizinha, que o vira agachado, escondendo alguma coisa no buraco de um muro defronte
de sua casa. No local, foi realmente encontrada a lâmina de punho de ouro que pertencia
a Sósis. Julgado, ele foi condenado à morte por plebiscito.

Corria o tempo. Dion, lutando em prol da cidade, via-se cercado de oligarcas


turbulentos e de demagogos atrevidos. O povo, agitado, dava ouvidos a toda casta de
(54/55) Plutarco
boatos. Heráclides, que fora confirmado pela Assembléia no cargo de comandante da
armada, insinuava entre os mercenários que se tivesse o poder supremo na cidade,
outorgaria aos soldados estipendiários o direito de cidadania, garantindo a todos uma
velhice tranqüila. Os amigos de Dion alertavam-no, citando aquele verso homérico do
segundo canto da Ilíada que diz: “o governo de um Estado não pode ser bom quando
muitos mandam.” (56). Aconselhavam-no a desfazer-se de Heráclides e de seu tio
Teodoto pelo ferro ou pelo exílio, lembrando que os erros políticos são redimidos a
troco de cruéis sofrimentos. Dion respondia que Heráclides e Teodoto haviam estudado
apenas a arte da guerra, enquanto que ele cursara a Academia de Platão, onde exercitara
a razão para agir com prudência e justiça.
O agitador Hipon, por sua vez, espalhava furtivamente no meio do povo, com
consumada perícia, que Platão ensinara a Dion como trazer a cidade sempre rendida à
sua autoridade com enganosas palavras sobre o supremo bem e a perfeita justiça,
conforme a opinião que os ricos tinham dessas virtudes.
Voltou a Siracusa, a essa altura, um cidadão ateniense de nome Calipo, em cuja casa
Dion hospedava-se quando ia a Atenas. Este o chamara, por considerá-lo homem muito
versado nos negócios públicos, e o tratava como amigo. Calipo passou a viver na casa
que fica no fundo dos jardins do palácio onde três anos antes morara Platão, e
transformou-se em conselheiro de Dion e preceptor de seu filho, rapaz sombrio, que
causava ao pai sérias preocupações.
Como médico que prescreve ao doente rígida dieta visando à cura, Dion impôs à
sociedade um rigoroso sistema nos gastos públicos, procurando atender as necessidades
de todos os cidadãos, necessidades estas descuradas por uma tirania que mantinha o
povo sob um jugo penoso.
(56) Cornélio Nepote

Os adversários de Dion incitavam o povo à desobediência. O agitador Hipon não se


cansava de falar da sangria que os salários dos mercenários causavam ao tesouro. Por
que pagar estipêndio aos combatentes? Numa democracia o povo é chamado a pegar em
armas quando a cidade está em perigo. Heráclides, por sua vez, queixava-se de que
Dion descurava da marinha para proteger as forças de terra. Lembrava que os inimigos
de Siracusa atacavam por mar, como os atenienses de Alcebíades e os persas, visto que
a cidade ficava numa ilha. Até mesmo os cartagineses preferiam o combate naval, já que
seus protetores na África eram mais fortes neste gênero de luta. Heráclides incitava os
mercenários com a fome do ouro, acusando Dion de não permitir pilhagens nas cidades
fronteiriças. Os nobres, visando prolongar a tirania, lembravam a Dion que era mais
fácil trazer o povo obediente e ordeiro, quando um só homem governava. Os sacerdotes,
impedidos de fazer gastos excessivos com as cerimônias religiosas, explicavam que as
oferendas poderiam ser simples, mas os rituais precisavam ser dispendiosos e
complicados, para não irritar os deuses.
Dion, com seu pulso de ferro, não recuava um só passo no seu plano de governo para
encurtar a transição da tirania para a monarquia. As cidades arruinadas pelos
cartagineses nos tempos do velho Dionísio já haviam sido restabelecidas, como pedira
Platão. Nelas foram colocadas centenas de colonos, aliviando Siracusa de uma horda de
desocupados e desordeiros. Aqueles que venderam seus lotes, visando lucro ocioso, o
Conselho condenou aos remos nas galeras.

Dion concluiu que não poderia dispensar os mercenários se não expulsasse da Sicília
Apolócrates, filho de Dionísio, que continuava com as tropas aquarteladas ao norte da
ilha. Conquistado este objetivo, a Sicília estaria livre para uma nova modalidade de
governo. Esta era a verdadeira razão pela qual Dion, até aquele momento, não
dispensara os mercenários e continuava a decidir a paz e a guerra sozinho, e não por
plebiscito, como mando um governo justo.

Depois de colher informações da boca dos trânsfugas, Dion conferenciou com os


comandantes quanto ao plano que convinha adotar. Como obtivera a informação de que
as naves inimigas velejavam em águas profundas, ordenou a Heráclides que navegasse
com as trirremes ao longo da costa, a fim de manter sobre a frota de Apolócrates a
vantagem das linhas interiores. A situação de sua família, no entanto, inquietava-o.
Dion não temia ataques à sua pessoa, mas se preocupava com possíveis atentados à sua
esposa, irmã e filho. Sentiu-se aliviado quando soube, por um domador de cavalos que
vendia montarias aos potentados do sul da Itália, que todos estavam em segurança em
Locres, cidade natal da mãe de Dionísio, e não com Apolócrates, no forte de Ortígia,
como lhe haviam dito. Dionísio tinha as duas mulheres em grande apreço. A
Aristômaca, chamava de segunda mãe, e quanto a Arete, esposa de Dion, jamais a
chamou pelo nome, e sim pelo termo afetivo de “mana”. Logo que a situação política
permitisse, visto que Dion não perdera a esperança de voltar a Siracusa, ele delegaria
poderes a Demerato para negociar com Dionísio o retorno da família.

No terceiro dia do mês Gamelion, (57), Dion marchou para o norte levando consigo
cinqüenta carros foiçadores, mil ginetes comandados por seu irmão Mégacles e
quinhentos arqueiros. Depois de caminharem duas jornadas com três altas, levantou
tendas e recomendou a seus comandantes que, no caso de aprisionarem Apolócrates,
não lhe fizessem nenhum mal. Logo que as forças acamparam para passar a noite,
ouviram-se gritos das sentinelas. Das trevas emergiu um cavaleiro a galope em um
corcel, coberto de
(57) Janeiro
suor. O recém-chegado comunicou a Dion que o agitador Hipon tomara a cidade e
fizera grande matança. Heráclides não seguira por mar o exército, conformes as ordens.
Em vez disso, formara a esquadra com as proas voltadas para a cidade, como se
aguardasse o resultado da rebelião de Hipon, para então definir sua posição.

Dion ficou estarrecido. Heráclides e Hipon - representantes de partidos opostos - teriam


feito alguma aliança? Pela primeira vez, ele conheceu o ódio, sentimento que
denominava “a vala negra da alma humana”. Ordenou aos soldados que erguessem as
tendas e voltassem para Siracusa em som de guerra. Um corpo de arqueiros incendiários
tomou a dianteira com ordem de cercar a cidade, não deixar ninguém entrar ou sair, e
aguardar a ordem para o ataque.

Na jornada de retorno, Dion, em silêncio, cismava sobre o difícil momento em que se


encontrava. Que conselhos lhe daria Platão naquelas circunstâncias? Seriam os
princípios platônicos a respeito da política impossíveis de serem colocados em prática?
A política nas cidades gregas, fosse nas democracias, nas monarquias ou nas tiranias,
não passava de uma luta encarniçada de lobos e chacais. Como conter a força oculta e
irresponsável dos poderosos e moderar as perturbações e os caprichos do povo, sempre
inconstante como o vento na mudança das estações?

A razão, a grande inimiga das decisões impetuosas, voltou a dominar, pouco a pouco, a
alma de Dion. Decidiu, então, resolver as pendências com seus inimigos e adversários
por meio de delegados e negociadores, antes de chegarem às vias de fato. Atormentava-
o saber que era difícil parlamentar com homens que não faziam nenhum caso do bem
comum.

Diante de Siracusa, com as tropas em formação de batalha, Dion ficou surpreso com o
alarido da multidão no alto das muralhas. Eram gritos e insultos dirigidos a ele. Contra o
inimigo externo ele poderia lançar as tropas mercenárias, mas contra o seu povo isso era
impossível. Somente os tiranos usam tropas estrangeiras contra sua própria cidade.
Amigos de Dion vieram ao seu encontro tentando resolver as pendências. Ele soube,
pela comitiva, que entre os mortos a mando de Hipon encontrava-se Demerato, aquele
homem tão diligente em fazer amigos. Sua condenação baseou-se numa lei do ateniense
Sólon que determinava que, em caso de guerra civil, aquele que não tomasse partido,
deveria morrer. (58)

A notícia entristeceu Dion que, nos últimos anos afeiçoara-se a Demerato. Os


siracusanos não deviam se esquecer, lembrou ele, de que Demerato fora amigo de
infância do tirano Dionísio, mas não se beneficiara do poder. Equânime, lento, refletido,
Demerato sempre fora um embaixador prudente e confiável. Poderia ainda prestar
grandes serviços aos gregos da ilha.

Rodeado de cidadãos confiáveis, Dion conferenciou com os comandantes o dia todo,


buscando uma solução para o impasse criado por Hipon. Disse aos delegados que não
estava ali para anunciar perigos, mas lembrou que as cidades gregas do sul da Itália
eram aliadas tradicionais de Esparta. Do Peloponeso, os siracusanos sempre receberam
apoio militar nas guerras contra Cartago. Ele, Dion, conseguira fazer um governo
independente
abrandando o perigo cartaginês. Esparta aceitara este novo estado de coisas por saber
(58) Leis de Sólon: “A lei permite matar o cidadão neutral nas desordens civis”, ‘O
gênio do Cristianismo’, de Chateaubriand.
que Dion jamais se inclinaria a favor de Atenas. Não interessava ao povo siracusano
derramar seu sangue por Esparta ou Atenas, como acontecera no passado. Há muito, ele
e Dionísio vinham lutando por uma posição de neutralidade, que possibilitasse a paz na
ilha. O golpe de estado do ateniense Hipon vinha romper o equilíbrio político e militar
da região.

Já anoitecia quando Dion tomou a decisão que até hoje causa estranheza: a renúncia.
Seus amigos ficaram atordoados, e os adversários, perplexos. A notícia caiu como um
raio na cidade. Arautos corredores levaram a surpreendente nova às cidades da ilha. O
fantasma da guerra voltou a pairar sobre a Sicília grega, visto que os cartagineses
consideravam Dion o único grego confiável no sul da Itália.
Foi na cidade dos leontinos, a dois dias de jornada de Siracusa, onde Dion possuía uma
fazenda de criação de gado, vinhedos e oliveiras, que ele voltou a viver como cidadão
comum. Os mercenários pediram para acompanhá-lo, visto que Dion os proibira de
atacar os camponeses armados por Hipon. As cidades vizinhas pediram-lhe que
aquartelasse as tropas às margens do rio Anapos, onde havia um forte com campos de
jogos e amplas acomodações. O salário dos mercenários seria pago pelo erário comum
das cidades da região.

Sem medo nem ódio no coração, Dion, do alpendre da casa grande da fazenda, olhava
os campos verdes, os enevoados montes e cismava. Qual seria a reação de Esparta ao
golpe de estado desfechado por Hipon, um ateniense? As notícias que os fugitivos
traziam de Siracusa inspiravam-lhe cuidados. Naqueles momentos, a leitura dos livros
de Platão serviam-lhe de amparo e conforto, e ele, aos poucos, ia encontrando repouso
no tempo.

Ao amanhecer, antes do sol dissipar as névoas dos montes, os camponeses vinham, um


a um, beijar a mão do grande senhor e receber a pesada moeda de um óbolo que Dion
apanhava de um cesto que os servos colocavam ao seu lado.

Nos dias de mercado, ele recebia a visita dos ilustres cidadãos das povoações vizinhas,
dos nobres exilados de Siracusa, dos fiéis correligionários e dos servos por ele
alforriados. Admiradores e afeiçoados enviavam-lhe presentes. A todos Dion dava
conselhos de sabedoria e prudência. Àqueles que se queixavam da ingratidão do povo,
lembrava que o verdadeiro estadista é um homem apto para o sofrimento e olha seus
súditos como um educador olha seu discípulo. Cada ato de um homem de estado deve
servir de exemplo para aqueles a quem governa, como o comportamento de um pai com
relação a seus filhos.

Logo que o sol abrandava, Dion, montado num cavalo branco de longas crinas,
percorria suas extensas terras, observava as videiras e oliveiras, o lago azul dos peixes,
o gado zebu de robustas corcovas. Junto às cercas dos casebres, inclinava-se na
montaria e indagava sobre a saúde dos moradores, aconselhando poções indicadas pelos
tratados hipocráticos. À noite, lia as cartas enviadas pelos amigos e admiradores e, à luz
bruxuleante da candeia, escrevia seu livro de memórias. Para exercitar-se, atirava com o
arco e flecha e se defendia com a espada e o escudo redondo dos ataques simulados de
seus amigos. Nos dias dedicados à deusa Perséfone, protetora da ilha, moças com flores
nos cabelos, entoando canções de pastoreio, traziam-lhe cestos com douradas maçãs.
Depois, cantavam o hino à deusa, agradecendo o templo com portas chapeadas,
dedicado a ela, que Dion, como mostra de gratidão à cidade, mandara construir, e cujo
solene culto ele financiava.

Tempos depois, os carvalhos que dormiam nos campos leontinos foram sacudidos pelos
ventos que sopravam de Siracusa. Os viajantes, com semblantes carregados, apeavam-se
defronte da casa grande da fazenda, e relatavam os tormentos por que passavam os
siracusanos. Dion, como homem vigilante que era, compreendeu que a disputa pelo
poder entre homens cruéis e corruptos continuava desgraçando a cidade.

Galeras enviadas por Dionísio, comandadas por Nípsio de Nápoles, homem perverso,
travaram violentos combates contra as naves de Hipon, na entrada do porto de Siracusa.
Nípsio de Nápoles fora encarregado por Dionísio de levar mantimentos e armas para o
forte próximo ao porto, ainda em poder de seu filho Apolócrates. Ou porque atingira
seus objetivos, ou por encontrar resistência dos siracusanos, o napolitano batera em
retirada.

Orgulhosos da vitória, os siracusanos entregaram-se a festejos, cantos e vinho por vários


dias. Julgando-se donos da cidade, acabaram por perder a cidade (59)Dionísio,
informado dos festins, banquetes e relaxamento da autoridade, atacou as muralhas.
Apoderando-se delas, invadiu a cidade, dando força aos mais cruéis instintos, causando
morte e destruição. Homens eram degolados, mulheres violentadas nas ruas, crianças
atiradas das ameias. O agitador Hipon, traído pelos camponeses por ele armados, foi
feito prisioneiro. Submetido a torturas, negou-se a denunciar os grupos de artesãos que
haviam financiado sua conspiração, contra os quais Dionísio preparava terrível
vingança. O próprio Dionísio desceu ao cárcere cavado na rocha para interrogar Hipon.
O déspota encontrou um homem acorrentado em umas andas, que mais parecia uma
posta de carne e sangue, porem ainda ofegante. Debruçando-se sobre aquele corpo
transformado em carniça pelos ferros de seus algozes, gritou:
(59) Plutarco
- Diga, quem te deu armas? Os boieiros? Os oleiros? Os mineiros? Vamos, diga, e eu
colocarei tua mulher e teu filho em lugar seguro!
Aquele ser de carne dilacerada, arquejante, moveu-se, e erguendo a cabeça
ensangüentada, num último esforço, cuspiu na cara do tirano. Assim Hipon deixou o
mundo dos vivos para o eterno descanso no mundo dos mortos. Seus amigos afirmam
que ele decepou a própria língua com os dentes para não denunciar seus protetores.
Creio que isto seja lenda. Hipon morreu como um homem que não conheceu o medo
covarde. Sua esposa e seu filho foram mortos a mando de Dionísio.

Com a morte de Hipon, seus comandantes acovardaram-se e fugiram, abandonando a


população à sanha dos homens de Dionísio. Logo que raiou o dia, os soldados do
déspota, comandados pelo seu filho Apolócrates, abandonaram Siracusa. Os arqueiros
ainda atiraram flechas incendiárias, por cima das muralhas, causando grandes estragos à
cidade. Só então os siracusanos compreenderam o quanto deviam ao governo de Dion.
Aquela autoridade tão mal compreendida fora mais forte do que as muralhas. As leis,
como as fortalezas, são inúteis quando não há um governo forte que as defenda. Os
siracusanos viviam, agora, cobertos de aflições, temendo um novo ataque das tropas de
Dionísio e de seu filho.

Foi então que reapareceu o enigmático Heráclides. Aquele chefe militar, tão arrojado
nas batalhas como na deserção, alegou que vinha em socorro da cidade. Os magistrado o
submeteram a severo interrogatório. Acusaram-no de trair a população. Por que ele não
seguira as tropas de Dion, quando estas foram dar combate a Apolócrates, antes que o
filho de Dionísio atacasse Siracusa? Se não pudera seguir as ordens de Dion, por que
não retornara a Siracusa para lutar contra o golpe de estado desfechado por Hipon?

Frio, arrogante, com palavras bem pensadas, Heráclides informou que não seguira as
tropas de Dion por causa do vendaval e do mar grosso. Se o fizesse, teria destruído a
esquadra. Graças à sua prudência, preservara as trirremes e agora as trazia de volta para
servir os siracusanos. E não entrara no porto para lutar contra Hipon porque seria uma
temeridade, e não um ato de coragem. Merece punição o comandante militar que luta
por uma cidade além do razoável. Tratava-se de uma guerra civil e não de guerra contra
uma cidade estrangeira ou bárbara. As decisões tinham que ser bem pensadas no caso.
Lançou ainda um sutil veneno como os arqueiro fazem com as setas peçonhentas: Dion
era um sábio e renunciara ao combate contra seu povo, como manda o bom senso. Não
tivera alternativa diante da ingratidão dos siracusanos. Assim falando, Heráclides fazia
supor que a mesma razão determinara a sua atitude. O desertor lançou mão ainda de
uma jogada arriscada: propôs ao Conselho que enviasse uma delegação dos melhores
cidadãos de Siracusa com o objetivo de pedir a Dion que voltasse ao governo.
Submetida à votação, a proposta de Heráclides foi aprovada por aclamação, gritos e
aplausos.

Os inimigos de Dion tentaram impedir o envio da embaixada que, entretanto, seguiu


logo ao amanhecer. Este recebeu os delegados siracusanos no teatro dos leontinos, um
amplo semicírculo em degraus, na convergência de duas colinas suaves

Importantes cidadãos siracusanos e os comandantes espartanos Arcônides, Telésides e


Helânico, que dispunham de poderosas forças para a defesa da hegemonia de Esparta
nas cidades gregas do sul da Itália, compareceram ao lado de seus capitães. Depois que
os delegados disseram a que vinham, assim falou Dion:
- Espartanos e aliados: estamos aqui reunidos para deliberar se devemos ou não salvar
Siracusa. A mim não cabe decidir contra a minha cidade. Se não puder salvá-la,
morrerei por ela. Espero, portanto, a vossa decisão. Se quiserdes, todavia, salvar gente
do povo, ingênua e leviana, iludida por políticos sem escrúpulos, advirto-os de que o
tempo escasseia. Mas se aborrecidos com os siracusanos, vós os abandonais, então
apaguemos da nossa memória as glórias de nossos antepassados e a grandeza de tantos
feitos que eles e nós, juntos, realizamos. Eu mesmo corri em vosso auxílio nos tempos
do primeiro Dionísio, quando vossas cidades corriam perigo, como acontece agora com
Siracusa. (60)

Dion recordou as guerras sicilianas contra os persas e cartagineses e a derrota que os


siracusanos impuseram à esquadra do ateniense Alcebíades. Ressaltou a paz
conquistada na ilha por meio de alianças e tratados que ele, em fatigantes jornadas,
consertara com os bárbaros, impondo o rio Halicos como limite entre os dois povos.

A proposta de Dion foi aceita por aclamação. Os chefes espartanos e os comandantes


das cidades vizinhas colocaram-se à sua disposição. Todos bebiam e se
confraternizavam quando um cavaleiro chegou em extenuado galope, saltou do cavalo
lustroso de suor e, dirigindo-se de imediato a Dion, informou que Nípsio de Nápoles
atacara Siracusa por mar e por terra. Heráclides e seu tio Teodoto combatiam no mar
contra o napolitano. O primeiro, agindo com audácia e rapidez, atraíra parte da frota
inimiga para os estreitos, destruindo várias trirremes com os esporões e abordagens
arriscadas. Nípsio de Nápoles tivera que reter várias naves fora da enseada por não
conhecer os arrecifes e baixios. Vendo sua frota em perigo, içou velas e se retirou. Mas
a luta em terra continuava, desfavorável aos siracusanos, com o exército do napolitano
assolando as terras e ateando incêndios. Dion estranhou o reaparecimento de Heráclides
naquelas circunstâncias, visto que pretendia submetê-lo a julgamento por deserção e
traição.
As tropas de Dion colocaram-se sob a tutela das divindades e partiram para Siracusa em
marcha acelerada. Seus aliados ficaram na cidade dos leontinos conferenciando acerca
(60) Plutarco
do plano a adotar caso a guerra se prolongasse. Dion soube, nas estradas, pelos fugitivos
da cidade que Nípsio de Nápoles causava grandes estragos às casas e à população. Seus
homens corriam pelas ruas com a espada numa mão e a tocha acesa na outra, matando e
causando incêndios. Os arqueiros atiravam flechas incendiárias nos depósitos de
alimentos. Os moradores que fugiam do fogo eram chacinados nas ruas, não se
poupando mulheres e crianças.

Quando Dion chegou defronte da grande porta, viu o povo do alto das muralhas
implorando por socorro e salvação. O fogo e a fumaça envolviam grande parte da
cidade. Com o objetivo de evitar maiores sofrimentos à população, Dion enviou
Helânico para intimar Nípsio de Nápoles a depor as armas. O napolitano, desejoso de
ganhar tempo, disse ao emissário de Dion que um comandante de uma praça de guerra
não deve sair para parlamentar, mesmo quando esta estiver sitiada. E, inclinando-se na
montaria respondeu de maneira ignóbil como Amásis, rei dos egípcios, a Artabemis,
resposta essa que deixo de mencionar por questão de decoro. (61) O corajoso Helânico
então gritou:
- Pois então prepare teus cornos, Nípsio, pois terás um duro adversário!
Puxando as rédeas do corcel voltou a galope para junto de Dion. A batalha que se travou
foi difícil e sangrenta, o que levou este a dizer que sempre lutara pela vitória, mas que
naquele dia, lutara apenas para não morrer. A chuva de setas atiradas contra ele o
obrigara a apoiar o escudo no joelho, tornando-o mais firme, para avançar agachado a
fim de dissimular sua alta estatura.
Guiado por um traidor siracusano, Nípsio de Nápoles e seus comandantes fugiram por
apertadíssimos subterrâneos e desconhecidas trilhas, deixando em ruínas uma cidade
outrora bela e opulenta.
(61) História, Heródoto, Livro III, CLXII

Mais do que as armas, foram os sofrimentos dos siracusanos que abriram as portas da
cidade. (62) A multidão, em prantos, veio receber Dion com lamentos, cantos e flores,
chamando-o de salvador da cidade e enviado dos deuses. Os amigos de Dion o
advertiam, como faz o coro nas tragédias gregas, que aquela multidão, um ano antes, o
apupava e insultava do alto das muralhas, querendo com este aviso pedir que ele não
afrouxasse as rédeas do poder. Dion respondia que o povo sofrido é inconstante como as
crianças, e que um chefe de estado preparado pelos estudos, deve orientá-lo e educá-lo
com paciência e severidade, afastando da cidade os homens perversos, como fazem os
pais quando repelem as companhias nocivas aos filhos.

Por sete longos dias foram sepultados os mortos, curados os feridos, julgados e
executados os capitães napolitanos que ordenaram a matança da população civil. Aos
combatentes abandonados por Nípsio de Nápoles coube o trabalho de reconstruir as
casas e reparar as muralhas. A maioria destes prisioneiros era constituída de latinos
fugitivos do Lácio, região ao norte de Nápoles, dominada por uma vasta e soberba
cidade chamada Roma.

Neste entrementes, aportou em Siracusa uma enorme galera com três carreiras de remos
e proa curva como o pescoço de um cisne. Chegava Gisilo de Esparta. A frota que ele
comandava - dez galeras rápidas e três naus para transporte - lançou âncoras fora da
enseada.
Gisilo era homem poderoso que capitaneava espartanos e recrutava exércitos em terras
estrangeiras para defender a hegemonia de Esparta no sul da Itália. Viera de Tarento,
onde fizera uma estada de misteriosa duração na corte do tirano Arquitas. Hoje
(62) Plutarco
sabemos que Gisilo fora enviado por Esparta para ocupar o governo de Siracusa, em
virtude da renúncia de Dion, antes que algum capitão ateniense o fizesse. Tendo o
siracusano recuperado o poder - e Esparta respeitava Dion - coube a Gisilo reconciliar
este com Heráclides e conseguir a paz entre Siracusa e Apolócrates, o filho de Dionísio
que ainda ocupava parte da Sicília.

Eu conheci Gisilo de Esparta quando estive a serviço de Arquitas de Tarento - um dos


poucos governantes interessado na saúde do povo - a fim de fazer palestras para os
médicos tarentinos sobre “Ares e águas e a influência do ambiente sobre as
enfermidades locais” (63), em virtude da febre dos rios que grassava naquela região.

Gisilo era uma figura típica da decadência dos costumes em Esparta, outrora uma cidade
de combatentes de rígida educação, mas de cultura sumária. Da Pérsia, onde
permanecera alguns anos a serviço de sua cidade, ele trouxera o gosto bizarro pelas
túnicas coloridas e jóias tilintantes. Levava vida faustosa, degradando-se nos excessos
da mesa e da cama. Entregava-se com fúria aos pratos suculentos, às mulheres e aos
jovens comprados com dinheiro farto nos mercados da Síria. Era homem de estatura
elevada, ventre bojudo e voz cava, que lembrava uma trovoada distante. Sua delicadeza
afetada dissimulava um egoísmo feroz. Àquele que lhe era útil, tratava de forma
bajulatória, enquanto que para os outros, transformava-se no homem-fera. Seu
argumento preferido era: “assim querem os deuses”.
Os nobres de Siracusa, entretanto, consideravam Gisilo de Esparta um potentado
prestativo e, alvoroçados, cercavam-no de amabilidades e conversas ao pé do ouvido.
(63) “ Mundo Antigo”, de Aldo Mieli

Dion e Gisilo conversavam longamente a sós. Em seguida, Heráclides e seu tio


Teodoto, com passos e atitudes de suplicantes, apresentaram-se à clemência de Dion,
que para espanto de todos, restituiu a Heráclides o comando da armada. Este, por sua
vez, pediu ao povo que nomeasse Dion generalíssimo de terra e mar, posição que este já
ocupava pelas armas, mas que, naquele dia, foi referendado por plebiscito.

Novamente os amigos de Dion voltaram a adverti-lo - como insiste o coro nas tragédias
gregas - dos riscos a que se expunha conservando em tão alto posto um semeador de
discórdias e sedições como Heráclides. Dion continuava dizendo que cursara por longo
tempo a Academia de Platão, estudando como dominar o ódio e os ressentimentos, e
que não iria agora tornar-se vingativo porque os outros eram desleais.
Desta vez confesso que não acreditei em suas palavras e faço aqui um reparo: o Dion
platônico dera lugar ao Dion siracusano. Aquele modelo moral não poderia ser
compreendido pelos potentados vizinhos, audaciosos e sem escrúpulos. O Bem e a
Justiça continuariam a ser o objetivo de Dion, mas os meios empregados seriam
determinados apenas pela experiência e intuição. Os fins voltariam a justificar os meios.
Agora, a hipocrisia e o punhal, se necessário, substituiriam a persuasão e os tratados.

No mês seguinte, Apolócrates, filho de Dionísio, depois de longas conversações com


Gisilo de Esparta, abandonou a ilha de Jacinto e fez vela para o sul da Itália com suas
tropas. O tratado que devolveu a paz à ilha fora redigido por Gisilo, homem conhecedor
de palavras enganosas e maquinador da mais alta reputação. Foi então que a esposa, o
filho e a irmã de Dion, que estavam no sul da Itália, juntaram-se a ele. Sobre isso
diremos algo.

Quando seis anos antes Dion partira para Corinto, sua família mudara-se para o palácio
de Dionísio, que a ela ficou ligado pela lei da hospitalidade. Lá ficara, de livre e
espontânea vontade. Sofrosine, esposa de Dionísio, era irmã de Arete, esposa de Dion.
Ao lado da irmã, Arete sentia-se em casa. Dionísio, por sua vez, era franco e generoso
para hospedar as pessoas e, fora da política, era espirituoso e gracejador. A educação do
filho de Dion, entretanto, preocupava a mãe e a avó do rapaz. O déspota,
intencionalmente, descurava do disciplinamento de Hiparinos, com o objetivo de
favorecer seu filho Apolócrates na sucessão. O filho de Dion tornara-se moço luxento e
indisciplinado, chegado aos vinhos, às cortesãs e aos dados.

Com o tratado de paz consertado com o tirano deposto, as mulheres da família de Dion
voltaram para Siracusa. Aristômaca veio antes falar com o irmão. Os dois conversaram
longamente a sós. A matriarca pediu que ele esquecesse os desentendimentos conjugais
e recebesse Arete de volta.

- Minha filha - queixou-se Aristômaca - foi vítima da cruel política de Siracusa. Casou-
se com outro homem contra a sua vontade. Peço a ti, meu irmão, que a recebas de volta
como tio e marido que és de Arete. Tu pertences à tua família, e tua família te pertence.
- Como posso pertencer à minha família, Aristômaca, se eu mal me pertenço? redargüiu
Dion.
Os dois irmãos abraçaram-se, chorando. No dia seguinte, Dion levou Arete e Hiparinos
para sua casa. Se meu escrito terminasse aqui, teríamos um final feliz,. mas a roda do
destino continua em movimento. Nós, humanos, estamos amarrados a ela como
Prometeu ao monte Cáucaso. Ela tanto pode nos levantar bem alto, como nos mergulhar
nas águas turbulentas que a movem. Na Sicília, a roda do destino é movida pela funesta
Caríbidis, como a chamava Platão. Como e por que esta infame ladra dos bois de
Hércules decidiu intervir no destino de Dion e da bela Arte é o que te vou narrar.

Ao fim de um ano, com tantos acontecimentos suscitados pelo destino, viu-se Dion
diante de grandes dificuldades. O tesouro estava vazio, o povo reclamava as moradias e
as terras que ele prometera, além daquelas cedidas aos colonos nas cidades
reconstruídas. Começou a faltar dinheiro. O próprio Dion levava vida modesta
comparada com as de outros potentados das cidades vizinhas. Vendera seus escravos
rústicos e bárbaros, (64) conservando apenas os servos domésticos, visto que arrendara
suas terras. As contas públicas o preocupavam. Sua saúde já não era a mesma,
quebrantada que estava pelos longos trabalhos enfrentados. O destino, não satisfeito em
colocar em seu caminho tantos males, desfechou-lhe um doloroso golpe. Hiparinos, seu
filho, ainda adolescente, não suportando a mudança ocorrida em sua vida, visto que o
pai procurava educá-lo, suicidou-se, atirando-se de cabeça do alto do mirante que
sobrepassa o telhado da casa de sua família. Dion havia contratado um preceptor,
homem de paciência prolongada, encarregado de desabituá-lo dos vícios adquiridos no
palácio de Dionísio. Diante dessa tragédia, a mãe, a infeliz Arete, transformou-se numa
sombra vagando pela casa, silenciosa. Apenas Aristômaca ouvia, de quando em vez, a
voz da filha.

Com o andar do tempo, Heráclides, que era protegido pela aristocracia, passou a agir
com mais arrogância, tomando decisões pessoais e buscando oportunidade, outra vez, de
trair Dion. Meditando sobre a ruína do rival, aliou-se a Faraces de Esparta, um dos
capitães que naquela altura rondavam Siracusa, praticando qualquer crime, conforme o
(64) Escravos rústicos eram os empregados nas plantações, e os bárbaros, os
conquistados nas guerras contra povos não gregos.
lucro. Eram muitas as acusações que Heráclides fazia contra Dion, a saber: ele destruíra
a tirania, derramando sangue dos siracusanos e não se retirara dela; não exumara os
restos mortais do primeiro Dionísio para atirá-los ao mar, conforme mandavam os
costumes, como prova de repúdios a um regime odioso; permitiu a fuga do segundo
Dionísio para não submetê-lo a julgamento pelos crimes que o tirano cometera; assim
agira, pelo muito que devia à tirania, e suportara os dois déspotas, pai e filho, com os
olhos fixos no bem-estar dos seus; Dion se voltara contra a tirania depois que fora
condenado ao exílio e perdera suas rendas; e por fim, para agradar aos potentados do sul
da Itália, substituíra uma tirania cruel por uma tirania mais branda. Até aqui, Heráclides.

Eu soube por Euspesipo, sobrinho de Platão, que estas acusações afligiam Dion.
Euspesipo era da opinião de que este procurava implantar um governo misto de
monarquia e democracia. A aristocracia teria os postos mais importantes por se tratar de
cidadãos aperfeiçoados pelos estudos nobres, na condição de que as massas e os pobres
desfrutassem dos benefícios oriundos das propriedades e dos bens, isto é, que
recebessem salários justos e tivessem a velhice amparada. Como Platão, Dion esperava
uma conversão moral dos melhores cidadãos no uso moderado da riqueza e do poder. O
equilíbrio assim realizado - autoridade com justiça - traria paz à cidade.
Dion era, também, da opinião de que a ação irresponsável dos demagogos e políticos
inescrupulosos deveria ser contida pela força, a fim de não transformar a Assembléia do
Povo num mercado da política. Esta era a razão pela qual conservava para si a parcela
maior do poder.
A respeito da exumação dos restos mortais do primeiro Dionísio, para que fossem
atirados ao mar, Dion lembrava que o tirano fora o grande herói das guerras
cartaginesas e persas nos tempos em que ocupara, ainda jovem, o cargo de estratego.
(65)
(65) generalíssimo
Não fosse a destemida ação do primeiro Dionísio, não existiria a Sicília grega e os
helenos da ilha teriam sido mortos ou vendidos como escravos. O repúdio à tirania
deveria ser expressado pelo aperfeiçoamento das instituições políticas com leis boas e
justas que o próprio monarca seria obrigado a seguir. Dion lamentava que as reformas,
por meio de debates, fossem sempre lentas e dispendiosas. Os nobres procuravam
obstruí-las com protelações, e o povo, instigado pelos demagogos, assustava os
aristocratas com tumultos e depredações. Para a implantação das novas leis, era
necessário que ele, Dion, conservasse durante algum tempo o poder soberano.

Heráclides e os nobres espalhavam boatos sobre a sucessão. Diziam que Dion nomearia
Apolócrates seu sucessor, visto que seu filho havia morrido. Fiados na possibilidade de
êxito, os inimigos de Dion tornavam-se, dia a dia, mais audaciosos. Este decidiu então
recorrer às armas para dominar seus opositores. Primeiro atacou Faraces, que, a se dar
crédito aos informantes, armava emboscadas contra ele, em secreto conluio com
Heráclides. Os escutas informaram também que este atacaria Siracusa com a armada,
logo que Dion saísse a campo para combater Faraces.

E assim aconteceu. Heráclides, acantonado em Mesena, partiu com a armada no dia em


que Dion deixou a cidade. Seus amigos, infiltrados na esquadra assassinaram
Heráclides. Vendo Dion que este era um estorvo para a ordem do Estado e que jamais
lhe daria trégua por ser leviano e propenso a sedições, concordara com o plano urdido
por seus aliados dentro da frota. (66)

Ao corpo de Heráclides, Dion proporcionou, à custa do erário, magnífico enterro


(66) Cornélio Nepote
acompanhado pelo exército. Sabendo que o povo e os nobres estavam na praça
comentando os acontecimentos, desceu ao local e assumiu em público a
responsabilidade pela morte do adversário. Disse que renunciara ao poder a fim de
evitar uma guerra civil e se exilaria. O povo siracusano foi buscá-lo. Para ele, o apelo
da população equivaleria a um plebiscito.
- Cheguei para proteger a cidade - disse - Tentarei ou morrerei.
Olhando duramente os nobres que ali se encontravam, continuou com voz firme:
- Àqueles que tenham pendências ou queixas contra mim, aqui estou.
Ninguém falou. Dion então se retirou da praça. Na intimidade, entretanto, mostrava-se
amargurado, confessando que aquele assassinato manchara seu nome para a posteridade.
Tinha esperanças de que os gregos compreendessem o dilema em que ele se encontrava:
matar ou morrer, visto que as dissensões seriam contínuas, se ele e Heráclides
governassem juntos. E evocava com amargura que já o havia perdoado duas vezes.
A partir daquele momento, a história de Dion transforma-se em um declínio quase
ininterrupto. Platão, alarmado, escreve-lhe seguidas cartas. “Boa sorte. Penso que a
minha boa vontade não deixou de ser evidente em toda esta questão, assim como meu
zelo em conduzi-lo até o fim, sem outro motivo mais premente do que meu ardor por
tudo que é justo.”(67)
Naquela altura, Platão tinha conhecimento dos desentendimentos entre seu discípulo e
Heráclides, mas ignorava o assassinato. O filósofo refere-se à ajuda moral que nunca
deixara de prestar a Dion, visto que o nome de Platão era famoso em toda a Grécia. Seu
testemunho sobre os acontecimentos em Siracusa pesava na opinião dos gregos.
(67) Carta de Platão a Dion
“No futuro a luta será dura - acrescentava - e a superioridade da coragem, da agilidade,
da força corporal pode ser o apanágio de muita gente, mas a da verdade, a da justiça, da
generosidade e da distinção inseparável de todas essas virtudes, deve confessar-se que
tem a sorte de pertencer àqueles que fazem profissão de honrá-las. O que eu digo é
evidente, mas não é menos necessário lembrar a nós mesmos que - aqueles que tu sabes
(68)- devem distinguir-se ainda mais dos outros homens do que das crianças. (69)
Quis Platão lembrar que aqueles que devem se diferenciar mais dos outros homens, do
que um homem se diferencia de uma criança, são sem dúvida os que estudaram na
Academia e que sob a sua direção se iniciaram na virtude e na ciência.

Lembra ainda Platão, nas cartas, que muitas cidadãos têm necessidade de vaguear de
país em país, para serem conhecidos, mas que Dion se encontrava em tal situação que
todas as cidades gregas, sem cair no exagero, estavam com os olhos postos num único
lugar, e muito especialmente, nele, Dion. E esclarece:
“Quase todos aqui afirmam que, morto Dionísio, é preciso esperar as coisas ruírem
devido à tua ambição, à de Heráclides, de Teodoto e de outros notáveis. O ideal seria
que nenhum de vós fosse atacado por tal mal, mas se tem que acontecer, compete a ti
transformar-te em médico e tudo mudará para melhor. Acharás talvez ridículo que eu te
diga tudo isso: tu já o sabes perfeitamente. Escreve o que tens feito ou o que fazes, pois
ouvimos muitos murmúrios, mas não sabemos de nada. Acabam de chegar cartas de
Teodoto e de Heráclides à Lacedemônia e a Engina, mas mais uma vez circula toda
(68) Aqueles que estudaram na Academia
(69) Carta de Platão a Dion
espécie de rumores sobre os que se passa entre vós e ignoramos tudo. Toma também
cuidado com o seguinte: tu te mostras a alguns mais rude do que conviria. Não esqueças
de que é contentando as pessoas que se pode agir; a arrogância, ao contrário, mora ao
lado da solidão. Boa sorte. (70) Até aqui Platão.

Tomei conhecimento destas cartas muitos anos depois por intermédio de Euspesipo,
sobrinho de Platão. Pois bem, estavam as coisas neste pé, quando aquele ateniense de
nome Calipo, que vinha prestando serviços a Dion, por ser capaz de pensar claro e
depressa, embora fosse homem de sabedoria moderada, assumiu o cargo que eu
exercera nos tempos do velho Dionísio: o de encarregado das contas públicas e dos
arquivos.

A dedicação de Calipo ao trabalho chamou logo a atenção de Dion que, naquela altura,
perdera nas guerras seus melhores auxiliares. O ateniense madrugava no trabalho e
deixava o palácio noite alta. Nos dias de mercado ou naqueles em que se ouviam
cânticos nos templos, dias de descanso, Calipo subia a ladeira que leva ao palácio,
seguido de dois servos escribas, portando rolos de pergaminho com os trabalhos que
terminara em casa.
Calipo era um homem alto e seco, de olhar duro como o das aves de rapina. Usava
barba cuidadosamente aparada, parecendo pintada com pincel. Caminhava com passos
largos e deslizantes. Quando Euspesipo, em Atenas, perguntou a Platão se o conhecia,
o filósofo respondeu:
- Conheço-o. Por isso não quero conhecê-lo.
Calipo foi pouco a pouco conquistando a confiança de Dion. Começou por alertar seu
chefe para as dissensões surgidas em seu próprio campo e do perigo em que se
encontrava por causa do descontentamento dos mercenários, cujas gratificações haviam
sido cortadas como medida de economia. Pedia que confiasse a ele a missão de fingir-se
(70) Carta de Platão a Dion
de dissidente de Dion, com o objetivo de identificar conjurados para depor o governo.
Os conspiradores só falariam de seus planos àqueles que fizessem renhida e aberta
oposição ao regime.
Aprovado este projeto, Calipo passou a denunciar boatos e rumores levantado contra
Dion, adquirindo assim autoridade e poder na cidade. Acobertado pelo acordo secreto
que fizera, encorajava às vezes, às ocultas, os inimigos do governo.

As mulheres da família de Dion alimentavam suspeitas de Calipo. Aristômaca alertava o


irmão sobre a personalidade dúbia do ateniense. Este a tranqüilizava, julgando que
Calipo não fazia nada mais do que o que haviam combinado.
- Não gosto de homem que anda sempre de olho nas coisas, como os invejosos e os
ladrões - costumava dizer Aristômaca.
Certo dia, a irmã de Dion pediu a Euspesipo que, sob qualquer pretexto, marcasse
encontro com Calipo diante do templo de Perséfone. O sobrinho de Platão, que conhecia
a ordem cotidiana na vida de Calipo, esperou-o defronte do templo na hora em que ele
costumava deixar o palácio.

Já sobre a cidade desdobrava-se a noite, quando a figura alongado do ateniense, seguida


do servo portando a tocha, apareceu no alto da colina. Passadas as saudações,
Euspesipo, esticando a conversa, afastou-o alguns passos do servo, como se quisesse
tratar de assunto confidencial. A lua derramava sua luz sobre o alvo pórtico do templo.
Neste momento, Aristômaca e Arete emergiram das sombras oblíquas da colunata. As
duas mulheres cumprimentaram o ateniense e, falando com humildade, disseram que
haviam depositado no altar oferendas à deusa Perséfone, implorando, com rezas e
incensos, que ela cobrisse Dion com a sua proteção. E pediram a Calipo que entrasse
com elas no templo para, juntos, orarem pela proteção à cidade.
Calipo, por um momento, pareceu indeciso. Mas querendo mostrar o respeito que tinha
pela esposa e irmã de seu chefe, decidiu acompanhá-las.

Um braço de ferro preso na parede segurava a lamparina cuja chama oscilava. Na semi-
obscuridade, eram como três sombras que deslizavam no lajedo da câmera interna do
templo.

Aristômaca, com palavras escolhida, falou dos boatos que circulavam sobre a lealdade
do ateniense a Dion. Pediu que ele jurasse à deusa que não estava envolvido na
conspiração contra o governo.
Fez-se um mortal silêncio. Com voz fraca, Calipo chamou o servo que ficara com
Euspesipo na câmera externa e entregou-lhe os rolos de pergaminho que trazia. À luz da
candeia, seu rosto mostrava uma cor terrosa. As vozes dos três ressoava como se
falassem dentro de uma caverna de pedra.

Aristômaca, diante do altar da deusa, ditou o juramento sagrado que Calipo, com voz
estranha e trêmula, repetia palavra por palavra, prometendo lealdade eterna a Dion e
afirmando que lutaria pelas leis formuladas pelo governo como se lutasse pelas
muralhas de sua cidade quando atacadas pelos bárbaros.

Terminado o juramento, Aristômaca e Arete beijaram duas vezes a face do perjuro e se


retiraram do templo. O manto escuro da noite cobria a cidade. Calipo despediu-se de
Euspesipo e desceu a ladeira com passos lentos e largos, seguido do escravo portando a
tocha. Sua sombra, longa e curvada, rastejava a seu lado no caminho.

O juramento deixou Calipo dominado pelo mais abjeto tormento. Aquela mulher fora
enviada pelo irmão. Até que ponto Dion e seus amigos estavam a par da verdadeira
conjura e não daquela, falsa, que ele alardeava para cumprir o compromisso que
assumira? O tempo de espera se esgotava. Há muito deveria ter revelado os nomes dos
verdadeiros conspiradores. Naquela altura, Dion já deveria ter concluído que ele,
Calipo, urdira uma farsa e, por isso, mandara a irmã para provocá-lo.

Calipo não dormiu naquela noite dominado pela angústia. A conjura devia ser executada
com a maior brevidade possível. Assim que raiou o dia, os conspiradores reuniram-se a
bordo da trirreme de Filostrato, irmão de Calipo. Licon Siracusano propôs que o golpe
de estado, com o assassinato de Dion, fosse desfechado imediatamente. Os cidadãos da
ilha de Jacinto, aliados de Dionísio, concordaram. Calipo sabia que se recuasse seria
assassinado pelos conjurados. Se fracassasse, pelos amigos de Dion.

O mar agitado parecia desconjuntar a embarcação que balouçava e rangia. Licon


Siracusano, um gigante ruivo e barbudo, vendo o silêncio prolongar-se mais do que
permitiam as circunstâncias, levantou-se bruscamente e, sacando o punhal do cinto de
couro, exclamou com voz áspera:
- O tempo escasseia. Esse punhal será cravado hoje na garganta de Dion ou no peito
daquele que recuar!
E a barba avermelhada tremia-lhe no queixo. Calipo, dissimulando sua indecisão,
ordenou ao irmão que, ao cair da noite, manobrasse a nave dentro do porto, como se
estivesse exercitando os remadores. A operação, na realidade, visava manter a
embarcação em estado de prontidão para dar fuga aos conspiradores caso a sorte fosse
adversa. (71) e ordenou:
- Todos na fonte próxima à casa de Dion, ao nascer da lua!
Como sombras, o grupo se desfez, misturando-se aos marinheiros e pescadores. A sorte
estava lançada. A roda do tempo girava, conforme a vontade dos deuses.

Como se a natureza pressagiasse funestos acontecimentos, a lua naquela noite nasceu


sangrenta. Vultos e sombras começaram a se movimentar na fonte de pedra, onde uma
cabeça de leão jorrava água pela goela. Neste local, além das moradias dos cidadãos
ricos, havia outras mais modestas. No início da ladeira que leva ao templo e ao fortim,
Dion construíra sua casa, um vasto edifício com suntuosas salas de recepção, dezenas de
quartos e vários alojamentos para os escravos, vigias e seus familiares. As portas do
casarão estavam abertas para os visitantes e convidados, visto que Dion possuía
temperamento acolhedor. Com exceção daqueles que privavam de sua intimidade, todos
eram revistados pela guarda. Entre os conjurados, quatro rapazes da ilha de Jacinto,
fortes e audaciosos, foram escolhidos para entrar primeiro e sem armas, sob pretexto de
visitar Dion. Calipo já se encontrava no gabinete de trabalho no sobrado com seu
senhor. Outros conspiradores cercaram a casa, como se ali estivessem esperando
amigos.

Naquele momento, Dion, reclinado em um coxim, lia documentos que Calipo lhe
entregara. Depois das saudações e amabilidades, os rapazes jacintos arrojaram-se sobre
ele. Apanhado de surpresa, Dion lutava aos berros, proferindo insultos. Calipo correu à
janela e gritou por Licon Siracusano. O gigante ruivo, da rua, atirou-lhe a espada que
(71) Cornélio Nepote

brilhou no ar como um relâmpago. Os gritos alarmaram toda a casa, que foi invadida
pelos conjurados que estavam do lado de fora. Os vigias foram assassinados sem que
pudessem socorrer seu senhor. As mulheres, apavoradas, correram para o jardim
murado nos fundos da habitação e se esconderam nos quartos dos escravos. Dion lutava
com fúria contra seus agressores. Com a espada entregue por Calipo, os rapazes de
Jacinto degolaram Dion. (72)

A confusão e o pavor dominaram a casa e as moradias vizinhas. A notícia do bárbaro


assassinato propalou-se com rapidez. Os partidos desavindos trucidavam-se nas ruas.
Uma multidão invadiu a casa de Dion. Culpados e inocentes foram mortos ao acaso.

A emoção da tragédia dominou o povo que, pouco antes acusava Dion de restabelecer a
tirania. Agora, nas ruas, o exaltavam-no aos gritos, chamando-o de libertador da pátria
e amigo do povo. Os mercenários que haviam recebido de Calipo vinte talentos pelo
apoio militar àquele crime horrendo, restabeleceram a ordem pelas armas.

Calipo permitiu que fosse construído um túmulo suntuoso, fora das muralhas, para
perpetuar a memória de Dion de Siracusa. Como aconteceu com o velho Dionísio, Dion
também foi logo esquecido. Ele morrera com cerca de cinqüenta e cinco anos, depois de
quatro de governo, quando voltou da Sicília para combater o segundo Dionísio. (73).
Aristômaca e sua filha Arete, que estava grávida, foram encarceradas. Na prisão, Arete
deu à luz a um menino que tomou o nome do pai. Icete de Siracusa, que fora amigo de
Dion, protegeu as duas mulheres e as trouxe para sua casa, juntamente com o recém-
(72) Plutarco
(73) Cornélio Nepote
nascido, responsabilizando-se pela custódia e segurança da família. Por algum tempo,
tratou-as com dignidade e decoro, mas a ambição de Aristômaca, que possuía natural
aptidão para a política, foi fatal para seu protetor. A matriarca, logo se viu presa num
jogo de estranhas alianças. Grupos políticos fechados começaram a realizar, às ocultas,
uma campanha com o objetivo de nomear o filho de Dion, que tinha o nome do pai,
príncipe herdeiro do trono de Siracusa, dentro de uma nova ordem de coisas, tendo
Aristômaca como regente protetora, até que o príncipe atingisse a maioridade.

Estes fatos colocaram Icete de Siracusa numa posição suspeita ao governo de Calipo. O
amigo de Dion passou a viver dias de desordenado mau humor, observando pela fresta
da parede do seu quarto sombras e vultos dirigirem-se à noite à ala da casa onde viviam
as duas mulheres, lá se demorando num ambiente de moderada e secreta conversação.
Outros vultos silenciosos na noite, reuniam-se lá embaixo, na fonte do leão de pedra que
jorrava água pela goela, e pareciam observar a casa de Icete. Ele já não tinha mais
dúvidas. Sua residência estava sendo vigiada pelos agentes do governo.
O medo de tal forma desviou este homem da decência e da honra que o levou a praticar
o mais abominável de todos os crimes, não somente contra a família do seu falecido
amigo, como também contra a sagrada lei da hospitalidade que, desde os tempos mais
antigos, obriga o dono da casa a proteger seus hóspedes com a própria vida.
Icete de Siracusa contratou uma embarcação para levar as duas mulheres e o menino ao
Peloponeso, sob pretexto de que assim agia para protegê-las e que, passada a tormenta
política, elas voltariam. Ao piloto da nave, mediante infame paga, deu a ordem, como se
agisse em nome do governo, de matá-las na viagem e atirar os corpos ao mar, e o do
filho com elas. (74)
(74) Plutarco.
Creio ser oportuno lembrar a observação que fiz no início deste escrito: “Na política, os
bons são virtuosos e os maus são cruéis, como se o mesmo terreno produzisse o
saboroso mel e a mortífera cicuta. “ (75) Nas minhas viagens por cidades gregas e
bárbaras, testemunhei que na prática da política os povos são iguais, embora se
diferenciem pelo idioma e pelos costumes. E continuarão a ser sempre assim. Isso é
tudo. Nada mais tenho a narrar.
(75) Plutarco

FIM

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