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O amor na teoria de Jacques Lacan

O gozo pleno, oriundo da mãe, é interditado pelo pai. A partir daí, o homem vive uma busca
constante por sanar sua incompletude. Cada mulher é uma tentativa, sempre fracassada, de
saciar seu desejo primordial.

Walter Cezar Addeo

Tão célebre quanto o desabafo de Freud quando perguntou exasperado - "afinal, o que querem
as mulheres?" (e ele realmente não sabia) -, foram duas frases de Jacques Lacan ao enunciar
que "a relação sexual não existe" e, finalmente, que "a mulher não existe". Dois paradoxos,
aparentemente, uma vez que a humanidade se mantém por intermédio do ato sexual e as
mulheres representam metade da espécie humana.

Para esclarecer essa questão, teremos de refazer alguns percursos da teoria lacaniana e colocar
alguns personagens ficcionais em seu divã a título de ilustração. Em seu seminário intitulado A
transferência, Jacques Lacan (1901-1981) fará uma belíssima exegese do texto conhecido como
O banquete, em que Platão nos apresenta Sócrates falando sobre o amor, sobre o desejo e
onde encontramos a gênese de um dos conceitos lacanianos fundamentais para sua teoria - "o
objeto a" - este estranho dispositivo que arrastará o desejo humano para uma deriva sem fim,
mesmo tentando ancorá-lo em soluções parciais.

Do que trata esse diálogo platônico? Primeiramente, ele nos é contado em terceira mão. Platão
não estava presente quando os fatos aconteceram. Ele ouve o relato da boca de Apolodoro
que, por sua vez, o ouvira de Aristodemo, o qual participara efetivamente do simpósio
oferecido por Agatão. Nesse simpósio, falaram Pausânias, Eriximaco, Aristófanes, o próprio
anfitrião Agatão e finalmente Sócrates.

Todos falam sobre o amor que é o tema escolhido para aquela noite. Alcibíades faz uma
entrada tardia e coloca Sócrates numa situação delicada ao revelar a relação amorosa e de
admiração que ambos teriam um pelo outro. Lacan irá analisar cada uma dessas falas,
privilegiando o diálogo final entre Sócrates e Alcibíades que nos apresentará o termo "Agalma",
uma das primeiras formulações do que será futuramente o "objeto a".

Interessanos apenas uma em especial. A fala de Sócrates, que na verdade, não seria
propriamente dele, pois ele estaria apenas relatando o que ouvira de Diotima de Mantinéa, ou
seja, apesar de não estar presente no banquete, ela fala pela boca de Sócrates. Lacan
defenderá a tese de que é Sócrates quem realmente fala, por meio de sua "alma feminina" e
que usa esse subterfúgio, inclusive, para não constranger seu anfitrião Agatão, cujas teses serão
desconsideradas. E o que fala Diotima de Mantinéa por meio de Sócrates? Um relato
psicológico sobre a gênese do amor que espanta pela argúcia e modernidade, ao ponto de
Lacan o recuperar por completo em sua clínica. Vejamos o relato
"A libertação do desejo conduz à paz interior"
LAO-TSÉ

Diotima conta que Eros, o deus do amor, foi gerado no dia em que nasceu Afrodite, quando os
deuses participavam de um banquete. Entre eles estava Poros, filho de Métis, também
chamado de "o astucioso", "aquele que tem expediente", que, completamente embriagado
com néctar, entrou no jardim de Zeus e adormeceu.

Este nome, etimologicamente, também remete à ideia de uma abertura, uma passagem, uma
travessia, enfim, um furo, um vazio. Terminado o jantar dos deuses e apesar de não ter sido
convidada, aparece Penia que veio mendigar restos do festim.

Penia é a personificação da pobreza, da carência. Etimologicamente provém de um verbo que


significa "afligir-se", "trabalhar por necessidade", "esforçar-se com" e posteriormente também
agrega os sentidos de "estar em dificuldade", "ser pobre". Penia em sua miséria ao ver Poros
embriagado e adormecido desejou ter um filho com ele. Deitou-se ao seu lado e concebeu Eros.

Eros trará consigo as marcas dessa dupla gênese. De sua mãe Penia, cuja pobreza a define
como eterna mendicante, ele herdará uma falta congênita e se esforçará sempre para obter
aquilo que não tem, ou seja, vive sob o emblema de uma carência jamais preenchida, mas que
se esforçará por compensar.

Para isso herdou de seu pai Poros a astúcia e o expediente necessários para tentar conseguir
aquilo que não possui.

Eros, o deus do amor, nasceu de Penia (carência, pobreza) e Poros (astúcia). Da dialética
entre carência e astúcia move-se o desejo.

Dessa dialética entre carência e astúcia movese o desejo, agita-se Eros infinitamente. É a matriz
lógica, remota, desse futuro "objeto a" teorizado por Lacan, essa letra que procura e está
sempre no lugar de um "outro" que nunca é alcançado.1 Em Lacan, essa incompletude e
carência universalizam-se, atingindo agora toda e qualquer pulsão do desejo.

Mas como se verá na aventura da Psicanálise, toda atualização do desejo será sempre sob uma
forma parcial, compensatória para apoderar-se daquilo que Lacan chamou de "o Nome-do-Pai",
essa nova fórmula interpretativa do complexo de Édipo levada a efeito pela revolução lacaniana
que, expandindo seu antigo sentido freudiano, integrou homens e mulheres em uma mesma
aventura psíquica.

Para as referências etimológicas foi utilizado o Dicionário Mítico-Etimológico, vol. II de Junito


Brandão, Edit. Vozes, Petrópolis, 1992.

Para entendermos um pouco melhor essa novidade teórica da clínica lacaniana, lembremos que
esse símbolo "a", constante no termo "objeto a" não se refere à primeira letra do alfabeto, mas
à primeira letra da palavra francesa "autre" (outro, em português) e que essa letra "a" em
minúsculo qualifica, portanto, sempre uma alteridade, alguma coisa que está para além do
sujeito desejante e que ele quer para si.

Assim, quando esse "objeto a" se instala como função psíquica compensatória, temos de
procurar responder sempre quem é esse "outro" que se coloca no lugar do meu desejo. Lacan
começaria a pensar este conceito a partir da leitura de Luto e Melancolia de Freud. Juan-David
Nasio observa com bastante acuidade que neste artigo, "ao se referir à pessoa que foi perdida e
de quem se faz o luto, Freud escreve a palavra "objeto", e não "pessoa".

Freud, portanto, já fornece a Lacan uma base para responder à pergunta "quem é o outro?" e
construir seu conceito de objeto a."

Note-se que nesta gênese freudiana do conceito lacaniano já se inscreve a ideia de uma perda,
de alguma coisa que não existe mais, de um fantasma do qual temos de fazer o luto para nos
libertarmos de sua lembrança.

Para o homem é o trauma da castração, da perda simbólica do falo, da necessidade de ter


acesso ao Nome-do-Pai, essa instância de poder que precisará ser recuperada de alguma forma.
Portanto instaura-se aqui uma carência que só poderá ser preenchida parcialmente ou
transformada em narrativa na clínica psicanalítica, quando, então, no processo de
transferência, o analista assume ser o "objeto a", tornando-se, ele mesmo, este "outro do
desejo" do analisando para que ele o supere.

2 NASIO, J.D. - Cinco lições sobre a Teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1993, p. 92

Inconscieiente

Avancemos mais de 2 mil anos da cena desse Banquete para encontrar Jacques Lacan num dos
seus seminários, denominado O desejo e sua interpretação, em que ele inicia a conceitualização
do que chamou inicialmente de "pequeno objeto a", tema que além de ser um desdobramento
do conceito de "o Nome-do-Pai" remeteu o inconsciente para uma leitura definitivamente
linguística.

Lacan entenderá o inconsciente radicalmente estruturado como uma linguagem, e isso terá
consequências sérias tanto na prática psicanalítica quanto na teoria linguística, abrindo duas
frentes de batalha. Por corresponder a um inconsciente entendido como falta, a linguagem, ela
mesma, será para sempre incompleta em sua significação. Entre a nomeação das coisas e sua
significação haverá sempre uma sutura mal feita.

Assim, nenhum significante comportará um significado completo e irredutível, mas deslizará


constantemente por uma cadeia de significantes arbitrários, sem nunca ter fim. Só uma atitude
comandada pela necessidade pragmática de comunicação é que pode interromper, barrar esse
sentido sempre em aberto do significante e fazê-lo cristalizar-se por algum tempo. Mas o
desejo sempre conseguirá fazer que os significantes se movam e falará através das fissuras
deixadas descobertas.

Essa visada linguística do inconsciente, iniciada por Lacan quando de suas leituras da obra de
Ferdinand de Saussure, irá encontrar sua solução madura na leitura que fará de Roman
Jakobson. Nesse momento, introduz em sua teoria dois elementos novos: a metáfora e a
metonímia.

Elas serão para Lacan as duas leis fundamentais do inconsciente. Deslocamentos (metonímias)
e condensações (metáforas) responderão também pela fala do inconsciente, onde a estrutura
metonímica de justaposições e acoplamentos será o ponto de referência para caracterizar a
estrutura do desejo.

No processo metonímico temos um deslocamento em que uma parte é tomada pelo todo, da
mesma forma que no "objeto a" alguma coisa toma o lugar, parcialmente, do desejo
interditado ao sujeito. Igualmente, na metáfora, alguma coisa é substituída em seu sentido por
outra, o que se pode flagrar facilmente na narrativa dos sonhos, sempre metafóricos por
excelência.

Desde o início, portanto, é inerente ao conceito lacaniano de "objeto a" a ideia de que ele
também desloca alguma coisa, tentando compensar uma "falta-aser (conforme o léxico
lacaniano), colocando no lugar algo sobre o qual o sujeito pode falar. Assim, o sujeito desejante
desenvolverá certa astúcia ao tentar aprisionar brevemente esse astuto objeto "a" em alguma
forma transitória de satisfação, de gozo.

Uma astúcia destinada sempre a ser uma compensação e que instaura apenas uma satisfação
parcial, metonímica, diante do desejo. Portanto, uma relação de substituição que transformará
todo "objeto a", escolhido pelo sujeito desejante, num fantasma. E a maior fantasmagoria
eleita pelo masculino será o do feminino, visado como objeto de gozo total, impossível de ser
completado.

A maior fantasmagoria eleita pelo masculino será o do feminino, visado como objeto de gozo
total, impossível de ser completado

Este gozo total pertenceria ao desejo pela mãe, interditado e castrado simbolicamente na
estruturação do Édipo quando a criança desiste da mãe, da relação incestuosa com essa mulher
que "pertence" ao Pai e que lhe é interditada pela Lei do Pai. Essa instância de interdição - o
tabu do incesto - é introjetada simbolicamente pela criança como uma forma de castração e,
imediatamente, na tese lacaniana, esse interdito que tem raízes antropológicas passa a ser
denominado de "O Nome-do-Pai".

Ao introjetar essa Lei do Pai que proíbe o incesto com a mãe - seu objeto primário de desejo, de
gozo total - a criança agora se inscreve na ordem cultural que emana desse Nome-do-Pai. Leis
normativas que o definirão como um ser social que aceitou essa castração para se inserir na
ordem da cultura e a quem faltará para sempre esse falo simbólico ao qual, miticamente, todas
as fêmeas pertenceram um dia e que, agora, pertence ao pai que lhe interdita e o castra com
relação à mãe e cujas funções ele procurará recuperar parcialmente por meio de "objetos a"
metonímicos.

O falo neste contexto será sempre o significante de uma falta. Nesse sentido é que se pode
entender a frase de Lacan quando diz que a "relação sexual não existe". Realmente, como
"relação total", como recuperação de um "gozo total", esta relação estará para sempre
interditada ao masculino. Aqui a mulher se apresenta, radicalmente, como um "inteiramente
outro" para o homem ao qual ele não teria acesso, uma vez que ela não participa dessa
síndrome da castração original, não precisou introjetar uma perda simbólica abissal para se
constituir como sujeito.

Homens e mulheres realmente não são iguais na relação sexual. Portanto, é essa possibilidade
de relação simétrica que é declarada inexistente. Afinal, como já se disse, "o Édipo produz o
homem, não produz a mulher".3

3 SOLER, Colette - O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p.
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A Mulher Não Existe

É famosa a apropriação de Lacan do conto de Edgar Allan Poe intitulado A carta roubada, em
que ele mostra que assim como o sentido último dos significantes nunca é alcançado, esta carta
roubada também tem vários destinatários e nenhum; seu conteúdo nunca pode ser apropriado
inteiramente, mantendose apenas como uma potencialidade de sentido e, no caso do conto de
Poe, uma potencialidade de poder para quem a possui. Metáfora certeira para a palavra que
sempre cerca seu sentido, mas nunca o alcança

Por mais visível e audível que as palavras sejam, elas nunca podem ser decifradas totalmente -
seu significado sempre desliza e escapa - da mesma maneira que a carta roubada, no conto de
Poe, desliza continuadamente por vários possuidores.

Mesmo estando perfeitamente visível e disponível em cima da lareira, nunca é vista pelos que a
querem encontrar. Bem, a mulher e o desejo do homem pela mulher teriam também essa
característica. Por mais próxima que a mulher esteja do homem, ela é sempre invisível para ele,
o que fará Lacan formular a frase paradoxal de que a mulher não existe. Frase aparentemente
absurda e que causou polêmica.

Como dizer isso se o homem faz sexo com uma mulher desde sempre? Lacan dirá que os
homens, na verdade, fazem sexo com todas as mulheres e não com uma em especial, repetindo
no seu inconsciente o tempo da horda primitiva, em que todas as mulheres pertenciam a um
único Pai mítico, dono do falo.
A mulher como individualidade lhe escapa sempre. Na verdade, ela, como todo objeto de
desejo, pertence à esfera desse "objeto a", parcial, metonímico por definição, mas que
consegue ancorar a pulsão do desejo por algum tempo. A mulher real e individual presente no
ato sexual representa, portanto, apenas uma possibilidade nessa série infinita que alucina o
masculino.

O filme Closer, do diretor Mike Nichols (do roteiro baseado na peça teatral homônima de
Patrick Marber) pode ser utilizado como exemplo. Este texto parece ter um segundo roteirista
oculto, o próprio Lacan. O título na versão brasileira recebeu um acréscimo, tornou-se Closer -
Perto demais. Lacan concordaria com o acréscimo. Perto demais, a mulher torna-se ainda mais
inexistente para o masculino.

Visível e oculto

Inicialmente, o roteiro cria profissões emblemáticas que já definem o que acontecerá com o
relacionamento dos amantes. Dan é um jornalista encarregado da seção de obituários. Ele
mesmo conta como os obituários são redigidos para esconderem sempre a pessoa real.

O que de fato as pessoas foram na vida não importa nos obituários. Mas sim, a visão
edulcorada e elegante em que todos se transformam em pais amantíssimos, esposos fiéis e
profissionais competentes, mesmo que tenham sido sempre o oposto disso tudo.

Ou seja, nem mesmo na morte, revelamos o que somos de fato. O falso obituário dos jornais
incumbe-se de manter o distanciamento necessário da pessoa real. O obituário, que deveria
revelar finalmente a pessoa, a mantém, agora, definitivamente distante.

Anna, por sua vez, é fotógrafa especializada em retratos de desconhecidos que ela fotografa em
grandes closes. Rostos anônimos, mas ela os exibe em grande proximidade, em grandes
ampliações. Mesmo com tal exposição ampliada, eles continuam desconhecidos. É uma falsa
aproximação. Rostos próximos demais. Tão desconhecidos quanto os das mulheres quando elas
se apresentam para os homens que pensam que as vêm por inteiro e acreditam saber o que
elas são e o que estão vendo.

Larry é médico dermatologista. Perto demais do corpo das pessoas. Próximo da pele. Mas
nunca além. O dermatologista se detém na epiderme das pessoas, nunca ultrapassando esse
limite externo do corpo. Nunca penetrando realmente no âmago do paciente. Sempre na
epiderme, nesta exterioridade que nos delimita do exterior. Assim será também em seus
relacionamentos com o feminino. Nunca indo além da sexualidade explícita. Não é à toa que
será ele quem exigirá tudo da stripper. Visão total. Mesmo assim, ele não conseguirá ir além da
epiderme ginecológica da mulher.

Jane, por sua vez, é a stripper que se dá totalmente ao olhar do masculino. Olhar que nunca
consegue ir além do seu corpo em exibição, da sua epiderme. Pertos demais do seu corpo nu,
os olhares masculinos estão sempre longe demais dela como mulher. Ela é a que encerra, em
sua profissão, o paradoxo dessas relações íntimas que estão sempre à distância. Ela é um
"objeto a" por excelência, pois oferece seu corpo como objeto parcial de um desejo nunca
realizado.

Neste jogo de espelhos falsos, de miradas falsas, ela é um equívoco desde o início do filme.
Jane, desde seu primeiro encontro com Dan, usa um nome falso - Alice. O relacionamento dos
dois já inicia com uma Alice que não existe. É emblemático que a primeira frase que Alice dirige
a Dan, logo no início do filme, seja "Olá estranho!".

O filme será justamente sobre esse eterno estranhamento entre homens e mulheres dentro da
cultura. A relação deles será, portanto, um labirinto de aproximações falsas. Eles estão
obcecados em fazer sexo com elas e saber dos detalhes eróticos quando elas os traem. Claro,
tudo temperado com o pretexto de que as amam acima de tudo. Isso não impede que eles a
traiam.

E vice-versa. Mas o que seria do erotismo deles se não fossem as traições que eles pressentem
e de certa forma, inconscientemente, estimulam? Como Lacan nos observou, há sempre um
terceiro envolvido em toda relação sexual, que pertence ao imaginário masculino e que é
justamente essa fantasmagoria da mulher e sua sexualidade inesgotável. Elas sabem que eles
são assim mesmo e respondem suas intermináveis perguntas com todos os detalhes eróticos
que eles exigem. Eles, entretanto, nunca sabem exatamente o que elas são e se o que dizem é
verdadeiro. Como Lacan dissera, elas não existem para eles como individualidade

O homem está preso à fantasia original de desejo por todas as mulheres e por aquela mãe
interditada que pertenceu ao Pai mítico

Nesse sentido, é lapidar a cena em que os dois homens acessam a internet, numa dessas salas
de encontros, e um deles finge que é uma mulher. O namoro virtual logo descamba para uma
espécie de sexo virtual. O que prova que para o homem basta que ele tenha uma projeção de
mulher em sua mente para que tudo funcione e a relação sexual se faça (daí essa relação, no
fundo, ser inexistente).

Afinal, tudo não passa mesmo de uma fantasmagoria masculina. Portanto, tanto faz ser uma
falsa mulher virtual com quem ele conversa na internet ou uma mulher real que ele fantasia. A
mulher real não existe nunca para o homem. Está para além de suas possibilidades, uma vez
que ele está preso à fantasia original de desejo por todas as mulheres e por aquela mãe
interditada que pertenceu ao Pai mítico. Relaciona-se, então, com sucedâneos simbólicos
incompletos desse poder do pai. Há, portanto, uma impossibilidade ontológica de que esses
dois gêneros possam se encontrar realmente.

Daí a necessidade de uma retórica amorosa para que eles criem um simulacro de
relacionamento. Mas quando esses diálogos se dão no filme, surgem numa chave cínico-
irônico-amorosa paradoxal que corta cirurgicamente a velha retórica amorosa com que os
filmes românticos costumam anestesiar suas plateias. Revelam magistralmente o que
realmente está por debaixo dos arrulhos amorosos dos casais enamorados.

O masculino estará sempre atrás de um fantasma idealizado de mulher. Do feminino que só


existe em sua carência e vazio. Elas jamais poderão preencher isso

Talvez, a cena em que mais se revele essa fissura entre homem e mulher seja a do clube
noturno onde Alice/Jane faz strip-tease. A figura da stripper é simbolicamente carregada.

Essa mulher que se despe completamente para os olhares masculinos estaria, portanto, tão
próxima fisicamente dele que, finalmente, ele poderia dela se apropriar inteiramente.
Entretanto, nesse momento de aproximação máxima é, justamente, quando ela fica mais
distante, constituindo-se em simulacro inatingível de desejo e de fantasia.

No clube, Larry, um dos lados desse quarteto improvável, pede para vê-la totalmente nua e
ainda paga para que ela exiba suas partes íntimas, da maneira mais crua. Aproximação visual
máxima do corpo feminino que, entretanto, não preenche as frustrações e desejos do homem.

Ele também paga alto para que ela lhe diga seu nome verdadeiro. Ela o diz. Mas ele pensa que
ela mente. E ela não esclarece a confusão dele. Não é preciso. Ele nunca saberá mesmo o que
as mulheres são, qual o nome certo que elas têm. Tanto faz, portanto, seu nome verdadeiro
que ele pensa ser falso.

O seu corpo perfeito de stripper, apesar de cruamente nu e real, também é um velamento, uma
alegoria de todas as mulheres possíveis. E não adianta que ele a veja assim tão de perto e
despida. Para ele, a mulher como individualidade, como outro sujeito também ferido pela
castração narcisística, sempre estará para longe de suas possibilidades. Aqui a visibilidade total
da mulher é índice do seu total ocultamento, o que nos remete novamente à símile da "carta
roubada" do conto de Poe, que também está oculta justamente por estar totalmente visível
sobre a lareira da sala

Nuas e perto demais, elas, paradoxalmente, são sempre invisíveis. O masculino estará sempre
atrás de um fantasma idealizado de mulher. Do feminino que só existe em sua carência e vazio.
Elas jamais poderão preencher isso. Só poderiam fazê-lo se concordassem em ser o objeto
fantasmal deles, encarnando para o homem a significação da castração e, assim,
transformarem-se num falo compensatório. E elas sabem disso.

Por isso mesmo, fingem que são as mulheres que eles pensam que vêm e amam. Que uma
delas, Anna, introjete essa culpa e impossibilidade de relacionamento real, apenas a faz
prisioneira total dessa carência masculina que na verdade não concerne às mulheres. De certo
modo, ela é infeliz porque eles são infelizes com elas e estão a se relacionar sempre com
mulheres inexistentes.
Portanto, a frase de Lacan, aparentemente absurda, encontra em Closer sua ilustração. A
mulher realmente não existe. É a demonstração dessa frase que pareceu insultuosa às
feministas, mas que, na verdade, revelava o jogo de espelhos falsos na relação do masculino
com o feminino. Ambos preenchem momentaneamente e por pouco tempo o vago fantasma
que o "objeto a" tenta compensar.

Desses fantasmas é que cada um - homem e mulher - estão enamorados por algum tempo. Não
é à toa, portanto, que o filme comece e termine com uma mulher nas ruas envolvida pelos
olhares masculinos que passam. Esses olhares fugazes e oblíquos as reconstroem muito longe
do que elas realmente são.

Perto demais do feminino é sempre muito longe para o masculino. Eros nunca preencherá essa
carência, seus objetos de desejo sempre lhe escaparão por algum furo, por algum vazio, por
mais astúcia que utilize em sua captura. Somos seres desejantes destinados a incompletude, e é
isso que nos faz caminhar. Lacan já sabia dessa carência do pequeno deus Eros pela voz de
Sócrates quando retomou o tema do amor nos seus seminários. Perto demais do desejo é
sempre longe demais.

REFERÊNCIA

DOR, Joel - Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989
JAKOBSON, Roman - Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, s/d
LACAN, Jacques - Seminário 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992
IDEM - Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2009
IDEM - Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1982
IDEM - Escritos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978
MILLOT, Catherine - Nobodaddy, A histeria no século. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988
PLATÃO - "O Banquete" in Obras completas, Aguilar, 1972
ROUDINESCO, Elisabeth - Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de
pensamento. São Paulo: Cia. das Letras, 1994

Fonte: Portal Ciência e Vida - http://sociologiacienciaevida.uol.com.br

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