You are on page 1of 320

Apresentação

Era uma vez um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto que amava “alucinadamente” as
mulheres e fumava maconha e cheirava cocaína no mesmo ritmo que dirigia sua moto — mais do
que uma alma perdida, era a promessa de um legítimo cafajeste.
Um dia, esse moço acordou aos gritos achando que estava com uma cobra sucuri enrolada no
corpo, mordendo-lhe o braço e inoculando-lhe veneno. Era uma visão, claro, não uma cena real,
mas foi como se fosse. Caio Fábio tinha então 19 anos, já estivera perto da morte por acidente ou
suicídio, e aquela foi a última vez que, simbolicamente, se sentiu possuído pelo demônio.
No dia seguinte, decidiu, iria nascer de novo: “Vou viver com Jesus e ser um homem de Deus
para o resto da minha vida.” Convertido, o jovem acabou se tornando pastor protestante, assim
como seu pai, um agnóstico que certo dia, lendo a Bíblia, também se convertera e abandonara
tudo, inclusive um próspero escritório de advocacia do qual era sócio o senador Bernardo Cabral,
ex-ministro e presidente da CPI dos precatórios.
As memórias que Caio Fábio lança agora encerram mais do que a conversão de uma alma
desgarrada que escolheu como referência não um presbiteriano como ele, mas um santo, Santo
Agostinho, cujas Confissões pontuam como epígrafes os capítulos do livro, criando um curioso
contraponto católico a essa saga protestante.
Encerram mais do que isso. As Confissões são também a emocionante aventura de uma
vocação pastoral sem temor e sem preconceitos, que sobe os morros, entra nos presídios,
freqüenta palácios, catequiza traficantes, batiza governador, é perseguida politicamente, e nada
abala a sua crença de que o Evangelho é imbatível, de que tem o poder de “mudar bichos,
monstros e pervertidos”.
No livro, como na vida, pode-se encontrar esse pastor tão pouco ortodoxo em Bangu I
convertendo Gregório, o Gordo, o maior ladrão de carros da história do Brasil e estrategista do
Comando Vermelho. Ou batizando o perigoso traficante Isaías do Borel, contaminado pelo vírus
do HIV: “Isaías, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” E pode estar
também, algumas páginas depois, na casa da maior autoridade do Estado: “Em maio de 1994,
batizei o governador do Estado, Nilo Batista, e sua esposa, Vera Malagute Batista.”
Que outro líder espiritual seria capaz de uma ação pastoral tão arriscada, eclética e
ecumênica?
As incursões de Caio Fábio, ou melhor, sua imersão permanente no mundo profano, na vida
real, lá onde mora o pecado, custaram-lhe incompreensões e inimizades, não só de adversários de
crença e de ética como de autoridades políticas e administrativas. O governador Marcello
Alencar, por exemplo, abriu contra ele e sua principal obra social, a Fábrica de Esperança, uma
guerra que incluiu pesadas denúncias, uma ocupação branca, auditorias e ameaça de interdição
do espaço sob a alegação de que ali havia tráfico de drogas.
Também com César Maia houve mal-entendidos e bate-bocas públicos. O então prefeito
chegou a apelidar Caio Fábio de “Pastor do pó” — pelo menos até visitar a Fábrica e se convencer
da importância social do projeto, que passou então a respeitar e apoiar.
Como se vê, o livro não é apenas a aventura de um pecador e sua conversão. É também um
pouco da história do Rio de Janeiro dos anos 90 — com os episódios que se inscreveram em nossa
memória recente: a violência urbana, a criminalidade, a delinqüência, o escândalo do
jogo-do-bicho, a ocupação das favelas pelo Exército, a criação da Casa da Paz de Vigário Geral, as
trapaças do bispo Macedo, o Viva Rio, a campanha do Desarme-se, e muito mais.
Há na primeira parte do livro uma intenção edificante que incomoda pelo menos os que não
têm muita fé. Será que a ênfase posta na perdição, naquela fase de juvenil entrega ao pecado não é
um processo retórico para valorizar e engrandecer a conversão? A credulidade com que esse
missionário investe nos pecadores barra-pesada também pode parecer meio ingênua? Valerá a
pena converter bandidos? Não será uma opção preferencial pelo algoz mais do que pela vítima?
Essas dúvidas, que costumam ser levantadas por sua ação pastoral, não abalam as convicções
do pastor. Ele acredita na conversão — na sua e, por conseqüência, na dos outros. Muitas vezes
recorre a Jesus para explicar algumas de suas posições: “Jesus morreu entre ladrões, mas não os
livrou da execução.”
A sua ingenuidade pode se transformar em frio realismo. “A vida de vocês é burra”, é
capaz de dizer para um traficante. “Tenho visto vocês morrerem todos os dias. Quem não morre
vai para Bangu I, o que é morte também. Vocês são instrumentos úteis nas mãos de um pessoal
que nunca é apanhado e que mantém essa porcaria funcionando.”
Lições como essas — muito antes de ficar evidente que a conexão internacional do tráfico,
essa, sim, milionária, passa longe desses pés-de-chinelo cuja alma Caio Fábio tenta salvar, já
que não pode fazer o mesmo com a vida — demonstram que esse pastor sabe onde pisa. Conversa
com Deus, não abandona o Evangelho, vive distribuindo bênçãos mas, por via das dúvidas,
conhece tudo o que se passa na vida terrena. O espiritual sem o social é um círculo vicioso que
não ajuda a virtude. É mais fácil ser pecador com a barriga vazia.

ZUENIR VENTURA
escritor, jornalista e
editor especial do Jornal do Brasil
Aos muitos seres que me habitam a alma, os que conheci na Terra e aqueles
que apenas encontrei em sonhos e pesadelos, e que são a matéria-prima de minha
existência humana, dedico este livro de confissões.
Introdução

Por que escrevi estas confissões? Talvez apenas porque nunca as tivesse escrito antes. Pode ser,
entretanto, que as tenha escrito a fim de poder usufruir do direito de andar o mais perto possível
de um desejado estado de nudez pelo qual meu ser sempre almejou. E quem dera pudesse eu me
despir por completo. Mas isto só seria possível se eu fosse um ser numa ilha deserta e, então, não
haveria razão nenhuma para desejar tão intensamente tirar a roupa, pois a nudez só é percebida
na presença de outros. Além disto, jamais poderei me desnudar por completo neste mundo, pois
esse exercício sempre expõe outras almas, visto que não existo em concubinato com meu eu
apenas, mas com a multiplicidade de outros amores e vínculos humanos, todos tendo o direito de
não desejar se despir, apenas porque hoje eu assim o quero. Esta é a razão pela qual várias pessoas
que andaram ao meu lado nesta jornada, todos personagens reais, tiveram seus nomes alterados.
E aquelas histórias que mesmo “cobrindo os nomes verdadeiros”, ainda assim delatavam os seus
personagens de modo inconveniente, deixei de lado. Somente usei os nomes dos seres históricos
que a mim se aliaram ou em mim encontraram desprazer, se tais ocorrências e fatos a eles
relacionados foram inegavelmente públicos.
Há um tempo para todo propósito e para a realização de cada coisa neste mundo. Esta é a
minha estação de fazer confissões de morte e vida, de dúvida e fé, de desespero e esperança. E
qual foi o start deste processo em minha alma? Sem dúvida ele vem de eras psicológicas tão
longínquas, que certamente me precedem no tempo. Talvez eu esteja apenas trazendo à luz um
desejo do meu coletivo familiar, e até de gente que já se foi há muito, mas que partiu sem ter feito
o ato de confissão que aqui faço. No que me diz respeito, estas confissões nasceram como
necessidade em mim desde a primeira vez que registrei a consciência do encoberto, quer tenha
sido apenas um pensamento maligno, quer um sentimento sublime ou um ato velado e
sutilmente imoral, mesmo que praticado na minha mais tenra infância. E lendo este livro, você
encontrará razões sobejas para que ele exista na forma em que aqui está.
Historicamente falando, no entanto, faço estas confissões fundamentado em três percepções
da realidade. A primeira tem a ver com minha total consciência do poder terapêutico que este
livro de strip-tease psicológico teve para mim e terá para você. Puxei um fiapo na minha alma e
achei uma grossíssima corda de amarrar navio atada bem no cerne de meu ser. Desfazer esse nó
foi exercício terapêutico e tarefa de cura para o meu interior, e poderá ser para você também. A
segunda percepção tem a ver com meu desejo compulsivo de queimar algumas pontes. Após ler
este livro, você certamente perceberá como estou encurralando minha vida numa única opção:
ser apenas o que tenho sido até aqui, em Deus, pois quem conta as histórias que aqui narro, não
pode ser candidato a mais nada na vida, a não ser a viver unicamente da graça e da bondade de
Deus. Se um dia quis ser político, mesmo sem jamais me ter dado conta disto, aqui desisto. Se já
me passou pela cabeça tornar-me um grande figurão da política religiosa, aqui também me
aposento antes da hora. E se, porventura, algum dia desejei ser um homem de reputação entre
meus iguais, aqui também puxo a descarga desse dejeto e o expulso de meu ser, pois mediante
estas confissões digo quem sou, ou quase isso. Mas saiba: andei bem perto de me entregar por
completo.
A última percepção que dá base a este livro de confissões é a de que hoje creio, muito mais do
que ontem, que o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza humana. Assim, mesmo perdendo
força diante dos homens, espero sinceramente estar ganhando poder diante de meu Criador.
Dessa forma, quanto mais vulnerável eu estiver diante de você, mais forte estarei aos olhos de
Deus e mais ajudado serei por Seus anjos solidários e amigos.
Espero que a leitura destas minhas Confissões leve você a fazer a confissão que mudará sua
vida por completo, ou seja, que com seus próprios lábios você passe a chamar o Filho de Deus de
Advogado na Terra e no Céu.

Caio Fábio D’Araújo Filho


Inverno, Boca Raton, Flórida, Estados Unidos da América — 1996
P ARTE I

Confissões de Morte e Vida


Capítulo 1

“Ao dizer que atos viciosos contrários aos costumes humanos devem ser evitados,
nós levamos em conta a variação dos hábitos de comportamento, ou seja: a
convenção mutuamente concordada de uma cidade ou nação, confirmada pelo
costume ou pela lei. Nesse caso, qualquer pessoa que caia fora desse padrão
torna-se completamente inaceitável para a sociedade.”

Santo Agostinho, Confissões

Meu pai olhou-me deitado no pequeno berço e não resistiu. Colocou-me em seus braços,
levou- me até o canto daquele amplo cômodo da casa da vovó Zezé e ficou sem saber o que fazer.
Ele fora católico até os 26 anos, quando tomara uma decisão: seria agnóstico até que alguma coisa
profundamente espiritual lhe trouxesse a certeza de que Deus era Deus, e não uma mera
abstração. Por isso mesmo, ele não podia entender o que lhe estava acontecendo.
Sua alma fora totalmente impregnada pela idéia do sagrado. Era como se o próprio Deus
tivesse invadido os aposentos daquela casa e feito uma convocação irresistível a papai. Lá estava
ele, um tanto desequilibrado, tentando manter-me no colo nos meus dois dias de vida neste
planeta. A muleta sobre a qual se apoiava não lhe permitia ter certeza de que me carregaria sem
me machucar. Mas a força que vinha de dentro de sua alma era mais forte. Era como uma ordem.
Ele não tinha outra opção a não ser obedecê-la.
Tomou-me nos braços, ergueu-me ao céu e disse: “Deus, se Tu existes e estás aqui neste
quarto, ouve a minha voz. Eu Te dedico o meu filho, meu primogênito, e peço que faças dele um
homem de Deus, um sacerdote, alguém que carregue a Tua marca em sua vida. Mas peço que Tu
não o prives do privilégio de ter família, de criar filhos e de conhecer o amor por uma mulher. Por
isso, mesmo sem saber por que Te peço, por favor, Deus, faze dele um pastor. Assim, ele poderá
conhecer a alegria que eu estou sentindo neste momento, de levantar meu filho nos braços, e será
também capaz de conhecer este estranho sentimento de proximidade da divindade, que, como
nunca antes, me invade agora todo o ser.”
Ninguém jamais ficou sabendo o que ele havia feito comigo naquele dia. Também nem ele e
nem ninguém poderia imaginar que aquele gesto estava marcado com a força divina das
profecias. Eu sei que minha existência encontrou seu sentido e sua explicação histórica naquela
oferenda agnóstica de meu pai, dedicando-me a um Deus que ele não tinha certeza se existia.
Somente 21 anos depois daquela oração ao pôr-do-sol é que eu viria a saber que minha vida nada
mais era do que a materialização de um desejo sagrado, de uma duvidosa, porém apaixonada,
oração paterna, e de uma vontade transcendente... de uma profecia do amor.
Meu pai é o ser humano que mais me influenciou neste mundo até o dia de hoje. Filho de
uma estranha mistura de histórias e experiências humanas, tem vivido sob a marca do
surpreendente, do radical, do intenso e do inusitado. Entretanto, sua vida e a minha própria vida,
por extensão, explicam-se, obviamente, em contextos mais antigos do que nossa própria
experiência histórica. Somos apenas os subprodutos de histórias de ancestrais fascinantes e
quase mágicos em suas performances neste mundo. E na intenção de destrinçar as teias que
tecem estes legados familiares tem-se de viajar ao século anterior ao nosso. É para essa viagem
que eu convido você.
Minha herança humana viaja em células e sonhos desde há muito. Mas no nível de minha
consciência histórica, tudo começou com meu bisavô, um cearense de saúde férrea e de humor
fino e provocativo, que tinha uma fraqueza especial por saias. Luís Antônio de Araújo saiu do
nordeste para o Amazonas no século passado, quando ainda era bem jovem. Nascido no ano de
1821, em Camuci, Ceará, teve na longevidade e na força física suas mais marcantes
características. Viveu 104 anos e, aos oitenta, era famoso por ainda ser capaz de carregar fardos de
pirarucu pesando até 120 quilos.
Meu pai não conheceu o seu Araujinho, como chamavam meu bisavô no interior do
Amazonas.
Com fama de namorador e de grande contador de histórias, o velho cearense casou-se com
Maria Santana de Araújo já avançado em idade, aos 66 anos, ainda assim depois de um vastíssimo
processo de seleção.
Ele e Santaninha tiveram dois filhos: João Fábio e Joana, ambos nascidos em Nova Vista de
Canutama, no alto Purus, coração do Amazonas. Meu avô, João Fábio, nasceu quando seu pai já
tinha 68 anos e precisou lidar com a tragédia desde cedo. Em 1893, portanto apenas cinco anos
após haver se casado, Santaninha veio a falecer, vítima de uma das muitas doenças que matavam
bestamente as pessoas nas beiras dos rios do Amazonas: a febre negra.
Naqueles dias, o tempo passava com a mesma preguiça com que as águas deslizavam, lentas e
caudalosas, pelo rio Purus, na região do seringal Nova Vista, onde o velho Araujinho conseguira
um emprego como extrativista de balata de borracha. Sua intenção era trabalhar duro a fim de
fazer algum dinheiro com borracha, produto por excelência para quem quer que tivesse uma
visão clara de como a vida se desenharia nos anos por vir. O Amazonas vivia um tempo em que a
borracha era o chip de todas as possibilidades presentes e futuras.
Apesar da pobreza do interior, havia algumas inigualáveis compensações. Os cheiros naturais
da região eram um pagamento divino aos que insistiam em viver no lugar. Os aromas da floresta
eram extraordinários, aromas que, em geral, ainda podemos perceber nas vilas e pequenas aldeias
do interior do Amazonas. Era fragrância de mata viva, misturada com o odor de uma flora
incomparavelmente diversificada, onde se podia perceber o cheiro de flores jamais transformadas
em perfume em lugar nenhum do mundo.
Os imensos volumes de água também contribuíam para acrescentar ao ar o estranho odor da
vida subaquática, combinado ao das plantas que crescem à margem dos rios. Além disso, havia
uma cheirosa sensação de frescor que vinha de toda parte. A areia amarelada à beira dos igarapés
tinha em si o cheiro forte de algo que parecia uma mistura de enxofre com pó de café. Era um
aroma quase primal, como se a terra ainda exalasse os cheiros de seu mais recente parto: o
Amazonas.
Na pequena vila do seringal Nova Vista podia-se também discernir o forte aroma que vinha
das grandes chapas de ferro ou das imensas bases de barro queimado, onde mulheres de cabelos
compridos, presos por prendedores feitos de caroço de tucumã, agitavam suas colheres de pau,
fazendo a farinha de mandioca dançar incessantemente, enquanto não cansavam de contar casos
infindáveis, que não incluíam mais do que as aproximadamente 550 pessoas que viviam no lugar.
Políticos, militares e intelectuais que ocupavam espaço nas conversas da maioria das pessoas,
em qualquer cidade maior que uma vila no sudeste do Brasil eram completamente ignorados
pelos moradores daquela região, onde as notícias já chegavam com tamanho atraso, que os que as
recebiam acabavam pensando: “Se eu vivi dois anos sem saber que isto havia acontecido e nada
mudou na minha vida, então é porque tanto faz como tanto fez; isso só importa num outro
mundo, muito longe daqui. Pra gente aqui, saber ou não saber quem foi eleito, quem morreu ou
quem foi preso e acusado de traição, não altera a vida em nada.”
E assim eles seguiam, fazendo seus rituais simples na liturgia do cotidiano.
Aqui e ali se fazia passar um pouco de café num coador de pano, o que promovia rápidas
interrupções na fabricação de farinha. Em geral, essas breves paradas para o café também se
faziam acompanhar de pedaços de beiju, alimento que naqueles dias ocupava o lugar do pão no
interior do Amazonas. Foi naquele cantão do Brasil, que hoje o mundo conhece como The
Amazon Rain Forest, que meu bisavô ficou famoso e quase mítico, tornando-se uma espécie de
lenda cabocla das beiradas do Purus.
As histórias sobre ele são muitas, mas as que mais me fascinam têm a ver com sua força.
Havia por aquelas bandas um certo Sebastião Preto, conhecido por ter braços fortes e
musculosos e por ser o louco da aldeia. No entanto, quando estava aliviado de seu estado de
loucura, Sabá era um homem calmo, especialmente carinhoso com o menino João Fábio. Mas,
quando a perturbação mental lhe revirava a razão, era capaz de qualquer coisa, inclusive de
machucar aqueles de quem gostava.
Um dia, o louco amanheceu atacado e partiu para um ato bestial. Ao perceber a presença de
João Fábio na pequena praça do vilarejo, correu alucinado para cima da criança, demonstrando a
clara intenção de estrangulá-la.
Quando o velho Araujinho percebeu Sabá correndo na direção de seu filho, lançou-se de um
salto entre o louco e o menino, atracou-se a Sabá como se fosse uma cobra jibóia, empurrou-o
contra o muro de uma casa e tirou-lhe os pés do chão, mantendo-o no ar, imobilizado entre a
parede e o seu próprio corpo.
— Tragam as cordas — gritou o velho Araujinho entre estrebuchos e grunhidos. — Tragam
as cordas. Não demorem — pediu mais uma vez.
Depois que levaram o pobre louco amarrado, meu bisavô confessou que se tivessem
demorado mais um minuto, ele não teria agüentado.
Uns dizem que ele ficou ali, imóvel, segurando Sabá no ar por mais de cinco minutos. Outros
falam que não durou tanto tempo assim. Mas ele não largou o negro até que trouxeram as cordas
e amarraram Sebastião, vítima de uma insanidade para a qual os tempos não tinham ainda
qualquer esperança de cura à vista.
Quando as jovens de Nova Vista se referiam ao velho Araujinho como sendo alguém de idade
avançada, ele sempre falava: “É, minha senhora, sou velhete, mas sou espertete. A senhora quer
uma demonstração?” E, assim, cessavam as inconveniências, afinal, a mulherada sabia que
aquele velhote marcado pelo tempo, mas de saúde invicta, era realmente espertete com o sexo
feminino, dono de longa e diversificada experiência naquela área. E as mulheres tinham certeza
de que não se tratava apenas de memória de um remoto passado. Todos sabiam, ou pelo menos
ouviam falar, das façanhas contemporâneas daquele velho incorrigivelmente galanteador, às vezes
discretamente assanhado, e que parecia estar sempre fisicamente bem-disposto.
Araujinho viveu casado apenas cinco anos. Com a morte da esposa, resolveu pedir ajuda a um
amigo para completar a educação dos filhos. Percebendo-se sem jeito para as atividades de
natureza doméstica e avaliando a dificuldade que seria manter em casa o filho em idade escolar
tão crítica, enquanto se embrenhava dias na mata recolhendo o soro da borracha que escorria das
veias rasgadas das seringueiras, preferiu fazer sacrifícios de natureza emocional a submeter João
à privação do saber acadêmico, que ele próprio não possuía, mas cuja importância reconhecia.
Por isto, entregou o filho a um tutor.
O menino João Fábio foi enviado para Fortaleza no ano de 1901, aos 12 anos de idade, onde
permaneceu três anos, para então retornar ao Purus, aos 15 anos, a fim de pegar a latinha de
coleta de balata e tentar reunir seiva de borracha para vender e fazer dinheiro para ir estudar fora
do Amazonas.
Assim, durante três anos trabalhou incessantemente, juntando dinheiro para viajar para a
Bahia, onde sonhava estudar farmácia.
Para seu Araujinho, a volta do filho fez muito bem. Mesmo sendo um homem aparentemente
independente, era sempre imensamente carinhoso com João Fábio e orgulhava-se de ver nele
alguém forte o suficiente para trabalhar pesado, mas inteligente o bastante para perceber que o
futuro não estaria definitivamente ali. A companhia do filho era-lhe especialmente estimulante
porque a vida de um homem viúvo, com quase noventa anos, no interior do Amazonas, podia ser
extremamente solitária.
Naquelas bandas, um homem de paixão e fogo aceso pelas mulheres tinha muita dificuldade
para dar “saidelas rápidas”. E quando se tratava de dar uma variada na companhia feminina, era
muito mais difícil ainda, pois todas as localidades tinham população pequena. Assim, era difícil
que alguém se escondesse da curiosidade maldosa dos filhos do vilarejo, sempre atentos a sinais
de olhares apaixonados ou lascivos, que eventualmente se expressavam aqui e ali, naqueles longos
e solitários dias, povoados por gente que, na maioria das vezes, nem percebia que estava doida
para achar alguma coisa excitante para fazer.
Nesse caso, a solução para quebrar o tédio, disfarçado em resignação existencial, era namorar
escondido ou descobrir quem namorava, ou pulava a cerca, com a filha ou a mulher do vizinho.
O álibi de gente fogosa, como seu Araujinho, era sempre o boto tucuxi.
No Amazonas, quando uma menina aparecia grávida ou os pais percebiam que ela já não era
“moça”, o boto preto era evocado como saída moral e honrada para a deflorada donzela, uma vez
que se dizia que os botos tinham o poder de se transformar em belos e irresistíveis rapazes, que
saíam dos rios para inebriar, seduzir e possuir as mais belas meninas das cidades ribeirinhas.
Assim, a geração de bisavô Araujinho tinha no boto um importante aliado, funcionando
sempre como cúmplice e álibi para escorregadelas noturnas e criando o necessário espaço para
que a diversidade da experiência sexual fosse acobertada pelo mito do boto sedutor.
O velho morreu pobre. Entretanto, ficou famoso dentro de seu pequeno mundo, plantado à
beira do rio Purus. Partiu no ano de 1925, aos 104 anos de idade, com todos os dentes intactos,
sem que chegasse a conhecer uma dor de cabeça ou qualquer forma de doença, e sem que jamais
tivesse tido o privilégio de experimentar o significado da palavra “preguiça”.
Aquele homem centenário parecia marcado pelo signo da longevidade, e muitos pensavam
que ele ficaria ali, para bem ou para mal, até quando quisesse estar. Ele enterrou a muitos e viu
suas façanhas serem contadas e recontadas em inúmeras tardes, quando possivelmente se sentia
como os atores de Hollywood ao verem seus próprios filmes em matinês ou em vídeos.
E ele ainda ajudava a aumentar a lenda em torno de si mesmo quando, num gesto de
modéstia, dizia: “Parem com isso, seus rapazinhos canela-de-sebo. Vocês ficam aí mentindo a
meu respeito. Todo mundo sabe que isso tudo foi inventado pelo exagero dos fracotes dos avós de
vocês — que Deus os tenha em Sua presença. Eu nunca fui tão forte assim.”
Depois de assim falar, descia até a beira do rio e pegava um cesto de farinha de sessenta
quilos, que colocava naquelas costas de mais de cem anos de idade e carregava até o alto do
barranco. Assim, sua provocação, disfarçada de modéstia, apenas reforçava o mito de sua força
junto às novas gerações.
Dizem que Luís Antônio de Araújo morreu porque quis. Teria praticado uma espécie de
eutanásia existencial.
Tendo existido por mais de um século, cansara-se existencialmente de viver e, por isso, havia
decidido que era tempo de botar a viola no saco e recolher-se à eternidade.
Quando o velho estava com 104 anos, houve uma grande friagem no interior do Amazonas,
com a temperatura caindo ao nível dos 13 graus centígrados. Ele saiu do quarto, deitou-se numa
rede na varanda e disse que não se levantaria mais dali até morrer. Decidiu não se alimentar mais
e nem se erguer novamente. Os pedidos eram insistentes no sentido de que ele se alimentasse.
— O senhor está doente? Está sentindo alguma dor? — todos perguntavam.
— Não, seus rapazinhos canela-de-sebo — dizia ele —, eu não estou sentindo nada. Apenas
acho que já vivi demais e que tá na hora de deixar esse mundo para vocês. Portanto, me deixem
em paz. Um homem de 104 anos tem que ter o direito de morrer quando quer.
Foram aproximadamente trinta dias de friagem. A cerração cobria a floresta e tornava os dias
longos e lúgubres. Os parentes e amigos faziam vigília na varanda, sempre tentando
empurrar-lhe goela abaixo um pouquinho do famoso caldo de caridade, uma sopa de farinha de
mandioca cozida, temperada com alho e cebola, tida como milagrosa e revitalizante.
Mas ele se recusava a comer. Sua decisão estava tomada e ele não a negociaria com ninguém.
Nem mesmo com seu filho, João Fábio, que, plantado ali, pedia reverente que o velho pai comesse
alguma coisa.
Não houve jeito. No ano de 1925, seu Araujinho deixou esse mundo da mesma forma que nele
vivera: de modo obstinado e convicto. Nunca saiu do interior do Amazonas, mas virou lenda no
coração de muitos, especialmente na casa de seu filho, João Fábio, onde sua memória era
reverenciada como a do velho Matusalém, que viveu 965 anos, conforme o relato bíblico do livro
do Gênesis.
A importância histórica e espiritual de bisavô Araujinho na minha família é justamente a de
cumprir o papel de uma figura lendária, que vem de onde não se pode muito bem traçar as
origens, que vive sem trocar cartas com o passado, e que parece absolutamente contente com o
hoje, com o aqui e o agora, imerso nas oportunidades que a vida abria de modo natural diante
dele.
Ele nunca escreveu nada e nem tentou deixar nenhum legado. Mas suas histórias — nem
sempre reveladoras de princípios morais ou religiosos que pudessem ser usados para inspirar as
gerações seguintes —, apesar de ambíguas, eram plenas de uma estranha e essencial virtude:
uma imensa liberdade para existir intensamente debaixo do sol.
Foi seu Araujinho quem introduziu a força das lendas pessoais em nossa família.
Pobre da família que não tem lendas, sejam boas ou más. Uma família sem lendas é uma
família sem alma.
Seu Araujinho também foi aquele que nos ensinou que a vida é séria, mas que se não se fizer
acompanhar por pitadas de irreverência e de controlada irresponsabilidade, torna-se mais tediosa
do que a mesmice do rolar das inalteráveis águas barrentas do rio Purus.
Foi dele, ainda, que os homens e mulheres da minha família aprenderam o gosto do namoro,
da paixão e da delícia dos sentidos que se deixam estimular por cheiros e toques, fazendo a vida
parar e dando a você o direito de saborear a existência como quem se atola nas doces carnes de
uma manga-rosa.
Não se fala muito da fé de seu Araujinho. Consta que era católico, mas não parece que para
ele isso fosse coisa muito importante. Prova disso está o catolicismo de seu filho João Fábio, que,
conquanto tenha existido de modo bastante perceptível, era, entretanto, muito mais um
humanismo generoso do que o fruto de beatices religiosas e com cheiro de vela.
Talvez a maior de todas as demonstrações de que seu Araujinho viveu para além da tutela
espiritual do organismo religioso esteja na estranha maneira como ele morreu: aparentemente
sem sacerdote, sem rito, sem hóstia, sem extrema-unção e sem medo.
Morreu quando achou bom morrer, porque viveu como achou bom viver.
Capítulo 2

“Honra, poder de dar ordens e estar em comando têm sua própria forma de
dignidade, embora daí também se origine a ânsia da auto-afirmação. Ainda assim,
na aquisição de todas estas fontes de status social não devemos nos afastar de ti,
Senhor, nem nos desviar da Tua vontade.”

Santo Agostinho, Confissões

Foi a morte da mãe o que certamente propiciou a João Fábio a bênção do estudo como
caminho alternativo para fora da vida no seringal Nova Vista. Além disso, o fato de seu Araujinho
tê-lo mandado para Fortaleza aos cuidados de um tutor abriu-lhe os horizontes e inoculou nele
aquele estranho gostinho por novos espaços e relacionamentos.
A orfandade, quando se faz acompanhar de uma boa atitude frente à vida, pode capacitar o
órfão a se sentir livre para construir mundos para além dos condicionantes da consangüinidade
imediata. Muitas vezes os órfãos têm movido este mundo.
Os anos de trabalho no seringal não permitiram que João Fábio juntasse uma grande soma,
mas renderam-lhe o suficiente para que, em meados de 1908, zarpasse para Salvador, a fim de
ingressar no curso técnico de farmácia, profissão que para ele, que tinha fortes laços com a
população pobre do interior do estado e que dizia querer ser útil à comunidade, parecia a mais
prática.
Durante aquele período de estudos na Bahia, João Fábio conheceu uma menina de cabelos
loiros e profundos olhos azuis, filha de uma família de ancestrais franceses que se radicara no
Brasil poucas décadas antes.
Eram os Nascimento Lavigne, gente de atitude nobre e que prezava imensamente o valor da
educação e da cultura.
A paixão foi instantânea e profunda, mas o curso de João Fábio estava terminando e ele
precisava ir ganhar a vida no Amazonas antes que pudesse se casar com Josefina Nascimento e
levá-la para Manaus.
Embora não tenha sido fácil, João Fábio teve de propor que ela o esperasse enquanto ele ia
“fazer a vida”, prometendo voltar para buscá-la. Zezé, como a apelidara, aceitou de pronto.
Durante seis anos eles trocaram cartas de amor e amizade, reafirmando a intenção de passarem o
resto da vida juntos.
As amigas de Zezé tentavam dissuadi-la todos os dias com relação à fidelidade daquela
espera. Com tanto rapaz bonito e de boa família “dando sopa” em Salvador, o que Zezé estava
fazendo investindo sua juventude num rapaz pobre, do Amazonas, que se formara em farmácia,
fora embora e nunca mais voltara? Mas lá no fundo Zezé sabia que havia encontrado o homem
mais honrado que jamais conhecera, e que ele não a enganaria.
Esperou seis anos, alimentando seu amor apenas com memórias e cartas, até que no fim do
ano de 1917, pondo termo a um período de pura e insólita esperança, Zezé viu o navio aportar em
Salvador e dele desembarcar um João Fábio seis anos mais velho, porém absolutamente intacto
em seus motivos, sentimentos e compromissos.
Casaram-se no fim daquele ano, foram juntos para Manaus e, de lá, acabaram dirigindo-se a
Canutama, para o seringal Nova Vista, cuja propriedade vieram a adquirir no ano seguinte.
A vida no seringal foi cheia de dor e dramaticamente marcada pela solidariedade aos
habitantes do lugar. Lá lhes nasceram dez filhos, mas três deles morreram ainda na infância. José
e Edgar partiram ainda em idades bem tenras, mas a dor da morte de Luís Ricardo foi profun-
díssima.
Todas as histórias sobre Luís contam de um rapaz bonito, forte e extremamente sensível,
que nascera de um parto gêmeo com Elvira. Eles eram os mais velhos dos dez filhos. Mas em
1931, quando estavam com 12 anos, Elvira e Luís acompanharam o pai numa viagem a Manaus,
durante a qual o garoto foi atingido por uma horrível febre e morreu ao chegar à casa de uns
amigos, deixando um imenso rombo emocional no coração de seus pais e irmãos.
De volta ao interior, o magoado e abatido João Fábio não esmoreceu ante a perda do filho.
Mesmo com muita dor na alma, entregou-se à atividade que ele iniciara quando chegara da Bahia,
em 1912, formado em farmácia. Muito mais do que gerir o seringal, João Fábio dava-se inteira e
gratuitamente ao cuidado dos pobres e miseráveis que viviam naquela região.
Sua fama como homem solidário e generoso vive até hoje.
Milhares foram aqueles que o procuraram vindo de lugares remotos, viajando dias sobre uma
estreita canoa, a fim de buscar ajuda médica e alívio para suas dores, febres, feridas, angústias e
medos.
A força de sua vida foi tão significativa, que seu professor na faculdade de direito, na qual ele
viria a se matricular em 1933 e a concluir em 1937, Ramayana de Chevalier, chegou a descrever
com palavras míticas o seu curriculum social, texto transcrito no álbum de nossa família.
Era o dia 4 de dezembro de 1926 quando nasceu meu pai, Caio Fábio D’Araújo, na cidade de
Canutama, no interior do Amazonas.
Vovô Fábio foi registrá-lo com o nome da família Araújo. Orgulhoso, falou o nome do menino,
certo de ter evocado um grande significado latino para acompanhar aquele ser humano para o
resto da vida: Caio, em latim, significa bordão, cajado ou alegria. Ele se apegou ao último
significado e desejou, de todo o coração, que seu oitavo filho fosse um ser humano que trouxesse
felicidade a este mundo.
Enquanto ele se perdia em delírios de felicidade paterna, o escrivão cometia um engano
ortográfico que acabaria criando uma cômica, porém interessante mudança na grafia do nome de
minha família: trocou o “de Araújo” por um inexplicável “D’Araújo”.
Apesar de ser um erro, vovô Fábio decidiu conservá-lo, como que profeticamente percebendo
que aquele seu filho viera ao mundo marcado por estranhas intenções divinas que o fariam
escolher caminhos de trajetórias intensas e radicais para percorrer.
Cainho, como logo passaram a chamá-lo carinhosamente em família, viveu de modo mais que
normal o primeiro ano de sua vida. João Fábio, sempre sério, porém muito meigo com os filhos,
não hesitava em manifestar uma especial atração pelo menino. Filhos e filhas não lhe faltavam e
ele devotava algum tipo de expressão diferenciada por todos, deixando, entretanto, que essas
diferenças existissem como segredo entre ele e cada criança. Talvez seja por essa razão que,
mesmo hoje, os filhos que ainda estão vivos falem do pai como se fossem filhos únicos. Do
pequeno Cainho, ele dizia que seria um menino forte como fora seu pai, o velho Araujinho.
No entanto, logo após completar seu primeiro ano de vida, a saúde do menino foi subitamente
abalada por uma estranha e inexplicável febre.
Como João Fábio estava viajando, Zezé pediu ajuda a um farmacêutico local, a fim de
enfrentar a febre com uma injeção. Seu Ernesto foi chamado às pressas e prontamente acorreu.
Tirando do estojo sua seringa e agulhas, perfurou a borracha que vedava o vidro com o remédio,
passou álcool nas nádegas da criança, dividiu mentalmente o bumbum em quatro partes,
escolheu uma dele e sapecou a agulha.
Tudo certo, exceto pelo fato de que a febre não cedeu e o menino continuou a definhar no seu
bercinho.
Quando João Fábio voltou, viu, chocado, que algo estava muito errado com seu pequeno Caio.
Sua perninha direita não se movia. Os movimentos eram normais na outra perna, que podia ser
erguida na hora do choro ou dos movimentos espontâneos, mas a perna direita não se
movimentava, permanecendo sempre paralisada.
— Zezé, o que fizeram com esse menino? Alguém esteve aqui cuidando dele? — perguntou
o já experiente farmacêutico.
— Fábio, você não estava aqui. A criança estava com uma febre que não cedia. Então eu
chamei o seu Ernesto. Ele deu uma injeção no menino — respondeu vovó.
João Fábio examinou cuidadosamente o bumbum do filho, constatou a marca da entrada da
agulha e olhou sofrido e grave para esposa, mas sem nenhuma expressão de raiva na face.
— Aleijaram nosso filho — disse com voz solene e cheia de pesar.
Saiu dali andando pesadamente, foi até a varanda e olhou longa e perdidamente para o
deslizar suave do rio Purus, que incansavelmente ondulava suas águas em frente à cidade de
Canutama, naquela quente tarde de março de 1927.
Embora nunca tenha tomado nenhuma providência legal contra seu Ernesto, pois conhecia
bem o homem e sabia que se tratava de pessoa de bem, o Dr. João Fábio estava certo. Caio Fábio
jamais andaria sem muleta, para o resto de sua vida. Caio, em latim, é também bordão, cajado.
Apesar de pesaroso e frustrado com o que acontecera ao menino, vovô cuidou de iniciar um
processo de ajuda a seu filho, sem saber que estava plantando as sementes que fariam dele um
ser humano raro, tanto no seu caráter quanto nas suas percepções da vida.
Não era a primeira vez que vovô experimentava o gosto amargo da dor que o atingia a partir de
uma fatalidade ligada aos filhos, porém o caso de meu pai tornou-se muito forte para ele. Talvez
isto se explique pelo fato de que as mortes de Luís Ricardo, Edgar e José tenham-no deixado com
a violenta angústia da perda, mas sem o peso da responsabilidade de criar um filho deficiente.
Os três meninos morreram, e ele chorou e sofreu suas mortes. Mas com Cainho era
diferente. Ele estava ali, debilitado e irremediavelmente aleijado, tendo diante de si um mundo
que meu avô percebia que seria cada vez mais competitivo e que não ofereceria ajuda a quem não
pudesse se virar sozinho.
Aquela foi a gota d’água final na decisão de mudar de Canutama para Manaus. Ele precisava
oferecer aos filhos uma boa chance de se prepararem para os avanços deste século, que estava
apenas começando.
Em 1931 a mudança finalmente foi efetivada.
Na capital, a família foi morar num sobrado na rua Sete de Setembro, bem no centro da
cidade. No andar inferior da casa, o Dr. Fábio tinha a sua farmácia, aberta a quem pudesse e a
quem não pudesse pagar o remédio de que necessitava.
Pelo fato de estar sempre preocupado com o bem-estar dos muitos que dele se acercavam,
vovô resolveu tentar ampliar seus horizontes. Assim, entrou para a faculdade de direito e
formou-se já bem maduro, decidindo, em seguida, enveredar pela carreira política.
Tendo sido eleito deputado estadual mais de uma vez e também presidente da Assembléia
Legislativa do Estado, além de prefeito de Manaus, acabou algumas vezes na posição de
governador em exercício, situação que muito orgulhava a família, especialmente Zezé, que casara
com um menino pobre e que agora o via alçado a posições dantes inimagináveis para os membros
de sua “francesa família baiana”.
Por ser homem inegavelmente honesto, o Dr. João Fábio passou pela política sem nenhuma
alteração no modo como mantinha sua família e saiu da política vivendo com os mesmos
limitados recursos com os quais gerira sua vida até então.
A riqueza que ele escolheu não sofre inflação e nem pode ser roubada, pois é aquela que mais
e mais cresce quanto mais e mais é compartilhada.
Capítulo 3

“A leitura mudou meus sentimentos. Alterou minhas preces, ó Senhor, para que
fossem dirigidas a Ti mesmo. Os livros me deram valores e prioridades diferentes.
De repente, toda a esperança vã se tornou vazia para mim e eu ansiava pela
imortalidade da sabedoria com um ardor incrível em meu coração.”

Santo Agostinho, Confissões

A vida na rua Sete de Setembro era divertida, porém muito apertada em seus espaços. A
diversão dos meninos Renato, Carlos, Caio e Augusto, bem como dos filhos de criação que vovô
sempre mantinha de quebra, era jogar bolinha de gude com esferas de aço arrancadas de
rodinhas de rolimã, ou simplesmente acompanhar o movimento da rua, tentando tirar proveito de
tudo o que de engraçado pudesse acontecer na calçada: um rosto excessivamente feio, um par de
pernas femininas desmesuradamente bonitas, um corpo lindo de alguma garota que, quando
vista de frente, assustava pelo rosto desencontrado, fazendo o antiqüíssimo gênero Raimunda, ou
o escorregão de algum rapaz que, ao tentar passar na frente do bonde, tropeçava no trilho e
espalhava-se sobre o paralelepípedo. Outras vezes, ainda, eles também davam gostosas
gargalhadas diante de certos velhos assanhados, que não sossegavam ante a contemplação da
juventude sedutora de alguma menina recém-entrada na idade adulta. Enfim, a televisão era a
vida e suas múltiplas possibilidades de graça e desgraça.
Mas esta interatividade entre o balcão do sobrado — onde os meninos ficavam fazendo suas
gozações — e a calçada podia ser perigosa, pois vovô Fábio era rigorosíssimo quanto ao
tratamento que esperava que seus filhos dispensassem aos que passavam em frente à sua casa.
Ele não podia admitir gracinhas, gozações, galanteios, gargalhadas e outras expressões juvenis da
garotada quando percebia que isso podia constranger os transeuntes.
Não que ele mesmo não risse, tempos depois, das coisas que ali aconteciam. Mas no
momento em que de fato ocorriam, ele sempre pensava que as brincadeiras de seus filhos
poderiam causar incômodos irreparáveis para seus clientes ou gerar constrangimentos às
pessoas, o que, para ele, era algo imperdoável. Por isto, não foram raras as vezes em que a
meninada entrou no cinturão quando flagrada em algum desses atos de humorismo de calçada,
em meio a risos ou simples expressões de um prazer que delatavam alguma armação recente.
Foi duro criar todos aqueles filhos, cheios de energia, presos naquele sobrado. Além disso,
havia as visitas constantes dos que vinham de Nova Vista, ainda procurando o filho de seu
Araujinho, que nunca se furtava a hospedar quem quer que necessitasse e jamais se negava a
tratar de graça a todo aquele que, com dor ou desconforto físico, o buscava solicitando alguma
ajuda. Por isto mesmo, Zezé convenceu o marido a procurar um lugar mais distante, ainda que
dentro da área metropolitana da cidade de Manaus, onde eles pudessem arranjar uma casa com
quintal e espaço suficiente para que os filhos pudessem se distrair sem criar embaraços para o
pai.
Foi assim que encontraram um lugar que havia sido um hospital no fim do século passado e
que agora estava à venda. Era uma imensa propriedade no Alto de Nazaré. O bonde chegava lá e
os primeiros ônibus em circulação também faziam ali a sua volta de retorno ao centro da cidade.
O casarão ia de um quarteirão ao outro. Tinha frente para a rua Japurá e ia até a rua Apurinã.
Era um prédio bonito, que crescia em estilo quase piramidal, iniciando com um térreo construído
sobre grandes arcos, amarrados por longos e belos trilhos de ferro, formando um ambiente
fascinante para quem quer que tivesse imaginação.
Sobre aquele andar térreo, a casa se espalhava num segundo nível, formado por salas
enormes e quartos do tamanho de enfermarias de hospital, com janelas longas das quais saíam
varandas de ferro. A cozinha também ficava no segundo piso. Era imensa e ao final dela, subia
mais uma torre, que também funcionava como chaminé.
Havia dois acessos para os andares superiores, que se tornavam cada vez menores, à medida
que a pirâmide ia afinando para o mirante, no quinto e minúsculo aposento, projetado para fora
do telhado e com janelas para os quatro cantos da casa. A vista do mirante era soberba para a
época, visto que Manaus é uma cidade plana e, naquele tempo, a altura daquela antiga
casa-hospital era algo para ser levado em consideração.
Nos fundos, havia uma escada de ferro que, estreita e espiralada, ia derramando acessos a
todos os andares. Mas no meio do prédio, começando no porão térreo e arqueado, esgueirava-se,
de modo artisticamente sinuoso, uma das mais encantadoras e bem torneadas escadas de
madeira que alguém poderia desejar ter dentro de casa.
No casarão da Japurá a moçada dos Araújos espalhou-se na vida. Ali, eles fizeram
camaradagem com inúmeros meninos e meninas, que acabaram se tornando seus amigos na vida
e na morte. Os garotos subiam nas árvores do quintal e comiam mangas, jenipapos, graviolas,
pitombas, pitangas, abiu, ata, biribá e ainda derrubavam coco e bebiam sua água quando estavam
com sede. Era o paraíso.
Foi ali também que eles organizaram peladas de futebol em que colocavam Cainho no gol,
defendendo a pequena área com sua muleta pesada. A disputa era saber quem o teria de seu lado,
pois a vantagem de quem ficasse com seu passe era incomparável.
O garoto da muleta ficava plantado na frente do gol, abanando sua perna de pau no ar e
convidando os adversários para virem fazer gol dentro de sua área.
— Venham, seus medrosos. Invadam minha área. Tentem meter a bola por debaixo de
minhas pernas. Será que vocês não se garantem? — ele gritava com euforia.
Sempre que alguém se irritava com suas impertinentes provocações e resolvia invadir a área
driblando para fazer um gol em vez de chutar de longe, geralmente se afastava reclamando das
muletadas que recebia nas canelas ou até mesmo na cabeça.
— Deixem o Caio brincar. Não percam a paciência com ele e nem o deixem fora de qualquer
competição — dizia vovô Fábio.
Por esta razão, os irmãos mais velhos, especialmente Carlos Fábio, a quem Cainho era mais
chegado, sempre o incluíam em todos os programas, até mesmo em algumas brigas de rua.
Certa vez eles se estranharam com uns garotos que moravam na baixada da rua Apurinã, uma
cavidade impressionante, na qual moravam várias famílias, pois como havia água em abundância
ali, era muito fácil cavar uma cacimba e abastecer a casa com água fresca e gratuita.
A “turma do buraco” se encrespou com os Araújos e eles saíram no tapa. No meio da briga,
papai, na época com dez anos de idade, estava tranqüilamente sentado na varanda de nossa casa
quando viu chegando seu irmão Carlos Fábio com um menino na gravata, gritando: “Cainho, toca
tua muleta na cabeça desse desgraçado antes que ele escape da minha gravata.” Papai pegou a
muleta e sapecou-a com tanta força na cabeça do menino, que a briga acabou na hora.
A infância para meu pai não foi exatamente fácil, mas não chegou a ser difícil. Ele fora
abençoado não só com um pai humano e sensível, mas com uma mãe meiga e, ao mesmo tempo,
enérgica. Dona Maria Josefina de Araújo não dava descanso aos filhos. O compromisso que ela e o
marido tinham era o de dar a cada filho, incluindo as meninas, a possibilidade de concluírem um
curso superior. Dinheiro eles não deixariam, mas cultura era um bem imprescindível, na visão
deles. Por isto, aquela mulher franzina, de cabelos loiros e olhos azuis, não cansava de
interromper os melhores momentos de diversão dos filhos para botar todo mundo para estudar.
Talvez a marca mais expressiva da vida no casarão-hospital da rua Japurá tenha sido o espírito
social e comunitário da vida em família. Tal como havia sido no interior, João Fábio não cessava
de se solidarizar com as pessoas que agora o procuravam na cidade. Não apenas remédios, que ele
tirava de seu negócio, enfraquecendo-o cada vez mais, mas também comida e moradia eram
oferendas permanentes que fazia aos necessitados que o procuravam.
A vida na casa era uma experiência absolutamente fascinante e, às vezes, constrangedora. A
fascinação ficava por conta da multiformidade de relacionamentos e amizades que aquele
rebuliço social propiciava a todos. Os constrangimentos tinham a ver com a escassez de tudo,
especialmente de comida, pois quando a casa estava vazia, moravam ali cerca de quarenta
pessoas. Nos momentos de pique, chegaram a residir com os Araújos cerca de cento e cinqüenta
almas, todas mais pobres do que eles, vidas, aliás, para as quais sua existência era sombra, água,
luz, pão, saúde e esperança.
Não foram raras as vezes em que Zezé teve de cortar as bananas em dezenas de rodelas e
oferecê-las com farinha. Cada um podia tirar apenas uma rodelinha. O trauma dessa experiência
foi tão grande, que meu pai disse que quando ganhou seu primeiro salário, a coisa mais urgente
que fez foi comprar uma penca de bananas e tentar comê-la sozinho.
Entre as muitas histórias daquele período há uma que bem define a dificuldade dos membros
da família em se sentirem totalmente à vontade em casa. Dizem que, numa certa tarde, o Dr.
Fábio estava fazendo curativos nas feridas de um caboclo que estava em sua casa buscando alívio,
quando, no meio do atendimento, sentiu uma irresistível vontade de soltar gases. Controlou-se o
quanto pôde, mas percebendo que não dava mais para segurar, pediu licença e procurou a sala ao
lado, não sem antes avisar ao paciente que não saísse da cama. O Dr. Fábio andou devagar, abriu
as pernas e soltou um enorme pum. Subitamente, ouviu uma voz atrás de si, cheia de
perplexidade, quase como se os anjos tivessem sido flagrados no toalete.
— E dotô também peida? — indagou o irrequieto caboclo.
Vovô virou-se para ele, tomado de estranho prazer ante a infantil pergunta do paciente.
— Se peida? Ora, os doutores são os que mais peidam neste mundo — respondeu.
Mas embora a vida dos Araújos fosse marcada sobretudo pelo estudo, Caio Fábio, meu pai,
não pôde ir à escola como todos os outros. Até os oitos anos, arrastou-se pelo chão da casa.
Naquele tempo, a muleta ainda não lhe estava disponível, pois era feita de madeira extremamente
pesada e ele não tinha força nos braços para usá-la a contento e com segurança. Por isto, vovó
Zezé tentava ajudá-lo o melhor que podia, fazendo-se de janela entre meu pai e o mundo, uma
janela tão ampla que permitisse que as dores e alegrias que existiam fora dos portões do casarão
da Japurá pudessem ser percebidas, avaliadas e sentidas. Aos 11 anos, finalmente a muleta deixou
de ser pesada demais para ele, assim, o caminho para o Colégio Barão do Rio Branco foi aberto
para o menino. Depois de um tempo, ele foi transferido para o Colégio Dom Bosco, o que o
forçava a fazer um percurso de seis quilômetros de ida e volta.
Como papai chegou à escola um pouco fora da idade, sua maior dificuldade foi ter de lidar
com a estupidez de certos mestres, que perdiam a paciência quando viam meninos mais novos
sabendo mais que ele e, em vez de procurarem saber o que havia acontecido, simplesmente
diziam: “Menino, é impressionante como você é burro. Será que não tem vergonha de saber
menos do que esses outros colegas que são menores que você?”
Ora, aquelas perversas observações poderiam ter tido um poder terrivelmente devastador
para ele. Entretanto, o efeito foi o oposto. Caio decidiu que nunca mais na vida ouviria nada igual.
Como ele não poderia ser o melhor nas aptidões físicas, seria o mais destacado na área
intelectual. Assim que adquiriu um pouco mais de desenvoltura na leitura e nos básicos da
aritmética, nunca mais deixou de ser o primeiro de qualquer turma, para o resto de sua vida.
As marcas mais preponderantes da personalidade de papai foram perseverança e
autoconfiança. Vovô sempre dizia a ele: “Meu filho, não há nada neste mundo que você não possa
fazer. Nunca deixe que nenhum limite tire de você a ambição da auto-superação.”
Foi por isto que papai se destacou em tudo o que pôde competir de igual para igual e se
superou em tudo aquilo que os outros consideravam ser para ele uma impossibilidade.
Aprendeu a nadar, a cavalgar, a subir em árvores, a lutar lutas de chão — especialmente se
utilizando dos rudimentos do jiu-jítsu, recém-trazido para o Amazonas por alguns curiosos — e,
sobretudo, aprendeu a dirigir qualquer coisa, mesmo sem a adaptação do veículo à sua condição
de aleijado, o que era uma verdadeira façanha para um rapaz sem qualquer movimento na perna
direita.
Para ele, o desafio mais difícil talvez estivesse na área do relacionamento com o sexo oposto. A
preocupação de seu pai era como Caio se relacionaria com as meninas. Desejoso que não se
frustrasse, vovô Fábio dizia-lhe que quando o verdadeiro amor chega, as deficiências se
transformam todas em virtudes. Mas o jovem Caio Fábio não parecia precisar desse
condicionamento psicológico para se afirmar em relação às beldades de seus dias.
Às vezes, quando ia da escola para casa, andando sob o sol causticante do eterno verão do
Amazonas, arrastando-se ao embalo de sua pesada muleta, ele via as meninas se juntarem sobre o
estreito espaço das janelas dos velhos casarões erguidos rente à rua, a fim de verem-no passar.
Não foram poucas as ocasiões em que ele lembra de ter chegado perto da janela, e ouvir as
meninas impiedosamente falarem alto, umas para as outras, alguma coisa como: “Puxa, que
pena! Um garoto tão bonitinho, mas aleijado que nem um caranguejo.” Quando ele me contou
isso pela primeira vez, eu perguntei:
— E como é que você se sentia?
Nunca esqueci sua resposta, que muitas vezes me volta à memória, especialmente nos
momentos em que tenho precisado enfrentar a indiscrição ou mesmo a postura preconceituosa
de muitos que passam pelo meu caminho.
— É, menina, você só está dizendo isso porque você não sabe como caranguejo é gostoso.
E foi assim que, de um modo ou outro, ele seguiu dando suas respostas às freqüentes
tentativas que a vida lhe fazia de nele semear as sementes da inferioridade e, assim, roubar-lhe a
chance de escrever sua própria história.
Caio nunca se sentiu em desvantagem diante da vida. Ao contrário, no fundo, no fundo,
achava que Deus dera a ele uma bênção extraordinária, fazendo-o nascer numa família feita de
gente tão humana e intelectualmente perspicaz, como seu pai e sua mãe. Além disso, achava que
sua perna morta era apenas um detalhe em alguém tão inteligente e forte como ele.
Uma boa auto-imagem é a melhor auto-ajuda!
Capítulo 4

“Eu não sabia que o mal não tem existência própria, exceto como privação do
bem, e isto no nível em que o ser não assume o seu papel.”

Santo Agostinho, Confissões

A década de 1930 havia começado e logo cresceram os rumores de que as coisas estavam
feias na Europa. Naquele tempo, a maioria das famílias de Manaus que tinha algum recurso
financeiro enviava seus filhos para estudar na França, na Inglaterra ou em Portugal. Uma vez que
Manaus ficava mesmo muito longe do Rio de Janeiro, os que podiam achavam que, já que de
qualquer modo teriam grandes despesas com a educação dos filhos, era melhor dar a eles a
charmosa chance de aprender outra língua e ainda carregar na bagagem o peso de um curso
superior na Europa.
Por muitos anos, a mentalidade dos manauenses foi profundamente marcada pela nostalgia
da passada era áurea da borracha. Segundo a lenda, no tempo em que a exportação de borracha
trouxera riqueza à região, alguns magnatas locais acendiam seus charutos cubanos com notas de
alguns réis. A narrativas como esta somavam-se outras acerca de como o teatro Amazonas fora
construído com material trazido de navio da Europa e de como prédios inteiros da cidade, como a
Alfândega de Manaus, haviam sido pré-fabricados na Inglaterra e transportados de navio para
aquela orgulhosa cidade cultural, erguida no centro da mais fascinante floresta do planeta.
Os rumores da guerra eram, obviamente, mais que fofoca internacional. A Segunda Guerra
Mundial explodiu, e o mundo inteiro, em maior ou menor escala, foi dramaticamente afetado por
ela, inclusive a vida em Manaus.
Uma das primeiras conseqüências foi que os pais que tinham filhos estudando na Europa
mandaram ordens irrevogáveis no sentido de que a rapaziada — havia ainda poucas moças
estudando fora do país — voltasse para casa. O efeito dessa ação foi que a maioria, em vez de fazer
o caminho de volta à terrinha, preferiu parar no Rio ou, em segunda instância, em São Paulo,
Salvador ou mesmo em Recife, pois as opções de estudo universitário no Amazonas ainda não
eram muitas. Quem quisesse ficar em Manaus precisava se contentar em estudar odontologia,
farmácia, ou direito, sendo a última opção considerada a melhor, uma vez que a Faculdade de
Direito do Amazonas orgulhava-se de já ter formado profissionais que haviam se destacado fora
do estado.
Ora, foi justamente nesta época de guerra e de poucos recursos que vovô Fábio teve de enviar
Renato Fábio e Carlos Fábio para faculdades fora do Amazonas. Renato foi direto para o Rio
estudar química industrial, recém-inaugurada como curso superior no Brasil. Carlos Fábio foi
para Salvador, cidade onde sua mãe, dona Zezé, tinha parentes que poderiam ajudá-lo a enfrentar
as dificuldades inerentes a um curso de medicina, sua mais forte paixão até encontrar Gildélia,
baianinha mimosa, de corpinho mignon, por quem ele caiu de amores e com que veio a casar-se.
As moças da família tinham ficado em Manaus e seus horizontes tinham de caber dentro das
limitadas ofertas da cidade. Assim era a vida para as mulheres naqueles dias.
A grande questão de Fábio e Zezé era decidir que oportunidades dariam aos filhos, já que
com o perigo das viagens de navio naquele tempo de guerra e com as dificuldades financeiras da
família, agravadas pela necessidade de sustentar os rapazes que estudavam fora, ficava difícil
imaginar o envio de mais um dos filhos para longe de casa.
O jovem Caio desejava estudar engenharia civil, curso que ainda não existia em Manaus.
Dona Zezé e o marido ponderaram longamente sobre o que fariam com o filho. Apesar da
deficiência física, Caio parecia ser ávido intelectualmente e com grandes chances de vir a realizar
tudo aquilo que desejasse na vida. Mas como? Não havia dinheiro e eles não queriam sofrer as
angústias de não saber se o filho estaria bem ou não vivendo longe do Amazonas. Além disso, um
fato novo surgiu. Tão logo Renato e Carlos saíram de Manaus para estudar fora, a saúde de João
Fábio começou a mostrar alguma deficiência.
Havia claros sinais de que seu coração não fora fabricado na mesma fôrma na qual o coração
centenário do velho Araujinho tinha sido produzido. João Fábio estava mal. Cansava-se à toa e não
conseguia mais trabalhar com a mesma intensidade. Como conhecia muito bem os sintomas
físicos de sua doença, não tinha a menor dúvida de que não duraria muito. Portanto, a coisa mais
sensata a fazer era arrumar a casa e preparar-se para a morte. Assim sendo, chamou Caio.
— Meu filho, você é forte, apesar de ser aquele entre nós que mais faz força para conseguir
as coisas. Eu não estou bem de saúde e sei que não tenho muito tempo. Você está apenas com 18
anos, mas é com você que eu conto agora para ajudar sua mãe e aqueles que ainda estão sob nossa
dependência. Restam-me apenas os proventos de minhas funções públicas. Fora isso, hoje, nosso
único patrimônio é o seringal do Santo Antônio do Cainaã. Eu preciso que você assuma a
administração de tudo. Mas, para isto, você terá que se sacrificar. Em vez de ir estudar
engenharia civil fora de Manaus, você vai ficar e estudar direito. Você é muito inteligente e pode
ser bom no que quiser. Fique aqui e tome conta dos nossos negócios — disse-lhe.
Papai ainda não podia medir as implicações daquela decisão, mas não tinha a menor dúvida
que alteraria completamente o seu futuro. Mas não havia escolha, e ele sabia disso. Não adiantava
muito trazer o assunto para o plano da meditação ou sugerir a necessidade de mais tempo para
pensar. A resposta tinha de ser imediata e ele sabia que era apenas uma questão de consentir com
o prudente e dolorido veredicto paterno. Quanto ao mais, era torcer para que a existência
conspirasse a seu favor, de algum modo.
— É claro que sim, paizinho. O senhor sabe que pode contar comigo para o que o senhor ou
mamãe vierem a precisar — meu pai respondeu.
O cansado, mais cansado do que velho, João Fábio, foi logo passando tudo para ele: como
funcionava o esquema; quem era de confiança e quem não era; quem pagava e quem jamais
pagava; quem ele sempre atendia e quem eram aqueles para os quais o tratamento tinha de ser
meramente comercial. Ao final daquele rápido curso de gerenciamento de seringal, o rapaz foi
enviado na primeira embarcação disponível que saiu para o alto Purus.
Começaram ali os mais fascinantes e profundos anos de sua juventude. Entregue à solidão
dos rios e imerso em longas e intermináveis leituras e meditações, às vezes ele viajava dez dias
para chegar ao porto, onde ainda precisava apanhar uma canoa para remar mais um dia inteiro até
alcançar o lugar que tinha de visitar e ver como estavam os negócios. Foi ali, naquela paisagem
bucólica, repleta de nostalgia e silêncio, que ele aprendeu o valor de se fazer acompanhar de si
mesmo e de pensamentos que interajam com a vida e com a natureza, sem jamais imaginar que a
ausência de humanos possa significar a ausência de humanidade.
Ele me dizia: “A solidão pode ser excelente companhia quando você gosta de si próprio.”
Durante aqueles meses meu pai teve a chance de perceber como a vida no interior do estado
era miserável. Havia gente morrendo por banalidades, por doenças para as quais já havia cura
disponível na cidade. Além disso, ele ficava chocado com a resignação e passividade das pessoas
daquela região. Era como se houvesse um carma amazônico, bastante parecido com o hindu, que
silenciosamente afirmava para as pessoas que a morte era uma fatalidade contra a qual toda luta
era bobagem, mesmo na juventude.
Ali ele ouvia as mulheres contarem que haviam engravidado vinte vezes e perdido 13 filhos,
como se estivessem apenas contabilizando as vezes em que o time de futebol de sua preferência
tinha perdido a final do campeonato.
E ali ele aprendeu como as grandes questões da existência são reduzidas ao nível da
banalidade quando a vida é feita apenas de farinha de mandioca e água do rio Purus.
Ao retornar à cidade, meu pai percebeu-se extremamente maduro diante das futilidades e
expectativas vazias que norteavam as vidas de muitos de seus companheiros, preocupados apenas
com as pernas de algumas meninas que se davam ao luxo de expor os joelhos ou as coxas roliças e
belas sob as saias ainda não tão curtas, ou ainda com as histórias de alguns candidatos a garanhão
que se jactavam de alguma façanha libidinosa.
Ele, entretanto, não conseguia tirar da cabeça os rostos, as vozes e as histórias radicais, ainda
que estranhamente desapaixonadas, que ouvira no Santo Antônio do Cainaã. O seringal teria
salvado sua vida ou destruído o seu futuro? Mas se alguma coisa estivesse reservada para ele no
amanhã, certamente isso teria relação com a nova maneira de ver a vida que ele aprendera ali,
quase na fronteira do nada.
Era o ano de 1946 e Caio viajava para o seringal nos períodos de férias, ou seja, de dezembro a
março e em julho. Numa dessas viagens ao interior, observou um homem estranho, todo
descascado, de pele avermelhada, que tentava encobrir o rosto quando percebia a aproximação
das pessoas. Achando que o homem estava fugindo da vida, resolveu procurá-lo e indagar o que
estava acontecendo. Para seu espanto, Caio descobriu que o homem estava com lepra, o que
fizera com que a mulher e os filhos o expulsassem de casa. Mas o pobre doente soubera que o
filho do Dr. Fábio estava no seringal e havia vindo perguntar se o jovem poderia levá-lo para o
leprosário de Manaus.
Conversaram longamente e viram que não havia a menor chance de que ele chegasse à capital
pelas vias convencionais, pois nenhum transporte coletivo fluvial ousaria deixar que ele entrasse
para fazer a viagem. Assim, chegaram à triste conclusão que o homem teria de remar sozinho até
Manaus. Caio não tinha a menor idéia se o leproso resistiria à viagem, mas era a única chance.
Caio prometeu que se o homem chegasse vivo, a remoção dele para uma instituição estaria
garantida. Assim, comprou farinha em abundância e levou o pobre leproso até a beira do rio
Purus, onde disse ao homem que com aquela farinha ele poderia fazer chibé e garantir sua
sobrevivência até o porto de Manaus.
Alguns dias depois Caio apanhou um barco para Manaus e em duas semanas estava em casa.
Durante todos aqueles dias e noites havia uma angústia latejando dentro dele. A imagem daquele
homem o perseguia como o fazem os fantasmas, que às vezes povoam nossa consciência em plena
luz do dia.
Dois meses depois, ele estava sentado na varanda da frente do casarão da rua Japurá quando
viu aparecer aquela figura toda coberta de trapos. Como não conseguia discernir a identidade da
pessoa, resolveu descer para ver quem era. Ao atravessar o campinho que separava a larga fachada
arqueada da casa do portão de frente, foi identificando a presença descarnada e semimorta do
leproso de Santo Antônio do Cainaã.
Lágrimas vieram-lhe aos olhos aos borbotões. Seu sentimento de impotência frente ao drama
daquele homem plantara nele as primeiras sementes da descrença religiosa. Se havia um Deus,
como é que Ele consentia que os homens tivessem trajetórias tão desiguais? E que propósito
poderia haver numa existência que acontecia marcada por tão pesados e incuráveis estigmas?
Caio tomou o homem e o levou para os fundos da casa. Deu de comer a ele e providenciou sua
remoção para o leprosário do Aleixo, às margens do rio Solimões, próximo ao ponto onde as águas
dos rios Amazonas e Negro fazem seu majestoso encontro e casamento.
A imagem daquele ser humano nunca mais lhe abandonou a memória. Quando o carro se
afastou, levando o doente para uma lenta e repugnante morte, o jovem Caio ficou pensando que
certamente nunca mais o veria nesta existência, mas que, ao mesmo tempo, nunca mais o
esqueceria nesta vida.
Daquele dia em diante, para ele, a dor humana neste planeta seria essa: não poder se
apropriar de seus amores para sempre e nem conseguir esquecer suas dores, para sempre.
O leproso mudou sua visão do mundo.
Capítulo 5

“Meus estudos, os quais eram considerados respeitáveis, tinham o objetivo de me


levar à distinção como advogado nas cortes de justiça, onde a reputação de um
homem é tão alta quanto seu sucesso na arte de enganar pessoas.”

Santo Agostinho, Confissões

Em 1948, aos 21 anos, meu pai entrou para a Faculdade de Direito do Amazonas, que
funcionava em um prédio construído em estilo europeu. De lá se podia ver perfeitamente o
movimento dos barcos que atracavam no porto. Aquele era um dos lugares mais movimentados
da cidade de Manaus. Eram pessoas entrando aos montes nos “motores de linha”, nome dado aos
barcos de madeira que carregavam um número de pessoas em geral bem superior ao que se
esperaria que uma embarcação daquele tamanho pudesse suportar.
O fato é que os motores saíam apinhados de gente porque a “rede de dormir” era o
instrumento de descanso mais usado pela população. Assim, usando a rede, era possível
“montar” até cinco “andares” de pessoas dormindo umas sobre as outras nos barcos, o que
aumentava não apenas a capacidade de transporte das embarcações, mas principalmente o perigo
da viagem. E não era raro que tragédias acontecessem, com a perda de um extraordinário número
de vidas humanas.
Ali de cima do prédio da faculdade de direito, o universitário Caio podia aprender leis e
filosofia sem jamais esquecer suas obrigações familiares com a gerência do seringal dos Araújos.
O ritual de estudar o ano todo e passar as férias no interior, cuidando dos negócios, permaneceu
até mesmo depois de terminado o curso.
E logo no início de sua experiência na faculdade, Caio viu-se diante de um acontecimento
desastroso, que poderia ter servido de forte desestímulo à conquista de seu espaço no mundo
universitário. Certo dia, ao deixar a classe e dirigir-se à saída principal do prédio, que dava para
uma larga e íngreme escadaria, construída num modesto, porém claramente definido, estilo
romano de fóruns, Caio percebeu que muita gente subia e descia simultaneamente as escadas.
Ele parou, pensou se deveria esperar aliviar o fluxo e, por fim, decidiu correr o risco de descer
sem apoio, vez que não havia qualquer adaptação do ambiente ao deficiente físico.
Começou a descer e percebeu que não haveria nenhum problema. Quando já estava no meio
das escadarias, alguém passou correndo e, sem qualquer cuidado com a fragilidade de seu
equilíbrio, deu-lhe um forte esbarrão. Caio sentiu seu corpo precipitando-se para a frente e
percebeu que não havia meios de impedir a queda. Restava-lhe, apenas, cair da melhor maneira
possível.
— Se cair se tornar inevitável, então que se caia bem — ele viria a me dizer muitos anos
depois, tirando do episódio uma lição prática para a vida.
Largou da muleta e tratou de proteger a cabeça e as partes mais delicadas de seu corpo. Ele
estava acostumado a cair. Caíra a vida toda. Mas não lhe era comum cair em situações que lhe
trouxessem constrangimentos sociais. Nesses contextos, ele se arriscava o mínimo possível. De
repente ele se achou estirado no final da escada, no patamar de pedra que conduzia à calçada da
rua.
O lugar estava cheio de rapazes e moças. E como nessas horas há sempre de tudo um pouco,
uns logo correram para ajudar, outros assumiram aquela posição de assistentes de filme, vendo
tudo, mas sem ação no mundo real, enquanto outros, ainda, deram-se ao luxo de um pequeno riso
de sarcasmo e frieza, denotando uma estranha forma de inveja.
Ali no chão, ele pôde perceber bem as fisionomias de seus colegas. Não ficou ressentido.
Aceitou a ajuda que lhe deram e foi andando devagar, sentindo dores em diferentes partes do
corpo, mas constatando que não lhe havia acontecido nada mais grave, além da vergonha de ter se
esparramado em público, rebolando de alto a baixo das escadarias da faculdade.
No entanto, aquele episódio surtiu um efeito muito positivo sobre ele. Ao invés de se encolher
dentro de um mundo de complexos e inseguranças, sua atitude foi o oposto: decidiu que não
falaria com tom de voz inferior, que jamais deixaria de descer as escadarias, mesmo quando
estivessem eventualmente cheias de gente, e mostraria a todos que um homem pode correr na
vida, apesar de suas próprias pernas.
O tombo trouxe forte motivação ao seu coração e empurrou-o adiante: como sua afirmação
pessoal não podia depender de sua desenvoltura física, ele haveria de se transformar no campeão
de uma outra forma de competência. Nunca teve nota abaixo de nove e terminou o curso com a
melhor média geral da faculdade até aquele ano de sua história.
Aprovado em concurso para procurador de justiça, optou por ir trabalhar em Canutama, onde
nascera. Para ele voltar para o interior era como voltar para casa. Afinal, desde os 18 anos ia pelo
menos duas vezes por ano àquela região para cuidar dos interesses da família no seringal.
Numa daquelas viagens ao interior, no ano de 1951, precisou estender seu caminho até
Borba, a fim de comparecer ao casamento de um amigo, José Reis, que estava se casando com
Raquel, moça de rosto marcadamente amazônico e sorriso aberto. Para o casamento também
havia sido convidada Lacy Campos da Silva, professora recém-formada da escola pública de
Coari.
O casório aconteceu como de costume, com a bênção do sacerdote católico e um arrasta-pé
após a cerimônia. Os Reis eram festeiros e não perdoavam qualquer chance de acender o
candeeiro e deixar a sanfona tocar até o nascer do dia. Como Caio não se sentia à vontade
dançando, pois dificilmente conseguiria manter uma mulher junto à sua pesada muleta sem
correr o risco de machucá-la, resolveu ficar quieto, num dos cantos, trocando um prosa aqui
outra ali, enquanto ria de uma ou outra façanha dos amigos pés-de-valsa, soltos no salão.
Foi daquele ponto de observação que percebeu que havia uma outra pessoa igualmente
afastada dos movimentos da festa. Ela era morena, tinha aproximadamente 24 anos, cabelos
longos e ondulados, e dentes amplos, perceptíveis quando ela sorria — o que, aliás, fazia com
muita graça. Depois de se observarem por um tempo, foram apresentados um ao outro pela noiva,
amiga de ambos, e que sempre nutrira o desejo de vê-los aproximados.
Não deu outra. A química da afinidade foi instantânea. Eles conversaram a noite toda e nunca
mais puderam deixar de se ver. O namoro veio como coisa natural. Não muito tempo depois, Lacy
foi apresentada ao Dr. Fábio, já bem doente, e a dona Zezé, que a acolheram com especial
carinho. O velho farmacêutico, com inamovível vocação para a paternidade, pôde, então, chamar o
filho e dizer-lhe: “Minha última preocupação com você acabou hoje. Eu sempre tive receio de
que você se tornasse tímido no amor em razão de seu defeito físico. Mas agora, vendo você
amando um moça tão boa como essa, sinto-me à vontade para morrer. Deus ouviu minhas
preces.”
Do lado de Lacy, a alegria não era menor. Maria Campos da Silva, mãe da moça, não poderia
estar mais contente, exceto por uma razão: o Dr. Caio Fábio era de família católica, e Lacy, a mãe
e o irmão, Lucilo, eram protestantes. Presbiterianos, mais precisamente.
Naquele tempo ainda havia muito preconceito, de ambos os grupos, um em relação ao outro.
Os católicos chamavam os crentes de bodes e de hereges fanáticos, enquanto os protestantes, por
seu turno, atacavam como podiam: não cessavam jamais de pregar e de fazer fortíssimas
denúncias ao culto às imagens praticado pelos católicos e a muitas outras formas de desvios
bíblicos, conforme a interpretação reformada da fé.
Mas o amor era mais forte do que os dogmas da religião. Por isto, Caio e Lacy fizeram um
pacto de respeito mútuo naquela área e prometeram que não tentariam converter um ao outro.
A história de Lacy era totalmente diferente da de Caio. Ela nascera em uma família muito
mais simples e não pudera ter acesso ao estudo de nível superior, chegando a concluir apenas o
curso clássico, que formava professoras primárias. Sua mãe, Maria Campos da Silva, havia
nascido no interior do Amazonas, em 1898. Do avô, Mariano, e da avó, Mariana, sabia-se muito
pouco, além do fato de que Mariana falecera cedo, quando a filha tinha apenas quatro anos, sendo
seguida pelo marido para a eternidade dois anos depois, o que transformou Maria em uma
criança inteiramente órfã. Não fosse a bondade de uma tia que a criou, a menina certamente teria
tido futuro muito melancólico.
De Firmino, pai de Lacy, nascido em 1881, em Quixadá, Ceará, sabia-se ainda menos. Era
filho de uma mulher que se casara aos 11 anos, chamada Isabel, com um homem bem mais velho,
o seu Deodato. Naquele tempo, esse tipo de casamento de crianças com homens adultos, às vezes
até avançados em idade, era muito freqüente. Como nem sempre era fácil arranjar uma esposa no
interior, era comum que homens respeitáveis do lugar encomendassem o casamento com o pai
de uma menina, às vezes ainda bebê. É possível que esse tenha sido o caso.
Maria era uma mulher muito interessante. Não tendo nenhum antecedente protestante na
família, sozinha e até contra a opinião de amigos e vizinhos, decidiu, aos 35 anos, converter-se à fé
calvinista, tornando-se presbiteriana. Mesmo não tendo estudado além do terceiro ano primário,
desenvolveu uma certa capacidade autodidata, especialmente depois que seu amor pela leitura da
Bíblia se manifestou.
Mas suas maiores sensibilidades eram-lhe absolutamente inerentes. As mais
impressionantes eram o seu amor pela natureza e a sua fantástica capacidade olfativa. Para
ilustrar seu fascínio pelas belezas da criação, basta dizer que ela acordava cedo todos os dias, por
volta das quatro horas da manhã, lia a Bíblia, fazia orações e, depois, punha-se à janela da casa,
quieta, meditativa, esperando o sol nascer. Para ela, aquele era o momento mais bonito do dia e
quem quer que o perdesse havia desprezado a primavera da luz natural, o que lhe parecia
incompreensível.
Entretanto, o que mais impressionava em Maria era sua capacidade de discernir cheiros,
aromas, fragrâncias e odores. Quando entrava num lugar, ela não apenas sentia o cheiro
característico daquele ambiente, mas também sabia que odores, reunidos, resultavam naquele
sentir olfativo específico. Não era raro ela dizer: “Hum! Essa moça que acabou de passar
misturou talco com pomada Minâncora e, ainda por cima, colocou Leite de Rosas com um outro
perfume no corpo. Tá cheirando a sovaco de rico.” Ela também podia entrar num quintal,
inspirar os odores na entrada e, mesmo sem ver o que lá havia, simplesmente observar: “Que
maravilha! As mangas-rosa e os jenipapos estão maduros. Que delícia!”
Maria tinha uma maneira quase litúrgica de se relacionar com os cheiros. Uma das coisas
mais rotineiras que ela fazia era varrer as folhas secas do quintal e jogá-las num buraco que ela
mantinha sempre aberto. Uma vez feito isso, tocava fogo nas folhas e sentava-se de longe para
inspirar o cheiro que exalava da fogueira, dizendo: “Que coisa gostosa, cheiro de folha queimada.
Tem cheiro do quintal de minha tia.” Para ela, aquele ato tinha dimensões espirituais. A fumaça
era como um incenso de aroma suave, que subia às narinas divinas e dava a Deus um imenso
prazer pela gratidão da memória de Maria, ao pôr-do-sol de mais um dia em sua vida.
Essa mulher de hábitos fortes casou-se com Firmino em 1924. Mas naquela época, no
interior do Amazonas, paixão e amor ainda eram coisas secundárias quando se tratava de decidir
um vínculo conjugal. E a união de Maria e Firmino resultou em um relacionamento muito difícil.
Firmino crescera órfão e vivera como homem livre de padrões morais definidos. Sendo
foguista de embarcações a vapor, não parava em casa. Às vezes ficava cinco ou seis meses sem
aparecer. E nos portos onde parava, sempre se agarrava a alguma saia.
Dizem que ele tinha um apetite sexual medonho. As mulheres que se lhe mostravam
disponíveis eram imediatamente usadas, e aquelas que não estavam assim tão “à mão” eram
muitas vezes seduzidas por sua lábia cearense. O fato é que ele teve de arcar com as
conseqüências de ações tão libertinas. Tendo conhecido tantas caboclas diferentes e se atolado
em tantos seios, cabelos e corpos, cheio de tamanha avidez, acabou por encontrar ali não apenas o
prazer, mas, sobretudo, a dor e a morte. Naquele tempo, a gonorréia matava, ou debilitava tanto,
que levava lentamente à morte.
Depois de muito se expor às doenças venéreas, acabou em casa e doente, tendo de conviver,
dia a dia, com o poder dos prazeres amaldiçoados, que o tomaram pela mão até o silêncio da
última e eterna viagem.
Ainda hoje eu me lembro dela contando como havia cuidado do marido até o fim, embora
tivesse avisado que ele jamais voltaria a tocá-la com aquelas “mãos sujas de pegar em tanta
mulher”.
Foi com esse pano de fundo que Lacy entrou na vida de Caio, e por mais que ela lutasse
contra a idéia, sofria de um certo complexo de inferioridade em relação à família dele. Some-se,
ainda, a isso tudo, a própria mentalidade protestante da época, tomada por profundo complexo de
perseguição. Para Lacy, era difícil construir uma ponte para fora de seu pequeno mundo, uma
ponte que a transportasse para um espaço, bem maior em suas ramificações, vínculos e
oportunidades.
Por fim, em 2 de maio de 1953, Caio e Lacy casaram-se em regime de comunhão de bens,
mas sem a bênção religiosa, pois nenhum dos dois conseguiu convencer suas famílias a consentir
com o casamento na igreja do outro. Após o casamento, arrumaram suas trouxas e partiram para
Canutama, onde Caio exercia a função de promotor de justiça do estado, e onde Lacy passou a
lecionar no grupo escolar.
Em agosto daquele mesmo ano os dois começaram a se preparar para notícias de desalento.
Em Manaus, os membros da família já começavam a reunir-se em torno do leito de Dr. João
Fábio, que, irreversivelmente, começava a morrer.
Capítulo 6

“Hoje tenho mais pena de uma pessoa que se regozija no mau do que daquele que
tem o sentimento de ter sofrido ao ser impedido de participar em prazer pernicioso
ou como tendo perdido uma fonte de felicidade miserável.”

Santo Agostinho, Confissões

João Fábio de Araújo morreu em profunda agonia. Não conseguindo mais respirar, atacado
que estava há muitos anos por deficiências respiratórias gravíssimas resultantes de um mal
cardíaco à época incurável, veio a falecer em grande ansiedade. Seu sofrimento foi bárbaro. O ar
não lhe chegava ao peito, e ele pedia a Deus que o aliviasse das infernais sufocações que o
desesperavam. Entre os filhos e amigos presentes o clima era de dor e perplexidade. Como Deus
podia deixar sofrer tanto um ser humano que na vida não fizera nada além de dedicar-se, inteira e
apaixonadamente, à causa dos pobres e órfãos? Que propósito teria Deus em tudo aquilo? Ou
ainda — como era o caso das questões de Caio Fábio — que Deus era esse (se é que havia
algum), que consentia com dor tão estúpida e sem sentido?
Às nove horas da manhã, do dia 11 de setembro de 1953, João Fábio partiu para o eterno. O
espírito daquele dia de luto foi expresso por Arthur Virgílio em seu artigo João Fábio de Araújo,
bondosa figura de lidador, escrito em 18 de setembro e publicado em 27 do mesmo mês no maior
periódico da época em Manaus, O Jornal do Comércio.
O povo acompanhou a pé o enterro de vovô e levou-o até o cemitério, onde o sepultou na
mesma cova em que, no ano de 1931, ele próprio enterrara seu filho Luís Ricardo.
Ainda hoje João Fábio vive em todos nós, que dele descendemos, pois mesmo não chegando a
conhecê-lo no chão deste planeta, nunca consegui me livrar da ética que ele praticou. De meus
anos de criança, não me ficou a impressão de que meus tios e parentes fossem pessoas que
dessem muita ênfase ao certo ou errado. O que minha memória registrou foram frases que se
faziam constantes nos lábios de todos eles, frases que apontavam numa direção para muito além
da moral. “Ele é um homem humano”; ou ainda: “Isto não é humano”, era o que diziam com
freqüência quando emitiam seus “juízos de valores”.
As histórias de vovô me ensinaram que “ser humano” é muito “mais certo” do que “ser
correto” . Às vezes, ao contrário, para ser humano, é até preciso ser “incorreto” com relação aos
chamados “conteúdos do comportamento preestabelecido”. Para ser humano, mais que
freqüentemente é necessário viver onde o risco de não ser compreendido sempre se faz presente.
A “ética do humano” tem como referência padrões que não se escrevem em códigos de
conduta estudáveis, vez que são valores que brotam de intuições do amor e da solidariedade e,
nesse nível da existência, o que menos importa é a média dos comportamentos aceitáveis. Neste
caso, o que prevalece é a disposição do coração de enfrentar o mundo inteiro somente para não
negar um sentimento ou uma intuição, seja em favor de alguém ou de uma simples idéia.
Caio e Lacy continuaram em Canutama por mais dois anos. O tempo passava calmo, porém
tedioso, até que em julho de 1954 Lacy ficou grávida de seu primeiro filho, razão pela qual, no
início de 1955, resolveram voltar a Manaus.
Eu nasci em 15 de março de 1955, na Santa Casa de Misericórdia de Manaus, às cinco horas
da tarde de uma terça-feira.
No mesmo dia jorrou petróleo em Nova Olinda, no rio Madeira, quase na sua confluência
com o rio Amazonas, o que fez com que meu pai saísse do hospital gabando-se de que na sua casa
havia brotado algo igualmente precioso.
Papai e mamãe já estavam decididos quanto ao nome que eu deveria ter. Tiveram dúvida, no
início, se me chamariam Hugo ou Caio, mas como naquela época era comum dar o nome do pai
ao primogênito, optaram por Caio mesmo. Além disso, eles gostavam do significado latino do
nome: bordão, cajado ou alegria. E, assim, me registraram com esse nome, que na infância me
trouxe inúmeros problemas e que se tornou a razão de vários complexos que tive de vencer no
início da adolescência.
Passado o resguardo de mamãe, fomos juntos para Canutama. Lá, além de dedicar-se ao
trabalho como servidor da justiça, papai investiu tempo numa nova arte: a marcenaria. Começou
a fazer com as próprias mãos o meu berço, bem como os demais móveis da casa. A mesmice e o
tédio do lugar permitiam que meus pais se devotassem inteiramente a mim, o que eles
precisariam fazer de qualquer forma, pois logo comecei a dar muito trabalho. Aos seis meses tive
uma coqueluche tão forte, que eles pensaram que eu fosse morrer. Perdia o ar por longos
minutos e ficava arroxeado a ponto de minha mãe, às vezes, pensar que eu não fosse voltar da
crise. Por causa disso, e de uma nova posição que papai conquistara como subprocurador geral do
estado, eles decidiram voltar para Manaus de vez.
A coqueluche se foi, mas a mania de chorar ficou. Todos que me conheceram nos primeiros
anos de vida dizem que fui um grande chorão. Além disso, sofria de uma fome insaciável e,
enquanto não era atendido nos meus clamores por comida, não deixava ninguém em paz. E a
gritaria começava muito cedo, às quatro da matina, quando desferia os primeiros berros,
machucando os ouvidos de todos, até dos vizinhos, que às vezes vinham se oferecer para me
segurar enquanto minha mãe fazia o mingau.
— Gagau, gagau — eu gritava, desesperado, até me trazerem a papa das quatro da manhã.
Em 1957, papai decidiu deixar o serviço público, abandonando, contra a opinião geral, a
posição que conquistara no estado, a fim de abrir seu próprio escritório de advocacia em Manaus.
Sua pequena iniciativa vingou e três anos depois ele já começava a ser visto como um dos mais
promissores nomes da profissão. Mas ele era ambicioso e não se contentou apenas com os ganhos
que o exercício do advocacia lhe rendiam.
Em 1958, criou a Colimpa S.A., uma sociedade de sete pessoas, mínimo permitido pela lei
para uma sociedade anônima naqueles dias. Ele e o político, que entraria para sempre para a
história do Amazonas, Gilberto Mestrinho, eram os acionistas majoritários, ainda que,
legalmente, o último fosse representado por Antônio Lindoso, cujo irmão, José Lindoso, anos
depois, durante a ditadura militar, viria a ser governador do estado.
A companhia explorava ouro na região de Parauari e seu Adriano, um negro de Barbados que
descobrira a jazida, era quem entrava na mata para buscar a preciosidade.
Dois anos depois, em companhia de alguns amigos, papai abriria a Compaina, que explorava
borracha e castanha na região do rio Novo Aripuanã. No mesmo ano, o então governador Gilberto
Mestrinho nomeou-o diretor comercial da Papel Amazon, empresa de capital misto, estadual e
federal.
Enquanto isso, ele seguia usando sua crescente influência política para aumentar seu capital
relacional como advogado, uma vez que, logo no início, percebeu que saber “quem é quem”
constitui capital que poucos conseguem adquirir e menos ainda conseguem usar bem. E isso ele
sabia fazer muito eficientemente e em proveito próprio, é claro.
Capítulo 7

“Eu estava sem qualquer desejo por alimento incorruptível, não porque eu
estivesse repleto dele. Ao contrário, quanto mais vazio dele eu estava, mais
desagradável ao paladar tal alimento se me tornava.”

Santo Agostinho, Confissões

Papai e mamãe compraram um terreno nos fundos da casa de vovó Zezé e construíram ali a
nossa primeira casa. Os dois quintais se encontravam e formavam um só. Para mim, as
lembranças daquele tempo são repletas de imagens mágicas. O quintal era o mesmo do tempo da
infância de meu pai e as mudanças no ambiente não tinham sido muitas.
Naquele pedaço de chão havia tudo que as crianças pudessem desejar para mergulhar no
mundo da imaginação. Além dos primos que viviam no casarão da vovó Zezé, havia ainda os filhos
dos vizinhos, que pulavam o muro e se perdiam em aventuras que iam de Tarzan a Ivanhoé, do
Zorro ao Fantasma e de Robin Hood a Hércules.
Naquele mesmo período, manifestou-se o início da veneração que eu teria por meu pai.
— Bambio, papai, tum-tum, bobó — era como eu pedia todos os fins de tarde para ele me
fazer montar em sua costa (tum-tum) e me levar até a casa da vovó Zezé (bobó).
A fascinação que ele exercia sobre mim tinha a ver com sua infindável paciência para brincar
de luta comigo, sempre fazendo de conta que eu ganhava, ou com a repetição incansável de
malabarismos, quando eu subia nele e me sentia um trapezista fazendo peripécias nas alturas.
— Onde você pensa que vai, menino? — perguntava mamãe de propósito, sempre que me via
com um monte de processos legais de papai embaixo do braço.
— Vô pu tibunal levá os pocessos po papai — era como eu pagava a paciência que ele me
devotava, com admiração.
Nós, os “filhos do quintal”, éramos um monte de meninos com nomes comuns, mas
marcados pelo segundo nome Fábio. Já as meninas tinham tido a sorte de não ser Fábias. Os
garotos eram João, José, Paulo, eu e meu irmão Luiz. Todos Fábios. As garotas eram Sônia, Ana e
minha irmã Suely.
Tínhamos a sorte de viver naquela terra encantada. A presença de nossas avós também era
forte em nossas vidas, e eu e meus irmãos éramos os únicos com duas de plantão e cheias de
cafuné à nossa disposição. Quando eu queria leite condensado no meio da tarde, bastava ir ao
casarão de dona Zezé. Ela sempre tinha umas latas guardadas para fazer os nossos gostos.
Quando chegava a hora do banho, eu voltava para minha casa, onde Mãe Velhinha, como eu acabei
chamando minha avó Maria, me aguardava para me lavar todinho. Depois do banho, no início da
noite, vinham as músicas e as histórias que ela nos contava.
Mãe Velhinha nos marcou profundamente de modo bom e mau. A parte boa inclui suas
histórias, suas lendas amazônicas, sua capacidade de fazer a gente sentir cheiros, sua insistência
em nos fazer gostar de animais, plantas e cores, especialmente as do amanhecer e as do
pôr-do-sol. A parte ruim tem a ver com sua insistência em nos tirar da cama no melhor do sono,
às cinco da matina, para nos fazer ver o sol nascer.
Além disso, havia também sua chatice de dividir o mundo entre católicos e protestantes,
dizendo sempre que os primeiros estavam irremediavelmente perdidos e os últimos
inevitavelmente salvos. Cansava. Lembro-me de às vezes ouvi-la dizer coisas do tipo: “Que pena
que dona Zezé é católica. Tão boa, mas tão perdida.” Ou ainda: “É, que pena. Teu pai não vai
para o céu. Enquanto ele for católico, não vai mesmo.”
A coisa que mais espanta meus pais é a minha memória infantil. De fato, tenho recordações
de períodos tão longínquos quanto os meus dois anos e meio de idade. Por exemplo, lembro-me,
nitidamente, do primeiro castigo que recebi. Papai havia dito que eu não pegasse em algo, e eu o
desobedeci sistematicamente. Ele, então, me colocou de castigo: eu não poderia sair da sala, do
quarto e da alcova, onde o chão era de cerâmica amarela. Para fora desses limites, o chão era de
cerâmica vermelha. Por isto, a partir daquele momento, eu me sentia em liberdade nos chãos
amarelos e não nos vermelhos.
Recordo-me que, aos cinco anos, senti uma fortíssima vontade de pegar a filha de um vizinho
e sentá-la em meu colo, sem nem saber direito por que razão aquela estranha sensação de
excitamento percorrendo meu corpo. Fiquei ali, na frente da casa deles, sentado, com a menina
no meu colo, até que fomos flagrados. De repente, a mãe dela chegou, nos pegou, gritou, e me
chamou de tarado. Afinal, a garotinha tinha a minha idade, mas a iniciativa tinha sido minha.
Daí em diante, a coisa correu solta. Todos os dias, depois que chegávamos da escola,
enquanto o pessoal da vizinhança fazia a sesta, vivíamos aqueles inocentes momentos de
promiscuidade infantil, atrás das árvores, embaixo dos galinheiros, escondidos no porão da casa
de vovó, ou em qualquer brecha em que coubessem duas crianças brincando de papai e mamãe
ou de médico.
Aquelas “brincadeiras” tomaram proporções enormes em minha mente. Aos sete anos,
passava grande parte do tempo pensando no que poderia fazer para aproveitar novas
oportunidades naquela área. Nossos pais, bem como toda a vizinhança, pareciam absolutamente
inconscientes quanto ao que acontecia a alguns de nós. E mesmo a maioria dos “filhos do
quintal” parecia estar alheia aos jogos de sexo infantil que ali aconteciam.
E como eu me sentia irremediavelmente masculino, não podia nem me imaginar em
qualquer papel, naquelas diversões precoces, em que não estivesse na condição de extremamente
ativo e possuidor.
Mas o quintal e as memórais dos primeiros anos não eram feitos só disso. Para a maioria das
crianças ali, aquele era de fato um mundo inocente e mágico. E não faltavam os ingredientes
necessários ao estímulo da fantasia naquele pedaço de chão.
Doutor Américo era a figura mais exótica que nós todos conhecíamos naquele espaço mítico.
Era alto, magro, costelas expostas a ponto de poderem ser contadas a distância, cabelos negros e
longos, caídos sobre os ombros. O rosto era comprido e os olhos faiscantemente enlouquecidos.
O homem era poeta. Declamava versos de sua própria autoria e não parava de andar nu, exibindo
naturalmente seu longo pênis, à semelhança dos grandes cavalos que pastavam no campinho em
frente ao casarão de vovó Zezé, que também tinham seus membros sexuais pendurados à vista de
todos.
Doutor Américo era o humano mais selvagem que nós todos conhecíamos. Ele era o ponto de
contato entre o animal e a alma. Andava nu, como um bicho, mas caminhava cheio de poesia,
como poucos humanos o faziam. Não me chocava ver a nudez do poeta mais do que a dos cavalos.
Ele também era um ser livre e vivia sua animalidade com melodia insana. A esposa do doutor era
uma mulher de traços notadamente indígenas. Ora, ele nos falava das virtudes femininas dela
com grande poesia.
— Alexandre, o Magno da Macedônia, Sidney Galtama e Iléia Amazônica são os nomes dos
meus filhos. Mas os senhores podem chamar a menina de Mococa — dizia o nosso vizinho
diferente, sempre fazendo alusões gratuitas aos seus três filhos, que viviam entre nós e eram
nossos amigos de fantasia no quintal.
O poeta louco marcou a mente infantil de todos nós. Além do poeta, havia uma jibóia que era
mantida no porão da vovó por um dos muitos “filhos de criação”. Era a cobra do Xico Sobe e
Desce, como a gente chamava aquele menino que mancava de uma perna. Ela cresceu tanto, que
um dia, enquanto Xico dormia numa rede, a bicha enroscou-se nele. O acocho foi tão forte que o
Sobe e Desce teve de sair pelo punho da rede. Xico quase morreu de susto. Então matamos a
danada num ritual dramático, cortando-lhe a cabeça e pondo-a num vidro com álcool.
Lá em casa, no outro extremo do terreno, nós chegamos a ter cavalos, ovelhas, um jacaré e
um macaco, além de araras, periquitos, galinhas e outros bichos, pois papai adorava satisfazer
nossas fantasias selváticas e Mãe Velhinha, mesmo que a contragosto, acabava cuidando da
bicharada.
Nossas noites eram absolutamente extraordinárias. Naquele tempo, não havia televisão em
Manaus. Entretanto, tio Carlos Fábio, o médico, que também residia no casarão, resolveu
dedicar-se ao hobby das filmagens. Assim, comprou uma câmera de cinema amador, um projetor
e montou um estúdio de revelação em preto-e-branco. Ele filmava brincando, brigando, correndo
ou mesmo representando algum papel, e exibia os filmes em noites concorridíssimas, onde nós e
a garotada da vizinhança nos amontoávamos para assistir nossas versões artísticas da vida. Era o
máximo.
Foi ali que fiz meus primeiros discursos.
— Esses tal de Plínio Coelhos são uns, uns, uns,... (ra,ra,ra), uns cabra. Esses tal de Gilberto
é que são bom — dizia eu, imitando os discursos dos comícios que Mãe Velhinha me levava para
ver na praça Quatorze.
O processo de produção e revelação do filme também nos empolgava, especialmente porque
o lugar onde tio Carlos revelava o material era o porão do casarão, onde tinha seu laboratório,
sempre trancado e sob muitas recomendações de que não deveria ser violado.
Lembro-me que na primeira vez que nos foi dado acesso à “sala escura”, entramos nas
pontas dos pés, como se entra num santuário que, em vez de carregar em si o sabor do sagrado,
escondia consigo o mistério do proibido. Todos estávamos calados quando tio Carlos resolveu
contar o segredo da revelação dos filmes, guardado num produto que ficava num vidro largo e
barrigudo. Ele disse solenemente: “Aqui está o líquido da mágica do filme.” E parou olhando para
todos nós. Nossos olhos estavam arregalados de prazer e encanto. E prosseguiu: “Agora se
preparem. Eu vou abrir.” E aí então saiu de dentro daquele vidro o mais terrível cheiro que eu
jamais sentira em todos os meus sete anos de vida. Titio então gritou: “É o peido alemão.”
Todo mundo correu. Alemão, para nós, era símbolo de algo que matava. Nunca me
esquecerei do cheiro.
Nossa fantasia infantil passava, sobretudo, por dentro do grande casarão. Ali, de acordo com
Xico Sobe e Desce e outros mestres da fascinação, moravam visagens, fantasmas e almas
penadas, que haviam morrido no antigo hospital e que voltavam à noite para passear pela casa.
Assim é que nós ouvíamos histórias sem fim de como havia um cômodo no porão que não
deveríamos visitar jamais — coisas do Xico — e de como morava uma velha monstruosa e feia no
mirante do último andar da casa.
A escada de madeira que serpenteava de alto a baixo da casa era o ponto de contato preferido
pelas visagens. Entre o terceiro e o quarto andares, Xico jurava, poderíamos sentir a mão fria de
um fantasma e as correrias incontroláveis das assombrações que por ali se divertiam. E, nesse
ponto, os ratos e o processo de dilatação noturno das madeiras da casa ajudavam a manter os
mitos vivos e próximos de nossa imaginação, intensamente colorida por tons fantasmagóricos.
Viver ali até os dez anos de minha vida foi a maior desgraça e a maior bênção de minha
infância. A desgraça fica por conta da promiscuidade infantil; a bênção, da magia e da fantasia que
semearam em mim o poder da imaginação.
Capítulo 8

“Comida imaginada em sonhos é extremamente parecida com a comida recebida


quando se está acordado; ainda assim, aqueles que dormem, mesmo quando
sonham com deliciosos manjares, não se alimentam, pois estão dormindo.”

Santo Agostinho, Confissões

A vida profissional de meu pai continuava progredindo. Ouvia-se sempre que ele era um
dos homens mais ricos da cidade. Pelo menos essa era a fama. Talvez porque, sendo de família
bastante conhecida no estado por outras razões que não o dinheiro, ele aliava esse legado aos
primeiros sinais de influência e poder. Era jovem, estava em torno dos 34 anos, mas as evidências
de prosperidade e sucesso o acompanhavam. Seus carros importados, luxuosos e únicos na
cidade, faziam com que sua presença fosse notada onde quer que ele estivesse. Além disso, seu
escritório de advocacia crescera e se tornara um dos mais lucrativos. Tudo isso, aliado aos
empreendimentos nos quais ele já estava envolvido, dava a ele essa aura de homem da hora.
Apesar de sua ascensão social, meu pai ainda não parecia ter mudado muito, exceto numa
coisa: na religiosidade. Vivendo conflitos quanto a questões de natureza filosófica e já um tanto
convencido acerca de sua privilegiada inteligência, ele começou a se confessar agnóstico.
Tornar-se ateu era demais para um filho do Dr. Fábio, mas o charme da aparente honestidade
filosófica da confissão agnóstica o seduzia e dava-lhe a sensação de estar no compasso dos
tempos. Quanto ao mais, não apresentava mudanças significativas. Continuava meigo com sua
mãe, amigo da esposa, dedicado e carinhosíssimo com os três filhos, companheiro leal dos irmãos
e crítico contumaz dos métodos de persuasão religiosa de Mãe Velhinha.
Numa coisa, mais do que em qualquer outra, ele continuava absolutamente inalterável: no
seu amor pelas florestas e pelo selvagismo do Amazonas. Eu me recordo claramente que, mesmo
estando cheio de incumbências na capital, papai sempre conseguia arranjar um pretexto para ir
pessoalmente resolver alguns negócios no interior. Nessas ocasiões, ele me colocava a tiracolo,
entrava num “motor” e passava até duas semanas longe da vida urbana.
Para mim, aquelas saídas eram como ter a chance de visitar outro planeta. Talvez as
principais marcas que eu traga na memória daqueles tempos de incursão nos intestinos do
Amazonas tenha a ver com coisas muito simples.
O encontro da águas. Foi ali, na proa daqueles barcos, que eu vi, muitas vezes, as águas do
Negro e do Solimões assumirem seu concubinato natural: não se casam e nem se separam; não
são um e nem conseguem viver sem o outro; não se misturam, mas também não se descolam. E lá
ficava eu, quase sempre ouvindo meu pai declamar de um tamborete, encostado contra a parede
frontal que protegia o comando do barco, a poesia de Quintino Cunha (1875-1943):

“Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este


é o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe
como as saudades com as recordações.
Vê como se separam as águas
que se querem reunir, mas visualmente;
é um coração de quem quer reunir as mágoas
de um passado às aventuras de um presente.
É um simulacro só, que as águas donas
desta terra não seguem curso adverso;
Todos convergem para o Amazonas,
o real rei dos rios do universo.
Para o velho Amazonas, soberano,
que no solo basilio tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
porque, afinal, é filho de um abraço!

Olha esta água, que é negra como tinta;


posta na mão, é alva que dá gosto.
Dá por visto o nanquim com que se pinta
nos olhos a paisagem de um desgosto.
Aquela outra parece amarelada muito,
no entanto, é também limpa, engana.
É direito a virtude quando passa
pela flexível porta da Choupana.
Que profundeza, extraordinária, imensa,
que profundeza, mas que desconforme!
Este navio é uma estrela suspensa
neste céu d’água brutalmente enorme.
Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontrássemos,
Que Amazonas de amor não sairia
de mim, de ti, de nós que nos amamos?

As viagens prosseguiam, aprofundando-se para dentro dos rios e para dentro da alma. Eram
cheiros e encantos que nos seduziam à noite, quando encostávamos na beira do rio e ouvíamos
milhares de grilos e outros insetos com seus ruídos fantásticos e seus odores incríveis, quase de
outra ordem de existência. Os aromas da floresta eram trazidos pelo ar úmido e denso que às
vezes soprava do rio para a mata e, outras vezes, num estranho e breve retorno de vento, da mata
para o rio.
Os cheiros me excitavam de um modo todo especial. Eu não podia dormir quando os odores
variavam muito. Eu os sentia todos. Não raro esse show de variedade de fragrâncias fazia-se
acompanhar por longas e ricas histórias sobre as lendas da região. Eram cobras grandes e
mamíferos cabeludos — a piraíba era o nome mais forte — capazes de engolir um homem, e
espíritos da mata e suas visagens; enfim, era o paraíso para a imaginação.
O que mais me impressionava naquelas viagens era a sensação de encontro com a morte que
eu de vez em quando experimentava, o que acontecia sempre que alguém tinha de se lançar, no
meio da noite, nas águas densamente pretas do Negro ou nas agitadas, povoadíssimas e barrentas
águas do Solimões.
— Dun, dun, dun, dun, trannnnnn. Pun, pô — era como quase sempre a máquina começava a
cantar sua desgraça, dando sinas de que iria parar. Na maioria das vezes, era capim aquático,
descendo o rio como uma ilha flutuante, que se enrolava à hélice. E nem adiantava jogar âncora.
Quase sempre a profundidade do rio era tamanha, que a corda da âncora não chegava ao fundo. A
solução era “voluntariar” alguém para pular e ver do que se tratava.
O duro era que, em geral, essas coisas aconteciam à noite, sempre depois daquela longa
sessão lendária de terror amazônico, quando não faltavam histórias de gente que havia
desaparecido no rio, tragada pelas águas e suas bestas, ou vítimas da conspiração dos espíritos da
mata. Obviamente, o agnóstico do meu pai não acreditava na última parte, mas amava e
reverenciava tudo aquilo como legado cultural.
O certo é que alguém tinha de pular nas águas. Não me esqueço de que, às vezes, enquanto o
voluntário se preparava, alguém contava como aquela ação era perigosa, lembrando a memória de
um “cumpade macho” que sempre fizera aquilo, até o dia em que, pulando, nunca mais voltara
das águas. Eu ficava pensando por que se dizia aquilo justamente na hora em que o pobre
desgraçado do voluntário ia pular na água, no meio do breu. Depois, só bem depois, foi que
percebi que aquilo era parte de um ritual dos homens de coragem que se submetiam a tarefas
como aquela. Todos os que vi pular voltaram, graças a Deus. Mas, para a minha mente de menino
de sete anos, tudo aquilo parecia uma visita à alcova da morte, um flerte com ela, o sentir do seu
cheiro.
De volta a Manaus, eu me sentia como um rei que retornava de conquistas em terras tão
distantes, que nem a melhor imaginação conseguiria descrever. Eu voltava alterado, de peito
estufado, checando meus músculos a todo momento e com a sensação de que os outros meninos
eram uns pobres seres, presos à rotina da rua e do grupo escolar. Meu pai, percebendo isto,
insuflou em minha alma a semente da aventura. Começou a me provocar como podia. Dizia que
eu podia ir aonde eu soubesse chegar e, por isso, com certeza, desse lugar eu saberia voltar. E
dava aulas práticas. Estimulava-me a ir empinar pipa nas ruas e nos quarteirões distantes, aonde
os demais garotos da rua jamais sonhavam em ir.
— Se você souber aonde está indo, saberá sempre o caminho de volta para casa. Quem sabe
aonde a sua casa fica, não tem medo de ir a lugar nenhum na vida — ele dizia. Eu nunca pensei
que ele estivesse plantando em mim uma semente que haveria de me dar uma indescritível
sensação de independência no futuro.
Ele também me dizia, freqüentemente, que eu precisava aprender a lutar contra aquilo que
era maior do que eu. Por isto, nunca me deixava praticar os rudimentos do jiu-jítsu — que tio
Carlos aprendera na Bahia e nos ensinara lá no fundo do quintal — com meninos da minha idade.
— Ganhar de um menino da sua idade e do seu tamanho não é façanha. Quero ver você bater
no Zé Maria, que é bem maior que você — ele sempre dizia.
E ele nos punha para sair no braço, rolar pelo chão, levantar, mandar a mão na cara do outro,
até que um golpe final liquidasse a parada.
Em geral, eu apanhava do meu oponente maior por um mês ou dois, todos os fins de semana,
até que, de repente, e sem que eu sequer entendesse como, dava no cara, e daí em diante, nunca
mais apanhava dele. Naquelas ocasiões, papai parecia estar tomando da pedagogia de sua
deficiência física e aplicando-a num outro contexto, que, no entanto, apontava na mesma direção:
a auto-superação.
Possivelmente, dentre as lições de pedagogia mais marcantes, a que teve maior influência
sobre mim foi a da casinha de compensado. Papai percebeu que Suely e eu estávamos tentando
construir uma casa sob a carroceria de um velho caminhão que estava abandonado num dos
cantos do nosso imenso quintal. Então, aproveitando uma folga na agenda, resolveu revitalizar
suas virtudes de carpinteiro autodidata e construiu para nós uma casinha de sala e quarto, com
uma porta e uma janela na fachada. Quando a obra ficou pronta ele nos apresentou a ela com as
seguintes palavras: “Podem entrar. A casa é de vocês.” Depois me disse: “Entre aí, ame uma
mulher e ame seus filhos.” O eco de suas palavras reboam na minha alma até hoje, e, somente
muitos anos depois, eu fui discernir o peso e o impacto que elas haviam deixado sobre a minha
existência.
Papai comprou um sítio e decidiu que o transformaria no melhor balneário da cidade.
Daquele tempo em diante, nossa opção de lazer era pegar o carro e fazer a longérrima viagem de
15 quilômetros até ao lugar dos igarapés, dos pés de buriti que cresciam nos chavascais e
alagadiços, onde os bichos, de tão inocentes, desfilavam faceiros diante de nós e onde caçar
passou a ser um dos shows do fim de semana não só para os adultos, mas também para alguns
meninos, especialmente para meu primo José Fábio e eu.
Uma das primeiras coisas que papai fez lá foi uma piscina maravilhosa, cavada na areia branca
e fina e forrada nas laterais de madeiras de lei, que nada mais era do que a passagem natural de
uma nascente de água que ele resolvera dar o charme de fazer derramar-se artificialmente de
uma cascata de pedras que ele construíra.
Quando o sábado chegava e nós nos arrumávamos para ir para o sítio, a adrenalina viajava a
mil pelo meu corpo. A primeira coisa que fazíamos era mergulhar na piscina para pegar os sapos
com a mão e jogá-los no igarapé ao lado. Depois, podíamos iniciar a festa. Uma vez ou outra, tio
Carlos gritava lá de cima, da varanda da casa — que, aliás, fora construída sobre um aterro no
estilo de uma pirâmide escalonada em cujo topo a casa ficava. “Ninguém na piscina. Tem cobra.”
E, então, pegava seu rifle e demonstrava a exatidão de sua pontaria, não raras vezes matando a
cobra no primeiro tiro.
Depois de tudo arrumado, saíamos para caçar. Tio Carlos colocava-me no ombro e
entravámos na mata. No início, o meu temor da experiência era visível. Eles diziam que havia
onça, cobra sucuri, porco-do-mato, capivara, anta, quati etc. Para mim, todos eram tão ferozes
como a onça. Portanto, eu experimentava o medo na sua forma mais pura e sedutora.
Um dia, quando eu estava nas costas de tio Carlos para poder atravessar uma zona alagada,
ele ouviu um ruído diferente e pensou que fosse um bicho. Deixando-me sobre um tronco, disse:
“Caiozinho, fica aqui e não se mexe. Não sai daqui. Num tem perigo nenhum. Fica aí.” E foi, na
pontinha dos pés — xhuaá, xhuaá, xuhaá... — era o barulho de suas botas andando bem
devagar, mas cheias de água —, sumindo no alagado. Xhaaaá, longe. E eu ali, sozinho.
Comecei a olhar em volta e a me lembrar das histórias de que a onça era sabida: atraía o
caçador para longe, fazia a volta e atacava pelas costas. Nesse caso, seriam as minhas costas.
Comecei a somatizar o ataque, o dilaceramento de meu braço, meu estômago. Por fim, minha
cabeça sendo arrancada e a bicha me levando para dentro da mata, meu corpo pendendo de sua
boca como um coelho que balançava nos dentes de uma fera. Não agüentei. Saí pela mata na
maior carreira, na mesma direção que tio Carlos tinha entrado. Xhuá, xhuá, xhuá — era a
barulheira de meus movimentos desesperados, no meio do alagado. Só ouvi quando houve um
ruído de agitação animal em debandada. Os bichos do chão corriam no alagadiço e as aves voavam
nervosas de seus abrigos. Tio Carlos veio com ódio e vontade de fazer comigo exatamente o que
eu pensei que a onça faria, pois eu tinha espantado um belo veado que lhe estava quase na mira.
Mas, com o passar do tempo, fui me tornando mais frio. Já não me assustava com tanta
facilidade. No entanto, o receio estava sempre lá, escondido em algum lugar. Uma vez fomos
caçar em outra direção. Era um lugar em que um amigo da família havia dito ter visto mais tucano
do que em qualquer outro em toda a sua vida. Fomos lá. Nunca tinha visto espetáculo mais
fascinante: eram centenas de tucanos, com seus bicos longos e quase surrealistas. O ruído era
incrível. A cena indescritível.
— Mas por que matar tucano? — era minha questão. — Quem comeria isso? — O lugar
deles parecia ser ali, na decoração da mata.
Mas Afonso, o amigo que descobrira o paraíso dos tucanos, pensava diferente:
— Isso é bom de comer que vocês nem sabem! — dizia ele.
Daí a começar o tiroteio foi simples. E foi uma chacina. Mais de trinta caíram no chão. Uns
mortos, outros se debatendo, feridos.
Meu estômago embrulhou. Vi o sangue dos bichinhos e disse para mim mesmo: “Desse
bicho eu não como nem morto.” Aos sete anos, o que eu estava sentindo era o que de mais
próximo eu poderia ter experimentado sobre a idéia de homicídio. Voltei para a casa do sítio
carregando uma nostalgia parecida com uma depressão. Aliás, não apenas eu. Na verdade, parecia
que aquilo não fizera a felicidade de nenhum de nós, e não acrescentara aos caçadores a idéia da
conquista, mas a certeza da estupidez e do despropósito.
Mas, para mim, as idas ao sítio também tinham outra motivação. Um homem do lugar tinha
umas filhas caboclas, e eu, com a malícia do quintal, ensinada pelo Zé Maria, não deixava passar
nenhuma oportunidade que me propiciasse algum tipo de distração com as meninas, desde
“brincadeiras rápidas” até algumas bem mais profundas, sempre vividas na minha matreirice de
levá-las sozinhas para ver “algo maravilhoso” que elas ainda não conheciam.
Criança também sabe fazer o que é mau e, a seu modo, vive suas próprias ambigüidades. Eu
tinha pena dos tucanos, mas não poupava as filhas do caboclo.
As idas ao sítio começaram, entretanto, a ficar marcadas por outro sentimento: a distância de
papai e o silêncio de mamãe.
Capítulo 9

“Para mim era doce amar e ser amado, tanto mais se eu também podia desfrutar do
corpo da amada. Assim, eu poluí a água da primavera da amizade com a podridão
da concupiscência. Em minha excessiva vaidade, eu continuei andando da mesma
forma elegante pela cidade. Corri para o amor, pois era por ele que eu desejava ser
capturado.”

Santo Agostinho, Confissões

Ninguém sabia que o sucesso profissional tinha alterado meu pai mais profundamente que
se poderia imaginar. Já havia sinais de uma certa arrogância nas suas ações. Ele podia variar do
carinho e do afago à brutalidade na correção dos filhos. Mamãe, ele já não tratava do mesmo
modo. Percebia-se um tom sempre muito crítico da parte dele em relação a ela.
Também era possível vê-lo com freqüência perder a paciência com Adriano, o sócio na
exploração de ouro na mina de Parauari. Ele tratava o homem com brutalidade cada vez maior.
— Seu preto burro, estúpido, tacanho. Eu mato você, seu idiota. Como é que você fez uma
cavalice dessas, seu velhaco? — ele dizia brandindo a muleta no ar, com vontade de descê-la na
cabeça do assustado barbadiano, que se defendia e tentava acalmá-lo com seu sotaque arrastado e
português malfalado, trocando sempre o masculino pelo feminino e, por isso mesmo, quase
assinando sua própria sentença de morte sem perceber.
— Caia, não fica zangada, não. Eu não tem culpa, não. Você, Caia, sabe disso. Tem paciência,
Caia — falava Adriano, enquanto papai corria para cima dele, aos berros.
— Seu desgraçado, você fica aí se fazendo de quem não sabe falar português só para ter o
pretexto de me chamar de Caia, seu safado. Não fale português comigo. Eu falo inglês e não
cometo essas barbaridades que você comete, seu burro.
Na hora, dava muito medo. Mas depois, quando eu ficava sozinho, caía na risada. Era cômico.
O que ninguém poderia imaginar era que o Dr. Caio estava apaixonado, e não era por minha
mãe. Mesmo já tendo “pulado a cerca” antes, aquela era a primeira vez que ele resolvia construir
uma casa do outro lado.
Nos primeiros meses — e até durante o primeiro ano —, ninguém sabia, oficialmente. Mas
numa cidade como aquela, e com ele dirigindo aqueles carros tão extravagantes, era impossível
“dar pulinhos de lado”, como ele dizia, sem se auto-incriminar. Mas havia sempre muitos álibis,
desculpas e cúmplices para disfarçar a situação.
No entanto, daquela vez era diferente. A mulher era um pedaço de fêmea, completamente
dentro dos padrões de beleza da época: loira, seios generosos à la Marilyn Monroe, vestidos
apertadíssimos na cinturinha fina, boca larga e lábios carnudos; enfim, bem dentro do modelo
sedutor do fim da década de 50 e início dos anos 60. O nome dela era Simone.
Eles se conheceram através de amigos comuns. A vivência amorosa dela já era profunda.
Tinha duas filhas, de pais diferentes, Silvia, morena e mais calma, e Alma, loira e esfuziante como
a mãe. Dizia-se que Simone já tivera vários outros namorados, o que mamãe, depois que
descobriu tudo, jurava ser verdade, dizendo que se baseava em fatos e em fofocas que vinham de
muitas direções.
O relacionamento deles logo passou do fortuito e descomprometido para o aberto e
apaixonado. Um homem como ele tinha uma dificuldade adicional para ser amante, o que, com
certeza, não estava relacionado à perna defeituosa ou à muleta, mas ao caráter. Isto porque, por
mais que ele quisesse, não conseguia imaginar a si próprio indo à casa daquele pedaço de mulher
somente para possuí-la. Ele se sentia muito mal fazendo assim.
Meu pai achava que, já que aquilo estava acontecendo, embora fosse errado, tinha que ser,
então, o fruto do amor, não apenas da carne. E desesperar-se de amores por aquela mulher, com
seus encantos, charmes, experiências e habilidades na arte da paixão, era tão natural quanto
alguém dizer que comeu ambrosia e gostou.
No princípio, tudo o que havia era desconfiança. Mamãe começou a querer saber por que ele
estava se atrasando sistematicamente para o jantar. Depois, passou a ficar intrigada com o ar de
desconforto que ele demonstrava quando ela ia ao seu escritório sem avisar. Por fim, concluiu
que alguma coisa estava para lá de errada. Quando o telefone tocava e ela atendia, ninguém falava
do outro lado e desligava, para em seguida tocar de novo, papai atender, e então mudar o
semblante para uma expressão inchada, especialmente nos lábios, onde ele jamais conseguira
deixar de revelar alguma coisa que lhe era desconfortável, mediante a “criação” de um biquinho.
— Sim, sim, hum-hum, tá. Vou sim. Espere. Não. É. Então tá. Certo. Até logo — era mais ou
menos como a coisa se mostrava para quem estava do lado de cá, ouvindo aquelas conversas dele
com “ninguém”.
A confirmação veio apenas quando ele não tinha mais como e nem por que deixar de admitir a
verdade. Havia dor em seu olhar quando reconheceu que já estava tendo uma “amante” — era
assim que se dizia naqueles dias — há algum tempo.
Mamãe queria saber o que toda mulher quer saber: “Por quê?” E mais: “É coisa do coração
ou é só desejo carnal?” Ele respondeu com objetividade, como sempre. Era coisa da alma e da
carne, era forte, e ele não tinha como parar. Entretanto, a razão de ter estado aberto àquela
situação, ele mesmo não sabia responder. Não sabia e achava que coisas assim não aconteciam,
necessariamente, porque o relacionamento estivesse fracassado com o cônjuge. Às vezes, eram
apenas armadilhas do coração, sempre absolutamente ignorante de si mesmo e freqüentemente
ansioso por amar de modo enlouquecido.
Mas para minha mãe, aquilo era apenas conversa fiada e, mesmo que ela não conseguisse
dizer dessa forma, achava que aquilo era pura sem-vergonhice.
— Ainda bem que o Doutor Fábio já morreu para não ter que ver você desonrar o nome dele
desse jeito! Mas a dona Zezé vai sofrer muito quando souber — disse mamãe, acreditando, no
fundo, que a imagem quase onipresente do falecido João Fábio ainda poderia funcionar como
consciência familiar.
Não adiantou, como jamais adiantaria. Papai estava disposto a tudo por aquele sentimento, ou
melhor, quase tudo. Disse que dava a ela o direito de não querer mais ser sua mulher, mas que
abrir mão dos filhos era algo que ele jamais negociaria. A saída do chamado “desquite” estava,
nesse caso, completamente descartada.
Mamãe pediu para pensar. Conversou muito com Mãe Velhinha e ouviu suas ponderações.
Afinal, para quem havia tido um marido como seu Firmino, as aventuras de Caio ainda eram o
paraíso.
— Olha, eu sei o que é isso. Vivi a vida toda com a certeza de que compartilhava meu marido
com outras mulheres. Mas o que fazer? Os homens são todos iguais: uns rabos-de-saia. Só não
esperava que Caio fosse dar nisso. Parecia tão sério. Mas não entregue seu marido a esse jaburu.
Ele é seu e de seus filhos. Lute por ele — ela disse.
Mamãe tentou explicar-lhe que a sua geração já não pensava daquele jeito. Compartilhar o
marido era algo que a maioria até desconfiava que fazia, mas preferia fingir que não sabia. No
entanto, no seu caso não havia o escape honroso da ignorância. A cidade inteira falava. Sua
vergonha era pública.
O fato é que mamãe decidiu tocar para a frente. Mas a que custo!
Como era de se esperar, ela jamais voltou a tratar papai com normalidade. A humilhação
gerara nela um sentimento de raiva que se alternava, ora produzindo falações amarguradas, ora
profundo silêncio. Acabou qualquer tipo de vida íntima ou amizade que pudesse haver entre eles.
Os cinemas noturnos, antes comuns na vivência dos dois, acabaram completamente. As idas ao
sítio, antes animadas, cheias de expectativas, passaram a ser mera condução das crianças para um
ambiente que elas amavam; apenas isso. As refeições, que eventualmente faziam juntos,
passaram a ser torturas à mesa. Não se falavam.
O clima era pesado, carregado de angústia, e ainda piorado pelos olhares de Mãe Velhinha,
que, morando conosco desde a nossa volta de Canutama, não conseguia se distanciar da situação.
E ainda havia o pior: as nossas conversas infantis, tratando os dois como se nada estivesse
acontecendo, tentando encontrar neles o casal de amantes e amigos que um dia haviam sido e que
a chegada de Simone transformara, no máximo, em sócios formais.
Quando dona Zezé ficou sabendo, chamou o filho para conversar. Lembrou os ensinamentos
de João Fábio e sua conduta. Disse que a família era sagrada e recordou que entre eles jamais
houvera uma separação; desquite, então, era nome estranho, que ela não admitiria fosse incluído
no vocabulário dos Araújos. Até mesmo Carlos Fábio, melhor amigo de papai, discreto e calmo,
foi estimulado a conversar com ele. Em casa eu comecei a perceber o zum, zum, zum de que algo
iria acontecer.
— Dona Zezé falou com ele. Agora é o Carlos. Não é possível. Ele tem que ouvir — contava
mamãe à minha avó, bem baixinho, entre dentes, sussurrando na cozinha.
— O que é que o tio Calos vai falar com papai? — eu perguntava.
— Nada, menino — era a resposta de sempre. Mas com o passar dos meses, o tom mudou
para: “Você ainda está muito pequeno para entender.” E ao final do segundo ano de dor, depois
que eu insistentemente perguntei a razão dela chorar tanto sozinha e de papai ficar com aquele
biquinho chato pendurado no rosto o dia todo, mamãe me contou tudo.
— Teu pai tem uma amante — foi como ela me disse.
Ora, eu era menino precoce em muitas áreas. Mas aquele negócio de “amante” era algo que
eu não sabia do que se tratava. A princípio, pareceu-me algo bom. Amante vinha de amor, e amor
era bom. Mas como, então, aquilo mudara tão dramaticamente as nossas vidas para pior?
— O que é ter uma amante, mamãe? — indaguei.
— O Caio não gosta mais da Lacy e arranjou um jaburu — respondeu Mãe Velhinha, curta e
grossa, que estava ao lado de mamãe.
Eu conhecia bem os jaburus. No centro da cidade, na frente da igreja Matriz de Manaus,
existia um pequeno zoológico, onde havia aquelas aves altas e de pernas finas, da família das
garças, embora bem maiores, que todo mundo dizia ser o jaburu. Nunca entendi por que vovó
chamava Simone daquele jeito. Afinal, para mim, os jaburus eram feios, e quando conheci a tal da
amante de papai, pensei tudo, menos que ela fosse feia.
Papai, percebendo que eu já sabia de tudo, resolveu abrir o jogo comigo. Disse que nos
amava, que jamais nos deixaria e que tinha respeito por mamãe.
— Ela é uma mulher muito boa e uma excelente mãe — disse ele.
— Por que então você não gosta só dela? — resposta que eu não pude entender aos oito anos
de idade.
— É por que eu amo mais a outra.
Ele foi logo dizendo que Simone tinha duas filhas, mas que nós não nos preocupássemos,
pois os herdeiros de tudo o que ele tinha éramos nós e que, independente do que acontecesse, ele
jamais sairia de casa.
Nunca mais me esquecerei daquela conversa. Foi no banheiro de nossa casa; e eu estava em
pé e ele sentado sobre o tampo do vaso sanitário. Quando a porta se abriu e nós saímos, eu me
senti como se meus ombros pesassem muito mais do que eu podia carregar. Olhei para Suely e
Luiz Fábio como se o pai deles fosse eu e percebi que, se mamãe não tinha marido, eu precisava
ser para ela mais do que filho.
Dali em diante, vi a relação dos dois se deteriorar a cada dia. Mamãe não chorava mais, apenas
odiava. Parou de falar com ele e ambos me institucionalizaram “pombo-correio”. Eu levava
pedidos de dinheiro e trazia cash. Perguntava se ele precisava de alguma coisa e voltava com a
demanda. Informava a ela que ele não voltaria para o fim de semana ou que passaria a noite fora.
Não satisfeita com a coisa, mamãe, em desespero de causa, mesmo sem falar mal dele para a
gente, passou a me levar com ela para passear pela cidade, a fim de ver se encontrava os dois
juntos.
Era fácil. Bastava ir até Adrianópolis, perto da antiga caixa-d’água, que, no mínimo, ela veria o
carro dele estacionado ao lado do carro e da casa que ele dera ao jaburu. Houve umas poucas
vezes em que vimos até mesmo os dois abraçados no portão, olhando as meninas Silvia e Alma
brincarem na calçada. Percebi, então, que eles também formavam uma família, o que me feriu até
onde era possível machucar e me fez entender um pouco da dor de mamãe. Ela não conseguia
compartilhá-lo com a amante, e nem eu. Em mim não havia recursos interiores para aceitar
dividir meu pai com aquelas estranhas, que agora também o tratavam como pai. Eu já não sabia
mais se o amava ou se simplesmente o desprezava.
Tudo perdeu o encanto. O quintal da vovó ficou cinza, as brincadeiras tornaram-se tristes, as
idas ao sítio encheram-se de melancolia e as caçadas acabaram. Viagens para o interior, nunca
mais, exceto por duas rápidas, que fizemos num avião Catalina, anfíbio.
O que ficou foi um desejo imenso de chorar e uma saudade enorme de alguém maior.
Eu não sabia viver sem pai e, por mais que ele ainda andasse entre nós, seu caminho
emocional tornara-se estelarmente distante da gente. E, para completar, comecei a sentir medo
que mamãe viesse a buscar algum outro homem. Então, passei a vigiá-la.
Eu percebia que, mesmo sentindo muita dor, mamãe às vezes ria descontraída quando
conversava com um rapaz que trabalhava para papai e que de vez em quando aparecia lá por casa.
Minha malícia me dizia que uma mulher no estado dela era presa fácil para qualquer homem,
mesmo que fosse um empregado de apenas 21 anos.
Fiquei obcecadamente de olho aberto. Assim que o rapaz chegava lá em casa, eu parava tudo e
fica ao lado, ou de longe, espreitando. Eu não a vigiava para papai, mas para mim mesmo. Jamais a
dividiria com um outro homem. Para mim, como menino, era inconcebível que qualquer outro
homem, que não fosse papai, pudesse ter acesso à intimidade de minha mãe. Ela nunca ficou
sabendo disso, até hoje, enquanto escrevo estas páginas.
O que salvava minha mãe de um mergulho total na amargura e no ódio era a fé. Ela não era
profunda no seu compromisso existencial com Deus, mas se servia de alguns recursos espirituais
para aliviar a sufocação do peito.
Toda terça-feira à tarde ela ia à Igreja Presbiteriana para unir-se a outras mulheres que
oravam. Meu pai era objeto constante das intercessões espirituais daquelas mulheres. Jardim de
Oração era o nome dado ao encontro. Foi ali, naquele jardim de preces, que mamãe conseguiu
diminuir a sensação de solidão que sobre ela se abatera.
Eu, entretanto, não sabia recorrer a tais recursos. O que me possuiu foi uma saudade
espiritual de alguém. Lembro-me que passei a me postar na varanda lateral de nossa casa e olhar
o pôr-do-sol, que acontecia por trás de uma alta e frondosíssima mangueira, que virava Sarça
Ardente quando as luzes multimatizadas do ocaso pintavam-na de tons quase psicodélicos e
davam-lhe o poder místico dos sacramentos.
Para minha mente de oito anos, as maiores impressões ficavam por conta do fato de que as
folhas se doiravam com o reflexo do sol e aquela silhueta imensa da árvore me enchia de uma
estranha sensação: era como se aquela mangueira fosse o símbolo de algo espiritual para a minha
alma, de alguma coisa na qual um dia minha existência encontraria seu sentido. Algo saudoso,
porém vivo. Era como se a pessoa que mais me amasse estivesse escondida ali, atrás daquela
árvore mágica, sagrada, reluzente e cheia de uma estranha sombra colorida.
Eu ficava lá. Em pé. Sozinho. Pensando. Olhando a mangueira.
Uma vez Mãe Velhinha chegou perto de mim e perguntou o que eu estava sentindo. “É como
se eu ainda não conhecesse a pessoa que eu mais amo. É como sentir saudade de alguém que
você não sabe quem é”, foi mais ou menos o que eu respondi. Ela apenas ouviu.
As conseqüências do que estava acontecendo a papai e mamãe ganharam manifestações no
soma, na carne da gente. Luiz Fábio começou a engordar sem parar. Suely foi ficando retraída e
um tanto complexada. Eu, que dificilmente engordaria ou me voltaria completamente “para
dentro”, fui tomado de uma gagueira horrível.
Era uma gagueira diferente. Não era do tipo que fazia patinar nas palavras o tempo todo. Às
vezes eu falava normal. Mas, de repente, ficava engatado numa sílaba e, a menos que eu parasse
de falar, respirasse fundo e pronunciasse a palavra quase cantando, não saía mais nada.
Mãe Velhinha assumiu o papel de fonoaudióloga e resolveu que me curaria rapidinho. Como
alguém havia dito a ela que bom para curar gagueira era paulada de colher de pau na cabeça, dada
por trás, na hora em que a pessoa estivesse engatada na palavra, andava o tempo todo com uma
colher pendurada à cintura. E sempre que me via encalhado em algo como Lu, lu, lu, lu-iz, você
vai brin, brin, brin, brin-car na vovó, vinha por trás e sapecava a colher de pau na minha cabeça.
Eu odiava aquilo. Humilhava, deixava um galo na cabeça e, obviamente, não curava nada.
Na intenção de diminuir o peso do problema, mamãe foi algumas vezes a Belém, para a praia
de Mosqueiros, aliviar a cabeça. De nossa parte, em Manaus, a opção era ficar mais perto da
figura paterna de tio Carlos, que, apesar de tudo o que estava acontecendo com papai, não deixou
jamais de nos levar ao sítio, aos sábados, mesmo que papai já não fosse tão assíduo nas suas idas
ao antigo paraíso.
Foi também no desejo de desviar a cabeça do luto familiar que passei a tentar arranjar coisas
fora e longe de casa para fazer. E foi então que minha paixão pelo Rio Negro Futebol Clube se
desenvolveu. Onde havia jogo, lá estava eu, tentando de tudo para me sentir parte daquele mundo
de muitas alegrias, nas vitórias, e de dores, bem mais leves que as de casa, quando o Nacional às
vezes nos mandava para casa de cabeça baixa.
Mas a minha grande paixão daqueles dias foi uma menina dois ou três anos mais velha do que
eu.
Margarida tinha uns 11 anos e morava na casa vizinha à nossa. Sua família era pobre e todos
nos olhavam como se fôssemos realezas. Margarida, entretanto, tinha outra atitude. Ela me
encantava com aquele cabelão longo e com as corridas que dava fazendo questão de balançar a
cabeça para me mostrar a ginga de seu corpo.
Eu ficava deslumbrado e achando que uma menina do tamanho dela não estaria tentando se
mostrar para um fedelho como eu. Mas enquanto eu me dedicava àquelas reflexões do amor
precoce, esquecia o drama familiar.
Foi assim até o dia em que Margarida deu uma bandeira tão grande, que eu decidi deixar as
reflexões de lado e ir à luta. Mandei um bilhete para ela marcando um encontro à uma hora da
tarde, embaixo de um coqueiro que havia na frente de minha casa.
Ela foi sozinha e nervosa. Olhei trêmulo para ela e me confessei apaixonado. Depois cantei
Quem eu quero não me quer e pedi que ela me namorasse. Não deu outra: ela aceitou. Mas tinha
de ser segredo. Daquele dia em diante, nos encontrávamos ali, sempre à mesma hora. Ficávamos
nos olhando e nos curtindo. Não havia muitas palavras. Entretanto, havia beijinhos e rápidos
abraços, especialmente na despedida.
Fiquei tão perdidamente apaixonado, que cheguei a dizer para o Boi, meu amigo, que ela
tinha uma boca com gosto de sapoti. Daí em diante, o Boi sempre me perguntava: “Como é que é,
garanhão? E a tua menina com boca de sapoti, vai bem?” Durante meses Margarida foi minha
musa e deu cor ao fundo do quintal de vovó, onde ela morava. Até que os irmãos dela descobriram
e forçaram a mãe da menina a nos separar.
E eu fiquei chorando na varanda enquanto a mãe dela mandava-lhe o cinturão nas pernas.
Dava para ouvir tudo. Chorei até babar de raiva. Depois, ela foi até a janela da casa e me deu
adeus. Nunca mais a vi. Aquela ficou sendo a minha referência de desenlace afetivo e, naquele
contexto, tudo de que eu não estava precisando era de mais uma dor de separação.
Por volta do quarto ano de desquite emocional entre meus pais, o clima tornara-se
insustentável. Até mesmo papai já começava a admitir que talvez a separação fosse uma solução
melhor do que a existência sob o mesmo teto, se energizada com tamanha carga de amargura,
ressentimento e silêncio. E ele acabou por ir até mamãe e pedir que ela assinasse o termo de
separação. Sendo homem da lei, achava que, se ia fazer aquilo, não podia ser jamais sem o amparo
total do sistema.
Mamãe disse que assinaria os documentos de separação e, para mim, foi como se o mundo
estivesse entrando numa era apocalíptica de lamúrias, pragas e destruições. Nosso mundo de
fantasias tinha sido esmagado pela mais ambígua de todas as realidades: o amor não
correspondido, de mamãe, e o amor direcionado para fora do permitido, de papai.
Parecia ser o fim. E era também a minha mais séria lição sobre as complicações do coração.
Capítulo 10

“Tu me ajuntaste do estado de desintegração no qual eu tinha sido esterilmente


dividido. Isto porque eu havia abandonado a unidade de ser que eu tinha em Ti e
havia me dado a perder em profunda multiplicidade.”

Santo Agostinho, Confissões

O ano de 1964 começou como o ano da separação. Eu fiz nove anos no dia 15 de março, na
mais mirrada de todas as celebrações de aniversário até ali. Mas, no fim daquele mês, aconteceria
algo à nação brasileira que teria efeitos devastadores: o golpe militar de 31 de março.
Lá em casa, entretanto, o golpe não chegou com o poder de matar, mas de mudar. Isso
porque papai foi profundamente atingido pelos efeitos da revolução militar e as conseqüências
disso haveriam de mexer com nossas vidas para sempre.
Naquele tempo, além dos demais negócios, papai já tinha entrado no ramo das
telecomunicações. Junto com um amigo, ele se candidatara à obtenção da primeira concessão de
televisão do estado do Amazonas. Os equipamentos já estavam todos comprados, e o projeto de
construção dos estúdios estava dentro do cronograma. Eles estavam se antecipando à concessão
porque os contatos políticos davam como certo que os papéis seriam apenas detalhes, não
havendo nada a temer quanto ao resultado do pleito junto ao governo federal. O que ninguém na
capital da república previra era que haveria um golpe cujas implicações abalariam
dramaticamente todas as forças do poder constituído.
O golpe atingiu meu pai de frente. Sua posição como presidente nomeado da Papel Amazon
foi para o espaço. E nas outras empresas o choque foi ainda mais profundo: todos os negócios das
demais companhias dependiam de licença do governo federal, pois eram concessões para
exploração de madeira e, sobretudo, ouro e minerais preciosos.
Para complicar, muitos de seus mais importantes clientes no escritório de advocacia foram
também alcançados pelos longos e gelados braços dos militares. Mas o pior ainda estava por vir.
Alguns de seus sócios, pressentindo o clima fúnebre que a revolução criara, trataram de se
arrumar com os “milicos” assim que puderam, e como papai era o mais visível de todos eles nos
negócios, trataram de lançá-lo às piranhas, sentando-se junto aos líderes do golpe para assistir ao
espetáculo público de seu sangramento.
O mais terrível de todos os resultados foi a acusação de que a mina de Parauari estava sendo
usada para que grandes quantidades de ouro fossem enviadas para fora do país. Papai negou
veementemente que aquilo estivesse acontecendo, pelo menos sob seu conhecimento. Mas já era
tarde. Àquela altura, seu nome já estava nos jornais, e por motivos que nem ele e nem nenhum
dos Araújos jamais haviam esperado que a família viesse a ser conhecida publicamente.
A vergonha de ver seu nome sendo enxovalhado nas primeiras páginas dos jornais era demais
para ele. Primeiro, ele foi tomado de perplexidade com a velocidade dos eventos e a loucura dos
processos da revolução. Depois foi percebendo a grande armação que havia por trás daqueles
atos. E, por último, encheu-se de ódio e começou a falar em morte. Achava que matar aqueles que
o haviam traído era a coisa mais honrada a fazer.
Mas o mundo que estava desmoronando do lado de fora acabou por fazer ruir tudo o que
ainda havia restado do lado de dentro, na família. Suely, minha irmã, caiu de um muro e fraturou
em muitos pedacinhos o cotovelo esquerdo, ficando sob a ameaça de não dobrar mais o braço.
Luiz Fábio inchou de tanto comer de nervoso. E, para piorar, papai e mamãe, que não se tocavam
há muito tempo, no meio da tempestade — ele culpado diante dela, e ela com pena dele —,
acabaram dando um ao outro uma trégua, e mamãe engravidou. Foi tudo junto.
Percebendo que as coisas se tornariam insuportáveis em Manaus, papai propôs à mamãe que
eles suspendessem a conversa sobre separação e dessem um ao outro, e aos filhos, mais uma
chance. Uma mudança para o Rio de Janeiro poderia ser essa oportunidade buscada.
Mamãe não queria ir. Eu abominei a idéia, disse que não iria de jeito nenhum, que eu não
estava fugindo de nada nem de ninguém e que Manaus era meu lugar. Mas papai olhou para mim
com um olhar fuzilante e disse: “Enquanto você comer do meu pirão, vai aonde eu for.” Fim de
conversa.
Mamãe levou o assunto para o Jardim de Oração numa daquelas terças-feiras à tarde. As
amigas oraram com ela e estimularam-na a se dedicar a “ouvir a voz de Deus”. Ela não sabia bem
o que era aquilo, mas imaginou que devia ser alguma coisa que tivesse relação com a leitura da
Bíblia.
Ajoelhada, ela abriu a Bíblia a esmo. O texto sobre o qual seus olhos pousaram dizia: “O que
eu faço tu não sabes agora, compreendê-lo-ás depois”, que está no evangelho de João e conta
sobre a resposta de Jesus a Pedro quando este quis saber por que o Mestre estava lavando os seus
pés. O contexto não tinha nada a ver com a situação de mamãe, mas a passagem foi
completamente iluminada diante dos seus olhos. Era como se o texto tivesse sido escrito para ela.
Assim, minha mãe procurou papai e disse que iria, embora não por ele, mas porque Deus
mandara que ela fizesse isso. Papai não entendeu nada e nem estava com cabeça para tentar
discutir o assunto.
O problema é que nós não iríamos sozinhos. Simone, Silvia e Alma também iriam.
Papai, mamãe e Suely foram na frente, em regime de urgência. O braço de Suely precisava de
intervenção cirúrgica imediata ou ficaria perdido. Mamãe, grávida, estava começando a sangrar,
pois sofrera muito nos partos anteriores e já não tinha o útero sadio. Aliás, seu médico queria
fazer um aborto, certo que estava que suas chances de morrer com o neném eram muito grandes.
Eles foram juntos, feridos por dentro e por fora; ainda eram família, mas se tratavam como
estranhos.
O vazio da saída deles foi horrível. Luiz, Mãe Velhinha e eu nos mudamos para um dos
cômodos da casa de vovó Zezé, que, pesarosa, estava sempre enxugando as lágrimas que lhe
rolavam dos claros e profundos alhos azuis e escorriam por sua face tão encarquilhada quanto
pele de um jenipapo. Foi ali que, pela primeira vez na vida, eu senti desejo de morrer. Tudo
parecia enorme e distante. Eu olhava as coisas à minha volta e me sentia esmagado por elas.
Às vezes, eu escapava até o fundo quintal de nossa casa, já completamente vazia, e tentava ver
se Margarida ainda estava por lá ou se, quem sabe, por mero acidente, eu conseguia vê-la e
alegrar meu coração. Mas ela jamais apareceu. Eu voltava andando cabisbaixo pela extensão
arborizada daquele terreno que antes era a própria fantasia feita metro quadrado e agora era o
lugar de nossa solidão e de nossa perdição.
Depois de alguns meses, veio a ordem de papai para que fôssemos encontrá-los no Rio de
Janeiro. A despedida dos amigos, dos primos, dos tios e dos espaços sagrados e profanos de
minha infância foi uma das experiências mais fortes em minha memória emocional infantil.
Mãe Velhinha, Luiz e eu entramos num avião da Panair do Brasil em dezembro de 1964 e
fomos para o Rio. O vôo não terminava mais. Eram oito horas de viagem. Quando estávamos
quase pousando no aeroporto Santos Dumont, Luiz virou para mim, pálido, tentando dizer algo
que não conseguiu. Só vi aquela quantidade enorme de vômito sendo despejada em cima de mim.
Foi horrível. Eu estava deprimido e todo vomitado. Descemos por último, levados por uma
aeromoça que nos ajudara. Pelas janelas redondas de dentro do avião tentei ver papai lá fora, mas
não foi possível.
Quando pisei no chão do Rio, fui tomado por uma avalanche de cheiros que eu não sabia que
existiam. O aroma de maresia da baía de Guanabara, ainda não tão poluída, entrou-me pelas
narinas, dizendo-me que aquele lugar era absolutamente estranho. Além disso, fiquei
impressionado com a altura dos cariocas, bem mais altos que a média dos amazonenses.
Concentrei-me na busca de papai no saguão do aeroporto. Ficamos ali, olhando para um lado
e outro, e nada dele. “Será que não viria? E se tivesse morrido?” — eram questões que me
passavam pela cabeça. De súbito, olhei para o lado e vi um estranho que se aproximava de nós,
gargalhando alto.
— Então, seu cabrinha danado, você é o famoso Caiozinho, e você é o Luiz? — perguntou,
enquanto nos beijava, abraçava e sacudia, num modo agressivo de expressar carinho, embora
fosse carinho de fato.
Era o tio Ari, casado com Isa, uma irmã de meu pai que eu jamais conhecera.
— E meu pai? — indaguei do recém-apresentado titio. Ele fez que não entendeu bem e disse
que tínhamos de ir para a casa dele. Então eu fui mais enfático.
— Eu quero ver meu pai e saber como vai a minha mãe. E Suely?
Foi quando ele disse que Suely estava na mesa de operação e que por isto papai não viera nos
buscar.
O que ele não disse foi que minha mãe estava muito mal e que havia o temor de que ela
pudesse sangrar até morrer. Em vez de nos levar para algum lugar no Rio, ele nos conduziu à
praça Quinze, onde pegamos uma barca para Niterói.
Aquela primeira travessia de barca teve um efeito positivo sobre mim, acostumado que estava
a ver muita água e sempre extasiado com o poder das fragrâncias. Fomos para a parte superior da
embarcação e ficamos ali, olhando aquela topografia linda, com montanhas que saíam de dentro
do mar, e aquelas águas de cor azul onde golfinhos brincavam, dançando que nem botos e
pulando adiante dos barcos.
Em Niterói, fomos muito bem-recebidos por tia Isa e pelos novos primos, Maria do Perpétuo
Socorro — que foi logo dizendo que era minha madrinha —, Antônio Fernando, Terezinha e
Arlindo. Como eles tinham se mudado havia apenas um ano para a cidade, vindos de São Paulo,
eram vistos na vizinhança da rua Justina Bulhões, no Ingá, não como amazonenses que eram, mas
como paulistões.
Ficamos uma semana com eles até que papai pôde vir nos buscar. O reencontro com papai foi
feliz e dolorido. A felicidade era pelo reencontro. A dor era do medo de que não sobrevivêssemos,
como família, naquele lugar estranho e longe das florestas e rios de nossa terra.
Fomos para Copacabana e entramos, perplexos, naquele bairro-cidade, de prédios imensos e
odores estranhos para mim. Na rua Anita Garibaldi, fomos apresentados a novos tios e primos. Já
começava a virar ritual.
Renato e Bernadete, os tios; Cláudia e Renata, as primas. O sangue era o mesmo, mas éramos
muito diferentes. As meninas faziam questão de nos deixar perceber que nosso sotaque era forte
demais e estranho. Além disso, a família de tia Bernadete estava toda ali, em volta dela, e era um
montão de gente que eu não conhecia e que falava de tudo de um modo totalmente novo aos meus
ouvidos.
Mas o que mais me incomodava era o cheiro do edifício. Eu nunca tinha entrado num lugar
fechado como Copacabana, onde os odores ficam trancados dentro dos corredores dos edifícios e
dos poços dos elevadores. Era cheiro de tudo, mas principalmente de gás de cozinha e de comida
de temperos diferentes, condensados como extrato de desejos gastronômicos, presos naquelas
câmaras verticais, totalmente estranhas para mim.
Hoje, eu talvez dissesse que eram os cheiros dos intestinos da urbanidade. Mas naquele
tempo pude apenas constatar os odores e impressionar-me com o fato dos moradores do lugar
não perceberem aqueles cheiros que um amazonense com nariz de Mãe Velhinha não poderia
deixar passar despercebidos.
Na casa de tia Bernadete ficamos sabendo mais sobre mamãe e Suely. Estavam sob cuidados
médicos, mas se sentindo melhor. Foi somente no dia seguinte que pudemos reencontrá-las,
abraçá-las e chorar a alegria de vê-las.
No mesmo dia, à tarde, papai nos levou à praia. E diante da visão da imensidão do mar,
senti-me esmagado de terror. Os estranhos aromas da areia e das águas supersalgadas
remeteram-me a um sentimento de saudade de Manaus e dos cheiros da vida que eu deixara para
trás. Andei sozinho pela areia até perto da arrebentação, e fiquei ali parado, vendo os tatuís
correrem, ocasionalmente olhando perdido para o fim daquela visão aterradora do oceano
Atlântico. Depois me recompus e tentei correr pela areia. Voltei para a calçada, onde papai nos
aguardava, e pedi que voltássemos para a casa da tia Bernadete.
Acabamos encontrando um apartamento na rua Sá Ferreira, no posto seis, e lá, mais uma vez,
nos reunimos como família. Mamãe e Suely continuavam doentes. Luiz Fábio gostou muito da
mudança e começou a dar sinais de recuperação emocional. Eu estava sempre variando entre
alguns prazeres — como jogar bola na praia e ir ao Maracanã ver o Botafogo de Mané Garrincha
— e um terrível sentimento de depressão.
E tudo ficava ainda pior porque eu percebia que papai não estava nada bem. Ele se
empanzinara de ódio daqueles que o haviam traído e, ao saber que dois deles andavam pelo Rio,
botou uma arma no bolso da calça e vivia pedindo ao destino que o fizesse cruzar com eles.
O destino — ou talvez o próprio diabo — atendeu ao seu pedido.
Nós estudávamos no Colégio São Tomás de Aquino, no Leme, a seis quilômetros de nossa
casa. Na minha classe havia um garoto, loirinho, gente boa, que era um dos únicos que não fazia
gozação quando a professora lia meu nome durante a chamada. Todos os outros aguardavam
aquela hora para cair no chão, de modo que, em seguida ao “Caio”, se ouvia um brum-brum-brum
da meninada caindo no chão e dizendo: “Eu caio, fessora.”
O garoto loirinho era também o único que não caía na minha pele quando a professora
perguntava coisas do tipo:
— Caio, como se vende farinha?
— Em litro, professora — eu respondia confiante.
— Esse amazonense é idiota, quer aparecer — ouvia o pessoal dizer, embora fosse assim que
se medisse farinha para venda na minha terra.
Pois bem, um dia houve uma festa na escola e papai e mamãe foram obrigados a ir. Mamãe se
movia com muita lentidão por causa da gravidez. Papai chegou, viu que eu fui direto brincar com
o alemãozinho, e ficou por ali, quieto. De repente, percebi que havia algo errado. Olhei e vi
mamãe desesperada.
— Pelo amor de Deus, não. Não faz isso. Pensa nas crianças — ela gritava.
O que vi foi papai, que graças a Deus estava desarmado naquele dia, com a muleta no ar,
brandindo-a sobre a cabeça de um homem loiro, que cobria o rosto com os braços, pálido e
acovardado.
— E agora, seu safado? Você num disse que não me dava uma surra porque eu era aleijado e
porque você estava numa corte de lei? E agora, seu frouxo? Vem bater no aleijado? Vou te
arrebentar na frente da tua mulher, seu otário! — Mas o homem, inerte, não esboçava qualquer
reação.
As demais pessoas presentes não deixaram que os dois se atracassem. Não entendi nada.
Apenas percebi que papai odiava o pai de meu melhor amigo na escola. Mamãe nos reuniu
nervosa, entramos no carro e fomos embora. Papai dirigia cheio de ódio. Queria matar o homem.
Somente em casa é que fiquei sabendo que o pai de meu amigo era o major do Exército que havia
sido incumbido de conduzir o inquérito que investigara o possível envolvimento de papai com o
contrabando de ouro quase dois anos antes, em Manaus. Na hora final, em pleno tribunal, com a
imprensa presente, o major teria dito que não havia como legalmente “pegá-lo”, mas que se papai
não fosse deficiente físico, ele, o militar, iria esquecer a lei e dar-lhe uma boa surra fora da
audiência.
Pois bem, a hora havia chegado. Anos depois, questionando-me sobre o que teria levado um
major, em pleno regime militar, a aceitar ser humilhado publicamente, diante da esposa e dos
filhos, sem reagir, concluí que pouca coisa é mais forte, paralisante e autodestrutiva que uma
consciência pesada, mesmo quando se tem o poder nas mãos.
Não demorou muito até descobrirmos que Simone e suas filhas estavam morando a dois
quilômetros de nós e que papai passava longas tardes com elas. Mas àquela altura dos fatos, o
“caso dele com o jaburu” passou a ter importância bem menor para mim.
Nós, como família, tínhamos encontrado uma solidariedade mais profunda do que a dor da
traição que papai provocara. Tínhamos de algum modo descoberto que as verdadeiras ligações de
uma família acabam sendo maiores do que os detalhes de natureza pessoal ligados ao devaneio
apaixonado de um de seus membros. Viver na fronteira da vergonha, da perda e da morte,
permitiu que víssemos de forma mais clara que a fraqueza moral de papai era menos importante
que sua sobrevivência como ser humano, e que a dor de mamãe era insignificantemente menor
do que a consciência que ela adquirira acerca da importância de tudo aquilo que nos fazia ser
uma família, apesar de tudo.
Mas a presença de Simone não ajudava a aliviar a dor de meu pai. Ele saía e voltava sempre
com a mesma cara de depressão. Seus olhos andavam profundos, pois suas noites eram longas e
insones.
Um dia ele voltou diferente para casa. Chorou sozinho e ficou calado por muito tempo. Havia
nele uma enorme vontade de falar, de explodir numa confissão, num despir-se radical, total e
verdadeiro. Mas ele não sabia como. No entanto, sua atitude em relação à mamãe começou a
mostrar mudanças significativas. Devagar, ele conseguiu nos fazer perceber que tudo acabara
entre ele e Simone. Foi apenas o que ficamos sabendo, sem maiores detalhes. Somente algum
tempo depois é que as notícias de Manaus nos deram conta de que ela já tinha outro no Rio. Foi
então que soubemos que Simone o traíra, e que ele mergulhara em profunda desilusão.
Sem o jaburu em nossas vidas, pudemos ter papai em tempo integral outra vez. Mas sua volta
não nos trouxe tranqüilidade de alma. Alguma coisa ruim tinha entrado em nossas vidas. Suely
encaramujou-se como pôde, a fim de fugir dos complexos relacionados ao fato de não conseguir
esticar o braço. Mamãe falava no risco de morrer no parto, que estava às portas. Papai perdera o
ânimo pela profissão e pela existência, mas como tinha muito dinheiro guardado, dizia que podia
se dar o luxo de passar alguns anos meditando sobre a vida. E foi o que fez.
Eu, mesmo sem saber por que, fui invadido por um horrível sentimento suicida. Às vezes ia
para o tanque de água que havia no alto de nosso edifício e ficava imaginando o que aconteceria
comigo se pulasse de lá, do décimo andar. E para piorar a história, o pai de um amigo meu pulou
da janela do apartamento, angustiado que estava por viver uma vida sem sentido.
O único que parecia estar melhorando lá em casa era o Luiz Fábio. Aliás, naqueles dias
lúgubres, ele foi nossa salvação. Estava com sete anos, era branquinho, gordinho, de rosto
redondo, cara de pintinho e uma mente muito franca. Amava máquinas e música. Ainda em
Manaus, seus dons musicais haviam se manifestado. Tocava piano de ouvido, com muita
desenvoltura e com elevado nível de complexidade. No mesmo período, trouxera à luz outro
talento. Tinha enorme capacidade de entender os mecanismos dos carros e deleitava-se em
vê-los sendo consertados na oficina particular que meu pai mantinha com tio Carlos no fundo de
nosso quintal.
Luiz sabia tudo o que uma criança de sua idade podia saber sobre as máquinas. Reconhecia o
ronco dos carros a distância e ousava até dizer o que estava errado. Além disso, aos seis anos já
sabia tirar da garagem os carros menores de papai.
Luiz também se tornou muito engraçado durante o nosso primeiro ano em Copacabana. Ele
ia comigo e Suely a pé do posto seis ao Leme, para o Colégio São Tomás de Aquino. No trajeto, ia
e vinha falando com todo mundo. A gente às vezes morria de rir, às vezes morria de vergonha.
Dependia de como ele resolvia botar sua verve humorística para fora.
Conquanto Luiz fizesse a festa, nós todos precisávamos de muito mais do que ele podia nos
oferecer. Minhas angústias estranhas não me largavam. Eu jogava bola com Caruso e Nino na
calçada, via o Lá Vai Bola jogar na praia, mas não adiantava. A coisa ficou pior quando papai
levantou numa noite quente do verão de 1966 e me viu em pé na janela do décimo andar,
dormindo, sonhando, porém postado em posição de salto e dizendo, já com o corpo projetado
para o lado de fora: “Agora é minha vez. Vou pular.”
Papai sabia que eu era um sonâmbulo do tipo executivo. Eu sonhava e fazia. Uma vez eu
interrompi um jantar lá em casa porque, tendo dormido e sonhado que estava dançando nu, tirei
a roupa e bailei pelado pela casa, para deleite da assembléia de amigos. Agora, entretanto, eu não
me preparava para dançar, mas para pular do décimo andar de nosso prédio. Papai só teve tempo
de me puxar para dentro do quarto. Os dois caímos na cama juntos. O coração dele palpitava
como eu nunca sentira antes. Apenas mais dois segundos e o desfecho poderia ter sido trágico.
Para completar o clima de depressão, vieram as chuvas de 1966. Quem morava no Rio na
época lembra da devastação total que provocaram. Nosso prédio, na Sá Ferreira, olhava direto
para a favela do Pavão-Pavãozinho. E lá ficava eu na janela, vendo casas rolarem morro abaixo,
com gente dentro gritando e sumindo na lama. Foram centenas de mortes. Víamos apenas os
cadáveres serem retirados do meio dos escombros. Papai tentava nos proibir de olhar, mas era
impossível. A cena era brutal e o fascínio mórbido que ela exercia sobre mim era algo que eu
desconhecia. Odiava ver, mas não conseguia parar de ver. Repúdio e sedução mórbida moravam
ali, naquele episódio marcado pela morte, fruto da negligência que se acumulava há anos. Eu não
sabia o que era aquilo, mas sabia que não era justo. E mais ainda: sabia que do quintal de minha
vó a gente jamais veria aquelas coisas. Então, chorava com saudades de Manaus.
Capítulo 11

“Eu, portanto, decidi dar atenção às Escrituras e ver o que elas continham. Eis o
que encontrei: algo nem aberto ao soberbo nem imperscrutável às crianças; um
texto básico para o iniciante, mas, ao mesmo tempo, de dificuldades montanhosas
e envolvido em mistério para aquele que resolve estudá-lo.”

Santo Agostinho, Confissões

Foi pensando em nossa saúde emocional que papai e mamãe decidiram sair de Copacabana
e ir para Niterói. Mamãe tinha dado à luz uma menina, chamada Ana Lúcia, e papai dizia que um
apartamento não era lugar para se criar uma criança. Ele queria dar a ela, e também a nós, algum
tipo de sentimento que nos remetesse a emoções próximas daquelas que tínhamos
experimentado no quintal da vovó.
Como Ari e Isa moravam do outro lado da baía de Guanabara e não se queixavam de nada —
pelo contrário, elogiavam o lugar —, fomos direto para um apartamento que vagou no mesmo
edifício em que eles moravam. Mesmo sendo um apartamento, papai considerou que o lugar era
amplo, o prédio baixo, e que havia muito espaço para brincar na vizinhança, que incluía até um
morro cheio de capim e ótimo para aventuras infantis.
O clima do lugar era festivo e íntimo. Todo mundo se conhecia e havia uma enorme
interatividade social. Nossa rua, a Justina Bulhões, ainda tinha um monstro sagrado do futebol
brasileiro de todos os tempos residindo lá. O Canhotinha de Ouro do Botafogo, Gerson, morava a
poucos metros de nosso edifício, e era um delírio diário vê-lo passar dirigindo seu Camaro preto,
fazendo as curvas bem devagar, na ponta dos dedos. Justamente por causa de Gerson, nossa rua
era obcecada pela idéia de formar craques de futebol. Os rachas de bola que aconteciam todas as
tardes ali eram concorridíssimos. Como meus dons futebolísticos haviam se manifestado desde
Manaus, aos 11 anos eu já jogava uma bola bem redondinha e, assim, me envolvi até o talo na vida
esportiva daquela pequena comunidade.
Um pouco antes de nossa saída de Copacabana, papai resolvera voltar à advocacia e abrira um
escritório no centro do Rio com seu amigo e compadre Bernardo Cabral — que posteriormente
viria a se tornar figura pública no cenário nacional — e outro em Niterói, no início sozinho. Como
as travessias para o Rio eram muito problemáticas naquela época — especialmente para um
homem que tinha de lutar para não cair quando as multidões atrasadas precipitavam-se umas
sobre as outras na corrida por um lugar nas barcas Rio—Niterói —, papai acabou ficando cada
vez mais na terra de Araribóia, evitando aquele desconforto.
Sua capacidade para ganhar dinheiro rapidamente se manifestou. Não demorou muito e ele
estava com grandes clientes e fazendo excelentes negócios.
Foi num daqueles dias que mamãe ouviu falar de um pastor a cuja pregação ela assistira em
Manaus quando era ainda bem jovem, e soube que ele estava abrindo uma pequena igreja no
bairro de São Francisco, em Niterói. Decidiu ir até lá e tentar ouvir o reverendo Antônio Elias.
Amou o lugar, o povo que ali se reunia e, sobretudo, ficou encantada com a esposa do pastor,
Maria José, uma mineira recatada, mas de sorriso franco de amizade quando se identificava com a
pessoa.
No domingo seguinte, todos nós fomos à igreja. Até eu gostei. No outro domingo, já fui
decidido a passar a tarde com o filho mais novo do pastor, um garoto tímido, um ano mais novo
que eu, chamado Teófanes, e que aos 11 anos acabara de ganhar um prêmio nacional de escultura
em areia de praia e estava se preparando para ir representar o Brasil na França.
A tarde com Teófanes foi maravilhosa. Jogamos bola e nos atolamos num pé de jamelão
carregadíssimo. Comi tanto, que tive uma alergia que me deixou quase dois dias inchado. O
entusiasmo com a experiência comunitário-religiosa contagiou a todos nós. Eu mesmo, até
aquela data absolutamente desinteressado pelas coisas da religião, passei a ficar empolgado com
a chegada do domingo.
O impacto da fé em mim era muito relativo. Eu gostava das pessoas do lugar, mas não havia
nada que fosse muito além disso.
Lá na rua Justina Bulhões, entretanto, a molecagem corria solta. Aquele morro cheio de
capim era o lugar onde os meninos mais velhos aproveitavam-se sexualmente dos garotos mais
novinhos e onde as meninas mais levadas passavam por longos exames ginecológicos. Eu era um
dos ginecologistas mais ativos do pedaço, pois minha precocidade fez com que eu me tornasse
um dos mais bem-posicionados naqueles jogos de promiscuidade infantil.
Às vezes eu ouvia coisas na igreja que me colocavam contra a parede em relação àquelas
“práticas sexuais” vividas no meio do capim. Mas logo percebi que, conquanto eu fosse muito
mais envolvido com tudo aquilo que a maioria dos garotos da igreja, eles também tinham suas
experiências naquela área. No fundo, eu pensava que, com exceção de Téo — filho mais novo do
reverendo —, nós todos éramos farinha do mesmo saco.
Até aquele ponto, papai estava completamente alienado dos processos espirituais que
começavam a rondar nossa casa. Ele estava bem, mas estava só. A relação com mamãe melhorara
muito, mas estava longe de estar curada.
Num daqueles domingos, no entanto, papai foi nos levar à igreja. À porta, eu insisti que ele
entrasse.
— Não, vou ficar aqui fora atualizando meu vocabulário de inglês — disse ele, sem deixar
qualquer espaço para uma eventual insistência.
Entramos e sumimos por entre os corredores e salas da pequena Igreja Presbiteriana
Betânia. Quando voltamos ao carro, ao meio-dia, ele simplesmente nos levou de volta para casa,
sem nenhum comentário.
Após o almoço, no entanto, ele se virou para minha mãe e disse:
— Lacy, me abra a Bíblia em Hebreus, capítulo 11, verso 1.
Quase caímos da cadeira. Ninguém ousou perguntar por que ou de onde ele tirara aquela
referência bíblica. Afinal, desde a morte de vovô João Fábio ele fora assumindo cada vez mais suas
posições agnósticas e, nos últimos anos, evoluíra para o nível de uma descrença quase atéia.
Passara a discutir religião com alguns amigos católicos e dizia-lhes que a Bíblia nada mais era do
que um livro de lendas criadas pela mente imaginativa dos hebreus. Agora, entretanto,
ironicamente, lá estava ele, pedindo para ler um livro que tinha justamente o nome do pessoal
que ele acusava de supremo “excesso de criatividade religiosa”: os hebreus.
Mamãe abriu o texto que papai havia solicitado, e ele leu o capítulo todo como alguém que já
conhecesse a passagem.
— Que coisa linda. Foi escrito em estilo enfático. Tudo se calça na fé. Parece um texto
poético. Eu não sabia que a Bíblia tinha passagens como esta — disse ao final.
Mamãe, então, se atreveu a perguntar onde ele tivera sua curiosidade estimulada para a
leitura da Bíblia, e sua resposta foi inesquecível.
— Hoje, enquanto vocês estavam lá dentro da igreja, eu ouvi uma voz masculina belíssima
cantando um hino. Achei tão bonito, que saí do carro e fui ver quem estava cantando. Quando
cheguei lá dentro, o homem já estava acabando. Fiquei só um pouquinho mais para ver o que
estava acontecendo ali. Então, uma mulher começou a perguntar a um grupo de senhoras o que
era a “fé”. Fiquei somente porque gosto de ouvir estupidez feminina. Mas que nada. As mulheres
pensavam. Veio cada resposta sobre o tema da fé que me deixou admirado. Por fim, a tal da
professora veio dizer que as respostas eram fracas. Achei que ela devia ser uma anta. Naquele
momento, pensei que a burrice religiosa fosse finalmente se manifestar. Ela mandou ler Hebreus
11:1. Quando eu ouvi aquilo, fiquei mais impressionado ainda. Era isso aqui: “A fé é a certeza de
coisas que se esperam e a convicção de fatos que se não vêem.” Pode haver definição de fé mais
concisa e objetiva do que esta? — ele perguntou a uma platéia de quatro perplexos assistentes,
mamãe, eu, Suely e Luiz. Aninha ainda era pequena demais para saber que estava viva.
Na seqüência, ele disse que iria ler a Bíblia toda e foi para o Gênesis. Mamãe, entretanto,
razoavelmente acostumada à leitura bíblica, pensou que se papai fosse para o começo do livro, ele
perderia a motivação logo de saída. Ela temia aquelas longas genealogias judaicas ou aqueles
textos cheios de leis cerimoniais e de recomendações litúrgicas completamente desinteressantes
para o leitor leigo.
— Por que você não começa do Novo Testamento? Este livro é diferente. Para que se possa
entender bem o começo, precisa-se compreender o fim — falou mamãe.
Na verdade, o que ela queria era que ele lesse logo sobre a vida de Jesus e seus feitos
maravilhosos, pois sabia que, se ele realmente tivesse uma introdução livre e sem preconceitos à
leitura dos evangelhos, Jesus certamente exerceria sobre papai uma profunda fascinação. Tão
logo seus olhos caíram sobre as páginas dos evangelhos, algo estranho começou a acontecer a ele.
A história de Jesus, conforme Mateus, encantou-o, especialmente pelo fato de que ali Jesus
aparece fortemente judaico e como a resposta de Deus às questões do povo de Israel. Papai não
podia entender como a vida de Jesus cumprira propósitos proféticos tão minuciosamente
detalhados pelos profetas da Antiguidade. Era incrível, mas era verdade. Estava escrito ali. Leu
Marcos, foi a Lucas e mergulhou de cabeça em João. Ele não conseguia parar. O fato é que
quando ele chegou a João, capítulo 19, na narrativa da Crucificação, já era madrugada, aí pelas
duas da manhã.
Ele estava só, sentado na cozinha. Seu coração ardia com um calor que ele jamais
experimentara em toda a sua existência. Sua alma estava enternecida por um amor que ele não
sabia que existia neste mundo. Subitamente, caiu sobre ele uma profundíssima convicção de
culpa. Começou a chorar e ajoelhou-se diante daquele amor que o vencia. Ainda mais
profundamente, veio-lhe à mente uma outra percepção: a morte de Jesus não fora uma ocorrência
de amplitude somente histórica e sociológica, ou seja, não tinham sido apenas os judeus e os
romanos que haviam matado Jesus. De alguma forma que não podia explicar, veio-lhe a certeza
de que ele, Caio Fábio D’Araújo, filho do Dr. João Fábio de Araújo e neto de seu Araujinho,
também era responsável pela morte de Cristo. E não somente ele, mas cada pessoa neste mundo.
Naquela hora, papai compreendeu que havia algo irremediavelmente errado com a natureza
humana, sendo essa a razão pela qual, mesmo desejando o bem, freqüentemente nos metemos
naquilo que nos destrói a vida.
— Jesus, perdoa os meus pecados — disse ele, certo de que aquele com quem falava estava
ali, na cozinha do apartamento da rua Justina Bulhões, em Niterói.
Depois de fazer aquele pedido de perdão, ele se assustou com uma voz que estrondeou
dentro em seu íntimo.
— E tu, perdoas os teus inimigos?
E compreendeu que a resposta à sua oração não vinha de Deus, mas dele mesmo, como
indivíduo, cheio de ódio que estava por vários inimigos. De alguma forma aquilo fazia sentido
com as orações que ele repetira tantas vezes lá no Colégio Dom Bosco: “Perdoa as nossas dívidas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores.”
Ele se levantou da oração, andou sozinho, chorando pela casa, até que viu cartões de Natal
espalhados sobre o bufê da sala de estar. O Natal seria dali a dois meses. Pegou oito cartões,
sentou-se e escreveu uma mensagem: “Aquele que disse ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’,
ordenou-me hoje a vir à Tua presença rogar que Tu me perdoes por qualquer mal que eu possa
ter feito a Ti. Feliz Natal para Ti e para a Tua família.”
Ele sentiu uma paz celestial invadir seu coração e chorou de gozo no espírito até que o dia
amanheceu.
Discretamente, prosseguiu seu caminho no cotidiano. Não disse nada a ninguém. Apenas
mostrava no rosto um sinal de transcendência. Havia uma luz nele. Seu olhar clareou e ele não
conseguia esconder que seus valores estavam passando por um processo rápido e profundo de
total transformação.
A leitura da Bíblia encheu as noites de papai. Chegava em casa o mais cedo que podia e, em
silêncio, mergulhava no livro. Era como se ali houvesse um túnel, aberto no tempo e na
eternidade, pelo qual os mortais ávidos por Deus recebiam um acesso especial para entrar. E ele
entrava sem hesitação.
Até ali a experiência era religiosa, mas não havia nada de religião, igreja, pastor ou grupo
específico em questão. Papai queria Deus, mas tinha pavor de ser domesticado pela religião. Por
isto mesmo, mamãe não lhe disse para ir procurar um pastor para conversar. Vendia o peixe
evangélico dela, mas muito cautelosamente.
O fato é que no Natal de 1967 papai aceitou ir à igreja. Sentou-se lá atrás e ouviu o reverendo
Antônio Elias pregar com paixão, unção e muita simpatia. Ao fim da mensagem, o pastor
perguntou se havia alguém ali que desejasse fazer uma decisão pública, confessando Jesus como
seu Senhor e Salvador. Mamãe abaixou a cabeça e ficou ali, pedindo a Deus que papai fosse à
frente, manifestando assim sua “decisão” de se tornar um crente.
Eu, Suely e Luiz ficamos com o rabo do olho posto nele, torcendo para ele ir. Mas que nada.
Ele ficou imóvel em seu banco.
No entanto, quando o culto acabou, percebemos que havia lágrimas em seus olhos. Ele
chorara muito, sozinho, de modo discreto. Um homem com suas posturas dificilmente iria
aceitar Cristo indo à frente de uma igreja — ainda que pudesse ter decidido fazer assim —, pois
aquele gesto, para ele, significava muito pouco. Sua grande decisão já havia sido tomada e ele
sabia que Deus não era burocrático e nem legitimava as coisas apenas porque os homens as
validavam.
Com o pé na igreja, seu progresso espiritual foi rápido. Logo ele estava à testa de vários
trabalhos e tomando posições de liderança entre os cristãos de seu convívio. Além da Bíblia, ele
enveredou por várias outras leituras espirituais. Era como se tivesse sido transportado para um
mundo onde a cada dia ele fosse introduzido a dimensões da vida absolutamente novas. E não
cabia em si de tanta alegria. Andava pelas ruas arrebatado de gozo. Mostrava um sentimento de
solidariedade para com a trajetória coletiva, e especialmente para com os desfavorecidos, que era
algo mais forte do que ele jamais experimentara nos melhores dias de sua generosa alma juvenil.
A advocacia perdeu completamente o encanto para ele. Não conseguia mais mentir. Por isto,
passou a dizer que não podia advogar. “Um bom advogado é especialista na arte de mentir. Por
isto, eu era tão bom. Agora, sou medíocre. Esqueci como é que se mente”, dizia ele sem
amargura, mas preocupado com o futuro.
Seus companheiros de escritório assistiam aturdidos às mudanças radicais que aconteciam à
sua vida. Não conseguiam entender como a leitura de um livro poderia ter causado tamanha
revolução na vida do colega. Dizia-se que ele se tornara generoso, mas meio bobo.
Para ele, passou a haver uma única preocupação: voltar a Manaus e comunicar à mãe e aos
irmãos que se convertera à fé de Lacy. Temia que dona Zezé não compreendesse. Seria uma
traição à família e aos anos de prática católica.
Quando ele foi a Manaus, o boato já andava por lá. Papai chegou e tentou mostrar que não
mordia e nem andava como “bode”, o que fez com competência. Mas quando o domingo chegou e
ele se aprontou, pegou a Bíblia e saiu para a Igreja Presbiteriana, sentiu nas costas o olhar gelado,
mortal e amargurado de sua mãe.
Não trocaram palavras, mas a força do olhar foi tão penetrante, que ele diz ter vivido ali seu
pior conflito em relação à sua conversão. Mas não tinha volta. Era uma questão de vida e encontro
com a essência de si próprio. Desse no que desse, não negociaria os valores que o haviam
transformado num outro ser humano. E isso não tinha nada a ver com ele ser católico ou
protestante, mas com o fato de ter encontrado Cristo.
Capítulo 12

“Eu desejo me recordar de minha maldade passada e de toda a minha corrupção


carnal não porque eu ame ou me orgulhe de tais memórias, mas exclusivamente
para que eu possa amar mais a Ti, meu Deus. É, portanto, por amor a Ti que eu
realizo este ato de lembrança.”

Santo Agostinho, Confissões

No início foi muito bom, mas logo comecei a achar que a conversão de papai estava indo
longe demais. Ele estava ficando fanático. Não parava de ler a Bíblia e parecia ter esquecido dos
problemas que tivera com o sexo oposto, pois mesmo nos anos de seu relacionamento com
Simone, tentava se mostrar rigoroso comigo em questões como namoro e coisas do gênero.
Fingia que não sabia o que eu andava fazendo com as meninas: beijando uma aqui, amassando
outra ali, namorando rapidamente uma outra acolá, mas quando ficava sabendo, sempre dava uma
de moralista, tipo: “Você só namorará com a minha autorização.” Obviamente, não funcionava.
Entre os 12 e os 14 anos de idade eu brinquei ativa e precocemente de namoradinho com as
garotinhas que apareciam disponíveis na rua, na escola e até na igreja.
Ele também era muito rigoroso com outras questões, como cigarro e bebida. Mas eu pensava
de modo diferente. Achava cigarro algo lindo, profundamente decorativo e que dava à pessoa um
tremendo ar de maturidade. Aos 12 anos, dei minha primeira tragada num Continental sem filtro
e quase morri. Fiquei tonto, meu corpo começou a formigar e caí na calçada da casa de um amigo
gritando desesperado que eu estava morrendo. Sobrevivi ao susto. Um mês depois, refeito das
más lembranças da experiência e seduzido pelo status que o cigarro dava entre as meninas,
resolvi tentar domar aquele bicho. Não foi difícil. Um mês depois eu já não me sentia mal
fumando. Mas papai dizia que, se soubesse de qualquer coisa, me daria uma surra de cinturão.
Na igreja conheci uma menina dois anos mais nova que eu, chamada Fernandinha, e me
apaixonei por ela. Era o retorno emocional da Margarida. A coisa veio com uma força enorme e
quase me nocauteou. Mas aquele sentimento juvenil não era forte o suficiente para me afastar de
outras aventuras. Eu dizia: “Não procuro outras, mas também não fujo da raia se aparecer dando
sopa.” E foi assim que um dia papai chegou em casa com um compadre de Manaus e sua filha,
uma morena de rosto extremamente delicado e cabelos de índia, eu botei os olhos na garota e me
alucinei, especialmente porque seus lábios eram um irresistível convite ao beijo saboroso.
Aquele foi meu primeiro conflito explícito sobre a força da traição que existe dentro dos seres
humanos. Eu gostava da Fernandinha e não desejava fazer qualquer coisa que a magoasse. Mas
olhando aquela garota, sua faceirice, o mover sedutor de seu corpo de 16 anos de idade e aqueles
lábios, cheguei à conclusão que não a deixaria passar incólume pela minha casa. O que eu não
sabia era que ela já chegara decidida a viver muito bem aquele fim de semana. Sendo quase três
anos mais velha do que eu e conhecendo-me de fotografia, achou que não faria mal se ela desse
uns abraços pedagógicos naquela criança antes de voltar a Manaus, onde o namorado, um rapaz
de vinte anos de idade, a esperava.
E ela me atacou com tal poder e domínio, que não precisei fazer outra coisa, a não ser me
entregar à avidez da garota.
Ela foi embora e me deixou perplexo. No fundo, fiquei pensando que o compadre de papai
estava tendo um problemão com a filha e não sabia. Fiz tudo para não me apaixonar, apesar de
não conseguir esquecer seu cheiro e o doce gosto de seus lábios. Seis meses depois ficamos
sabendo que ela estava grávida do namorado de Manaus e que os dois se casariam. De qualquer
forma, a doce experiência com uma menina mais velha e tão bela, que já estava até casando,
levantou imensamente a minha autoconfiança.
Papai, entretanto, mesmo não sabendo das minhas aventuras com as meninas, fazia
colocações pesadíssimas sobre aspectos de natureza moral relacionados ao namoro. Eu não
estava gostando nada daquilo. Achava que ele havia esquecido rápido demais as dores que a sua
própria falta de moral havia causado a todos nós. Além disso, também não me agradava que,
depois de crente, a única coisa que ele quisesse fazer fosse falar de Cristo, onde quer que parasse
para conversar. Eu me constrangia com aquilo. E para completar, ele se afastou completamente
do meu mundo. No início, ainda ia ao Maracanã comigo e dirigia o time Ingá Futebol Clube que
eu e uns garotos do bairro havíamos fundado. Mas depois de dois anos de igreja, ele não tinha
mais tempo para nada disso.
E comecei a achar chato tê-lo por perto. Vendo televisão, ele sempre fazia comentários sobre
como o mundo estava perdido e como os homens eram cegos e sem Deus. Eu ficava quicando de
raiva e pensava: “Pô, tudo bem que ele não goste. Mas não precisa ficar fazendo sermão sobre
tudo. Ele tá é muito chato.”
Para completar, ainda havia um pessoal esquisito em volta dele. Um ex-cangaceiro, sempre
cheio de histórias de milagres do Nordeste; um ex-suicida, seu Edésio, sempre duro de grana e
falando de como a graça de Deus o salvara de pular de um prédio na avenida Amaral Peixoto, em
Niterói, e um monte de gente pobre e simples que o procurava na esperança de que aquele
“irmão próspero” tivesse uma pequena ajuda para lhes dar. Eu achava o fim da picada. Ali, de
alguma forma, começou a crescer dentro de mim um profundo repúdio por papai, mamãe e
aquela fé que eles haviam abraçado de modo tão fanático.
Capítulo 13

“Durante a celebração de Teus ritos solenes, dentro das paredes de Tua igreja, eu
ousei cobiçar uma menina e iniciar um caso que me faria, mais adiante,
experimentar os frutos da morte.”

Santo Agostinho, Confissões

Enquanto meus pais se dedicavam cada vez mais à fé, eu experimentava uma vida cada vez
mais ambígua. Na igreja, eu era visto como bom de bola, bom de papo, bom garoto e
bem-entrosado. Fora da igreja, entretanto, todo mundo sabia que, na verdade, eu era apenas um
“dublê de crente”, pois as estripulias que eu fazia falavam de uma outra pessoa, que apenas uns
poucos, e igualmente sonsos, da igreja conheciam. O problema era que meus heróis eram todos
malucos e nenhum deles era cristão. Atum, um cara magro, esquisito, bom de bola, maconheiro e
cômico, era a figura que eu mais admirava por sua inteligência irreverente, seu anarquismo e sua
tendência suicida. Depois, vinha o Zé Bumbum, meio desequilibrado, com uma vocação terrível
para a criminalidade, amigo de prostitutas e vagabundos, sempre de cabeça feita de maconha e
sem medo de morrer. Ele também era meu herói. Havia ainda o Marcinho, pernas tortas
conforme a moda, nariz bonitinho, rosto bem-formado, cabelo longo, cara de malandro rico, bom
de papo e bom de mulher. Ele era tudo o que eu queria ser. E, por último, havia os filhos do
governador do estado do Rio, Jeremias Fontes. Eu não os conhecia, mas estudávamos juntos no
Colégio Batista de Niterói. O mais velho era muito louco e eu o achava o máximo. Admirava a
“caminhada torta” de todos os dias do rapaz, quando andava uns quinhentos metros da escola até
o portão do palácio, por onde passava completamente alucinado de tanta droga. Enfim, minhas
admirações já indicavam a direção que eu queria tomar.
O mundo fervia sob o impacto da revolução de valores promovida na Europa e nos Estados
Unidos e explodia sob o som dos Beatles, Rolling Stones e Cia. No Brasil, havia uma angústia
sufocada, que fora gerada pela falsa liberdade que o golpe militar institucionalizara. Todos os
ventos sopravam na direção de algo novo. E num mundo cuja ordem era mantida pelo tacão do
autoritarismo, a loucura das drogas parecia ser o passaporte mais fácil para a fantasia. Possuído
por ansiedades existenciais que latejavam em mim desde a infância, percebi que a via para
encontrar aquele algo que a mangueira sagrada da casa da vovó instituíra como meu referencial
espiritual na vida talvez fosse o caminho das drogas.
Existencialmente, eu já vinha entorpecido, mesmo sem jamais ter colocado um baseado na
boca. Minha mente já era de maluco. Havia deixado de ser careta e vivia como louco fazia tempo.
Passei quase um ano vendo a vida como um ser desarvorado antes de decidir tomar a primeira
droga. Foi só num entardecer de julho de 1969 que um amigo me serviu um baseado. Eu estava
na praia de São Francisco e fiquei com medo de fumar ali. Por isso, convidei-o para ir comigo à
casa de Fernandinha, ali mesmo no bairro. Eu sabia que não havia ninguém lá. Sentamos num
tronco que havia no jardim e fumamos a maconha. Depois, andamos a esmo pelo bairro. Não deu
onda nenhuma. Foi uma decepção. No dia seguinte, novo baseado. Que onda! Andei sem parar,
sentindo o mundo passar sob meus pés como uma esteira rolante de aeroporto americano.
Não consegui mais parar de fumar maconha. Não que aquilo viciasse, como diziam os
caretas, mas é que eu já estava “psicologicamente viciado” antes mesmo de usar aquilo. Vícios
daquele tipo são, antes de tudo, necessidades existenciais de almas carentes e sedentas. Têm a
ver com o desejo do eu de se projetar para outro mundo. Daí os drogados serem quase sempre,
também, pessoas com fortíssima tendência religiosa e artística. Em meu caso, a maconha e as
drogas que a ela se seguiram eram apenas uma demonstração de como minha alma ansiava por
transcendência.
Logo estava fumando quatro ou cinco baseados por dia. Para me levantar da morgação que a
maconha causava, os amigos começaram a aconselhar que eu tomasse umas anfetaminas
argentinas. Aí era excitação o tempo todo. Junto com as drogas vieram também os coquetéis de
álcool. Valia tudo. “O negócio é não perder a lucidez da loucura”, pensava. Na igreja, ninguém
sabia que eu estava doido daquele jeito. Dava uma bandeira aqui, outra ali, mas nada tão grave
assim.
Seis meses depois de estar usando drogas direto, tive uma profunda crise de culpa e angústia.
Achei que estava me destruindo e fiquei com medo quando um dia vi o Atum babando de doido
no banco da praça. Será que eu também ficaria daquele jeito?
Nessa ocasião, o reverendo Antônio Elias chamou para pregar na igreja um jovem de Goiânia,
de uns 23 anos, e que diziam já ter sido um grande “micróbio”, viciado em todo tipo de droga
possível, mas que tivera um encontro de fé com Jesus e deixara de vez todas aquelas loucuras. A
propaganda foi tão grande, que fomos todos ouvir o Zé Berto. Ele falava com uma voz rouca, que
dizia ser conseqüência do uso de drogas pesadas por muito tempo, e fazia descrições incríveis.
“O cara era da pesada”, dizíamos uns aos outros no jardim da igreja após os cultos. Noite após
noite ele contou a mesma história. Obviamente, deixava episódios diferentes para cada noite, a
fim de manter a nossa atenção. No fim de tudo, fazia um “apelo à conversão e à salvação”,
pedindo que largássemos aquele mundo mau e nojento no qual estávamos crescendo.
Certa noite um garoto bom de bola, filho de um líder leigo da igreja, foi à frente no “apelo” e,
ao fim do culto, confessou que estava usando drogas e fazendo muitas outras coisas erradas. Foi
um choque para todo mundo. A notícia caiu sobre mim como uma bomba não por ele estar
fazendo aquilo, mas por ter tido a coragem de confessar. Em 1969 dizer aquilo era quase como ter
coragem de admitir que você tinha contraído o vírus da AIDS num convento. Era aquele bafafá.
Achei que talvez fosse a minha chance de falar também, mas pensei melhor e preferi ficar
calado. “Vou pegar carona na confissão dele e largar a droga. Mas prefiro ficar na minha para ver o
que acontece”, pensei. Passamos aproximadamente cinco meses de arrebatamento espiritual.
Fazíamos vigílias de orações noturnas, pregávamos na praça das barcas em Niterói, cantávamos
nos cultos da igreja, visitávamos outras comunidades, dávamos testemunho de nossa conversão e
empolgávamos aonde íamos.
Foi naquele mesmo período que descobri que minha gagueira, renitente desde os meus sete
anos de idade, ia e vinha, alternando-se conforme meu estado emocional. Mas quando eu falava
em público, como naqueles cultos juvenis em que eu lia um texto bíblico e exortava a moçada a
seguir o caminho de Deus, a gagueira desaparecia completamente. E mais: o pessoal vinha a mim
e dizia que eu tinha “o dom da palavra”. Eu não sabia muito bem o que era aquilo, mas percebia
que quando eu falava, todo mundo parava para ouvir. E aquela era uma relação estranha,
profundamente sedutora. Angustiava-me pela responsabilidade de estar falando em nome de
Deus, mas fascinava-me por perceber o embevecimento das pessoas frente ao discurso.
O fogo daquela experiência não era profundo e muito menos duradouro. Aliás, eu diria que
era “avivamento espiritual de fogo de palha”. Como a atitude do grupo era muito pentecostal —
concentrada na possibilidade de que dons sobrenaturais, como o falar em outras línguas e as
profecias, se manifestassem em nosso meio — e como nós todos éramos muito imaturos, não
demorou muito para que aparecessem uns espertalhões se fazendo de profetas, dando
mensagens espirituais para as gatinhas e falando em nome de Deus sobre quem deveria namorar
quem. “Meus servos, hoje estou aqui para revelar para a minha serva que aquele que se declarou a
ela é o jovem puro e crente que eu tenho reservado para ela. Portanto, minha serva, assim diz o
Senhor: Não tenha medo”, falava o cara em nome do Altíssimo.
Declarações como essa começaram a acontecer com freqüência, e eu via que era pura
armação. Ora, esse tipo de coisa era inconcebível mesmo para mim, que não era nenhum
exemplo de pureza. Eu podia admitir qualquer molecagem ou safadeza fora daquele contexto.
Mas esse negócio de dar cantada nas meninas em nome de Deus me enojava. Eu achava os caras
frouxos, sem peito para ir à luta em nome deles mesmos, e que por isso evocavam um desígnio
divino que obrigava as meninas a os aceitarem.
Não dava. O Atum, Zé Bumbum, Marcinho e os outros eram muito mais honestos. Botavam a
cara para fora e assumiam quem eram e o que faziam. Dei o fora dali.
Como Jesus já havia predito, uma casa vazia e ornamentada é um atrativo mais que especial
para seus antigos moradores. Por isto, com meu abandono interior da fé, cresceram dentro de
mim diversos sentimentos estranhos. Eram desejos de toda sorte, que provocavam em mim
paixões incontroláveis. Eu queria comer a vida por onde quer que ela pudesse ser experimentada,
provada e saboreada. As drogas voltaram com força nova e minhas resistências em relação a tentar
evitar o uso sistemático delas desapareceram completamente.
Naqueles dias, o único amigo careta que eu tinha era o Téo, filho mais novo do reverendo. “É
careta, mas é gente boa”, eu justificava a minha amizade com ele para um grupo cada vez maior
de amigos malucões. Além de ser gente boa, Téo e os irmãos — Cecé, Lucilia e Lúcio — tinham
em casa uma tremenda coleção de discos importados. Nós ficávamos ali no quarto de Téo
ouvindo Jimmi Hendrix, Janis Joplin, Joe Coker, The Beatles, The Rolling Stones, Crosby, Still,
Nash & Young e muitos outros até que nossas almas ficassem carregadas com a loucura dos
tempos. Depois eu saía dali, dava uma namoradinha, e me entregava à loucura até não haver mais
ninguém para falar bobeira comigo na rua.
Os dias passavam sem alterações maiores que as loucuras de cada esquina e o frenético papo
com os amigos de viagem e fantasia. Entretanto, o que meus pais não podiam avaliar em
profundidade é que eu já não era quem eles supunham que eu ainda fosse. O garoto do quintal da
vovó tinha mergulhado em águas de profunda angústia. Somente alguns anos mais tarde eu
aprenderia que aquelas experiências de adolescente um dia haveriam de me colocar no vale da
sombra da morte e semeariam em mim uma dor que não escolhe idade para machucar.
Capítulo 14

“Para quem eu conto estas coisas? Não para Ti, meu Deus. Porém, perante Ti eu
faço confissões à minha raça, à raça humana, de cujo grupo apenas uma minúscula
parte poderá discernir a razão de minhas declarações. Nada está mais próximo de
Ti do que um coração disposto à confissão e a uma vida fundada na fé.”

Santo Agostinho, Confissões

Para mim, papai estava insuportável. Mas para muita gente, ele se tornara o ser mais incrível
que haviam conhecido. Com sua testa larga e profunda, seus braços grossos, musculosos e fortes,
seus cabelos castanho-avermelhados, seu olhar profundo e seu rosto calmo, cheio de paz,
movendo-se na estranha cadência e nos balanços característicos de uma incrível afinidade com
sua muleta, ele marcava a imaginação das pessoas aonde quer que chegasse.
Havia algo estranho pousado sobre ele. Sua presença era marcante, por vezes desconcertante,
e essa força carismática manifestava-se de diferentes formas e impactava as pessoas de modo
indelével. A maior demonstração disso estava no fato de que quase todos que passavam por seu
caminho sempre se apaixonavam por Deus ou diziam ter sentido uma misteriosa presença
espiritual sobre ele.
Aquela luz que dele refulgia não era, entretanto, própria. Era o fruto de atividades, exercícios
e buscas espirituais absolutamente novas, às quais ele se dedicara com amor e entrega. Após ler o
livro Apóstolo dos pés sangrentos, ele decidira que gostaria de poder viver a beleza e a
espiritualidade daquele místico indiano, presbiteriano, que praticara jejuns, orações, êxtases e
meditações com profundidade raramente encontrada entre cristãos neste século. Assim foi que
ele passou a jejuar três vezes por semana e a dedicar algumas horas de seus dias ao silêncio, à
leitura e à oração. De alguma forma, aqueles exercícios espirituais deram a papai novas
dimensões sobre o sagrado e sobre ele mesmo em relação à vida.
Não demorou muito e aquela graça que sobre ele pousara começou a dar evidências de que
chegara para ficar. No seu escritório de advocacia, os episódios mais esquisitos não paravam de
acontecer. Eram casais que chegavam para discutir as bases do desquite e que, após ouvirem
papai falar sobre como seu lar fora salvo pelo amor de Deus, desistiam de seu intento e acabavam
tendo nele não um profissional das negociações de separação, mas um amigo, um pastor, uma
ponte para a reconciliação. Além disso, ninguém que chegasse no escritório em desespero saíra
sem uma palavra de conforto ou uma oração. O lugar transformou-se num centro de irradiação de
amor e perdão.
Dentre as muitas histórias está a de uma senhora que o procurou para se separar de um
marido machão, violento e iracundo. Após ouvir a história de agressões e brutalidades da parte do
marido, papai sugeriu a ela que deixasse que ele conversasse com o homem antes de iniciar o
processo de separação. Mandou-lhe um convite por escrito e aguardou o bicho.
Um dia, na hora do almoço, depois que todos tinham saído, ele estava sozinho no escritório
lendo a Bíblia e jejuando quando, de repente, percebeu o movimento agitado de alguém do outro
lado da parede de vidro fosco que dividia seu gabinete da sala da secretária.
— Pode entrar que eu estou aqui dentro — ele disse sem saber quem era. Entrou um
homem suado, ofegante e fuzilando de ódio. Papai pediu que ele se sentasse e disse: — O senhor
parece aflito. O que eu posso fazer para ajudá-lo?
O homem respondeu apenas que era o marido de Selma e que queria saber que ousadia era
aquela dele de tentar interferir em decisões que já estavam tomadas e que macho nenhum no
mundo poderia mudar.
Papai explicou que não estava tentando mudar nada, mas apenas pedindo que eles
considerassem se aquela era a melhor decisão. Disse, ainda, que ele mesmo sabia o que era
aquilo, pois já estivera na mesma situação. Depois de conversar com calma e respeito para com as
angústias do homem, papai viu a fera tirar da barriga um revólver carregado e colocá-lo sobre a
mesa.
— O senhor sabe, eu não vim aqui conversar. Eu vim aqui matar o senhor. Eu sou um
homem que não admite ninguém dizendo o que eu devo fazer de minha vida. Vim para encher
seu peito de chumbo. Eu sabia que a essa hora o senhor estaria sozinho. Já havia estudado os seus
costumes. O problema é que eu cheguei aqui e vi o senhor lendo a Bíblia, com essa cara de santo.
Quem é que pode matar um homem que está cheio de uma coisa como essa que está saindo pelos
seus olhos? — disse ele e, em seguida, caiu de joelhos, chorando e pedindo que papai orasse por
sua vida. Depois da oração, o homem foi embora e no domingo seguinte estava com a esposa na
igreja que papai freqüentava.
Mas naquela época papai também conheceu a presença dos demônios e a força do nome de
Jesus quanto a expulsá-los de suas vítimas. Num certo sábado à tarde, ele estava orando na igreja
quando foi chamado para uma sala onde o reverendo Daniel Bonfim lutava, há horas, tentando
expulsar um espírito maligno. O tal espírito possuíra uma moça, que fora levada ao pastor já
atacada por aquela entidade. Lá em cima, na sala, o pastor ouvia o demônio dizer que ali no lugar
só havia uma pessoa respeitada no mundo espiritual.
— Quem é essa pessoa? — perguntou o reverendo.
— É aquele homem que está orando sozinho, lá dentro do templo — responderam os
espíritos. Era papai. Imediatamente foram chamá-lo, e ele subiu até o lugar do exorcismo,
embora nunca tivesse estado numa situação como aquela.
— Ele ora. Ele conhece a Deus. Não gostamos de sua presença — papai ouviu uma voz
masculina gritar em desespero quando entrou.
— Espíritos maus, saiam dela em nome de Jesus — disse ele simplesmente, estendendo a
mão.
Os espíritos imediatamente saíram da jovem e entraram em seu noivo, que estava na mesma
sala. Ao perceber que tinha havido uma transferência, papai insistiu na ordem. O rapaz foi agitado
ao chão e estrebuchou em convulsões incontroláveis. Em seguida, gritou e respirou aliviado.
Papai o ergueu e, juntamente com o reverendo Daniel, aconselhou o casal a seguir a Cristo e a se
afastar dos rituais de culto escuso onde eles haviam contraído aquela espiritualidade tirana.
E assim as coisas prosseguiam. Entre os anos de 1967 e 1969 ele foi tudo, menos advogado, e
seu escritório nada mais era do que um centro de irradiação de graças e preces.
Dentre os que se beneficiaram de seu ministério espiritual houve um homem chamado
Barros.
Seu Barros era cliente de papai e lhe devia alguns honorários por um trabalho já executado.
Como àquela altura papai já tinha mais quatro colegas advogando com ele, ficava difícil
simplesmente perdoar as dívidas dos clientes negligentes no pagamento. Quando dependia só
dele, em geral dispensava os que não pagavam. Mas quando envolvia os outros companheiros, ele
tinha de insistir no pagamento. Seu Barros era um desses cujo dinheiro seria repartido entre os
advogados. Mas o homem não pagava, não atendia aos telefonemas e não dava notícias.
Um dia, depois de muito esperar, papai resolveu ir à loja do homem, no bairro de Santa Rosa,
em Niterói. Ao chegar lá, assistiu a uma cena chocante. Seu Barros, traspassado de dor e agonia,
chorava desconsolado em sua sala de trabalho.
— O que está acontecendo, meu amigo? — perguntou meu pai quando entrou. O homem
apenas exclamava que era uma tragédia.
— Mas que tragédia? Conte-me — pediu ao homem descontrolado.
— É meu filho, doutor, meu único filho — foi só o que pôde dizer antes de mergulhar no
pranto outra vez.
Após alguns minutos, seu Barros conseguiu contar que seu filho tinha acabado de ter um dos
olhos perfurados por uma bala de ar comprimido e que em duas horas o seu globo ocular seria
removido. E caiu no choro outra vez.
Papai ficou ali, calado, ouvindo o homem derramar a sua dor e frustração. Foi só depois de
algum silêncio que ousou falar.
— Seu Barros, eu creio em Deus. Eu O conheço e sei que Ele me conhece. Eu não sei o que
Deus tem a dizer sobre a sua situação. Mas uma coisa eu sei: Ele é solidário. Também não sei se
Ele vai curar o seu filho. Mas uma coisa eu sei: Ele pode curar o seu filho. O senhor me permitiria
falar com Deus agora mesmo sobre essa situação? — perguntou. Seu Barros apenas sacudiu a
cabeça em aprovação, não esboçando nada além de um resignado consentimento.
“Jesus, sei que Tu podes tudo. Tu fizeste os olhos, por isso Tu podes curá-los. Por isso, se
Tu queres alguém com fé para que Tu operes um milagre, então conta com a minha fé. Eu não
duvido que Tu podes fazer isto — disse meu pai ajoelhado. Em seguida, levantou-se e saiu.
Alguns dias depois, papai voltou à loja do cliente. Ao chegar, encontrou um clima de
celebração. Seu Barros não parava de rir.
— Não contaram ao senhor o que aconteceu? — foi logo perguntando. Como papai não
soubesse de nada, ele prosseguiu dizendo que naquele dia saíra dali e fora para o hospital, onde
viu o filho passando para a sala de operações. O médico, na intenção de consolá-lo, disse que
existiam próteses muito boas, quase perfeitas, e que o olho do garoto seria esteticamente
recomposto. Seu Barros ficou chorando no corredor, quando, subitamente, viu o médico sair
pálido da sala de operações, gritando: “Eu não sei quem é o seu Deus meu senhor, mas o nome
dele deve ser ‘O Todo-poderoso’. O olho de seu filho está normal. Eu tirei o tampão e não havia
nada. Não pode ser. Eu mesmo tinha examinado o rapaz. Tem de ser milagre.” E o médico
sacudia seu Barros, assustando todo mundo dentro do hospital. — Foi isso, doutor Caio. Seu
Deus é vivo e faz milagres. Que maravilha!
Naqueles dias, entretanto, um sentimento de desconforto começou a tomar conta de meu
pai. Havia uma voz sussurrando em sua alma uma ordem que ele não sabia qual era. Chamou
mamãe e pediu para ser deixado sozinho em casa durante um fim de semana. Precisava orar e
jejuar a fim de discernir “o que a voz tentava lhe dizer”.
Trancou-se em casa e dedicou-se à leitura bíblica e às preces. À noite teve uma visão. O céu
se abria e ele via o horizonte tomado pela Glória de Deus. Eram cores, matizes e formas
inimagináveis. Miríades de seres espalhavam-se entre o céu e a terra. Jesus parecia ser a pessoa
no centro de tudo. Enquanto isso, papai tremia de gozo e alegria. Era um sentimento de outra
dimensão. Ele jamais provara nada igual. De súbito, ouviu uma voz estrondeando sobre ele:
“Caio, Caio. Eis que te dou dois ministérios neste mundo: tu curarás enfermos e expelirás
demônios.” Papai ficou ali, imóvel, na cama, possuído pelas percepções de camadas da existência
que transcendiam a tudo o que ele jamais pudera sentir, pensar, desejar ou imaginar.
No dia seguinte, levantou-se cedo e ficou andando pela casa, sozinho. O gozo dera lugar a um
enorme peso. Um senso de dever o esmagava. Mas ele não sabia onde, como e nem para quem se
dirigir. Começou a dizer: “Jesus, se Tu estás me chamando para trabalhar para Ti, diz-me como
e onde. Eu já não sou mais jovem e tenho família para criar. Mas se Tu me chamas, eu largo tudo.
O que eu quero é provar sempre essa alegria de conhecer a Ti.”
Enquanto ele andava pela sala, seu olhar pousou sobre um quadro amazônico que mamãe
pendurara numa das paredes da casa. Mas seus olhos, entretanto, não viram o quadro, mas um
indiozinho que, nostalgicamente, remava uma canoa feita de um tronco de árvore, que deslizava
suave por entre as árvores de um igapó.
Igapós são alagações do rio na floresta, na estação das chuvas, no Amazonas.
O cenário era o mesmo ao qual ele se acostumara quando viajava para o seringal do Santo
Antônio do Cainaã. Tudo estava de volta. As vozes e os clamores da floresta estavam ainda
presentes e faziam apelos de força irresistível à sua alma.
Quando a família voltou para casa, ele comunicou à mamãe que Deus tinha falado com ele e
que o estava compelindo a voltar à sua terra natal, a fim de evangelizar seus conterrâneos
desesperançados.
Mamãe ouviu com um misto de alegria e preocupação. Como é que isso aconteceria sem
profundos traumas para as crianças, especialmente para mim? Tinha sido horrível sair de lá. Mas
agora, quem queria voltar? Aos 45 anos, como ele iria sustentar a família, sempre acostumada ao
conforto? E como ele viabilizaria esse seu chamado junto à igreja? Iria para o seminário? Mas
como? Já não era tarde para largar tudo e ir para uma escola de teologia por quatro anos?
Contar isso para nós é que seria o problema. Suely e Luiz, entretanto, eram pessoas bem
mais cordatas do que eu e aceitaram — não sem alguns choramingos — que a volta para Manaus
poderia ser boa. Eu fui o último a saber e, quando soube, fiquei com vontade de matar papai.
“Que desgraçado! Ferra a gente para sair de lá e agora, em nome de Deus, ferra a gente pra voltar.
Eu não. Num vou nem morto”, foi o que pensei e falei para a mamãe, a infeliz portadora da
mensagem.
Capítulo 15

“Que podridão! Que vida monstruosa e que morte abissal! Será possível ter prazer
no ato ilícito por nenhuma outra razão a não ser por ser ele proibido?”

Santo Agostinho, Confissões

Papai procurou o reverendo Antônio Elias e comunicou sua intenção de voltar ao Amazonas
como missionário. No início o amigo e pastor ainda tentou demovê-lo da idéia por duas razões:
achava que o Dr. Caio tinha potencial demais para ser enterrado no meio da floresta e, confessou,
preocupava-se com a família dele, especialmente com o filho mais velho, que já dava claras
indicações de incontrolável rebeldia.
Além disso, Antônio Elias não sabia se a burocracia denominacional não acabaria
“burramente” forçando papai a ir ao seminário, desperdiçando, assim, mais quatro anos de sua
vida, os quais precisavam ser bem usados no trabalho de Deus.
Papai, entretanto, foi logo dizendo que, se aquela fosse a condição para que pudesse ser
enviado como missionário da Igreja Presbiteriana, ele já havia decidido ir por conta própria.
“Afinal”, dizia ele, “não foi a Igreja quem me salvou, foi Jesus. E foi lendo a Bíblia sozinho que a
luz me iluminou. Não preciso ser um teólogo para anunciar às pessoas o mesmo amor livre e
simples de Deus que me alcançou.” Esse era o seu veredicto. Afinal, ele não chegara até aquele
ponto da vida tutelado por ninguém, e não seria agora, quando sua alma estava mais livre do que
nunca, que ele aceitaria o cabresto de uma instituição religiosa.
De algum modo os pastores da cidade sabiam disso e decidiram enquadrá-lo num artigo da
constituição da Igreja Presbiteriana que autorizava o presbitério — a instância local da hierarquia
da igreja — a ordenar ministros de vocação tardia, mesmo que esses não tivessem o curso formal
do seminário. Além do mais, pouquíssimos ministros evangélicos no Brasil dispunham da
formação acadêmica e da bagagem cultural de papai. Por isso, ofereceram-lhe um curso breve,
designaram-lhe o reverendo Antônio Elias como supervisor teológico e pediram que ele
escrevesse uma tese teológica até o fim de 1970, quando então eles o ordenariam pastor. E foi o
que aconteceu.
Quando eu percebi que não havia nada que demovesse papai da idéia de retornar ao
Amazonas, enlouqueci com todas as minhas forças. Um ódio estranho, cheio de desprezo,
começou a crescer em mim em relação a todos eles: papai, mamãe e a gente da igreja —
orgulhosos que estavam de terem apanhado um peixe grande, que agora se candidatava a São
Francisco, querendo viver de modo monástico no meio da floresta. “Ele podia fazer o que
quisesse”, eu pensava, “mas que fosse sozinho. Podia viver como pobre, mas que nos deixasse
numa boa.”
O sentimento de hostilidade cresceu tanto em mim, que eu não podia nem ouvir a voz de meu
pai. Mas ele e minha mãe não pareciam perceber a profundidade de meus sentimentos e nem a
enorme amargura que em mim crescia. Tratavam-me como se nada estivesse acontecendo e não
admitiam conversar sobre a possibilidade de que eu não fosse com eles. Sendo homem
extremamente gregário na sua idéia de família, papai não podia nem sequer imaginar a
possibilidade de deixar um garoto de 15 anos sozinho no Rio de Janeiro, especialmente porque, lá
no fundo, ele intuía que eu estava envolvido com alguma coisa ruim ou, pelo menos,
desenvolvendo uma terrível propensão em direção a algo mau.
Imaginei todas as possibilidades que poderiam me tirar daquele laço. Mas não havia saída.
Talvez se eu simplesmente fugisse, desaparecesse, eles fossem sem mim. Mas faltava peito para
fazer aquilo. Ambiguamente, eu não queria machucá-los ou tornar a vida deles miserável de
angústia e tormento, o que certamente aconteceria com o meu desaparecimento.
Foi quando me surgiu uma perversa idéia, enquanto eu conversava com um amigo, a quem
chamávamos de Pingüim.
— Ei, cara, o que você acha que poderia forçar teu pai a deixar você aqui? Se você quiser
ficar, tem que ser porque ele fez você ficar — disse Pingüim.
Fiquei ali, pensando na declaração dele, com a cabeça rodando de maconha, até que tive um
estalo.
— Já sei. Vou engravidar a filha de um grande amigo dele. Assim, ele vai me forçar a ficar.
Aquele papo dele de responsabilidade vai ser minha saída. Se a Fernandinha ficar grávida, ele vai
até me pagar para ficar, mesmo que eu queira ir — gritei.
O problema era que, conquanto eu tivesse uma vida bem desregrada em muitas áreas e nunca
perdesse a chance de faturar as garotinhas que passassem pelo meu caminho dando sopa, com
Fernandinha não era assim. Ela era apaixonada por mim e eu por ela, mas seus princípios
familiares, morais e religiosos nunca haviam permitido que ela fosse longe demais no namoro.
Achei, entretanto, que conversar com ela e propor aquela solução não seria mal. Como ela
também não queria que eu fosse e estava sofrendo com a decisão de meus pais, talvez a coisa
pudesse dar certo. Encontrei com ela muito louco, fiz uma grande introdução, chorei, sofri, falei
de como aquela separação poderia nos afastar para sempre e outras coisas. Ela chorou, me
abraçou com carinho e me olhou com imensa ternura. Os sinais exteriores eram animadores.
Expus meu plano todo.
Fernandinha era ainda uma criança. Tinha acabado de completar 14 anos. Apesar de já ter
corpo de mulher, muito bonito e desejado por todos os meus amigos e inimigos, por dentro ela
ainda era uma menininha. Tanto que meus amigos me acusavam de ter virado um “papa-anjo”
por causa de meu namoro com aquela garotinha. Mas eu não estava nem aí. Gostava dela e sabia
que todo mundo a achava linda. Era só uma questão de tempo e eles veriam o meu anjinho se
mostrar com a força incontrolável de uma amazona. Eu pagava para ver e, enquanto esperava,
curtia.
Ela me ouviu com mais seriedade do que eu havia imaginado. Ficou agitada com minha
proposta, mas não a rejeitou de saída. Pediu tempo para pensar, e eu fiquei dando a decisão dela
de participar do plano como certa. Por isso, mergulhei num mundo de fantasias e imaginei a
seqüência dos fatos. Ela ficaria grávida, a barriguinha iria crescer, seus pais ficariam sabendo,
meus pais — muito amigos deles — seriam comunicados e decidiriam casar-nos em nome da
honra. Assim é que nos casaríamos e iríamos morar na casa dos pais dela. O resto, eu imaginava,
seria o paraíso: comendo na casa dela, indo à praia com a gatinha e o neném, fumando maconha
sem maiores riscos e continuando os estudos no Colégio Batista, onde eu sabia que passar de ano
era fácil.
O que eu não poderia imaginar era que ela iria se aconselhar com uma de suas irmãs mais
velhas. E, como era óbvio, a moça explodiu com ela:
— Você está louca? Vai acabar com sua vida. Nem pense nisso
O assunto acabou chegando ao conhecimento da mãe dela, de repente, vi-me sentado na sala
da casa dela, levando um sermão muito meigo e amoroso, mas que desfazia completamente os
meus planos.
— Meu filho, o que você está planejando vai destruir a sua vida e a de minha filha. Ninguém
resolve um problema como o seu trazendo um filho ao mundo. Eu sei que você tem um
sentimento forte pela minha filha, mas vocês ainda são duas crianças. Por que você não entrega a
Deus esse problema? Se Ele tem vocês um para o outro, então nem a distância vai afastar vocês.
Mas se não é assim, logo, logo, vocês vão esquecer tudo isso e continuar a vida de vocês.
Ela foi gentil, mas firme, e eu fui para casa chutando pedra. Com raiva de Deus e da vida.
Parecia que não me sobraria outra alternativa, a não ser ir com meus pais para Manaus.
Os meses que se seguiram àquele episódio foram marcados por milagres na vida de meus
pais, e por muita raiva e loucura na minha ansiosa e perdida existência de adolescente.
No que dizia respeito a eles, os sinais todos pareciam confirmar a intenção divina de levá-los
para o campo missionário. As passagens apareceram, papai recebeu uma grande doação em
dinheiro — feita por um cliente grato pela competência profissional com a qual fora tratado —
que o capacitaria a iniciar a vida na sua cidade natal, e os estudos teológicos transcorreram sem
qualquer problema. Sua tese foi aceita e ele foi ordenado no dia 10 de janeiro de 1971.
Logo após a ordenação, mamãe, Suely, Luiz e Aninha foram para Manaus. Ele ficou comigo
até março, dando-me a chance de chorar meu luto por Niterói, pelos amigos e por Fernandinha.
Mas minha dor ficou ainda maior quando percebi que, de um modo muito sutil, Fernandinha
estava sendo tirada de mim antes da hora. Os pais dela resolveram ir para Torres, no Rio Grande
do Sul, passar as férias. E, assim, os meus últimos trinta dias no Rio já foram extremamente
sofridos pela ausência dela. Justamente por isso, caí na gandaia, nas drogas e na angústia. Quando
chegou o dia de partir, despedi-me de todos, menos dela. No entanto, de repente fiquei sabendo
que ela acabara de voltar das férias e tive de me despedir dela às pressas, na presença de toda a
família, o que fez com que eu levasse no coração uma mágoa profunda de Fernandinha e de todos
aqueles que tinham me tratado daquele jeito, tirando-a de mim antes da hora.
Entramos no avião e voamos em silêncio. Papai tentou conversar algumas vezes, mas eu fui
apenas monossilábico em minhas respostas. Chegamos a Manaus às quatro e meia da tarde de
uma terça-feira, em março de 1971. O mero entrar no ambiente de minha infância despertou em
mim sentimentos e percepções que eu já nem sabia que ainda existiam em minha alma. Respirei
fundo e senti cheiro de mata, de ar tão úmido que era quase vapor e de árvores selváticas, e vi o
colorido completamente diferente do pôr-de-sol, tinturado com os reflexos surrealistas que as
águas barrentas do Solimões e pretas do Negro fazem misturar nos céus.
Minha alma ficou confusa. Uma enorme nostalgia dos amigos e vínculos que eu deixara em
Niterói me atormentava o íntimo. Mas uma sensação de pertencimento, de inclusão e de
continuidade tomou conta de mim. Era como se eu tivesse vivido os últimos anos num outro
mundo, mas ainda alimentado pelas energias que se originavam da floresta. Uma estranha
euforia me dominou. Abracei os primos e amigos que estavam no aeroporto, a maioria dos quais
eu não via desde 1964.
Todos tinham crescido, mas ainda eram os mesmos. E eu não sabia que gostaria tanto de
reencontrá-los. No aeroporto mesmo, pulei na garupa da motocicleta que José Fábio pedira
emprestada a um amigo seu, o Gato, e corremos livres pelas estradas que circundavam Manaus.
Começava ali uma fase completamente nova de minha vida!
Capítulo 16

“A alma pratica fornicação quando ela se vira para longe de Ti e procura fora de Ti
as boas e limpas intenções que não se encontram exceto na reconciliação dela
Contigo. Assim é que no mundo, de certo modo às vezes até pervertido, toda a
humanidade busca a Ti.”

Santo Agostinho, Confissões

Em 1971, Manaus era uma cidade de aproximadamente quinhentos mil habitantes. A Zona
Franca fora estabelecida na região com o objetivo de desenvolver uma área que o governo federal
julgava ter importância estratégica. Por isso, andava-se pelas ruas vendo carros importados,
aparelhos de som sofisticados, motocicletas com roncos poderosos, roupas de grifes do mundo
inteiro, todos expostos ali como bens tão banais, que os meus amigos do Rio jamais sonhariam
ser possível.
Entretanto, uma das marcas mais características da cidade era o seu provincianismo.
Modernidade e tecnologia não tinham tido o poder de alterar o sentir interiorano dos
manauenses. Para a gente do lugar — de forma diferente do que acontecia nos dias da infância de
meu pai, quando a Europa era a referência dos amazonenses — o Rio de Janeiro era o máximo.
Era o lugar onde tudo de novo e revolucionário acontecia. Por isso, quem quer que chegasse de lá
já trazia consigo a vantagem de estar vindo do centro no qual todas as modas, novidades e
loucuras invejáveis se materializavam.
Para mim, foi facílimo faturar em cima daquilo. Meu primo João Fábio era entrosadíssimo
nos ambientes sociais e colunáveis, e não hesitou em plantar notícias que faziam de mim uma
figura muito especial, chegando de volta à terra, depois de muito curtir no Rio. No primeiro fim
de semana fui levado ao baile do Ideal Clube, que ficava na parte mais badalada da cidade. O
ambiente era pequeno-burguês, com aquele monte de garotinhas entre 13 e vinte anos dançando
de rosto colado, sob os olhares saudosos e cobiçosos de suas mães, para quem aquelas
experiências eram apenas lembranças.
Quando eu entrei ali pela primeira vez, já era famoso entre os colunáveis da cidade. Algumas
colunas sociais tinham noticiado minha chegada e eu achei delicioso sentir-me objeto da
curiosidade social da burguesia. O bom de tudo aquilo era saber que eu estava sendo desejado
por gente que eu nem conhecia. Portanto, eu saía caçando gatinhas no salão sem ter medo de ser
rejeitado. Para elas, naquelas circunstâncias, era uma honra dançar com aquele “menino do Rio”,
como elas se referiam a mim.
Ainda havia a minha aparência extravagantemente diferente. O cabelo estava comprido,
aloirado de praia e todo encaracolado. O corpo magro, já a milímetros de um metro e oitenta, me
destacava da maioria dos amazonenses, em geral bem mais baixos. As calças eram coloridas, tipo
“carne-seca”, de tecido franzido e sem zíper, deixando os pêlos púbicos expostos. Os sapatos
eram do “Souza”, no Rio, e o jeito de andar era provocativo, com a cabeça erguida, como se
tentasse sentir um cheiro que passava acima de mim. Os braços alternavam-se de modo
cadenciado, mas sacudidos de modo reto, indo da altura da perna até quase o nível da cabeça, e as
pernas davam passos largos, como que desejando engolir o chão.
Mais do que roupas extravagantes, eu tinha uma vontade íntima de chocar as pessoas e suas
formas conservadoras de interpretar a vida. Assim era que eu saía de casa, na rua Sete de
Dezembro, e andava de cueca Zazá, completamente cavada dentro das nádegas, apenas com
aquela fitinha preta aparecendo nas laterais e cobrindo os órgãos genitais. Nada mais.
Eu desfilava três quilômetros pela cidade cheia de gente, percebendo os arrepios que as
senhoras sentiam nas janelas, os olhares irritados dos maridos, os sorrisos maldosos das garotas e
as piadas odiosas dos garotos que não tinham coragem de fazer o que eu estava fazendo. Mais de
uma vez policiais me pararam e me deram voz de prisão por atentado ao pudor. Eu pedia que me
prendessem, mas sempre aparecia alguém para dizer: “Eu conheço esse rapaz, é filho do Dr.
Caio. Não faz nada com ele não.” E eu continuava meu caminho de escândalo e provocação.
À porta dos bancos, eu parava e plantava bananeira, mostrando meu traseiro para os gerentes
e dizendo que eles não sabiam o que era viver com aquela liberdade. Enfim, minha presença em
Manaus passou a ser desconcertante, provocativa e impossível de não ser percebida. E aqui e ali
eu ouvia os mais velhos dizerem: “Coitado do Dr. Fábio. Como é que um homem tão bom como
ele foi ter um neto tão desavergonhado como esse? Se estivesse vivo, morreria de vergonha.”
Quando cheguei ao Ideal Clube naquele primeiro dia, já entrei disposto a marcar minha
presença entre os meus conterrâneos como um caçador de meninas bonitas. Meu primo José
Fábio havia me informado, logo na entrada, que a menina mais cobiçada do lugar naqueles dias
era uma tal de Regininha, e mesmo sob a “luz negra” foi possível identificá-la no salão. Depois de
dançar com garotas diferentes, mirei minha presa e parti pra cima. Tirei-a para dançar, rocei
meu corpo no dela como pude, inebriei-me com o perfume importado que ela usava e senti o
cheiro doce do seu hálito. No dia seguinte, eu estava à porta de sua casa, em frente à praça da
Saudade, e já saí dali na condição de namorado da garota mais desejada no círculo das vaidades.
O namoro com Regina foi insosso e cansativo. Mas como ela era mais velha do que eu e
cortejada por rapazes também mais velhos, nós dois percebemos que éramos úteis um ao outro.
Eu aproveitava o status que o namoro com ela me dava junto aos rapazes — que morriam de inveja
de minha súbita e ousada conquista —, e ela se servia do fato de que namorar um cara novo no
pedaço não a comprometia com a política local de conquistas, ao mesmo tempo em que elevava
seu padrão. Em outras palavras, o que ela estava dizendo era: “Meu negócio é gente diferente,
capaz de romper com os padrões da terrinha.” Nosso namoro terminou em dois meses, no
máximo, mas os trunfos da conquista tiveram repercussões extraordinárias.
Nos meses seguintes eu não fiz outra coisa a não ser namorar pelo menos uma nova garota a
cada semana, fora os amassos que aconteciam de modo fortuito em cada festa a que eu ia. Às
vezes eu me via namorando duas ou três meninas ao mesmo tempo, e achava o máximo a
ginástica de ter de enganar e satisfazer a todas elas.
Tudo aquilo acontecia em razão do charme e da propaganda. De outra forma, nada se
materializaria. Afinal, eu era o garoto mais “duro” em circulação, pois a situação em casa estava
péssima. Dinheiro já era lembrança de um tempo que eu sabia que não voltaria nunca mais. Além
disso, papai e mamãe estavam preocupadíssimos com o caminho que minha vida estava tomando
e, portanto, mesmo quando tinham algum trocado, não me davam, temendo que eu usasse o
dinheiro para fazer besteira.
Os primeiros três meses em Manaus foram completamente caretas de maconha e drogas
afins. O que rolava era cachaça, cerveja e whisky. Também os rapazes com os quais eu saía não
eram do tipo hippie. O negócio deles era namorar até às dez horas da noite, apertar a menina
como podiam e tentar botar a mão em todos os lugares proibidos da geografia moral de seus
corpos. Depois, encontravam-se na praça do Congresso e saíam dali em bandos, dirigindo
alucinadamente seus carros, direto para um prostíbulo limpo, a fim de escolher a prostituta de
estimação e descontar nela os desejos reprimidos e acumulados nas três horas de namoro. Eu
entrei nessa como pude.
Até aquele ponto, eu jamais tinha estado com uma mulher bem mais velha do que eu na
cama. Mesmo as prostitutas com as quais eu saía eram sempre novinhas. Uma quarta-feira à
noite, entretanto, meu amigo Viriato me convidou para “conhecer uma mulher maravilhosa”. Era
um lugar escuro, pobre, em frente a uma igreja católica no bairro da Cachoeirinha. Perguntei se
ele tinha certeza de que valeria a pena, e ele respondeu que era “uma coroa divina”. Chegamos lá
e ele foi logo me apresentando a uma mulher de aproximadamente quarenta anos, loira, ombros
largos, quase da minha altura e que me olhou com uma expressão maternal. Viriato pegou uma
menina mais jovem e foi para o quarto com ela. Eu fiquei ali, angustiado, com medo que ela me
convidasse para entrar no quarto. Meu corpo prontamente respondeu cheio de desejo a ela, mas
minha alma sentia algo estranho: era como ir para a cama com minha mãe ou com uma das
minhas tias. E o problema não era a idade dela. Ao contrário, a idade me excitava. Era o seu olhar,
meigo, carinhoso e maternal, o que me incomodava.
Entramos no quarto, ela se despiu e veio sobre mim. Então, eu senti a coisa mais estranha
que já havia sentido na vida, naquela área de experiência: era um fortíssimo desejo proibido. Era
desejo forte o suficiente para me excitar por dentro, mas proibido demais para me permitir ter
qualquer performance sexual.
Ela ficou ali, fazendo tudo o que podia para me estimular, mas não conseguiu. Depois,
frustrada, disse-me que não custaria nada, que ela faria por amor, porque gostara de mim.
Mas eu respondi que não conseguiria. Ela ficou chocada.
— Você acha que eu sou feia? — indagou ela.
— Não, você é uma mulher bonita e eu quero você, mas hoje não dá — respondi.
— Por quê? — era uma questão óbvia. Menti, dizendo que naquele dia eu já havia estado
com duas mulheres diferentes e que elas haviam tirado todas as minhas energias. — Seu
safadinho! Tão jovem e tão ativo. Vem aqui descansado que você vai ver o que vou fazer com você
— foi o que ela declarou, virando-se na cama ao meu lado e iniciando uma longa conversa comigo.
Eu voltei à casa dela em muitas outras ocasiões depois daquele dia. Obviamente, das outras
vezes não a vi como uma parenta chegada e tive com ela relações de outra natureza, que não
apenas de diálogo. Mas de alguma forma ela se transformou numa amiga. Dava-me conselhos e
pedia para eu não fazer tantas loucuras quanto eu fazia. Seu instinto maternal estava lá, embutido
na profissão de prostituta. E como fiquei seu amigo, ela nunca me cobrou pelas conversas e pelos
outros serviços que me prestava. “Juízo, hem, menino”, era o que ela dizia sempre que eu
atravessava a prancha de madeira que ligava a casa dela à escada íngreme que conduzia para cima,
ao nível da rua.
Seis meses depois de ter chegado a Manaus, conheci dois garotos que mudariam a minha
vida. Alipinho era moreno, espadaúdo, bom de caratê, campeão de natação e sempre muito bem
vestido. Dono de um rosto perfeito, sabia usar de modo extraordinário o charme e a beleza de que
era dotado. As meninas eram loucas por ele, e ele era louco pelas meninas. Celsinho era
diferente. Obcecado por questões de aparência, cuidava de seus cabelos longos, finos e loiros,
com cuidados que eu nem imaginava que alguém pudesse dispensar ao trato dos pêlos, e todas as
suas roupas eram importadas. Celsinho amava o inglês, língua que falava com desenvoltura, e
cantava todos os grandes sucessos americanos, traduzindo para a gente as letras de todas as
músicas. Além disso, ninguém na cidade dançava melhor do que ele. Soltava seu corpo ao ritmo
das músicas com uma beleza, harmonia e leveza que faziam dele o mais cobiçado dançarino da
cidade, cortejado pelas meninas e desejado pelos homossexuais da alta sociedade.
Minha alma casou-se com as daqueles dois rapazes. Eles me completavam como ninguém
jamais conseguira no nível fraternal. Nós “colamos” e não fazíamos mais nada separados.
Alipinho era o mais experiente e Celsinho o mais inocente. Eu estava no meio. Compartilhava as
experiências sexuais de Pinho — como as vezes nós o chamávamos —, e as ansiedades filosóficas
e psicológicas de Celsinho, sempre angustiado, sempre deprimido e sempre em busca de algo
que ele não sabia o que era.
Alipinho conhecia tudo em relação ao sexo oposto. Já tinha tido affairs com mulheres casadas,
já desvirginara algumas garotinhas e, na ocasião, tinha um caso com uma aeromoça do Rio, dez
anos mais velha que ele, que o visitava a cada 15 dias em Manaus. Ele se gabava de que o bom
daquela relação era que Vera não se ressentia de que ele namorasse outras garotas, e as
namoradas se sentiam orgulhosas de dividi-lo com uma mulher tão madura e bonita.
Nos dois anos seguintes, eu vivi com aqueles amigos o período que eu considerava o mais
belo de minha vida até ali. Pensava que nada poderia ser melhor. Com eles eu esquecia a pobreza
e a caretice de papai e mamãe, e me sentia amado, aceito e estimulado. Nós só andávamos juntos,
e juntos fazíamos coisas que provocavam inveja nos demais rapazes de nossa geração. Eram
passeios de lancha, corridas de carro, banhos de cachoeira e muita música. Além disso, apesar de
Celsinho não ser nem um pouco chegado à maconha, eu e Pinho apertávamos baseados quase
todos os dias e corríamos de moto doidões pelas estradas de Manaus, gritando sozinhos e
sentindo o vento frio da noite gelar nossos rostos pelas madrugadas.
Em casa, os vínculos inexistiam. Meus pais estavam cada vez mais apavorados com as notícias
que circulavam a meu respeito. Os meses corriam e a angústia deles em relação a mim
aumentava. Um dia papai tentou me conter. Disse que não podia mais agüentar tanta loucura e
que iria me punir com uma surra de cinturão. Puxou o bicho da cintura e veio para cima de mim.
Eu olhei para ele, fuzilando de ódio, e disse: “Pode vir, mas venha preparado para apanhar. O
senhor acha que eu vou deixar o senhor levantar a mão pra me bater? Se quiser vir, venha, mas vai
entrar no cacete.”
Vi papai sentar na cadeira mais próxima, tonto com a minha declaração e com o olhar cheio de
tanta dor. Saí correndo e prometi nunca mais voltar. Somente 15 dias depois meu primo João
Fábio me encontrou na rua e me implorou para voltar. “Seu louco. Tu tá pirado? Caio Fábio, isso
é safadeza. Ninguém faz o que cê tá fazendo com seus pais e fica sem punição. Teu pai morreu
muitos anos nesses 15 dias. Ele é louco por você e tá morrendo todo dia com as suas loucuras.
Qué fazê loucura? Tudo bem. Mas faz numa boa”, ele disse, zangado e preocupado.
Quando entrei em casa, mamãe correu para me abraçar, junto com Aninha, Suely e Luiz.
Papai ficou onde estava, sentado na cabeceira da mesa da pequenina sala. Lá fora chovia. Eram
seis da tarde e já estava escuro. Ele apenas levantou os olhos cheios de lágrimas e olhou-me com
ternura e misericórdia. Mas havia dor, muita dor no semblante dele. Não dissemos nada. Subi,
peguei roupas limpas, tomei banho e saí. Foi a última vez que ele tentou barrar o meu caminho
pela força. Daí em diante, ele e mamãe apenas se dedicariam à oração e ao jejum a meu favor.
Andando por toda parte, um dia eu vi umas garotas diferentes. Elas ficavam batendo papo na
esquina da rua Visconde com a Duque de Caxias, perto da Escola Técnica. Uma era mais madura
e mais calma. A outra, completamente agitada. A mais calminha, com cara de mais velha, era
morena, tinha uma cintura bem-feita e longos e lisos cabelos negros. Não havia nela nada
particularmente especial, mas o todo era muito agradável. Já a outra era um vulcão. Com cabelos
loiros, pernas longas e grossas, seios grandes, amplos, projetados e provocativos, ela ainda dava a
si mesma o direito de usar uns shortinhos cavadinhos e de colocar tudo aquilo a serviço de um
fantástico par de olhos verdes e de uma boca que parecia estar em permanente estado de
sedução, enquanto lambia os próprios lábios, como quem se deliciava nas carnes de um apetitoso
e irresistível sapoti, minha fruta predileta.
Elas me chamaram para conversar, e eu, é claro, fui. Sentamos na calçada e jogamos conversa
fora uns trinta minutos, enquanto preparava o meu melhor bote sobre a loira gulosa.
— Você sabia que nós quase fomos maninhos? — ela perguntou.
— Num tô entendendo! Como, maninhos? — perguntei de brincadeira. — Uma gata como
você não ficava junto de mim impune nem se fosse minha maninha — acrescentei com veneno.
— Você num é filho do Caio? — ela provocou, como quem sabia de mim muito mais do que
eu poderia imaginar.
— Sou. E daí? Você conhece meu pai? — joguei de volta.
— Teu pai me amava como amava a você. Quando ele foi embora, eu chorei muito. Ele foi o
melhor pai que eu já tive. O que mamãe fez com ele não se faz com ninguém. Ele amava a ela, e
ela fez safadeza com ele. É por isso que eu tenho raiva dela — disse com lágrimas nos olhos,
mudando completamente do clima de sedução para o da confissão.
— Quem é tua mãe? Você é filha da Simone? — perguntei, embora já soubesse a resposta.
— Eu sou Alma. Você brincou comigo uma vez. Você não sabia quem eu era, mas eu sabia
quem você era — completou, como quem realmente sabia o que estava falando.
Daquele dia em diante, começamos a sair juntos. Tivemos todos os amassos físicos que
pudemos e nos beijamos de modo semi-incestuoso da forma mais intensa possível. De súbito,
quando nossa relação caminhava célere para a consumação do ato sexual, eu me vi totalmente
nauseado dela. Ela me beijava com sede, e eu sentia vontade de vomitar. “Mas por quê?”, eu me
indagava.
Ela era atraente e profundamente sensual. Então, de onde vinha minha incapacidade de tê-la
e de saboreá-la como mulher? Foi aí, em meio a tais sentimentos, que minha mente voltou no
tempo para o momento de uma jura: “Mãe Velhinha, eu juro que um dia eu ainda vou me vingar
da Simone, dessa jaburu”, eu declarara com ódio aos sete anos de idade. “Será que eu não
consigo mais tocá-la por causa daquela jura? Será que agora é minha chance de me vingar?” eu
me perguntava. “Mas vingar de quê e por quê? Ela não me fez nada e eu não sou nada dela”,
tentava me convencer, na esperança de ‘des-incestuá-la’, a fim de possuí-la.
Mas o fato é que eu precisava fazer alguma coisa rapidamente. Não podia dar um vacilo
daqueles. Já havia duas opções: traçar a menina ou deixá-la em paz. Naquele chove e não molha é
que eu não podia ficar. Achava que já estava prejudicando a minha reputação.
E como eu já não podia nem ver Alma, resolvi fugir dela. No entanto, com esta atitude infligi
sobre ela a minha mais terrível vingança. Se eu tivesse tentado machucá-la de propósito, talvez
jamais tivesse conseguido tamanho efeito. Ela chorava pelos cantos das boates, separava-me das
meninas com quem eu dançava, implorava para que eu a beijasse e até suplicou para que eu a
possuísse como mulher.
— Por favor, deixe eu ser mulher com você. Não faça eu me entregar a um homem que eu
não queira. Me toma, por favor — ela implorava. Mas eu não conseguia e não sabia explicar aos
meus amigos o motivo daquilo.
— Cara, você castiga meninas que não são a metade dessa e deixa essa loira doida de desejo
passar sem ser devidamente machucada? — perguntava Paulo Gato.
O desarvoramento de Alma cresceu tanto, que ela embarcou numa onda pesadíssima de
drogas. Depois, começou a sair com todo mundo. Aí, então, disse ter se apaixonado por um
maluco chamado César. Mas muitas vezes, em plena boate, quando ele ia ao banheiro, ela ficava
chorando e olhando para mim fixamente. E não raras vezes ela passou por mim doida de maconha
e whisky e disse: “Ele tá provando a comida que é tua.” Mas eu fingia que não entendia.
A vida de Alma nunca mais se equilibrou. Nos anos seguintes, ela haveria de mergulhar em
profunda insanidade. Somente muito tempo depois eu a encontraria em circunstâncias
completamente diferentes. Mas sem dúvida, naquela época, ela foi o símbolo de meu mais forte
desejo e de meu mais intenso repúdio. Vivendo aquilo, comecei a me aproximar dos mistérios de
minha própria interioridade e dos complexos caminhos de meu próprio coração.
Capítulo 17

“O único desejo que dominava a minha busca por deleite era simplesmente amar e
ser amado. Porém, nenhuma restrição foi imposta pela troca de mente com mente,
que marca a caminhada brilhantemente iluminada da amizade. Nuvens de
enlameada concupiscência carnal encharcavam o ar. Os impulsos borbulhantes da
puberdade desceram numa névoa sobre os meus olhos e obscureceram os meus
sentidos, de tal forma que eu perdi a capacidade de distinguir entre a serenidade do
amor e a escuridão da luxúria.”

Santo Agostinho, Confissões

A lipinho, Celsinho e eu estávamos em permanente busca e transformação. Pinho começou


a se interessar por meditação transcendental e nos convenceu a fazer com ele alguns exercícios
de respiração e tentativa de sair do corpo. Celsinho era mais acadêmico na busca de valores
espirituais. Gostava de psicologia e amava os livros de Hermann Hesse.
Eu, de minha parte, era um filósofo da esquina, das sensações, das emoções e das
experiências. Eu queria tudo aquilo que pudesse ser provado pelos meus sentidos. Por isso,
gostava muito das conversas filosóficas às quais nos permitíamos nos fins de noite, mas o que me
empolgava mesmo era viajar por alguma via mental diferente, em geral produzida pelas drogas e
vivida em situações de excitamento, fosse o perigo ou o sexo.
Foi nessa época que um cara muito louco, alguns anos mais velho do que nós três, entrou em
nossas vidas. Nós o chamávamos de Carioca porque ele era do Rio e fazia questão de falar
carregando no sotaque preguiçoso e arrastado da moçada da zona sul da Cidade Maravilhosa.
Carioca era um arquiteto que deixara tudo para viver como hippie. Fazia permanentemente a
rota Rio—Venezuela—Panamá—Estados Unidos e, na volta, sempre passava por Manaus. Ele era
a pessoa mais maluca que já havíamos encontrado. Quando o conhecemos, ele estava passando
uma temporada maior em nossa cidade, dizia estar procurando novas formas de viagens
psicodélicas e falou-nos sobre as maravilhas do ayahuasca, suco de raízes indígenas de poder
alucinógeno.
Carioca tinha belos olhos azuis, mas de bonito era só o que tinha. No mais, era feio, torto,
tinha uma voz estranha e ria com ar de ratinho. Ele era uma figura. Com aquela cara, ele não
poderia entrar em lugar nenhum da alta sociedade. Mas como tínhamos cacife, impúnhamos a
presença dele onde quer que fôssemos.
Naqueles dias, nós três havíamos sido convidados a desfilar como modelos de algumas lojas
da Zona Franca. O pagamento era feito em roupas. Para nós, estava ótimo. Afinal, além das
roupas serem maravilhosas, nós ainda ficávamos ali na plataforma, expostos, dançando para
meninas delirantes e suas mamães ainda bonitas e atraentes. Aqueles desfiles sempre rendiam
conquistas e aventuras proibidas, às vezes durante a semana, às vezes ali mesmo, atrás de
biombos e tapumes que separavam o palco dos bastidores.
Carioca sempre era levado para tudo. Não “pegava” ninguém, mas ria de nossas façanhas. Aos
poucos, ele começou a se transformar no nosso guru. Sempre filosofando, ele não cansava de nos
doutrinar sobre o absurdo da vida e a náusea da existência. Nos seus 26 anos, Carioca era um ser
angustiado, perdido, revoltado e profundamente suicida. Foi ele quem nos incitou a usar drogas
mais pesadas e a provar o ayahuasca.
No primeiro dia que ele tomou o caldo de raízes, eu fiquei incumbido de tomar conta dele.
Ele dizia que o negócio era tão forte, que se alguém não ficasse de plantão, vigiando, o maluco
corria o risco de fazer algo suicida. Fiquei lá com ele. Não deu outra. Ele babou, correu, falou com
o diabo, descreveu o inferno, disse que ia morrer e ficou como morto vários minutos. Depois,
ressuscitou alucinado, tirou a roupa, correu nu pela praça, duelou com bandidos imaginários,
parou carros na rua e fez amor com a Lua. E eu lá, segurando o cara como podia, com medo que
ele fizesse uma loucura suicida qualquer.
Vinte e quatro horas depois ele ainda estava amalucado. Quando a rebordosa dele passasse,
seria a minha vez. Como eu vi que ele tinha tomado muito e como eu jamais me submeteria a um
tormento daquele de graça, tomei muito menos do que ele. Foi o suficiente apenas para ver coisas
multicoloridas e para liberar as produções de meu inconsciente. Gostei das sensações, mas
decidi que ayahuasca não era a minha onda. Carioca sumiu do mesmo modo que apareceu, sem
dar notícias e sem deixar paradeiro. Nunca mais o vimos.
Carioca foi embora, mas a fome de espiritualidade que ele tinha ficou em mim. Não só a
ansiedade espiritual ficou presente, mas também um canal de sensibilidade espiritual
desenvolveu-se em mim. Inicialmente, eram angústias terríveis que me acometiam ao pôr-do-sol.
A mesma saudade de alguém, que me possuíra na infância, quando eu contemplava a mangueira
sagrada da casa da vovó, estava de volta, só que muitas vezes pior. Eu respirava ofegante. Fumava
um cigarro atrás do outro, fumava maconha e tentava tirar a cabeça do pôr-do-sol. Mas não
conseguia. Doía muito, no nervo da alma, e eu não sabia por quê.
Outra manifestação de sensibilidade espiritual passou a acontecer à noite, quando eu voltava
para a pequenina casa de madeira às margens do igarapé de Manaus, na rua Sete de Dezembro.
Todos as noites, quando virava a esquina, eu ouvia nas minhas costas um zumbido, como se
alguém tivesse pegado um grande cinturão de couro e o estivesse batendo contra o poste de luz.
Era um zumbido pavoroso. Eu corria de volta na direção da esquina na tentativa de ver quem fazia
aquilo, mas nunca havia ninguém lá. Eu me afastava e a coisa acontecia de novo. Eu voltava
correndo, e ninguém. Todas as noites aquilo acontecia. Eu entrava em casa e a coisa continuava
lá, espancando o poste, fazendo um ruído terrível. Às vezes, as batidas se faziam acompanhar de
gemidos, como se alguém estivesse apanhando. Fosse o que fosse, aquilo era estranho, bizarro e
maligno. Era tão forte e ao mesmo tempo tão pessoal, que eu não tinha coragem de falar com
ninguém sobre o assunto.
Nenhuma daquelas coisas de natureza espiritual interrompia, entretanto, o ritmo frenético
de minha vida.
Eu não tinha carro, mas Bete Raposo, filha de um armador muito rico, tinha sempre um
novinho. Às vezes eu pegava o carro dela para correr pela cidade. Uma noite, a aventura quase
terminou mal. Peguei o carro de Bete e fui na direção do aeroporto de Ponta Pelada, no caminho
para fora da cidade.
Quando vi uma batida da polícia e uma tábua cheia de pregos estendida de ponta a ponta da
estrada, pensei: “É, vai sujar. Eu não tenho carteira.”
Manobrei e voltei. Mas eles me viram e saíram no meu encalço. Eu estava dirigindo um TC
novinho em folha e o carro da polícia era um camburão bom de corrida. Saí alucinado. Foram dez
minutos de “pega” infernal. A impressão que eu tinha era de que a cada curva o carro iria capotar.
Os “homens”, no entanto, não se perdiam nunca. Estavam lá, no meu pé. “Tô perdido. Se esses
caras me pegarem, vão me matar”, pensei.
Consegui alcançar a rua Sete de Dezembro, onde morava. Cheguei cerca de trinta segundos
antes deles, tempo suficiente para parar o carro e entrar correndo em minha cama.
Ouvi os gritos lá fora.
— É aqui. O carro está quente ainda. O filha da... deve ter entrado aqui. Vai devagar. Cerca a
casa. Cuidado. Ele pode estar armado — eram as vozes que vinham da rua.
Papai e mamãe, coitados, dormiam sem saber que a casa estava cercada. Eu imagino que os
policiais ouviram o ressonar forte de mamãe e perceberam que ali havia uma família dormindo.
Bateram palmas. Mamãe acordou. Os policiais perguntaram se aquele carro era da casa.
— Não senhor. Nosso carro é aquela Hondinha ali na frente — respondeu mamãe com a
inocência de uma santa.
— Então de quem é esse TC parado aqui na frente de sua casa? — indagou um policial.
— Não sei. Daqui de casa é que não é — respondeu mamãe.
— A senhora tem um filho cabeludão? — um deles perguntou.
— Sim. Mas acho que ainda não chegou — disse ela.
— A senhora podia ir dar uma olhada pra nós? Ver se ele ainda não chegou? — insistiram.
Quando eu ouvi a história, decidi aparecer e poupar mamãe de passar por aquela vergonha.
— Tá ali o cabeludo — falou um soldado mais exaltado assim que me viu.
— Caiozinho! É você? — indagou o comandante da operação.
— João da Mangueira? — perguntei fazendo força para vê-lo na escuridão, mas
reconhecendo-lhe a voz.
— Sim, sou eu, Caiozinho.
— Seu cara! Que loucura é essa? A gente podia ter matado você. Se você não tivesse parado
aqui, nós já íamos abrir fogo. A gente primeiro ia matar, depois ver quem era. A situação tá
perigosa. Você escapou por pouco — disse João da Mangueira, vários anos mais velho do que eu,
mas meu amigo de pelada na rua Apurinã, aos sábados.
Por pura coincidência o nome dele tinha uma mangueira no meio. As mangueiras sempre me
perseguiram para o bem.
— Olha, pessoal. Esse aqui eu conheço. É gente boa. E não vai nunca mais fazer isso, num é,
Caiozinho? — perguntou.
— Claro, João. Nunca mais. Eu prometo — falei aliviado.
Mamãe ficou ali parada, sem entender nada. No dia seguinte, vi que o carro de Bete Raposo
estava todo estourado, com empenos estruturais terríveis, mas fiz de conta que não vi nada e
devolvi o carro a ela. Bete quis dirigir para casa, mas o pobre TC tremia e sambava para todos os
lados.
— Que foi isso, Caio? — perguntou Bete.
— Num sei não. Hoje de manhã não tinha nada. Você tem que dirigir com mais cuidado. Cê
corre muito, Bete — falei com cinismo, enquanto me preparava para deixar a vida seguir seu
curso e Bete consertar o carro.
Num daqueles dias, no entanto, eu vim a conhecer uma pessoa que seria muito importante na
aceleração de meu processo de degradação social e no aprofundamento de minha desgraça
interior. Eu sempre via pelas ruas da cidade um cara de uns 25 anos, que pilotava uma Honda 450
cilindradas. Nós só nos cumprimentávamos: “Como é que é, bicho?”, era o que ele dizia quando
passava por mim.
Amigos mais comportados sempre diziam que Alipinho, Celsinho e eu devíamos ficar longe
de Zé Curió, que tinha fama de ser bandido, traficante de muambas, de remédio para impotência,
de filmes pornográficos, de maconha e, segundo diziam, até de cocaína, quando dava. Com uma
apresentação daquela, o cara ficou irresistível. Eu decidi que queria ficar amigo dele.
Um dia nos encontramos na porta de uma boate e conversamos longa e gostosamente. O
sujeito era bem-humorado, gozadíssimo, inteligente, autodidata, cheio de prosopopéias e bon
vivant. Gostava de tudo o que era bom. Tinha gosto sofisticado para lanchas, carros e mulheres.
E, além de ser considerado o melhor motociclista da cidade, ainda tinha um jipinho Citroën igual
ao que Jean-Paul Belmondo usara num de seus filmes. Era um sucesso.
Zé Curió era de origem humilde, mas aparentemente não tinha nenhum complexo de
inferioridade. Era considerado de confiança por homens ricos da cidade, para quem conseguia
filmes pornográficos e meninas novinhas, que ele primeiro experimentava e depois servia aos
amigos ricos, fazendo assim um jogo político e diplomático que sempre lhe auferia resultados
extraordinários nos negócios. Quando comecei a andar com ele, muita gente na cidade afastou-se
de mim. Digo de mim porque, ainda que Pinho e Celsinho também andassem junto, era eu que,
pela total liberdade de que dispunha, passava muito mais tempo com Curió.
Alipinho e Celsinho, por mais que tivessem uma vida fora dos padrões da ortodoxia social,
eram ainda pessoas normais: iam à escola, faziam cursos à tarde, comiam com os pais e estavam
se preparando para o vestibular. Eu, entretanto, havia parado de estudar em 1971 e dizia que
jamais voltaria a uma classe de escola. Por isso, minha vagabundagem encontrou em Zé Curió o
exemplo mais prático da maturidade e da realização. Eu queria viver como ele vivia. Sem hora
para nada. Capaz de dormir até às duas da tarde e depois ir vivendo conforme as oportunidades
fossem aparecendo.
Com Curió, minha vida enlouqueceu de vez. Todas as tardes saíamos com meninas de
programa e passávamos horas fazendo sexo e tomando drogas. Ao pôr-do-sol, enquanto eu fugia
da “árvore de minhas angústias”, ele ganhava algum dinheiro, fazia algumas entregas e depois me
levava para comer uma caldeirada de tucunaré. Usávamos mais drogas e, então, vinha a hora de
dançar.
No fim da noite, quase sempre dávamos carona para algumas meninas na boate e acabávamos
em algum motel de beira de estrada ou no apartamento dele, no centro da cidade. Provavelmente,
nenhum outro garoto de 17 anos da cidade tinha aquela vida de orgias e desarvoramento. Por isso,
passei, gradativamente, a fazer amizade com gente cada vez mais velha do que eu.
As mulheres de Zé Curió eram de todo tipo. Algumas eram prostitutas de trinta a 35 anos.
Outras eram meninas que tinham perdido a virgindade recentemente, e que o procuravam como
alguém generoso e engraçado, sempre disposto a tratar o sexo feminino com o melhor que
estivesse ao seu alcance. Além disso, ele gostava da boa vida, e as meninas sabiam disso. As
vantagens que minha companhia trazia para Zé era que, comigo, o nível das conquistas femininas
subia de piso, quase sempre variando entre a classe média e a alta. E àquele “outro mundo” ele
servia, mas em geral não usava. Por isso, quando via meninas que ele desejava e não conseguia, às
vezes me dizia: “Pega aquela ali, usa, e depois passa para mim.”
Mas, foi na condição de usuário das meninas do Curió que eu acabei pegando três horríveis
gonorréias, que foram devidamente tratadas com muito Benzetacil pelo Dr. Joede Cavalcanti de
Oliveira. Joede era evangélico e amigo de minha família. Mas o que mais me chamava a atenção
era que ele tinha prazer em me encostar contra a parede de sua casa, aplicar aquela seringa cheia
daquele líquido torturantemente doloroso e espesso como óleo em mim, para então dizer com ar
profético: “É! Deus tá te deixando pegar essas desgraçadas pra ver se você acorda, Caio. Não
esqueça que os prazeres não valem essa dor, valem?” Eu dizia que não, mas não parava de transar
nem doente. Usava preservativos, mas não dava descanso às meninas.
Minhas experiências também foram ficando cada vez mais marginais. Às vezes, Zé Curió
tinha de entregar uns embrulhos proibidos para pessoas importantes da cidade e me levava junto.
Outras vezes, precisávamos pegar encomendas ilegais. Dentre as ocasiões em que fomos buscar
algo ilícito houve uma noite escura, chuvosa e deprimente que nunca mais esquecerei na vida.
Eu e Curió tínhamos passado a noite anterior acordados. Vimos filmes pornográficos até o dia
nascer e depois dormimos até o entardecer. Acordamos e nos drogamos. Depois comemos e
fomos para o Rodeo — o porto flutuante de Manaus. Quando chegamos lá, ele me disse que
iríamos nos esconder da vigilância até podermos descer para baixo do cais, onde haveria alguém
nos esperando com uma canoa.
Tudo aconteceu conforme o plano. Burlamos a segurança e encontramos um caboclo numa
canoa nos esperando na escuridão das águas do rio Negro, sob o porto. O movimento das águas
produzia um gemido apavorante para quem estava doido de drogas, ali no meio das trevas. Fomos
remando devagar até que chegamos ao navio. Era um navio sueco, enorme e de casco preto.
Parecia um monstro visto ali debaixo, de dentro da minúscula canoa. Zé Curió deu um assobio
especial e alguém desceu uma caixa amarrada a uma corda. Pegamos a muamba e subimos pelos
troncos grossos de madeira, presos à estrutura flutuante do Rodeo.
Quando pusemos a cabeça no nível do piso de cimento, vimos um guarda armado andando na
nossa direção. Ficamos ali, pendurados, segurando o pacote e pedindo a Deus que o vigilante se
afastasse. Aqueles dez minutos pareceram durar para sempre. Quando o guarda virou de costas,
nós corremos para trás de uma cabine. Continuamos ali e vimos o canoeiro desaparecer, remando
na escuridão das águas misteriosas do Negro. Não demorou e começou a chover. Caiu um pé
d’água tão forte, que pudemos sair correndo pelo canto do porto, já que a visão ficou dificultada
para quem quer que ali estivesse com a intenção de vigiar ou de passar chumbo na gente.
No dia seguinte, o impacto daquela noite tinha sido tão forte em mim, que eu não sabia se
tinha realmente acontecido ou se tinha sido um pesadelo regado a drogas. Mas não! Tinha sido
tudo verdade.
Assim, as loucuras se sucederam, todos os dias e sem outro objetivo a não ser a loucura pela
loucura. O processo de deterioração moral, emocional e espiritual era tal, que meus amigos
começaram dizer que eu devia sair daquela enquanto podia. Mas eu estava disposto a tudo, até
mesmo a morrer. Só não queria era viver de modo que não pusesse a mim mesmo, todos os dias,
em situações que me fizessem beber adrenalina até me embriagar. Era isso que eu chamava de
vida.
Capítulo 18

“No décimo sexto ano de minha vida, o ócio reinou sobre mim devido à falta de
recursos financeiros de minha família. Assim, eu fiquei de férias de todo e
qualquer estudo. Vivendo assim, vazio, os caminhos da luxúria me dominaram e
se elevaram acima de minha cabeça.”

Santo Agostinho, Confissões

Quando iniciou o ano de 1972, eu havia vivido dez anos em um. A sensação que eu tinha era
de que eu fora jogado numa câmara de compressão de tempo na qual, no espaço de apenas 12
meses, eu havia experimentado emoções, desejos, angústias, prazeres e atitudes que a maioria
dos adultos que eu conhecia não tinha jamais sonhado provar em toda a vida.
Agora, iniciava-se uma nova fase de minha existência. Eu queria apenas experimentar coisas
que somente quem não amava a vida poderia ter coragem de provar. Comecei a dizer a mim
mesmo que morreria logo e que, portanto, precisava curtir a vida com toda a intensidade possível.
Nessa época, resolvi que minha existência seria cada vez mais uma demonstração de escândalo.
Queria chocar o mundo e não tinha a menor razão para o não fazer. Por isso, decidi que não
namoraria mais, apenas me dedicaria às mais esfuziantes experiências de natureza sexual, de
preferência com “mulheres feitas”.
Embora meu convívio com Pinho e Celsinho estivesse diminuindo, nós ainda fazíamos
programas juntos. Um dia, num dos intervalos raríssimos de loucura com Curió, meus dois
amigos me convenceram a ir com eles assistir ao grupo Teatro Oficina, que estava em Manaus,
apresentando O rei da vela. Entrei no teatro Amazonas, luxuoso e apinhado de mulheres de
longos e de homens alinhados, vestindo uma camisa de quatro bandas de cores, calça de cetim
roxa e um tamanco alto, com um corte no meio da sola, que fazia placo, placo, placo quando eu
andava.
Sentamos na última fileira do último andar do teatro. O espetáculo era contestador e os atores
eram os profetas daquela geração. Todos estavam atentos, concentrados nos diálogos e
absolutamente ligados no roteiro da peça. De repente me veio um irresistível impulso de acabar
com tudo aquilo. Não dava para controlar. Era um desejo compulsivo. Aí, então, gritei, com a voz
mais alta e lancinante que eu podia, a primeira coisa que me veio à cabeça: “Ai, meu Deus! Um
morcego enorme está chupando meu sangue. Ai, ai, ai. Socorro!”
Foi o grito mais idiota que eu pude desferir no ar silencioso do ambiente cultural mais
sofisticado do norte do país. Todos caíram numa interminável gargalhada. Os atores esperaram
para ver se a casa voltaria à ordem. Mas que nada. A algazarra continuou indefinidamente. Como
já não houvesse clima, um dos atores passou um sabão no auditório, disse que éramos todos uns
alienados e encerrou o show pelo dia.
Mas meu ambiente não era o dos teatros, e sim o das boates. A que eu mais gostava era a
boate dos Ingleses. Situada na parte mais antiga da cidade, próxima ao Rodeo, era o lugar que eu
freqüentava todas as noites para dançar e caçar mulheres. A “espera” ali era frutuosíssima.
Numa das noites em que eu estava lá, vi uma mulher maravilhosa, de uns 23 anos, dançando
de modo mágico no salão. Ela era branca, de cabelos negros, magra e de rosto fino. O corpo era
perfeito e seus movimentos pareciam encantados. Como eu conhecia todo mundo ali, fiquei
intrigado sobre quem seria aquela musa e de onde ela viera. Foi aí que meu amigo Kuriak,
comissário de bordo da Cruzeiro do Sul, malucão há muitos anos, me disse que ela era a Narinha,
comissária da mesma companhia.
— Mas como é que eu não conheci ela antes? — quis saber.
— Ela está começando a voar para Manaus agora. Esta é a segunda viagem dela —
respondeu.
Como Narinha estava dançando sozinha, corri para a pista antes que algum gavião se
adiantasse, e fui logo mostrando minhas habilidades na arte da dança solta. Afinal, meu convívio
com Celsinho tinha me transformado em um excelente dançarino de música agitada. Ela ficou
admirada com a minha performance e começou a sorrir para mim.
Saímos dali direto para o bar, onde Zé Curió já tinha deixado ordens que eu poderia “beber o
que quisesse com a gatinha”. No fim da noite, fumamos maconha e fomos para um motel. Ali,
com aquela mulher, eu vivi as mais alucinantes sensações sexuais que eu jamais havia provado
nesta vida. Foi uma experiência quase religiosa, de tão irreal e arrebatadora. Nossa busca de
prazer foi até o meio-dia, quando a deixei no hotel Amazonas, onde ela estava hospedada. Na
semana seguinte, ela estava de volta e nossa perdição no corpo um do outro continuou sem
fronteiras e sem leis. Foram oito meses de êxtases todas as vezes que ela chegava.
Enquanto isso, os homens mais ricos e poderosos da cidade voavam em cima dela como
gaviões. Mas minha selvaticidade e avidez sexual davam a ela a certeza de que era melhor andar
com um rapaz sempre duro de grana, mas insaciável como eu, do que comer e beber bem com
algum coroa e depois ter que fazer força para suportar o hálito de whisky do sujeito. No fim
daqueles meses, eu me sentia o homem sexualmente mais respeitado de toda a cidade. Não era
verdade, mas era assim que eu me via na minha fantasia.
Em agosto de 1972, chegaram a Manaus três rapazes do Rio: Claudinho, Ricardinho e Neto.
Eles eram faixa preta de jiu-jítsu da academia Gracie, em Copacabana. Foram a Manaus passar
uns meses na esperança de poderem dar umas aulas de luta por lá. Além disso, Ricardinho e Neto
eram “nativos”, ainda que tivessem se mudado para o Rio no início da década de 60, com o pai,
político conhecido no estado. O pai deles tinha sido figura importante no governo de Jango. Eles
eram filhos do senador Arthur Virgílio Filho.
Foi fácil perceber aquelas três figuras andando pela cidade, sempre sem camisa, com cabelos
longos e pose de guerreiros. No dia seguinte, meu amigo André Gimenis nos chamou para ver as
feras treinando na academia dele. Fomos lá: Zé Curió e eu. Os caras eram incríveis. Vimos os
homens mais fortes e bem-treinados da cidade serem virados do avesso por aqueles rapazes. No
chão eles eram imbatíveis, não importava quão forte e bem-preparado fosse o adversário.
Pareciam invencíveis.
Os três nos atraíram pelas artes marciais, e Curió e eu os fascinamos pelo nosso modo sem
caráter de viver. Eles não queriam ser como nós, mas gostavam de nos ver em ação.
Três dias depois de os havermos conhecido, já sentíamos uma intimidade entre nós que era
como se nunca tivéssemos vivido separados. Claudinho voltou para o Rio depois de alguns dias,
mas Ricardo e Neto continuaram lá. Como eles não tinham “escola” em Manaus, elegeram
Pedro, primo deles, Curió e eu como aqueles em quem eles investiriam seus conhecimentos de
artes marciais. Em troca, nós seríamos seus garotos-propaganda. Estávamos fascinados por eles.
Concentramo-nos de manhã, de tarde e de noite nos treinamentos. Queríamos nos tornar tão
invulneráveis quanto eles. Não demorou e começamos a perceber que nosso progresso já se
manifestava.
O problema é que duas coisas paralelas estavam acontecendo. A primeira é que havia um
bocado de homem na cidade com muita dor-de-cotovelo de Neto. Ele não era bonito, mas fazia
um gênero muito interessante, além de ter um papo de derrubar poste. Por isso, já havia faturado
algumas mulheres casadas e também estava saindo com as garotinhas mais cobiçadas de Manaus.
A segunda dificuldade tinha a ver com a rivalidade que começou a surgir entre ele e o pessoal do
caratê. O agravante é que Alipinho, meu amigo, era do pessoal do caratê, e eles formavam a elite
dominante da cidade, inclusive economicamente falando.
Não demorou muito e eu percebi que teria de tomar um partido. As coisas estavam
esquentando e não se falava em outro assunto nos círculos sociais de Manaus a não ser no
possível “confronto das artes marciais”. Foram três meses de disputa, treinos, fofocas e
definições de fidelidades.
Acontece que Neto era brilhante e um tremendo estrategista. Já sendo formado em advocacia
e jornalismo, via a vida com um olhar duplo. De um lado, era um homem de 24 anos, capaz de
falar mais duas línguas além do português e dono de uma vasta memória histórica, pois tanto seu
avô quanto seu pai eram figuras eminentes da história do Amazonas e até da vida nacional. Mas,
de um outro lado, Neto ainda era um rapaz confuso, desencontrado, buscando um sentido para a
sua existência. Vestia-se como hippie e se fazia de louco, mas odiava drogas; falava como
comunista e se confessava marxista-leninista, mas não podia viver sem mordomias; condoía-se
com a dor do pobre, mas não tinha misericórdia de ninguém quando se tratava de arrebentar
quem quer que fosse no tatame ou na calçada, às vezes por quase nada; discursava sobre as
causas sociais e econômicas que existiam por trás da prostituição, mas não poupava as
caboclinhas jeitosas que passavam na sua frente. Enfim, ele era profundamente contraditório e,
ao mesmo tempo, apaixonante e sedutor justamente por isso. Portanto, tomar o partido de Neto
foi natural. Com exceção do fato de não usar drogas, ele era tudo aquilo que eu queria ser aos 24
anos de idade, se eu vivesse tanto.
Sendo extremamente inteligente, Neto logo percebeu que a sua cruzada Gracie para
desbancar todas as outras formas de luta não iria a lugar nenhum, se ele mesmo batesse nos
caras. Ele era um deus no tatame, e todos os demais adversários eram mortais fáceis de serem
abatidos por ele. Portanto, precisava ser mais sutil. Para ele, o que estava em jogo era mais do que
uma luta, era pura ideologia, pois sabia que todos os caratecas e judocas da cidade eram filhos da
aristocracia local e, como ele dizia, “tinha prazer em ferrar com aqueles caras”. Neto tinha a
mesma história deles, mas odiava ser como eles eram: “alienados e sem nenhuma consciência
política”. E Alipinho, para ele, era o símbolo bonito e bem vestido de todo aquele sistema que ele
odiava e que resolvera vencer não mediante golpes políticos ou ações guerrilheiras, mas no pau,
no braço, na pancada, no chão, na baiana, no armlock e na chave de perna.
Assim foi que Neto começou a dizer para mim e Curió que Alipinho era o ser mais fútil,
frívolo, burguês e vazio que ele já conhecera. Quando ele falou isso pela primeira vez, eu reagi e
disse que não, pois imaginei que ele estava dizendo aquilo apenas porque não conhecia Pinho tão
bem quanto eu.
A estratégia continuou. O próximo passo foi conquistar Liliane, uma
norte-americana-amazonense, mulher linda, de olhos negros profundos e pele tão branca quanto
o branco pode ser sem perder o poder de ser atraente numa pele feminina. Até a chegada de
Neto, Liliane saía com Pinho. Mas o guerreiro jogou charme, conversas com ela em inglês,
escreveu poesias e, assim, empurrou Pinho para fora do “tatame da menina”.
Enquanto isso, ele treinava Curió, Pedro e eu para sermos seus soldados. Celsinho percebeu
o que estava acontecendo e se afastou. Alipinho escondia bem a dor-de-cotovelo e continuava se
fazendo de desentendido, mas começou logo a notar que eu já não era o mesmo com ele. O olhar
dele passou a ficar triste e depois ressentido e magoado quando pousava sobre mim. Sofri um
pouco, mas já tinha feito a minha escolha. Era ao lado de Neto que eu marcharia quando chegasse
a hora da batalha.
Capítulo 19

“Assim eram os meus companheiros, com os quais eu andava pelas ruas. Com eles
eu rolava em esterco como se rolasse em especiarias e ungüentos preciosos. Para
me amarrar mais tenazmente à barriga da corrupção, o inimigo invisível me
dominou e me seduziu, apenas porque eu estava com desejo de ser seduzido.”

Santo Agostinho, Confissões

Em novembro de 1972, havia energia elétrica sendo liberada dos corpos das pessoas na
praça do Congresso em Manaus. Os duzentos ou às vezes trezentos rapazes que se reuniam ali
não falavam em outra coisa: havia uma grande luta sendo armada. As armas estavam sendo afiadas
e os guerreiros treinavam para a hora e o lugar do combate. A praça parecia uma arena de
gladiadores. Uns jogavam capoeira, outros faziam katas de caratê, e havia os que saltavam como
boxeadores.
Bill e seu irmão Adriano eram incrédulos. Acostumados a brigar na rua desde a infância,
dançavam protegendo o rosto e diziam: “Eu lá quero saber de estilo. Se cair dentro, leva na cara e
sai com o rabo roxo.” E assim as demonstrações de valentia eram constantes. Mas quando Neto e
Ricardo apareciam de peito nu e cabelos longos escorrendo pelas costas largas e musculosas,
subindo como guerreiros vikings pela avenida Eduardo Ribeiro, em direção à praça, todo mundo
disfarçava a valentia e dava lugar a outra atitude: “Comé qui é seu Neto? Comé qui é, seu
Ricardinho?”, eram as saudações que se faziam ouvir pela calçada.
O confronto, entretanto, não tinha mais como ser evitado. Neto percebeu que Zé Curió
poderia representar seus interesses melhor do que eu no confronto físico com os inimigos. Era
mais velho, mais forte e socialmente mais amargurado do que eu. Minha amargura era
existencial, mas eu não me via como vítima da vida. Não achava que havia nascido em meio a
circunstâncias que haviam conspirado contra mim. Para Curió, entretanto, a história tinha sido
outra. De vez em quando ele reclamava de suas origens sociais. Portanto, ele era mais recrutável
do que eu para aquela missão de desmoralização da burguesia.
Eu seria útil, mas de outra forma: minha missão seria ouvir e trazer as informações. Deveria
manter-me dentro do outro ambiente, a fim de repercutir as coisas que meu general me pedisse
para enfatizar. E assim foi.
Quando Neto julgou que tudo estava pronto e que Zé Curió já era imbatível no jiu-jítsu
adaptado à guerrilha de rua, ele nos chamou e disse que partiríamos para o confronto. Eu deveria
provocar Alipinho e atraí-lo para uma briga em frente ao Ideal Clube, logo depois que a festa do
Mingau — o point mais quente de todos os fins de semana — tivesse acabado. Zé Curió chegaria
na hora. Os desabafos aconteceriam. Neto então chegaria e diria que não faria nada porque não
era covarde, mas que Curió estava autorizado a representá-lo em qualquer enfrentamento. Aí
seria fácil.
Ninguém jamais vira Zé lutando — ou melhor, todo mundo sabia que ele não era de sair no
pau. Era do tipo baixinho, entroncadinho, de cabelos encaracolados e se gabava de só se “atracar
com mulher”, e bonita. “Se você me encontrar agarrado a uma mulher feia, desaparta que é
briga”, era o que ele sempre dizia.
O grande pulo do gato era que quase ninguém sabia que Zé estava sendo exaustivamente
treinado, assim como eu, várias horas por dia, por mais de três meses. Enfim, havíamos ficado
bons naquilo, e nem nós sabíamos o quanto.
Cheguei cedo ao Mingau. Naquele tempo eu vestia sempre um macacão italiano, todo
bordado de flores. Além disso, já fazia alguns meses que eu andava sempre com um chapéu preto,
tipo cone, que me dava um toque de bruxo. Como estava nervoso, já cheguei de cabeça feita. Mas
a ansiedade era tanta, que resolvi intensificar a loucura. Por isso, tomei também umas e outras e
tentei aparentar frieza.
Alipinho apareceu na esquina com uma loira linda, chamada Diná, por quem ele era
eternamente enamorado. Conversaram um pouco e ela saiu. Ele ergueu o braço, fez o sinal hippie
do V de paz e amor e atravessou a rua até a ilha de cimento que havia no meio da avenida Eduardo
Ribeiro, onde eu estava encostado num carro.
Logo muitos outros chegaram. Quando o ambiente já estava carregado de gente e o papo já
era “quem era quem na hora do vamos ver”, eu provoquei.
— Não há nesse mundo nada e nem ninguém que agüente enfrentar um lutador como o
Neto. O problema é que ele não aceita brigar com gente que não seja do nível dele — disse com
veneno, olhando para Alipinho.
— Num sei não, bicho, acho o Neto muito bom no chão. O problema vai ser ele chegar perto
dum cara como eu. Se me pegar, ferrou pra mim. Mas se eu chutar a cara dele antes, arrebento
com ele — gabou-se Pinho, confiando no fato de que seu professor de caratê dizia que o chute
dele era um dos mais fortes da cidade.
Nesse momento, Neto apareceu sem camisa. Andou pausadamente e entrou pelo meio do
grupo, que se abriu num corredor humano, como que ensaiado para a hora. Alipinho ficou pálido
e seus lábios tremeram. Então Zé Curió veio subindo e fazendo suas acrobacias na moto 450
Honda. Ninguém falava nada.
— E aí, o que qui vocês tavam conversando? Seu Caião, qual era o papo? — indagou como
quem já sabia o que iria ouvir.
Com a bola quicando na minha área, foi fácil chutar. Entreguei Pinho sem piedade. Todos
estavam gelados. Alguns amigos de infância de Alipinho, como Muchacho, tinham dito que se
Neto fizesse alguma covardia contra o rapaz, todo mundo iria entrar na briga, mesmo que fosse
para apanhar.
Quando eu entreguei meu antes-melhor-amigo, Neto continuou:
— Eu não preciso provar nada a ninguém. Mas posso provar o que estou falando por meio de
seu Zé. Cês todos sabem que ele num é de briga. Mas seu Zé tá aí, pronto pra mostrar quem é
homem e quem num é aqui nessa joça.
Mal ele falou isso, Zé pulou da moto e andou na direção do corredor humano. Pinho estava lá
no fundo, em posição de defesa. Vestia uma calça de cetim preta e uma camisa metade amarela,
metade preta. Estava pronto, porém morrendo de medo. No entanto, quando ouviu que era o Zé
que estava sendo oferecido para a peleja, deu uma risadinha cínica que ele sempre usava para
gozar das pessoas com alguma provocação, mas que quem o conhecia sabia que ali não havia
maldade.
A risada começava com um hum, hum, virava há, há, há, e então crescia para uma gargalhada
estridente, enquanto ele tomava ar ao mesmo tempo, o que dava ao som um zunido tanto metálico
quanto animal. Eu sempre gostara daquela gargalhada dele. Mas, naquele dia, foi o sinal de
convocação para a guerra.
Ele nem acabou de rir e já estava no chão. Zé Curió partiu para cima dele com tanta gana e
força, que Pinho não conseguiu nem pular para trás a fim de esboçar seu famoso e poderoso
chute de frente.
— Pára com isso, Zé. Sou eu, teu amigo. Lembra? Esse cara nos dividiu. Ele não é nosso
amigo — exclamava meu ex-melhor-amigo, enquanto era mantido imóvel por Curió, imprensado
contra um carro, sofrendo a pior humilhação pública de sua vida.
Nós saímos dali com um esquisito sentimento de vitória, mas o único aparentemente feliz era
Neto. Curió e eu estávamos nos sentindo estranhos, pois percebemos que havíamos acabado de
assinar uma confissão pública de cafajestagem do pior tipo. Não era exatamente culpa o que eu
sentia, pois minha mente andava bastante cauterizada. Havia, entretanto, um sentimento de
desconforto, de descolagem interior. Era como se algo tivesse ficado solto dentro de mim. Por
isso, tive de afogar aquilo sob muita maconha e cachaça, para ver se minha mente encontrava
outro cenário que não fosse aquele de centenas de pessoas paradas, vendo alguém a quem eu
havia amado como amigo, ser humilhado por mim e Zé, enquanto nós nem bem sabíamos
exatamente por que estávamos agindo daquele modo.
Neto continuou conosco mais alguns dias. Durante o período curtimos todas as glórias
daquele perverso triunfo. Assim, tomamos posse dos despojos de guerra: eram loiras, morenas,
solteiras e até casadas. Era a festa dos vikings em meio à floresta.
Nós sabíamos que, quando Neto fosse embora para o Rio, teríamos de assumir nossa valentia
contra tudo e todos. Por isso, quando ficávamos sozinhos, Zé sempre me dizia: “Poderoso Caião,
temos de treinar, bicho. Pára de fumar tanta maconha assim. Se os caras nos pegam doidões, a
gente dança.”
Além disso onde quer que fôssemos Curió queria que eu estivesse sempre em guarda.
“Prepara pra baiana!”, gritava ele de vez em quando, referindo-se à entrada do jiu-jítsu nas
pernas do adversário para levá-lo ao chão e esmagá-lo como uma jibóia faz com suas vítimas,
matando no acocho.
Neto voltou para o Rio e nos deixou órfãos contra a cidade toda. A polícia andava atrás da
gente por causa dos negócios do Zé. Os pais de família estavam cheios de ódio de nós porque
havia o zunzunzum de que algumas das senhoras suas esposas estavam sendo traçadas pelo
grupo de guerreiros. Além disso, os garotões da cidade também queriam a nossa cabeça,
especialmente a de dois traidores como eu e Zé, que havíamos trocado nosso direito de
primogenitura pelo aprendizado de uns golpes de jiu-jítsu, “a luta dos demônios”, alguns diziam.
Andávamos olhando por sobre os ombros. Zé tinha um revólver e disse que ia mantê-lo
próximo. “Se os caras quiserem pau, tem pau. Mas se quiserem fazer covardia, passo chumbo”,
dizia ele, realmente decidido a fazer o que fosse necessário.
Em razão de tudo aquilo, nossas amizades e círculos mudaram completamente na cidade.
Onde quer que eu chegasse, todo mundo se retirava. Havia um ódio generalizado contra nós. Mas
contra mim, por razões óbvias, a bronca era maior.
No primeiro fim de semana de nossa orfandade, Zé e eu saímos no jipinho Citroën dele e
paramos para conversar com umas meninas na praça do Congresso. Era domingo à noite.
Estávamos ali, com “um olho no padre outro na missa”, quando, de repente, começamos a ver um
monte de carros e motos irem parando à nossa volta. Ficamos ilhados. A burguesia inteira estava
lá.
Creio que pelo menos 65% do PIB do Amazonas estava ali representado nos filhos dos
homens mais poderosos do estado, todos nos cercando, raivosos.
Percebi que era a hora da vingança. Iríamos ser descarnados vivos por eles. Mas como
Manaus era uma cidade de muitos pobres, e Zé era homem da beira do rio Negro, devagar
começaram a chegar motoqueiros pobres e suburbanos de todos os lugares. Em vinte minutos, o
circo estava montado e tudo indicava que o pau ia cantar, a menos que a questão fosse resolvida
com a “diplomacia de Davi e Golias”, ou seja, dois brigariam, os outros assistiriam.
Foi quando apareceu Armandão, com seus braços musculosíssimos, andando como um
troglodita, cheio de maconha na cara, vindo na nossa direção.
— Olha aqui, bicho, o que cês fizeram com o seu Alipinho não se faz com ninguém. Hoje nós
vamos tirar isso a limpo — ele foi logo dizendo, enquanto jogava o sapato para longe e começava a
rodar com suas posições de lutador de caratê experiente.
A comparação física entre Zé e Armandão era ridícula. Havia pelo menos uns trinta
centímetros de diferença de altura entre eles, a favor do grandalhão. O peso, nem falar. Armandão
devia ser uns 35 quilos mais pesado que Curió, ia ser um massacre. Para completar, sem a força
moral de Neto, nós éramos a metade dos guerreiros de uma semana antes.
A minha surpresa foi ver o Zé pular do seu canto como um galinho de briga, valente e suicida.
— Armandão, bicho, num tenho nada contra você. Cê é meu brother de viagem e de
transação. Mas se tu quer caí dentro, eu tô aqui cara. É só tu aparecer — e foi logo correndo igual
a um alucinado para dentro das pernas de Armandão.
A distância que os separava era de uns dez metros. O imenso Armandão mandou um petardo
no meio da cara do Zé, mas a velocidade da baiana do Zé foi tão grande, que o chute entrou de
resvalo, arrancou sangue, mas já era tarde.
Nas pernas de Armandão, Zé continuou com a velocidade que vinha e saiu carregando o bicho
mais uns três metros, antes de fazê-lo despencar no chão com as costas contra o meio-fio. Daí em
diante, foi só subir nele e amassar a cara do rapaz. Bateu como quis, enquanto eu, Bill, Aires e
mais alguns amigos nos juntamos para garantir que a luta seria justa, ou seja, só dos dois.
Três minutos depois de começar a bater em Armandão, Curió levantou-se sozinho, deixando
o outro estirado no meio da rua. Andou ofegante, resfolegante, quase sem ar. Parou, respirou
fundo e fez um discurso de filme: “Sou eu, Zé das Candongas. Sou invencível e sou gostoso.
Quem não me respeitar, apanha, bicho.”
Rimos e gargalhamos, pulamos no carro e fomos comemorar nossa glória na Ponta Negra
com umas meninas que pegamos ali mesmo, na arena da vitória.
Enquanto isso, papai e mamãe não faziam outra coisa por mim a não ser orar. Decidiram que,
acontecesse o que acontecesse, eles haveriam de ganhar a guerra do jeito deles, ou seja, de acordo
com a Bíblia: “nem por força, nem por violência, mas pelo poder do Espírito de Deus”. Em
relação a mim, estavam calados, mas falavam com Deus sobre mim de dia e de noite. Aquela
sim, era uma batalha da qual eu não tinha nenhuma chance de sair vencedor.
Capítulo 20

“Não havia disciplina para me conter, o que me levou à dissolução sem rédeas, em
muitas e diferentes direções. Em tudo havia uma densa névoa me cegando os
olhos, assim eu não conseguia ver o brilho deTua face, meu Deus, e minha
iniqüidade era como se fosse ‘saída de minha própria gordura’.”

Santo Agostinho, Confissões

Novembro corria pelo meio e, portanto, 1972 estava chegando ao fim. Com o clima de
hostilidade que se criara na cidade, Zé e eu evitávamos os lugares badalados demais.
Um dia eu estava com ele na casa de uma de suas mulheres quando entrou um homem pela
sala, com uma pistola na mão. Ele parecia que tinha muita moral sobre o Curió. Não disse nada,
mas os dois obviamente se conheciam muito bem.
— Desliga essa porcaria — gritou apontando para o som ligado altíssimo num canto da casa.
— Zé, tu num toma jeito. Os home tão pondo pressão in mim pra ti pegá. Vê se toma juízo. Tu dá
bandêra demais, cara. Agora vive in coluna social. Tá brigando cun gente grande e vai dançá. Os
cara ti matun, bicho. Num dá essa moleza, não — disse com professoral vulgaridade.
Zé estava ali, parado, calado, ouvindo como se o homem da pistola fosse um padre, um pastor,
um sacerdote de Deus. Eu é que não entendi nada do que estava acontecendo. Quis perguntar
quem era o cidadão, mas ele não deixou. Antecipando-se, olhou para mim, depois para o Zé.
— Quem piorô a tua vida foi esse mau-elemento. Tem cara de bom garoto, mas ti botou
nessa fria. Larga esse cara. Ele vai dançar — ele disse e saiu do jeito que entrou.
Curió ouviu aquilo, esperou o homem se afastar, e caiu no chão dando gargalhada.
— Ai, ai, eu num agüento. Cê viu, seu Caião? Os cara acham que eu sou o bom garoto e que
tu é o mau-elemento. Eu nasci de bumbum pra lua, bicho.
— Quem é esse cara, Zé? Comé que ele entra aqui e diz esses negócios? Quem são os
“home” que querem ti fechar? — perguntei, nervoso e amedrontado.
— Ele é da Federal e é quem me garante lá. O cara é gente boa. Eu lavo a mão dele de vez em
quando, aí ele fica calmo. O problema é que o cara ti cunhece, bicho. Melô. É melhor tu caí fora
da cidade. Também cum esse cabelão, essa cara de doido e essas roupa extravagante, o que qui tu
queria? — e caiu na gargalhada mais uma vez. Eu fiquei preocupado.
Naquela noite fomos à boate dos Ingleses. Chegamos devagar e ficamos quietos. Todo
mundo estava lá. O clima estava horrível, pesado. Eu podia sentir hostilidade no olhar de quase
todos. Vi uma garotinha atraente num canto, fui em cima e comecei a dançar com ela. Ficou bom
pra mim e convidei-a a ir lá fora.
Quando ia passando com ela pelo corredor escuro, cheio de gente, senti a primeira cadeirada
nas minhas costas. Depois foi uma sucessão de socos, pontapés, murros e copadas, todas pelas
costas. Rápido, eu pulei sobre as mesas e atropelei quem estava na minha frente. Uns amigos que
ainda restavam correram para me ajudar. Outros que não eram amigos correram também, apenas
movidos por um estranho senso de justiça muitas vezes presente nas pessoas e nos lugares mais
improváveis.
Quando eu me achei, já estava do lado de fora da boate. Dezenas, talvez centenas de pessoas
estavam gritando lá fora. Vi Zé Curió, percebi a presença de Bill, Nego Aires e de alguns outros
que pareciam estar do meu lado. Eu estava muito doido de maconha e outras coisas, incluindo
whisky. Apesar de tudo, entretanto, eu estava lúcido e vendo tudo no lugar. Respirei fundo e
percebi que quatro rapazes estavam destacados do grupo.
— Quem foram os bichas que me atacaram? — comecei a gritar com ódio.
— Foram aqueles cocôs que estão ali — Zé foi logo dizendo e apontando para Luís Carlos
Areosa, o filho do governador do estado, e três outros riquinhos da cidade.
— Quem vai cair dentro? Com os quatro de uma vez eu num dô conta. Mas se vier de um por
um, eu bato nos quatro — eu disse sem saber se tinha energia para brigar tanto tempo.
O filho do governador ficou na dele, quieto. Os dois outros também ficaram calados. Mas um
moço grande, branco, com entradas precoces de calvície, rico e conhecido biritador, chamado
Carlinhos, disse que ele tinha mandado as cadeiradas nas minhas costas e que teria prazer em me
trucidar.
Correu para cima de mim. Sendo mais velho uns quatro anos, mais forte e mais alto, saiu me
cobrindo de braçadas e de chutes. Eu fiquei frio e fiz tudo o que Neto tinha me ensinado. Usei a
força dele contra ele próprio, derrubei-o, machuquei-o muito já na queda no chão de
paralelepípedos, passei a guarda das pernas dele, sentei sobre aquela barriga cheia de whisky, e
bati forte, cadente e impiedosamente.
Como a briga aconteceu no meio da rua e o chão era de pedras lisas e duras, além de castigar
o rosto dele, comecei a bater a cabeça do rapaz contra o paralelepípedo. Carlinhos perdeu os
sentidos e pensei que estivesse morto.
— Ele tá morto. Bicho, tu matô o cara. Corre daqui — era o vozerio que eu ouvia.
Zé Curió arrancou-me de cima dele, gritou que nós estávamos às ordens para quem tivesse
alguma pendência, pôs-me no jipinho, e saiu em disparada, antes que a polícia chegasse.
Eu estava cansadíssimo. O ar quase não me entrava pelas narinas, tamanha era minha
ansiedade de respirar. Então, ouvi um sermão.
— Cara, você tem um jeitão maravilhoso para brigar. Tem pose, tem ginga e é frio. É uma
pena que cê se cuide tão pouco. Se tu malhá um pouquinho só e fumar menos maconha, tu vai
ficar um guerreiro da pesada — disse Zé como candidato a ser meu técnico de jiu-jítsu.
No dia seguinte o jornal estava uma comédia, segundo o ponto de vista de meus irreverentes
amigos. Na página policial havia a história da briga que quase acabara em morte, tendo a vítima
sido internada para tratamento médico, enquanto o agressor, um candidato a marginal chamado
Caio Fábio, fugira escoltado pelo seu mentor, Curió.
Na segunda página, entretanto, a notícia era outra: Inaugurada a fábrica de compensado três
pinheiros. E a notícia contava que o reverendo Caio Fábio havia abençoado a inauguração daquela
iniciativa e pregara uma mensagem que havia feito muito bem a todos os presentes, incluindo
várias autoridades.
A gozação sobre mim foi inevitável.
— Um pai cun um filho como tu, nun precisa crê no diabo, bicho. Basta falar cuntigo —
diziam.
Eu, entretanto, sentia uma horrível depressão e não sabia por que minha alma estava tão
infeliz.
No dia seguinte, vi que minha situação na cidade estava realmente feia. Estava sentado na
praça do Congresso por volta das dez da noite, sozinho, depois de ter passado o dia dentro d’água,
num igarapé, com o Zé e umas meninas. Também estava cansado e com muita vontade de ir para
casa dormir.
Naquele dia o que eu queria era ficar longe de tudo aquilo, mas o vício de certos ambientes e
geografias é, por vezes, mais forte que o vício da cachaça. Era perigoso ir à praça do Congresso
naquela noite, mas foi para lá que eu fui.
De súbito, vi três carros pararem e deles saíram cinco homens de uns 25 a trinta anos. Um
deles eu conhecia; era irmão do rapaz que eu tinha mandado para o hospital na noite anterior. Ele
veio andando, parou a uns cinco metros de distância, e disparou:
— Seu safado! Você pensa que pode sair batendo em gente de bem e que as coisas ficam
assim? Olha, não dá pra sair no tapa contigo, mas dá pra ti meter uma bala no meio da cara e
ninguém fica nem sabendo. Sai da cidade, senão a gente manda te executar.
Entraram nos carros e foram-se dali, cantando pneu para todo lado. Quando Zé voltou do
passeio com uma das meninas, eu contei o que havia acontecido.
Para piorar a situação eu fiz mais uma besteira imperdoável. No dia seguinte à noite, eu e
Curió estávamos andando de jipinho quando vimos duas meninas em pé, dando mole. Paramos,
convidamos as duas para um passeio, e elas toparam. No caminho para a praia de Ponta Negra
elas já estavam muito à vontade. Pareciam garotas experientes naquele tipo de programa. Quando
chegamos lá, Zé e eu nos separamos, cada um com uma garota.
Ficamos a cerca de trezentos metros um do outro, na escuridão da areia. Meia hora depois
nos encontramos no carro e, assim que entramos, a menina que estava comigo começou a chorar.
— Esse desgraçado me desvirginou. Eu disse que era virgem, mas ele fez assim mesmo. Eu
disse que não queria, mas ele não me ouviu. Vou contar para o meu irmão que ele me estuprou.
Ele vai matar você, seu desgraçado — ela gritava.
Eu reagi dizendo que ela realmente tinha dito “não”, mas que, ao mesmo tempo, parecia me
puxar para cima dela. Em momento algum, expliquei, julguei que a estivesse violentando.
Parecera-me um típico “jogo de dificuldade”, apenas para fazer tudo mais sedutor ainda.
Mas que nada. Ela continuou a gritar, histérica, e a fazer promessas de morte. Foi quando
Curió interrompeu.
— Seu maluco, você só me apronta. A menina era virgem sim. Eu “brinco” com ela, mas
nunca consumo. E o irmão dela é mau. É um policial dos mais violentos da cidade. Se ela falar, ele
ti mata. Cê tem que dá o fora daqui.
Uma semana depois daquilo meu pai me chamou em casa e disse que havia um crente da
igreja dele que tinha um assunto muito importante a me falar. Perguntei o que era, mas ele disse
que não sabia. Procurei Antônio, o tal “irmão”. Conversamos e ele me disse que não dissera a
meu pai o teor do assunto porque não queria preocupá-lo, mas achava que eu precisava saber.
— É que eu tenho um amigo na Federal e ele me disse que você está numa lista negra. Você é
o terceiro. O teu amigo Zé é o segundo. O primeiro, eu não sei quem é. Eu não sei o que você
anda fazendo da vida, mas é melhor você sair de Manaus — disse com sincera preocupação.
Expliquei a ele que eu não fazia nada que merecesse cuidados da Federal. Entretanto, como
eu andava metido em coisas que estavam fazendo gente grande ficar com raiva, talvez fosse por
isso que eu estivesse naquela lista. De qualquer modo, agradeci e comecei a me preparar para sair
de Manaus. Liguei para o Neto e decidi ir para o Rio de Janeiro, e morar com meu mestre e guru.
Capítulo 21

“Eu vim para Cartago e tudo ao meu redor emanava um aroma de amores ilícitos...
Eu procurei um objeto para o meu amor e me apaixonei. Apaixonei-me não por
alguém, mas pelo amor. Eu odiava a segurança que caminhos livres de serpentes
venenosas pudessem me dar.”

Santo Agostinho, Confissões

Em apenas dois anos eu havia mudado tanto, que era como se dez anos tivessem se
interposto entre meus pais e mim. E pior: era como se naquela década que se interpusera entre
nós não nos tivéssemos visto ou falado.
Eu não sabia quem eles eram, mas eles também não tinham a menor idéia de quem eu havia
me tornado. É quase sempre isso o que acontece com os pais. Assim, o que reinava entre nós era a
lei do silêncio e da distância, pois desde o dia que eu dissera a papai que se quisesse me
disciplinar viesse preparado para apanhar, ele resolvera que, se eu ainda fosse “educável,
redimível e alcançável”, isso, certamente, não seria por nenhum outro poder que não o do amor e
o da amizade. Portanto, eles se mantiveram discretos e cordatos, limitando-se a diminuir ao
máximo a tensão que vazava de mim para eles todas as vezes que nos víamos.
Chegar até papai e comunicar que eu estava indo para o Rio, sozinho, morar com amigos foi
tão fácil quanto avisar que eu ficaria alguns dias sem dar as caras em casa. Ele ouviu, abaixou a
cabeça, tentou ponderar alguma coisa, mas percebeu que seria absoluta perda de tempo, com o
agravante de que poderia romper os últimos fiapos de vínculo que ainda me prendiam a eles.
Perguntou apenas como eu iria, e eu respondi que o Zé estava me dando a passagem, o que foi
ótimo porque eu o poupei de precisar me dizer que ele não teria como financiar meu afastamento
de casa e da cidade.
No dia da viagem eu saí cedo com o Curió e fomos a um cabeleireiro. Meu cabelo estava
comprido, abaixo do ombro, mas caía encaracolado sobre as minhas costas. Eu queria chegar no
Rio com algo digno da loucura que estava acontecendo lá. Por isso, mandei fazer black power no
pêlo.
Quando voltei para casa a fim de pegar uns poucos objetos que eu estava levando — uma
malinha e uma bolsa a tiracolo de couro cru —, mamãe olhou para mim e seus olhos encheram-se
de lágrimas. Ela não disse nada, mas era como se perguntasse: “Como é que aquele garotinho do
gagau, da coqueluche, do amor pelo Tarzan, da casinha no quintal e da paixão pelos rachas de
futebol, pôde ficar assim, tão distante e tão indiferente?”
Eu apenas beijei Aninha, de sete anos, abracei Suely e Luiz, beijei mamãe na testa e disse:
“Fica firme, poderoso Caião”, referindo-me a papai, que, meigo que era, não podia conceber que
uma despedida daquela acontecesse sem um beijo e um abraço. Ele me olhou com lágrimas nos
olhos, andou calmamente no compasso de sua muleta mágica, e pediu autorização para me dar
um beijo. Sem graça, eu tive que deixar.
Zé Curió estava ali e eu fiquei com medo da gozação que ele pudesse fazer depois. Mas
quando entramos no carro, o Zé me disse: “Bicho, teu pai é o maior barato. Com um pai desse eu
não seria como você de jeito nenhum, nem em cem anos. Tu é muito ruim, bicho.”
Fiquei ali, sentado no jipinho, perplexo com o que estava ouvindo. As pedras estavam
clamando e eu era o último a discernir a sua voz. Mas não havia tempo para sentimentalismos.
Em Manaus não dava mais para ficar, e eu iria para o Rio fazer o que a vida pedia de mim.
Cheguei à Cidade Maravilhosa de madrugada. Como não havia ninguém me esperando,
preferi pegar um táxi e ir direto para Niterói. Gritei na porta da casa do reverendo Antônio Elias.
Eles acordaram sem saber o que era, reconheceram-me com alguma dificuldade debaixo daquele
cabelo enorme, chamaram-me de filho, deram-me um lanche e fizeram-me dormir numa
sleeping-bag que tinham em casa.
Não dormi a noite inteira, lutando contra os mosquitos, que naquele tempo inundavam como
enxames o bairro de São Francisco. Somente lá pelas cinco da manhã eu consegui adormecer.
Passei alguns dias com eles, mas meu coração estava nas fantasias que me aguardavam em
Copacabana, no próximo fim de semana.
Quando o sábado chegou, atravessei a baía de Guanabara e às quatro horas da tarde encontrei
Ricardinho na porta da casa deles, na rua Aires Saldanha. Depois de um longo abraço, ele me
levou direto para a esquina da rua Bolívar com a avenida Atlântica. O cheiro de maresia
inundou-me a alma, respirei fundo e disse: “É aqui que meu coração vai sentir todas as emoções
dessa vida.” Neto chegou e me apresentou às figuras mais interessantes que eu já havia
conhecido até então. Onde íamos passando as pessoas falavam com o “meu guru” com
reverência. Era como se um general andasse pelas ruas, passando as tropas em revista.
De repente, ouvi um zunzunzum.
— Oba, o pau vai cantar, bicho. O Reison vai lá dentro da Senzala — disse Ricardinho.
Eu não sabia o que era, mas me candidatei a ir junto. Lotamos vários ônibus na rua Barata
Ribeiro e chegamos a um lugar próximo ao Canecão. Corremos pelas ruas e invadimos um lugar
onde havia um monte de capoeiristas jogando capoeira.
Reison era considerado um deus. Sendo um dos gênios do jiu-jítsu dos Gracie, luta que seus
pais haviam desenvolvido e aperfeiçoado, ele era invencível no tatame e esmagador na briga de
rua.
Diziam que havia mais de vinte processos legais contra ele apenas nos últimos dois anos.
Eram braços quebrados, pernas fraturadas, narizes arrebentados, clavículas despedaçadas —
enfim, era a máquina de quebrar ossos Reison, funcionando contra garotões de praia que o
haviam provocado inadvertidamente, porteiros de edifícios que tinham feito pouco de seu
loiríssimo cabelo longo e cacheado, ou jovens empresários, bonitos e atléticos, que, não tendo
gostado de um beijinho ou de uma piscada que o loiro louco dera para suas mulheres, haviam
resolvido enfrentá-lo, sem saber que aquele pequeno homem era letal.
Mas “o pau não cantou” na Senzala. O capoeirista-mor do lugar aproximou-se de Reison com
humildade e pediu que ele entrasse na roda para “jogar” capoeira com eles, amistosamente.
Ricardinho, sentando ao meu lado, disse que Reison costumava dizer que capoeira não era luta,
era dança, e como ele não dançava bem, não gostava de capoeira.
A moçada delirou quando ele entrou na roda e, desajeitadamente, tentou jogar com os
baianos De Mola, Mestre Angola e outros. Duas horas depois a festa acabou entre beijos e
abraços, e nós voltamos para a esquina da Bolívar com a Atlântica.
Tarde da noite eu fui para a casa dos pais de Neto e dormi no quarto dele. No dia seguinte, fui
apresentado à família. Os pais dele me receberam muito bem em consideração aos meus avós e
pais, antigos amigos da família do senador Arthur Virgílio. A irmã, Aninha, tratou-me com
especial carinho. Mas uma tia que morava com eles me olhou e me odiou. Eu senti que, se eu
fosse ficar ali, a minha vida seria miserável por causa daquela mulher. Ela me fuzilava com um
olhar gelado e cheio de desprezo.
As primeiras duas semanas em Copacabana foram quase totalmente caretas. Neto e
Ricardinho detestavam drogas e me doutrinavam contra elas o dia todo. Entupiram-me de suco
de melancia, forçaram-me a correr na praia todas as manhãs e obrigaram-me a mergulhar no
Arpoador e nadar até ao píer com eles todos os dias. Não fosse por um conhecido de Manaus que
já estava morando no pedaço havia alguns anos, e eu teria “encaretado”. Carlos Alberto,
entretanto, sempre que me encontrava me dizia:
— Esses caras são doidos sem droga. Mas você não é como eles. O teu barato é outro. Você
gosta é de viajar — e aí me colocava na mão um ou dois baseados e desaparecia.
Os treinos na academia também eram diários e, em geral, iam das cinco da tarde às oito da
noite. Depois, era suco de melancia, Zepelim, Le Bateau e New Jirau até uma da manhã. No fim
de três semanas, eu estava meio cansado de tanta ginástica e pouca droga e mulher. Assim, pensei
em ir a Niterói ver se por lá as coisas estavam mais loucas
Em Niterói reencontrei a maconheirada toda que eu conhecia no Ingá, em Icaraí e São
Francisco, e fiz festa. Também pude verificar que Fernandinha tinha se recuperado
completamente de mim e que estava namorando um garoto que eu conhecia. Quando a vi e não
senti nada, fiquei chocado. Nunca pensei que o coração fosse capaz de se desligar de um antigo
sentimento com tanta certeza.
A minha estada em Niterói naquele período teve duas marcas distintas. A primeira é que as
lembranças da fé ali estavam muito mais fortes dentro de mim do que eu podia imaginar. Tanto
é, que no primeiro domingo que estive na cidade aconteceu-me algo que, naquele tempo, só
poderia ser explicado como sendo o poder da fé me impedindo de fazer algo que poderia magoar
gente que me amava.
O episódio tem a ver com uma visita que fiz a uma família de gente amiga de meus pais.
Quando cheguei, não havia ninguém em casa, exceto a filha deles, de uns vinte anos, sozinha. Ela
estava com um shortinho curto e provocativo. Conversamos sobre o namorado dela e fiquei
sabendo que ele lhe havia tirado a virgindade alguns meses antes.
— Agora, que não tenho mais o que proteger, tô aberta pra te conhecer. Vem que eu não digo
pra ninguém, mas você também tem que ficar calado, tá? — disse a menina, virando-se para mim.
Em circunstâncias normais, eu não teria nem deixado que ela chegasse ao ponto de me
convidar. Com certeza eu a teria abordado tão logo percebesse o fogo nos seus olhos. Mas
naquele momento, e naquele lugar, algo estranho aconteceu comigo. Lembrei-me de mamãe
dizendo que aquela menina era muito especial para seus pais, que colocavam muita expectativa
sobre ela.
— Olha, meus pais são amigos dos teus. Eu já desgracei a minha vida. Não quero fazer mal a
ninguém próximo a mim — eu simplesmente disse, embora estivesse louco de desejo, e fui
embora.
A outra situação que me atingiu ali foi a de uma angustiante percepção de que não havia
qualquer perspectiva de vida para gente que vivia como eu. Procurei por Atum, Zé Bumbum e
outros, e vi que estavam em meio a um processo de alucinação e loucura. Estavam mal, e era algo
feio de ver. O romantismo das drogas começava a desaparecer dentro de mim.
Retornei a Copacabana sem saber o que fazer. Mas tão logo voltei, Neto me disse que Zé
Curió estava chegando de Manaus. Fui ao aeroporto buscá-lo e vi meu amigo entrar em
Copacabana com o ar de reverência com o qual os iniciados adentram os santuários mais
sagrados do mundo. Para nós, amazonenses, aquele era o santo dos santos da alucinação e das
vaidades.
Zé dançou na calçada, saltou e correu como louco pelas ruas, gritando: “Eu não quero nem
saber quem morreu, eu quero é chorar.”
Com a chegada de Zé, minha vocação para a galinhagem retornou imediatamente. Logo
descobrimos que Ipanema e Copa estavam cheios de garotinhas do Sul, perdidas, querendo
qualquer tipo de aventura. Fizemos nossa cama ali. E como o dinheiro estava curto, começamos
não só a usá-las para nosso consumo pessoal, mas passamos também a “alugá-las”, na esquina da
Aires Saldanha com a Bolívar, para os coroas que passavam de carrão.
A nossa vida não podia ser mais contraditória. Vivíamos como loucos — nas drogas e na cama
com as meninas —, mas não deixávamos de lado as disciplinas físicas impostas por nosso guru,
Neto.
Na praia conhecemos as figuras mais folclóricas e extravagantes que poderiam existir. Aquilo
tudo, para nós, era como um curso de antropologia aplicada às esquisitices da urbanidade. Era
fascinante mergulhar na multiplicidade de experiências e percepções do mundo que ali havia.
Naquele mês de dezembro de 1972 aprendi, em Copacabana, por que garotões como eu
entravam para a academia dos Gracie. Havia gente de todos os níveis por lá: médicos, advogados,
policiais, porteiros de edifício e empresários. Mas a moçada mais jovem entrava para a academia
para aprender a quebrar a cara dos outros em briga de rua. Naquele período, em apenas quatro
meses participamos em mais de 15 brigas de rua. Em duas delas, até um grupo de choque do
Exército foi chamado.
A primeira vez foi quando quebramos todo o New Jirau, no dia de sua reinauguração, após um
incêndio que lá havia acontecido. No meio do quebra-quebra, ouviu-se o grito: “Um batalhão de
choque chegou.” Aí nos espalhamos pelas ruas de Copacabana, fugindo dos militares.
Na outra ocasião, fui eu o objeto do conflito. Tendo sido convidado por um certo Batata para
uma festa na rua Toneleros, fui e entrei, sem querer saber onde estava e quem eram os donos do
luxuoso apartamento. Todos usavam roupas elegantes e a coisa parecia ser de altíssimo nível. Eu,
entretanto, estava de macacão francês, colado ao corpo magro e musculoso, sem camisa por
baixo, fazendo questão de expor minha sensualidade o mais que pudesse. Como vi uma mulher
loira, de uns 28 anos, sozinha no meio da sala, fui lá e comecei a dizer o quão linda era ela, que
sorriu com um ar de contentamento diante de um galanteio tão imediato e descarado. Foi quando
seu marido chegou, pegou-me pelo braço e começou a querer me expulsar da sala. Eles eram
muitos e eu estava sozinho naquele ambiente estranho. Peitei o homem e depois me retirei
fazendo ameaças.
Quando cheguei ao Cabral 1500, nosso ponto de encontro, contei o episódio para Curió e
Ricardinho. Em poucos minutos uns quarenta rapazes da academia já estavam mobilizados para a
guerra. Fomos lá e cercamos o prédio. Até às duas da manhã ninguém saiu da festa. Ficaram
sabendo e recolheram-se lá dentro. Mas como um dos presentes era do serviço de segurança do
exército, chamou um choque da PE. Não demorou e estávamos cercados de soldados armados.
Corremos pelas ruas escuras e desaparecemos pelo bairro Peixoto.
Capítulo 22

“Numa ocasião, na adolescência, eu ardia por encontrar satisfação nos prazeres


animais. Assim, eu corri selvagem pela floresta sombria das aventuras eróticas.
Dessa forma, minha beleza se foi e eu apodreci ante os Teus olhos, ó Deus. Mas ao
tentar me dar prazer, o que eu realmente buscava era obter aprovação humana.”

Santo Agostinho, Confissões

No nosso caminho aparecia de tudo: artistas de televisão e cinema, músicos de renome,


prostitutas da elite, cafetões de empresários e políticos, meninas virgens pela frente e
marias-batalhão por trás, homossexuais musculosos e bons de briga, homens casados com
mulheres lindas, mas que na moita não resistiam ao charme de um surfista etc. Enfim, era um
circo de vaidades, perversões e doenças da alma.
Para Zé e para mim aquilo tudo era parte do jogo da sobrevivência, e nós nos relacionávamos
com todos aqueles segmentos de modo a tirar deles o máximo de vantagem possível. Mas como a
situação financeira apertou, decidi ver se uma certa maneira de fazer dinheiro poderia funcionar.
Ora, eu tinha ouvido na academia que alguém de lá havia encontrado com Pedrinho Aguinaga —
considerado na época o homem mais bonito do Brasil —, que o vira com um mulherão e lhe
dissera: “Olha aqui, cara, você tá tirando essa onda toda porque é bonito. Cê sabia que eu tenho o
poder de ti fazer o cara mais feio do Brasil em dois minutos?”
A lógica do negócio era a seguinte: homens bonitos demais não gostariam de se arriscar a
levar uma surra na frente de suas mulheres. Saí dali e comecei a procurar homens bonitos pelas
ruas do bairro. Não deu outra. Veio o primeiro, com uma mulher linda. Tinha uns 21 anos e cara
de quem carregava dinheiro no bolso. Parei na frente dele, olhando para a mulher que o
acompanhava e dando soco de uma mão contra a palma da outra.
— Cara, você é bonito à beça. É uma pena que eu seja muito bom de briga e consiga te
fraturar a cara rapidinho — disse.
A resposta foi súbita. O moço arregalou os olhos, olhou para a mulher, viu que podia ser
verdade, e disse:
— Pára com isso, bicho. Eu sou de paz. O que qui cê quer?
Aí, então, eu disse que precisava de grana, e ele me deu tudo o que tinha. Agradeci, elogiei a
mulher dele, e saí andando na direção oposta. Passei o resto do tempo fazendo aquilo. Sempre
funcionou, exceto uma vez.
Naquele dia, resolvi abordar um homem com cara de militar. O problema é que eu já estava
tão cara-de-pau que havia perdido completamente o receio. Nas cinqüenta vezes anteriores, eu
havia ficado na situação de um assaltante desarmado e gostara do negócio. Daquela vez,
entretanto, pisei na bola.
O homem estava com a família, comendo numa lanchonete que havia na rua Bolívar, em
frente ao Cabral 1500, do outro lado da rua. Cheguei devagar, braços inchados de exercício, cara
queimada de praia, cabelos longos, bem abaixo do ombro, e olhos de maluco disposto a qualquer
coisa. O homem era alto e forte, mas estava acompanhado da mulher e dos dois filhinhos. Achei
que sozinho ele era do tipo que brigaria. Mas com a família, talvez preferisse pagar para ficar livre
da chateação.
Minha abordagem daquela vez foi diferente.
— Senhor, eu sei que um homem do seu tipo é generoso. Eu estou voluntariando o senhor a
dar um bom exemplo para a sua mulher e filhos. Passe-me grana suficiente para matar minha
fome e a de meu amigo.
Ele olhou para mim com um ar de segurança.
— Por que é que você acha que eu vou fazer isso? — perguntou.
— Porque você é gente boa, mas também porque você sabe que, se num passar a grana,
apanha — respondi.
Ele ficou vermelho de raiva. Pensei que fosse explodir. Depois, olhou para a esposa e os
filhos, que àquela altura já estavam agarrados às pernas dele.
— Seu moleque, vá ali fora, olhe a placa daquele carro e depois venha cá — disse. Era um
carrão preto, com chapa branca. Vi, ainda, que do outro lado da rua havia um outro carro preto,
também com chapa branca. — Eu sou coronel do Exército e tô com uma vontade danada de ferrar
você. Mas eu não sei por que não vou fazer isso. Alguma coisa me diz que você não é ruim, só está
perdido. Saia daqui e nunca mais faça isso. Se fizer, vai dançar — ele me avisou.
Virou-se de costa para mim e recomeçou a comer seu lanche, na maior moral. Eu andei pela
rua com um monte de gente me olhando pelas costas, sentindo-me um rato.
Ali, todo dia acontecia de tudo. Era como se o mundo todo, com suas inúmeras
complexidades, coubesse inteiro no espaço daquela geografia e dentro de nossas horas e
alucinações. Entretanto, algo estranho começou a me acontecer. Uma noite, eu estava andando
pela praia com uns amigos para fazer hora para ir a uma festa na Lagoa quando, de súbito, vi uma
mulher negra, de olhos arregalados, correr na minha direção. Ela começou a tremer e a dar
demonstrações que um espírito estava se apossando dela. Minha cabeça rodou e eu comecei a
sair de mim. Era como se outro ser estivesse me dando um chega pra lá interior e eu não tivesse
forças para impedi-lo. Tudo rodou e escureceu. Eu parei, desesperado. A sensação era horrível.
Parecia que a morte estava dizendo que faria morada em mim.
Pedi socorro a Deus e recitei o Salmo 23, lembrança da Mãe Velhinha e da Escola Dominical.
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque Tu estás
comigo”, gritei para dentro de minha própria mente. A coisa fugiu. Sentei num banco do calçadão
e não consegui falar. Meus maxilares haviam enrijecido de tensão. Não quis mais ir à festa. Fui
para a esquina da Figueiredo de Magalhães com a avenida Copacabana e fiquei ali, sentado,
sozinho, cheio de angústia, com medo das sombras e com vontade de sumir.
Não demorou, entretanto, e apareceu uma garota de uns 18 anos que começou a conversar
comigo. Trinta minutos depois, estávamos num apartamento muito bem mobiliado, nus e
fumando maconha em companhia de um garotão forte, de uns vinte anos, que me dissera ser
filho de um fazendeiro de Goiás. Havia algo esquisito no ar. Era como se o diabo estivesse ali.
Comecei a sentir uma estranha presença espiritual. Senti um cheiro esquisito de cobra. O
mesmo pitiú que me ensinaram a discernir no Amazonas quando as cobras estavam próximas.
— Sou discípulo de Satanás. Não há nada melhor do que segui-lo — disse o tal rapaz em tom
de voz macabro, confirmando minhas suspeitas.
Tremi de cima a baixo. O lugar era demoníaco e com o “bicho”, em pessoa, eu não queria
nada. Fazia coisas que eu sabia serem dele, mas nada de tratos pessoais.
Saí dali o mais rápido possível, mas a coisa foi comigo. Daquele dia em diante, comecei a
sentir aquela presença insistentemente. Foi também na mesma ocasião que Curió foi morar com
Dadá, conhecido como traficante de cocaína e adepto de macumba e bruxaria. Na casa do homem
havia sempre despachos e muita cachaça consagrada aos espíritos. Ele vendia cocaína, fazia
orgias e dormia ali, naquela kitchenette. Zé dormia num colchão posto ao pé da cama.
Ali acontecia de tudo, e ninguém jamais imaginaria o nível das pessoas que freqüentavam o
lugar: riquinhos, mulheres casadas, meninas de até 14 aninhos, velhas prostitutas e
homossexuais enrustidos. Zé Curió adorava o lugar. Eu, entretanto, apesar de ter participado de
algumas orgias ali, sentia-me deprimido e com a sensação de que estava na iminência de ser
possuído por algo muito maligno toda vez que entrava no “apê” do Dadá.
Mas o cerco da morte estava apenas começando. Um dia conheci uma menina na
Universidade do Fundão, na Ilha do Governador. Neto tinha ido inscrever-se para o vestibular de
sociologia e me levou junto, no Bugre dele, para dar um passeio e paquerar umas gatinhas.
Quando ele subiu as escadas para fazer a inscrição, eu vi uma menina de uns vinte anos sentada
sozinha, perto das grandes colunas do prédio principal.
Senti que era hora de caçar. Cheguei, pedi para sentar ao seu lado e disse que estava
cansando de fazer ginástica. Então, pedi licença para deitar a cabeça no seu colo. Ela ficou tão
surpresa com minha ousadia, que deixou. Trinta minutos depois Neto voltou e já nos encontrou
no meio de um beijo. Marquei de ir à casa dela naquela mesma noite.
A mãe de Ana era uma psicóloga louca, cheia de maconha na cabeça, e estava de viagem para a
Argentina. Ela e o irmão não tinham nenhuma razão para ser melhores que a mãe. Fui entrando e
ela me levou imediatamente para o quarto. Só depois de alguns minutos de sexo é que fiquei
sabendo quem ela era.
— Olha, eu não costumo fazer o que fiz com você. Mas é que nunca conheci um cara tão
doido e ousado quanto você. Sou noiva de um membro dos The Fevers. Estamos brigados, mas
gosto dele — ela me disse com ar de profunda respeitabilidade.
Fiquei com Ana uns três dias, viajando pelas loucuras do prazer e da droga. Mas no fim
aconselhei-a a voltar para o músico da famosa banda. Dias depois eu os encontrei na casa de
Dadá, onde eles tinham ido comprar cocaína, e o rapaz me agradeceu o conselho que havia dado à
sua menina.
— O prazer foi todo meu. Disponha sempre — disse eu, cínico e grato.
O problema é que Ana me dera o telefone de uma amiga dela, Mariana, que tinha uns ácidos
alucinógenos chamados de microfilme. A droga era trazida para ela todos os meses por um
americano. Liguei para a tal Mariana e fui encontrá-la. Ela era loira, usava óculos de intelectual,
falava com classe e me disse que seu pai era o chefe da segurança de Copacabana.
— Beleza, assim num tem sujeira — foi o que falei ante aquela informação.
Coincidentemente, o americano também estava na cidade. Pegamos o gringo num hotel no
Flamengo e fomos para o Arpoador tomar o tal do microfilme. Tomamos juntos. Em mim a onda
não foi das maiores, mas o americano começou a babar e a falar coisas que eu não entendia. Meu
inglês era quase nenhum naquele tempo. De repente, eu ouvi Mariana — que falava inglês
fluentemente — começar a dizer:
— Aleluia! Aleluia! O anticristo nasceu. Ele está vivo e vai governar este mundo.
Senti o arrepio da morte passar pela minha coluna.
— O que cê tá dizendo? — perguntei nervoso e assustado.
— O Richard acabou de receber uma revelação de Satanás dizendo que o filho dele já está
neste mundo — foi a resposta assombrosa.
Eu saí do carro e corri alucinado pela praia. Era como se o inferno inteiro estivesse
marchando atrás de mim. Eu gritei, chorei e pedi a Deus que jamais me deixasse viver como um
filho do demônio. Eu não vivia como gente de Deus, mas eu sabia o que era viver com Ele.
Daquele dia em diante, mergulhei em agonias cada vez mais intensas. Mas, infelizmente,
aquilo era só o princípio das dores.
Capítulo 23

“A tua mão pesava sobre mim e eu não me dava conta disto. Havia me
ensurdecido pelo fluxo barulhento de minha agitação mortal. Assim, eu viajei para
muito, muito longe de Ti, e Tu não me impediste. Eu fui lançado em volta, por
toda parte, cuspido na vida, cozido seco no caldo de minhas fornicações. Óh, meu
Deus, quão lento eu fui em encontrar minha alegria. Sim, eu andava cheio de
orgulho e ao mesmo tempo completamente incapaz de achar descanso na minha
terrível exaustão.”

Santo Agostinho, Confissões

A pressão espiritual estava pesada demais. A sensação que eu tinha era a de que estava
ficando louco. Ouvia meu nome sendo chamado por ninguém na rua e lutava contra uma terrível
sensação de morte que borboleteava dentro do meu peito. Por vezes, eu subia à laje do dúplex
onde eu morava com Neto e ficava olhando de cima para baixo, com quase metade dos pés para
fora do 14o andar, imaginando — do mesmo modo que eu fizera aos dez anos na rua Sá Ferreira
— o que aconteceria se eu pulasse.
O significado da morte era a minha questão.
E minha sensação de desgraça interior cresceu ainda mais com um episódio isolado que
aconteceu numa tarde, mas que posteriormente me devastou a alma.
No meio das “guerras de Manaus”, no fim de 1972, Neto tinha ficado devendo uma surra a
um rapaz que havia enganado Liliane, a americana-amazonense que ele tomara de Alipinho. Era
um sujeito grandão, chamado Adri. A mãe de Liliane havia dito que Adri tinha se “apropriado
indevidamente” de uma prataria dela e Neto respondera que a prataria “iria voltar por bem ou por
mal”.
Em Manaus não tinha dado para acertar com Adri, pois o caso seria visto como covardia do
mestre de jiu-jítsu. Mas, em Copacabana, ninguém queria saber quem era quem.
Adri estava no Rio passando o verão e eu encontrei com ele no píer de Ipanema. Aproveitando
a oportunidade, disse para ele me visitar na rua Aires Saldanha e dei o endereço do Neto. Depois,
fui para o faixa preta de jiu-jítsu e perguntei: “Cê ainda qué pegá o Adri?”, e entreguei o
grandalhão de quase dois metros de altura de mão-beijada para Neto. À hora marcada, eu sentei
na frente do edifício, em cima de um carro. Neto estava escondido na garagem. Seu Adri, como o
chamávamos, apareceu, ergueu o braço fazendo o V de paz e amor com os dedos da mão e sorriu
para mim.
— Fica aqui que tem uma gatinha querendo te dar uns beijinhos — eu disse quando ele
chegou bem pertinho.
Aí o Neto correu da garagem, deu uma baiana no grandalhão, sentou em cima dele e bateu só
“um pouquinho”, mas o suficiente para conseguir o seu objetivo de intimidação. Não arrebentou
o rapaz, porém o humilhou em público.
— Você vai voltar pra Manaus e vai devolver tudo o que cê pegou da minha mulher. Tem um
mês pra fazer isso. Se ela me disser que cê num fez nada, mando alguém de lá mesmo te finalizar
— ameaçou.
Adri foi embora, chorando de vergonha, do alto de seus 24 anos e do seu metro e noventa de
altura. Então Neto olhou para mim e disse algo que me perturbou imensamente.
— Cê sabe, o Dadá é mau-caráter. O Zé Curió é bom-caráter, apesar de tudo. Mas você,
bicho, você é sem caráter. Vejo você parar pra dar tua fruta pras mães que pedem comida para os
filhos na esquina. Mas vejo você fazer uma safadeza dessas. Eu tenho medo de você, bicho. Cê tá
ficando perigoso, seu Macunaíma — ele falou com voz suave, mas em tom agressivo.
Vindas de Neto — meu guru e mentor —, aquelas palavras me arrebentaram. Será mesmo
que alguma coisa muito ruim tinha me mudado de vez? Será que eu havia perdido a minha alma?
Não fosse uma outra tarde daquele verão, acho que teria enlouquecido. Estava em pé na
esquina da Bolívar, por volta das duas da tarde, quando vi um conhecido da praia passar com uma
mulher que me arrebatou os sentidos. Ele era conhecido por ser louco e por ter sido acusado de
envolvimento na morte de Aída Cúri, vítima de um crime famosíssimo uma década antes. O
pessoal dizia que ele era capaz de tudo, pois quando bebia ficava completamente fora de controle.
Mesmo tendo medo do Barão — como o chamavam —, decidi que aquela mulher valia qualquer
risco.
Aproximei-me como quem não quer nada e comecei a conversar com ele, propositadamente
ignorando a mulher. Fui tão desinteressado por ela, que ele acabou me convidando para tomar
uma cerveja com os dois no Cabral 1500. Quando sentei à mesa, já sabia que a mulher não seria
mais dele daquela tarde em diante.
Mira era paulista e tinha uns 22 anos. Portanto, era uns quatro anos mais velha do que eu.
Morena clara, tinha olhos iluminadamente castanhos e cabelos finos, leves, que se agitavam ao
vento. O corpo da mulher era grande, cheio, generoso de espaços, extravagantemente sedutor.
Uma vez sentados, comecei logo a jogar charme para ela. Eram olhadas rapidíssimas que
diziam tudo. Então Barão levantou e foi ao banheiro. Era tudo o que eu queria. Toquei nela por
debaixo da mesa e disse que não sabia o que faria se ela não me encontrasse naquela noite. Ela
apenas me devolveu o toque no mesmo lugar e escreveu o telefone num pedaço de guardanapo.
Ficamos quase a noite toda juntos, no apartamento de um amigo de Manaus, o Renatinho
Fradera. No dia seguinte, fiquei sabendo que ela era sobrinha de um cara que tinha fama de ser o
político civil mais forte do regime militar. E mais: ela estava morando numa cobertura que um
famoso diretor de cinema havia emprestado ao tio dela. Fui direto para lá. Estava com medo do
Barão, mas certo de que queria pagar o preço da aventura.
Fomos a todos os bailes da cidade de graça. Bastava dizer quem era o tio dela e as portas se
abriam. A mãe de Mira, por sua vez, parecia estar perfeitamente confortável com a situação. Veio
de São Paulo e foi apresentada a mim. Conversei sobre família, como bom garoto, e ela me disse
que era presbiteriana.
— Eu também — afirmei cheio de moral.
— É mesmo? Qual é a sua igreja? — perguntou.
— Bem, no momento ando meio distante, mas meu pai é um bom pastor. Um cara da pesada
com Deus — afirmei com certo orgulho.
Ela foi à praia e nos deixou à vontade, e nós nos entregamos aos prazeres que cabem nas
camas das melhores famílias, especialmente de dois crentes distantes de Deus e dos princípios
da fé.
Eu me apaixonei por Mira e não queria nem pensar na idéia de que no fim de fevereiro de
1973 ela voltaria para casa. A relação foi se tornando intensa, obsessiva, dependente, meio sádica,
mergulhando na doença. Quando chegou a hora da despedida, choramos juntos. Ela foi, e eu me
desarvorei de dor. Mas uma semana depois ela voltou, desesperada. Disse que não podia viver
sem mim, que tinha falado com a mãe e que queria casar comigo. Eu aceitei. Para mim, tanto
fazia. Casar ou não casar não significava nada, afinal. Disse para ela que eu iria a Manaus resolver
umas coisas e então a encontraria em São Paulo, no máximo até abril.
Naquele fim de semana fui a Niterói ver Téo, Cecé e os amigos. Quando voltei, na
segunda-feira, ninguém estava lá no Cabral 1500, na Aires Saldanha ou na Miguel Lemos. Todos
haviam desaparecido. E Neto tinha ido para a Bahia sem me levar com ele.
Quis saber o que havia acontecido, mas as pessoas estavam esquivas, não queriam conversar
comigo. Até que um amigo me disse: “Sai daqui que os homens tão aí. Dançou todo mundo:
Dadá, Zé Curió, a turma da Miguel Lemos, os meninos do Cabral, todo mundo, bicho. Trinta e
seis caras. Tu num foi porque num tava aqui. Mas eles tão vindo passar o pente fino. Corre, cara.”
Eu fiquei completamente desorientado com a notícia da prisão de Curió. Não tinha para onde
ir, pois soube depois que Neto havia ido para a Bahia com muita raiva de mim porque uma
menina com quem ele saía de vez em quando tinha dito a ele que eu tentara cantá-la, o que,
naquele caso, não era verdade. Ele nunca falou comigo sobre o assunto, mas ficou magoado.
Ainda fiquei na área uma semana, dormindo nas areias de Copacabana e Ipanema e
acordando com o ardor do sol no meu rosto todas as manhãs. Comia o que me davam ou roubava
tomates e frutas na feira para encher a barriga, e tomava banho nas garagens dos edifícios.
Comecei a me sentir um mendigo. E três dentes meus começaram a dar sinal de apodrecimento.
Ora, aquilo eu não podia admitir. Eu sempre me orgulhara imensamente da saúde de minha
dentição.
Nesse meio-tempo, chegou o carnaval. Não tendo para onde ir e faminto, aceitei o convite de
um certo Zé Roberto, moço alto e rico, para ir passar o carnaval na casa de uns amigos dele em
Búzios. Eram seis da tarde do sábado de carnaval quando saímos. No caminho, resolvemos tomar
uma anfetamina argentina. Tomei 17 e comecei a morrer. Meu coração disparou como nunca
antes. Parecia que o peito ia estourar. A vista escureceu, eu caí para trás no banco do carro do
rapaz e não me mexi até meia-noite. Não sabia se estava vivo ou morto. Minha alma estava morta.
Levantei aos poucos, feito um zumbi. Quando Zé Roberto percebeu que eu não morreria, tomou
a estrada e foi para a casa de Paulinho Imperial, na praia de Búzios. Ficamos naquela região até
quarta-feira, sem mulher, mas com muita droga. Tomei trinta anfetaminas nos três dias que
estive ali e não dormi uma única noite. Voltei de Búzios com o gosto da morte na boca.
Depois de tudo isso, cheguei à conclusão de que, se ficasse no Rio, seria preso ou viraria
mendigo. Portanto, mesmo extremamente acanhado, fui direto para a casa da tia Bernadete, na
rua Anita Garibaldi. De lá, liguei para papai e pedi para voltar para casa. Ele me mandou ir para a
casa do reverendo Antônio Elias, em Niterói, para esperar que conseguisse o dinheiro e pudesse
mandar a passagem.
Em Niterói, eu continuei o processo de angústia de alma, mas agregou-se à minha dor um
elemento de natureza moral. Ficar na casa do reverendo Antônio Elias fazia-me mal, pois lá todo
mundo estudava, lia jornal e podia ler Mad em inglês, menos eu. Mesmo os mais doidos, como
Cecé e Lucilia, tinham rotina de vida, mas eu não. As únicas coisas que eu fiz naquele período de
espera, que veio a durar 45 dias, foi ir à academia do Carson Gracie, em Niterói, para treinar com
ele e Serginho; correr na praia de São Francisco, fumar um baseado no fim do dia, fazer uns
quinhentos apoios antes de ir para a cama e passar a noite toda em claro, absolutamente insone,
pulando fora do leito com raiva e fazendo abdominais até a exaustão.
Tudo o que eu queria era que a tal da passagem chegasse logo e que eu pudesse ir para
Manaus. Aí eu me perguntava: “Que qui cê vai fazer em Manaus, bicho? Cê já tá aqui, por que
num vai logo vê a mina em São Paulo?” O fato é que eu não tinha resposta para a minha
necessidade de voltar a Manaus. Eu não tinha nada lá. A família era um detalhe emocional na
minha vida e história, por que então voltar? Eu não sabia responder.
Quando tio Renato Fábio me telefonou dizendo que a passagem estava disponível, juntei
meus trapos e fui para a casa dele em Copacabana. Fiquei no mesmo quarto em eu havia dormido
oito anos antes, quando chegara de Manaus no meio da depressão que nossa família vivera. As
recordações daqueles sentimentos não me deixaram dormir, além do que os odores concentrados
nos porões dos elevadores eram ainda os mesmos. Por isso, com mais força ainda, a minha
desgraçada olfatividade remeteu-me a uma viagem onde muitos personagens e emoções
reavivaram-se com extrema força, inclusive meus pais.
Às cinco da manhã tio Renato me acordou de minha insônia e me levou no seu DKV até o
Galeão. Viajei oito horas e cheguei a Manaus às quatro horas da tarde. Fui o último a sair do avião.
Minhas mãos estavam geladas e eu me sentia como se tivesse de brigar uma “briga contratada”,
com hora e lugar marcados. Só não sabia quem seriam os adversários. Aliás, se eles estivessem lá,
não saberia como enfrentá-los e, se não estivessem, não saberia como enfrentar-me. Sentia medo
de que estivessem e pavor de que não estivessem.
Eles estavam enfileirados. Aninha, Luiz, Suely, mamãe e papai. Do mais novo ao mais velho.
Era uma interessante escada de emoções. Ia de alguém por quem não tinha nenhum
ressentimento, a Aninha; até aquele por quem eu não sabia mais o que sentia, papai. As mulheres
choravam. Luiz estava pálido e calado, seu modo discreto de dizer que estava abaladíssimo. E
papai se mostrava estranho. De um lado estava feliz, transparecia isso nos olhos; mas de outro
lado se revelava nervoso, com as mãos suadas e os lábios um tanto sem cor. Parecia que ele não
conseguia ficar sem se encher de esperança com minha volta, mas ao mesmo tempo estava
apavorado de que eu tivesse voltado apenas para viver novas loucuras e assim morrer
precocemente.
P ARTE II

Confissões de Dúvida e Fé
Capítulo 24
“Tu estavas comigo, misericordiosamente me punindo, tocando sempre com um
gosto amargo todos os meus prazeres ilícitos. Tua intenção, ao assim fazeres, era
que eu encontrasse prazer não nos deleites poluídos pelo desgosto e que, na minha
busca por alcançar alegria, eu descobrisse que é só em Ti, Senhor, que está a fonte
de tudo. Desse modo, Tu me designaste a dor como lição; Tu me feriste para
poderes me curar; e tu me trouxeste ao portão da morte a fim de que na presença
dela eu me convertesse, e assim não morresse longe de tua face.”

Santo Agostinho, Confissões

Voltei para casa querendo encontrar o caminho da normalidade de comportamento e


conduta. Mesmo que dizendo aos amigos que até o fim de abril estaria de volta ao sudeste, mais
precisamente a São Paulo, no fundo, sabia que estava tentando me enganar com aquela história.
Foi logo nas primeiras semanas de volta a Manaus que recebi o primeiro telegrama de Mira:
“Meu amor, quando é que você vem para São Paulo? Me escreva.” Não consegui responder. E
veio o segundo: “O que está acontecendo? Você não me responde. Estou ansiosa.” Não respondi,
e ela nunca mais escreveu nada. De fato, nós éramos apenas dois jovens confusos e perdidos
existencialmente, nutrindo esperança de “encontro” um no outro. Mas não havia entre nós nada
mais profundo do que lembranças de sexo arrebatador.
A vida em Manaus havia mudado. A cidade não era mais a mesma. As turmas haviam se
desmantelado e os grupos de relacionamento viviam agora um novo processo de busca de
identificação e confiança. Os eventos do final de 1972 haviam tido um poder devastador na mente
de muitos daqueles garotos e garotas dos círculos da alta sociedade.
Os primeiros dias depois de minha volta tiveram, contudo, uma marca espiritual
perturbadora na minha mente, pois numa daquelas noites sonhei com algo que me possuía. A
impressão que me ficou foi a de que, no meu inconsciente, um filme tinha sido rodado com uma
“malha amarela em frente à lente da câmara”. Era como se o sonho-filme estivesse
artisticamente envelhecido e a luz ali presente fosse de “um amarelo urbano”, cheio de
melancolia, como o das ruas de Manchester, na Inglaterra. Uma cobra deslizava, leve e sutil,
sobre o chão do ambiente, que, em si mesmo, era completamente indefinido. De súbito, a cobra
deu o bote sobre mim, se enroscou em meu braço esquerdo e me mordeu. Ao receber o seu
veneno, imediatamente minha visão ficou amarela, o que me deu a certeza de que eu começava a
morrer. No dia seguinte, contei o sonho à minha mãe.
— Meu filho, na Bíblia, o amarelo, relacionado a animais, é símbolo de morte. O cavalo
amarelo do Apocalipse é a morte — ela disse. — Caio Fábio, sei que você não gosta de ouvir, mas
Deus está tentando falar com você sobre o caminho de morte no qual você está andando —
concluiu.
Estranhamente, daquela vez eu não disse nada. Dei as costas a ela, pulei na moto e fui
embora, porém com a mente impregnada com as imagens aterrorizantes daquele cinema do
inconsciente.
Minha busca de inserção social acentuou-se. Ser como todo mundo tornou-se um alvo para
mim. Mas meu desejo de normalidade resumia-se em alcançar algumas coisas básicas: voltaria a
estudar, conseguiria um emprego, arranjaria uma namoradinha de portão e usaria drogas de
modo muito controlado, sendo que durante a semana fumaria apenas maconha, e somente à
noite, antes de dormir.
Não foi difícil conseguir voltar à escola — havia incentivo e ajuda de todos os lados. O
emprego, entretanto, não apareceu. Aliás, eu nem procurei. Já as namoradinhas de portão
surgiram com extrema facilidade e, naquela época, visitei pelo menos dois portões a cada semana.
O problema eram as drogas, pois havia um latejante desespero crescendo dentro de mim. Era
um sentimento de perdição, de total inadequação à sociedade e ao mundo. E mais que isto: sentia
um esmagamento espiritual achatando a minha alma. Era como se estivesse privado de todo
prazer. Não havia nada que me desse satisfação. O gosto do desgosto era marcante e permanente,
além do que era como se aquelas experiências espirituais vividas no Rio continuassem a reboar
com seus sons e angústias dentro de mim, de modo ininterrupto.
Como os únicos amigos de compromisso incondicional estavam no Rio — Zé Curió, preso na
Ilha Grande, e Nego Aires, curtindo nas praias —, sobrou-me muito pouca gente na cidade em
quem eu podia confiar e ter certeza que não me entregaria para aqueles que desejavam acertar
contas comigo. De fato, dentre os homens de meu relacionamento, os únicos que eu sabia que
não me fariam mal eram os meus primos João Fábio e José Fábio, com quem passei a andar. As
saídas com eles muitas vezes tomavam o caminho do interior, para longe de Manaus, na direção
de Itacoatiara, a cerca de trezentos quilômetros da capital.
Foi numa daquelas viagens para lá que me deparei com um espetáculo único no planeta. José
Fábio dirigia um Fusca com cerca de dez anos de uso, porém bem conservado. Nós éramos cinco
pessoas ao todo. Chovia fino, embora com extrema insistência. Uma neblina baixa caíra sobre a
estrada de piçarra pedregosa, que, de tanta água, já se transformara em pura lama. Por isso, o
carro deslizava de um lado para o outro da pista, enquanto nós ríamos como se estivéssemos
brincando num parque de diversões. A noite já se avizinhava, de tal modo que os faróis do carro
estavam acesos.
— Meu Deus, é um tronco? Não! É uma cobra — foi o que ouvimos de repente, bem no meio
de uma curva, enquanto José, perplexo, nos fitava com os olhos arregalados.
— Nããããooo! Não passa por cima dessa bicha — gritei apavorado e, num reflexo, puxei os
pés para cima do banco dentro do carro, como se entre nós e a estrada não houvesse a lâmina
blindada do Fusca.
Brum, brum, foi o que ouvimos quando o veículo bateu duas vezes contra uma lombada de
músculos que se revolvia de uma extremidade à outra da estrada.
Paramos uns trinta metros adiante. Manobramos o carro e ficamos de frente, vendo aquela
enormidade de réptil mover-se lenta e soberanamente, no meio do caminho.
Vun, vun, vun, Zé Fábio aqueceu o acelerador do carro outra vez.
— Não vai, bicho, porque se a gente num passar, essa cobra estrangula esse Fusca. Ela é
descomunal — eu disse, tentando dissuadi-lo do desejo de dirigir por cima dela mais uma vez.
— Na primeira vez a gente rolou por cima porque a gente vinha no embalo. Agora, é
perigoso, Zé. A gente num tem velocidade — disse um dos rapazes no banco de trás.
— Que nada. Eu vou atropelar essa bicha — disse nosso destemido motorista, partindo para
o ataque. Dessa segunda vez, já nos foi possível sentir o balanço da subida e da descida de cada
roda.
— Hum! Que nojo, cara — eu disse, agora com mais repugnância do que medo.
Depois de manobrar o carro mais uma vez, nós ficamos ali, dentro do carro, vendo aquele
animal imenso descer o barranco no sentido do nível mais íngreme na lateral da estrada.
— Vamos ver que tamanho ela tinha — disse Zé Fábio. — Ela raspou no fundo do carro —
ele prosseguiu — e ficou com o rabo de um lado e a cabeça do outro lado do caminho. — Então,
medimos a altura entre o Fusca e o chão, bem como a largura da estrada de um lado ao outro.
— Cara, que monstro. Um palmo e meio de altura e onze metros de comprimento — meu
primo concluiu. — Num vamos falar sobre isso lá em Itacoatiara pra ninguém dizer que nós
estamos loucos. Tô falando sério. Vai pegar mal — ele disse com seriedade. Concordamos todos,
mas, quando chegamos lá, eu não resisti. Vendo um monte de meninas numa das praças, fui logo
até lá vendendo aventura e contando aquela história de pescador.
— Cê tá é muito doido, bicho. Que foi que tu tomou, cara — me disse Tibério, um maluco
da cidade que eu conhecia de outros carnavais.
— Eu disse que num ia dá certo, num disse? — perguntou com um tom crítico o careta e
ponderado José Fábio.
A tentativa de “bom-mocismo” continuou. Mas como tinha feito muitos inimigos e também
por causa do medo permanente de ser traído por algum amigo de araque, mantinha o jiu-jítsu
“em cima”, treinando o máximo que podia com um lutador conhecido na cidade, chamado
Espartacus. “Assim”, pensava, “quando eles caírem dentro, eu vou estar preparado pra
arrebentar.”
A minha decepção comigo mesmo aconteceu logo no final do primeiro mês. Era abril e eu
concluía que não dava para ser normal. Os estudos eram maçantes. Entrava na Escola Técnica
Federal apenas para dormir das 13 às 17 horas. As meninas de portão eram tediosas, chatas,
insuportáveis. E as drogas eram irresistíveis, sedutoras e me faziam esquecer minha falta de
sentido para viver. De repente, me vi jogando tudo para o alto e partindo para aquela desgraçada
forma de existência. Parecia um carma. Era como se não houvesse nenhum caminho para fora
daquilo. Estava encurralado.
Até que numa noite, no início de maio, eu estava andando de moto solitariamente, aí por volta
das 22 horas, quando vi uma mulher morena, de corpo grande e bem-feito, olhos negros
profundos e cabelos nanquim, de tão pretos que eram, desfilando na penumbra, sem medo,
provocativa e segura. Ela parecia ser adulta e madura, e eu jamais a vira antes. Percebi que houve
uma certa faísca quando nossos olhares se cruzaram. Parei imediatamente, fiz a volta e encostei
na calçada, a um metro do ponto em que ela estava.
— Cê é linda demais pra tá andando sozinha aqui na Getúlio Vargas uma hora dessas. Deixa
eu te levar pra casa. Eu prometo que cê vai gostar — disse com a certeza de quem sabia que,
apesar dela parecer tão séria, o papo iria colar. Estava apostando na faísca que vira nos olhos dela.
Ela não disse nada. Não fez qualquer comentário positivo ou negativo. Andou solenemente na
direção da moto, prendeu a saia e montou.
— Me leva pra onde você quiser — disse.
Fiquei abobalhado com sua resposta e, ao mesmo tempo, incendiado de desejo. Fomos para
um motel recém-inaugurado nas proximidades do aeroporto Internacional de Manaus e só
quando chegamos ao quarto ela falou.
— Sou noiva, vou casar no mês que vem e não quero arruinar meu futuro. Tô aqui só porque
queria te experimentar. Sou amiga de umas meninas que já saíram contigo e sempre quis sair
também. Mas quando a gente sair daqui, você me deixa onde me pegou e não vai jamais saber
meu nome, quem sou ou onde moro, OK? — declarou quase como se fosse um roteiro de filme.
— OK! Se é assim que cê quer, que seja assim — respondi guloso e disposto a viver aqueles
momentos com intensidade, a fim de “beijar daquela vez como se fosse a última”, diria Chico
Buarque.
Ficamos ali apenas umas duas horas. O suficiente para que o mistério da situação iniciasse
em mim o prelúdio de uma paixão. Queria saber quem ela era. Mesmo nos clímax das emoções
vividas naquelas duas horas, eu haveria de pedir, de implorar.
— Me diz teu nome. Me diz teu nome! — eu suplicava, quase em preces. Ela ficava agitada
de tentação para falar, mas não dizia, o que me seduzia ainda mais.
Ao fim daquelas duas horas, deixei-a na mesma calçada da rua Getúlio Vargas. Ela saiu da
garupa, me beijou, sorriu para sempre, atravessou a rua, parou um táxi e desapareceu para toda a
vida.
Chocado, fiquei pensando que a existência estava me pregando uma peça e que não havia
nada que eu pudesse fazer para impedir. Nunca a vira antes e, talvez, jamais a visse depois. No
entanto, ela plantara em mim uma estranha semente. Não era paixão, nem sequer um broto do
amor. Era a sedução do mistério, do inacessível, do proibido e daquilo que se cobre de véu e se
recusa a fazer apocalipse, “revelação”. Nunca mais a vi, até hoje.
Fiquei com raiva. Virei a moto contra o fluxo de carros, acelerei, fechei os olhos e pedi para
morrer. Corri uns vinte segundos de olhos fechados. Senti alguns automóveis se desviarem de
mim. “Seu idiota, seu maluco, seu....”, eram as expressões que eu ouvia. Depois que achei que
tinha dado tempo suficiente ao destino para me liquidar, reassumi o controle e fui procurar o Zé
Fábio, meu primo. Disse a ele apenas que tinha saído com uma mulher estranha e extraordinária.
Zé Fábio não era de muitas palavras. Apenas deu um sorriso e disse: “Tu num toma jeito cara, só
vive apaixonado.”
A experiência com a mulher sem nome, sem endereço, sem passado e sem futuro fez muito
mal a mim. Para a maioria dos homens que ouvisse a história, eu tinha saído no lucro. Possuí sem
precisar pagar a conta, e o noivo dela não a conhecia como eu, um estranho, a conhecera. Que
vantagem!
Mas para mim a interpretação já não era aquela. De algum modo, mesmo sem saber por que
ou quando começara, meu interior estava em profunda mudança. Já não me satisfazia dizer como
coisas tão incríveis aconteciam comigo, de graça. Lá no fundo, já não era isso que eu desejava. De
fato, queria conhecer alguém e mergulhar nas águas de um relacionamento que tivesse começo,
meio e, se possível, não tivesse fim. Portanto, a “mulher da rua Getúlio Vargas” apenas acentuou
aquele sentimento de que a vida não estava me oferecendo nada consistente e duradouro. Já não
me sentia como um garanhão, aproveitador de mulheres. Estava começando a me sentir usado e
não como aquele que usufruía dos prazeres. E o sentimento era confuso para mim, pois gritava
por profundidade, embora eu amasse os vínculos passageiros. Essa era minha perdição: desejar
aquilo que mais me fazia mal.
E foi na tentativa banal de usar sem ser usado, que peguei duas garotinhas de programa numa
noite de domingo. Naquele tempo, papai estava iniciando o pastoreio na Igreja Presbiteriana
Central de Manaus e havia um lugar nos fundos do templo, onde tudo poderia acontecer sem que
ninguém notasse. No tal lugar havia cama e banheiro, e isso era mais do que eu precisava. Sabia
que depois das dez da noite ninguém aparecia por lá. E mais: sabia como entrar “na igreja” e não
hesitei em levar as meninas para aquele lugar de culto. Assim, fiz sexo com elas num lugar que eu
considerava sagrado. Quando as levei de volta à praça onde as havia encontrado, meu coração
estava pesado e minha consciência descarnada, tomada por uma culpa que eu até então
desconhecia. Era a culpa da profanação e do sacrilégio, e suas raízes estavam plantadas nos
porões de minha alma e se ancoravam em todos os ensinos sobre a santidade de lugares
dedicados a Deus que ouvira desde a infância.
Aquela experiência meteu em mim um ferrão aceso com as brasas de uma culpa para a qual
eu não conhecia alívio nem expiação. Assim, introduziu-me em profundos questionamentos
sobre o valor de minha busca de prazer a qualquer custo, especialmente porque agora eu estava
pagando a aventura até mesmo com o devastador preço da profanação.
Foi nesse ponto que concluí que há um limite radical para que as pessoas possam sentir
prazer. E este limite é o do “valor pessoal”. Na hora em que o prazer vem junto com o desvalor,
ele paga apenas com a reação química que nasce na animalidade, no corpo. É a certeza do valor
de ser o que remete a experiência do prazer para a alma, para o espírito e para a dimensão
semi-religiosa, onde prazer e sentido se confundem. E, definitivamente, não era esse o meu caso.
Estava constrangido com minha excessiva animalidade e começando a desejar ser homem e viver
para além da química orgânica uma experiência de encontro com minha alma. Mas foi
justamente aí que me poluí com as manchas da profanação do lugar santo.
Naquele mês de maio de 1973 eu me desarvorei. Comecei a fumar até quatorze baseados por
dia. Passei a maior parte do tempo dormindo na casa de tio Carlos, onde era sempre recebido
com extremo amor pelos meus tios, primos e primas.
Chegava lá todos os dias em torno de meia-noite, deitava num colchonete que Zé Fábio
deixava ao lado da cama dele, e só sentia sono quando meus primos estavam levantando para ir à
escola. Depois disso, dormia até às onze da manhã, levantava e logo apertava e fumava um
baseado na varanda da casa. Em seguida, descia, ia até o bar de seu Raimundo e pedia uma
talagada de cachaça, bem branca, fazendo o sinal dos dois dedos de marinheiro: o indicador e o
mínimo espaçadamente abertos, mantendo os dedos maior-de-todos e anelar presos para trás. E
lá vinha a bicha, queimando. Com o estômago vazio, aquilo parecia soda cáustica e tentativa de
suicídio.
Depois de uma ou duas doses, eu atravessava a rua doidão, entrava na cozinha de tia Délia e
pedia para comer um pão e tomar um cafezinho. Acendia uns três Continentais sem filtro e
fumava um atrás do outro. Aí sim, devidamente acordado, saía para mais um dia de loucura e
busca ansiosa da morte. Mas a morte fugia de mim.
Foi no final de maio que passei na porta do Colégio Cristus, na rua Joaquim Nabuco, a fim de
encontrar um amigo doidão, chamado Brum, depois da aula. Ele era mais novo que eu, mas vivia
em permanente estado de alucinação. Complicadíssimo de alma, Brum odiava o planeta, o
sistema, a sociedade e a vida. Tudo era idiota e nauseante para ele. Assim, passava o dia inteiro
afogado em Pink Floyd e maconha. Estranhamente, os estudos, para ele, eram parte do barato das
drogas.
— Cara, eu me amarro em ir muito doido para a escola e ficar curtindo com a cara dos
professores e rindo da maluquice das fórmulas de química, física e matemática. Aula de história,
quando cê tá doido, é o maior barato. Geografia, num dá nem pra falar. Doidão cê vai nos lugares.
É demais, bicho — dizia ele com um ar delirante.
Mas naquele dia, quando cheguei em frente à escola, notei um rostinho de menina que
jamais vira no pedaço.
— Quem é aquela mina ali, Brum? Aquelazinha, de blusa bege com uns elefantinhos
estampados? — perguntei curioso.
— Fica longe dela, bicho. O pai dela é fera. É o capitão dos portos. A mina é do Rio e num
gosta de maluco, não. Aliás, ela só anda com os caretas do vôlei lá do Rio Negro. E dizem que tá
saindo com uns caras que te odeiam. Lembra do Renato Oliveira? Saiu com ela. E o Michileno,
lembra? Saiu com ela também. Então, dá pra ver qual é o tipo de cara que ela gosta: só
burguesinho careta, bicho — falou com ar professoral e, ao mesmo tempo, sempre cínico,
puxando o canto da boca para baixo, como se fosse cair na gargalhada a qualquer momento.
— Que nada, Brum. Essa gatinha é igual a todas as outras: sai com os caretas pra agradar
papai e mamãe, mas gosta mesmo é de cara doido como eu. Quer valer como eu faturo rapidinho
e num tem pra ninguém se eu partir pra dentro? — apostei com ele.
— Essa aí num dá. Quero valer qualquer coisa como cê quebra a cara. Tô mais que positivo.
Vai que vou ficar aqui pra rir gostoso, bicho — disse.
Brum não sabia como eu funcionava ao contrário. Tudo o que era difícil me seduzia, e as
coisas fáceis enfastiavam-me antes mesmo de prová-las. Além do mais, havia uma meiguice na
gatinha que me chamou a atenção. Ela não era arrebatadora, mas era suave e parecia sensível e
boa de cabeça. Eu não sabia o que era, mas senti um forte desejo de ir conferir quem era ela.
Ela estava cercada de burguesinhas das classes sociais mais elevadas e badaladas de Manaus.
Atravessei a rua, fingindo que não percebia a mulherada agitar-se com minha aproximação, e ouvi
alguém dizer: “Ai meu Deus! Ele tá vindo. O que a gente faz, Alda?”
— Meu amigo ali, o Brum, diz que você não gosta de caras como eu. Mas eu não acreditei.
Vim aqui conferir. Escuta, cê num quer sair comigo uma hora dessas? — falei seguro, sem
cinismo e com muita seriedade, mas com uma franqueza desconcertante e objetivíssima.
As meninas em volta ficaram excitadíssimas. Uma ex-namoradinha minha, Virgínia, ficou
torcendo contra. Umas outras fizeram cara de raiva, mas eu sabia que era só fachada. Lá no
fundo, tinha certeza de que meu banditismo light dava a elas um sentimento ambíguo: falavam
mal de mim, mas sonhavam comigo sempre que o inconsciente queria se liberar em algum
encontro com o animal e o selvagem. Se era realmente isso que acontecia, não posso afirmar, mas
era assim que eu me sentia. E quase sempre dava certo.
Alda não disse quase nada. Falou apenas que estava dando uma festa na casa dela no dia
seguinte, no sábado à noite. Voltei para o Brum já cantando vitória.
— Pô, bicho, inacreditável. Quê qui cê falô pra ela? Impressionante! — ele falou.
Não disse nada, apenas o coloquei na garupa da moto e saí agitando a frente da escola em alta
velocidade.
No dia seguinte, vesti-me de hippie de butique e fui à festa do capitão dos portos. Era a
apresentação de Alda às famílias de Manaus. Um acontecimento absolutamente idiota e sem
propósito, na minha maneira de ver. Mas era minha hora de fazer o que mais gostava: chocar.
Parei minha moto na calçada da casa e entrei na fila de acesso ao portão.
— Aí, gente boa. Boa noite — gritei quando chegou a minha vez e fui entrando.
De repente, ouvi uma voz fina, estridente, com sotaque baiano, gritando nas minhas costas.
— Péra aí, meu filho! Tá pensando que isso aqui é a casa da sogra? — era uma mulher bem
vestida, magra, de uns 38 anos, segura de si e que parecia estar querendo fazer um showzinho
particular, curtindo com a minha cara.
Olhei para ela sem alteração. Mas os meninos do vôlei e dos outros esportes — os “caretas do
Rio Negro Clube”, como os chamava — estavam ali, se deliciando, contentes com o episódio e
seu possível desfecho: minha expulsão do lugar. O que não faltava eram marinheiros e seguranças
para me “botar para fora”.
Continuei olhando fixo para a senhora do portão.
— Como é o seu nome, seu cabeludo indecente? — ela perguntou provocativa, enquanto o
pessoal do vôlei dava uma estrondosa gargalhada em volta de mim.
— Caio, minha senhora. Meu nome é Caio — disse com o olhar preso ao dela, começando a
ficar com raiva.
— Caio de Bossa? É esse o seu nome, cabeludo? — nova gargalhada.
— Não, minha senhora. Não é Caio de Bossa, não. É Caio de Boca; pergunte às meninas
aqui. Elas sabem que meu nome é Caio de Boca — respondi lambendo os lábios, curtindo o gosto
de minha vingança.
Ninguém riu. Houve silêncio. A mulher maluca ficou me fitando com surpresa durante uns
três a cinco longos segundos, e caiu na gargalhada. Foi só então que os demais bobos da corte
riram também, sem graça.
— Gostei de você seu Caio de Boca. Pode entrar. Mas num me apronta, tá? Cê é doidão, mas
é sincero — ela completou, para perplexidade de todos. Mas a surpresa maior é que a baiana era
dona Rose, mãe de Alda. Então, entrei.
Não conhecia a todos, mas era conhecido pela maioria dos rapazes e moças que estavam ali.
Entretanto, ninguém falava comigo. Todos me admiravam e me odiavam. E eu ignorava o ódio
deles, mostrando minha total independência de movimentos, e, ao mesmo tempo, tirava proveito
da admiração que sabia que eles tinham por mim. Gargalhava sozinho, como se estivesse
bem-acompanhado, dançava ao som das músicas que me arrebatavam a alma, mesmo que não
estivessem sendo tocadas, e via a minha solidão autônoma ser dona do ambiente daquelas pessoas
inseguras e incapazes de acreditar em sua própria liberdade de ser.
Foi só depois de alguns minutos que vi a menina da casa conversando com um atleta de
plantão. Aproximei-me e peguei seu braço.
— Meu irmão, cê já conversou às pampas. Deixa eu bater papo com ela só um pouquinho! —
disse eu ao rapaz, que nada respondeu. Apenas olhou para Alda e percebeu um consentimento no
olhar da garota. Então perguntei a ela a que horas aquele circo estaria terminado.
— Aí pela meia-noite — respondeu.
— Então, à meia-noite fica na varanda que eu volto para te ver — disse eu, largando-a no
meio do salão e indo embora.
À meia-noite eu voltei. Ela estava lá, em pé, ansiosamente me esperando. Falamos cinco
minutos e ela me disse que no dia seguinte iria a uma festa na casa de uma amiga. No domingo eu
estava na mesma festa. Dançamos e nos beijamos. Na segunda-feira, peguei-a na escola no meio
da tarde e levei-a para a floresta, para as margens sedutoras de um igarapé. Choveu copiosamente
sobre nós enquanto nos deliciávamos na liberdade da solidão que as matas amazônicas
emprestam a qualquer um que as visite. Levei-a de volta um pouco antes de seu chofer chegar
para buscá-la na escola. Ela estava toda ensopada, mas feliz e apaixonada. Eu, entretanto, sentia
por ela algo estranho. Não era nada avassalador, mas era forte, e me dava a sensação de ser algo
amigo, constante e sincero.
Nas semanas seguintes saí com ela todos os dias. Íamos juntos para a floresta. Ela não fumava
maconha com regularidade, mas não rejeitava um tapa ou outro sempre que eu oferecia. Piano,
desenho e poesia eram as suas paixões. Amava arte e falar de coisas místicas. Dizia que sentia as
vibrações do mundo espiritual e não se constrangia em dizer que sabia ler mãos. Afirmava que
uma cigana a ensinara e que se tratava de uma “ciência precisa”. Eu não acreditava em nada
daquilo, mas curtia a inocência dos seus 16 aninhos. Estava a caminho dos 19 anos, mas me sentia
como se fosse muitos, muitos anos mais velho do que ela.
Estar com Alda era diferente e eu me sentia bem. Passaram-se dois meses e nós continuamos
a sair juntos. Entretanto, eu a tratava com um carinho e um respeito que eu jamais dispensara a
nenhuma outra menina ou mulher antes, em minha curta, porém intensiva vida amorosa. Mas
apesar de tudo, eu não estava feliz. O problema, no entanto, não estava nela, mas em mim, pois
minhas angústias interiores não cessavam.
Para complicar ainda mais as coisas, nós conhecemos um hippie que posava de mestre
oriental e estava sempre atrás da gente. Ele era alto, branco e calvo na frente, embora tivesse um
longo cabelo liso, que se esparramava sobre suas costas. Sua barba era do tipo sacerdotal antigo:
longa, espessa e totalmente desencontrada, com fiapos isolados que vinham até a altura da
barriga. Carlos falava de coisas místicas o tempo todo e nos prometia o encontro com o sagrado
pelas drogas, pela ecologia e pela meditação. Aldinha estava empolgada. Eu, entretanto, não
agüentava mais aquele papo. Havia dias em que a voz dele me irritava tanto, que eu sentia vontade
de amassar a cara do guru.
O céu foi ficando blindado. O ar faltava. Minha respiração começou a ficar difícil. A atmosfera
parecia estar baixando e colocando uma pressão insuportável sobre a minha cabeça. O mundo se
descoloria bem diante de meus olhos. A experiência do riso tornou-se um tormento
doloridíssimo e a gargalhada me rasgava a alma, como se nela houvesse uma adaga que golpeasse
meu interior. Assim, desejei a morte com força e profundidade.
Aos dezoito anos e alguns meses eu estava existencialmente velho e cansado. À semelhança de
meu bisavô Araujinho, decidi que era tempo de partir. Só que ele vivera até os 104 anos para poder
tomar aquela decisão, e eu, aos 18, já não agüentava mais existir.
Quando chegamos ao fim de julho, Alda e eu estávamos na iminência de terminar nossa
relação. Ela me amava, mas não agüentava mais tanta loucura. E eu, de minha parte, sentia
profunda ternura por ela, mas não conseguia ficar ao lado de ninguém. Queria a estabilidade
amiga e serena que ela, apesar de tão menina, me oferecia, mas me apavorava com minha quase
total incapacidade de aceitar os termos da normalidade de qualquer projeto de vida. Havia uma
jibóia dentro de mim, faminta, insaciável, comendo todos os elementos de minha alma. Um de
nós tinha de morrer: era ela, a jibóia, ou eu. Nós dois juntos não podíamos dividir o mesmo
espaço: minha alma.
Nos dias que se seguiram voltei a ser perseguido pela árvore sagrada da casa da vovó. Voltei
ao lugar da infância, ao pôr-do-sol. Olhei a velha mangueira e chorei. “O que é isso, meu Deus?
Que saudade é essa que me mata, que me atormenta?”, perguntei a ninguém. Mas a presença de
ninguém me atormentava. Ninguém estava ali, sem dúvida.
A certeza da presença de ninguém me confundia, me desesperava. Saí alucinado, com a alma
tomada por prantos de morte. Eu estava de luto por mim mesmo. Fui até à casa de Aldinha,
chamei-a ao portão, abracei-a, beijei-a, despedi-me dela.
— Adeus, te cuida — disse enquanto sentava na moto.
— Que é isso? Que qui cê tá fazendo? — perguntou com lágrimas nos olhos.
— Eu estou indo encontrar a morte. Hoje é certo. Nem ela vai fugir de mim e nem eu vou
fugir dela — arranquei com a moto e sumi atrás do posto de gasolina que impedia sua visão da rua
que tomei.
Capítulo 25

“Atribuo à Tua graça e indizível misericórdia o fato de teres derretido meus


pecados como gelo. Além disso, também atribuo à Tua graça todos os atos piores
ainda que os aqui narrados e que não cometi. E por que não os pratiquei, se
naquele tempo amava o erro gratuitamente? Sim, foi pelo Teu amor e pela Tua
graça que fui perdoado das torpezas que cometi e foi também por Tua bondade
infinita que fui poupado de ter feito coisas ainda piores.”

Santo Agostinho, Confissões

Os pensamentos que se digladiavam em minha mente eram mais fortes do que quaisquer
outros que jamais me haviam visitado. Eu pensei no inferno. Imaginei que talvez existisse
realmente um lugar de punição e dor para aqueles que viviam e morriam dando as costas ao
Criador. Entretanto, as reflexões sobre o inferno eram menos fortes do que aquele movimento de
borboletas espirituais revoando loucas dentro de mim. Fazê-las parar era a única coisa que me
interessava.
Somente muitos anos depois foi que pude entender melhor o que estava acontecendo comigo
naquela noite de quarta-feira, em julho de 1973. Muito depois daquele dia foi que aprendi que
quando a pior realidade que um ser humano conhece na existência é a morte, então ele quer viver;
mas quando, de súbito, ele reconhece a vida como sendo a pior experiência de seu existir humano,
então, nesse dia, ele deseja ardentemente morrer.
Era isso o que acontecia. Minha vida se tornara insuportável aos 18 anos de sua jornada, e eu
achei que a morte era a minha mais acolhedora companhia. Dirigi a motocicleta numa velocidade
média, angustiadamente reflexiva. Peguei a rua Sete de Setembro e fui até a esquina da rua
Duque de Caxias, onde morava alguém que eu julgava que teria uma arma para me emprestar.
Pela primeira vez eu não estava disposto a fazer testes ou jogos suicidas. Eu queria entrar em
campo vestindo preto e desejava sair dali nos braços gelados da morte. De súbito, entretanto, eu
vi uma grande multidão parada à porta de um templo que havia do lado direito da rua.
O lugar religioso era arquitetonicamente feio. Eu passara ali muitas vezes e sempre fizera
questão de afirmar o mau gosto das cores daquele templo da Assembléia de Deus. Além disso, eu
conhecia algumas pessoas que freqüentavam o lugar, e todas me pareciam muito esquisitas.
Eram moças de cabelos longos, sem corte; rostos sem cor, sem batom ou quaisquer outros
enfeites, e as pernas, muitas vezes, não eram depiladas. Os olhos, sobretudo, pareciam-me muito
opacos, sem brilho, sem insinuação. Os homens eram do mesmo tipo, com o agravante de serem
desinteressantemente masculinos. Com suas calças de tergal e suas camisas brancas tipo “volta
ao mundo”, em geral me davam ojeriza. Em outras palavras, aquele seria o último lugar no
mundo onde eu decidiria parar a fim de realizar qualquer tipo de busca espiritual. Entretanto,
enquanto eu dirigia tomado de perturbação, pousei os olhos na igreja e não pude retirá-los de lá.
O que me chamou a atenção foi a quantidade de gente que se esparramava porta afora. Eram
pessoas que não tinham conseguido entrar no lugar de culto por causa da multidão que já estava
lá dentro. Olhei e, sem perceber, fui parando minha motocicleta ali. Não havia nada
extraordinário me atraindo, mas alguma coisa sutil, suave, leve e irresistível me puxava na direção
daquele chocante prédio azul. Quando me dei conta, estava estacionado a um metro da calçada,
com o descanso já puxado e a moto repousando sobre ele. Foi quando um rapazinho moreno, de
nariz grosso e largo e lábios excessivamente projetados para fora da boca veio e me pegou pelo
braço.
— Ei, cê lembra de mim? — perguntou. Como eu olhei para ele de modo inexpressivo, ele
acrescentou: — A gente estudou na Escola Técnica, lembra? — e apontou para o outro lado da
rua, pois a escola era ali, a menos de duzentos metros de distância.
— Não, bicho, num lembro, não — completei.
— Meu irmão, cê tá cuma cara horrível — disse ele com convicção.
— Cara ruim? Que nada! Eu deixei de ter cara ruim faz tempo. Eu tô mermo é cum cara de
morte, bicho. Eu quero é morrer. Quero metê uma bala na cabeça.
Ele olhou para mim com imensa ternura.
— Num faz assim, não. Por que qui cê num dá uma chance pra Deus? Ó, entra aqui e ouve
uma mensagem que vai transformar a tua vida. Cê vai vê — afirmou com tamanha certeza, que
me fez esquecer tudo o mais. Ele foi logo me puxando pela mão e me conduzindo para dentro da
igreja.
Minha entrada ali foi um escândalo. Com aquele cabelão abaixo do ombro, usando
gargantilhas e braceletes de couro, com uma calça cavada e sem zíper, completamente aberta,
camisa multicolorida e um tamancão que fazia um barulho infernal, foi impossível entrar com
discrição. Além disso, eu também fiquei chocado com a emoção do ambiente. Todo mundo
estava gritando junto. Para mim, eram pessoas que pareciam de outro planeta e conectadas a
outro mundo.
O meu anjo moreno e sem nome me levou à galeria do templo e falou alguma coisa ao ouvido
de um homem forte. O gigante chegou para o lado e eu entrei ali, apertadinho.
— Ô glóriaaa! Aleluuiia, Jesusss! Siiii! Ó Deus glorioso! Derrama, Senhor! — eram gritos
que eu ouvia em volta de mim. O homem grande, por sua vez, tinha um bebê no colo. — Glória
Deus. Oh! Fogo, desce. Queima, Senhor! — gritava ele e fazia o neném chorar sem parar. Para
acalmar a criança, ele a sacudia com tamanha força, que o bichinho chorava mais ainda. Era um
ciclo vicioso: o menino chorava porque ele gritava; para fazer a criança parar de chorar ele a
sacudia, e porque o homem assim o fazia, o bebê chorava mais ainda. Comecei a ficar com raiva
de ter entrado ali. “Meu Deus, eu tô doidão, mas esses caras aqui são mais doidos que eu”, pensei
indignado.
— Vocês sabem por que no alto da Cruz de Jesus havia uma epígrafe escrita em hebraico,
latim e grego Este é Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus? — perguntou o pastor, interrompendo
assim o fluxo de minhas invencíveis distrações. Eu estava completamente louco de drogas.
Entretanto, a pergunta do pregador, deixada no ar retoricamente, sem resposta por alguns
segundos, capturou minha atenção. — Porque o hebraico era a língua da religião, o latim, a língua
da política e o grego, a língua da filosofia. Sabem por que então ele deixou que escrevessem nas
três línguas a mensagem? Já sabem? Não? Ora, porque Deus queria que os religiosos, os
ambiciosos e os que querem saber as coisas da vida ficassem todos sabendo que Jesus é o centro
desse Universo. Jesus é o Rei da Vida — ele afirmou aos gritos, cheio de paixão, saltando e dando
murros no ar. Parecia que ele estava falando com o planeta todo naquela hora e, ao mesmo tempo,
eu senti como se fosse só para mim.
“Meu Deus, eu já sei por que eu estou perdido! É porque não tenho esse centro na minha vida.
Eu sou como um astro vagando sem órbita pela escuridão da noite. É assim que eu me sinto, Deus”,
exclamei de mim para mim mesmo, iniciando um choro solitário, convulsivo e dolorido.
Fiquei aproximadamente 15 minutos entregue àquele pranto. Quando me recompus, percebi
que o garoto sem nome estava lá, a uns cinco metros de mim, chorando muito também. Quando
levantei, o pastor estava convocando os “arrependidos” para ir à frente e confessar a Cristo,
publicamente, como Senhor e Salvador. Mas eu não tinha condições de ir à frente. Mesmo agora
— naqueles súbitos e eletrizantes minutos de arrependimento — queria Jesus, mas continuava a
ter fortíssimos preconceitos contra toda forma de religião organizada. Dei um abraço no rapaz.
— Valeu, bicho. Valeu, mermo — disse, enquanto batia no ombro dele e me retirava.
Fui direto à casa de Alda. Ela estava angustiada. Já havia telefonado para as delegacias,
hospitais e até para o necrotério. Ouvi o desabafo aliviado dela e contei o que havia acontecido.
— Olha, agora eu sei por que eu sou tão doido — disse. — É porque eu tenho fome de Deus.
Só vou me encontrar se for nele. Fora dele, eu estou perdido.
Ela me olhou e falou como se estivesse com aquela resposta na ponta da língua desde a
infância.
— Eu também sou Dele. Sei que Ele me ama e quero conhecê-Lo. Se você está indo, eu vou
junto — afirmou com estranha convicção.
Despedi-me dela e vaguei pela cidade deixando o ar fresco da noite me gelar a face. Senti os
aromas das estradas da periferia me invadirem a alma com a força de coisas novas que estavam
prestes a acontecer. Quando entrei na garagem da casa de meus pais, já eram umas duas da
manhã. Vi a cama-de-campanha na qual eu dormia armada embaixo da janela. A lua estava
absolutamente cheia. Era uma bola prateada, quase irreal de tão linda.
Dali de minha pequena cama percebi que a lua estava desenhando uma silhueta parecida com
aquela que o pôr-do-sol pintava atrás da mangueira sagrada do quintal da vovó. Agora, entretanto,
era uma grande jaqueira que deixava o luar pintá-la de prateado, enquanto resplandecia de modo
mágico ante meus olhos. Era como se uma antiga e obsessiva visão tivesse voltado, com toda a sua
força e sedução. Dessa vez, todavia, aquela árvore iluminada não me falava de um ser distante, de
alguém para se sentir saudade. Não! O sentimento que me invadia ali — olhando para aquele
espetáculo da natureza, pintado que estava pelas projeções de minha alma e pelos sonhos
secretos de meu espírito — era o de que minha jornada de angústias, desejos, seduções,
ansiedades, insônias, loucuras e coragens suicidas estava chegando ao fim. De alguma forma,
instalara-se dentro de mim a convicção de que naquela noite, naquela igreja de gente estranha, eu
havia encontrado o Alguém de quem sentira saudade consciente desde os sete anos de idade. Fora
na busca Dele que eu me pervertera, me desqualificara, me equivocara e quase me
auto-aniquilara. Mas agora Ele estava ali, presente não na jaqueira, mas no meu quarto, e
andando para dentro de mim.
“Jesus, mamãe me disse outro dia que Tu vieste a este mundo buscar e salvar gente perdida.
Então, se o Teu negócio é com gente perdida, eu acho que sou o sujeito ideal para ser achado.
Acha-me, por favor, Jesus”, eu orei, posto de joelhos, olhando na direção da Sarça Ardente que
me acompanhara desde há muito.
Deitei de lado, voltado para a jaqueira iluminada, e não percebi quando adormeci. Às seis e
quarenta e cinco da manhã a vizinhança toda ouviu um grito lancinante de pavor e desespero.
Meu tio Lucilo, que morava num pequeno quarto nos fundos de nosso quintal e que já estava a
uns quatrocentos metros de distância, voltou correndo em direção à casa ao ouvir aquele urro
pavoroso. Meu pai pulou da cama, pegou automaticamente sua muleta e correu pela casa,
tentando saber de onde aquele esturro estava vindo. Quando ele entrou no meu quarto, a cena
que viu foi chocante. Eu estava lá, num dos cantos do quarto, todo enrolado, com os olhos
esbugalhados, como quem via um espetáculo de performance demoníaca.
Mas do lado de dentro de meu ser, o que estava acontecendo era ainda pior do que o que os
olhos de papai percebiam do lado de fora. Eu fora acordado com uma cobra grande como uma
sucuri me arrochando, enquanto também mordia meu braço esquerdo e inoculava em mim um
veneno mortal. De súbito, percebi que não era algo material. Na verdade, não havia uma cobra
para ser vista. Fui me dando conta de que seres diferentes habitavam dentro de mim. Não era
mais o dono de mim mesmo e não estava no comando. E aqueles seres que me possuíam eram
maus, perversos e meus piores inimigos. Eles estavam ali para me matar. Não sei quanto tempo
aquilo durou. Papai diz que foram apenas uns cinco minutos. Para mim, no entanto, parecia ter
durado uma eternidade. A repugnância da experiência era indescritível.
Papai me olhou por algum tempo, orou a Deus e gritou com autoridade: “Eu não gerei filhos
para serem morada de demônios. Eu gerei filhos para serem o santuário do Espírito Santo.” E
acrescentou: “Saiam de meu filho, demônios, em nome de Jesus.”
Eles — papai, mamãe e tio Lucilo — me carregaram dali para a cama de meus pais, onde
dormi até o meio-dia. Parecia que eu havia sido anestesiado. Quando acordei, dei-me conta de
que estava em posição fetal. Era como se em meu inconsciente eu estivesse buscando uma
maneira de nascer de novo.
Botar os pés para fora da cama naquela quinta-feira foi um dos maiores desafios que já
enfrentei na vida. Que eu não podia mais viver como vinha vivendo, não havia a menor dúvida.
Existir daquele jeito tanto não valia a pena como era já a própria morte. A questão, no entanto,
era: Meu Deus, o que é que está acontecendo comigo e como é que eu faço para viver como
alguém que conheceu a Jesus?
Quando saí da cama, percebi que a casa toda estava em suspense. Suely e Luiz estavam por
ali, fazendo tudo para parecerem normais. Aninha, com seus oito anos de diferença, correu para
mim, me abraçou e me beijou. Mamãe veio com jeito preocupado, suada que estava das tarefas
domésticas, e me beijou.
— Caio Fábio, teu pai disse para você não sair daqui que ele quer falar com você. Mas se você
for sair, ele pediu pra você voltar aí pelas seis da tarde. Ele disse que é muito importante — disse
em seguida, com lágrimas nos olhos.
— Olha, mamãe, quem quer falar com ele sou eu. Diga isso a ele. Às seis da tarde eu vou
estar aqui. E não se preocupe. Eu não sei o que é, mas tem alguma coisa boa acontecendo comigo
— disse sereno como nunca tinha estado antes.
Comi qualquer coisa, acendi um cigarro, montei na moto e fui para uma estrada de barro que
havia na periferia da cidade. Fazia aquilo com alguma regularidade. Ali, deixava a moto dentro do
mato e corria até não agüentar mais de cansaço. Naquele dia, no entanto, foi diferente. Quando
comecei a correr, não senti mais aquela angústia estranha me impulsionando. Havia uma coisa
leve em mim. Olhei em volta e vi a graça e a beleza daquele pedaço do mundo, tão verde, tão cheio
de aromas, tão encantado. Chorei enquanto corria.
Era como se eu estivesse me reconciliando com a criação. O ambiente todo parecia estar
recolorido e minha capacidade de perceber a respiração da floresta parecia estar mais aguçada do
que nunca. A trilha de barro se estendia até um igarapé, a uns três quilômetros dentro da mata.
Ao ver o riacho de águas marrons, transparentes, eu chorei outra vez.
Caí dentro d’água de joelhos e orei. Falei com meu Criador e me batizei sozinho nas águas da
floresta. Derramei o líquido sagrado sobre minha cabeça. Em seguida, mergulhei e fiquei sob a
água o máximo que pude. Quando tomei ar, de volta à superfície, senti como se algo novo tivesse
sido plantado no terreno mais fértil de meu ser. Virei de frente para o céu azul e afoguei meus
ouvidos dentro da água. Fez-se um silêncio total à minha volta e uma paz indescritível me
inundou a alma. Naquele momento, pedi a Deus para morrer ali, nos portões do Paraíso.
Quando corri de volta para o início da trilha, havia um sentimento de novidade de vida dentro
de mim. No caminho percebi a aproximação de uma ex-namoradinha minha e seu atual
namorado. Eles vinham montando lindos cavalos de raça e se aproximavam num belo galope.
Quando me viram, pararam ao meu lado.
— Ei, seu Caio, a gente tem uma mutuca de maconha aqui. Tá a fim dum baseado? — disse
Sérgio, enquanto Dê me olhava com a surpresa de quem não me encontrava desde o dia em que
fui à casa dela pela última vez, dois anos antes.
Não sabia o que responder. De alguma forma, entretanto, eu sabia que nunca mais na vida
apertaria um baseado. Afinal, de algum modo, aquela erva perdera, milagrosamente, todo o seu
encanto para mim. Aliás, foi só ali que me apercebi que aquele era o primeiro dia, em pelo menos
quatro anos, que eu não havia sentido nenhuma fissura pela maconha ou qualquer outra forma de
entorpecente.
— Seu Serjão, aquele Caio que fumava maconha, cheirava pó e outras coisas morreu ontem e
eu acabei de sepultá-lo num igarapezinho a uns três quilômetros daqui. Esse cara que tá aqui, na
tua frente, num fuma maconha e nem toma drogas. E mais: ele também num qué mais saber de
maluquice. E quem num respeitar a ele, vai entrar no pau — concluí do modo “mais cristão” que
eu sabia.
Sérgio me olhou assustado, como se tivesse visto um ghost no meio da floresta.
— É, bicho, agora é qui tu tá doido mermo, cara. Que barato é esse qui tu tá tomando? —
perguntou sem ficar para ouvir a resposta.
Dê, a ex-namoradinha, olhou-me com estranheza, quase com desprezo, manobrou o animal e
disparou. Sérgio fez o mesmo, galopando atrás dela. Eu, de minha parte, montei na máquina e
voltei para casa, celebrando a minha primeira “vitória cristã”.
Capítulo 26

“A nova vontade, que começara a nascer em mim, de Te servir sem interesse, de


me alegrar em Ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de
vencer a vontade antiga e inveterada. Deste modo, minhas duas vontades, a velha
e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si, e, discordando, dilaceravam-me a
alma.”

Santo Agostinho, Confissões

Quando entrei pela garagem em alta velocidade e parei a moto com uma derrapada de lado,
um observador externo diria que nada de novo havia em mim. A diferença, contudo, é que ao
invés de entrar com ar agressivo e hostil, eu sorri para o pessoal da casa e fui logo perguntando
por papai.
— Tá esperando você lá em cima — disse Suely.
Subi as escadas e fui à varanda do segundo andar da casa. Papai estava lá, sério e preocupado,
com aquele biquinho na boca que revelava que ele estava um pouco nervoso.
— Meu filho, eu pensei muito, e tenho que falar com você. Sua situação espiritual é
gravíssima. Eu não sei se você ainda acredita na existência de espíritos maus, de demônios. Mas
crendo ou não, eles existem e odeiam você. Deus tem um propósito muito especial para sua vida e
os demônios querem destruir você. O que aconteceu hoje cedo foi uma demonstração dessa
vontade assassina do diabo contra você. Caiozinho, é Cristo ou é a morte. Hoje você tem que
decidir o que você quer. O mundo espiritual é real. E há forças nele que são muito más — ele
afirmou com um tom pastoral e paternal.
Aquela era a primeira vez em algum tempo — talvez em quatro anos — que eu e meu pai
conseguíamos conversar sem que eu o interrompesse com irreverências.
— Eu sei, pai, que o que está acontecendo comigo é espiritual. Sei que preciso tomar uma
decisão e já o fiz. Ontem à noite eu assumi que vou viver com Jesus e vou ser um homem de Deus
para o resto da minha vida. Eu só não sei é como — disse com lágrimas nos olhos e um medo
enorme de não ter forças para bancar aquela decisão, como acontecera com tudo o mais de bom
que tentara fazer nos últimos anos e não conseguira.
Foi ali, naquele ponto, que me passou um medo horrível pela mente. Gelei. Olhei para o sol
que se punha atrás de um enorme pé de pitomba que havia na frente de nossa casa, do outro lado
da rua Urucará.
Tinha vivido, possivelmente, uns vinte anos em cinco, mas, cronologicamente, eu ainda era
um menino de pouco mais de 18 anos. A vida toda ainda estava diante de mim e, naquela hora,
tudo o que eu queria era seguir a Cristo, ser discípulo Dele. Mas como é que eu estaria daí a
alguns meses ou uns poucos anos? Será que aquilo não era apenas o fruto do medo de ficar
possuído por forças do inferno? Era fuga? Ou quem sabe apenas uma resposta de minha
memória religiosa, infantil, aos dramas do momento. E as drogas? E os amigos? Como é que eu
viveria essa vida de crente? Será que teria que encaretar de vez? E as gatinhas? Eu gostava
alucinadamente de mulheres. Será que depois de alguns meses eu não entraria em crise e jogaria
tudo para o alto apenas para não me privar dos prazeres sexuais e da promiscuidade da qual tanto
me orgulhara? Enfim, foi um sentimento terrível e que se comprimiu em mim como se tudo isso
tivesse estado ali, perturbando-me, por muito tempo. Mas foram, de fato, apenas alguns
segundos de questionamento.
— Caio Fábio, meu filho, não vai ser nada fácil. Mas em Cristo você vai conseguir — disse
papai, como se adivinhasse o tufão de questões que se alvoroçavam dentro de meu peito.
— O que você acha que vai ser difícil, filho? — mamãe perguntou, tendo ouvido a palavra de
papai desde o início.
— A mulherada, mãe. As mulheres serão, sem dúvida, a pior luta que terei. Eu estou
acostumado demais a sair com muitas mulheres diferentes. Eu não consigo ficar sem sexo. Eu
não sei como é que vai ser — eu respondi com toda sinceridade.
— Olha filho, a tentação é como um animal. Se você der comida pra ele, ele cresce. Se não
der, ele definha. Nunca morre, mas enfraquece muito dentro da gente — papai afirmou, como se
eu soubesse como é que a gente não alimenta a fera que vive em nós. Eu não sabia nem como
conseguir vontade para enfrentar aquilo, quanto mais força suficiente para desenvolver
resistência interior para não alimentar minhas tentações.
— Mas comé que a gente não alimenta o bicho que vive dentro da gente, pai? — era o que eu
mais queria saber. — Eu não quero mais viver do jeito que tenho vivido, mas também não quero
deixar de fazer essas coisas só porque eu me acorrentei a esse pé de castanhola que tem aqui na
frente de casa. Se for assim, vai ser um inferno. Eu quero parar numa boa. Sem desespero.
Papai me olhou com um ar inesquecível de amizade e compromisso com a minha vida.
— Se você quer vencer, você vai vencer. Deus nunca nos dá tentações maiores que as forças
que ele também nos dá para resistir. Para matar a carne, a gente deixa de dar comida a ela. E para
alimentar o espírito, a gente dá de comer a ele. Por isso, se você quiser, nós vamos começar a
jejuar, você e eu, juntos. Assim nós vamos enfraquecer a carne. E com a leitura disciplinada da
Palavra de Deus e com as orações, meditações e preces, nós vamos alimentar o espírito — ele
concluiu e ficou aguardando a minha reação.
Completamente distante do convívio emocional de minha casa por mais de quatro anos, eu
não sabia mais quem meus pais eram, como seres humanos. Entre outras coisas, eu não sabia que
papai se tornara uma espécie de monge cristão do asfalto. Alguns anos após sua conversão
evangélica, ele havia desenvolvido disciplinas espirituais incríveis. Dentre elas, o jejum. Entregue
ao prazer de jejuar, ele ficava longos períodos semanais de abstenção alimentar radical. Às vezes,
ficava até cinco dias sem comer nem beber nada. Apenas se isolava e orava com paixão e
intensidade.
— Eu quero aprender tudo isso. O senhor me conhece e sabe que eu não faço nada pela
metade. Se é pra ir com Deus, então vamos até o fim. Eu gosto de ir pra valer. Me ajude, por favor
— foi minha resposta e meu pedido de socorro.
Após aquela conversa, papai orou e pediu a Jesus que não deixasse mais aquelas forças do
inferno se apoderarem de mim. Em seguida, nos abraçamos e nos beijamos. Toda a família veio
me beijar. Chorei como se estivesse voltando de uma longa e perversa viagem, retornando a um
lar que eu achava que já não era meu, mas que, estranhamente, continuava a me pertencer.
O sol se pôs. A árvore que estava à nossa frente escureceu e tornou-se ninho para as aves
cansadas do dia e em busca de pouso para a noite. Entretanto, estranhamente, eu não estava mais
com aquele banzo do sagrado. O sol estava se pondo, mas eu estava em paz. De alguma forma que
eu não sabia explicar, minha busca havia acabado. Não propriamente minha ansiedade de viver,
conhecer, mergulhar, descobrir, provar e sentir, mas a busca pelo Alguém de quem eu sentia
saudades chegara ao fim. Agora sabia quem Ele era e também sabia que Ele me amava. E aquele
era o sentir mais doce e envolvente que eu jamais experimentara. Era como ser abraçado pela vida
e descobrir que a vida, em essência, é uma pessoa. A única pessoa. É o ser em quem todo amor
nasce.
Na sexta-feira cedo, quando estava saindo de casa para correr na trilha da floresta, vi um
homem moreno, de ar obstinado, dono de um bigode cheio e já meio esbranquiçado,
aproximar-se de minha moto. Ele vinha rindo, como se me conhecesse há muito tempo.
— Ei, no domingo à noite nós vamos ter uma programação para jovens na minha igreja e você
não vai perder, vai?
Percebendo que eu não havia gostado do modo tão íntimo com o qual ele se aproximara,
mudou a estratégia e falou com mais cuidado.
— Olha, eu sou da Igreja Batista Redenção e gostaria muito que você fosse ao nosso culto no
próximo domingo — afirmou com mais serenidade, pegando-me carinhosamente no braço. —
Traga a sua namorada — disse ele, enquanto me dava um sorriso e entrava pela garagem de nossa
casa para falar com meu pai.
No domingo à noite, Alda e eu estávamos lá. Ao nosso lado sentou um rapaz vestido de modo
conservador, mas muito alinhado. Cantava alto, porém de modo afinado. Ria para nós sempre que
o culto permitia uma interação. Eu me limitava a mover um pouquinho a musculatura da face
para deixar que ele percebesse que nós não estávamos “ausentes”. Depois um outro jovem
pregou a Palavra. Gritou, esmurrou a mesa, contou histórias que mais pareciam ficção, fez drama
e tudo o mais. Eu, pessoalmente, não estava gostando. Tudo aquilo me parecia muito
estereotipado. O fato de eu ter tido uma criação na qual a presença evangélica tinha estado
presente fazia-me ver tudo com um sentido muito mais crítico do que a maioria das pessoas que
simplesmente estavam se aproximando da fé. Meu desconforto era claro. Estava quase
arrependido de ter ido lá.
— Cristo veio ao mundo para buscar o perdido — dizia o pregador entre gritos e pequenos
saltos na ponta dos pés. — Hoje ele está aqui para encontrar você — dizia ele.
Ora, Alda fora criada como católica, fizera primeira comunhão, mas não sabia quase nada
sobre Jesus. Ou melhor: ela sabia que não queria nada com a idéia de Cristo que havia sido
passada a ela. Aquele Jesus lânguido, fraco, pendurado na Cruz, indefeso, pálido, ausente e
despretensioso causava-lhe repugnância. Além do mais, na casa de sua avó havia uma imagem
enorme de Jesus, num canto do quarto, que desde a infância tinha funcionado para ela muito
mais como uma presença mal-assombrada do que como algo que lhe inspirasse a conhecer e
amar a Deus.
— O único meio de alguém encontrar a Deus é através de Cristo. Quem quer encontrar com
Cristo hoje, aqui? — era uma pergunta retórica, e ele realmente não esperava nenhuma resposta
audível em retorno.
— Eu quero! Sim, eu quero encontrar com ele — disse Alda, como se não pudesse mais
suportar ir até o fim do discurso do pastor.
Mas sem se dar conta de que seu sermão já havia chegado ao fim — pois um pregador deve
sempre encerrar o seu discurso quando percebe que sua mensagem já foi entendida, mesmo que
tenha sido antes do planejado —, ele continuou pregando por mais dez minutos. E todas as vezes
que ele perguntava: “Quem quer receber a Jesus como seu salvador”, Alda respondia baixinho:
“Eu quero”, mas o homem não se tocava. No fim de tudo, perguntou se alguém queria ir à frente
do púlpito fazer uma confissão de fé em Cristo. Alda foi e, até onde eu me lembro, só ela foi.
Havia também algumas crianças ali na frente.
— Amém! Aleluia! — era a exclamação do rapaz que estava ao nosso lado. Se eu não me
garantisse muito em relação a ela, acharia que ele tinha ficado a fim de Alda. Olhei para ele quase
irritado. — Parabéns, sua namorada agora é de Jesus. Parabéns — disse-me ele estendendo a
mão.
— Eu disse a você que esse culto tinha sido feito para você, num disse? — exclamou
Neemias, o homem do bigode que me convidara para ir à igreja. Meio sem graça, eu não dizia
nada.
— Caio, o homem ali na frente está pedindo meu nome e endereço — Alda veio ofegante e
falando alto até o último banco, onde eu estava em pé, cercado por Neemias e Adilson, o rapaz
alegre. — Será que ele vai querer me batizar na marra? Meu pai num vai gostar disso. Ele é muito
católico — ela concluiu. Então o rapaz alegre tomou a palavra e explicou que não era nada de
batismo. Eles apenas gostariam de mandar um material pelo correio para ela ler.
No caminho para casa, Alda me disse que não havia gostado do jeito estereotipado do
pregador, que não havia prestado atenção a nada, mas que, de repente, a afirmação dele sobre
Jesus como o caminho para o Pai havia dominado completamente a sua mente. Disse que, de
algum modo, ela tinha percebido que não estava sendo chamada ao Cristo lúgubre do quarto da
vó Celina, mas para uma experiência de luz e libertação, completamente diferente das imagens
escuras e derrotadas da religião.
Com Alda crendo nas mesmas bases de fé que eu queria crer, as coisas começaram a ficar
melhores. Agora, pela primeira vez em muito tempo, eu tinha uma amiga que me convidava para
coisas boas. Não demorou e ela começou a se tornar mais comprometida com as coisas da fé que
eu mesmo, pois nos primeiros trinta dias eu sentia temores periódicos de não conseguir me
manter no caminho e, em vez de me entregar completamente, ainda dava algumas vaciladas
interiores. Entretanto, sabia que aquele era o único meio de vida espiritual que eu tinha diante de
mim. Somente em Cristo eu conseguiria domar as feras selvagens que corriam insaciáveis pela
floresta de minha alma.
Foi nesse período que percebi como papai se tornara uma pessoa espiritualmente
disciplinada. Ele acordava todos os dias às três da madrugada para ler a Bíblia por uma hora. “Na
solidão da noite é mais natural ouvir a voz de Deus”, dizia ele. Eu tentei fazer o mesmo mas não
deu. Caía em cima da Bíblia, babando de tanto sono. Papai também se entregava aos jejuns com
extrema avidez. Era como se ele tivesse se tornado um glutão de jejum. Ele tinha fome de não
comer comida, a fim de poder participar de um outro banquete, aquele que os anjos servem aos
que têm desejo de Deus. Lá ficava ele, entregue à leitura bíblica e ao jejum. Às vezes, ele passava
até cinco dias sem comer nem beber coisa alguma. Seus olhos ficavam cada vez mais claros,
iluminados e puros. De minha parte, achava tudo aquilo fantástico, quase inalcançável para uma
pessoa que tivera vícios carnais tão intensos quanto os que eu cultivara até pouco tempo atrás.
Não mudei meu guarda-roupa para ser crente, mas mudei dramaticamente minha atitude.
Por isso, logo correu pela cidade que eu tinha enlouquecido de vez.
— Tá doidão, hem bicho? Que barato é esse que cê anda tomando? — perguntavam-me
onde quer que eu fosse.
— O barato é Jesus, bicho! — eu respondia, aparentando alguma coragem, mas por dentro
ainda um tanto tímido em relação a afirmar a minha fé, pois, embora estivesse aprendendo a amar
a Deus, tinha pavor de ser visto como mais um fanático produzido pela religião. Essa era uma
visão de mim mesmo que eu jamais aceitaria. Estava me convertendo ao evangelho, mas não
queria me esquecer de boa parte de minha percepção anterior da vida, que jamais julgara estar
equivocada.
Não demorou e fui convidado para ir dar meu testemunho de fé em uma igreja de um bairro da
periferia. Falei com paixão e não pude terminar. Chorei com muita dor na alma pelos meus
pecados do coração. Ao mesmo tempo, dominava-me uma imensa gratidão para com esse Deus
que me amava e me aceitava como eu era e que acreditava em mim, no potencial de minha vida,
nas mãos dele.
Eu estava convicto de que queria viver para Deus, mas não sabia como é que conseguiria
conciliar meu desejo de pregar o evangelho de Cristo com as breguices da religião,
aparentemente incuráveis. Esta era a questão que me atormentava, visto que as coisas da igreja
me pareciam muito esquisitas. Às vezes, ficava muito mal-humorado com aquelas conversas
caretas dos crentes. Tudo era pecado. O feio e o sem estética eram valorizados como virtude. O
pequeno e o mirrado pareciam ser sinais da graça divina. Alguns jovens falavam de como tinham
parado de estudar por amor a Deus. Eu não podia entender aquilo. Afinal, mesmo não sendo um
amante do ensino acadêmico até aquela época, sabia do valor que o saber trazia para a vida. Essa,
na minha opinião, era a diferença entre meu pai e a maioria dos pastores que eu conhecia: ele
sabia das coisas.
Por tudo isso, a cada dia mergulhava mais apaixonadamente no estudo da Palavra de Deus,
mas mantinha uma postura crítica e defensiva em relação à igreja. Além disso, não gostei muito
do que vi em algumas igrejas em que fui. Mesmo por baixo daquelas saias longas, daqueles
cabelos escorridos e rostos quase sem pintura, percebia-se um fogo enorme aceso nas meninas e,
às vezes, até nas mulheres casadas. A coisa era toda muito discreta, mas estava lá. Aí, então, ficava
furioso. “Meu Deus, por que esse pessoal num vai pro mundão saber com quantos paus se faz
uma cangalha ao invés de ficar aqui com essa cara de santo e esse desejo de égua no cio?”, eu me
perguntava sozinho, chateado por nem sempre encontrar na igreja um ambiente devidamente
seguro para mim mesmo.
No fim do terceiro mês, chegou a Manaus um pregador armênio, que sempre andava vestido
de preto e pregava com a simplicidade de uma criança. Sua mensagem era sem muita elaboração
e baseava-se nas experiências espirituais que ele dizia ter com Deus. Ouvi-o com muito interesse
na Igreja Batista de Renovação Espiritual. No dia seguinte, Samuel Doctorian foi almoçar com
meu pai. Alda e eu também participamos do almoço e, ao final da conversa, aproveitei para dizer a
ele como eu me sentia: queria servir a Deus, mas não gostava do que via na igreja, gostaria de ser
espiritualmente culto, mas não queria ir ao seminário teológico, gostaria de ser pastor, mas não
gostaria de ser dependente da igreja. Ele me aconselhou, falou-me de suas lutas contra os
demônios, os homens, as mulheres e Deus e, a seguir, orou por mim.
Naquela noite fomos ouvi-lo numa outra igreja. No meio da pregação, numa igrejinha de
madeira da Assembléia de Deus do bairro de São Raimundo, ele parou de repente e disse:
— Deus está me dizendo que Ele vai usar aquele jovem de cabelos longos sentado ali no
final, e que esse rapaz vai ser conhecido em todo este país como mensageiro do evangelho. — E
acrescentou: — Não tenha medo de ser usado por Ele. Deus vai honrar você — concluiu,
enquanto eu me derretia em um pranto quente e cheio de fogo. Era como se estivessem
derramando uma cachoeira de amor sobre mim. A sensação que me dominava era a de que o
Sublime me conhecia e me chamava pelo nome. Era demais para mim. Parecia que minha carne
se liquefaria. A chama que ardia sobre minha cabeça e em meu peito não tinha precedentes em
minha experiência humana. E, de algum modo que eu não podia explicar, surgiu dentro de mim
uma estranha intrepidez espiritual.
Saí dali com coragem para enfrentar o ridículo, os preconceitos, os olhares de desprezo e a
ação maldosa de quem quer que aparecesse. Tudo o que importava agora era viver para cumprir a
profecia divina que pousara sobre a minha vida. Apenas muitos anos depois perceberia com
clareza o poder e a influência que aquele episódio teve sobre minha trajetória como cristão.
Daquele dia em diante, comecei a pensar na vida de fé com um sentido estratégico que antes
eu não possuía. Passei a ver a mim mesmo como alguém que participava de uma grande e sutil
conspiração divina para conquistar o coração de todos os seres humanos com o Seu amor. E eu
queria ser um dos Seus agentes espiritualmente mais sedutores e revolucionários.
“Oh!, Deus, que Tu me uses para conduzir muitos ao conhecimento de Teu amor”, era a
minha oração quase obsessiva. Ao me sentir assim tão especialmente desafiado por Deus a ser
um de Seus agentes de amor, surgiu imediatamente em mim a mesma motivação para a oração e
para o jejum que havia em meu pai. Iniciei os mesmos exercícios de devoção que eu o via fazer.
No início, eram apenas 24 horas de jejum. Mas depois de três meses, já conseguia ficar até quatro
dias sem comer nem beber nada, enquanto minha alma flutuava com um prazer de existir que
não sabia estar disponível aos mortais.
Capítulo 27

“Sentira-me atraído pelo estudo da sabedoria, mas ia adiando sempre a hora de me


entregar à sua investigação. A busca da sabedoria deveria ser preferida a qualquer
felicidade terrena, pois não somente sua investigação, mas sobretudo sua
descoberta, me daria acesso a riquezas maiores que os melhores tesouros do
mundo e mais excelentes que os maiores prazeres corporais, que, a um aceno,
ainda estavam ao meu inteiro dispor.”

Santo Agostinho, Confissões

Aquele ano de 1973, que havia começado sob o signo da morte, estava terminando como a
estação de minha maior alegria e encontro na vida. Entretanto, eu me sentia na obrigação de dar
rumos normais à minha existência. Talvez porque tenha ouvido desde a infância que papai queria
ter estudado engenharia e nunca pôde, surgiu-me a idéia de que talvez meus pendores fossem
naquela área. Matriculei-me no curso de edificações, da Escola Técnica Federal, e fui à luta, em
busca de um lugar ao sol.
O problema é que dentro de mim havia um permanente desassossego. Dia e noite eu me via
pregando para multidões. Ia para a escola em jejum e mantinha a mente em oração e meditação o
tempo todo. De súbito, comecei a me apanhar em lágrimas ante uma fórmula química ou uma
equação de física. Tudo me falava das essências da existência e me remetia para meu Criador,
com quem cochichava segredos de amor essencial. Estava irremediavelmente apaixonado por
Deus, e todo o resto, ainda que tendo sua importância reconhecida, tornava-se inapelavelmente
secundário.
A essa altura, lá pelo mês de março de 1974, minha mente começou a ficar definitivamente
dominada pela idéia de que a pregação do evangelho era minha grande vocação. Isto porque, nas
poucas vezes em que eu falara em público, duas coisas haviam acontecido: meu interior fora
tomado por uma alegria tão forte, que minha alma parecera estar experimentando fortíssimas
formas de prazer existencial. Além disso, eu havia percebido que as pessoas paravam, como que
incontrolavelmente ligadas ao que eu estava dizendo. E esses dois sinais me pareciam divinos.
Foi nesse ponto que conheci um chileno, chamado Flávio Provoste, que havia sido
apresentado à mensagem de Cristo enquanto tomava drogas na fronteira do Brasil com a
Venezuela. Depois de passar um ano na casa de um pastor batista em Roraima, fora para Manaus.
Flávio parecia um hippie. Com seus longos e lisos cabelos negros, queixo projetado, rosto largo e
não mais do que um metro e setenta de altura, ele era o tipo da figura cristã que me animava. Ali
estava, bem diante dos meus olhos, um crente doido. Livre das drogas, mas devidamente mantido
em estado de liberdade em relação a usos, costumes e jargões evangélicos. Eu gostei dele de
saída.
“Irmano, os caras estão morrendo. O que eles sientem é sede de Dios”, falava ele em seu
portunhol. Os caras que estavam morrendo eram os milhares de hippies que andavam pela
Amazônia naqueles dias, fazendo o circuito da ayahuasca que ia da Venezuela ao Pará. Em
Manaus, as praças andavam cheias deles. “Por que qui usted non prega para elhos?”,
indagava-me o crente hippie. Eu dizia que não me negava a fazê-lo, mas que não forçaria a barra.
“Mas se nosotros não hablarmos, quiem va hablar?”, empurrava-me contra a parede. Um dia ele
me apareceu com outro cara doido. Era um tipo lindo, de cabelos escorridos pelas costas e um
aspecto imponente de índio apache de filme americano. Quando vi Oswaldo Parangues se
aproximar, minha mente sofreu um impacto com a beleza indígena do rapaz. Ele estava no
Amazonas querendo explorar as ondas alucinógenas dos chás de cogumelos, que eram
amplamente servidos à comunidade de malucos no interior do estado.
No entanto, os braços e as costas de Oswaldo, em conseqüência da profunda intoxicação
causada pelos cogumelos, estavam cheios de feridas purulentas, e ele estava começando a viver
com uma febre permanente em razão das infecções. Quando vi o estado do rapaz, levei-o para a
casa de meus pais e comecei a cuidar dele. Diariamente eu o levava ao hospital de doenças
tropicais para que suas ataduras e curativos fossem trocados. Durante aquele período de
aproximadamente duas semanas, enquanto ele recebia tratamento, eu lhe falava do amor
apaixonado e louco de Deus pelos seres humanos. Um dia, quando voltávamos do hospital, ele me
olhou com lágrimas nos olhos e disse: “Iô creo que Dios me ama porque usted me ama com uno
amor que solomente Dios poderia ter ponido dentro de tu corazion.” Eu achava o portunhol dele
bonito e cheio de ternura humana. Parei o carro, dei-lhe um abraço fraterno e pedi em voz alta a
Deus que viesse encher o coração de Oswaldo com o poder do Espírito Santo. Ele nunca mais foi
a mesma pessoa até o dia de hoje.
A conversão de Oswaldo deflagrou um processo maravilhoso. Ele e Flávio passaram a ir às
praças convidar todos os malucos para virem à minha casa fazer bijuterias. Eu comprava todo o
material: couro, cola, ácido, metal, correntinhas etc. Enfim, tudo o que pudesse entretê-los
trabalhando nos fundos do quintal da casa de meus pais, enquanto eu abria a Bíblia e falava de
Jesus com eles. Foram meses fantásticos. Nossa casa virou uma comunidade hippie. De repente,
comecei a ver a força renovadora e libertadora do amor de Cristo iniciar processos de iluminação
espiritual na mente daquela moçada louca. Muitos deles largaram as drogas ali, bem diante de
nossos olhos, e passaram a ser anjos da graça de Deus, levando a mesma mensagem para seus
amigos ou mesmo de volta às suas casas e famílias.
Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. E mais: o assunto já se tornara tema de
conversa em escolas e até em faculdades. Foi nesse ponto que comecei a ser convidado para ir
falar em algumas escolas. O processo foi mais ou menos assim: motivados pelo trabalho com os
hippies, Alda, eu, Júnior e Artunilza — amigos que também haviam acabado de se converter à fé
— iniciamos uma reunião somente para jovens, aos sábados à noite. A iniciativa foi
absolutamente bem-sucedida. Em dois meses, a velha e morta Igreja Presbiteriana Central de
Manaus estava completamente lotada de moços de todos os tipos e classes sociais.
Até mesmo meu amigo Alipinho foi lá ver o que estava acontecendo e ficou por uns três
meses. Depois me disse que não sabia como é que eu podia ficar sem mulher e disse que para ele
não dava. Três meses sem faturar as gatas era demais. “Eu admiro você, Caio, mas eu num
consigo ficar sem sexo”, disse-me com emoção, mas nunca mais voltou.
A fórmula da reunião era simples: muita música cristã ao embalo de guitarras, baterias e tudo
o que fizesse barulho, seguida de uma mensagem minha ou de alguém que eu convidasse e que
conseguisse se comunicar informalmente com a garotada. Era uma maravilha. Dezenas se
entregavam a Cristo todos os meses, e a coisa explodiu.
Ora, essa moçada apaixonada por Deus ia de volta para a escola e contava o que estava
acontecendo. Foi assim que as orientadoras educacionais começaram a me convidar para ir dar
aula de moral e cívica.
— Mas eu não tenho nada a dizer sobre moral e muito menos sobre cívica, minha senhora.
Eu só sei dizer o que Jesus fez na minha vida, serve? — eu perguntava.
— Nós não podemos convidá-lo para a aula de educação religiosa porque o padre não vai
gostar. Mas na aula de moral e cívica não há o que reclamar. O problema é que a gente num sabe
mais o que fazer com esses moços. Estão rebeldes e não sabemos como falar com eles. Mas você
sabe — diziam.
Assim, um ano depois de ser um dos mais rebeldes e desordeiros jovens de minha cidade,
vi-me alçado à posição de professor de moral e cívica, recrutado por diretores e professores
desesperados.
Foi uma revolução. Eu começava de um texto bíblico sobre conduta e partia para a alma.
— Nosso problema não é de moral e cívica. Nosso problema é esse vazio desgraçado que
come a gente por dentro. É isso aí que leva você para a boca do inferno tentando encontrar uma
resposta. Foi isso que aconteceu comigo e é contra essa morte que Deus oferece o antídoto Dele,
que é Jesus — eu pregava.
A mensagem era simples, mas sincera, apaixonada e cheia de fé. Nunca falhava. Na maioria
das vezes, via os meninos e meninas desabarem no choro bem diante dos meus olhos, enquanto
eu falava. Não raramente a aula acabava e eu tinha que ficar mais duas horas no auditório ouvindo
as angústias juvenis dos alunos. A maioria deles me conhecia de antes e não podia acreditar no
que havia acontecido. Entretanto, não havia como negar as evidências de minha conversão.
As devoções espirituais, no entanto, seguiam inalteradamente o seu curso. E mais: como eu
havia acabado de ler o Apóstolo dos pés sangrentos, o mesmo livro que estimulara a vida espiritual
de meu pai cinco anos antes, decidira dedicar-me ainda mais à oração e à busca de êxtase para o
espírito. Assim é que, mesmo sendo extremamente solicitado, freqüentemente parava tudo e me
fechava no quarto por três dias sem comer nem beber, buscando uma consagração especial de
meu ser diante do Criador. Naquelas ocasiões, não raramente meu espírito se enchia de uma luz
indescritível. No primeiro dia geralmente sentia fome, mas depois todo o desconforto
desaparecia e eu mergulhava em indizível estado de comunhão com a divindade. Essa conexão era
tão fantástica, que me dava a sensação de estar profundamente ligado a Deus e à Sua criação.
Olhava o movimento das nuvens e derretia-me de amor ante sua dança celestial. O cântico dos
pássaros arrebatava-me. Os cheiros da vida ao redor vinham aos meus sentidos cheios de valor
sacramental. Enfim, minha alma se tornava maior e mais sensível, e o mundo espiritual se
convertia em meu vizinho mais próximo.
Minha sensibilidade para a presença de anjos e demônios também crescia bastante. Naquele
estado de oração, eu sentia um cheiro estranho, sempre o mesmo, quando entrava em lugares
carregados de espíritos malignos. “Aqui tem alguém com forças malignas”, eu dizia sem
ostentação, mas com certeza do que estava falando. E não dava outra. Começávamos a investigar e
logo aparecia alguém se dizendo amarrado à bruxaria e às forças das trevas. Mas os anjos também
estavam lá. Às vezes, sentia uma alegria súbita imensa quando discernia a presença das milícias
de Deus ao meu redor.
Vivendo naquela dimensão de arrebatamento espiritual, o curso de edificações tornou-se
insuportável para mim. Não agüentava mais ficar sentado no banco da escola enquanto havia
tanta gente para ser ganha do lado de fora e de dentro. Entretanto, eu perseverava o quanto podia.
Contudo, sempre que ouvia falar de algum grupo que estava se reunindo para orar, largava a
classe e ia me juntar a esses intercessores espirituais. Porém, minha decisão de não freqüentar
mais o curso só veio a acontecer depois de um episódio inusitado.
A aula de física estava acontecendo. O relógio marcava aproximadamente nove e meia da
noite.
— Meu Deus, o que é aquilo ali no céu? — perguntou em tom de total estupefação um rapaz
sentado próximo à janela da sala.
Todos nós, inclusive o professor, corremos para uma das janelas, de onde vimos que no pátio
em frente à escola já havia uma pequena multidão, olhando para o céu, em silêncio e
perplexidade.
— O que é aquilo Jesus? Será um sinal de Tua vinda? Como é que eu posso entender esse
espetáculo à luz de Tua existência como Senhor de tudo e todos? — perguntei a Deus em choque
com aquilo que estava ali, bem em frente a todos nós e para cuja realidade não tínhamos
nenhuma explicação plausível.
— Não é avião, nem helicóptero, e muito menos balão meteorológico — disse o professor.
A coisa que pairava no céu, como se fosse uma imensa rocha cheia de luz, não era lisa nem
uniforme em sua aparência. Na verdade, parecia uma imensa traça de parede, só que porosa e
com irregularidades em seu corpo, como se fosse o dorso de um animal pré-histórico. A luz saía
de dentro da coisa como se vazasse de seus poros. O movimento era lento, porém visivelmente
determinado. O objeto passou bem devagar no céu em frente à escola. Sua distância em relação a
nós parecia ser de uns três mil metros, mas a sensação de tamanho que aquilo passava era
esmagadora. Lembrava alguns dos aparelhos estranhos dos filmes Star Trek. Era como se uma
enorme base interplanetária, do tamanho de uns três Jumbos colados um ao outro, estivesse
cruzando lentamente o céu de Manaus.
O espetáculo durou cerca de dois longos minutos. Depois, o objeto fez a curva, ganhou
velocidade com uma propulsão extraordinária e desapareceu na direção do horizonte escuro
como breu do rio Negro. Fiquei completamente chocado com o episódio.
— Professor, o que era aquilo? — perguntei.
— Não tenho a menor idéia. Mas que não era qualquer coisa que a gente conheça neste
planeta, isso eu sei que não era — ele respondeu com humildade, consciente de suas limitações
humanas.
Pedi licença e saí da sala. No pátio não se falava em outra coisa.
— Era disco voador, cara! — diziam uns.
— Que nada, era algum supermeteoro — afirmava outro.
— Tá maluco, bicho, meteoro num cai assim, passeando e fazendo manobras lentas na
frente da gente. Aquilo ali tinha movimento inteligente — dizia um outro com olhos cheios de
mistério.
Fosse o que fosse, causou-nos um imenso impacto.
Montei na moto e corri para a casa de Alda, na Capitania dos Portos, bem às margens do
Negro. Quando cheguei lá, encontrei-a com os irmãos, os pais e os marinheiros, enfim, com todo
mundo, do lado de fora, olhando para o céu.
— Cê viu a coisa? Que incrível! — disse Rose, irmã mais nova de Alda. Conversando com
eles é que vim a saber que aquela aparição demorara muito mais do que eu havia imaginado, e que
as evoluções daquele objeto tinham sido mais longas e sofisticadas do que tínhamos percebido lá
da janela da escola. Na verdade, parece que o que vimos foi apenas o final daquelas
demonstrações misteriosas. Para Alda e para muitas outras pessoas na cidade, o espetáculo
durara pelo menos uns seis ou oito minutos, e houve idas e vindas daquela manifestação, ora
desaparecendo no horizonte, ora reaparecendo suave e majestosamente, exibindo-se ante os
olhos estupefatos de milhares de amazonenses.
No dia seguinte, os jornais amanheceram cheios de histórias sobre as visões coletivas da noite
anterior. Estranhamente, não havia fotografias ou filmes de nada. Apenas o testemunho de
milhares de pessoas é que permitia à própria cidade falar daquilo sem que ninguém se sentisse
ridículo.
As aparições deixaram-me com duas claras percepções na mente. A primeira era a de que,
num mundo tão aberto para as manifestações do estranho e do inusitado, não havia mais espaço
para eu viver de modo normal. As portas do extraordinário estavam abertas e eu queria entrar por
elas. A segunda idéia era a de que aquilo poderia ser um dos sinais bíblicos da vinda de Jesus e
que, portanto, eu não queria mais desperdiçar meus dias com qualquer coisa que não apontasse e
contribuísse para a preparação da humanidade para aquele dia e hora.
Nunca mais voltei à escola. Daquele ponto em diante, dediquei-me completamente ao estudo
da Bíblia, à oração e à pregação da Palavra.
Estávamos em julho de 1974. Fazia um ano que minha vida virara do avesso. Agora,
entretanto, eu me deparava com uma oportunidade completamente nova. Um velho amigo de
meu pai, Dr. Filipe Dau, dono da Rede Amazônica de Televisão, ofereceu-nos a possibilidade de
termos um programa semanal na sua emissora. Seria ao vivo, aos domingos à noite, com trinta
minutos de duração. De repente, vi-me diante das câmeras e com um moço chamado Rosinaldo,
diretor da estação, dizendo-me que eu estaria no ar em um minuto.“Olha, num pode errar. Se
gaguejar, não pare. Vá adiante”, informou-me ele.
Ao final do primeiro programa, o próprio Rosinaldo parabenizou-me, dizendo: “Meu amigo,
você tem jeito para esse negócio. Tô impressionado. Cê num errou nem uma vez. Muito bom.”
Com tudo isso se desdobrando como num turbilhão, eu não tinha tempo suficiente para
perceber o que estava acontecendo comigo, mas muita gente falava no assunto o tempo todo na
cidade. E, mesmo sem me dar conta, eu havia me transformado na atração espiritual de Manaus.
— Meu filho, sempre assisto ao seu programa na televisão. Você é muito jovem, mas fala com
a alma e eu gosto de ouvi-lo. Não pare de fazer o que você está fazendo. Há muita gente
impressionada — disse-me o governador José Lindoso num dia em que o encontrei por acaso
numa das salas do palácio do governo, onde eu fora acompanhando meu pai.
Depois, comecei a ver gente que não falava comigo por causa de minhas loucuras anteriores
começar a balançar a cabeça em saudação quando me encontrava na rua ou quando eu passava
pilotando minha motocicleta. Minha imagem estava sendo restaurada com rapidez
impressionante, e eu apenas assistia ao desenrolar daqueles eventos nos quais eu era muito mais
espectador do que agente. Deus estava em ação e Seu propósito parecia ser muito mais definido
do que eu jamais conseguiria perceber naquele momento. Fosse como fosse, minha alma vivia em
permanente estado de prazer espiritual. E eu sabia exatamente por que aquilo estava
acontecendo.
Capítulo 28

“Naqueles dias não me fartava de considerar a profundidade de Teus desígnios


para a salvação do gênero humano, pela doçura admirável que sentia. Quanto
chorei ao ouvir, profundamente comovido, Teus hinos e cânticos, que ressoavam
suavemente em Tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e
destilavam verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso,
corriam-me lágrimas dos olhos, e me fazia bem chorar.”

Santo Agostinho, Confissões

No segundo semestre de 1974, Alda e eu começamos a falar em casamento. Ela ainda era
uma menina, com seus 17 anos, assim como eu não era mais que um garoto bem-rodado,
embora, aos 19 anos, eu me sentisse maduro e cheio de fé. Obviamente, eu não era nenhuma das
duas coisas, mas normalmente, aos 19 anos, é assim que você se sente, especialmente quando
tem histórias para contar que a grande maioria dos anciãos nem sonha em ter vivido.
No mesmo período comecei a ser chamado de pastor pelas pessoas da cidade. Mas como eu
poderia carregar aquele título, se os presbiterianos, grupo ao qual estava ligado por causa de
meus pais, não ordenavam ministros que não fossem cursar os quatro anos de seminário
teológico? Na verdade, eu desejava que as duas coisas me acontecessem o quanto antes: queria
casar e sonhava ser ordenado pastor. O primeiro desejo, contudo, parecia estar muito mais à mão
que o segundo.
— Papai, vamos enfrentar aquela fera? — indaguei fazendo referência ao capitão dos portos,
o capitão-de-mar-e-guerra Manoel José dos Passos Fernandes, pai de Alda. Fomos até lá, e quase
matei o pobre homem do coração quando lhe falei que ele teria de voltar para o Rio sem a sua filha
primogênita, pois ela iria se casar comigo em janeiro do ano seguinte, 1975.
— Pela madrugada! — ele exclamou. — Vocês são todos malucos — continuou. — Como é
que vocês vão viver? Alda é menina e é mimada, acostumada a tudo do bom e do melhor. Você,
Caio, era um doidão da pesada até um dia desses. Agora diz que está mudado. Deus te ouça. Mas
e aí? A vida é dura, gente. E eu me admiro é do senhor, reverendo — e olhou para meu pai — de
dar força para uma loucura dessas! — disse agitadíssimo, trocando as pernas no sofá, enquanto
mostrava grande constrangimento com a situação.
Era fácil para ele, entretanto, perceber nos meus olhos e nos de Alda que aquela era uma
situação sem volta. Resmungou, balbuciou pequenos impropérios, sacudiu a cabeça, mas acabou
cedendo.
— Quando é mesmo que vocês estão pensando em casar? — perguntou. Alda entrou em ação
e já foi fazendo planos em vez de responder a pergunta.
— Em janeiro, capitão — disse meu pai sem alteração na voz.
— E como é que vocês vão viver? Onde vão morar? Amor não paga a conta de luz e não põe
pão na mesa, meninos! — falou de modo soberano. — Além disso, esse aí — olhou para mim —
não tem emprego e não me parece estar querendo ganhar a vida como todo mundo.
Desculpe-me, reverendo, o senhor era um advogado brilhante, mas seu filho não era nada e agora
quer ganhar a vida no bico, pregando. Eu não entendo isso, não. O senhor me desculpe — disse
meu futuro sogro.
Papai respondeu calmamente que ele sabia o que estava fazendo e que acreditava em mim.
— O senhor ainda vai agradecer a Deus por ter consentido com a união do Caio Fábio e da
Aldinha. O senhor vai ver — afirmou papai com total confiança.
O segundo desejo, no entanto, era muito mais difícil de ser realizado, pois embora eu
desejasse viver para o ministério da pregação do evangelho, não podia me ver quatro anos dentro
das paredes de um seminário. Achava que aquilo me afastaria das ruas, das escolas, do rádio e da
televisão, e que eu, provavelmente, não sobreviveria ao tédio da experiência. Como sabia que os
presbiterianos jamais consentiriam com minha ordenação sem o curso teológico, comecei a me
imaginar para o resto da vida como um pregador leigo do evangelho.
— Vejo esses teólogos de seminário pregando em templos vazios e falando o que ninguém
quer ouvir, enquanto eu prego e as pessoas se convertem. Por que eu vou ficar com inveja deles?
— às vezes confidenciava a meu pai. — Eu vou é dar toda a minha vida para o evangelho de Cristo.
Se me quiserem ordenado, que me ordenem; caso contrário, vou servir a Deus e não aos homens
— prosseguia.
O segundo semestre de 1974 foi também o tempo de algumas das minhas primeiras
experiências cristãs com as forças espirituais do mal. Meu pai já era um combativo guerreiro
espiritual desde sua primeira experiência com um possesso de demônios logo após sua
conversão. Eu, todavia, só havia vivenciado aquela dimensão, até então, como vítima. Agora,
entretanto, o cenário era completamente outro. Temor de ficar cara a cara com o bicho, sem a
menor dúvida eu tinha, e muito. Mas, ao mesmo tempo, recusava-me a fugir da luta, se ela
aparecesse.
Dentre os amigos de oração de meu pai havia o irmão Israel. Os dois liam a Bíblia juntos,
faziam visitas aos hospitais também juntos e expulsavam demônios juntos. Eu nunca ia com eles.
— Vamos conosco, meu filho — convidava papai.
— Obrigado, vou ficar aqui em oração por vocês — respondia com ar compenetrado, mas
amedrontado por dentro. Meu temor era que aquelas forças, que já haviam me rondado tão de
perto, ainda tivessem o poder de me perturbar a alma.
Um dia, contudo, eu estava conversando com papai e Israel na garagem de nossa casa quando
chegou alguém correndo, pedindo que os dois fossem ao bairro de São Francisco, a fim de
expulsar um demônio que se apoderara de uma moça de 18 anos. Quando ouvi a história, fiquei
gelado. No fundo, sabia que não dava mais para fugir da luta. Eu jejuava e orava como pouca gente
fazia, no nível daquelas disciplinas pessoais. Mas não me sentia preparado para o confronto.
— Vem com a gente, meu filho — papai convocou daquela vez, sem deixar margem para
minha hesitação. Tremi como nunca havia tremido diante de uma briga. Meus pêlos se
arrepiaram e meu estômago embrulhou. Uma leve tonteira apoderou-se de mim. Eram os
poderosos sintomas do medo. Mas não havia retorno.
Quando chegamos ao lugar, vimos que a casa ficava numa depressão profunda, talvez uns
vinte metros abaixo do nível da rua. Papai desceu devagar e Israel ficou ao seu lado. Sem
perceber, deixei meu nervosismo me empurrar para a linha de frente. Quando me dei conta, já
estava entrando na casa sozinho.
— Seu desgraçado. Seu desgraçado. Eu te conheço, seu desgraçado. Eu te vi no Rio de
Janeiro. Você era meu e eu te perdi, desgraçado — falou a menina, com voz masculina, enquanto
cinco ou seis homens tentavam segurá-la.
Seus olhos estavam esbugalhados, o branco do globo ocular parecendo quase saltar da órbita.
Ela era do tipo caboclo, atarracada, de compleição gorda e cabelos desgrenhados. Babava de raiva,
enquanto olhava para mim e repetia aquelas palavras. De repente, vi-me em cima dela. Quando
papai e Israel entraram na casa, eu já estava em pleno combate.
— É, eu sei que eu fui teu. Eu fui teu, mas tu me perdeste para sempre. Eu também me
lembro de ti lá na praia de Copacabana. Tu quiseste me possuir. Mas eu não fui feito para ser teu.
E agora eu sei de quem eu sou. Eu sou de Jesus. Sai dela, demônio — eu gritei todo arrepiado,
mas tomado de profunda intrepidez.
— Pára de falar assim, seu desgraçado. Você parece aqueles cristãos dos dias da Cruz. Eu
estava lá quando ele me venceu na Cruz — exclamaram os espíritos que possuíam a jovem.
Por aproximadamente dez minutos nós ouvimos aquelas confissões de derrota por parte dos
demônios até que, de súbito, eles se foram, e a garota caiu desmaiada no sofá de napa vermelha,
onde era mantida presa pelo peso dos homens que tentavam dominá-la.
— Irmão Caio, você viu como as regiões celestiais o reconhecem como homem de Deus,
coberto pelo Sangue de Cristo? — disse-me Israel, no fundo tentando transformar aquilo tudo
numa confissão sobre a validade de meu vínculo com Jesus.
— Olha, o diabo não sabe como me edificou espiritualmente hoje, aqui. Nunca mais na vida
eu vou vacilar na luta contra eles. Hoje eu vi, com meus olhos, o que a Cruz de Jesus significa no
mundo espiritual — falei, sentindo-me extremamente fortalecido na fé.
Não demorou muito e outra história fantástica aconteceu. Todas as sextas-feiras João
Chrisóstomo, Artunilza, Alda e eu — sempre acompanhados de meus irmãos Suely e Luiz Fábio,
além de vários outros companheiros de fé — íamos orar a noite toda em lugares solitários. Na
primeira sexta-feira após o episódio da moça de São Francisco, fomos fazer nossa vigília de
oração nas imediações das cachoeiras de Tarumã, nos arredores de Manaus. Em 1974, o lugar
ainda era quase completamente deserto. Ficamos instalados numa pequena casa de madeira
construída sobre troncos enfiados na areia branca, habitação comum nas beiras de alguns
igarapés amazônicos.
Fizemos preces a noite toda. Naquele dia, especialmente, Alda e eu oramos e choramos
muito, pedindo a Deus que nos desse filhos que fossem seres humanos bons e capazes de viver
para Deus e para o próximo. Nunca me esquecerei da força que aquela noite teve sobre minha
consciência paterna.
Pela manhã, bem cedinho, ouvimos um grito.
— Jacaré! Peguei um jacaré — era a voz do caseiro que tomava conta daquele pequeno sítio,
que pertencia a uma amiga da igreja. Corremos e vimos o homem puxando um jacaré de quase
dois metros, pela cauda.
— Por que o senhor matou o bicho? — perguntei um pouco incomodado com o ato
predatório, a meu ver totalmente desnecessário.
— Ora, por quê? Pra gente cumê, moço — falou o caboclo com um ar de riso irônico nos
lábios.
— E o senhor come jacaré? — perguntou uma das meninas do grupo, já quase sentindo
náuseas.
— Se como? Num tem coisa milhó — afirmou ele, passando a língua de uma extremidade à
outra da boca.
Uma hora depois, estávamos sendo convidados a comer o jacaré. Quase todos recusaram. Eu
fui e provei o bicho.
— Que delícia. Tem gosto de galinha com peixe — eu me lembro de ter exclamado,
enquanto as meninas torciam o rosto fazendo o charme de um nojo previamente ensaiado.
Depois daquilo, fomos jogar vôlei no campinho de areia que ficava em frente à casa. De
repente, vimos um grupo de cerca de sessenta pessoas se aproximando. Estavam vestindo roupas
esquisitas, uns roupões em branco e vermelho, e traziam nas mãos galinhas vivas e outros
alimentos. Pararam a alguns metros de nós e começaram a cantar aos deuses da floresta. Como
apenas uma pequena cerca de estacas pintadas de branco nos separava deles, nós interrompemos
o jogo e nos recolhemos à varanda da casa, de onde ficamos vendo o ritual que eles começavam a
oferecer.
— Vem, espírito da floresta. Vem, caboclo. Vem, índio. Vem, bate-bate. Venham, espíritos da
floresta — gritavam juntos.
Depois, uma mulher com ar de sacerdotisa destacou-se do grupo e começou a cantar um
cântico de invocação dos espíritos de mortos. Em seguida, ela deu um grito lancinante e começou
a rodopiar sobre os próprios calcanhares. Todos se agitaram e gritaram com vozes de estranha
alegria. Então as galinhas passaram a ser imoladas. O sangue era derramado ao redor da mata,
num círculo desenhado como que para marcar uma clareira espiritual para a chegada daqueles
seres invisíveis.
Foi exatamente naquele momento que fui tomado de uma profunda repulsa espiritual, pois
embora reconhecesse o direito cidadão que qualquer pessoa tem de cultuar a quem quer que
pretenda identificar como divindade, minha convicção cristã já não me permitia assistir a um rito
daquele com tranqüilidade. Sabia que a Bíblia proibia a invocação de mortos e também tinha
consciência de que os deuses das florestas nada mais eram do que anjos caídos, demônios
enganadores e perversos, ansiosos por determinarem seu domínio escravizante sobre aqueles
que a eles se submetiam.
— Nós não vamos ficar assistindo a isso calados. Vamos nos ajoelhar aqui e orar a Deus
contra esse negócio. Isso é demais. A gente invoca o Deus único e vivo a noite toda, e de manhã,
no mesmo lugar, espíritos da escuridão são cultuados? Assim não dá — falei revoltado.
Pusemos nossos joelhos no chão e clamamos a Deus. Uma batalha de forças do mundo dos
espíritos estabeleceu-se ali. Era possível sentir a densidade conflituosa do clima que se formou
no lugar. Deu medo. Durante uns 15 minutos a arena estava composta por dois grupos humanos
que se digladiavam espiritualmente pela posse do espaço invisível que ali existia, enquanto
inúmeros seres angelicais disputavam o controle daquela arena de culto.
— Senhor, nós sabemos que só Tu és Deus e que os deuses dos povos não passam de ídolos.
Senhor, faz com que toda a natureza se una a nós na confissão de que só Tu és Deus. Manda uma
tempestade poderosa. Faz Teus trovões retumbarem e os Teus relâmpagos cortarem os céus
com as luzes de Tua majestade. Ouve a nossa voz, Senhor Jesus — clamei com meu rosto posto
no pó do assoalho de madeira que nos mantinha a cerca de um metro de altura do chão de areia
branca.
Ora, naquele dia, aquela oração parecia não ter a menor chance de ser ouvida. O sol estava a
pino e o céu completamente azul, sem nuvens. Cinco minutos depois, no entanto, ouvimos algo.
Era o rugir monstruoso de um trovão leonino. Outro gemido dos céus e mais outro. Aí a coisa
toda estalou. Parecia que a floresta estava vindo abaixo. Quando as árvores da floresta são agitadas
pelo vento, em geral ouvem-se sons semelhantes a gemidos e grunhidos fantasmagóricos. São os
troncos gigantescos roçando uns nos outros. É aterrorizante. Naquele dia, contudo, aqueles
gemidos transformaram-se em sons da voz de Deus. Os trovões tremeram a terra e os relâmpagos
acenderam luzes súbitas e aterradoras em volta de nós. A água que caiu do céu era monstruosa
em sua força. Algo anormal estava acontecendo.
Demo-nos as mãos e cantamos em júbilo. O gozo do divino nos invadiu e nos sentimos
tomados pela força das coisas eternas de um mundo invisível, que a maioria dos humanos não
percebe e nem discerne a importância essencial.
“Não há Deus tão grande como Tu. Não, não há. Não, não há. Não há Deus que faça as
mesmas obras como as que fazes Tu”, esse era o cântico que nos embalava no nosso devaneio do
divino e do sublime. Então vimos que a tempestade que nos trazia o sentido da adoração do Deus
único, paradoxalmente, causava nos nossos oponentes espirituais efeito completamente oposto.
Eles gritavam de raiva. Derramaram o que faltava do sangue dos animais e começaram a se
retirar. Seus olhos nos fuzilavam com ódio, pois em suas mentes não havia a menor dúvida de que
os deuses haviam sido invocados, mas o único que se apresentara fora Aquele que,
aparentemente, eles não conheciam.
À medida que eles se retiravam nos fitando com fogo e hostilidade, nós mantínhamos nossas
mãos erguidas, abençoando-os e pedindo a Deus que os olhos do coração daquelas pessoas se
abrissem para que elas percebessem que em Cristo estão todas as provisões para a alma humana.
Daquele dia em diante, comecei a expulsar demônios quase todos os dias. Depois de alguns
meses, filas formavam-se para que nós fizéssemos orações de libertação espiritual sobre os
atormentados de alma, que vinham de todos os lugares na cidade. De fato, nos anos seguintes eu
haveria de lidar diariamente com situações tão incríveis naquela dimensão espiritual, que, se
contadas, muita gente teria dificuldade de acreditar. Mas porque nós jejuávamos, orávamos e
libertávamos as pessoas de seus tormentos, nossa fama corria a cidade e as pessoas vinham a nós
buscar socorro, o que sempre recebiam, de graça e sem qualquer compromisso com coisa
alguma. Ao contrário, quando alguém desejava deixar uma oferta em dinheiro por ter sido
atendido, nós repreendíamos essa pessoa veementemente. Meu pai sempre dizia: “Nós
recebemos de graça, nós damos de graça”, o que eu repetia sem vacilação.
Naquelas sessões de exorcismo, havia de tudo: pessoas que expeliam longos e pretos espinhos
de tucumã de dentro de seus corpos; gente que tinha letras percorrendo a pele e mudando de
posição no corpo duas ou três vezes a cada hora; mulheres que derramavam sangue pelos olhos e
pelos poros todas as noites e que eram possuídas por espíritos de prostituição; homens
desarvorados de loucura e mantidos em cativeiro por anos, mas que eram “subitamente
libertados” durante a nossa visita. Além disso, havia ainda mulheres que andavam pelo chão da
casa serpenteando e fazendo na cauda imaginária o ruído de uma cascavel; às vezes, copos de
vidro eram comidos bem diante de nossos olhos ou éramos agredidos com facões imensos por
possessos que corriam em nossa direção para nos matar.
“Sai dele em nome de Jesus”, gritávamos, e víamos as pessoas se espatifarem na corrida,
como se tivessem se chocado contra uma muralha invisível. Enfim, todos os dias nós visitávamos
o inferno e saíamos de lá vitoriosos em nome de Jesus. Fazer aquilo, todavia, não nos dava prazer
e não nos induzia ao hábito. Sempre sofríamos juntos, papai e eu, ao vermos um ser humano
posto naquelas condições abissais. Era horripilante ver o que as forças do mal podiam fazer com
as pessoas que inadvertidamente se envolviam com elas.
Apesar de toda aquela guerrilha espiritual, Alda e eu prosseguimos em nossos planos de
casamento. Marcamos a data para 20 de janeiro de 1975. Enquanto isso, fui separado para ser
evangelista — designação dada ao obreiro leigo da Igreja Presbiteriana —, servindo junto com
meu pai no templo central da cidade e ganhando um salário mínimo por mês.
Não me importando muito com o título de evangelista, continuei as pregações na televisão,
nas escolas e nas praças. E, sobretudo, prossegui no trabalho de exorcismo de aflitos, oprimidos e
possessos. Entretanto, algo novo iria acontecer.
Havia na cidade um radialista famoso, que detinha 60% da audiência do rádio das sete ao
meio-dia, todos os dias. Esse homem, filho de pais evangélicos, porém vivendo distante da fé por
mais de trinta anos, veio subitamente a ter uma experiência com Cristo no natal de 1973,
enquanto ouvia um hino evangélico na vitrola de sua casa. O choque da graça de Deus nele foi tão
intenso, que não conseguia mais ficar sem comunicar, aonde quer que estivesse, a existência
daquele mar de Deus que o inundara.
Na rádio, contudo, ele tinha embaraços de natureza contratual para fazer isso. Assim,
resolveu desenvolver uma estratégia diferente. Passou a divulgar, dentro de seu programa, todas
as manhãs, uma questão que suscitasse algum tipo de resposta bíblica ou espiritual. Nos
intervalos, ele dizia: “Ao final do programa, o jovem Caio Fábio vai responder a essa questão. Mas
antes, ligue e dê a sua opinião.” Ele conversava no ar com as pessoas e levantava a bola na área
para eu chutar sozinho e correr para o abraço.
Na primeira vez que isso aconteceu, o telefone não parou de tocar o resto do dia. O fluxo
passou a ser tão intenso, que nossa casa começou a se tornar o pior lugar do mundo para que
pudéssemos descansar. Agora era tudo de uma vez: os hippies ainda andavam por lá, os moços das
escolas e faculdades também nos solicitavam, a televisão gerava uma exposição enorme de minha
imagem na cidade e tirava completamente a minha privacidade, e aquele mundo de possessos e
aflitos não nos dava descanso. Para completar, quanto mais trabalhava, mais eu jejuava. Assim, no
início de 1975 eu estava pesando 59 quilos, contra os 85 que pesava no tempo de minha conversão,
um ano e meio antes.
Quando dezembro de 1974 começou, fui pintar um barco no qual viagens missionárias eram
feitas para o interior do Amazonas. Ali, na beira do rio Negro, encostado junto às casas flutuantes,
peguei uma hepatite fortíssima. Possivelmente foram as águas sujas com fezes e outros dejetos o
que me contaminou. O fato é que comecei a me sentir muito mal e não sabia o que era. Como
lidava freqüentemente com coisas espirituais ruins, logo pensei que fossem ataques demoníacos.
Lutei no espírito e resisti pela fé ao mal-estar, repreendi as forças do mal, mas não adiantou.
Ondas estranhas percorriam meu corpo. Minha sensação de distância alterou-se e à noite eu via
menos, como se tudo estivesse meio amarelado. Meu estômago doía e meu fígado parecia estar
grande. Até que amanheci completamente ictérico e me trouxeram um médico, que diagnosticou
hepatite.
Trinta dias na cama, comendo leite condensado e goiabada, era o remédio. Obviamente,
considerando o “tratamento”, não achei ruim. Mas ficar doente justo naquele momento, com
tanto demônio para expulsar e ainda por estar tão perto do meu casamento, não era o que eu
queria.
Quando o dia 20 de janeiro chegou, Alda estava arrebatada de alegria e eu angustiado. Eu a
amava, mas estava com muito medo de mim mesmo. “Será que eu vou conseguir ser fiel a ela e só
a ela o resto de minha vida? Será que eu dou conta do recado de ser um bom marido? Como é que
eu vou fazer para dar atenção a ela no meio de tantas outras coisas? Será que ela agüenta essa vida
louca que eu levo e vou levar pro resto da vida?”; eram as questões de meu pânico, especialmente
na tarde do dia 20, quando caí de costa na cama, de braços abertos, e pedi a Deus que não me
deixasse fazer qualquer coisa que a magoasse e que fizesse mal ao testemunho de minha fé.
Casamos tendo uma multidão de desconhecidos como nossas testemunhas. Eram quase
todos amigos dos pais de Alda e o evento virou acontecimento político, com a presença do
governador do estado e demais autoridades. Eu queria era sair logo dali. Para mim, aquilo era um
circo. Tive de tirar a barba para casar, pois meu futuro sogro me ameaçou de não nos deixar
contrair núpcias caso eu fosse para lá com aquela cara de Che Guevara. E, imitando Zé Curió,
enquanto eu raspava a barba, repetia: “Eu não quero nem saber quem morreu, eu quero é
chorar.”
Mas a força de meus contatos com a dimensão espiritual não me permitiu relaxar nem
mesmo no casamento, vez que Alda e eu havíamos planejado passar a lua-de-mel num barco, do
outro lado do rio Negro, e em vez de fazermos uma lua-de-mel com sexo, iríamos jejuar e orar.
Ela havia concordado com a minha proposta; mas eu, entretanto, fora o pai da idéia maluca.
— Eu já fui tão doido nessa área, que o melhor é não fazermos sexo por uma semana depois
de casados. Será um exercício de domínio próprio e um ato de consagração de nossa sexualidade
a Deus — dizia eu cheio de convicção, enquanto ela apenas consentia com a idéia.
— Cê tem certeza? Pra mim o que você quiser tá bom — falava ela com aquele sotaque
carioca dengoso e pesado.
Quando uma semana antes do casamento dissemos na casa de Alda, que iríamos pegar um
pequeno barco com motor de centro e zarpar para o outro lado do rio, a mãe dela não se conteve.
— Que nada. Vocês não são loucos de pensar que Manelzinho e eu vamos consentir com uma
maluquice dessas. Pode tirar o cavalinho da chuva que isso não vai acontecer de jeito nenhum —
falou dona Rose.
Lutaram contra a idéia, mas não nos apresentaram nenhuma alternativa. Pensamos em outro
programa de índio: ir para um pequeno sítio de amigos, para nos internarmos numa cabana no
meio do mato.
— Melhorou um pouco — disseram eles.
Mas como nosso negócio era casar, estávamos aceitando qualquer imposição deles, desde que
não mudassem nossos planos básicos. Na véspera do casório, o pai dela chegou com duas
passagens para o hotel Tropical de Santarém.
Casamos e fomos para lá. Alda se encantou. Apreciou as flores do lugar, brincou com as
crianças na piscina, nadou e pegou muito sol com um casal paulista que também estava em
lua-de-mel. Eu participei de tudo, mas com muito menos ímpeto do que a situação demandava de
mim. Fizemos tudo para manter nosso voto de abstinência intacto, e conseguimos. No sábado à
tarde, entretanto, fomos visitados por um missionário americano que trabalhava na cidade, que
nos fez um pedido insólito: “Será que dá para o irmão ir pregar na nossa igreja amanhã, domingo,
à tarde e à noite?” Alda achou um absurdo que alguém tivesse a cara-de-pau de convidar um casal
em lua-de-mel para uma atividade como aquela, mas não disse nada.
Como eu iria pregar no domingo à tarde, jejuei pela manhã, literalmente me abstendo de toda
e qualquer comida. O missionário nos pegou no hotel e nos levou a uma pequenina igreja nos
arredores da cidade. O local era extremamente pobre, e as ruas que davam acesso à igreja eram
bastante enlameadas. O templo era ínfimo, porém devidamente cuidado pelo trato meticuloso
das mãos do casal de americanos. Preguei uma mensagem sobre o amor de Deus como sendo o
único poder capaz de nos fazer amar os homens e mulheres desse mundo. Meu texto foi o do
apóstolo Paulo, em I Coríntios 13: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não
tiver amor serei como o bronze que soa e como címbalo que retine.” Falei com muita paixão. Toda
a minha ternura e emoção contidas pelo voto de abstinência vazaram ali, na projeção de uma
outra forma de amor. Depois, ao final do culto, em vez de nos levar para o hotel, o pastor, de quase
dois metros de altura, ainda teve o santo desplante de pedir que eu ficasse no lugar, orando
individualmente por aproximadamente trinta pessoas que se enfileiraram esperando que eu
impusesse as mãos sobre elas em prece intercessória. E o pior de tudo é que fui insensível o
suficiente para com Alda e aceitei o convite.
Às onze horas da noite ele nos devolveu ao hotel, esbagaçados e com a promessa de que às 13
horas da segunda-feira nos buscaria para visitar as congregações de sua igreja e algumas outras
atividades. E o trágico foi que eu aceitei. Na manhã seguinte, demos de cara com cinqüenta
missionários americanos reunidos num congresso que iniciara naquela manhã num dos salões de
convenção do hotel.
— Que bom que o irmão está aqui. O Frank, nosso amigo de ministério, gosta muito de você.
Será que não quer assistir às nossas reuniões? — perguntou-me um deles, com um sorriso muito
amigável.
“Se você aceitar, eu vou embora daqui”, foi o que li no olhar frustrado de minha
recém-quase-esposa, já antevendo o que seria sua vida comigo, a menos que algo tão forte quanto
a conversão que me livrara de minhas perdições anteriores salvasse-me agora de uma vida ao
mesmo tempo monástica e religiosamente guerrilheira.
— Muito obrigado pelo convite, mas hoje não vai dar. Nós estamos em lua-de-mel aqui — eu
disse.
— É, nós sabemos. Mas venha assim mesmo — reafirmou o irmão. Foi ali que comecei a
perceber como privacidade e coisas do coração, na maioria das vezes, recebem tão pouca
importância em alguns ambientes religiosos.
A tarde transcorreu tediosa para quem deveria estar ali para curtir o amor, a pele, os gostos da
paixão e a liberdade dos amantes. Alda foi paciente e generosa comigo e com os missionários, mas
já era possível perceber o início de um certo cansaço em seu olhar. Passados os sete dias de
abstinência, nossa lua-de-mel enfim começou. E ali também se iniciou a luta de minha esposa
para criar fronteiras entre meu ministério cristão e nossa vida privada, combate esse que jamais
cessaria, até o dia de hoje, sendo que, alguns anos depois, eu também me aliaria a ela na tentativa
de erguer esses muros de proteção.
Capítulo 29

“Ali, sozinhos, conversamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupados


apenas no porvir, e indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és Tu, qual
seria a vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, e
nem o coração do homem pode conceber.”

Santo Agostinho, Confissões

O carro começou a puxar para a direita e percebi que o pneu estava furado. Nós havíamos
acabado de chegar de Santarém e era a nossa primeira visita à casa dos pais de Alda depois de
casados. Saí para trocar o pneu e pensei que iria desmaiar quando me levantei para tirar os
parafusos da roda. Trocado o pneu, o carro — um Hondinha do tamanho de uma Romiseta —
não queria pegar.
— Fica aí na direção que eu vou empurrar até ali a frente — falei, enquanto Alda assumia o
volante. Então empurrei uns dez metros. — Alda, tô vendo tudo escuro. Eu vou desmaiar — falei
encostando a cabeça contra o carro e tomando todo o ar que podia com a boca e as narinas. Uma
coisa muito ruim estava dentro do meu corpo. Pareciam os mesmos sintomas dos demônios
contra os quais eu havia lutado dois meses antes, quando o médico diagnosticara a hepatite.
Meu médico era o Dr. Antônio Nogueira de Farias. Ele já havia tratado de mim na primeira
hepatite, e eu pedi seu socorro para cuidar da segunda. Ele vinha todos os dias supervisionar as
aplicações de soro que eu recebia e ver como estava meu estado geral. Batia no fígado e no baço
para ver que repercussão sonora haveria. “Ainda está muito grande”, dizia ele apalpando o
tamanho do fígado. Até que um dia ele não apareceu. Fiquei preocupado com o que poderia ter
acontecido. Passaram-se três dias. Uma semana. E, então, sua esposa apareceu lá por casa.
Joedisa chegou a pretexto de visitar-me. Depois de alguns minutos de conversa, disse-me que ela
e Antônio estavam em situação conjugal muito difícil, prestes à separação, e que os dois estavam
envolvidos com doutrinas de natureza mediúnica. No fim de tudo, ela me contou que Antônio
estava muito doente em casa. Oramos juntos, e ela se foi.
Alguns dias depois, ela me visitou outra vez e me solicitou que, se possível, fosse visitar seu
marido, meu médico. Embora estivesse sob rigoroso repouso, aliás prescrito pelo próprio marido
dela, disse-lhe que no domingo seguinte eu pediria a meu pai que me levasse até a casa dela. No
entanto, antes do domingo chegar fomos até lá, onde ele nos explicou que sua doença era de
natureza pré-leucêmica, e que o tipo do mal que sobre ele se abatera era chamado de
mononucleose. Disse também que, em certos casos, a doença evoluía para leucemia.
No sábado, ficamos sabendo por Joedisa que os médicos, colegas de Antônio, haviam trazido
más notícias sobre o seu quadro clínico. A informação era a de que, de fato, o quadro
transformara-se em leucemia. Joedisa estava em pânico. Papai e eu decidimos que no domingo
iríamos lá para orar com ele.
No domingo, no fim da tarde, nós fomos à casa deles. Ao chegarmos, encontramos uns
amigos da família fazendo uma visitinha. Aguardamos cerca de uma hora na esperança de que
pudéssemos orar a sós com Antônio e Joedisa, mas os amigos não saíam. Cansados da espera,
resolvemos orar independentemente do público ser adequado ou não. Perguntamos ao Antônio
se ele cria que Jesus podia curá-lo.
— Sim, eu creio — respondeu com fé.
— Você gostaria que nós derramássemos o óleo da unção, em nome de Cristo, sobre a sua
cabeça, como ordena a Bíblia? — perguntamos.
— Sim, eu quero, eu preciso — afirmou ele com emoção e carência.
Papai pegou o vidrinho de óleo de unção que ele sempre carregava e nós ungimos o médico.
— Senhor Jesus, Tu tens todo o poder no céu e na Terra. Tu criaste o corpo do Antônio. Tu
podes curá-lo. Não estamos Te dizendo o que fazer, porque Tu és Deus. Tu sabes o que fazer e
quando. Mas nós estamos aqui, Jesus, para dizer que cremos no Teu poder de curar
milagrosamente. Assim, Senhor, pedimos: cura o Antônio e Te exaltaremos — oramos de modo
calmo, cheios de fé de que tínhamos sido ouvidos.
Oramos e saímos.
No dia seguinte, Antônio nos contou que nada aconteceu até que ele nos ouviu dando partida
no carro. No entanto, quando ele escutou aquele rum, rum, rum do motor do carro, olhou para o
teto da casa e teve a impressão de que haviam aberto o telhado e derramado um caldeirão de amor
liquefeito sobre ele.
— Aí, meu fígado, que estava enorme, cavalgou aos saltos para debaixo da costela, onde era o
seu lugar. O baço também veio aos pinotes de volta ao seu lugar de origem, desinchando
imediatamente. Senti o sangue ferver e correr aceleradamente pelo meu corpo. Uma energia
extraordinária me envolveu. Saltei e comecei a gritar: Jesus me curou, Jesus me curou —
contou-nos Antônio.
A essa altura, seus amigos, que ainda estavam lá, ficaram embasbacados, sem entender nada.
Ele correu, saltou o muro da frente de sua casa e gritou: “Eu estou curado!”
No dia seguinte, foi trabalhar. Quando os colegas o viram entrando no hospital, correram para
segurá-lo.
— Qui é isso, cara? Cê tá maluco? Vai pra casa. Cê vai morrer aqui — vaticinaram os
médicos.
Antônio contou-lhes o que havia acontecido e pediu para fazer todos os exames. O resultado
foi alarmante para os médicos. Tudo normal. Eles não podiam acreditar. O quadro leucêmico
revertera-se instantaneamente. Jesus operara um milagre em Antônio. E mais: ele usara alguém
como eu para curar, enquanto eu mesmo pedia cura para a minha doença, mas Ele me deixava ir
até o fim, sem nenhuma intervenção sobrenatural. E isso eu não entendia.
Ter crido que o Deus que curava aqueles por quem nós orávamos certamente também me
curaria quando viesse a precisar e ter tido experiência diferente, tendo precisado da cura e não a
tendo encontrado, fez-me um mal enorme e abalou a minha fé.
Além disso, a hepatite colocou-me fora de circulação por seis meses. Mas, na verdade, aquela
foi minha primeira parada para pensar desde a minha conversão, pois, mesmo investindo tanto
tempo em oração e jejum, eu fazia aquilo de modo muito objetivo, ou seja, eu praticava aquelas
disciplinas espirituais porque estava convencido de que aquele era o caminho para fortalecer o
meu espírito e para adquirir poder espiritual na luta contra as forças invisíveis do mal. Quanto ao
mais, no entanto, minha vida continuava agitada e trepidante: televisão ao vivo todos os domingos,
rádio todos os dias, debates na mídia sobre assuntos do momento, pregação nas escolas,
universidades e ao ar livre, aconselhamento de jovens na igreja, visitas aos hospitais, além daquela
legião de oprimidos e perturbados que nunca nos deixavam.
A hepatite, entretanto, me fez parar e pensar. Ali, rolando na cama o dia todo, cansado de não
fazer nada, entreguei-me à leitura não só da Bíblia, mas de outros textos. Foi naquele período que
fui introduzido a pensadores cristãos não-ortodoxos, que questionavam tudo: a Bíblia como
Palavra de Deus, o nascimento virginal de Cristo, os milagres, a ressurreição física de Jesus e,
sobretudo, a segunda vinda dele, um dia no futuro, de volta ao planeta Terra, conforme as
Escrituras afirmam que acontecerá. De súbito, em meio àquelas leituras, vi-me tomado de
profundas dúvidas.
— Mas como é que eu posso duvidar, se tenho visto milagres e atos sobrenaturais de Deus?
— eu me indagava, enquanto minha mente sempre encontrava uma nova base para manter o
questionamento.
— Mas isto tudo pode ser apenas o resultado de fenômenos psíquicos e todos os milagres da
Bíblia podem ser explicados pela parapsicologia ou como sendo grandes mal-entendidos
históricos — eu respondia a mim mesmo, dando assim chance a que minha alma se revolvesse
em agonia cada vez maior.
Era horrível. Meus pés ficavam gelados. À noite, uma angústia tão grande me invadia, que era
como se ondas de desespero se alternassem sobre minhas costas.
— Jesus, não deixa eu me tornar um descrente. Ajuda-me na minha falta de fé. Não deixa eu
desistir de crer. Se eu perder a fé, eu me mato. Me segura Jesus — eu orava com intensidade e
pavor.
— Mas e se você estiver dando a sua vida a uma balela? E se tudo isso for apenas o resultado
do nervosismo religioso dos primeiros discípulos? E se você morrer e não houver nada? — algo
em mim me indagava e me punha contra a parede.
— Ora, se for assim, eu nunca vou ficar sabendo. Vou morrer e vou cair no nada. Mas e se
houver tudo o que a Bíblia diz? Como é que eu fico? — eu mesmo contra-atacava.
Então lia os livros dos apologetas, os defensores racionais da fé. Li tudo e todos que pude
encontrar na época. E quanto mais lia, pior ficava. Então, concentrava a mente nas imagens da
Ressurreição. Pensava com força, como que querendo materializar aquela visão, como se tivesse
voltado no tempo dois mil anos. Mas que nada. Quanto mais pensava na coisa, mais distante de
mim ela se tornava e cada vez mais fantasiosa parecia ficar. E mais: a impressão que eu tinha era a
de que minhas dúvidas cresciam à medida que eu orava e jejuava. Pensei que fosse enlouquecer.
Pelas madrugadas eu acordava e buscava a sintonia da rádio Transmundial, cujas
transmissões eram feitas das Antilhas Holandesas. Ouvia os pastores e cristãos falarem com
simplicidade e fé, e os invejava. “Meu Deus, por que o Senhor me fez inteligente? Eu queria ser
burro e simples. Meu Deus, tudo o que eu queria era ter a mesma capacidade de crer da Mãe
Velhinha”, dizia em desespero e lágrimas, lembrando que minha avó materna estava ali, vivendo
conosco na parte térrea da casa de meus pais, sempre fazendo fortes confissões de fé.
Aqueles seis meses foram infernais. Evitei pregar, mas não era possível. Consegui ficar longe
da pregação apenas durante os primeiros sessenta dias. Depois daquele período, entretanto, aos
sábados à noite eu saía da cama e ia à igreja falar aos jovens. Meus programas de TV foram
repetidos e apenas nos últimos meses é que pude voltar a gravá-los. Mas o caminho de volta era
sempre para a cama.
Quando recebi alta, seis meses depois, havia mudado enormemente por dentro. Decidi que
não haveria mais de buscar nas emoções fundamento para a minha fé e que iria viver em Cristo
exclusivamente baseado nas evidências de sua divindade, conforme a Bíblia. Passei a ser muito
mais elaborado nas minhas pregações e busquei apoio para a fé na filosofia e na teologia. Às vezes,
eu me desesperava, achando que nunca mais na vida voltaria a viver com a paixão confiante que
me incendiara nos dois anos anteriores. Voltar atrás, todavia, jamais. Jesus era real demais para
que eu me afastasse Dele, mas o fato não me ter curado da hepatite quando cri com tanta certeza,
abalou-me profundamente e me deixou com uma ponta de raiva de Deus no coração.
Os que comigo conviviam não podiam jamais imaginar que eu estava vivendo aquelas
angústias, pois quanto mais eu me sentia em conflito, mais convincente e bem-elaborada minha
pregação se tornava. “Como você está pregando bem. Continue assim, cheio de fé”, diziam-me
com extrema freqüência, o que me fazia viver sentimentos ainda mais ambíguos. Eu ficava grato a
Deus e, ao mesmo tempo, sentia-me horrível. “Meu Deus, eles não sabem como eu estou tão
confuso”, eu segredava a mim mesmo.
Com o passar do tempo, o ministério absorveu-me de tal maneira, que meu luxo filosófico foi
se tornando ridículo. Era tanta gente necessitada, doente, carente, drogada e oprimida, que
acabei esquecendo de mim mesmo. Além disso, curas milagrosas começaram a acontecer
espontaneamente quando eu orava por pessoas necessitadas e não me foi difícil, a partir daí,
concluir que o fato de Jesus não me haver curado quando eu pedira tinha tido uma finalidade
pedagógica para mim. “Já pensou se você tivesse sido curado? Orando pelos outros e vendo Deus
responder; pedindo a Ele por você mesmo e ainda obtendo resposta, seria terrível. Você ficaria
vaidoso e presunçoso”, dizia de mim para mim, enquanto tentava silenciar as recaídas de meus
questionamentos.
No fim de 1975 eu já estava a todo vapor outra vez. Voltei a pregar com toda paixão e
entreguei-me alucinadamente às pessoas. Além disso, depois de ler a Morte da razão, do filósofo
cristão Francis Schaeffer, decidi que viveria o cristianismo com radicalidade social. Passei a
pegar pessoas na rua e a levar para casa. Cheguei mesmo a colocar duas moças dormindo em
nossa cama, enquanto Alda e eu passávamos a noite no chão. Abrigamos até gente suspeita de
crimes, como um rapaz de Brasília, sobre quem pairava a dúvida de ter estuprado e matado a
irmã. Mas minha convicção de que o evangelho tinha poder para mudar bichos, monstros e
pervertidos, tornando-os capazes do arrependimento e de uma existência nova, era tão forte, que
eu corria qualquer risco para provar este poder. E Alda embarcava comigo nas aventuras.
Entretanto, meus pais também se tornaram meus sócios naqueles empreendimentos
arriscadíssimos, pois, afinal, o quarto era meu e de Alda, mas a casa era deles; e, sem dúvida,
sobrava-lhes um quinhão bem elevado, especialmente para minha mãe, que tinha de providenciar
comida para aquela gente que ela não sabia de onde vinha e nem para onde ia.
Foi também no início daquele ano que o concílio presbiteriano da cidade de Manaus decidiu
me dar uma chance de pleitear a ordenação pastoral sem a formação de seminário.
— Nós vamos dar a você três anos de prazo para que demonstre sua vocação pastoral e, ao
fim desse tempo, você nos apresentará uma tese teológica. Você também deve ler os livros do
currículo do seminário. Se for aprovado no teste, nós o ordenaremos, mesmo contra os
regulamentos da Igreja. O problema é que esse tipo de concessão só é feita a gente de vocação
tardia, o que não é o seu caso — disse o presidente do presbitério.
— Meu Deus, eu não entendo esses irmãos — disse papai. — Você está mais envolvido no
ministério pastoral do que todos eles juntos, e eles têm a coragem de dizer que querem ver se
você tem vocação pastoral?
Eu, contudo, não fiquei magoado com aquilo. Na verdade, nunca tivera qualquer tipo de fé na
instituição religiosa. Sabia que ela era útil apenas para manter a tradição da fé, mas que era
completamente inútil quanto a produzir amor e paixão no coração das pessoas sofridas deste
mundo.
— Vou fazer o que estão pedindo. Mas não quero jamais ser um cara da política religiosa e de
todos esses regulamentos. Se fosse para viver assim, eu jamais teria me convertido — eu
desabafava com alguns amigos mais chegados.
Quando peguei a lista de livros básicos do seminário, percebi que já havia lido a maior parte
deles. Mergulhei na pesquisa e no estudo teológico, filosófico e doutrinário. Fiz isso, todavia, sem
abandonar meus compromissos para com o mundo real e para com aqueles que haviam crido em
Deus por meu intermédio. No final do ano, o concílio se reuniu e mudou sua orientação.
— Três anos é muito tempo. Nós não temos mais dúvidas de sua vocação. Escreva uma tese
e apresente-a em janeiro de 1977 — foi o veredicto.
Vibrei com a mudança nos prazos. Já não agüentava mais evangelizar, cuidar, instruir e
preparar centenas de pessoas para o batismo sem que eu mesmo pudesse ser oficialmente o
ministrante do sacramento sobre elas. Contudo, apesar da euforia, não me dediquei
exclusivamente àquela tarefa. Ao contrário, imergi radicalmente nas outras atividades, as únicas
que realmente me desafiavam e davam prazer.
Em maio de 1976 Alda deu à luz nosso primogênito, Ciro, na cidade do Rio de Janeiro, uma
vez que seus pais não quiseram que ela tivesse o primeiro bebê longe deles e nos levaram para o
Méier, onde moravam. No dia 12, às seis e meia da manhã, a bolsa d’água estourou. O trânsito
estava pesadíssimo e ela quase deu à luz dentro do carro. Subi calçadas, cruzei ilhas de
isolamento no meio das ruas, buzinei, orei, corri enlouquecido, mas cheguei com ela e dona Rose
ao hospital. O menino veio em seguida.
Quando vi meu filho nos braços de uma enfermeira, dancei pelo corredor do hospital. Era a
realização de meu mais enraizado sonho humano: ser pai. Esse desejo se enrolara em minha
alma, com força inarredável desde que papai construíra aquela casinha de compensado lá no
fundo de nosso quintal na rua Apurinã. “Entre aí, ame uma mulher e ame seus filhos”, era o som
que muitas vezes voltava à minha memória desde então. E mais: o impacto daquelas palavras fora
tão profundo em minha alma, que mesmo quando eu vivia de loucura em loucura e de mulher em
mulher, ainda assim eu dizia que poderia até não chegar a casar, mas que filhos eu com certeza
teria.
A volta a Manaus com o bebê foi uma festa em nossa casa e na igreja. Ciro ia de mão em mão
naquela comunidade de centenas de jovens. Nossa dificuldade era ficar com ele. Todo mundo
queria o garoto. No início gostamos, mas depois nos enchemos daquilo.
— Desse jeito eu não vou ser mãe desse garoto nunca — disse-me Alda, já bastante
frustrada. Mas ela não teve nem tempo de se frustrar com maior profundidade. — Caio, você não
vai acreditar, mas estou grávida outra vez — ela me confidenciou. Beijei sua barriga e fiquei feliz.
Ela, entretanto, mostrava-se claramente preocupada.
“O Ciro só tem três meses e eu já estou esperando outro neném. É demais, cê num acha? —
ela me indagava.
— Que nada, meu amor, “a herança do Senhor são os filhos e o fruto do ventre é o galardão
do homem. Os filhos são como flechas na mão do guerreiro. Bendito é aquele que enche sua
aljava com essas flechas de Deus”. Não se preocupe — respondi, citando o Salmo 127. Alda,
contudo, parecia não concordar com tamanho fatalismo bíblico-biológico. Mas não dizia nada.
Durante aquele ano organizei vários eventos musicais com a finalidade de evangelizar jovens.
Eram os Reflex-sons. Depois tive a idéia de fazer uma coisa bem artística no teatro Amazonas.
Seria algo com muita música, coreografia, danças e uma pregação objetiva, que eu faria. O desejo
era o de alcançar um público que jamais iria à igreja. À Cruz Urgente, era o nome do evento.
Trabalhamos intensamente para aquele projeto. Eu mesmo me dediquei à supervisão de cada
detalhe da programação. A data já estava agendada. Seria o dia 6 de novembro daquele ano.
Quando amanhecemos o dia 2 de novembro, eu saí da cama com o coração estranhamente
angustiado. Fui para a igreja e atendi as pessoas para aconselhamento e oração, como fazia todas
as manhãs. Naquele dia, todavia, era diferente. Por ser Dia de Finados, todo mundo que veio me
procurar perguntou sobre a morte. “A gente vai direto para o céu quando morre crendo em
Cristo?” Ou então: “Por que é que a Bíblia proíbe a consulta aos mortos?” Assim, as questões
sobre a morte se sucediam. Às 13 horas fui almoçar.
— Lacy, sabe quem faleceu ontem no Rio e o corpo está sendo trazido de avião para Manaus?
— papai perguntou a minha mãe. Alda, eu, Aninha, Suely e o marido estávamos à mesa. — A mãe
do Bernardo Cabral — concluiu papai, lembrando a amizade de seu compadre.
— Não diga isso, Caio. Poxa, que pena! — acrescentou mamãe.
Durante o almoço o assunto continuou em torno da morte.
— Olha, se eu morrer não precisa gastar dinheiro comigo. Pode mandar abrir uma vala e
jogar o corpo lá. O corpo foi meu, mas não sou eu. Eu estarei com Jesus, na Glória — disse papai,
arrancando protestos de todos nós.
— O Caio é radical demais. Eu não aceito isso. Para mim isso é fanatismo — contestou
mamãe.
— Eu também penso diferente. Não temos que cultuar o corpo, mas reverenciá-lo é sadio —
falei e citei inúmeros exemplos bíblicos daquela prática.
— Ei, gente. Vamos parar com isso. Nós estamos almoçando e vocês só falam em morte —
disse Alda com timidez, mas com bom senso.
Logo após o almoço subi a rua Urucará, que passava ao lado de nossa casa, e fui com Alda à
casa de Nalia e Liana, amigas da igreja em cuja residência um dos conjuntos musicais ensaiava
para a apresentação do dia 6. Eram duas da tarde.
— Amor, que coisa estranha. Estou com a sensação de que alguém nosso está morrendo
agora. Estou possuída por uma agonia de morte — Aldinha falou, parando de caminhar.
— Que é isso. Você só está impressionada com tanta conversa sobre morte. Não se preocupe
com isso. Vai passar — refutei o sentimento dela. Chegamos ao lugar do ensaio e iniciamos. Às
três horas da tarde vi o carro de meu pai parado em frente à casa.
— Caiozinho, alguém telefonou dizendo que os filhos de Dr. Agnelo Balbi, o Camilo e o
Agnelo Jr., sofreram um acidente horrível na estrada. Eles estavam no sítio e vinham para o
ensaio. Vou ver o que aconteceu — ele me falou com o rosto preocupado.
— Papai, e o Luiz Fábio? O mano estava com eles, não estava? — indaguei, embora estivesse
certo que sim.
— Não sei, filho. Ninguém falou nada do Luiz. Vou ver — rebateu imediatamente. Pedi para
acompanhá-lo, mas ele insistiu que seria importante a minha presença ali, visto que Hilda, irmã
dos dois garotos, estava entre nós e talvez precisasse de minha ajuda, caso as notícias não fossem
boas.

— Lacy, Lacy, meu Deus, Lacy! Teu filho está morto, Lacy. Ai! Lacy, por quê? — dona
Conceição entrou em nossa casa gritando e foi logo apanhando mamãe sozinha no tanque de lavar
roupa.
— O que é isso, Conceição? — perguntou mamãe.
E a resposta foi massacrante.
— O Luizinho está morto. Foi um acidente de carro na estrada — falou nossa amiga,
perturbada pela notícia que a ela chegara primeiro do que a nós.
Olhei pela janela da casa de Nalia e vi papai subindo a rampa com o olhar roxo de angústia.
Seu rosto estava macerado de tanta dor.
— Papai, e o Luiz? — corri e perguntei.
— Ele já está onde nós ainda vamos ter de lutar muito para chegar. O Luiz já está com Cristo
— ele disse com força e dor, mas sem desespero e sem lágrimas.

Eu o abracei e chorei em silêncio. Uma lâmina fina e fria percorria meu ser de ponta a ponta.
Um carrossel de lembranças rodou intenso à minha volta.
— Papai, deixa eu tocar Dominique-nique-nique no piano? — ele pedira aos seis anos, antes
de nós sabermos que ele tinha a música dentro de si.
— Eu sei tirar o carro da garagem sozinho, qué vê? — quando ele nos assustou, aos sete
anos, mostrando perícia ao volante.
E mais: vi aquele rosto nervoso me esperando no aeroporto, feliz e aflito com minha volta para
casa em março de 1973. Também o vi bonachão, sempre dando carona às velhinhas da igreja após
os cultos, e tocando belos hinos no órgão com aquelas mãos enormes e tão contraditórias, que ora
alisavam a música, ora desapertavam parafusos de máquinas de carro com a mesma paixão, como
se ambas fossem extensão uma da outra.
E, por último, eu vi a cena de Ciro urinando na boca de Luiz. Ele, todo orgulhoso, levantou o
neném e disse: “Olha o titio, olha Cirinho.” De repente o esguicho. Era pipi para todo lado. Luiz
caiu na gargalhada, aparentemente orgulhosíssimo com aquele batismo.

“Meu Deus, por quê? Por que, meu Deus?”, mamãe indagava ao Eterno. Deixou Conceição
sozinha e subiu angustiada a escada de nossa casa, indo em direção à sua Bíblia, velha e
manuseada, posta à cabeceira de sua cama. Caiu de joelhos no chão do quarto. Abriu as páginas
da Escritura a esmo, enquanto perguntava: “Por que, meu Deus?” Seus olhos pousaram sobre as
páginas de Isaías 57: 2 e 3. “Por que o justo é levado antes que venha o mal; e entra na paz.” De
repente, ela sentiu a força da mesma voz que falara com ela em 1964: “O que eu faço não o sabes
agora, compreendê-lo-ás depois.” Uma paz enorme invadiu sua alma. “Senhor, obrigada. Agora
entendo que a morte já não é o pior mal. O verdadeiro mal não é morrer, é viver sem Deus.
Obrigada porque Tu estás poupando o meu Luiz de um mal maior. Eu confio em Ti e vou chorar
sem amargura”, ela anunciou a Deus, com doçura de coração.
Aquela foi a primeira vez que tive de lidar com a morte naquele nível de proximidade
emocional. Saí dali e fui ao necrotério. Por ser Finados, o lugar estava apinhado de gente. Foi lá
que fiquei sabendo que os três rapazes — Luiz, Agnelo e Camilo — haviam apanhado uma
carona com um amigo do pai deles, que se oferecera para levá-los de volta à cidade. O problema é
que o homem estava completamente embriagado. Seis quilômetros adiante, perdeu o controle do
carro e mergulhou num precipício de uns trinta metros. O carro voou, rodou no ar e ficou preso
de cabeça para baixo entre dois barrancos. Todos caíram. O motorista fraturou as pernas e os
braços. Agnelo teve fissura de fígado e baço, além de fraturar a clavícula e abrir um rombo entre o
crânio e o couro cabeludo tão profundo, que a área ficou toda cheia de terra. Camilo não sofreu
nada, mas o óleo quente do motor do carro derramou todo sobre ele. A dor foi tão grande, que fez
com que subisse os trinta metros de barranco íngreme com as unhas. E Luiz Fábio, meu irmão,
caiu com a cabeça sobre uma haste de lenha, fraturou a base do crânio e morreu
instantaneamente.
Luiz estava com 19 anos quando morreu. Media um metro e oitenta e sete e pesava 96 quilos.
Não gostava de esportes, mas amava a música e os carros. Tudo o que ele queria era ter uma
oficina mecânica e tocar órgão na igreja até o fim de sua vida. Ele conseguiu viver e morrer como
desejou. Olhando-o ali, sobre aquele azulejo branco da mesa do necrotério, no entanto, parecia
que tudo era absolutamente irreal. Foi somente quando toquei em sua coxa que me dei conta da
irreversibilidade daquele estado. Minha mão afundou em sua perna, como se os músculos se
abrissem ao peso dela. Tentei ajeitar sua cabeça, e um jorro de sangue se derramou
abundantemente sobre seu peito. Chorei. Depois de lavá-lo, cumpri o desejo de minha mãe, que
era vesti-lo com um terno azul xadrez que ele mandara fazer recentemente e que não tivera
chance de vestir tanto quanto desejara. Em seguida, removemos seu corpo para o templo da
Igreja Presbiteriana.
A dor era enorme, mas descobri ali que mamãe e eu tínhamos algo muito nosso e que até
aquele momento eu não havia percebido. Às 11 da noite, nós dois estávamos com fome, e
comemos. Às duas da manhã, estávamos com sono, e dormimos. Todos os demais não fizeram
nenhuma das duas coisas. Dali em diante, descobri que dor e perda não têm o poder de nos
roubar nem a fome e nem o sono. Diminuem a sua intensidade e regularidade, mas jamais os
excluem completamente; falo de mim e minha mãe.
Quando o dia 3 de novembro amanheceu, a frente da igreja estava completamente tomada. O
templo já estava abarrotado com centenas de pessoas que ali se comprimiam. O problema é que
no final da tarde do dia 2 havia chegado à TV Amazonas, emissora onde eu tinha o meu programa,
a notícia de que eu havia morrido, e não o meu irmão. Daquele momento em diante, a emissora
começou a colocar um crédito — letras correndo na barra inferior da tela — dizendo que eu
estava morto e que o enterro seria no dia seguinte. Assim que soubemos entramos em contato e
esclarecemos os fatos, mas muita gente não ficou sabendo. Quando cheguei, vi ainda várias
pessoas me olhando como se estivessem vendo uma visagem. Outras me abraçavam, choravam
por meu irmão, mas diziam que tinham pensado que havia sido eu. Foi estranho ter uma idéia do
que seria o meu próprio funeral.
Papai pediu para eu oficiar o ato fúnebre, o que fiz junto com muitos outros pastores que ali
estavam. Ao final, ele mesmo tomou a palavra e falou de modo arrebatador sobre a força do
consolo de Deus nas horas das perdas mais radicais. Todos choravam muito não apenas por
causa da morte de meu irmão, mas estranhamente, também, pelo conforto espiritual que a
cerimônia lhes trouxe ao coração.
No dia 6 de novembro nós estávamos no teatro Amazonas, realizando a programação de À
Cruz Urgente. Apesar de tudo, houve profunda graça e consolo de Deus sobre todos nós. Alda
disse que preguei como nunca antes. Eu mesmo sentia que havia luz sobre minha alma em
intensidade que eu até ali não conhecera. Centenas de pessoas tomaram a decisão de andar com
Jesus. Voltamos para casa cheios de imensa e indizível paz.
Uma semana depois, eu estava andando pela avenida Eduardo Ribeiro, no centro da cidade.
Eram aproximadamente duas horas da tarde, e meu coração carregava uma saudade sem cura.
Olhei e vi Chiquilito Erse, amigo de outros tempos, em pé na esquina, de costas para mim.
Chiquilito tivera por anos o apelido de Peter Fonda, tamanha era a semelhança que havia
entre ele e o artista do filme Sem destino. Fui até lá, por trás, e peguei no ombro dele.
— Meu Deus. Meus Deus. Que é isso, meu Deus?! — foi a exclamação de Chiquilito, cujo
rosto ficou pálido e os olhos esbugalhados.
— Sou eu Chico, sou eu! Caio! O que está acontecendo? Tá com medo de quê? — indaguei.
— Cara, cê tá morto! — disse-me ele como se quisesse convencer uma assombração que ela
deveria voltar para o lugar de onde saíra.
— Todo mundo pensou que havia sido eu, Chico, mas foi meu irmão, Luiz, quem morreu.
Eu tô aqui, é só me pegar — insisti tocando nele.
— Bicho, cê quase me mata — disse aquele que, anos mais tarde, se tornaria prefeito de
Porto Velho, capital de Rondônia.
Assim, o susto de Chiquilito fez com que a morte de meu irmão ficasse gravada em minha
memória como uma lembrança mista. A ambigüidade da vida ficou mais que presente naquela
recordação, fazendo com que lágrimas e risos, gemidos e gargalhadas se misturassem de modo
inconveniente, porém inevitável. Afinal, quem pode dominar as fontes da vida? E quem pode
garantir que choro e risada não caibam na mesma boca, no mesmo dia, mesmo que seja o dia da
morte?
Capítulo 30

“Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, fixas Nele,
permanecerão; de outro modo, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, Nele, e
arrasta contigo até Ele quantas almas puderes, dizendo-lhes: ‘Amemo-Lo’—
porque Ele criou estas coisas, e não está longe daqui. Porque não as fez e se foi,
mas Dele procedem e Nele estão. Mas eis que Ele está onde se aprecia a verdade:
no íntimo do coração.”

Santo Agostinho, Confissões

Quinze dias após a morte de Luiz iniciei a tarefa de escrever minha tese de ordenação. O
concílio se reuniria no dia 6 de janeiro de 1977 e a idéia era a de me ordenar no dia 10, caso fosse
aprovado. O problema é que não se escreve uma tese teológica em um mês. O trabalho demanda
muita pesquisa e consulta, para não falar na produção do texto em si. Até aquele dia eu nunca
precisara escrever nada que excedesse algo em torno de oito laudas datilografadas.
Assim, quando percebi que não poderia trabalhar nenhum assunto que demandasse
pesquisa, resolvi produzir algo sobre o que jamais havia encontrado sequer uma única linha
escrita. Perguntei a vários pastores se eles tinham bibliografia para uma tese que versasse sobre a
salvação dos pagãos fora da religião. Ninguém jamais lera nada objetivo a respeito. Apenas o
reverendo José Mattos Filho me disse ter lido, na Teologia dogmática de Strong, uma alusão à
eventual salvação espiritual de Sócrates, o filósofo grego. Para mim, tudo aquilo era ao mesmo
tempo fascinante e odioso, pois se de um lado a Bíblia diz que a salvação é uma obra da graça
divina que decorre de nossa resposta de fé à revelação de Deus em Cristo, de outro lado a própria
Bíblia afirma, contundentemente, que nenhum mortal pode pretender saber ou fazer afirmações
sobre quem foi salvo ou perdido, espiritualmente, além dos portões da morte. O fato de Strong
haver mencionado uma eventual salvação de Sócrates deixou-me com raiva.
— Quem é esse cara para se sentir com autoridade para falar da eternidade humana como se
estivesse fazendo um simples comentário sobre quem passou ou não no vestibular? — comentei
com meu pai.
Como não havia nada escrito que me tivesse chegado ao conhecimento sobre o assunto,
resolvi fazer do tema a minha dissertação. “Assim, ninguém me pede bibliografia além da Bíblia,
e vai ser muito mais fácil discorrer sobre o assunto livremente”, imaginei. O desenvolvimento do
tema já estava todo alinhavado dentro de mim desde aqueles seis meses de angústia teológica que
me acometeram durante a segunda hepatite. Naqueles dias, enquanto rolava na cama,
vinham-me à mente questões sobre o que teria acontecido a bilhões de seres humanos que
nasceram e morreram longe do ambiente histórico e geográfico da pregação do evangelho. Ou seja:
eu queria saber por que somente quem teve a oportunidade de ouvir uma determinada
informação, como é o caso do evangelho, poderia ter a chance da salvação, de acordo com os
ensinamentos da Igreja (e aqui neste ponto, católicos e protestantes pareciam estar quase em
absoluta harmonia).
Eu, entretanto, achava que aquela redução era pagã. Como é que nós podemos imaginar que
um Deus como o nosso haveria de reduzir a possibilidade da salvação a coisas tão humanas,
condicionadas por elementos de natureza econômica, social, política e religiosa? E se eu tivesse
nascido índio? E se meu chão de vida fosse a China, o Japão ou a Índia? E se minha existência
histórica tivesse acontecido há três mil anos, numa tribo pagã da Europa Nórdica? Enfim, até que
ponto nós temos o direito de pretender determinar que a salvação de Deus acontece apenas
quando um missionário apaixonado atravessa os mares para levar a informação da redenção até os
confins do planeta?
Ou seja: na minha mente, não havia dúvida quanto ao fato de que o evangelho tinha de ser
pregado a todas as criaturas humanas e eu estava comprometido com isso até o âmago de meu
ser. Meu conflito, entretanto, era sobre se Deus não poderia ser Deus para fora dessa ação
missionária da Igreja e salvar a quem ele bem entendesse simplesmente por causa de sua
liberdade para ser Deus.
“Se for diferente”, eu pensava, “mesmo que nós digamos que a salvação é possível só por
meio de Cristo, estamos condicionando esse caminho a um outro meramente humano: a vontade
da Igreja de ir falar de Deus aos homens. Nesse caso, quem deveria ir para o inferno não era o
pagão alienado, mas a Igreja desobediente, que não cumpriu sua missão no mundo.”
Escrevi cerca de cem páginas e submeti-as à apreciação de papai.
— É assim que eu creio. Cristo é o centro da salvação, não a Igreja — falou com os olhos
cheios de lágrimas.
Sem perceber, contudo, eu havia entrado num terreno muito sensível. A implicação de meus
pensamentos naquela área era que a Igreja é agente de Deus neste mundo para pregar a salvação,
mas não é a detentora da administração da graça divina por meio algum. Assim, inocentemente,
eu estava arranhando o assunto mais delicado da experiência eclesiástica: a ação divina fora da
instituição religiosa, o que me tornava extremamente vulnerável.
— Pera aí, Caio. Cê já pensou nas conseqüências? Os irmãos vão dizer que você é
universalista na aplicação da salvação e teologicamente liberal. Cê tem certeza que quer correr o
risco? — indagou meu amigo Ivan Moreira.
Mas eu queria correr o risco. Afinal, eu jamais seria cristão exclusivamente por causa da
Igreja. E quando a graça de Cristo me encontrou, o que mais me estimulou foi o fato de tudo ser
tão livre e tão divino, sem tutelas humanas.
O couro cantou quando minha tese foi examinada. Eu não tinha a menor idéia de que os meus
irmãos pastores iriam enroscar-se tanto naquela temática.
— Isso tem cheiro de liberalismo. Crendo assim, quem precisa evangelizar? — indagou
Cláudio.
— O problema é que pensando assim, você diminui o peso da pecaminosidade universal dos
homens — falou Alfonso.
— É por essa razão que não devemos ordenar quem não foi ao seminário. Falta teologia e
doutrina à tese dele — concluiu Felipino.
Foram dois dias inteiros de discussão. Durante aquele período fui defendendo cada uma das
acusações levantadas. Em suma: insisti na afirmação de que só há salvação em Cristo, e que a
Cruz de Jesus é o centro espiritual do universo. Todavia, a administração da graça divina, que
aplica a salvação, é prerrogativa de Deus. A Igreja tem a missão de pregar a todos os homens e
deve fazer isso porque Cristo ordenou. Mas a Igreja não limita o amor salvador de Deus, ou seja,
Deus também age — às vezes, ou até mesmo sobretudo — fora das instituições religiosas.
— Eu entendo a preocupação de vocês, irmãos. Sei que todos aqui querem que os ministros
presbiterianos sejam doutrinariamente sãos. Eu também. Mas nós não estamos aqui legislando
nada para a Igreja. Estamos apenas discutindo uma tese teológica. E o que o Caio Filho está
defendendo pode ser um problema para mim e para você, pois parece que as nossas motivações
para evangelizar dependem desse sentimento de que se nós não o fizermos o mundo se perderá.
Ele diz que crê assim, mas diz também que isso não impede a Deus de aplicar a graça de Cristo,
mesmo sem a presença da Igreja. Se isso fosse um problema para o Caio, ele não evangelizaria
como tem feito e nem com a dedicação que todos percebemos nele. Quem de nós aqui está
evangelizando mais do que ele, mesmo tendo convicções mais ortodoxas do que as dele? —
perguntou o reverendo Frank Arnold, missionário americano servindo em Manaus. Ninguém
respondeu, e o assunto foi encerrado ali.
Devidamente introduzido ao espírito complicado dos concílios da religião, aceitei a
ordenação. Mas quando o dia 10 chegou, senti a mesma tremedeira que me acometeu no dia de
meu casamento. Jejuei o dia todo, mas à medida que a noite chegava, eu gelava. “Senhor, será que
eu serei um bom pastor? E se eu fraquejar? E se eu cometer algum ato pecaminoso e vier a
desonrar o nome de Jesus? E se eu não agüentar a vida eclesiástica e suas veredas estranhas e,
muitas vezes, completamente ilógicas para mim? E se algumas de minhas convicções me levarem
a ficar sozinho dentro da Igreja?”, eram as questões que me aterrorizavam.
— Caiozinho, eu preciso dizer algo a você. Ninguém sabe, mas dias depois de seu
nascimento eu vi você no bercinho, ao pôr-de-sol, e fui tomado por um profundo e irresistível
desejo de oferecer você à divindade. Mesmo sendo agnóstico naquele tempo, eu entreguei você a
Deus, numa prece. Pedi para você ser pastor, mesmo não sendo protestante. Queria que você
servisse a Deus, mas também tivesse esposa e filhos. Ele ouviu minha voz, mesmo quando eu não
o conhecia — papai falou, enquanto lágrimas grossas rolavam pela sua face.
Ficamos abraçados, chorando juntos. Quando nossos rostos se separaram do abraço, minhas
dúvidas tinham desaparecido. Era como se o próprio Deus tivesse vindo me abraçar e dizer: “Não
foi você que me escolheu. Fui eu quem escolheu você. E eu sei o risco que eu corro colocando o
meu nome sobre a sua vida. Mas eu quero correr esse risco. Vá sem medo.”
Chorei todo o tempo em que a cerimônia durou. O reverendo José Mattos Filho, que me
batizara na Igreja Protestante na infância e que oficiara meu casamento, agora fora também
incumbido de dirigir o ato de ordenação. Meu pai, entretanto, disse que a exortação ao novo
ministro, chamada Parenesis, ele mesmo fazia questão de pronunciar. Foi um dos momentos
mais tocantes e comoventes de toda a minha existência, até hoje. À porta do templo, após a
cerimônia, senti-me realizado quando as pessoas me diziam: “Deus o abençoe, pastor.” Embora
simples, eu não trocaria aquele título por nenhum outro. E, para mim, aquilo era bem mais que
um título, era uma relação com a vida e com o próximo. Eu queria ser pastor de homens, e isso
era tudo.
Mas a ordenação ao pastorado tornou-se uma grande tentação para mim. O meu desejo de ser
chamado de pastor ou reverendo misturou-se com uma outra impressão, falsa: a de que quem
quer que não me chamasse de pastor não estava reconhecendo o significado de minha vida.
— Ei, Caião. Dá uma chegada aqui — alguns jovens da igreja me chamavam com
espontaneidade.
De súbito, me percebi andando no caminho da formalidade e da distância de todos aqueles
que não me chamavam de pastor. Lutei como pude contra aquilo, mas a coisa parecia ser mais
forte do que eu. Era como se não estivesse sendo reconhecido justamente na única área da vida
que eu considerava de valor essencial para mim. Cheguei a ser grosseiro com aqueles que
escolhiam o caminho da informalidade no trato para comigo.
Num daqueles dias, Nalia, uma amiga de outros tempos e que agora estava na igreja conosco,
veio apressada até a minha casa para nos dizer que Zé Curió, a quem eu não via desde 1975, após
seu retorno da prisão na Ilha Grande, no Rio, estava baleado num dos hospitais da cidade,
morrendo.
— É um quadro de infecção generalizada. Ele vai morrer. Só um milagre. Olha Caio, ele quer
que você vá vê-lo — disse-me Nalia com a consciência profissional da boa médica que ela se
tornara, mas ao mesmo tempo deixando espaço para uma intervenção de Deus na situação.
— Ei, Caião! Cê tá numa boa, bicho, e eu tô aqui, morrendo. Cê fez a melhor escolha —
disse Zé Curió assim que me viu entrar no quarto em companhia de meu pai. Ficamos ali com
ele, ouvindo-o falar como a vida lhe estava sendo difícil, constatação tardia, porém esperançosa.
— Os home tão querendo me pegar. O que me aconteceu foi isso. A polícia me pegou. Veio um
cara, olhou pra mim e, sem mais nem menos — pô eu tava sentado no carro, bicho — despejou
um monte de tiro na minha barriga. Tão querendo acabar comigo, cara — continuou Zé Curió. O
corpo dele ardia em febre. — Tô cum medo de morrê, bicho. Faz uma oração por mim.
Papai e eu impusemos as mãos sobre ele, pegamos óleo de um vidrinho que sempre tínhamos
conosco e, conforme a instrução do Apóstolo Tiago, derramamos o líquido sobre a sua cabeça, em
nome de Cristo.
— Zé, nós te ungimos com óleo para a cura de teu corpo, em nome de Jesus — dissemos.
Em seguida, meu pai orou por ele, enquanto nossas mãos se mantinham sobre a cabeça de
meu ex-melhor amigo. Agora eu tinha enorme piedade dele, mas nossas vidas não tinham mais
nada em comum, a não ser as lembranças.
— Pô, valeu mermo, Caião. Valeu, bicho — disse Zé, enquanto nos retirávamos.
— Cê num vai acreditar — disse Nalia —, o Zé já saiu do hospital. A febre cedeu
milagrosamente — completou.
Ao saber do resultado procurei o Curió para estimulá-lo a ir à igreja a fim de iniciar uma vida
de fé.
— Pô, cara, valeu. Mas pra mim esse negócio de crente num dá. Tua esperteza foi essa.
Agora tu tá numa boa. Bem casado, carro, casa, e gente que te respeita. Foi uma tremenda sacada.
Mas pra mim a esperteza tem que ser outra. Obrigado por me convidar, mas esse negócio de ficar
cantando Foi na Cruz, foi na Cruz que um dia eu vi meu Jesus morrendo por mim pecador num é
pra mim não, bicho. Obrigado, mas tô fora — disse Zé com uma ponta de gozação. Foi a última
vez que me lembro de tê-lo visto.
Fiquei muito triste com a reação dele ao toque do amor de Deus em sua vida. Mas respeito
gente que não faz trocas com Deus. Ou ele viria por amor e gratidão, ou jamais viria apenas por
medo. Aquilo era típico do Curió.
Capítulo 31

“Senhor, Deus da verdade, acaso, para Te agradar, basta ter conhecimento? Infeliz
do homem que, tendo conhecimento de todas as coisas, Te ignora; mas feliz de
quem Te conhece, mesmo que ignore todas as demais coisas. Quanto ao que é
cheio de conhecimento e ainda também Te conhece, não é mais feliz por causa de
sua ciência, mas só é feliz por Ti, se, conhecendo-Te, Te glorificar como Deus, e
Te der graças, e não se desvanecer em seus pensamentos.”

Santo Agostinho, Confissões

Dois meses depois da ordenação, eu estava em casa uma manhã, quando vi um homem
grandalhão entrando pelo portão.
— Irmão Caio. Eu tenho um convite a lhe fazer em nome do Instituto Lingüístico. O irmão
aceita ir pregar para a tribo dos yscarianas na fronteira do Amazonas com o Pará, no rio
Nhamundá? — foi logo falando com objetividade o missionário americano Pedro Peter, assim
chamado na intimidade pelos jovens de nossa igreja.
Fiquei tão entusiasmado com a idéia, que nem pedi tempo para pensar.
— Vou sim! Quando é? — foi só o que perguntei.
— Na semana que vem. E você vai ter que ficar lá uma semana. Tá bom? — ele indagou.
O problema é que Alda estava no final do sétimo mês de gravidez. Com os pais longe do
Brasil, o pai da Alda estava servindo como adido naval e aeronáutico em Portugal e na Espanha, a
minha ausência de casa a abalava profundamente. Assim mesmo eu disse ao missionário que iria.
— Mas logo agora, Caio! E se o menino nascer? Eu não estou me sentindo bem. Há uma
pressão muito forte na minha barriga — ela ponderou, enquanto eu simplificava tudo de um jeito
clássico e bem masculino.
— Não se preocupe, querida. Vai dar tudo certo.
Quando pousamos naquele aviãozinho Lake anfíbio bem no meio das águas do rio
Nhamundá, não fizemos isso sem risco. A clareira de árvores que dava acesso à flor d’água do rio
não era larga e, por isso, não permitia nenhuma margem de erro por parte do piloto. Mas Daniel,
o piloto adventista que nos levou até lá, parecia saber muito bem o que estava fazendo, e
conseguimos pousar sem problemas.
Uma canoa de casco de tronco de árvore veio nos buscar. A visão que tive, já desde o interior
do casquinho, vendo a multidão de índios na beira do rio, foi completamente única. Não sabia que
a somente duas horas e meia de avião de minha casa havia uma comunidade tão primitiva como
aquela. Minha sensação era a de que eu havia voltado no tempo ou mergulhado numa outra
dimensão da experiência humana.
Homens baixinhos, cuja nudez se disfarçava apenas atrás de pequenos panos de cor
vermelha, de cabelos muito escorridos e entrelaçados por longos caniços, saudavam-me numa
língua gutural, completamente estranha aos meus ouvidos. Crianças barrigudas e absolutamente
nuas, destemidamente se enroscavam em minhas pernas, que para elas eram extremamente
longas. Mulheres e mocinhas seminuas — com seus grandes e caídos seios, no caso das mães; ou
com seios fortes, firmes e bem-feitos, no caso das mais jovens — riam para mim, como se
tivessem acabado de ver um homem de outro planeta.
— Bem-vindo ao nosso meio, irmão Caio — disse Pedro Peter, que já havia morado na aldeia
mais de dois anos e agora estava de volta. — Esse aqui é Desmundo e essa dona Mary, sua esposa
— falou apontando na direção de um gringo com cara de inglês e sua esposa, baixinha, de rosto
bem redondo, porém bem europeu.
Já era meio-dia e a fome estava grande. Levaram-me para a maloca, onde eu dormiria em
companhia de pelo menos umas dez outras pessoas, e perguntaram se eu queria comer.
— O que vai ser? Uma galinhazinha piroca? — perguntei, apontando para uma ave de
pescoço pelado que comia farelos ali ao lado.
— Não! Galinha aqui é apenas para decoração de cabelos e roupas. O que nós temos para
comer é só beiju e vinho de açaí — falou a esposa de Pedro Peter.
Como eu gostava muito de ambas as coisas, comi até não poder mais. Depois, parei para ouvir
Desmundo contar a história daquela comunidade.
— Quando eu cheguei aqui, não sabia nada sobre os yscarianas. Vim apenas porque queria
aprender a língua deles e traduzir a Bíblia para o idioma. Quando chegamos, eles nos receberam
com tranqüilidade. Não sabíamos como nos comunicar, mas percebemos que eles eram
diferentes, nos traziam comida e riam muito para nós. Um dia, quando eu estava escovando os
dentes na beira do rio, um indiozinho veio e ficou bem ao meu lado, olhando-me enfiar aquela
escova na boca e mexer de um lado para o outro. Fiquei sem graça. Levantei, olhei para o rio e
decidi assobiar um hino. Aprontei o bico e soprei os sons de Santo, Santo, Santo, Deus onipotente.
De repente, percebi que o rapazinho estava assobiando comigo. Parei e olhei para ele, mas ele
continuou a assobiar sozinho. O índio sabia o hino todo e assobiou-o com um riso maroto no
canto da boca, enquanto eu arregalava os olhos.
— Mas como? Quem já tinha pregado o evangelho pra eles? Onde é que eles aprenderam
Santo, Santo, Santo? — perguntei curiosíssimo.
— Há uma tribo chamada uai-uai. Eles são das matas venezuelanas. Lá nas florestas onde
viviam, chegaram uns missionários e falaram sobre o evangelho com eles. A tribo inteira se
tornou cristã e eles decidiram que seriam os porta-vozes de Deus na floresta. Eles estão
percorrendo as matas pregando para outros índios — informou-me Desmundo, enquanto eu
quase não acreditava na beleza daquilo que ouvia.
— E a conversão dos yscarianas, como aconteceu? — indaguei com profunda ansiedade.
— Os uai-uai chegaram aqui perto, abriram uma clareira, acamparam e mandaram uma
comitiva até aqui. “Mandem alguns homens porque temos boas novas para vocês”, eles
mandaram dizer. Então, os yscarianas mandaram uma comitiva. Liderando o grupo foi o
feiticeiro da tribo, o sacerdote, o pajé. O nome dele é Araca. Lembra do homem de cabelo cortado
redondo em forma de cuia? Aquele que eu apresentei a você em primeiro lugar? Ele é o Araca.
Eles foram até lá e se sentaram com os líderes dos uai-uai. Ouviram sobre a visita do Filho de
Deus ao mundo. Disseram não saber que KorinKumam tinha um filho. Mas os uai-uai disseram
que Jesus era o filho de KorinKumam. Ouviram várias histórias de milagres do evangelho, todas
guardadas na memória dos uai-uai. Eles voltaram para casa e reuniram a tribo toda. Araca disse
que daquele dia em diante ele só faria orações a Jesus, o filho de KurinKumam. Muitos fizeram a
mesma coisa e a maioria da tribo se tornou cristã. Foi assim que tudo aconteceu — contou
Desmundo com um olhar puro, limpo, cheio de amor, o que fazia seus olhos crescerem enquanto
falava.
— Mas e você e sua esposa? Qual foi o papel que vocês tiveram nisso tudo? — perguntei,
querendo saber no que consistia a vida e a missão deles no lugar.
— Bem, eu não sou pastor e nem pregador. Sou antropólogo e lingüista. Mas antes de tudo,
eu sou cristão. Minha missão aqui foi aprender a língua deles, criar um alfabeto e ensiná-los a ler.
Fiquei quase sete anos fazendo isso. Enquanto esse trabalho era feito, eu traduzia trechos da
Bíblia para eles. Com a ajuda de Araca, traduzi o evangelho de Marcos, que é bem simples, o
evangelho de João, as cartas de São Paulo aos Romanos e a Timóteo, e as epístolas de São Pedro.
Eu dou o texto a eles e deixo que decidam que tipo de cristãos querem ser. Não estou tentando
impor nada — ele me disse com muita certeza de seus objetivos naquele particular.
— E que tipo de cristãos eles se tornaram? — indaguei com ansiedade e doido para ouvir
alguma coisa que reforçasse as minhas teses sobre o obsoletismo das formas de culto e prática da
Igreja atual, pois estava convicto de que muito do que a igreja pratica hoje não tem nada a ver com
a Bíblia. São apenas tradições, feitas sagradas. Só isso. — Mas sim, em que tipo de crentes eles se
tornaram? — insisti.
— Cristãos primitivos, quase como os do Novo Testamento. Só que são mais puros, pois
nunca foram judeus — disse brincando.
— Como assim? Na prática, como é isso? Por exemplo, como é que eles batizam, a quem
eles batizam e como é que eles dirigem a igreja? Eles têm pastor? Qual é a hierarquia que eles
têm, se é que têm alguma? E os líderes da tribo? São os mesmos da igreja? Há separação de
casais? E a vida sexual? Um homem pode ter mais de uma mulher? E os espíritos, eles ainda têm
algum vínculo com eles? — foram todas as questões que eu despejei sobre ele, excitado de tanta
curiosidade.
— Eles batizam dos dois modos: tanto por aspersão, jogando a água na cabeça, como fazem
os católicos, anglicanos e presbiterianos; como também batizam por imersão, mergulhando a
pessoa no rio Nhamundá. Depende do tempo. Quanto está frio, vai de um jeito, quando está
quente, vai do outro. Eles batizam os que se convertem. Mas às vezes, quando os pais pedem, eles
também batizam crianças. Eles também têm pastores; são oito. O Araca é o líder maior, mas eles
decidem tudo juntos. Quanto a casamento, não há separação aqui. Quando um homem não quer
mais sua mulher, ele não a deixa. Apenas não toca mais nela, mas cuida dela. Quem já tinha mais
de uma mulher quando se converteu, manteve todas. Os que estão se casando agora, depois que
se tornaram cristãos, estão sendo aconselhados a ter uma só. Mas quem quer, pode ter mais de
uma, só não pode é ser líder da igreja. Os pastores têm que ser maridos de uma só mulher, como
eles leram na carta de São Paulo. Mas não pode haver adultério. Se um homem quer ter outra
mulher, não deve nunca ser uma já casada. Tem que ser solteira, e a esposa dele tem que
consentir.
Eu fiquei perplexo com tudo aquilo. De fato, jamais pensara que na vida eu fosse ser
apresentado a um quadro tão fantasticamente original quanto aquele.
— Mas e você, Desmundo, você não tenta passar para eles coisas que você pratica e crê? —
perguntei, achando quase impossível que pudesse ser diferente.
— Não. Eu não digo nada, a menos que me perguntem. Mas quando eles me perguntam
algo, eu sempre respondo que aquilo é apenas a minha opinião — afirmou.
— Mas e se você vê na Bíblia um mandamento claro a respeito daquilo? O que você diz? Você
diz o que consta na Bíblia? — questionei com a decisão de quem estava acostumado a dizer como
as pessoas deviam viver.
— Não, eu não os mando fazer nada, mesmo quando tenho opiniões bem claras sobre o
assunto. Eu apenas mostro o que está escrito na Bíblia e digo para eles irem pensar e orar juntos.
Às vezes eles voltam com a mesma opinião que eu tenho. Outras vezes, não — concluiu com um
certo orgulho de seu método cientificamente tão “isento e democrático”.
— Mas Desmundo, por que é que você faz assim? Se você sabe a verdade, você tem que
passar para eles! — falei um pouco impaciente.
— Mas o que é a verdade? O que eu vejo como verdade, outro pode ver de modo diferente.
Uma coisa que eu aprendi nos estudos, mas muito mais no convívio com os índios, é como eu
estou completamente condicionado a ver a vida como inglês. Por mais que eu queira ser isento na
minha leitura da Bíblia, eu não consigo. Eu sempre leio a Bíblia com o olhar de minha família,
criação e cultura nacional e religiosa. Então, como eu vou saber se eu estou lendo de fato a Bíblia
ou apenas vendo coisas com meus olhos europeus? — falou, dando-me de graça uma fantástica
aula de antropologia missionária.
— Voltando ao assunto. E os poderes? Igreja e tribo são a mesma coisa? — indaguei,
desejoso de saber mais sobre aqueles fascinantes seres humanos, que também eram meus
irmãos na fé.
— Deixa eu dar um exemplo de como as coisas funcionam aqui. O cacique, o líder político da
nação yscariana, fez algo errado. Em vez de pedir para desposar uma outra esposa, ele foi lá e
simplesmente pegou a menina e levou-a. Os pais dela eram da igreja. O cacique também. Então,
o assunto foi levado ao Araca e aos outros pastores. Eles decidiram afastar o cacique da comunhão
da igreja por má conduta. Passaram a ordem no domingo de culto e informaram ao chefe que ele
estava excluído até se arrepender. No momento, o cacique está fora da igreja há mais de um ano.
Mas do lado de fora da igreja, todos o tratam como chefe. Até os pastores. Mas ele também trata
os pastores como autoridades espirituais da igreja. As coisas estão bem separadas aqui. Às vezes
eu acho que os líderes da Igreja da Inglaterra deviam vir aqui ver como as coisas têm de ser entre
Igreja e Estado — encerrou Desmundo, dando-me de graça mais uma aula preciosa.
Os dias transcorreram como num sonho entre os yscarianas. De manhã cedo eu andava pela
tribo com as crianças. Almoçava com os missionários e andava de canoa à tarde, conhecendo as
corredeiras do rio Nhamundá. Ao fim da tarde, ia para a praça de chão batido, no meio da aldeia,
onde os líderes liam as Escrituras e discutiam teologia ao modo deles. À noite nós comíamos
juntos e depois líamos a Bíblia, cantávamos e orávamos. Aí então, ouvíamos histórias da mata e da
vida entre eles; todas me eram traduzidas por um índio que sabia português e que evocara um
nome brasileiro para si pelo fato de saber falar a língua do Brasil. “Meu nome é Manoel”, dizia ele
de modo bem explicado, quase soletrando as palavras.
Em algumas daquelas tardes, ajudei Pedro Peter a tratar dos dentes e a dar óculos para os
índios que não enxergavam quase nada. Era uma festa. Com uma multidão esperando à porta da
maloca, quando alguém saía lá de dentro com óculos na cara a moçada rolava no chão de tanto rir.
O bom humor deles me impressionou imensamente.
Na sexta-feira à tarde, fui passear de canoa com um indiozinho de uns doze anos. O moleque
era esperto e gostava de me provocar. Às vezes ele balançava a canoa no meio do rio e ameaçava
fazê-la virar comigo. “Pára com isso. Num faz isso, não”, eu gritava, enquanto ele morria de dar
risada. Ao longe, na beira do rio, a cerca de 150 metros de distância de onde estávamos, os líderes
da igreja riam de mim. Era uma delícia. Mas foi naquele mesmo dia, depois que o garoto curtiu
com a minha cara o quanto quis, que eu aprendi dele algo que marcou minha vida para sempre.
Eu comecei a cantar um hino cristão enquanto remávamos e, quando parei, o garoto começou:
O xim xam xam Nairamam KorinKomam!
O xim xam xam Nairamam KorinKomam!
O xim xam xam, Korikorinramam!

Obviamente o que acabei de fazer foi uma transliteração fonética da música. Eu não sei
escrever em yscariana, mas sei como a canção soou em minha alma desde aquele dia.
Fiz o garoto repetir umas vinte vezes o hino até que eu conseguisse gravá-lo em minha
péssima memória para música. Quando voltamos à aldeia, fui logo cantando o hino. Onde eu
passava cantarolando a música, as pessoas riam orgulhosas, como se no seu indigenismo tivessem
me conquistado tão rapidamente. Cantei também para Pedro Peter e perguntei pelo significado
daquelas palavras.

Deus é bom, Deus é bom!


Desde o nascer do sol até ao pôr-do-sol!
Deus é bom e cheio de misericórdia!

A canção inundou minha alma para sempre. Ainda hoje, quando preciso de paz e serenidade,
muitas vezes ouço a voz doce daquele garoto, embalando esta canção na proa de uma canoa
imaginária, na cadência de seu remar melódico, enquanto a brisa, com cheiro de mato e de vida,
embrenha-se em meu interior.
No sábado à tarde eu estava na beira do rio com Desmundo quando ele me mostrou duas
canoas que remavam contra a correnteza, subindo o rio.
— São os uai-uai. Eles mandaram uma comitiva para representá-los na grande festa de
amanhã — disse.
No dia seguinte, a tribo toda se reuniria para receber formalmente o Novo Testamento
completo, escrito em yscariana. Seria o coroamento dos 14 anos de trabalho de Desmundo e dona
Mary ali entre eles.
As pessoas da primeira canoa saíram e foram logo pondo o rosto em terra e chorando. A
seguir, todos estavam chorando, muitos com a cara no chão.
— O que é isso Desmundo? O que aconteceu? É alguma coisa ruim? — perguntei meio
assustado com a cena.
Parecia algo oriental, dos tempos bíblicos. Era como se ali, bem diante de meus olhos,
estivesse acontecendo uma sessão de pranto comunitário, conforme as melhores descrições do
Velho Testamento.
— O que eles estão dizendo é que uma irmã dos uai-uai que viria à festa de amanhã pisou
num poraquê, o peixe elétrico, tomando banho na beira do rio e morreu. Ela estava grávida, por
isso também estava muito pesada. Quando recebeu a carga elétrica, caiu desmaiada e se afogou.
Foi isso que aconteceu — ele explicou num inglês meticuloso, mas com profundo pesar.
O resto do dia o assunto foi aquele. Naquela noite a tribo silenciou muito cedo. Logo todos
estavam dormindo, exceto eu, que saí da maloca e fiquei olhando a imensidão daquele céu,
chocado com minha insignificância humana. “Meu Deus, como é possível que eu tenha vivido o
tempo todo no mesmo mundo que esses irmãos, sem ter a menor idéia de que eles existiam e de
que se tornariam, tão rapidamente, tão especiais para mim?”, falei com Deus e não esperei ouvir
nenhuma resposta.
Quando o domingo chegou, ouvi chifres sendo tocados pouco antes das sete da manhã. Saltei
da rede onde dormia e corri para fora. As malocas estavam sendo abertas e delas saíam mulheres
vestidas de saia vermelha e usando penas de galinha na cabeça, com seus filhos pendurados em
suportes de palha na parte lateral de suas costas. Elas andavam rápido, balançando os seios nus.
As crianças corriam euforicamente, como se estivessem indo ao melhor lugar deste planeta. E os
homens pareciam lordes ingleses. Com a cabeça completamente branca de penas de pintinhos
coladas ao cabelo com óleo de madeira, ostentavam algum tipo de aparato especial. Podia ser uma
sandália de borracha que a FUNAI lhes dera, uma camisa branca ou um prendedor especial de
cabelo. Calças, só alguns deles tinham. A maioria vestia tanga ou pequenos calções. E o som do
chifre não parava de convocá-los ao lugar central da aldeia.
O templo para o qual todos nós nos dirigimos era uma obra de arte indígena. Todo feito de
troncos e galhos de árvores, era redondo e mantinha-se solidamente construído, uma vez que
todas as suas intercessões eram amarradas com cipó. Os bancos eram de madeira roliça,
amarradas umas às outras nas extremidades, também com cipó. Ali não havia um único prego. Na
direção para a qual todos os bancos estavam arrumados e bem fincados no chão, havia uma mesa
de troncos. Atrás dela também havia bancos para cerca de dez pessoas se sentarem.
O culto começou sem nenhum sinal especial. O Araca leu um texto bíblico e alguém iniciou
espontaneamente o hino. Depois outra pessoa leu mais uma passagem das Escrituras. E mais
hinos puxados ao sabor da poesia das almas que ali se reuniam. Eles fizeram isso por quase duas
horas, sem direção e sem interrupção. Depois o Araca perguntou quem tinha alguma palavra de
testemunho de fé a dar. Vários levantaram as mãos e todos falaram, um de cada vez. Por fim, o
cacique pediu a palavra. Araca chamou-o e perguntou do que se tratava. Ouviu a explicação e só
depois disso passou a palavra ao governador local.
— É que eu pequei e quero pedir perdão à Igreja. Eu dei mal exemplo como crente de
KorinKomam e como cacique. Quero saber se posso ser perdoado? — ele falou, enquanto
Manoel traduzia para mim.
Os oito pastores conversaram rapidamente, e então Araca se levantou.
— Você é nosso líder e nós respeitamos você. Mas o que você fez foi errado. Se você está
arrependido, nós perdoamos. Agora, não pode mais fazer assim. Pode voltar à Igreja. Hoje
também pode tomar a comida de Cristo — disse o pastor com meiguice e autoridade.
Ao meio-dia eles introduziram os elementos da Eucaristia: beiju de mandioca com
castanha-do-pará e vinho de bacaba. Era o mais fascinante serviço eucarístico que eu já vira na
vida. Os cálices nos quais o vinho era servido, feitos da casca seca de uma fruta local que os
amazonenses chamam de cuia, não eram mais do que uns seis. Nós, entretanto, éramos quase
quatrocentos. Assim, fiquei feliz por ser o oitavo a receber o cálice, pois ainda deu para achar uma
ponta que não tivesse sido bicada. Olhei para trás e imaginei como aquele caldo estaria quando a
cuia chegasse lá atrás.
Somente às 13 horas eles me passaram a palavra. Abri o livro do Apocalipse e li:
“Digno és de tomar o Livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com teu sangue
compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os
constituíste reino e sacerdotes; e reinarão para sempre.”
Meu intérprete estava vestindo uma camisa branca de babados, novinha, que eu lhe dera. Eu
jamais vestira aquela camisa, mas quando ele a viu, seus olhos brilharam. “Você quer?”,
perguntei. Ele nem respondeu, foi logo estendendo a mão e pegando. E quando eu o vi de peito
inchado ali ao meu lado, percebi que, para ele, aquele momento era história pura. Talvez aquilo
fosse o equivalente à posse de um presidente da República, para nós. O fato é que Manoel não se
continha de felicidade por estar me interpretando justamente na hora em que o Livro iria ser
aberto. Peguei o Livro Vermelho, que era o Novo Testamento em yscariana, e disse:
— O filho de KurinKumam veio a este mundo para nos livrar de todas as coisas que nos
prendiam. Especialmente as forças espirituais que nos amedrontavam. Essa visita de Jesus
beneficiou gente de todas as terras. Alcançou a mim, que vivia correndo por causa do pecado e da
morte que me perseguiam. E alcançou vocês aqui, que antes viviam com medo de tudo: da noite,
dos espíritos e das forças da natureza. Agora, todos nós estamos livres para amar uns aos outros e
amar a Deus e a Sua criação. Agora nós somos propriedade exclusiva de Deus e somos os seus
sacerdotes neste mundo. Todos nós somos Aracas de Jesus. Todos nós podemos falar com Ele e
ser ouvidos — e prossegui por cerca de vinte minutos.
Como a tradução era demorada — pois o yscariana é uma língua de palavras longas, bem
maiores que o português — às vezes eu falava dez segundos e ficava esperando vinte até Manoel
chegar ao fim da tradução. E como tinha — e tenho — pavor de ser inconveniente e cansativo,
reduzi minha fala ao mínimo. Quando terminei, pedi para orar e ofereci aquele Livro Vermelho a
Deus, pedindo que ele fosse sempre a estrela dos yscarianas. Pedi ainda que, à semelhança dos
uai-uai, eles também se tornassem anjos da floresta.
Araca encerrou o culto e todos voltaram para suas malocas, cada um com um exemplar do
Novo Testamento Vermelho nas mãos. Ele, então, me convidou para almoçar com os anciãos da
igreja. Atravessamos toda a aldeia e chegamos a um lugar espaçoso, de chão batido, coberto de
palha seca e à volta do qual havia muitos cascos de tartaruga. O lugar parecia uma sala de
convenções, uma espécie de Salão Oval ou coisa do tipo. Araca me indicou um dos cascos de
tartaruga e eu sentei. O ambiente era solene, porém alegre. A seguir, vi que as mulheres
começaram a trazer umas bacias naturais cheias de carne e outras cheias de beiju.
— Irmão Pedro Peter, o que é aquilo? Que carne é aquela? — perguntei a ele, que estava
sentado num casco grande de tartaruga, do outro lado da sala, bem na minha frente.
— É carne de cuatá! — falou com simplicidade.
— Carne de quê? — insisti.
— Carne de macaco cuatá. Sabe o cuatá? Aquele macaco grande, assim do tamanho de um
menino de uns seis ou sete anos? — disse Pedro Peter, e eu quase vomitei.
— Ih, meu Deus, o negócio aqui num tá fácil. Como é que eu vou comer carne de macaco
que parece menino de seis anos? Assim num dá — falei mais comigo mesmo que com Deus, é
claro.
Araca levantou e me chamou para acompanhá-lo na direção do cuatá. Pedro Peter fez sinal
com os olhos para eu ir. Ergui-me vacilantemente e andei até lá. Meu estômago embrulhou.
Araca pegou um pedaço mais escuro de carne e me deu. Vi que ali ao lado havia uma cuia com sal.
Peguei a carne e taquei sal nela. Depois, mais que relutantemente, coloquei um pedaço na boca,
enquanto Araca esperava eu provar.
— Hum! Que bom! Maravilha! — exclamei.
Meu rosto mudou e minha atitude também. O tal do cuatá era uma delícia. Comi até não
poder mais. Além disso, aquele era o primeiro pedaço de carne que eu comia aquela semana. Só
parei de comer quando percebi que o sal da cuia já estava úmido de saliva, pois todos os que se
serviam ficavam voltando à cuia para salgar um pouco mais a sua carne. Para mim já era demais.
Naquele mesmo dia eu voltaria para Manaus. Pedi para ser o último a sair dali. Dois pilotos se
alternaram pegando os que iriam para Manaus. Ao todo, éramos sete: Desmundo, dona Rosa,
Pedro Peter e esposa, um outro casal de missionários e eu. Deixar os yscarianas foi um parto para
a alma. Meu medo era o de não voltar mais a vê-los neste mundo.
Capítulo 32

“A tempestade cai sobre os navegantes e ameaça tragá-los. Todos empalidecem


diante da morte que os espera. O céu e o mar se acalmam, e o excesso da alegria
que nasce em seus corações é exatamente proporcional ao excesso de seu medo na
hora da tormenta.”

Santo Agostinho, Confissões

Conforme havia solicitado, fui o último a ser retirado da aldeia. A tribo toda foi para a beira
do rio para se despedir de mim. Chorei muito, beijei a todos os que pude e disse que jamais me
esqueceria de seus rostos para o resto de minha existência. Enquanto Manoel remava o
casquinho até ao fragilíssimo monomotor que viera me buscar, mantive meus olhos fixos na
paisagem que ficava para trás. Tinha a esperança de um dia voltar ali, mas também tinha a
suspeita de que talvez jamais conseguisse retornar. Acenei uma última vez e entrei no
apertadíssimo avião.
— Boa tarde, pastor. Meu nome é George — disse o piloto, homem de uns sessenta anos e
com um pesadíssimo sotaque de americano que não se esforça o suficiente para falar português.
— Quanto tempo vai levar daqui a Manaus? — perguntei, pois sabia que num avião daquele o
tempo e o vento têm importância fundamental.
— Ah, umas duas horas e meia, no máximo — ele respondeu.
A decolagem de dentro do rio Nhamundá foi um susto, pois pegamos um vento de proa e a
velocidade do aparelho diminuiu. Subimos, mas passamos raspando na copa de uma enorme
castanheira.
— Ê, ê! Esse negócio sempre sobe assim mesmo, George? — indaguei assustado.
— Não. Foi porque a gente quase não conseguiu — ele respondeu friamente, como se a
possibilidade de nós não termos conseguido fosse significar qualquer coisa menos banal que a
morte.
“Esse George é esquisito”, pensei.
Dez minutos depois de estarmos voando, entramos numa nuvem escura. O avião subiu,
desceu, sacudiu e começou a tremer sem parar. Em seguida, caiu um pé d’água sobre nós como
eu jamais vira antes. Foi esquentando. Comecei a suar. Alaguei meu tênis e encharquei a calça.
Foi quando vi que na janela havia uma tampinha de vidro, bem redonda, que estava ali para casos
como aquele: permitir a entrada de vento quando uma tempestade impedisse o piloto de abrir
mais as entradas de ar. Rodei aquela tampinha e enfiei o nariz ali. Que alívio.
A tempestade, entretanto, não aliviava. Os balanços e as trepidações pareciam se agravar.
Olhei para George e vi que estava completamente pálido. Nós, àquela altura, já estávamos voando
a uns 25 minutos.
— George, está tudo bem? — perguntei querendo ouvir alguma coisa boa.
— Bem? Como é que pode estar bem? Não vejo nada, não sei para onde estamos indo e não
tenho como saber. A melhor coisa que você faz é pedir a Deus para salvar a gente! — ele falou
com um misto de raiva e medo.
— Mas como? Que negócio é esse de “não sei para onde estamos indo”? Você tem que saber!
— cobrei irritado.
— Mas não sei. Conheço essa floresta como a palma de minha mão direita. Mas eu tenho que
ver para onde estamos indo. Sem ver, não dá — repetiu.
— E os aparelhos, bússola e as outras coisas? — indaguei.
— Que bússola, que nada! Aqui num tem nada disso. É tudo no olho — falou, olhando-me
com extrema seriedade.
— Mas então como é que você saiu de lá? Eu vi que o tempo estava fechando. Se eu soubesse
que você voava no olho, não teria saído de lá de jeito nenhum — afirmei, começando a sentir uma
angústia fina gelar meu estômago. — E agora, George?
— Agora, meu amigo, só Deus pra nos tirar daqui. Eu nunca vi uma cena como essa, nem
quando bombardeei Berlim — ele respondeu.
Quando eu ouvi aquele negócio dele ter sentido menos medo bombardeando Berlim que ali
na floresta, eu realmente me apavorei.
— Meu Deus, a gente vai morrer aqui! — falei baixinho.
Enquanto isso, a tormenta piorava. O pobre aparelho parecia uma pena soprada por um
ventilador superpotente. Nós não tínhamos a menor chance. Depois de voarmos cerca de vinte
minutos no escuro, o céu abriu por não mais do que um minuto, mas por tempo suficiente para o
danado do George descobrir onde estávamos.
— Sei onde estamos. Manaus está para aquela direção — disse ele.
Aí, então, entramos em outra interminável nuvem negra, carregada de eletricidade. Os
trovões estouravam na cara da gente e os relâmpagos pareciam ser acesos bem nos nossos olhos.
Além disso, o barulho de tanta água caindo sobre nós era apavorante. Eu encostei a cabeça no
vidro e orei incessantemente.
“Senhor, eu só tenho 23 anos. Tenho esposa, um filhinho e outro a caminho. Por favor, não
me deixa morrer sem conhecer meu segundo filho. Também, eu Te peço: deixa-me viver mais,
pois ainda tenho muito para fazer. Fica com a gente aqui, Jesus”, pedi com fervor e pavor.
A viagem durou mais de três horas. Durante todo o tempo sofremos aquele pânico horroroso.
Graças a Deus, entretanto, George era muito bom de ar. Conhecia tudo na região. O que nos
salvou foi que as nuvens se abriram rapidamente três vezes, embora nunca por períodos mais
longos do que dois minutos, mas por tempo suficiente para o americano encontrar o rumo de
Manaus.
— A cidade está a vinte minutos daqui. Aquele ali já é o rio Urubu — falou George
subitamente, enquanto me olhava com mais esperança.
Quando o céu se abriu outra vez, já estávamos sobre o rio Negro, bem em frente a Manaus.
George deu um tapa no painel e disse algo que não entendi. Pousamos e apertamos a mão um do
outro.
— Olha, eu já vi coisa preta nesse mundo. Mas nunca vi nada tão feio como a tempestade de
hoje. Escapamos por pouco, graças Deus — disse George ainda nervoso e com lágrimas nos
olhos.
— É, tudo o que eu quero agora é voltar para casa. E pensar que a gente quase não volta.
Obrigado, Jesus — falei, olhando para George.
— Eu já estava que não agüentava mais — disse Alda. — Estou sentindo um peso horrível.
Meu medo era que o menino nascesse e você não estivesse aqui.
Deixei que ela falasse tudo o que estava sentindo e depois contei minhas experiências
mágicas entre os yscarianas. Papai e mamãe também se deleitaram ouvindo as minhas histórias
sobre a tribo.
— Que coisa, meu filho, do jeito que você está falando parece até que você ficou muitos anos
com eles — disse mamãe.
O que eles não sabiam, e àquela altura eu também não, é que aquela semana alteraria
dramaticamente minha visão daquilo que é essencial e genuíno no evangelho em relação a
inúmeras imposições da religião e que não têm nada a ver com a fé.
— É, sim, mãe. Eu me sinto como se, de alguma forma, eu tivesse vivido muito tempo entre
eles. De algum modo eu sei que não sou mais o mesmo em muitas áreas da minha vida. Aqueles
índios vão viver em mim para sempre — falei com uma certa emoção.

— Caio, me ajuda. A bolsa d’água estourou. O que eu faço? — Alda exclamou, assustada, às
quatro da manhã do dia seguinte à minha chegada da tribo. Saí de casa correndo e fui acordar
uma parteira que morava a uns quinhentos metros de nossa residência. Quando ela examinou
Alda, foi logo mandando ir buscar uma bacia, toalhas, gaze e outras coisas. Aí me apavorei. Eu
queria apenas que ela me dissesse se dava tempo de correr para o hospital, não que Alda tivesse o
filho em casa. Era muito arriscado.
— Joede, a Aldinha está em trabalho de parto. Estou com dona Maria, a parteira lá da igreja,
aqui com a gente. O que devo fazer? Deixo nascer aqui ou levo para o hospital? — perguntei
nervoso ao telefone, acordando nosso médico às quatro e meia da manhã.
— Saia daí correndo agora mesmo. Encontro vocês no hospital em 15 minutos — disse ele, já
batendo o telefone.
Quando chegamos, uma maca já esperava por Alda e levaram-na imediatamente. Cinco
minutos depois, vi uma enfermeira saindo da mesma sala com uma coisinha branquinha e
pequenininha como um bonequinho.
— De quem é esse neném? É homem ou mulher? — indaguei. Mas a mulher não me deu
resposta. Olhou-me com aquele estranho ar de reprimenda que às vezes as enfermeiras
possuem, e entrou no berçário. — Joede, nasceu? — perguntei tão logo ele meteu o rosto para
fora da sala.
— Você não viu? Acabou de passar aqui. É homem. Todo ruivo. É comprido, mas bem
magrinho. Também, prematuro de oito meses! — disse contente.
Quando vi o menino já devidamente lavado, eu me assustei. Ele era tão ruivo e branco, que
pensei tivessem trocado meu filho por outro ali no hospital. Depois, com calma, é que fui vendo
como ele reunira as duas linhas européias de nossa ascendência. O lado de vovó Zezé, com seus
ancestrais franceses, e a linhagem absolutamente européia de Alda, com avós alemães e
portugueses, todos muito brancos e loiros. No dia seguinte, quando saí do hospital carregando o
ruivinho, já havíamos decidido que ele seria Davi, como o da Bíblia, pois a semelhança no biótipo
dos dois era óbvia.

— Pega esse menino que ele vai explodir de vermelho — gritei para Alda. Assim que os
primeiros raios de sol caíram sobre ele, a impressão que tive foi a de que ele estouraria. Foi
ficando vermelho com tamanha rapidez, que parecia que algo estava errado.
— Fica calmo, é que gente branca demais é assim mesmo — disse Alda do alto de sua vasta
experiência com sua própria brancura.
Davi era um santo. Não dava trabalho e dormia o tempo todo. Diferentemente de Ciro, que
com apenas 11 meses me dava uma canseira profunda. Não parava e mostrava-se tão irrequieto,
que às vezes eu pensava que ele tinha alguma coisa fora do lugar. Até ali, entretanto, nossa
família, já de quatro pessoas, vivia socada no mesmo quartinho que abrigara Alda e eu desde o
início. Só que agora, além de nós quatro, ainda havia minha biblioteca, de quase mil livros, e mais
berços, cama de casal, aparelho de som, uma mesa para escrever, penteadeira e um monte de
outras bugigangas. Tudo isso em, no máximo, vinte metros quadrados de área.
No início de maio de 1977 recebemos um telegrama dos pais de Alda nos convidando para
irmos à Europa visitá-los. “Não agüentamos mais ficar sem nossos netos”, dizia a mensagem. Em
seguida, eles nos mandaram o dinheiro das passagens. Partimos para Portugal. Na chegada
ficamos surpresos com as mordomias que o governo brasileiro concedia aos seus representantes
no exterior. Sabíamos que existiam vantagens, mas não imaginávamos que fossem tantas. Só que
em Portugal, em 1977, as facilidades eram ainda maiores, pois com a revolução socialista em
Angola e Moçambique, milhares de “retornados” africanos de língua portuguesa invadiram a
terrinha. E uma das conseqüências dessa situação foi que muitos deles, no desespero de
encontrar onde morar e não achando pousada, emprego ou vínculos, acabavam invadindo
casarões ou castelos que serviam como segunda ou terceira residência para a aristocracia
lusitana, tomando-os e, muitas vezes, vilipendiando-os.
Meus sogros estavam vivendo em Sintra, paraíso histórico nas montanhas, a apenas trinta
minutos de Lisboa. A residência onde se instalaram era a Casa dos Penedos, uma mansão de uma
senhora riquíssima, que, tendo moradia fixa numa casa maravilhosa na capital, se dava ao luxo de
possuir uma outra igualmente extraordinária entre a serra da Estrela, ao norte, e a maravilha de
Sintra, a qual usava como residência de verão. Ficamos estupefatos com o luxo, a arte, a grandeza
e o bom gosto que definiam a casa, bem como com a paisagem lindíssima de toda aquela região.
Dos janelões da Casa dos Penedos via-se o Palácio da Vila, com suas torres em forma de
grandes Fantas. Ao redor deste, havia uma quantidade enorme de casas e pequenos palácios,
todos plenos de detalhes artísticos. Olhando-se à esquerda dos mesmos janelões, era possível
avistar as torres do Palácio da Pena Verde, lugar belíssimo e considerado mal-assombrado pelos
moradores da região, vez que, inexplicavelmente, sobre ele caíam pedras abrasadas, vindas do
céu. De lá também se via a torre dos Sete Ais e o horizonte infindável do oceano Atlântico. Nos
fundos da casa, erguia-se uma montanha de aparência medieval, cheia de árvores antigas, de
cujos galhos derramavam-se teias vegetais finas e bem decoradas. A tonalidade das folhas era
belíssima. Tantos eram os tons, que para um amazonense acostumado apenas a variações do
verde, aquilo parecia uma experiência alucinógena, de matizes surrealistas.
No topo da montanha, dois castelos erguiam-se imponentíssimos. As ruínas dos Mouros,
com seus muros de pedras brutas, desenhavam os contornos da montanha, prosseguindo
ondulantemente à medida que a topografia subia e descia. E um pouco à direita, acima dos
Mouros, projetava-se, de modo sobranceiro e cheio de realeza, o Palácio Nacional da Pena. Este
sim, era algo deslumbrante e capaz de fazer a alma apaixonada pela história viajar para dias em
que os mares ainda eram habitados por dragões, a terra era plana, o horizonte terminava num
abismo e o nosso planeta era o centro do universo, exceto para uns poucos seres humanos que
ousaram enfrentar o papa, a Igreja, a ciência e os bons costumes, a fim de crer e viver de outro
modo.
Os primeiros 15 dias ali foram de total deslumbramento para nós. Visitamos todos aqueles
castelos e nos metemos em cada lugarzinho pitoresco da vila. À tarde, descíamos dos penedos
pelas vielas de chão de paralelepípedo liso, que serpenteavam românticas entre casas estreitinhas
e coladas umas às outras, quase todas pintadas de cor-de-rosa, e íamos até a Periquita, uma casa
de chás e doces que se espremia, quase na parte plana da vila, entre outras pequenas lojinhas.
Que doces saborosos e que gente fina e boa encontrávamos ali, naquele tempo bem anterior à
invasão de brasileiros que saturou os portugueses em relação a nós. Naqueles dias, entretanto, os
brasucas, como nos chamavam, eram vistos como primos prósperos e bem-sucedidos, olhados
com orgulho pela nostálgica e deprimida alma portuguesa. Com a novela Gabriela cravo e canela
sendo exibida por lá, os encantos do Brasil estavam exercendo seus dias de mais profunda e
fascinante sedução sobre os lusitanos.
Ao fim da primeira quinzena, disse aos meus sogros que iríamos deixar as crianças com eles
para irmos a Israel, visitar a terra da Bíblia e conhecer in loco a geografia e a história do livro que
me dominara o ser com sua mensagem. O pai de Alda contestou nossa opção, disse que nunca
perderia seu tempo numa terra daquelas, cheia de deserto, guerra e pobreza, e nos ofereceu uma
viagem para Paris. Mas como visse que nós estávamos irredutíveis, calou, e no dia seguinte nos
trouxe duas passagens Lisboa—Tel Aviv, no vôo inaugural da ElLal, companhia israelense. Era
setembro de 1977 quando nossos pés tocaram o chão da Palestina pela primeira vez.
Enchi o peito de ar e cheirei a Terra Santa. Havia um forte odor de óleo e combustível de
avião, pois, afinal, ainda estávamos na pista do aeroporto Ben Gurion. Mas meu olfato discerniu
cheiros que eu nunca havia sentido antes. Como não estávamos numa excursão turística, tivemos
de nos virar, às duas da madrugada, para encontrar onde dormir ou, pelo menos, passar a noite.
— Já que estamos aqui, vamos direto para Jerusalém — disse para Alda.
Pegamos um táxi Mercedes, de três fileiras de assentos, e dividimos a corrida com dois
árabes e duas freirinhas, vestidas de hábito branco, que estavam indo para um mosteiro no Monte
Sião. Para mim, que crera em Cristo lá no meio da floresta do Amazonas, a mera menção de que
elas iriam passar a noite naquele monte de tantas menções na Bíblia e de simbolismo espiritual
tão forte arrepiou-me todo.
Fiz questão de sair do carro quando elas desceram do táxi no Monte Sião. Parei em silêncio e
inspirei aquele cheiro de ciprestes e pinhais. O aroma da terra, do chão, também era diferente.
Havia um certo cheiro de poeira do deserto em volta de nós. Depois desse culto olfativo,
continuamos nossa busca de um hotel. Estavam todos cheios. Rodamos até às quatro da manhã,
até que encontramos uma espelunca que nos acolheu.
No dia seguinte pulamos da cama cedo e saímos como loucos e famintos, tentando comer as
páginas da Bíblia como se elas fossem pão e estivessem derramadas pelo chão de Jerusalém. Que
viagem! Que sensação!
Passamos quinze dias em Israel, nos misturamos ao povo e fomos de ônibus para todos os
lugares. Na nossa inocência e sem assistência turística de qualquer espécie, abríamos a Bíblia e o
mapa de manhã cedo e decidíamos o que iríamos visitar naquele dia. Sendo assim, íamos aonde o
coração mandasse, mesmo que a área fosse considerada perigosa. E como não falávamos quase
nenhum inglês naquele tempo, nós simplesmente íamos, e pronto. Pegávamos um ônibus cheio
de palestinos e agüentávamos o sufoco, especialmente quando o lugar em questão não era
permitido para turistas comuns. Só fomos perceber a extensão de nossa aventura quando
encontramos com grupos de brasileiros que tinham guias israelenses, lhes contamos onde
havíamos estado e percebemos seu ar de profunda preocupação. Mas não fazia mal. Nós
estávamos nos sentindo em casa com os palestinos. Nunca nos molestaram e nem tentaram nos
intimidar. Fizeram apenas o possível para nos roubar numa boa, oferecendo-nos negócios por
preços altíssimos e depois barganhando conosco até o nível do irrisório. Era a melhor parte da
viagem, no seu aspecto não-religioso.
Naquela viagem eu não me dei tão bem com os judeus. Como bom evangélico, eu tinha sido
doutrinado a venerar judeu. Eles eram a raça eleita, o povo escolhido, os descendentes dos
patriarcas, os escritores da Bíblia, os irmãos raciais de Jesus e os gênios do mundo. Pensei assim
até que, numa certa manhã em Jerusalém, um desses filhos de Abraão acabou com minha poesia.
Ora, Alda e eu estávamos indo da Cidade Velha para a Cidade Nova e pegamos um ônibus de
judeus. O veículo estava completamente lotado. Vagou um assento, e Alda sentou. Quando vagou
o próximo, foi a minha vez. Pedi licença em inglês e me espremi ao lado de uma figura religiosa
masculina, toda vestida com um fraque preto. Sobre a cabeça, uma cartola e, debaixo desta,
cachinhos de cabelo loiro, que escorriam por suas têmporas. A barba era imensa e tinha as
extremidades esfiapadas, parecendo que não eram aparadas havia tempo. Percebendo que ele
queria ficar no corredor, estiquei as pernas e consegui passar, sentando-me à janela, ao lado do
religioso. Sorri para ele umas três vezes, mas nada. O judeu me olhava fixamente, quase me
fuzilando com os olhos. “Ele deve estar pensando: ‘o que esse gentio esquisito está fazendo
sentado aqui ao lado de um legítimo filho de Abraão’, afinal, esta é a terra deles”, falei comigo
mesmo, me sentindo quase na obrigação de achar explicação para a atitude mal-encarada daquele
fariseu.
Bum, bum, traack, pruuu, foi o que ouvi, enquanto o homem me olhava fixamente e mantinha
a banda esquerda de sua nádega erguida uns quatro centímetros do assento, a fim de poder
disparar melhor os seus mais letais puns contra a minha pessoa. Não acreditei. De repente, o gás
subiu com todo o seu veneno e corruptibilidade. Fedia como jamais imaginara que um filho de
Abraão fosse capaz de fazê-lo feder. Tentei abrir a janela, mas estava emperrada.
— Alda — falei entre os dentes sem olhar para ela —, esse cara aqui está podre e quer me
humilhar. Tá soltando pum aqui e fica olhando pra mim. Dá pra acreditar? — e ela, ao ouvir a
história, ficou roxa de tanto rir ante o insólito da situação.
Bem ali, no meio do bairro judeu de Jerusalém, a mística dos filhos de Jacó acabou para mim.
Daquele dia em diante, eu veria Israel como uma nação única na história, mas o judeu, enquanto
indivíduo, apenas como um ser capaz de soltar os piores puns do mundo, como qualquer outro
mortal. A minha decepção foi muito maior do que a daquele caboclo que flagrou meu avô João
Fábio soltando aquele monumental pum no porão de sua casa. “E judeu também peida?”, era
minha questão existencial mais profunda naquele momento. A partir daquele dia, passei a assistir
ao Woody Allen, procurando uma resposta.
Mas aquela viagem mudou a minha vida espiritual e, sobretudo, a minha visão da Bíblia.
Sendo uma pessoa tão olfativa e visual, a peregrinação pela palestina capacitou-me a, daí em
diante, fazer uma leitura multidimensional das Escrituras, pois, além de todo o enriquecimento
geográfico, histórico e até mesmo arqueológico que a viagem nos propiciou, as grandes
contribuições aconteceram mesmo foi no nível da subjetividade. As páginas da Bíblia ganharam
cor, cheiro, ondulação, abóbada celeste e dimensão para mim. Além disso, a visita à Galiléia
enterneceu-me a alma a tal ponto, que era como se eu tivesse ido lá para namorar Deus. Fiquei
apaixonado e romantizado pelo divino, e Jesus dava a Ele um rosto meigo e amigo.
No fim da viagem, fomos para Tel Aviv curtir um pouco de praia mediterrânea. Entramos na
água às oito da manhã e às seis da tarde ainda estávamos lá, nos deliciando naquela praia de ondas
mansas e de águas tépidas.
Naquela noite, entretanto, após o jantar num dos restaurantes à beira-mar, resolvemos
caminhar pela calçada. Não sei por que cargas-d’água perguntei a Alda se ela era feliz.
— Não. Não sou! — foi sua resposta. Eu quase caí para trás.
— O quê? Você não é feliz? Mas como? Você tem tudo! Eu vivo para você, temos dois filhos
lindos, conhecemos o amor de Deus, e estamos aqui, num lugar onde jamais imaginamos estar
em nossas vidas. Como não ser feliz? Não acredito no que estou ouvindo — falei oscilando entre
uma leve angústia e uma pontinha de raiva.
Ela não falou mais nada. Voltamos ao hotel e fomos para a cama. Rolei de um lado para outro e
não consegui dormir. Minha alma estava angustiada, frustrada, zangada e perplexa. Aí então
percebi que ela também não dormira. Sentei na cama e disse que gostaria de entender o que ela
dissera lá na praia.
— Não é que eu não seja feliz. Eu sou. Eu amo você e seria capaz de dar minha vida por você
e por nossos filhos. Amo a Deus e quero ser Dele até o fim da vida e para sempre. Mas se pudesse
voltar no tempo para antes de julho de 1973, eu voltaria. Então eu aceitaria a fé em Cristo, seria
sua amiga ou mesmo sua ovelha, mas não sua esposa. Eu divido você com tudo e com todos, e não
há limites e nem folgas. Quando penso em viver do jeito que a gente vive até o fim da vida, eu me
desespero. Eu não quero viver assim, entende? Seus pais também são maravilhosos. São gente de
Deus como eu não pensei que existissem. Mas não agüento mais morar com eles e viver de favor
naquele quartinho. Eu estou assim tão infeliz justamente porque eu estou tão feliz aqui e sei que
tudo isso vai acabar. É por isso que eu estou sofrendo — disse-me ela, chorando.
No início, não entendi. Fiquei pensando que havia amarrado meu burrinho no lugar errado.
Depois, convidei-a para orarmos juntos. Aí então ela dormiu e pude ficar sozinho para pensar em
tudo o que ela dissera. Não dormi a noite toda. Fiquei imaginando o que aconteceria se ela não
agüentasse o tranco e resolvesse jogar tudo para o alto. Pensei no fracasso de meu ministério se
isso acontecesse. Imaginei-me divorciado e vivendo longe dos filhos. A idéia para mim era muitas
vezes pior que a morte. Por fim, perguntei-me o que poderia fazer para tirar aqueles obstáculos
do caminho. Afinal, amava minha esposa e queria vê-la feliz.
— Quando a gente voltar, vou arrumar as coisas. Vamos comprar um terreno e construir uma
casa. Vou separar as segundas-feiras apenas para nós. Também não atenderei mais ninguém em
casa e vou abrir um escritório público que nos ajude a manter as coisas bem separadas de nossa
vida. Vou tirar férias todos os anos e não vou mais dar o número do nosso telefone pra todo
mundo. Certo? — afirmei e perguntei ao mesmo tempo.
— E você vai conseguir? — foi a pergunta dela.
— Não adianta ficar falando. Você me conhece e sabe que eu prefiro provar as coisas com
fatos. Espere pra ver. Mas, enquanto isso, relaxe e curta o que Deus está dando pra gente agora —
respondi.
O retorno a Portugal foi tranqüilo. As crianças estavam bem. Ciro já falava tudo e mostrava
profunda acuidade intelectual. Davi, entretanto, continuava dormindo. De vez em quando
acordava, comia, sorria, balançava a cabeça, e dormia outra vez. Era impressionante.
Logo percebi que as pessoas que nos cercavam estavam muito mal ali. A solidão delas era
impressionante. Aquela gente da corte, que andava pelas festas que meu sogro organizava
profissionalmente, era muito vazia e vivia numa infelicidade desgraçada: era a dor de ter tudo,
mas não ter sentido para a vida. Não me contive. Vendo tanta gente triste, mesmo que sorrindo,
comecei a falar-lhes de Jesus. Foi incrível. Às vezes, no meio de uma festa ou banquete, alguém
se encostava ao meu lado e começava a conversar. De repente a pessoa abria o coração. Então
chorava. Depois eu falava o que Deus fizera por mim. Não raro terminávamos a noite numa sala
mais reservada, buscando a Deus em prece.
— Puxa, obrigado. Eu não podia ter perdido esta festa. Que maravilha! — era o que a pessoa
dizia aos meus sogros à porta, enquanto eles ficavam orgulhosos sem saber que o seu convidado
não estava fazendo referência à qualidade do whisky ou da comida, mas da água viva que bebera
em algum lugar na Casa dos Penedos.
Ficamos quatro meses na Europa. Visitamos 17 países e nos divertimos muito. Mas no final
do período, eu já estava cansado de não fazer nada. Estava louco para voltar para Manaus. Foi
então que, numa viagem pela Alemanha, Alda falou-me que estava grávida outra vez. Só que dessa
vez, além de tê-la deprimido, a gravidez produziu o mesmo impacto em mim.
— Mas como? Você não faz tabela? É muito filho em tão pouco tempo. O Ciro só tem um ano
e meio e o Davi tá com sete meses. Como é que isso foi acontecer? — perguntei num ataque de
idiotice, como se não soubesse como aquelas coisas aconteciam.
— O problema é que você só me permite evitar filhos pela tabela. É muito arriscado. Eu
precisava tomar pílula — ela disse, lembrando-me de meu radicalismo evangélico, comum nos
anos setenta, de afirmar que a pílula não era de Deus.
— Pílula não! É artificial. Eu não concordo. Além disso, temos de confiar que Deus sabe
tudo e, se Ele quer nos dar mais um filho, sabe o que está fazendo — falei, contradizendo meu
discurso anterior, e assumindo minha postura pastoral.
— Mas se a gente fosse deixar tudo pra natureza e pra providência de Deus, a gente tava
lascado. A gente não faz assim com relação às outras coisas, como trabalho, estudo, profissão e
muitas outras coisas. Por que no sexo e na procriação a gente tem de ser naturalista e cheio desse
calvinismo do qual você tanto fala? — ela me provocou de modo inteligente.
— É que filhos são vida. E esse assunto Deus cuida de modo diferente — falei sem muita
convicção, uma vez que no fundo do coração concordava com ela. Só não estava era com
disposição de ter de enfrentar meu pai com uma teologia de procriação diferente da dele e dos
demais pastores de Manaus, naquele tempo.
— Filhos são vida, mas as outras coisas são essenciais pra vida da gente também. Olha, você
pode me dizer um milhão de vezes que as coisas são diferentes, mas meu coração não aceita. Eu
sei que estou certa — ela concluiu, dando a entender que não queria discutir mais o assunto.
Fazia muito frio em Hamburgo naquela noite. Dormimos mal. Ouvi ela dar umas choradinhas
bem discretas e senti borboletas voarem dentro de mim a noite toda.
De volta a Portugal, algo ruim começou a acontecer. Todas as noites comecei a sentir uma
presença espiritual maligna rondando o nosso quarto. Podia sentir aquele cheiro característico de
inhaca de demônio. Ciro foi o primeiro a sofrer os resultados daquela opressão. Começou a se
agitar durante o sono, sempre na mesma hora em que eu sentia aquela presença no quarto. Ele se
contorcia, gemia, chorava de angústia, abria os olhos, apontava na direção do canto do quarto e
gritava. Eu o pegava no colo e orava com ele, mas sua agitação não cessava. Então eu o colocava no
meu lado da cama, ajoelhava-me, impunha as mãos sobre ele e repreendia em voz alta toda e
qualquer presença demoníaca naquela Casa dos Penedos. Depois de alguns dias é que fiquei
sabendo pelo caseiro que havia dois quartos fechados no porão da mansão porque eles ouviam e
viam vultos assustadores sempre que abriam aqueles aposentos.
Andei pela casa orando e repreendendo aquelas sombras espirituais. Jejuei e orei com
intensidade até que tudo aquilo cessou. Foi somente depois daqueles dias de escuridão que
conseguimos relaxar outra vez e tentar aproveitar os últimos dias na Europa. Então, voltamos ao
Amazonas.
— A Aldinha vai ter neném, não vai, Caiozinho? — papai me perguntou.
— Hum? — indaguei constrangido, pois Alda e eu havíamos combinado, ainda na Europa,
que não diríamos a ninguém que ela estava grávida até que a barriga o dissesse. Não
agüentávamos ouvir as pessoas dizendo: “Coitadinha, tão novinha e já com três filhos. Que pena!”
— Tá sim, mas como é que o senhor sabe? — indaguei.
— É que Deus me falou em sonhos. Eu estava dormindo no mês passado quando vi você de
joelhos num quarto grande, antigo e bem-decorado, o Cirinho chorando muito e Alda deitada na
cama, deprimida e angustiada. Você chorava e orava. Então ouvi uma voz que dizia: “Ore por eles,
pois Alda está grávida e não está aceitando.” Acordei sua mãe e oramos até de madrugada. Depois
senti que vocês já estavam em paz. Então dormimos — contou-me quase como se tivesse visto
um filme, no caminho do aeroporto para casa.
Ouvindo tudo aquilo fiquei fortalecido na certeza de que Deus estava no controle de nossas
vidas e também feliz em perceber a ternura divina para conosco.
Capítulo 33

“Tuas palavras, Senhor, tinha gravadas em minhas entranhas, e me via cercado de


Ti por todas as partes. Tinha certeza de Tua vida eterna, embora não a visse mais
que em enigma e como em espelho. Assim, o que eu desejava não era tanto estar
mais junto de Ti, mas mais firme em Ti.”

Santo Agostinho, Confissões

Aproximava-se o Natal de 1977. A ida a Belém da Judéia havia acendido em mim dimensões
novas da celebração da visita de Deus ao nosso planeta, quando Ele se vestiu de gente e assumiu a
condição humana no menino Jesus. Além disso, apareceu no meu coração uma enorme ansiedade
de reconciliação com pessoas que eu havia magoado ou que haviam me machucado. Visitei várias
pessoas, pedindo e oferecendo perdão. Mas havia duas pessoas que não me saíam da alma:
Simone e Alma.
Numa daquelas quentíssimas tardes de Manaus, eu ia dirigindo meu carro pelo Boulevard
Amazonas, quando, de súbito, vi um salão de beleza. “Alguém me disse que a Simone tem um
salão de beleza aqui. Deixa eu ver se é esse!”, falei alto, ainda que estivesse sozinho no carro.
Parei em frente e fui entrando no lugar. Ainda à porta, vi aquele monte de mulheres com suas
cabeças enfiadas naqueles aparelhos, quase astronáuticos, de secar cabelos. Era um corredor de
madames e o tititi não cessava.
Foi quando vi uma mulher loira, toda vestida de branco, bem-conservada, trilhando o
caminho do paradoxo: de um lado parecia ser insinuante; mas de outro, mostrava-se
absolutamente tímida e desconcertada.
— Você é filho do Caio, não é? — ela me perguntou baixinho.
Assim mesmo, muitas mulheres ouviram e escorregaram em seus assentos para ver melhor a
cena.
— Sou sim. E vim aqui por causa disso — declarei, sem graça com a situação.
— Então, você deve me odiar — disse ela.
— Olhe, eu não queria falar desse assunto aqui. Tem outro lugar? — perguntei, já
segurando seu braço e conduzindo-a para o fundo do salão, onde parecia haver uma porta de
acesso a um pequeno pátio. — Eu vim aqui pra me reconciliar com você. Isto é parte de minha
cura como homem. Sou pastor e não quero passar este Natal sem estar bem com você. Na
infância, eu chamava você de jaburu. Hoje, quero respeitar você como se respeita a uma mãe —
disse eu, olhando firme dentro dos olhos castanhos cor de mel daquela mulher que havia sido
amante de meu pai e o maior motivo contínuo de dor e vergonha para a vida de minha mãe
durante seis anos.
— Eu não acredito no que estou ouvindo. Eu fiz vocês sofrerem muito. Como é que você
pode dizer que me respeita? — falou, desabando em lágrimas copiosas e convulsivas, enquanto
eu a puxava para cima de meu peito e dava-lhe um abraço terno e filial.
Ela ficou ali, com a cabeça no meu ombro, por uns cinco minutos. Alguém foi até a janela e
viu-a abraçada comigo. Em razão de minha fama passada, apesar de já ser pastor, achei que a
situação poderia ser mal interpretada. Por isso, tratei de recompô-la a fim de sair dali. Afinal, não
seria a primeira vez que o filho se serviria da amante do pai.
— Olhe, eu quero que você vá à igreja comigo. Você iria? — perguntei.
— Você num sabe o que está fazendo. Sabe, teu pai me amou muito. O que houve entre nós
foi muito forte. Hoje ele é pastor, mas ainda é homem. Se eu for lá, pode ser que tudo aquilo
nasça outra vez. Seria terrível e um mal muito maior — disse ela com sinceridade.
— Eu virei pegar você no próximo sábado à noite. Tem muita gente lá. Cê entra comigo,
pelos fundos. Eles nem vão ficar sabendo. Aí então você vê meu pai. Se você achar que ele ainda é
vulnerável a você, a gente deixa como está. Se não, eu vou continuar levando você pra igreja,
certo? — falei com ar final, de quem combina um tanto unilateralmente.
No sábado seguinte fizemos conforme o combinado. Ela tremia de nervosa. Entramos depois
da reunião ter começado. Ela se sentou no meio da multidão e eu fui lá para a frente. Preguei
minha mensagem e meu pai fez uma oração. Encerramos o culto.
— Eu não acredito. Meu Deus, aquele não é o Caio que eu conheci tão bem. O que
aconteceu com ele? Tá com cara de profeta com aquela barba branca, grande, e aquele ar de paz!
Que coisa! — foi o que ela disse tão logo entrou no carro.
Voltei para casa e fui direto falar com papai e mamãe. Contei tudo e fiz um pedido.
— Gostaria que nos encontrássemos com ela como família. Isso vai nos libertar do passado e
nos fará muito mais livres como pessoas. Vocês aceitam? — provoquei.
— Por mim, não há problema. Eu já havia desejado fazer algo assim, mas nunca tive
coragem. Temia que me interpretassem mal, a começar por sua mãe. Mas meu pensamento
sempre foi o seguinte: “Se eu, que tive o caso com ela, pude mudar de vida, por que ela não
pode?” O problema é que eu sei que eu jamais deveria ser a pessoa para pregar para ela.
Certamente poderia dar uma “aparência de mal”, e isso eu não quero — concluiu citando uma
exortação de São Paulo sobre não criar aparências desnecessárias que possam se tornar escândalo
para os outros.
— Desculpe-me, meu filho, mas eu não tenho sangue de barata. É muito fácil pra você e seu
pai ficarem aí dando uma de bons cristãos. Mas fui eu que fui humilhada por ela. Não, não dá não.
Quero que ela se converta e que seja perdoada dos pecados dela, mas bem longe de mim. Aqui
perto, jamais — disse mamãe sem titubeio e com clara revolta no olhar. A impressão que me deu
foi a de que ela havia se sentido traída por mim.
Então ela abaixou a cabeça, fixou o olhar no chão e chorou um pranto ambíguo. Parecia que,
de um lado, ela gostaria de vencer aquilo, deixar o passado ser passado e perdoar a mulher. Mas
de outro, todos os seus brios femininos levantaram-se e prenderam-na numa teia de sentimentos
que nem nós nem ela imaginávamos que ainda estivessem tão vivos.
— Vai ver que a Simone tá certa. Essa coisa foi profunda demais pra acabar assim, sem
marcas e conseqüências incuráveis. Vai ver que eu tô pedindo de mamãe o que ninguém pediria
de sua mãe. Mas e se isso for uma oportunidade divina pra gente ficar maior que o passado? Mas
eu também sei que ninguém é maior que seu passado, quando este define a conduta no presente
— pensei alto, enquanto caminhava em direção ao meu quarto.
Apesar de tudo, continuei visitando Simone. Evitei ao máximo falar sobre meus pais.
Conversamos muito sobre outros assuntos, especialmente sobre as filhas delas. Foi quando
fiquei sabendo que Silvia, a mais velha, casara-se e já lhe dera netos. Mas a situação de Alma era
desalentadora. Na ocasião, ela estava internada há meses numa clínica psiquiátrica em razão de
mais um de seus surtos psicóticos.
Contei para Simone o que acontecera entre nós dois.
— Eu sei de tudo. Mas não fique preocupado. Seu caso contribuiu pra ela ficar assim, mas
não foi a única causa. Eu e meus “amores” fomos a principal razão. Especialmente quando eu
deixei seu pai. Naquela época, eu a feri muito. Alma era louca por ele. Nunca pensei que fosse
afetar tanto a menina — disse-me ela, derramando-se em lágrimas.
— Eu entendo. Conheço perfeitamente o poder que papai tem de ser pai e impressionar
filhos. Comigo, os meus desencontros também tinham a ver com ele. Demorou muito pra eu
equilibrar as coisas dentro de mim em relação a ele — falei, tentando igualar nossos males e
dores.
A noite de Natal foi maravilhosa. Tivemos um culto cheio de música e devoção. Fiz uma
mensagem impregnada de gratidão a Deus pela sua solidariedade para conosco, fazendo-se
gente. Depois do culto, abraçamos muita gente e, em seguida, nos encontramos como família.
— Vamos lá, gente, que eu estou morrendo de fome. Quero comer aquele peru gostoso que
me aguarda lá em casa — falei, tentando apressar a família.
— Meu filho, acho que a gente vai ter que esperar pra comer a ceia de Natal — mamãe falou.
— Eu não vou conseguir comer mais nenhuma ceia de Natal se não fizer uma coisa hoje que está
me sufocando. Eu não agüento mais ficar sem perdoar a Simone. Eu quero ir lá e dizer que estou
livre de todo o ódio, de toda a amargura ou qualquer coisa. Eu quero ficar limpa — disse mamãe
com a alma já lavada pela graça de Deus.
— Então por que não vamos todos juntos? Vamos lá cantar uns hinos de Natal — propus.
Éramos dez pessoas. Meus pais e Aninha, minha irmã caçula; eu, Alda, Ciro e Davi; minha
irmã Suely, seu esposo, e Anelise, a filhinha deles.

“No Natal a gente sempre agradece


Por Jesus ter nascido em Belém
Mas nem sempre se lembra na prece
Que ele nasce na gente também.”

Cantamos suavemente. Estávamos na calçada. À nossa frente, havia um portão de ferro que
dava acesso à casa de Simone. O salão de beleza ficava ao lado, e a casa nos fundos, a uns trinta
metros de onde estávamos. Entre nós e a casa, portanto, havia um corredor estreito e longo.
Seguimos cantando outros hinos.

“Nas estrelas vejo Sua mão


No vento ouço Sua voz
Deus domina sobre céu e mar
Tudo Ele é pra mim
Eu sei o sentido do Natal
Pois na história teve o seu lugar
Cristo veio para nos salvar
Tudo Ele é pra mim.”

Quando estávamos no meio da canção, vimos que a porta da casa ao fundo se entreabrira.
Dava para ver somente a metade do rosto de Simone, sozinha, chorando.
Foi quando não pude acreditar no que vi. Mamãe abriu o portão, andou firme pelo corredor,
sozinha, na direção de Simone. Era como se ela andasse no tempo para abraçar o passado, libertar
seus fantasmas e ver nos olhos quem um dia a havia magoado.
Quando mamãe já estava a uns dez metros da porta, Simone correu de lá na direção dela,
jogou-se sobre o ombro de minha mãe e chorou com urros de dor e angústia.
— Eu vim aqui te dizer que Jesus me libertou de minhas amarguras e que eu estou livre pra
amar você. Você não me deve mais nada. Tudo o que eu quero é que você seja feliz — mamãe
falou, enquanto Simone se derretia de tanto chorar. Todos nós a abraçamos, inclusive papai, e
antes de sairmos fiz uma oração abençoando o Natal dela.
Daquele dia em diante, muita coisa mudou em nossas vidas. Surgiu uma liberdade enorme
para confessar, para ser, para viajar em busca do passado a fim de poder caminhar com paixão em
busca do futuro, que só existe para quem quer que o ame com força.
Mamãe passou a dar atenção espiritual a Simone. Eu, sempre que podia, visitava Alma na
clínica. Mas depois de um tempo, percebi que minhas visitas não faziam bem a ela. Confusa
como estava, ela sempre imaginava que eu estava ali por outras razões.
Nossas vidas prosseguiram em paz, até que em março de 1978, grávida de seis meses e meio,
Alda acordou em trabalho de parto. Corremos para o hospital. Nasceu um menino. Era lindo,
branquinho, de nariz afilado e cabeça bem-feitinha. Viveu cinco horas e morreu. Alda e eu
choramos baixinho. Resolvemos chamá-lo Luiz. Estranhamente, só percebemos depois, era o
terceiro Luiz em minha família que morria, um em cada geração. Sepultamos nosso filho e
voltamos à vida, sem perguntas e sem mágoas.
O episódio da morte de Luizinho teve, entretanto, um aspecto hilário, pois nos lábios das
crianças, mesmo a mais estranha declaração, com potencial para soar perversa, reveste-se de
outro tom.
Quando minha irmã Suely, que estivera conosco no hospital fazendo vigília à porta da sala
onde Luiz estava numa incubadora, ouviu de seu passamento, resolveu ir até a nossa casa para a
dar a notícia aos que lá estavam. Ao chegar, deu de cara com Ciro e Davi em pé, juntos, à porta.
— Tia, cadê o Luizinho? — perguntou Ciro.
— Cirinho, Davizinho, o neném nasceu e uma coisa muito boa aconteceu com ele. Olha, ele
já foi morar no céu, com Jesus. O neném está lá, vendo anjos e um monte de coisas lindas — ela
disse com voz de quem contava uma historinha de Walt Disney.
— Tia, o céu é lindo? É mais bonito que aqui? — perguntou o curioso Ciro, enquanto Davi,
loiríssimo, olhava em volta sem nem bem saber o que estava acontecendo.
— Ah! É lindo, sim. É tão bom morar no céu — concluiu Suely, achando que a conversa
estava encerrada.
Então Ciro ficou olhando para as nuvens azuis sobre sua cabeça, suspirou profundo, botou
um dos braços em volta do pescocinho de Davi, e disse:
— Jesus. O céu é lindo. Leva o Davizinho pra morar no céu contigo também.
Assim, a morte de Luizinho não é lembrada por nós como um momento de dor, mas como
uma ocasião na qual a inocência de um menino de três anos, inquieto com a chegada de irmãos
que vinham sem pedir licença, desejou o melhor para eles, promovendo-os ao céu, e deixando
assim a terra livre para o exercício de seus banais privilégios.
Aqueles dias, entretanto, tiveram também componentes de natureza profundamente
espiritual. Duas são as histórias que podem muito bem caracterizá-los. O fascinante dessas
histórias é que ambas têm a ver com anjos e aconteceram exatamente no mesmo lugar: um
grande prédio cheio de apartamentos e lojas, no centro comercial de Manaus.
Antes da minha conversão à fé, dentre os meus amigos havia dois irmãos conhecidos na
cidade por serem bons de briga. Fazia anos que eu não os via. De repente, aí pelo final de 1978,
um deles me procurou.
— Caio, preciso de ajuda. Um anjo mandou eu vir falar com você — disse ele, e eu achei que
tudo não passava de uma gozação.
— Ah, é? Que anjo foi esse? — indaguei também brincando.
— Não tô brincando não. Foi um anjo mesmo — repetiu ele com o rosto mais que sério. —
Olha, meu irmão e eu temos uma loja aqui no edifício Cidade de Manaus. Os negócios tavam indo
bem, mas de repente começou a ficar tudo ruim. A gente tava quebrando. Então resolvemos fazer
uma loucura. Como a gente tem um seguro contra incêndio, revolvemos tocar fogo na loja. Com a
grana dava pra salvar o negócio — disse ele, mostrando-me o braço —, não posso nem lembrar
que fico todo arrepiado.
— Mas e aí, o que foi que aconteceu? — eu já estava ficando bastante curioso.
— A gente preparou tudo. A idéia era que fosse um fogo brando e que queimasse só a loja da
gente. Na noite da véspera, eu estava muito ansioso e meu irmão parecia estar calmo. Fomos pra
casa. Eu saí e ele ficou sozinho. Olha, bicho, o que ele contou é incrível. Só acreditei porque você
conhece o cara. Ele não tem medo de nada e num tá nem aí pra esse negócio de religião e Deus e
o escambau — afirmou, deixando-me cada vez mais em suspense. — Ele disse que tava tomando
um wisquinho sentado na sala quando viu um ser cheio de luz entrar pela sala, cara. O ser não
tocava no chão, flutuava e se movia como se estivesse sendo empurrado suavemente de um lado
para o outro — falou, mostrando-me outra vez o braço todo arrepiado.
— E como era esse ser?
— Era como um homem, só que cheio de luz e muito bonito.
— Mas e aí? O que foi que ele disse pro teu irmão?
— Ele disse que tinha sido mandado por Deus pra nos impedir de matar muita gente. Disse
que o que íamos fazer teria conseqüências desastrosas. Botou a mão nos olhos de meu irmão e fez
ele ver — disse com os olhos cheios de lágrimas.
— Ver o que, mano? — perguntei, já antevendo o desfecho de tudo aquilo.
— Ele viu o fogo pegando na loja ao lado e incendiando todo o edifício, com centenas de
moradores. Era de noite. Então todo mundo tava em casa. Era gente morrendo pra todo lado —
ele já não conseguia continuar de tanta emoção.
— Mas o que é que isso tem a ver comigo? — perguntei, querendo juntar as pontas da
história.
— É que depois que o ser mostrou isso a ele, meu irmão ficou congelado. Parecia que estava
morto. Não se movia do lugar. Foi quando o ser me mandou procurar você — falou ele me
olhando com um ar de quem havia chegado mais perto dos mistérios da vida do que jamais
imaginara.
— Mas como é que foi que o anjo mandou vocês me procurarem? — perguntei, já
esclarecendo que o ser era, na verdade, um anjo do Senhor.
— Ele disse: “Aqui nesta cidade tem um amigo de vocês que conhece a Deus. Procurem o
Caio Fábio e ele vai ajudar vocês.” Foi só isso cara, o anjo te conhece — completou.
Parti daquele ponto e falei de Cristo a ele e, depois, ao seu irmão, que, no entanto, era um
homem muito duro de coração. Ficou uns 15 dias chocado, mas logo esqueceu tudo e mergulhou
nas águas escuras das paixões que vivia. O portador da mensagem angelical, entretanto, ficou
tocado por muito tempo. Passou a ir à igreja e nunca mais foi o mesmo. Casou-se com a moça que
namorava naquele tempo e jamais deixou de ler a Bíblia. Não se tornou um crentão evangélico,
mas jamais conseguiu deixar de ser um cristão. Aquele contato imediato de primeiro grau com as
forças do mundo espiritual mudou sua vida para sempre.
Outro evento conectado com as forças invisíveis do mundo espiritual que me aconteceu
naqueles dias teve a ver com a conversão de um jovem. Marcílio era um moço de cerca de vinte
anos que vivia no alto do edifício Cidade de Manaus, o mesmo lugar do episódio anterior. Sendo
politicamente consciente e socialmente sensível, sofria muito ao perceber o estado de injustiças
sociais no qual o Amazonas vivia. Ele queria ver uma revolução acontecer. Por isso, candidatou-se
a fazer parte da guerrilha urbana e foi receber treinamento no interior da Bahia.
O problema é que Marcílio não tinha sossego de alma. Havia dentro dele um desassossego
profundamente suicida. Um dia ele me ouviu pregar no câmpus universitário, achou tudo
ridículo e foi embora fazendo gozação. Mas o desespero do rapaz cresceu tanto, que numa
determinada noite ele decidiu se suicidar. Foi para o alto do prédio e ficou de lá, olhando para
baixo. De súbito, foi puxado para dentro do apartamento, onde caiu no chão, chorando. Então,
ouviu uma voz.
— Vai e procura o Caio, que ele vai ajudar você.
— Caio? Caio? Quem é esse cara? — respondeu meio sem rumo.
Então ele se lembrou que me ouvira pregar e também que tinha umas vizinhas que me
conheciam bem. Mas o atordoamento do rapaz era tão grande, que nem pensou em ir à casa das
moças para saber onde eu morava. Apenas pegou o elevador, desceu correndo para o seu
fusquinha vermelho e caiu na estrada atrás de mim.
Manaus já tinha cerca de oitocentos mil habitantes naquela época, uma população que
crescia de forma larga e bastante espalhada. Marcílio seguiu suas intuições. Botou o carro na
direção do endereço emocional que lhe surgiu no coração e seguiu em frente. Chegou ao bairro da
Cachoeirinha e parou numa esquina. O bairro era amplo e bastante ramificado, com muitas ruas
e avenidas.
— Ei, moço! Estou procurando um tal de Caio Fábio. Você sabe onde ele mora? Já ouviu falar
nele? — indagou Marcílio ao primeiro ser humano que passou por seu caminho naquela esquina
escura das ruas Urucará com Tefé.
— Se conheço? É claro. E você também conhece, né? Parou o carro bem na garagem dele! —
respondeu o homem, apontando na direção da porta de minha casa, a não mais do que dez metros
de distância.
Marcílio derreteu-se de tanto chorar. Havia uma conspiração invisível de amor querendo
preservar sua vida a todo custo, e aquela era uma percepção maravilhosa demais para ele.
— Ô de casa! Eu vim me entregar pra Deus. Tem alguém aí pra me receber? — foi a voz que
ouvi, gritando no portão de minha casa.
Eu estava sozinho na cozinha, fritando um ovo. Eram nove e meia da noite, quando ouvi
aquela voz cheia de choro. Saí e fui ver quem era. O rapaz pulou nos meus braços, sem dar
explicação, e chorou. Depois me contou sua história. Está lá, entre os irmãos de fé que ele passou
a conhecer depois daquilo, até o dia de hoje.
Aprendi com aqueles fatos que os anjos nos conheciam e trabalhavam a nosso favor. E mais:
pude perceber que quando se ama o próximo de verdade e quando se entrega a vida como
instrumento de realização de desejos divinos, até os anjos se tornam empregados, trabalhando a
favor da realização de nossos sonhos e missões.
Capítulo 34
“Tampouco podes ser obrigado, contra a Tua vontade, seja ao que for, porque tua
vontade não é maior do que Teu poder. Seria maior caso pudesses ser maior do
que és, pois a vontade e o poder de Deus são o mesmo Deus. E que pode haver de
imprevisto para Ti, se conheces todas as coisas, e se todas elas existem por que as
conheces?”

Santo Agostinho, Confissões

A vida já estava tomando os seus contornos de sempre. O tufão estava lá e eu amava viver
dentro dele. Alda, entretanto, olhou para mim com aqueles olhos de tela de cinema e me fez ver o
filme de nossa noite da verdade em Tel Aviv, como que dizendo: “Eu sabia que tudo iria voltar ao
que sempre foi.”
Estava bem com os anjos, mas corria o risco de ficar mal com minha mulher. Com vergonha
de minha lentidão em assumir mudanças tão fundamentais, comuniquei primeiro a meu pai, que
também era meu colega de trabalho pastoral na mesma igreja, as alterações de vida que estavam
em processo. Depois, fiz o mesmo para toda a igreja. E o mais difícil: tive de dizer a mesma coisa,
pessoa a pessoa, pois muita gente, mesmo recebendo a informação geral, não aceitava que, na
prática, as mudanças fossem acontecer. Por isto, insistiam em que eu as recebesse às 23 horas,
ou até mesmo às duas da madrugada, quando tinham diarréia espiritual no meio da noite. Foi
difícil convencer algumas pessoas que eu não estava mais de plantão na vida. Mas persisti, às
vezes com muita culpa, até que as coisas se acomodaram e Alda e eu pudemos preservar nossa
família de males maiores.
Fiz tudo o que havia prometido em Israel. Compramos um terreno — só que ao lado da casa
de meus pais —, e com a ajuda de papai construímos uma casa engraçadinha, de dois andares,
toda em madeira de lei, com troncos de Aquariquara como colunas e uma graciosa escada espiral
de ferro fazendo a conexão dos dois pisos. Foi um alívio enorme para Alda, e pela primeira vez, já
três anos após nosso casamento, nos sentimos de fato um casal e um núcleo familiar.
Mas para tirar definitivamente as coisas de dentro de nossa casa, decidi montar um escritório
de assistência espiritual, que também não fosse uma igreja. Seis meses depois disso, entretanto,
as filas de gente começaram a se acumular por lá. Além disso, Clodoaldo Guerra, o radialista,
continuava me pondo no ar ao vivo todas as manhãs e os telefones não paravam de tocar. Por isto
fui à companhia telefônica e propus uma parceria. “Vocês querem vender serviço e ganhar
dinheiro. Eu quero oferecer serviço e ganhar corações. Por que não nos unimos? Vocês me
instalam de oito a dez linhas seqüenciadas e receptoras, e eu divulgo o serviço. Assim vocês me
ajudam e eu ajudo vocês”, eu disse ao diretor comercial da Telamazon. Ele topou.
Passamos a receber até mil e oitocentas chamadas por dia, das oito da manhã à meia-noite.
Tive de pedir ajuda a todos os pastores da cidade. E a maioria veio nos ajudar fazendo
aconselhamento ao vivo, via telefone, inclusive o decano evangélico local, pastor Alcebiades
Vasconcelos, líder das Assembléias de Deus.
Em conseqüência daquela ação de evangelização e genuíno marketing cristão, milhares de
pessoas passaram a se converter por mês e dezenas de igrejas cresceram.
Naqueles dias, contudo, apareceu em Manaus um missionário que mantinha um estranho
estilo de pregação e se utilizava de métodos que nos pareciam completamente mercenários. Nós
estávamos ali, trabalhando de graça de dia e de noite, servindo às pessoas com o coração e sem
outros interesses a não ser agradar a Deus. Mas aquele missionário, Ivonildo, parecia ter outras
motivações. O negócio dele era grana. No rádio, a auto-apresentação que fazia era esta: “Chegou
aquele que já curou milhões. Seu nome é Ivonildo. O homem a quem o diabo obedece. Venha
conhecer o poderoso missionário Ivonildo. O homem do poder.” Ele usava voz grossa, empostada,
cavernosa, imitando Deus, e se apresentava como ninguém na Bíblia jamais se auto-apresentara.
Aliás, na minha percepção, as Escrituras não apresentavam nem mesmo a Jesus daquela forma
tão artificial e exaltada.
Conquistávamos o respeito das pessoas de um lado, e ele punha tudo a perder de outro.
Fazíamos o possível para que a cidade percebesse nosso total desinteresse por dinheiro e nossa
paixão por pessoas. Ele, todavia, cobrava para fazer visitas e até mesmo estipulava o preço de
certas orações. Além disso, depois de explorar as pessoas com todas as formas de misticismos e
superstições pretensamente associadas ao evangelho, ele pedia dinheiro por períodos de até
quarenta minutos seguidos. “Se vocês não derem a Deus, Deus não dará nada a vocês”, decretava
ele, estabelecendo o sistema monetário como a moeda de troca na compra e venda de bênçãos, as
quais o genuíno cristianismo afirma serem gratuitas.
Do alto apenas de meus seis anos de experiência cristã, resolvi que alguém tinha de peitar
aquele homem, e se ninguém mais experiente e autorizado tivesse coragem para fazê-lo, eu
mesmo o faria.
— Irmãos, não dá. Esse homem está destruindo tudo o que nós estamos construindo com
lágrimas e amor. Alguém tem que falar — eu dizia em reuniões de pastores.
— Mas, irmão, tá certo que o que ele diz e faz não está de acordo com o ensino bíblico. Mas
ele fala em nome de Jesus e muitos aceitam a Cristo. Não podemos impedir — era o que sempre
ouvia da maioria dos meus colegas pastores.
— Tá certo que não podemos impedir. Mas podemos advertir. Só porque ele usa o nome de
Jesus, o que ele faz não fica certo. O nome de Jesus cabe em qualquer lugar. Esse homem ganha
uns e afugenta milhares — eu falava, inamovível na minha disposição de não permitir que o
evangelho virasse mercadoria para camelôs religiosos.
Como ninguém quis ir, fui à luta sozinho. Comecei a falar em público que as práticas de
Ivonildo não eram cristãs. Mas ao final, sempre orava por ele e pedia a Deus que o ajudasse a
pregar o evangelho com genuinidade. A mídia de Manaus soube e começou a me procurar para
discutir o assunto.
— Esse missionário é ou não é de Deus? — era a hipersimplificação a que chegavam.
— Eu não sou Deus e nem secretário de Deus — dizia eu. — Além disso, não estou julgando
o homem Ivonildo, mas suas práticas. O homem, só Deus pode julgar. Mas as práticas, cabe a nós
discernir. E o que ele está fazendo não é cristão. Leia os evangelhos e veja se você encontra
espaço para as coisas que ele está fazendo em nome de Cristo? — respondi inúmeras vezes no
rádio e especialmente nos jornais.
Até que um dia encontrei Ivonildo num banco. O gerente era membro de nossa igreja e o
missionário depositava semanalmente seus milhares de dólares numa conta pessoal que ele tinha
naquela instituição bancária.
— Pastor, tem alguém olhando para você quase a ponto de lhe comer — falou-me
discretamente Luís, o gerente.
— Quem é? — indaguei baixinho.
— É o Ivonildo. Está nas suas costas — respondeu entre os dentes.
Despedi-me de Luís e fui saindo.
— Irmão Caio. Como vai você? — alguém perguntou em voz mais que audível.
Virei-me e vi o missionário andando na minha direção.
— Bem, graças a Deus — respondi.
— Montei uma igreja aqui e já temos milhares. É uma igreja poderosa — ele foi falando alto,
como que desejando mostrar a todos no banco que nós éramos amigos ou pelo menos amistosos,
pois embora sua voz fosse muito conhecida do rádio, sua imagem não era. Eu, entretanto, por
causa da televisão, tornara-me bastante conhecido.
— Até onde eu sei, o senhor não tem uma igreja, mas uma miscelânea, ou uma rodoviária —
afirmei. — O senhor cuida das ovelhas? Visita-as de graça? Chora com elas e por elas? Vive suas
alegrias e sofre suas dores? — perguntei, embora já soubesse as respostas.
— Assim você está me julgando. Só Deus pode me julgar. Você não — exclamou exaltado,
falando em voz mais alta ainda.
— E vai! Não tenha dúvida disso. Deus vai julgar você. Eu não estou julgando você, mas as
suas obras. Jesus disse que a gente conhece a árvore pelos frutos — completei de modo firme.
— Então eu estou melhor que você. Minha igreja já é maior que a sua. Quantas pessoas você
tem? — perguntou como se fôssemos mafiosos, traficantes ou bicheiros, disputando o tamanho
dos negócios.
— Fruto de ministério cristão não se mede em números, pois nesse caso os profetas, João
Batista, Jesus e os apóstolos teriam sido grandes fracassados, uma vez que foram abandonados e
muitas vezes morreram sozinhos — eu disse e fui saindo.
O gerente me disse que ele ficou branco, começou a andar pelos cantos, pediu água e se
sentou. “Ele não podia dizer essas coisas para mim. Ele não podia”, repetiu várias vezes.
Dias depois, Luís contou-me que a polícia federal pegara Ivonildo para um interrogatório.
Deram-lhe um aperto tão grande por causa de estelionato, exploração da boa-fé, sonegação de
imposto e outras coisas, que o tal missionário teve de abandonar a cidade na carreira. Mas antes
de sair, tomou providências no sentido de leiloar a igreja. Um “grupo religioso do sul do país”
comprou aquelas duas mil almas, mais cinco galpões e suas mobílias, por alguns milhares de
dólares. Quando ouvi o que tinha acontecido, eu me desesperei. Meu medo era de que coisas
daquele tipo viessem a se multiplicar por todo o país, pois nesse caso o prejuízo seria irreparável.
Se os cristãos se acomodassem àquele tipo de coisa, voltaríamos à idade das trevas.
Contudo, apesar de perceber que charlatães gostam muito de veículos de comunicação, não
perdi a fé no fato de que a mídia poderia ser usada de modo legítimo. Eu mesmo usava a mídia e
via os resultados positivos. Dessa forma, animado com o sucesso dos meios de comunicação, parti
para um projeto de saturar Manaus com o evangelho. Unimo-nos à Cruzada Estudantil e
Profissional Para Cristo, bem como com à Mocidade Para Cristo (MPC) e à Aliança Bíblica
Universitária (ABU), e partimos para o ataque.
Pensava de modo estratégico e queria ver as ações cristãs serem feitas de forma objetiva e
bem estudada. Mas o volume de coisas era tão grande, que às vezes me enrolava todo pelo
caminho. Foi aí nesse ponto, já em julho de 1978, que eu decidi que, definitivamente, nós
tínhamos de nos organizar. Aquelas ações não podiam ser vinculadas a uma igreja, especialmente
à minha. Precisava haver uma estrutura que pairasse acima das bandeiras evangélicas, de modo
que pudesse servir a todos. Pensamos e criamos aquilo que no meio evangélico se chama de
Missão, e que do lado de fora se convencionou chamar de ONG cristã. Assim nasceu a Vinde,
sigla de Visão Nacional de Evangelização.
A questão é que eu pensei que aquilo que nós estávamos fazendo ali no meio do mato era
lugar-comum. Minha admiração foi enorme quando ouvi Marcos Gilson, da ABU, e Abraão, da
MPC, dizerem que o que estava acontecendo ali não tinha paralelos no resto do Brasil. “Vocês
estão anos à frente do resto da Igreja. Não há nenhuma outra cidade no Brasil com o nível de
impacto estratégico na sociedade que vocês conseguiram alcançar aqui”, disseram-nos, de
comum acordo, em ocasiões distintas. Daí em diante, comecei a desejar expandir meu programa
de televisão, Jesus, esperança das gerações, para toda a nação. De repente, já estávamos
alcançando todo o nordeste e já tínhamos patrocinadores locais. Aí então vieram convites para
conferências e grandes ajuntamentos em estádios, praças e ginásios de esportes por todo o Brasil.
No início de 1979 eu já não parava em Manaus. E para piorar as coisas, fui convidado a falar
naquele que seria o maior evento evangélico interdenominacional da história do Brasil, o Geração
79. Meu papel naquele congresso era secundário, mas duas coisas fundamentais
aconteceram-me ali. A primeira foi que pude conhecer os principais líderes evangélicos do Brasil,
ali no Centro de Convenções do Anhembi, onde ficamos reunidos por uma semana. A outra foi
que preguei para grupos menores, de quinhentas pessoas — ao todo havia quatro mil jovens
reunidos ali —, o que fez correr pelo lugar a informação de que eu me comunicava com
facilidade. Logo, ali mesmo comecei a receber convites de todo o Brasil para pregar.
O primeiro que aceitei foi para uma Igreja Presbiteriana em Taguatinga, Distrito Federal.
Cheguei numa quarta-feira à tarde e deveria ficar até domingo à noite. Mas durante aqueles dias
houve um impacto tão grande da mensagem que eu pregava sobre o povo, que a programação
precisou ser estendida. Naqueles dias, cheguei a iniciar cultos às cinco da manhã, enquanto a
multidão se comprimia no templo de mil lugares para ouvir a Palavra. Houve de tudo ali.
Quando o arrocho da convicção do Espírito Santo caiu sobre a turma, os tumores da igreja
foram espremidos. Era gente casada que cantava baixo no coral levando para a cama a soprano;
era líder leigo confessando que estava transando com as gatinhas da comunidade, eram pastores
revelando suas frustrações ministeriais e, sobretudo, eram milhares os que vinham orar comigo
carregados de dores e culpas sem fim. Fiquei ali todas as noites até uma e meia da madrugada
atendendo gente numa fila que não acabava nunca. E como o meu sentido de inadequação ante às
responsabilidades que sobre mim começavam a avolumar-se era grande demais, jejuava o tempo
todo. Somente às duas da manhã é que comia alguma coisa, de prefêrencia uma sopinha, em
companhia do reverendo Adail Sandoval, pastor da igreja.
O domingo foi adrenalina pura. Comecei às cinco da madrugada e fui até às seis da tarde sem
parar. Haveria um intervalo de uma hora para eu tomar um banho e me deitar na cama de costas
por alguns minutos, para então voltar para a reunião das 19 horas. Triste ilusão. Quando íamos
entrando em casa o telefone tocou. Era uma mãe em desespero, pedindo para que eu fosse até a
casa dela com urgência, pois seu filho estava possesso de demônios, quebrando tudo. Relutei
quanto a ir, tão grande era o meu cansaço. Mas não houve jeito, e tive de ir até lá.
Quando chegamos, vi que a coisa era muito pior do que pensara. Afrânio era um rapaz de uns
24 anos, alto, espadaúdo, forte, de cabeleira cheia e olhos profundos. A força que ele demonstrava
possuir era enorme. E pior: a situação já saíra do âmbito da casa e fora para o meio da rua. Uma
multidão estava olhando o moço quebrar coisas e falar com voz alterada palavras que eram ditadas
pelos demônios. Ao me ver foi logo partindo para cima de mim a fim de me agredir. “Senhor, me
ajuda. Dá-me poder espiritual e também permite que ele fique livre, logo”, orei em minha mente.
— Seu desgraçado. Tá pensando que me domina? — falaram os seres que habitavam
Afrânio, que correu para me esmurrar.
— Sai dele, diabo, em nome de Jesus — gritei, iniciando um duelo espiritual que as cem
pessoas que estavam por ali possivelmente jamais haviam presenciado antes.
Como ele continuou correndo para me atingir, fiquei na posição de guarda que Neto me
ensinara no jiu-jítsu. Não deu outra. Ele pulou em cima e eu o girei no ar, coloquei-o no chão de
asfalto e montei nele, prendendo-lhe a respiração com o peso de meu corpo sobre o seu
estômago. Ali de cima, então, eu o exorcizei em nome de Cristo. Dois minutos depois ele estava
livre, cercado por uma pequena multidão e querendo saber o que havia acontecido a ele.
Expliquei e convidei-o para ir à igreja. À noite ele estava lá e ao final da reunião fez uma oração de
invocação, pedindo a Jesus que viesse morar nele, fazendo assim com que as forças espirituais da
maldade ficassem sem chance de invadi-lo outra vez.
A reunião de domingo acabou depois da meia-noite. E quando pensei que iria enfim poder
dormir, percebi que a noite só estava começando, pois um empresário desesperado veio me dizer
que naqueles dias, não suportando mais a culpa de trair sua esposa com uma senhora da igreja,
decidiu contar tudo a ela. Agora, entretanto, a mulher o estava expulsando de casa.
— Mas o que é que eu posso fazer para impedir isso? — perguntei.
— Ela disse que minha única chance está em conseguir levar você até lá. Disse que com você
ela conversa — ele me implorou em lágrimas.
Eu tinha apenas 24 anos e eles eram um casal de aproximadamente cinqüenta anos. Fui e
ouvi as dores e mágoas deles até às cinco da manhã. Eu já estava para desmaiar de sono. Era a
quinta noite que eu praticamente não dormia nada. Minhas pernas estavam bambas e os
pensamentos turvos. Mas no fim de tudo eles decidiram dar uma chance um ao outro e estão
juntos até hoje.
Na segunda-feira, preguei o dia quase todo. Começamos numa escola e fomos de reunião em
reunião até o fim da tarde. À noite fui ao templo para o que imaginei que fosse ser uma pequena
reunião, mas centenas de casais estavam lá, querendo ouvir algo que melhorasse seus
casamentos. Como não era um expert no assunto, apenas falei do que sabia: “Cristo pode pegar a
água insípida de seu casamento e transformá-la num vinho gostoso.”
De volta a Manaus, meu pai foi me buscar no aeroporto.
— Meu filho, o Rosinaldo, seu amigo, tentou o suicídio. Está vivendo uma crise conjugal e
não agüentou. Tentou envenenar-se. Está mal no hospital. Ele quer ver você. Vamos lá?
Quando vi Rosinaldo, fiquei extremamente triste com a sua situação. Ele não era da igreja,
mas isso não fazia a menor diferença em relação ao que eu sentia por ele. Eu aprendera a amá-lo
com muita ternura, enquanto ele dirigia meus programas de TV.
Rosinaldo estava estudando inglês e por isso gostava de me chamar de Shepard: pastor de
ovelhas.
Orei com ele e fui para casa. À noite não consegui dormir. O fato de Rosinaldo ser tão cheio
de vida e de repente estar seduzido pela morte deixou-me aterrado.
Aí por volta da meia-noite eu continuava a rolar na cama. Então me pus de joelhos e orei
incessantemente por ele. Às cinco da manhã eu ainda estava acordado. Então fui até meu
escritório, no cômodo ao lado, abri a janela, olhei na direção da casa dele e tive uma visão
fantástica.
Era a árvore. A mesma jaqueira que eu vira pintada de prata seis anos antes, na noite em que
decidi me tornar um discípulo de Cristo, estava lá. Só que agora eu a via da janela de minha casa,
construída ao seu lado, no terreno vizinho à casa de meus pais, de onde eu a percebera naquela
noite de julho de 1973.
A jaqueira estava matizada pelo nascer do sol. Estava linda. Divina. Minha alma se encheu de
alegria. Ajoelhei-me ali e falei com o Criador. Pedi que Ele enviasse um anjo até a casa de
Rosinaldo, pois sabia que ele saíra do hospital na noite anterior.
Foi a mais extraordinária oração que já fiz na vida. Fechei os olhos e vi o rapaz deitado em sua
cama, dormindo. Então, como que em minha imaginação, entrei nos sonhos dele. Pedi a Jesus
para fazê-lo sonhar com o texto de Mateus 7: os dois caminhos — o largo que conduz à morte e o
estreito que conduz à vida. Depois, pedi ao Senhor que lhe mostrasse os obstáculos que ele
enfrentaria se quisesse andar com Cristo e que desafiasse meu amigo a continuar, apesar de
tudo. A seguir, roguei ao Espírito de Jesus que fizesse Rosinaldo perceber o conforto e a paz de
repousar nas águas de descanso que estão à nossa disposição em Deus.
Fiquei sobre os meus joelhos até às sete horas da manhã. Quando Alda acordou, eu já estava
me preparando para sair.
— Onde você vai? — perguntou-me ela.
— Vou ver o que Deus fez na vida do Rosinaldo — respondi.
Quando cheguei à casa dele, para minha surpresa, fui informado que ele saíra de casa às sete
da manhã e que fora para a TV Educativa, onde, agora, trabalhava como diretor de programação e
arte.
Corri até lá.
— Shepard, bom dia. Algo inacreditável aconteceu comigo — falou assim que me viu.
— Foi um sonho, não foi? — perguntei.
— Como é que você sabe? — indagou surpreso.
— Quer que eu conte ou você conta? — devolvi com absoluta certeza. — Você sonhou com
dois caminhos, com obstáculos, com um convite de Cristo e com águas de descanso, não foi? —
perguntei como se estivesse contando um filme.
Os olhos dele se encheram de lágrimas. Nós dois sabíamos que havíamos estado dentro de
uma conspiração divina de amor e que nossas vidas mudariam depois disso. Não que daí para a
frente algo sobrenatural viesse a nos fazer viver numa outra dimensão, suspensa sobre as
ambigüidades de nossas existências eivadas de relatividade. Mas acontecesse o que acontecesse
conosco no futuro, nós poderíamos saber que o divino nos tocara e nos conectara de um modo
especial. O Espírito Santo fizera-me visitar os sonhos dele e me deixara, naquela madrugada,
assumir um papel de condutor de seus desejos na direção de Cristo.
Rosinaldo jamais se tornou um evangélico, porém nunca mais, depois daquela madrugada,
conseguiu ser o mesmo. Eu também, dali para a frente, aprendi a força conspiratória que existe
na oração objetiva e apaixonada.
“Graças a Deus esse poder não está à disposição de gente mal-intencionada. Há outros
poderes que agem em gente má. Este aqui só está disponível em Cristo e para o bem do
próximo”, pensei muitas vezes, chocado com o que acontecera.
A vida continuou e minhas viagens também. Era tanta viagem, que Alda e eu começamos a
achar que não dava mais para continuar morando no Amazonas. O duro, entretanto, era deixar o
convívio dos pais, da igreja, da cidade e dos cheiros do Amazonas.
A reflexão era sobre que decisão haveríamos de tomar: se ficaríamos em Manaus ou
mudaríamos para o Rio de Janeiro. Em meio a isso, aconteceu algo que me assentou o sentimento
de que nossa eventual saída de terra natal poderia estar tendo repercussões no mundo espiritual.
Naquelas bandas do Brasil, era comum quem tinha carro ir almoçar em casa com a família.
Assim, eu sempre saía da Vinde aí pelo meio-dia e só retornava às duas da tarde, depois de uma
gostosa refeição e uma sonequinha de 15 minutos. Num daqueles dias, voltava para o escritório
em companhia de Heraldo Rocha, um funcionário de nossa organização que me ajudava na
produção do programa de televisão, quando algo inusitado aconteceu.
Meu carro era uma Brasília vermelha, caindo aos pedaços. Sob meus pés era possível ver o
asfalto passando, tamanho era o rombo no chão do carro. Vínhamos descendo a rua Tefé, que, de
tão íngreme, dá vontade de deixar o carro descer livre. Quando cruzamos a avenida Castelo
Branco, já estávamos a uns oitenta quilômetros de velocidade. De repente, percebi que um jipe
vinha em alta velocidade na mão oposta à nossa. Subitamente ele saiu de seu lado e veio sobre
nós. A velocidade com a qual tudo aconteceu foi tão grande, que não pude esboçar nenhuma
reação, a não ser fechar os olhos, proteger a face e preparar-me para a batida:
— Jesus! — gritamos juntos.
Bum, foi o estrondo.
O choque havia acontecido. Fomos jogados para o outro lado da rua. Quando abrimos os
olhos, estávamos sobre a calçada. Olhei para mim e constatei que estava intacto. Heraldo
também. Estávamos apenas completamente brancos de susto. Do outro lado da rua estava o jipe.
O motorista nos olhava com os olhos estatelados. Tentei abrir a porta do carro e sair na sua
direção, mas ele ligou o carro e partiu cantando pneu, virando à direita na primeira rua e
sumindo. Heraldo e eu saímos do carro e ficamos procurando o lugar da batida. Naquela lata
velha, até um vento mais forte poderia deixar a marca. Nada. Não encontramos nada.
— Pastor, que bateu, bateu. Eu senti. A gente foi jogado de lá pra cá. Como é que pode não
ter acontecido nada nem com o carro, nem com a gente e nem com o outro cara? —
perguntou-me Heraldo perplexo, fazendo a mesma pergunta que eu não cessava de fazer a mim
mesmo desde que saíra do carro e constatara aquela coisa estranha.
— Meu irmão, acho que Deus mandou Seu anjo. Acho que o barulho que a gente ouviu foi o
dos carros se chocando com a mão do anjo do Senhor — falei, fazendo uma confissão de fé que
para a maioria das pessoas modernas pareceria um delírio alucinado. Para mim, entretanto, não
havia dúvida. As forças do mal haviam tentado barrar o meu caminho, mas o Senhor estendera a
mão para nos proteger e nos fazer chegar a um outro chão, onde Seus propósitos teriam
continuidade nas nossas existências. Isto porque, quando se anda na presença de Deus, pode-se
contar com a conspiração dos anjos e isso não só pára os carros, mas nos capacita a passar sobre o
dia da morte na direção de novas fronteiras de vida e possibilidades.
Capítulo 35

“Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o


sabias, mas não o indicaste nem a mim nem à minha mãe, que chorou atrozmente
minha partida, seguindo-me até ao mar.”

Santo Agostinho, Confissões

— P apai, não sei como lhe dizer, mas estou pensando seriamente em sair de Manaus e
voltar para o Rio. Estou viajando muito e acho que não está certo ficar tanto tempo longe de casa e
da igreja. Não posso criar meus filhos longe de mim e Alda não vai suportar a situação por muito
tempo. As distâncias são longas, por isso em cada viagem eu me ausento por muitos dias. Acho
que Deus está me dizendo que devo sair daqui — disse a ele, enquanto aquele velho biquinho de
constrangimento se formava em sua boca. — O que o senhor acha? — perguntei.
— Eu acho ridículo. Acho um absurdo. Mas que autoridade eu tenho para falar de atitudes e
decisões ridículas e absurdas? Eu também tomei decisões ridículas um monte de vezes. Mesmo o
fato de ter voltado para o Amazonas como pastor, a fim de viver como eu vivo, foi uma loucura.
Então, filho, eu não quero que você vá. Mas se você for, que Deus abençoe a sua decisão —
disse-me com duas grossas lágrimas rolando pelo seu rosto.
A decisão de sair de lá era, todavia, dificílima. Alda e eu oramos muito buscando ouvir a voz de
Deus.
— Eu só saio daqui se Deus me falar de modo audível — foi o que eu disse a Alda. — Vou
pedir a papai para não falar com ninguém sobre o assunto. Vou pedir a Deus que fale com as
pessoas e diga a elas que nós devemos ir daqui — combinei com minha esposa. — Quero três
sinais. O primeiro é o de ir ao Rio e conseguir dinheiro, em apenas trinta telefonemas, para botar
nosso programa de TV no ar. O outro é o nosso sustento financeiro como família, já que eu não
ganho nada da Vinde. E o último é a comunicação de Deus com nossos amigos, falando-lhes
sobre nossa saída.
Os dois primeiros sinais foram rápidos. Vim ao Rio, fiz as trinta ligações telefônicas para
velhos amigos, e na vigésima sétima já tinha o dinheiro todo para pagar ao SBT pelo espaço de
domingo, às oito da manhã, que eles nos venderam. Conversei com meu amigo, o reverendo
Antônio Elias, e ele me chamou para vir sucedê-lo à frente da igreja de minha adolescência, a
Igreja Betânia, em São Francisco, Niterói. Mas e o último sinal? Esse não dependia de mim, mas
de Deus falar ao inconsciente coletivo. Dei duas semanas de prazo para o Espírito Santo fazer
aquele comunicado. Caso contrário, eu não sairia do Amazonas.
Nas duas semanas seguintes, eu ouviria uma sucessão de narrativas de sonhos, visões,
revelações, impressões e de certezas indubitáveis.
— Sonhei que você estava indo do nosso meio — um disse.
— Fechei os olhos para orar e vi você de mudança para o Rio — falou um outro.
— Li um livro que falava de um rapaz que se converteu aos 18 anos, foi ordenado aos 21 e
mudou para uma cidade grande aos 26 para expandir seu ministério. Você está com 26 anos
agora, não está? — perguntou-me o pastor Alcebiades Vasconcelos, da Assembléia de Deus.
Enfim, foram exatamente duas semanas de histórias assim. Treze narrativas, ao todo. Então,
os comunicados cessaram de uma vez.
Após aquela sucessão de coisas, Alda e eu viemos ao Rio ver onde iríamos morar. Ela desejava
ficar perto da família, no Méier. Eu preferia ficar perto da igreja, do outro lado da baía de
Guanabara. No fim, decidimos juntos por Niterói. Mas no processo de decisão, algo estranho
aconteceu.
Havia um pastor presbiteriano muito conhecido no Rio àquela altura. E quando eu morava em
Manaus, sempre que vinha para as bandas do sudeste eu pregava na igreja dele, em Copacabana.
Ele, o pastor, era um homem estranho. Parecia místico, mas ao mesmo tempo mostrava-se
completamente cético em relação a quase tudo. Só andava vestido com aparatos religiosos, mas ao
mesmo tempo era um ferrenho crítico da religião. “Eu não sei qual é a desse cara”, Alda dizia.
Num daqueles dias, ele nos convidou para ir até o seu encontro para um almoço e, em
seguida, para uma reunião na qual eu falaria. Tudo aconteceu conforme o previsto. Quando já
estávamos saindo, ele nos levou até a porta dos fundos da igreja, que dava para uma rua lateral.
Ele estava vestindo um paletó preto sobre uma camisa de colarinho clerical de tom azul-claro.
Seus olhos castanho-amarelados, expostos à claridade, brilhavam de modo sedutor e penetrante.
Enquanto ele falava, fixei-me no movimento do vasto bigode que ele usava.
— Meu irmão, você poderia vir trabalhar aqui comigo. Você tem coisas que eu não tenho e eu
tenho coisas que você não tem. Juntos, você e eu, podemos balançar esta cidade. Pense nisso e
veja se quer vir se juntar a mim aqui em Copacabana — falou-me com aquela voz de sotaque
diferente e tom nitidamente sacerdotal.
Saí dali e fui pregar em São Paulo. Falei quatro noites na quadra da Associação Cristã de
Moços. No domingo à tarde, fomos almoçar com o pastor Valter Rodrigues, organizador do
evento. Após o almoço, ele me chamou num canto e disse que queria me contar um sonho que ele
tivera na noite anterior e que o deixara muito angustiado.
— Eu vi você e Alda em pé na frente de uma casa com cara de igreja. Falando com vocês,
estava um homem moreno, de olhos claros e de bigode, que usava uma roupa preta de religioso.
Ele estava com a mão no seu ombro, dizendo: “Venha trabalhar comigo. Nós podemos nos ajudar
muito. Juntos nós vamos fazer coisas grandes.” Olha, irmão, no meu sonho uma voz dizia pra
você ficar longe dele, pois ele está envolvido com coisas estranhas que logo virão à tona, e se você
estiver perto, elas vão destruir você e seu futuro. Houve alguma coisa assim com você,
ultimamente? — perguntou ele, enquanto eu não acreditava no nível de detalhamento daquela
revelação.
— É, houve sim. Há poucos dias — falei assustado, e contei a história toda para ele. Oramos
juntos e agradecemos a Deus por ter me livrado daquela cilada espiritual.
Eu e Alda retornamos e começamos a fazer as malas. Um pouco antes de sair de Manaus, vi
meu amigo de outros tempos, Neto. Agora, sete anos depois de nossas aventuras, ele também
havia passado por processos de conversão. Mesmo que ainda praticasse jiu-jítsu, estava
inteiramente dedicado à política. Após concluir brilhantemente o curso para diplomata, havia
decidido ingressar no Itamarati. Entretanto, não demorou a descobrir que o germe da política
habitava seu sangue.
— Sabe quem está aí? — perguntou-me um dos membros de nossa igreja. — É o Artur Neto
— respondeu sem nem me deixar perguntar quem era.
Mencionei o nome dele à igreja, abracei-o à porta e nunca mais o vi. Apenas acompanhei sua
carreira política à distância, como faço até hoje.
Conforme se aproximava o momento da partida, nossa saudade antecipada crescia, sem cura
ou remédio. Choramos seis meses nos despedindo dos amigos e partimos para o Rio de Janeiro
no dia 4 de fevereiro de 1981.
A vida em Niterói era infinitamente mais tranqüila que em Manaus, espiritualmente falando.
Perto de dois grandes aeroportos, eu podia me movimentar com desenvoltura, ainda que nos
primeiros seis meses eu tenha ficado mais concentrado no crescimento da minha igreja local,
que, ao final daquele período, já estava pequena para o público que afluía, razão pela qual
começamos a pensar em fazer três cultos por domingo: um de manhã e dois à noite. Minha
ênfase, naquele período, era no aconselhamento psicoterapêutico das ovelhas. Estava lendo
muitos livros sobre a alma humana e descobri um profundo e doloroso prazer em ouvir pessoas e
suas dores. Quando alguém saía de um buraco escuro, eu me alegrava imensamente, mas,
enquanto isso não acontecia, muitas vezes eu mergulhava junto.
No segundo semestre de 1981, as viagens reiniciaram. Eu viajava duas vezes por semana.
Corria o Brasil pregando em todos os lugares. Multidões reuniam-se para ouvir a mensagem. A
sensação que eu tinha era a de que estávamos fazendo história de fé onde quer que fôssemos.
Em meio a tudo isso, Alda ficou grávida pela quarta vez. No dia 10 de janeiro de 1983, nasceu
Lukas, nosso quarto filho. Entretanto, com o seu nascimento, possivelmente associado ao
excitamento de nosso estilo de vida — bem mais equilibrado do que em Manaus, mas ainda
intenso demais —, Alda entrou num processo de depressão. Não conseguia sair da cama.
Pendurava Lukas em seu seio e os dois dormiam de dia e de noite. Graças a Deus o menino era
quietíssimo, pois do contrário Alda teria sofrido muito mais. Não é fácil precisar cuidar de uma
criança quando se está vivendo em depressão. O problema foi que não somente ela experimentou
aquele quadro de mergulho abissal na alma, mas eu, inexplicavelmente, sofri algo semelhante.
Temor e tremor, Conceito de angústia e O desespero humano era a trilogia existencial de Sören
Kierkegaard que eu estava lendo naquele início de ano. Aquele mergulho na condição existencial
do ser humano que me foi induzida pelo filósofo dinamarquês puxou-me para uma região de
tamanha escuridão e angústia, que eu quis morrer. Tanta foi a dor daquele encontro com os
enervamentos de minha alma, que numa noite quentíssima, naquele mês de janeiro, achei que a
morte estava ao meu lado. Nosso apartamento dava de frente para a praia das Flechas e de lá se
tinha o que os cariocas dizem ser a melhor coisa de Niterói: a vista do Rio. Mas naquela
madrugada tudo estava sem cor e beleza. Minha angústia de ser um humano assentou-se tanto,
que fiquei com medo de ser puxado pelo vácuo que me seduzia para além da janela. Pulei de costa
no sofá macio e marrom que havia ali e me agarrei a ele. “Jesus, eu não sei o que está acontecendo
comigo. Mas seja o que for, eu repreendo em Teu nome. Se for coisa da minha alma, cura-me. Se
for ataque satânico, livra-me disso agora, pois não agüento mais”, orei em agonia.
Depois daquela noite, aproveitando o sentimento que me havia visitado e imaginando a
quantidade enorme de cristãos que possivelmente estavam passando por coisas semelhantes,
decidi publicar um livro que eu havia iniciado em Manaus, mas que havia deixado na gaveta.
Enchi o livro de respostas à angústia humana e lancei-o. Viver: desespero ou esperança? foi o
título que escolhi.
Aquela angústia, entretanto, saiu de mim na semana seguinte. A de Alda, no entanto,
prolongou-se por cerca de três meses e foi diminuindo aos poucos, até que desapareceu
completamente. Refeitos de alma, começamos a correr outra vez. E a agitação foi tão grande, que
em 1982 falei durante o ano para aproximadamente meio milhão de pessoas, de norte a sul do
Brasil, nos eventos onde pregava. Contudo, isso começou a me causar problemas na igreja
Betânia. Uns por excesso de amor, outros por mero egoísmo de não dividir o pastor com mais
ninguém, e outros ainda por razões de puro tradicionalismo — o fato é que comecei a ser
pressionado a não viajar tanto. “Se me pressionarem, eu jogo tudo para o alto”, dizia a Alda.
“Gosto de ser pastor de uma comunidade, mas sempre disse a eles como é que eu vivo e como as
coisas seriam entre nós. Não enganei ninguém. Agora, não podem querer mudar as regras do
jogo”, eu insistia.
Nunca havia viajado e pregado tanto em toda a minha vida como o fiz em 1983. Foram
centenas de viagens, cerca de três por semana, e mais de seiscentas pregações, quase todas
diferentes, o que demandava enorme variedade de sermões e muito estudo. Além disso, houve a
doença de Elisa. Filha de amigos meus, ela adoeceu aos 15 anos de idade, vítima de um câncer
que provocou sua morte aos 18. Eu a acompanhei durante os três anos e sofri muito a dor de sua
partida.
Em razão de tudo isso, quando entramos em 1984, minha saúde começou a ficar abalada.
Tive uma sucessão de arritmias que, à medida que se repetiam, ficavam cada vez mais longas. Até
que tive uma tão forte, que me levou para um CTI. Passei o ano todo tendo fibrilações atriais,
conforme me foi explicado, que pioraram tanto, que precisei fazer uma pesquisa profunda, a fim
de que sua causa pudesse ser identificada. O estresse contribuía, mas a causa podia ser outra.
Depois de uma peregrinação por muitos médicos, a origem foi diagnosticada como congênita. Eu
tinha mais condutos elétricos no coração do que precisava. E agora, sob permanente tensão,
aquilo se manifestara. Dava curto-circuito, o coração fibrilava, e eu me sentia como se estivesse
morrendo cada vez que a coisa chegava.
No meio daquele ano, o médico me disse que, se eu continuasse a viver daquele jeito, poderia
morrer a qualquer momento.
— Os candidatos a governo fazem isso de quatro em quatro anos e, ainda assim, só no estado
onde vivem. Você parece que é candidato à presidência da República, viajando o país todo, só que
com o agravante de que a campanha parece não acabar nunca — disse-me o Dr. Ivan.
Os amigos me telefonavam e pediam para eu cortar alguma coisa. “Mas o quê?”, eu queria
saber. Depois de muito ponderar, discutir e orar, decidi que deixaria de ser pastor local e me
dedicaria exclusivamente às atividades nacionais da Vinde, pois as viagens me cansavam, mas era
na igreja local que eu tinha de lidar com a beleza e a complexidade da condição humana, e como
eu não tinha o tempo todo para dar, sofria imensamente por não poder dar continuidade de
atendimento às pessoas.
Em janeiro de 1985 eu deixei de ser pároco comunitário e disse para alguns amigos,
parafraseando o pregador inglês John Wesley: “O mundo é minha única paróquia.”
Naquele mesmo ano, numa ida de manhã cedo ao aeroporto do Galeão, olhei para o lado e
levei um susto. Era meu amigo Pinho, aquele a quem eu havia traído 12 anos antes, ainda em
Manaus, nos dias de minhas grandes loucuras. Conversamos rapidamente. A aparência dele era a
mesma, mas dava a sensação de que ele ficara lá, fincado no passado, sem conseguir construir um
caminho para fora daquelas lembranças da juventude.
— É, bicho, tô aí. Parei de exercer a engenharia e tô aí. Só isso — disse-me ele.
Abraçamo-nos e despedimo-nos. Nunca mais o vi até hoje.
Capítulo 36

“A alma manda na proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens não
são executadas, porque é a vontade que dá a ordem de ser uma vontade que nada
mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão por que não
faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandaria que fosse,
porque já seria.”

Santo Agostinho, Confissões

Em maio de 1984, em meio a fibrilações e muitas dúvidas sobre o caminho a seguir, eu ia


entrando no escritório da Vinde, no centro de Niterói, quando vi uma senhora que conosco
trabalhava em pé na fila do elevador.
— Bom dia, dona Mariana — saudei-a.
— O dia num tá bom não pastor — respondeu ela, fugindo à sua característica de pessoa
sempre muito positiva.
— Mas o que houve, dona Mariana? — quis saber de pronto.
— É que tem uma nenenzinha de três meses lá pertinho de casa que está morrendo.
Elazinha é linda pastor. Se eu já num tivesse criado oito, eu ia pegá elazinha pra mim. Mas num
dá. Tô velha e muito cansada. Mas dói o coração. Dói mais ainda porque tem uma macumbeira lá
perto que disse que cria a menina, se ela for consagrada prus espírito — esclareceu a mulher de
Deus.
— Não entendi. Por que elazinha tá assim, abandonada? — perguntei.
— É que a mãe sumiu e o pai num quer criar. Diz que ele num sabe se é o pai. Entregaram
pruma mulhé que tá criando. Mas é pobre, coitada. Sai de manhã, dá araruta pra bichinha, e só
volta de noite. À tarde tem uma menina que vai lá, dá mais comida. Mas a bichinha tá morrendo
— falou com lágrimas nos olhos.
Subimos juntos no elevador, absolutamente calados. Ela chorava. Eu me angustiava. Eu sabia
que havia crianças abandonadas por toda parte. Nós mesmos, lá na Vinde, já tínhamos um
trabalho social na favela do Sabão, que Silvia e Cintia, nossas filhas-adultas do coração, tocavam
com toda paixão. E eu conhecia o estado daquelas crianças de favela. Mas é diferente quando
alguém vem, mostra uma criança com endereço e diz que ela está morrendo.
“Ela não tem nada e já criou oito. Eu não tenho muito, mas tenho bem mais que ela, e só me
arrisquei a ter meus próprios filhos”, pensei entristecido.
Entrei na minha sala, ajoelhei-me, orei e levantei com uma decisão. “Se a Alda topar, a gente
pega ela agora mesmo”, pensei sem avaliar que eram nove horas da manhã e que havíamos
amanhecido com três filhos e estávamos correndo o risco de, na hora do almoço, já termos um
quarto, agora uma filha. Seria uma gravidez de três horas. “Mas e os outros filhos? Será que
aceitarão? E Lukinhas, será que ele vai assimilar uma maninha que chegue tão de repente?”,
foram questões que me visitaram com intensidade, mas que descartei de imediato.
— Aldinha, tem uma menina morrendo lá no Rio. Uma macumbeira quer criá-la dedicada
aos espíritos. O que você acha da gente adotá-la? — perguntei assim, de chofre.
Alda e eu já havíamos falado em adoção muitas vezes. Três meses antes eu havia até mesmo
dito a um casal de amigos, Dr. Benjamim e dona Nelci, para nos avisar, caso encontrassem no
Hospital Evangélico alguma criança órfã. Mas jamais pensei que a coisa fosse acontecer de fato,
principalmente assim, de supetão.
— Se você quiser adotar, eu estou totalmente aberta — Alda falou com extrema segurança.
— Então, olha, seu Manelzinho tá indo aí te pegar pra levar lá na favela onde ela está. Dona
Mariana e ele passarão aí dentro de uma hora. Fica pronta — falei sem medo de que estivéssemos
tomando uma decisão errada. Ao contrário, aquela era uma decisão para a qual, naquela hora, eu
não sentia nenhuma necessidade de orar ou de pedir sinais a Deus. O sinal era o fato em si.
Quando eles chegaram lá, encontraram uma garotinha inchada e com fortíssima dificuldade
de respiração. Ela tinha uma hérnia umbilical muito grande, seu umbigo estava completamente
para fora, e algumas feridas na cabeça. E a pobre menina estava enrolada numa camisa do
Flamengo, se pelo menos fosse do Botafogo, já seria bem melhor.
A senhora que tomava conta dela mostrou a neném e depois perguntou:
— Gostou?
— Olhe, minha senhora, eu quero essa criança pra mim. Mas eu só vou levar se a senhora me
disser que ela vai ser minha pra sempre. Eu vou amá-la como amo os filhos que saíram de mim. O
futuro deles será o dela. O que eles tiverem, ela também terá. Mas não tem volta. A senhora tem
certeza que a mãe e o pai não a querem? — perguntou Alda nervosa.
— A mãe sumiu. O pai disse pra eu nem dizê pra ele o que aconteceu. Então pode levá. Se
ficá aqui, morre — ela respondeu em cima da bucha.
— Meu marido é uma pessoa fácil de ser identificada, mas a senhora vai me prometer que
nunca vai tentar ir atrás de nós. Certo? — insistiu Alda.
— Pode levá, minha senhora. Esta criança precisa de um lar e nós não temos condições de
cuidar dela — falou.

Silvia e Cintia eram duas jovens que Alda e eu havíamos conhecido em São Paulo, em 1979,
quando ainda eram adolescentes. Com a nossa mudança para o Rio, elas vieram trabalhar no
projeto social da Vinde na favela. Como nosso amor por elas era muito forte e os cuidados que
lhes dispensávamos eram paternais, elas acabaram nos chamando de “papai e mamãe”, ainda que
muita gente achasse aquilo sem cabimento. Nós e elas, contudo, não dávamos a menor
importância.
— Papai, você não vem conhecer sua filha caçula — Silvia brincou comigo ao telefone, mas
somente às quatro da tarde consegui correr para casa para ver o bebê.
O estado físico da criança era dramático.
Ciro e Davi vibraram com a chegada de Juliana, como a chamamos. Lukas, entretanto, com
seus dois aninhos, ficou morto de ciúmes. Ela chegou e levou o quarto e o bercinho dele, que
foram pintados de rosa. Além disso, tomou-lhe o privilégio de ser o caçula da família.
Três dias depois de estar conosco, Juliana começou a morrer. A respiração foi cessando e o
quadro se agravou. Nós a internamos com urgência.
— É bronquiolite aguda — decretou Ângelo, nosso médico e amigo.
Durante dez dias ela ficou entre a vida e a morte. Alda esteve os dez dias ao pé de sua cama.
Silvia e Cintia também se revezavam durante a noite, enquanto eu cuidava dos três meninos.
Enfim, nossa princesa sobreviveu. Demos graças a Deus e entendemos que havia um lindo
propósito divino na existência dela.
Lukinhas, entretanto, começou a aprontar tudo que podia. Pegava os peixinhos vermelhos do
aquário, jogava no vaso sanitário e fazia caquinha em cima dos bichinhos. Às vezes os deixava lá,
atolados naqueles icebergs marrons, outras vezes, dava a descarga. Apanhava o coelhinho dele,
colocava dentro da geladeira e depois perguntava: “Cadê o coelhinho?”, até que alguém o
encontrasse quase morto de frio. Uma vez Alda o viu entrando pela casa com um gatinho
recém-nascido todo enfiado na boca. Freqüentemente ele pulava de cima de lugares altos,
quebrava a cabeça, o queixo, rasgava-se todo. Até desaparecer de casa por quase duas horas ele
conseguiu, deixando Alda desarvorada de angústia.
Tudo aquilo tinha a ver com a chegada súbita de Juju, e nós sabíamos disso. Assim,
investimos tempo nele e nos concentramos na intenção de demonstrar o compromisso de nosso
amor para com ele. Eu mesmo, como demonstração disso, cancelei 50% de minha agenda de
1985 para dar atenção a Luke-Luke, como o chamava.
Aproveitei a necessidade que estava tendo de ficar mais na cidade em função de meu filho e
parti para tentar organizar a Vinde como instituição. Até o ano anterior, como eu dividia meu
tempo com a igreja, não me havia sobrado uma folga para me concentrar efetivamente na
intenção de fazer a Vinde crescer. Agora, entretanto, chegara a hora. Sabendo que eu estava
procurando gente para trabalhar conosco, muitos se apresentaram como voluntários ou como
pessoas que me garantiam já ter seu próprio sustento e que queriam apenas trabalhar ao meu
lado.
Poucas vezes me arrependi tanto na vida. A maioria dos voluntários eram pessoas loucas,
desequilibradas, escondidas atrás da religião para disfarçar sua doença de piedade e justificar
suas esquisitices com o álibi de que eram guiadas pelo Espírito Santo, daí serem tão imprevisíveis
e estranhas. Agüentei aquilo uns dois anos e então dispensei aquele tipo de ajuda para sempre.
No início de 1986, voltei a viajar com mais intensidade. O problema é que, como eu já era
bastante conhecido no meio evangélico, acabei me tornando peru de festa cristã. Não parava de
correr, mas meu universo foi se tornando cada vez mais “religioso”. Falava para pastores e líderes
umas cem vezes por ano e pregava em igrejas ou cidades, mas sempre com maioria evangélica
nos eventos. Em 1988 eu estava muito frustrado. De ponta a ponta do Brasil meu nome era
conhecido, fosse pelos livros cristãos que escrevia em grande quantidade e que eram muito lidos,
fosse pelo fato de que minha presença era obrigatória em qualquer coisa de peso que fosse
acontecer no meio evangélico. Eu, entretanto, sentia saudade da vida de aventuras e desafios que
vivera no início de meu ministério no Amazonas, pois, sem querer e de modo imperceptível, a
igreja havia me domesticado. Eu corria muito, mas era uma movimentação entre os mesmos e
sempre para dentro das paredes da instituição.
— Você é uma unanimidade nacional — diziam-me dezenas de pessoas.
— Você não pode comprar idéias e causas controvertidas — diziam-me outros.
— Você tem que ser o grande conciliador evangélico do Brasil — afirmavam, com claras
intenções de me transformar em ponte política, alguns outros.
Minha dor, contudo, tinha a ver com o fato de que eu não crera no evangelho por causa de
nenhuma promessa de estabilidade, mas justamente em razão de seu apelo livre e revolucionário.
Essas idéias todas estavam dentro de mim e eu ainda as ensinava. Na prática, entretanto,
tornara-me animal de estimação da Igreja Evangélica Brasileira. E naquela condição, eu não
estava disposto a viver e muito menos morrer.
O único chão onde me dava prazer viver era naquele lugar em que se anda sobre algo real e
sólido, porém de onde se pode ver o perigo. E era para longe desse chão, que existe apenas na
beira do caos, que sutilmente eu tinha sido levado. E distante dali, o único prazer que me fora
deixado era o de ensinar que esse lugar existe. Entretanto, o sentimento de afastamento de sua
fronteira me frustrava e me adoecia.
Assim, apesar de tanto sucesso religioso, eu andava triste.
Capítulo 37

“Não houve, pois, tempo algum em que nada fizeste, pois o próprio tempo é obra
Tua. E nenhum tempo Te pode ser coeterno, porque és imutável; se o tempo
também o fosse, não seria tempo.”

Santo Agostinho, Confissões

Eu estava recebendo centenas de convite por ano para viajar. Saía de manhã e voltava à noite.
Muitas vezes os filhos nem ficavam sabendo que durante o dia eu tinha ido a Belém do Pará e
voltado ainda a tempo de colocá-los na cama. E assim o ritmo se acelerava, inclusive com viagens
freqüentes para outros países. Convites para ser paraninfo de turmas de seminário e para dar
aulas de abertura em cursos teológicos amontoavam-se na mesa de minha secretária. Mas alguma
coisa em mim se sentia profundamente desconfortável com tudo aquilo. A sensação que me dava
era que o melhor de minha vida ficara no meio da floresta. No Rio de Janeiro, eu me tornara
filosoficamente mais profundo, mais equilibrado, mais politizado, mais crítico e mais refinado. E
era só. Mas isso apenas me colocava na vitrine da igreja, não no campo minado de batalhas pelas
quais vale a pena viver e morrer. Eu me sentia como um ser desenhado para existir entre a
estabilidade e o caos. No chão do estável eu me angustiava, com medo de perder a criatividade.
Na beirada do caos eu me continha, temendo uma ação de natureza suicida. Mas se eu tivesse de
escolher entre um dos dois cenários, sem dúvida eu diria que preferiria a proximidade criativa e
lúcida do caos que a necrosante estabilidade dos terrenos planos e estáveis.
Eu estava daquele jeito não por falta do que fazer. Projetos sempre havia. Tinha criado uma
editora para publicar meus livros e estávamos lançando um curso pioneiro, o VindeSat, por meio
do qual instalaríamos centenas de antenas parabólicas nos telhados das igrejas e passaríamos a
transmitir uma aula semanal de duas horas de duração, ao vivo, e com direito a interatividade, via
telefone.
— Alda, não dá pra gente continuar aqui do jeito que as coisas estão. Sinto que estou
desperdiçando minha vida. Se for pra viver assim, é melhor voltar pra Manaus — falei com
angústia no peito. — Acho que a gente tem de sair do Brasil por um tempo. Vamos estudar nos
Estados Unidos. Eu preciso ficar fluente em inglês a ponto de poder pregar na língua — disse
decidido, como quem já ia sair dali para comprar passagens de avião e visitar os possíveis lugares
de pouso para nossa família.
Naquela época, eu já podia pensar em fazer isso sem susto, pois desde janeiro do ano anterior
eu havia conseguido reunir um time base de assistentes que me dava a certeza de que poderia ir e
voltar sem que tudo estivesse arruinado.
Henrique Ziller era o diretor executivo. Sério, coerente e comprometido, ele me passava a
idéia de continuidade e honestidade. Tissiani Cavalcante era o homem do marketing. E Cristina
Christiano a mais dedicada secretária que eu já tivera e que poucos poderiam almejar ter igual.
Além disso, eu tinha três amigos que estavam dispostos a financiar parte dos meus estudos e
pagar as despesas da folha de pagamento dos vinte funcionários que tínhamos na época, os custos
de satélite e a conta da televisão, visto que as demais atividades eram auto-sustentáveis.
Daniel Vera e Alípio Gusmão eram empresários bem-sucedidos. Baltazar, o artilheiro de
Deus, não era rico, mas extremamente generoso, e também fazia parte daquele trio que criou as
possibilidades que me puseram fora do país.
Avaliando as circunstâncias, Alda e eu decidimos que não haveria outra chance melhor para
realizarmos aquele projeto. Assim, depois de visitar amigos em diversos estados americanos,
escolhemos a cidade de Claremont, na Califórnia.
Nos primeiros quatro meses não fiz outra coisa a não ser estudar inglês 17 horas por dia. Nos
fins de semana gravava meus programas de televisão, as aulas do curso via satélite, escrevia os
artigos de jornais e revistas cristãos e fazia outras pequenas coisas.
Ao término do curso de inglês, decidimos ficar pelo menos mais dois anos, mantendo tudo no
Brasil do jeito que estávamos fazendo, sendo que eu voltaria a cada cinco meses. Deu certo.
A vida na América era confortável, porém tediosa. No Fuller Theological Seminary, em
Pasadena, o ambiente acadêmico era intelectualmente sofisticado, mas muito lento para o meu
gosto. Os cursos que fiz não me motivavam o suficiente para me manter com a adrenalina no nível
ideal. Estava sempre querendo mais excitment. O que quebrava a mesmice do ambiente
supercontrolado da vida em Claremont eram os terremotos que aconteciam de vez em quando
para a suprema excitação das crianças e para embalar as conversas na vizinhança.
A falta de mais desafio foi o que me levou a decidir fazer um curso paralelo, autodidata, sobre
a obra do filósofo, mestre em direito romano e história, o francês Jaques Ellul. Eram 45 livros
grossos e densos. Mergulhei neles e nos seus mais diversos temas. Eram trabalhos sobre
urbanidade, ideologia, sociologia, política, dinheiro, modernidade, tecnologia, angústia, perversão
do cristianismo e um leque imenso de outros atrativos. Ellul encheu minha vida naquele período.
Enquanto isso, os quatro filhos, perfeitamente integrados na escola e se sentindo confortáveis
na língua inglesa, já não queriam mais voltar. Alda, como sempre, dizia que queria fazer a vontade
de Deus. Eu, mesmo que dividido por causa das crianças, estava começando a ficar desesperado
para retornar.
Minha decisão, entretanto, era a de que, se voltássemos, não seria mais para ser patinador de
elite na arena da Igreja Evangélica. Caso contrário, era melhor ficar lá e fazer uma carreira como
conferencista internacional. Convites do mundo todo é que não me faltavam. Cheguei a receber
mais de cinqüenta convites de diferentes países naquele período. Aceitei apenas cinco, sendo um
deles para a antiga União Soviética.
Os dias que passei pregando em Moscou acentuaram meu desejo de fazer algo realmente
importante no Brasil. Lá, tive a oportunidade de constatar, como anos e anos de doutrinação
ideológica não tiveram o poder de realizar nada dramaticamente significativo nas vidas das
pessoas. E eu me sentia exatamente envolto pelas mesmas teias ideológicas que lá não haviam
gerado nada, além de paralisia econômica e social.
— Se a gente voltar, eu quero fazer algo forte na área social. Não agüento mais ver tanta
miséria, enquanto ficamos filosofando sobre mudanças políticas e reestruturação do sistema.
Uma coisa eu sei: político eu jamais serei. O que eu quero é integrar a fé aos temas de natureza
social. Sem teologia da libertação — eu já vinha dizendo há algum tempo a Lácio Pontes e
Antonio Carlos Barros, meus melhores amigos naquele período americano.
A tentação quanto a não voltar tinha a ver com o fato de que alguns amigos prudentes me
diziam que se eu pusesse minha base na América, teria todas as condições de me tornar um dos
dez cristãos neste século a falar para mais gente no mundo inteiro. Afinal, no fim de 1989, cerca
de sete milhões de pessoas já tinham vindo participar das pregações que eu fazia em estádios,
praças e outros lugares públicos. De acordo com o raciocínio daqueles amigos, se apenas no
Brasil eu já tinha alcançado aquele sucesso, o que não aconteceria se eu me atirasse ao mundo
todo? Alguma coisa, entretanto, deep inside, dizia-me que aquele não era o caminho de Deus para
mim. De fato, preferia alcançar menos gente, mas ser capaz de “fazer diferença” nas vidas de tais
pessoas, do que ser mundialmente conhecido no meio cristão, mas não afetar dramaticamente a
vida de ninguém.
— Reverendo, tem uns negócios esquisitos acontecendo por aqui — dizia-me Cristina
Christiano. — Tem um tal de Edir Macedo botando pra quebrar. O senhor precisa ver. Não sei,
não. Acho que a coisa ainda acaba mal — ela me falou mais de uma vez, para depois me dizer que
havia mandado uns recortes de jornal para eu saber o que era.
Em março de 1990, entretanto, o recém-eleito presidente Collor de Mello determinou,
pessoalmente, a minha volta ao Brasil. Confiscando a poupança de todos, deixou a Vinde em
estado crítico.
— Ou você volta, ou a gente quebra — disse-me Tissiani, aflito, ao telefone.
Fizemos as malas e retornamos.
P ARTE III

Confissões de Desespero
e Esperança
Capítulo 38

“Falo em memória e sei do que falo; mas de onde o sei, senão da própria memória?
Acaso também ela está presente a si própria por meio de sua imagem, e não por si
mesma?”

Santo Agostinho, Confissões

Para mim, até aquele momento, o Rio de Janeiro era apenas a cidade do outro lado da baía de
Guanabara, onde eu pegava os aviões e para onde eu ia obrigado. Os traumas da adolescência
fizeram o lugar tornar-se para mim a Cidade Tenebrosa. “Eu não quero criar meus filhos no Rio
de jeito nenhum”, dizia repetidas vezes, sempre que alguém perguntava por que eu morava em
Niterói.
Mas havia algo mais profundo que os meus traumas da infância para me afastar da cidade de
São Sebastião. Eram alguns cristãos evangélicos do Rio. Em 1981, quando cheguei de Manaus,
tive vontade de me enturmar com os líderes evangélicos da cidade. E foi fácil. Conheci muita
gente boa e choveram convites de todas as igrejas, tanto das chamadas históricas, como das
pentecostais e, sobretudo, das independentes, para pregações e conferências.
O problema é que eu vinha de uma experiência de fé muito singela e calcada em valores
bíblicos tidos como inegociáveis. Mas quando comecei a conhecer alguns líderes do Rio, percebi
que não era em todos que havia o mesmo espírito que meu pai me ensinara, conforme a Bíblia.
— Dinheiro pra ajudar seu programa de televisão? Claro que dou. Mas você tem que me dar
um recibo com o valor três vezes maior. Topa, irmão? — perguntou-me um grande empresário
local, famoso por sua caridade cristã dedutível no imposto de renda.
— De um outro líder a gente nunca fala nada. Nunca. Ele pode estar completamente errado.
Se levantar a voz, a gente se queima e eles continuam intocáveis — ensinou-me outro cacique,
tentando conter uma opinião que eu emitira sobre a conduta pública de uma certa celebridade
evangélica.
— Ele é um homem de caráter ruim, mas é um excelente comunicador da mensagem. Então
a gente deixa ele ir. Se fosse ruim de fala, é claro, já tinha sido tirado de ação — informou-me um
executivo de uma instituição religiosa, para minha perplexidade.
Além disso, no mesmo período, comecei também a ver quão estreito era o atrelamento que
havia, especialmente no Rio, entre certos pastores e o regime militar. Alguns dos figurões
evangélicos locais se orgulhavam de ser amigos de generais e ditadores. “Se fosse para
evangelizá-los, que deles se aproximassem — eu pensava —, tudo bem.” Mas não. Era,
sobretudo, para estar perto do poder que os salvara da ameaça comunista ou lhes garantia alguns
favores especiais, símbolo de importância e legitimidade religiosa.
Enfim, foi por tudo isso que de 1981 a 1990 eu rodava o Brasil todo pregando em praças,
estádios, ginásios de esportes, escolas, universidades e falando para pastores, exceto no Rio de
Janeiro. “O quê? Convite? Do Rio, não! Pode responder que não dá”, eu dizia sistematicamente à
minha secretária até 1988, quando fui estudar nos Estados Unidos.
Mas depois de quase dois anos na América do Norte, voltei decidido a plantar uma base forte
de ações na capital cultural do Brasil. Além disso, estava certo de que aquela experiência de dez
anos antes fora ruim porque eu ainda era muito inexperiente, daí o meu excesso de pudor e pouco
jogo de cintura.
Os planos que eu trazia comigo eram três, todos bem objetivos:

1. Incrementar as ações da Vinde e fazê-la crescer para ser a maior organização


paraeclesiástica e não-governamental do país, no meio evangélico. Sobretudo, queria
transformá-la em uma grande geradora de informação entre os cristãos do Brasil.
2. Usar o capital relacional que eu tinha desenvolvido em toda a nação para promover a
criação de uma entidade que representasse os evangélicos preocupados com a ética e, se possível,
envolver o máximo possível de líderes e igrejas, tentando ser maioria.
3. Envolver-me o máximo possível com iniciativas de natureza social e assim demonstrar a
séria preocupação dos cristãos com a coletividade.

O primeiro objetivo foi fácil de alcançar. Precisei apenas começar a investir pesado e
estrategicamente em televisão, rádio, muito mailing e eventos. O segundo objetivo também não
foi difícil de atingir no que dizia respeito à deflagração do processo. Devia ser uma ação muito
mais sutil, mas foi implementada com rapidez. Assim, no dia 17 de maio de 1991 a Associação
Evangélica Brasileira foi criada em São Paulo, com a presença de representantes dos setenta
principais grupos evangélicos nacionais, e eu fui eleito seu primeiro presidente.
Atingir o terceiro objetivo, entretanto, era muito mais difícil. A razão era simples: o imenso
preconceito da mídia e dos formadores de opinião pública quanto a quem eram os evangélicos, pois
o estereótipo relacionado aos pastores nos colocava a todos no plano dos aproveitadores,
picaretas, estelionatários, fanáticos, alienados, truculentos, intolerantes e oportunistas.
Entre 1990 e 1991 era difícil você se apresentar como pastor. A sensação que dava era a de que
a categoria estava em pé de igualdade com bicheiros, traficantes e os piores políticos e policiais. E
quanto mais próximo da classe média se andasse, mais forte era o clima de rejeição que se
experimentava. Não havia apedrejamento, nem qualquer violência, como houve quando da
chegada protestante ao Brasil. Entretanto, levei muita pedrada de olhares e sofri muito
enforcamento psicológico em lugares sofisticados.
Nunca botei a culpa daquilo no diabo ou em qualquer tipo de conspiração católica contra nós.
Desde cedo percebi que nosso problema tinha a ver, sobretudo, com as coisas erradas que alguns
ditos evangélicos faziam e que se tornavam a referência a partir da qual todo o grupo era julgado.
E a única forma possível de enfrentar a situação exigia uma ação com duas faces: alguém ou
alguns teriam de correr o risco de denunciar aquele modelo pseudo-evangélico e, ao mesmo
tempo, perder a discrição e deixar a sociedade ver as coisas boas que os evangélicos faziam. Mas
como eu na prática não sabia o modo de iniciar aquela guerrilha de redenção da nossa imagem,
resolvi apenas orar e pedir que Deus levantasse alguém para fazer aquilo.
Conheci Rubem César Fernandes em 1970 quando o vi sentado na sala da casa de seus pais,
na estrada Froes, em Niterói. Os pais de Rubem freqüentavam a mesma igreja que os meus e
eram muito amigos. Eu apenas ouvia falar do “filho de dona Idalete” que estava fora do país
fugido dos militares, acusado de ser comunista. Naqueles dias, ele era o herói revolucionário da
garotada de nossa igreja. Rubem tinha voltado da Polônia e estava no Brasil discretamente, apenas
por alguns dias. Daí aquela reunião de fim de tarde com o nosso mito. Estavam todos ali,
capitaneados por Lucilia Elias, filha do pastor, ouvindo embevecidos os relatos daquele moço
moreno, de cabelos longos penteados para trás, que davam a ele uma pinta de apache urbanizado.
Fiquei sentado, ouvindo-o em silêncio. Contentei-me, ao fim da reunião, em apertar-lhe a mão,
enquanto me recolhia à minha total alienação política.
Em 1982 Rubem já estava de volta ao Brasil há sete anos e começou a me procurar para
conversarmos sobre religião, antropologicamente falando, é claro. Daquelas conversas de
natureza investigativa, nasceu uma amizade que se remontava aos vínculos fortes entre os nossos
pais, mas que também encontrava raízes no presente, na crescente afinidade de nossas almas.
— O Rubem se diz ateu, mas é emocionalmente crente — eu dizia a muitos evangélicos que
perguntavam como eu me relacionava tão bem com um ateu confesso. O fato é que eu via nele
muito mais cristianismo do que em alguns líderes de igreja, que às vezes se mostravam pessoas
ruins de coração. Foi aquele antropólogo de berço presbiteriano quem começou a me dar umas
dicas de como furar aquele bloqueio de preconceito contra os evangélicos.
— Você tem que levantar a bandeira da ética e associar isso a questões de hoje. Senão vira
moralismo, e tá todo mundo de saco cheio disso — ele me falou ainda em 1990.
O problema é que o nosso telhado era de vidro. “Como é que a gente vai falar de ética, se todo
mundo pensa que nossa postura ética é aquela representada pela imagem pública do Edir
Macedo?”, perguntei a mim mesmo inúmeras vezes.
— Cristina, acha o telefone do Edir Macedo e diz que eu quero conhecê-lo — pedi à minha
secretária.
O problema é que Macedo não queria nem ver evangélico. Tendo saído da Igreja de Nova
Vida — denominação criada pelo missionário canadense Roberto MacLister —, Edir tinha criado
a Igreja Universal do Reino de Deus — IURD, que era uma espécie de síntese entre várias
químicas religiosas. Havia de tudo um pouco: um grito de guerra (Jesus Cristo é o Senhor!) e um
fervor na ação (Vamos ganhar o mundo para Jesus!), que eram genuinamente evangélicos;
combinados a uma teologia católico-medieval (Deus não faz nada de graça, sem sacrifício, e o
dinheiro é a moeda de troca entre o homem e as bênçãos divinas) e a uma simbologia
afro-ameríndia, com farta utilização de elementos mágicos das religiões populares, tais como sal
grosso, ramo de arruda, óleo sagrado, caminhos físicos pavimentados com sal, que abençoam
aqueles que por eles caminham, e o oferecimento de dezenas de outros objetos feitos santos, que
iam desde o estilingue de Davi até uma lavagem das mãos com o sangue de Cristo numa bacia.
Todas essas coisas eram consideradas por eles como pontos de contato entre a pregação da
Universal e a necessidade mística dos brasileiros. Do ponto de vista meramente marketeiro, era
fantástico, mas visto sob o ponto de vista dos conteúdos da fé evangélica, era um escândalo de
promiscuidade doutrinária.
E para aumentar a hostilidade de Macedo com os evangélicos, houve ainda dois episódios.
Conta-se que quando da inauguração da TV Rio, o pastor Nilson Fanini, um dos maiores nomes
dos batistas no Brasil e no mundo, pediu a ajuda do então já controvertidíssimo Macedo, a fim de
encher o Maracanã para uma festa da emissora. Edir teria dito que iria, mas sob a condição de
que ele pudesse dar uma rosa ungida para cada pessoa e também dizer uma palavra no evento.
O Maracanã ficou quase totalmente lotado com o povo da Universal. Todos falaram durante a
programação, menos Macedo. Ao fim de tudo, o locutor anunciou que o culto estava encerrado e
que, dali para frente, eles “não assumiriam mais nenhuma responsabilidade pelo que
acontecesse”.
— Com a palavra o bispo Edir Macedo — teria, então, dito o apresentador.
Macedo tomou a palavra e disse que estava muito triste. Esculachou todo mundo e pediu ao
povo que o ajudasse a expulsar os demônios dali.
— Xô, xô, xô, sai daqui, sai, Satanás — era mais ou menos o cântico que os milhares de
universais, comandados por seu líder, entoaram no estádio.
E não pararam de cantar até que todos os convidados de Fanini tivessem se retirado da
plataforma. Quando saiu o último deles, o povo explodiu em delírio. O Maracanã estava
exorcizado, conforme a visão de Edir.
Injuriado com a humilhação sofrida no Maracanã e zangado com a briga entre a Universal e a
umbanda, que estava acirradíssima naqueles dias, o pastor Nilson Fanini convocou a imprensa
para dar uma declaração sobre aquela guerra religiosa. Os jornais declararam que Evangélicos
dão apoio à umbanda contra a Igreja Universal. Foi um escândalo. Mesmo o evangélico mais
ferreamente contrário a Macedo jamais admitiria que para os evangélicos aquilo pudesse ser
verdade. “Macedo, não! Umbanda, nunca!”, era o que se ouvia em muitos círculos.
Naquele período que antecedeu meu primeiro encontro com Macedo, estive falando em
Brasília num grande encontro carismático.
— Cê vai encontrar com o Macedo? — perguntou-me Robson Rodovalho, líder do encontro.
— Eu e o César estivemos lá com ele. O cara é meio louco. Ele disse pra gente que, por Jesus, ele
faz qualquer coisa: dá cheque sem fundo, emite duplicata fria, enfim, qualquer coisa, até gol de
mão. A gente saiu de lá escandalizado.
— Eu preciso saber quem é ele, e não pode ser por terceiros. Vou lá sim! Quero senti-lo —
argumentei.
Minha secretária me informou que ele iria me receber ainda em abril, portanto, alguns dias
antes da criação da Associação Evangélica Brasileira (AEVB). Fiquei preocupado que alguém
pensasse que eu estava indo vê-lo em busca de apoio para a formação da AEVB.
O encontro seria no escritório de Edir, na recém-adquirida TV Record, agora de propriedade
da Igreja Universal, dirigida por Macedo. Esperei 15 minutos e fui recebido numa ampla sala,
com tapetes cheirando a novo e os móveis ainda com o odor do plástico que os embrulhara até
bem pouco. A mobília era cara, e embora o lugar não fosse de extremo bom gosto, também não
era brega. Para um gabinete de bispo, contudo, o ambiente era excelente e longe dos padrões
escuros da religiosidade. Uma senhora de uns sessenta anos estava passando pano nos móveis.
Quando o bispo entrou, ela olhou para ele como se São Pedro tivesse irrompido porta adentro.
— Posso continuar a limpar os móveis, bispo? — ela indagou reverente.
Ele deu com a mão, dizendo que ela podia sair. Em seguida, entretanto, falou com voz de
anjo.
— Vai, minha filha! Pode ir, minha filha!
E a velhinha foi, como se instruída por um profeta da Bíblia.
— Você deve estar pensando o que eu estou fazendo aqui, não é? — perguntei. — É que eu
tenho ouvido falar de você pela mídia e vim conferir.
— Pela mídia? Então você só deve ter ouvido coisas ruins. Pra mídia eu sou ladrão! —
interrompeu ele.
— O que me impressiona não é o que a mídia diz, mas o que você faz para só aparecer
negativamente — afirmei. — Mas eu não quero pensar que sei quem você é pelo que a mídia diz.
Eu quero conhecer você — disse. — Dá pra você me dizer como você chegou a se converter e se
tornar evangélico?
— Eu não sei se eu quero ser visto como evangélico. Eu prefiro ser visto como outra coisa.
Fiquei muitos anos com os evangélicos e só perdi tempo — ele iniciou num tom rabugento,
amargurado, quase agressivo. — Os evangélicos são todos como aquele tal de Fanini. Que cara
ignorante! Foi dizer que preferia a Umbanda a mim. Com gente como ele eu não quero nada —
confessou ressentidíssimo.
— Francamente, eu entendo o seu ressentimento. Mas me fale de sua conversão? — insisti.
— Eu vim da bruxaria e me converti na Igreja de Nova Vida. Fiquei muito tempo lá. Depois, a
Nova Vida perdeu a visão. Virou quase uma Igreja Católica, fria, sem briga, sem vontade de
crescer. Então procurei os líderes de lá e falei que estava saindo. “Vocês ainda vão ouvir falar de
mim”, foi o que eu disse pra eles. Aí comecei o meu trabalho e cresci. Não sou uma igreja. Sou
uma cruzada, um movimento de guerra contra o diabo. Mas não me dou bem com os evangélicos.
Só me perseguem. Não me entendem — desabafou.
Depois dele, foi minha vez. Contei como me tornara um cristão e quais eram os meus
compromissos de vida.
— Mas por que você faz coisas tão estranhas? E por que tanto misticismo e tanta ênfase em
coisas controvertidas? — perguntei a Macedo.
— Olha, cada um pesca com o que tem e como sabe. Você pesca com camarão. Fala bem, é
preparado e ganha gente preparada. Outro pesca com pão. Outro com minhoca. E tem peixe que
só gosta de minhoca. E tem outros que pescam como eu, com fezes. Tem gente que só gosta do
que eu ofereço. O povo que eu quero não vai te ouvir. É gente que ninguém quer. Eu quero. É o
pessoal que eu consigo pescar do meu jeito, com as coisas que eu ofereço — ele falou quase como
se estivesse filosofando sobre algo absolutamente novo.
— Mas você não acha que dizendo que cada um dá o que tem e o que as pessoas querem,
você está dizendo que o evangelho não tem conteúdo? E que a gente pode adulterar a mensagem
como quiser pra atender aos gostos deste mundo? É isso que você tá dizendo? — indaguei sem
querer ser rude, mas achando crucial a resposta dele. Afinal, era a primeira vez que eu ouvia um
líder religioso ocidental confessar com sinceridade e honestidade que os fins justificavam os
meios. Muitos agiam segundo a mesma filosofia, mas maquiavam muito bem suas ações.
Macedo, entretanto, era honesto em suas convicções e não tentava me iludir a respeito.
— Eu não tenho paciência pra filosofia. Aqui a gente não tá querendo pensar muito nessas
coisas. A Nova Vida parou porque ficou com essas perguntas todas. O negócio é ganhar gente.
Também não gosto desse negócio de Escola Bíblica Dominical e nem de seminário. Teologia tira
a garra do obreiro. Eu não tenho essas coisas na Universal — declarou e já foi logo pegando o
telefone e dizendo que “o pessoal” poderia entrar. — Eu queria que vocês conhecessem o Caio
Fábio — disse para Renato Suhett, Didini e Gonçalves, que acabavam de entrar. Conversamos
generalidades por mais uns trinta minutos.
— Olha, no dia 17 de maio nós vamos estar criando uma associação de igrejas evangélicas.
Por que vocês não mandam um observador pra ver como é? — disse.
— Eu já pensei em fazer uma coisa dessas pra mim. Depois desisti. Com evangélico não dá,
é tudo muito difícil. Só quero é que me deixem em paz — ele falou já me estendendo a mão para
a despedida.
— Como foi o encontro? — foi a pergunta que eu ouvi de todo mundo, a começar por minha
esposa.
— O Edir Macedo é uma figura estranha, que causa impacto. Está disposto a morrer pelo
que crê, mas também está disposto a tudo. É sincero e é perigoso porque há um sentimento
messiânico nele. Ele não é um picareta em busca de dinheiro. Acha que dinheiro é parte essencial
da vida espiritual, e que Deus dá valor muito especial ao dinheiro como elemento de sacrifício
para a aquisição de bênçãos, mas não quer dinheiro por dinheiro. O que ele quer é o poder que o
dinheiro dá. Eu estou impressionado com o homem. Não sei o que pensar dele além disso —
afirmei com excitação e perplexidade, certo de que jamais havia encontrado ninguém como
Macedo.
No dia 17 de maio estávamos reunidos no Centro do Professorado Paulista, criando a AEVB.
— Estão aí fora dois pastores da Universal dizendo que você mandou eles virem — falou-me
um dos introdutores do evento. Eram Laprovita Vieira e Didini que lá estavam.
— O bispo mandou a gente aqui pra entrar pra Associação e pra gente dizer lá na frente que
toda a estrutura da Universal é de vocês. Mas eu tenho que falar isso agora, no microfone —
informou-me Laprovita, o presidente legal da Igreja Universal.
Expliquei que estava honrado com a presença deles, mas que não podia interromper a ordem
das coisas.
— Não existe ainda a AEVB. Estamos criando. Como é que eu posso dar a palavra a vocês, se
nós ainda estamos votando os estatutos? Fiquem e participem. Quem sabe à tarde já dá pra vocês
falarem alguma coisa? — afirmei.
O problema é que a mera menção da presença deles lá já havia alterado os ânimos de muitos.
Pedi a Deus que nos iluminasse no caso deles virem à tarde, pois naquele contexto, se eles
falassem alguma coisa, seria um desastre. Nesse caso, como quase toda boa “associação” de
evangélicos, a AEVB já nasceria dividida. Eles não voltaram à tarde, mas também não se
ofenderam.
O problema foram as entrevistas à imprensa de São Paulo que eu tive que conceder naquela
mesma tarde, já como presidente eleito. Quase todas as perguntas tinham a ver com Macedo.
— A AEVB vai regular o levantamento de dinheiro nas seitas evangélicas? — perguntaram
sem saber que nos ofendiam duplamente, primeiro nos chamando de seitas e depois pela
ignorância de pensar que no meio evangélico as coisas pudessem ser normatizadas, “reguladas”.
— O bispo Macedo vai poder entrar na entidade? — outros indagaram.
— É verdade que o senhor já iniciou conversações a fim de obter o apoio da TV Record? —
perguntaram ainda.
— Não estamos criando esta entidade para nenhum dos fins apresentados por vocês.
Também não é para lutarmos contra o Macedo e nem para nos aliarmos a ele. Nós estamos
criando a AEVB para termos uma referência ética para os evangélicos. Chega de tanto escândalo
feito em nosso nome — afirmei.
— Mas se é pra combater escândalos, então vocês vão ter que enfrentar o Edir Macedo! —
provocou-me uma repórter.
— Olha, eu não tenho nada a declarar sobre Macedo e a igreja dele. Nem bom, nem mau.
Estou tentando conhecê-los — disse com contundência.
Os meses seguintes foram de articulação político-eclesiástica para fortalecer a AEVB. Tive
dezenas de encontros e expliquei nossos objetivos para líderes de igrejas em inúmeras ocasiões.
— Veja se você me arranja um encontro com dom Luciano Mendes — pedi à minha
secretária.
— Ele disse que vem aqui no escritório e que o senhor não precisa mandar buscá-lo —
respondeu-me Cristina sobre o encontro já marcado com o presidente da CNBB.
Admirou-me imensamente ver dom Luciano entrando no meu escritório absolutamente
sozinho e mostrando total abertura de mente e incrível simplicidade em sua atitude. Fiquei
perplexo olhando para ele e imaginando se algum líder evangélico que eu conhecia, estando na
posição dele, exporia a si mesmo daquele modo, indo a um território desconhecido com tamanha
tranqüilidade e boa vontade. À minha mente vieram apenas uns poucos nomes de gente que
agiria daquela forma no meio da liderança evangélica. Por isto, concluí que havia algo estranho
com a espiritualidade de nossos líderes, visto que, entre nós, quanto mais influente uma pessoa
se tornava mais parecida com um chefe de Estado ela se mostrava, na maioria das vezes mediante
acessos de importância pessoal completamente desproporcionais à realidade do que sua vida e
posição representavam, às vezes exagerando, inclusive, na segurança pessoal.
Expus a dom Luciano os objetivos da AEVB. Disse também que não tínhamos nenhuma
intenção de promover qualquer tipo de ação ecumênica em relação à Igreja Católica, mas que
gostaríamos de estabelecer uma relação cristã de diálogo, especialmente em questões de
natureza social e de cidadania, onde pudéssemos trabalhar juntos para o bem do Brasil. Dom
Luciano me ouviu, agradeceu o convite para o encontro, desejou-me felicidades, falou um pouco
sobre sua postura de abertura para o diálogo e partiu quarenta e cinco minutos depois.
— Este homem me deixou pensando sobre os pressupostos da espiritualidade de muitos de
nós, líderes evangélicos. Os católicos têm um papa, mas os evangélicos têm centenas de papas e
candidatos a papa. Dom Luciano, entretanto, é maior que o papa em sua simplicidade e maior
que a maioria de nós, seduzidos pelo sonho de sermos papas ao nosso próprio modo, incapazes de
nos entregarmos a uma vida mais simples — disse aos líderes da AEVB numa reunião em São
Paulo, relatando meu primeiro encontro com o então presidente da CNBB.
No dia 22 de novembro de 1991, em Brasília, capital da República, eu estava sentado ao lado
do presidente Fernando Collor de Mello, tomando café da manhã no hotel Nacional. Conversei
cerca de uma hora com Collor, enquanto passávamos manteiga em torradinhas e ouvíamos
cantores evangélicos se exibirem para o presidente da República. Em seguida, preguei uma
mensagem sobre a reconstrução de nações em caos, baseado no salmo 126. Collor ficou me
olhando com extrema atenção. Depois me disse que havia ficado impressionado com a
mensagem.
— Quando estiver em Brasília, visite-me, reverendo! — disse ele.
Terminado o encontro, Laprovita Vieira, também presente ao evento, me procurou.
— Olha, precisamos unir forças. Você tem coisas que não temos, e nós temos coisas que você
não tem — ele me disse, enquanto dava uma meia rodada sobre o calcanhar e causava em mim
uma dupla sensação de tontura: pelo movimento brusco e, sobretudo, por proferir as mesmas
palavras que eu ouvira em 1981, quando Deus me salvara de ir trabalhar com aquele pastor de
Copacabana. — A Rede Record está às ordens. Temos que nos unir! — repetiu.
Voltei ao Rio pensando em tudo aquilo. Então decidi que a AEVB não deveria aceitar nada de
graça da Universal até que nós soubéssemos muito bem quem eles eram e quais os seus
objetivos. A Vinde, entretanto, imaginei, poderia comprar espaço da emissora, assim como fazia
em várias outras redes de televisão. Imaginei que fazendo assim, duas coisas estariam garantidas:
nossa independência na relação com eles e, ao mesmo tempo, nossa disposição de conhecê-los
melhor, sem preconceitos quanto ao diálogo.
Marquei outro encontro e fui a São Paulo comprar horário na televisão de Macedo. Polícia
descobre placa fria em carro de “bispo” Macedo — dizia a manchete dos principais jornais
oferecidos dentro do avião da ponte aérea.
— Que qui eu tô fazendo aqui, meu Deus? — falei comigo mesmo e com Deus dentro de um
táxi na porta da TV Record. Havia vários repórteres de plantão no lugar. — Volte para o aeroporto
— disse ao chofer do táxi que me conduzia, que ficou sem entender nada. Esperei a coisa acalmar
e fui de novo ao encontro de Macedo no dia 19 de maio de 1992.
Capítulo 39

“Às vezes também me entristeço com os elogios que fazem de mim, quando
louvam em minha pessoa qualidades que me desagradam, ou quando dão muita
importância a qualidades medíocres e insignificantes.

Santo Agostinho, Confissões

Macedo me deu um chá de cadeira de quase uma hora. Achei estranho. Naquele
meio-tempo, Renato Suhett, que ainda era o muso da Universal, e Mariléia, secretária de Edir,
me fizeram sala, meio sem graça, não entendendo a razão de tamanha demora.
— O bispo está dizendo pro senhor entrar — disse Mariléia.
— Oi, que é que você está fazendo aqui? — foi logo me perguntando o reverendo Isaias de
Souza Maciel, presidente da Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil, que estava lá dentro
com Macedo e Washington de Souza.
— Ó, Ó, esse aí é outro traidor. Veio aqui pedir apoio, e eu dei. Depois, disse no jornal que
não tem nada nem de bom nem de mau pra falar sobre mim. É assim que me tratam. E o senhor
ainda quer me levar pra essa arapuca? Já disse que com o Fanini eu não vou pra nada — falou
Macedo com os lábios brancos, o queixo trêmulo e o dedo em riste apontando para mim.
— Olha bem pros meus olhos! Vê aqui no meu rosto se há algum movimento de agitação ou
nervosismo. Eu estou em paz com a minha consciência. Nunca enganei você. Disse desde o início
que estou tentando conhecer você. Não pedi nada e só estou aqui hoje porque vocês disseram que
tinham horário na TV pra vender pra mim. É melhor você se acalmar, pois essa sua atitude faz a
coisa aqui dentro ficar cheia de espíritos maus — falei sério, fazendo alusão à permanente
preocupação de Macedo na luta contra os demônios.
— Tá bom. Tá bom. A gente conversa depois. — E, dirigindo-se a um homem que havia sido
chamado, pediu: — Gonçalves, conversa com o Caio sobre a venda do horário pra ele. — Eu e
Gonçalves nos retiramos para uma sala ao lado e em 15 minutos acertamos tudo. Seria um
programa de uma hora, aos sábados, das nove às dez da manhã, e eu pagaria 20 mil dólares por
mês.
Quando estava voltando à sala de Macedo, ouvi o reverendo Isaias conversando, nervoso, com
Macedo.
— Pelo amor de Deus, bispo. Agora o senhor está me ofendendo. Vim aqui a convite do
Washington dar ao senhor a chance de participar de um evento de todos os evangélicos. Mas o
senhor está o tempo todo fazendo acusações a pessoas que eu respeito. Eu já não tenho idade pra
ouvir ofensas como essas. O pastor Túlio é um homem bom e inatacável, e o pastor Fanini não
iria fazer isso que o senhor está dizendo — ele dizia.
— Desculpa, gente, mas ainda estão na mesma? O que é que está acontecendo aqui? Pensei
que a coisa aqui já estivesse resolvida? — perguntei intrigado.
— É que o bispo disse que não vai e nem deixa a Universal ir ao evento do dia 6 de junho na
Cinelândia porque o Fanini vai pregar e vai colocá-lo numa arapuca. Mas eu disse a ele que o
Fanini jamais faria isso e também que você vai pregar lá e que nada disso vai acontecer. Mas ele
continua batendo nessa tecla — explicou o reverendo Isaias. — Ele disse que vamos usá-lo e
depois humilhá-lo, como fizeram no Maracanã — concluiu.
— Então, pronto. Por que é que ele tem que ir? Se não quer ir, que não vá! — falei.
O Celebrando Deus com o Planeta Terra era o evento que os evangélicos do Rio estavam
organizando por ocasião da Eco 92 (Earth Summit, para o resto do planeta), a fim de mostrar ao
mundo a nossa força. A expectativa era reunir cerca de um milhão de evangélicos nas ruas do
centro da cidade.
— Não vou, de jeito nenhum. A Universal também não vai. Estou apenas considerando se
mando nossos quatro mil obreiros. Eles têm fé pra ser humilhados e agüentar — falou com um
misto de raiva e consentimento, revelando uma lógica que eu não consegui entender.
Os ânimos se exaltaram mais uma vez.
— Em nome de Jesus, vamos parar com isto, irmãos — eu disse. — A gente fala que conhece
o diabo e que o expulsa. Mas eu acho que ninguém aqui conhece o diabo bem, não. Só
conhecemos aqueles demônios óbvios, que se manifestam nas pessoas em reuniões de exorcismo
coletivo. Mas o diabo está aqui, nessa briga, e parece que ninguém aqui consegue discernir —
disse eu, olhando para todos.
Estranhamente, Macedo nada me respondeu. Pareceu ter me dado ouvidos. Mas continuei
esperando uma resposta forte, do tipo “eu sei o que estou falando”, ou ainda algo como “deixe o
diabo fora disto”.
— Vamos dar as mãos e orar. Depois, vamos embora. Olha Macedo, se você quiser ir ao
evento, vá. Se não, não vá — arrematei, aproveitando o clima menos tenso. Comecei a fazer uma
oração espontânea, em voz alta, enquanto todos nós na sala dávamos as mãos.
Vista de fora, por gente que não tem familiaridade com as coisas da Igreja Evangélica, aquela
seria uma cena cômica. Alguns homens brigam, se ofendem, se insultam, levantam suspeições,
tremem de raiva e depois dão as mãos e oram. “Coisa de loucos!”, alguém diria. Mas para
pastores, aquela era a única maneira de voltar à civilidade antes de nos despedirmos.
No dia 24 de maio Macedo foi preso por charlatanismo, estelionato e curandeirismo.
— Caio, vê se ajuda a gente. O Macedo tá na cadeia. Isso é coisa da Igreja Católica. Dá pra
ajudar? — perguntou-me Laprovita ao telefone no mesmo dia da prisão.
Pedi que ele me enviasse as acusações via fax. Li-as e orei muito, perguntando a Deus o que
fazer. “Meu Deus, eu acho que isso só está acontecendo porque eles estão abusando do direito
que têm de professar a fé. Tornaram-se agressivos e obcecados pela idéia de ter poder. Não
concordo com o que eles fazem, mas a natureza da acusação é muito subjetiva. Dá-me
discernimento quanto ao que fazer”, falei com Deus.
Dois dias depois a AEVB iria se engajar na campanha pela Ética na Política e,
coincidentemente, naquele mesmo dia iniciaram-se as discussões sobre a abertura da CPI da
corrupção, que veio a ser conhecida como a CPI do PC. O debate seria sobre ética na gestão
pública, no auditório Petrônio Portela, no Senado, em Brasília. Convidamos para falar no evento
os líderes dos principais partidos. A maioria se fez representar, inclusive Lula, bicho-papão entre
os evangélicos.
Muitos se manifestaram. Lula foi o penúltimo e, depois de falar, preparou-se para sair. Eu
seria o último.
“Por favor não vá embora. Fique para ouvir o pastor”, dizia uma nota enviada da audiência às
mãos de Lula. Ele atendeu.
Falei sobre o tema da corrupção durante uns quinze minutos. Depois de concluir minha fala,
pedi licença ao grupo e mudei de assunto. Puxei do bolso do paletó umas quatro páginas e li um
discurso impensável para uma pessoa como eu, com os escrúpulos que até então eu manifestara.
Eis aqui parte do que eu disse naquela manhã:

“Qual é a diferença entre o misticismo dos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus e
o daqueles que vão às procissões de Aparecida ou do Círio de Nazaré? Qual é a diferença
entre as empresas do Vaticano (compradas também com dinheiro do povo) e as empresas
da Igreja Universal do Reino de Deus? Qual é a diferença entre uma santa de gesso que
chora e os alegados milagres de cura da IURD? Qual é a diferença entre os milhões de
dólares da Igreja Católica e os milhões de dólares da IURD? Por acaso não são ambos
dinheiro do povo? Por acaso não é também dinheiro que resulta de doações movidas pela
crença? Por acaso não é também, muitas vezes, dinheiro usado para adquirir propriedades
cuja administração nem sempre está aberta a auditorias públicas e nem ao gerenciamento
dos fiéis?”

Depois de dizer que a prisão de Macedo evocava também outras questões, mostrei as
preocupações que tínhamos com a possibilidade de que aqueles critérios subjetivos de
julgamento prevalecessem. E prossegui:

“Ora, tudo o que tenho dito até aqui não tem a finalidade de defender a IURD, que
nem é associada à AEVB. Nossa intenção é mostrar apenas três aspectos básicos da atual
situação de perseguição que sofre a Igreja Universal:

1. A prevalecerem tais critérios, o princípio de liberdade religiosa no Brasil sofrerá


ameaças terríveis. Especialmente quando se sabe que quem deflagrou a acusação de
charlatanismo, curandeirismo e estelionato contra a IURD foi uma outra entidade religiosa
(A Associação dos Umbandistas).
2. A prevalecerem tais critérios de julgamento, a fim de que houvesse justiça prática e
objetiva, todos os grupos religiosos do Brasil, incluindo a Igreja Católica e todas as
denominações evangélicas, deveriam ser processadas e seus líderes levados às barras do
tribunal, porque o que para uns é fé, para outros é balela e charlatanismo.
3. Se a IURD e seu líder espiritual, Edir Macedo, são passíveis de alguma punição da
lei, tal punição deve acontecer nos níveis da justiça, e de acordo com a Constituição, em
áreas mensuráveis de modo prático: sua contabilidade, seu patrimônio e seus impostos, e
não nas áreas subjetivas, nas quais só Deus pode fazer diferença entre o charlatão e o
homem de Deus, entre o curandeiro e o homem de fé ousada, entre o salafrário e o profeta.”

Até aí estava tudo bem e Macedo e seus comandados estariam satisfeitos. O problema, no
entanto, foi a proposta que eu fiz a seguir:

“A Associação Evangélica Brasileira se propõe a intervir neste caso, pedindo à IURD


que abra sua contabilidade a uma auditoria independente, contratada pela AEVB, e que
posteriormente venha a público trazer os resultados de tal auditoria. Com isso se pretende
que o caso da IURD e o bispo Edir Macedo sejam julgados com os mesmos critérios
objetivos com os quais a justiça brasileira venha a julgar os muitos corruptos que
encontram guarida à sombra do poder.”

As seiscentas pessoas presentes ao evento, para minha surpresa, puseram-se em pé e


explodiram num interminável aplauso. Olhei em volta e vi que todos estavam aplaudindo,
inclusive o supostamente renitente Lula. Terminado o evento, Lula veio falar comigo. “Olha, eu
quero me encontrar com você. Liga pra minha casa. Temos coisas muito sérias pra tratar”,
disse-me e desapareceu cercado por vários repórteres.
Dei várias entrevistas sobre a prisão de Macedo e sempre fiz questão de repetir: “Não estou
defendendo um homem chamado Macedo. Estou defendendo um princípio chamado liberdade
de fé.”
Macedo ficou agradecido, mas não completamente satisfeito. Afinal, eu o estava defendendo,
porém minha defesa não era incondicional. E para ele, aparentemente, todo e qualquer
relacionamento tinha de ser incondicional. E incondicionalidade era algo que eu tinha sido
ensinado a dar apenas a Deus.
No dia 6 de junho de 1992, cerca de 12 dias após a prisão de Macedo, pelo menos meio milhão
de pessoas estavam nas ruas do Rio e caminharam até a Cinelândia, que não agasalhou nem
mesmo 15% dos presentes ao ato. Foi uma festa fantástica, cuja preparação já vinha sendo feita
há mais de dois anos sob a presidência do pastor Túlio Barros e com a direção executiva do
reverendo Guilhermino Cunha. Mas como o bispo Edir Macedo, posto em liberdade no dia
anterior, também foi ao evento fazer uma oração de intercessão, a mídia entendeu que aquilo
tudo tinha acontecido como ato de desagravo pela prisão do líder da Universal. E não deixou de
haver elementos de ligação entre as duas coisas.
— Nunca mais vão prender pastor no Brasil. Nunca mais — gritou o pastor Fanini de cima
de um trio elétrico no meio da avenida Presidente Vargas, fazendo meu estômago gelar.
— Isso não vai dar certo. A mídia vai pensar que estamos aqui em desagravo à prisão de
Macedo — falei ao reverendo Guilhermino enquanto andávamos apressados, tentando passar
pela multidão em direção ao palanque.
— Só a TV Record tem o direito de gravar este evento. A TV Globo não — disse,
desautorizadamente, o pastor Washington de Souza, iniciando uma polarização entre redes de
televisão que a ninguém interessava. Era grande o constrangimento de toda a comissão
organizadora com tudo o que estava acontecendo.
— Eu nunca pensei que depois de tudo o que eu disse sobre os evangélicos, eles ainda
fossem se solidarizar comigo assim — disse o próprio Macedo para um documentário que a Rede
Record colocou no ar três dias após a concentração da Cinelândia, dizendo que aquele havia sido
um ato de desagravo pela prisão de seu dono.
Os pregadores daquela tarde fomos Fanini, Gesiel Gomes e eu. Cada um falou vinte minutos.
Hinos tradicionais foram entoados e o povo evangélico cantou a uma só voz suas convicções
básicas:
— Castelo forte é o nosso Deus; Os guerreiros se preparam para a grande luta; Vencendo vem
Jesus.
Macedo ficou em pé ao meu lado, no máximo a um metro de distância, durante todo o evento,
mas não falou comigo. Achei estranho. Afinal, eu havia puxado o coro pela libertação dele.
— Macedo, estamos felizes que você esteja em liberdade. Quero reafirmar meu desejo de
conhecer você melhor. Não esqueça disso — disse a ele, que mudou de expressão, deixando de
lado o sorriso e franzindo gravemente o rosto tão logo viu que não tinha como me evitar na saída
do palanque.
Edir apenas abanou a cabeça e foi passando. Enquanto isso, eu via seu namoro com Silas
Malafaia, Fanini, Washington, pastor Manoel Ferreira e outros.
— O que será que está acontecendo? Não quero ser amigo dele, mas quero honestamente
conhecê-lo melhor. O que será que eu causo nele? — perguntei a um irmão que também
conhecia o bispo Macedo.
— É que ele sabe que os outros o tratam olhando para cima, para o bispo. Mas você o olha no
mesmo nível. Ele lhe chama de Caio, e você o chama de Edir. Você o defende hoje, mas não faz
pacto de defender sempre. Para o bispo, isso é muito inseguro. Quem tá com ele tem que estar
sempre. Com você não é assim, é? — informou-me aquele irmão que tinha acesso à mesa de Edir
e que pediu para não ser identificado.
Insatisfeito com o tratamento que me fora dispensado, liguei para a casa de Macedo em São
Paulo ainda naquela mesma noite.
— Estou ligando apenas para saber se está tudo bem com você? Estou achando você
distante! — falei.
— Tudo bem, não faltará oportunidade pra nos encontrarmos — disse de modo frio,
calando-se em seguida. Não havendo mais nada a tratar, desliguei.
Alguns dias depois, Laprovita ligou-me da casa de seu filho, dizendo que ele e Didi, apelido
de Macedo na intimidade, estavam criando uma entidade para defesa de pastores.
— Mas já existe a AEVB. Pra que outra? — perguntei.
— É que a AEVB é muito elitista. Vamos criar uma coisa nossa, com o pastor Manoel
Ferreira, da Assembléia de Deus de Madureira. Mas não fique preocupado que não vamos
competir com a AEVB. Quer falar com o Didi? — perguntou.
— Quero sim — respondi.
— Alô, Macedo? Vocês vão criar uma entidade nova? — perguntei.
— Não sei se vamos. Estamos aqui conversando com o pastor Manoel — parecia sem
vontade de continuar a conversa.
— Espero que Deus abençoe vocês — falei com tristeza.
— Obrigado — disse Edir Macedo com firmeza.
Desde então orei por ele com regularidade, visto que, mesmo não concordando com seus
métodos, mantinha no coração a forte esperança de que ele reconhecesse um dia que para ganhar
o mundo para Cristo ele não precisava tentar recriar o evangelho de Jesus, adaptando-o a algo que
é, em muitos aspectos, a antítese de tudo aquilo que foi o ideal de Jesus de Nazaré.
Capítulo 40

“Bastava-me, pois, este argumento contra aqueles homens para lançá-los


completamente de meu peito angustiado, porque, sentindo e dizendo de Ti tais
coisas, não tinham outra saída que um horrível sacrilégio de coração e de língua.”

Santo Agostinho, Confissões

No final de 1992, a campanha pelo impeachment do presidente Collor agitava as ruas e os


meios de comunicação. Como contribuição ao debate no meio evangélico, e na intenção de dar
base teológica para aqueles que gostariam de subverter um governo acusado de corrupção, mas
que não tinham coragem de se insurgir contra a autoridade constituída por temor de que isso
fosse contrário à Bíblia, escrevi em seis dias — e publiquei em 15 — o livro A Bíblia e o
impeachment. Vendemos duas edições em menos de um mês.
Desde o início a AEVB havia tomado posição clara pelo impeachment de Collor, caso as
acusações fossem comprovadas ou mesmo se o presidente não conseguisse se explicar à nação.
Nossa tese era que ele não poderia governar sob tão terrível suspeição, independentemente de
ser ou não culpado.
— Ei, Caio. Olha, você precisa me ajudar. Você tem que parar de falar sobre impeachment —
disse-me Laprovita ao telefone, a propósito de um comercial de meu livro que havia sido
censurado dentro de meu próprio horário comprado na TV Record.
— Por que foi que vocês cortaram o comercial de meu livro, Laprovita? — perguntei.
— Olha, nós estamos numa situação difícil. Todo mundo quer pegar a gente. E se a gente
falar em impeachment pode ficar ruim pra nós — respondeu o deputado da Universal.
— Mas Laprovita, o horário é comprado. Basta vocês dizerem que não assumem
responsabilidade pelo que é dito naquele horário, como acontece no mundo todo — respondi.
— Não dá. A gente fez um acerto com o Collor. Olha, num dá nem pra acreditar. Ele mandou
chamar “aquela pessoa”, sabe? O Didi veio de Nova York e ele mandou nos pegar num jatinho.
Depois, fomos de helicóptero encontrar o homem. É um macumbeiro. Tá cheio de demônio. Mas
tem poder. Falou pra “aquela pessoa” que se nós puséssemos o povo na rua contra o
impeachment, se não falássemos no assunto na Record e se fizéssemos os evangélicos ficarem
calados, incluindo a Associação Evangélica e os deputados crentes no Congresso, teríamos tudo o
que pedíssemos — disse-me Laprovita com um tom de voz ofegante.
— Escuta, você não tem medo que essa conversa esteja sendo gravada? — perguntei.
— Que se dane. Se estiverem gravando, que gravem. Se quiser contar, pode contar também
— respondeu ele com irritação.
— Mas o que o “homem que tem poder” ofereceu a vocês? — perguntei.
— Disse que passa a TV pro nosso nome, valida a compra de nossas rádios todas, facilita
crédito bancário e outras coisas — falou sem hesitação.
— Mas que outras coisas são essas? — indaguei.
— Olha, “te darei tudo”, foi o que o homem disse. “Te darei tudo”, ouviu? — ele repetiu,
sem nenhuma preocupação entre a semelhança daquela frase e uma outra que havia sido dita
para Jesus dois mil anos antes por um príncipe cheio de poder.
— E você nunca ouviu essa frase antes? — perguntei a Laprovita.
— Qual? — ele indagou.
— Essa última. “Te darei tudo”; nunca ouviu isso antes?
— Não, onde?
— Lá no deserto da Judéia. Jesus havia jejuado quarenta dias e noites e o diabo veio tentá-lo,
lembra? Na terceira tentação, a do poder, Satanás disse isso a Ele: “Tudo eu te darei, se
prostrado me adorares”, lembra? — perguntei com provocação.
— Olha, pra Jesus vale gol até de mão. Eu sei que o cara é mau. Tenho provas de que ele é
tudo o que falam dele. E até pior. Mas nós precisamos dele agora. Depois tem a Record e as
rádios. Nós precisamos disso tudo pra Jesus. Então eu faço qualquer coisa. Só não dá é pra botar o
povo na rua. Eu já falei pro Macedo: “Não toma compromisso de botar o povo na rua porque o
povo não vai.” Mas o resto a gente faz por amor ao reino de Deus — disse-me com convicção.
Eu nunca achei que Laprovita e Macedo fossem pessoas mal-intencionadas. Ao contrário, a
julgar pela maioria dos objetivos espirituais, eu poderia me aliar ao empreendimento deles sem
susto. O problema eram os meios. O messianismo religioso de Macedo dava a ele e a seus
liderados a sensação de que valia tudo, desde que fosse para Jesus. E com isso eu não podia
concordar jamais. Não que eu fosse melhor do que eles ou de quem quer que fosse. Essa
auto-exaltação jamais me atingira. Entretanto, algo mais profundo, dentro de mim, dizia-me que
se aceitássemos os pressupostos éticos de Macedo, estaríamos colocando a igreja de vez dentro da
escuridão na qual ela se colocou a maior parte do tempo nesses últimos dois mil anos de história.
E, para mim, aqueles desvios eram muito mais sérios do que se fossem apenas de natureza
individual, eticamente falando. Mas como eram práticas de natureza coletiva, meu temor crescia
muitíssimo.
— Olha, eu entendo a angústia de vocês. Com toda sinceridade. Mas pra Jesus não vale gol
de mão, não. Gol de mão nunca é pra Jesus, é sempre contra Ele, mesmo que a gente diga que tá
fazendo isso pra Ele. Desculpa, mas não dá pra aceitar essa coisa. Tenho pena da situação de
vocês, mas não posso concordar. No que me diz respeito, você aumentou minha convicção pra
continuar falando a favor do impeachment. Além disso, o evangelho chegou até os nossos dias sem
rede de televisão e rádios. A TV Record e as rádios são importantes, mas por elas não vale vender
a alma. Vale? — perguntei angustiado.
O clima ficou pesado. Laprovita fez silêncio por uns dez longos segundos, então recomeçou.
— Eu tô preocupado com essa votação. Cê já pensou se eu tiver que ir lá no microfone dizer
pra toda a nação que sou contra o impeachment? Sabe, o que eu queria era que o voto fosse
secreto. Pede a Deus pro voto ser secreto — confessou-me o deputado federal do PMDB,
também solicitando minhas preces.
— Laprovita, se você quiser a minha oração, vou pedir a Deus que revele a verdade. Serve? —
indaguei.
Ele não disse nada. Então orei ao telefone, pedindo a Deus que não deixasse que uma causa
que se dizia ser do interesse do reino de Deus se tornasse mais importante do que os princípios
do evangelho, e que o deputado tivesse coragem de agir conforme a sua consciência. Alguns dias
depois ouvi ao vivo pela TV o nome de Laprovita ser chamado para o microfone do Congresso a
fim de votar. “Sim”, foi o voto dele, ajudando a selar a sorte do ex-caçador de marajás. Percebi,
naquele momento, que depois de ter conseguido que Collor assinasse o documento de
transferência da concessão da TV Record para o nome dos representantes legais de Macedo, o
deputado estava fazendo algo ainda mais complexo: dando uma volta no próprio presidente que
os havia beneficiado. Fiquei gelado. Se tinham feito aquilo com o Collor, o que não fariam com
quem quer que fosse? Percebi ali quão obstinadamente comprometidos com seus objetivos eles
estavam, e que para atingi-los, realmente, valia tudo, ou quase tudo.
Aquele episódio afetou-me profundamente. Mesmo não tendo nada a ver com o que
acontecera e tendo aconselhado Laprovita a tomar outro caminho, minha consciência não me
deixou em paz. Sabia que aquilo estava sendo feito em nome dos evangélicos e me sentia numa
relação de concubinato pelo mero fato de saber o que estava acontecendo.
Saí com minha família para uma fazenda nas montanhas. Não falei com ninguém o que estava
se passando dentro de mim. Fiquei horas a fio em profunda solidão. Andava sozinho pelas trilhas
do lugar, sentindo um estranho desassossego me dominar. Nem o maravilhoso cheiro de
eucalipto eu conseguia saborear como de costume. O delicioso odor de capim com estrume de
gado, aromas que me fazem bem à alma, não puderam ser sentidos por mim. Estava em grande
agonia de coração. Iniciava-se ali uma viagem extremamente dolorosa para dentro de minha alma.
Quando me apercebi, já estava mergulhado nas regiões abissais de meu ser, e aquele era para
mim um lugar de profunda depressão.
Durante duas semanas fiquei com a sensação de que estava caindo dentro de um poço escuro,
no fundo de mim mesmo. Perdi completamente a vontade de continuar. A sensação que me deu
foi a de que estavam malhando em ferro frio. Afinal, a história inteira da humanidade tinha sido a
de vitoriosos que usavam quaisquer meios para atingir seus fins, e aqueles que se opuseram a
isso sempre foram os esmagados de cuja memória a história veio a lembrar-se apenas quando
suas idéias já não ameaçavam os interesses pessoais daqueles que um dia os haviam eliminado. E
mais: a própria Igreja, enquanto instituição, jamais fora melhor em seus métodos do que os
sistemas pagãos mais perversos, que ela, presunçosamente, havia tentado dominar para Deus.
“Senhor, me ajuda a não perder meu ser, minha alma. Estou com medo de ficar próximo de
tanta coisa estranha. Estou com medo de perder a esperança. Ajuda-me a descobrir o que vale a
pena no meio de tudo isso. Sei que Tu não estás em muitas dessas coisas que são feitas em Teu
nome. Tu não me salvaste das angústias da juventude pra eu cair no chão lodacento de um
caminho onde Teu nome aparece a todo instante, mas onde Tu quase nunca Te fazes presente”,
orei muitas vezes, em profunda angústia de espírito.
Foi só quando reconheci que a grande maioria de meus irmãos de caminhada eram pessoas
de fé genuína e simples, e também só depois de ter prometido a mim mesmo que aquele caminho
de conquista a qualquer preço jamais seria o meu, que tive paz na mente para voltar a trabalhar.
Aprendi ali que o mundo político, seja ele secular ou religioso, chamava de esperteza e visão
estratégica exatamente aquilo que tinha o poder de secar a minha alma, e que Jesus chamara de
tentação.
Nunca mais falei com Laprovita. Apenas orei por ele com muita freqüência, o que ainda faço.
E continuo a pensar dele o que sempre pensei: ele tem boas intenções. Apenas recorre a meios
nem sempre recomendáveis na sua ânsia por fazer a vontade de Deus.
Capítulo 41

“Meus bens já não os buscava mais à luz deste sol, com olhos carnais, porque os
que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e se derramam pelas
coisas visíveis e temporais, lambendo com o pensamento faminto apenas as
aparências.”

Santo Agostinho, Confissões

Comecei 1993 na lagoa de Uruaú, no Ceará, escrevendo um livro sobre oração, enquanto
descansava com a família. Tão logo voltei de lá, fui encontrar Lula em seu escritório, em São
Paulo. Conversamos cerca de seis horas com a porta fechada. Fomos interrompidos apenas para
comer um frango à cubana. Nosso assunto girou em torno de tudo, menos de política. Falei sobre
a conversão de meu pai e sobre meu encontro com Cristo. Contei minha história até aquele dia, e
ele me contou a dele. Falamos de como os evangélicos estavam crescendo e por que aquele
crescimento estava acontecendo. Depois ele me disse que não sabia por que havia tanta
hostilidade da parte dos evangélicos em relação a ele.
— Quer anotar as razões? — perguntei brincando. — Olha, as causas são muitas, mas a
maioria tem a ver com a ignorância de vocês em relação aos evangélicos e dos evangélicos em
relação a vocês — respondi. — Os evangélicos ouvem dizer que, se eleito presidente do Brasil,
você vai perseguir as igrejas, vai caçar suas concessões de rádio, vai favorecer a Igreja Católica
acima de tudo e de todos e vai botar fiscalização sobre o crescimento das igrejas — essas são
apenas algumas das acusações.
— Deus me livre — disse Lula. — Eu jamais faria isso. Olha, no sindicato tá cheio de
evangélico. Tenho até um irmão pastor. Como é que eu faria uma coisa dessa?!
— O problema é que realmente há petistas que dizem coisas assim em alguns lugares, e
essas declarações radicais são espalhadas por toda a igreja, como se fossem políticas nacionais de
seu partido. Tá cheio de gente radical no PT, não está? — falei.
Aí, então, Lula me deu uma aula de como seu partido era democrático, mas disse que,
possivelmente, havia gente por lá que ousava fazer declarações daquele teor.
— Com relação à Igreja Católica, a gente não tem nenhuma relação institucional. Temos
apenas muitos companheiros católicos que são militantes do PT. Mas é só — disse.
— Pra mim você não precisa explicar. Eu não sou petista e não sou ligado a nenhum partido,
mas sei como as coisas acontecem dentro de seu partido. Meu conselho, entretanto, é que se você
deseja aumentar sua relação com os evangélicos, você deve saber exatamente como você é visto e
deve saber por que a sua imagem é tão distorcida. Por que você não começa a chamar os
evangélicos pra conversar com você? — sugeri.
— Você não pode fazer isso pra mim? — perguntou.
— Se eu fizer isso, vão pensar que estou fazendo campanha política. E não é o caso. Mas
posso passar pra você o nome dos líderes evangélicos mais estratégicos em todo o Brasil, e você
pessoalmente pode abordá-los.
— Olha, sabe o que foi que me atraiu em você? Quando eu vi você falar naquele dia e depois
fazer aquela prece a Deus, eu fiquei pensando: “Quando ele falou sobre o Brasil, falou como
quem conhece esse país, mas quando fechou os olhos e falou com Deus, falou como quem
conhece a Deus.” Olha, eu conheço muita gente que conhece o Brasil, mas que não fala com
Deus daquele jeito. E conheço um monte de gente que me diz que conhece a Deus, mas que não
entende o Brasil daquele jeito. Foi isso que me chamou a atenção em você. Acho uma pena que
você seja conhecido só entre os evangélicos. Você tinha que ser uma figura nacional — ele me
falou com muito carinho. — Você se importaria se eu recomendasse você pra falar sobre
cidadania fora da igreja? — indagou.
Respondi que seria um prazer, mas que eu já corria muito por todo o Brasil. Pouco depois
daquilo, Rubem César Fernandes estava ao telefone para me dizer que Herbert de Souza, o
Betinho, em franco processo de canonização social, estava me convidando para uma reunião por
causa de uma recomendação de Lula. Não demorou, e eu estava no Palácio do Planalto, junto com
uma fantástica constelação de celebridades, guindado à posição de membro do Conselho de
Segurança Alimentar da Presidência da República.
Na volta para casa, vim conversando com Betinho, a quem alguns chamavam de o santo ateu.
Falamos de tudo e também de Deus. Descobri então que o ateísmo de Betinho não era filosófico,
mas apenas psicológico, como o da maioria das pessoas que assim se assumem. Tinha a ver
apenas com seus traumas infantis e fora o conselho de um analista que fizera Betinho sossegar
sua atormentada alma católica, esquecendo-se do Deus e do Jesus que ele aprendera dentro das
paredes da religião.
Voltei com a corda toda. Criei imediatamente uma organização chamada Atitude &
Solidariedade. Conversei com Eduardo Mendonça, dono de uma empresa de ônibus, e ele
colocou à minha disposição um de seus 32 ônibus, para que nele servíssemos sopa todas as noites
para cerca de mil mendigos que dormiam nas marquises do centro de Niterói. Dei um monte de
entrevistas para jornais, revistas, rádios e televisões e senti que minha vida estava enfim saindo do
terreno da religião e entrando no mundo mais amplo, que em Manaus eu conhecera muito bem,
mas que desde a minha mudança para o Rio, em 1981, havia ficado para trás.
Naquele agosto de 1993 algo horrível aconteceria em Vigário Geral, uma das mais de
seiscentas áreas faveladas da Cidade Maravilhosa: 21 pessoas foram mortas, entre elas oito
membros de uma família de evangélicos.
Eu estava no meio de uma reunião de negócios quando os jornais foram postos na minha
frente, com aquela terrível foto dos corpos enfileirados em seus caixões no chão de terra da favela.
Tão logo fiquei sabendo da história da família de evangélicos, peguei uma câmera de nosso
estúdio e corri para lá. Gravei um programa em Vigário Geral e coloquei-o no ar no sábado
seguinte. Foi uma hora de documento apaixonado sobre a situação de insegurança dos que vivem
na favela, entre o poder arbitrário, perverso e esmagador dos traficantes de drogas e as ações
violentas, desrespeitosas e, muitas vezes, homicidas de certos policiais.
— Tem um repórter do jornal O Globo, chamado Otávio Guedes, que quer fazer uma
entrevista com o senhor. Marco ou não? — indagou Cristina.
Otávio chegou com uma carinha de menino, mas no meio da entrevista percebi sua
sagacidade e sua imensa capacidade de provocar. Ágil, ferino e delicado; foi assim que vim a
perceber o estilo do repórter.
— Pô, legal. Gostei de conhecer o senhor. É difícil a gente encontrar líderes religiosos que
falem abertamente sobre as coisas. Gostei — falou Otávio ao final da entrevista.
Foi só quando li O Globo do domingo seguinte que entendi o que ele queria dizer. Minhas
declarações sobre o papel da polícia e a presença evangélica nas favelas estavam dentro de um
contexto bem amplo, onde havia a suspeita do envolvimento de igrejas evangélicas acobertando
criminosos. A matéria de Otávio era, entretanto, completamente favorável, e a única coisa que
pegava era a manchete de primeira página com uma alusão ao fato de que O presidente da
Associação Evangélica diz que policiais são bandidos fardados.
— Esse negócio vai pegar. Dentro está ótimo, mas a manchete tá ruim pra você.
Generalizaram algo que você relativizou. A polícia vai ficar zangada — disse Gerson Pacheco, um
amigo bem chegado.
Eu sabia que aquilo acontece sempre. Às vezes o editor pega uma declaração e joga como
manchete. Falei com Otávio e ele disse para eu mandar uma reparação que eles publicariam.
Mandei, e eles publicaram. O resultado daquilo foi que se iniciou ali uma boa relação de amizade
com o repórter, mas começou também um relacionamento tenso com a polícia. Recebi grupos de
PMs evangélicos indignados, cartas, e até dois telefonemas com ameaças. Um deles dizia que se
eu fosse fazer o casamento de Benedita da Silva e Antônio Pitanga na catedral Presbiteriana, seria
alvo de alguma violência. Fui, e nada aconteceu. Apenas bem mais tarde perceberia as
implicações daquelas declarações à luz de uma sucessão de outros incidentes.
Houve, entretanto, dois episódios, separados por cerca de um ano, que se encadearam quase
como numa conspiração e mudaram completamente a minha vida em razão de seus muitos
desdobramentos: o incêndio de uma fábrica e uma visita a um secretário de Justiça.
Um ano antes, no dia 30 de outubro de 1992, a Formiplac, fábrica de laminado técnico,
conhecido como fórmica, pegou fogo. Meu amigo, Alípio Gusmão me telefonou e perguntou: “O
senhor viu uma fábrica pegando fogo no Jornal Nacional da TV Globo? É Minha. Comprei há
alguns meses. Dá pro senhor ir até lá ver o que aconteceu?”, pediu-me com objetiva simplicidade
empresarial.
Em setembro de 1993 o pastor Washington de Souza, da Assembléia de Deus, me convidou
para ir visitar o vice-governador Nilo Batista, também secretário de Justiça e de Polícia, a fim de
propor uma parceria com o estado para incrementar o trabalho de capelanias nos presídios do
Rio.
Em 1992 , a visita ao prédio da Formiplac tinha sido rápida. Nem sequer entrei. Fiquei em pé
à porta da fábrica e de lá fui à Delegacia de Polícia na Pavuna, acompanhado de um policial
federal evangélico, e fiquei sabendo da história do incêndio: um rapaz de Acari, envolvido com o
tráfico de drogas local, transformara-se na chamada bola da vez. Temendo a execução, fugiu para
o prédio central da fábrica e conseguiu chegar despercebido ao terceiro andar, onde ateou fogo no
que encontrou, na intenção de chamar a atenção da polícia ou do corpo de bombeiros e ser salvo
dos seus executores. A sala onde ele iniciou o fogo ficava ao lado do laboratório químico, e o
prédio foi pelos ares daquele andar para cima.
Um ano depois, já em setembro de 1993, Alípio me chamaria outra vez, a fim de dizer que
“Deus lhe falara ao coração” que aquela propriedade seria uma “obra para a Glória de Deus, uma
coisa social”.
— O senhor quer ficar com a fábrica pra fazer algo pro benefício daquela população? —
perguntou-me Alípio.
Como eu o conhecia havia anos, e como ele nunca brincara comigo, especialmente usando o
nome de Deus, imediatamente levei suas palavras a sério.
— Mas do que você está falando? De entregar aquilo tudo pra gente ajudar as pessoas do
lugar? É isso? — perguntei apenas para me certificar de que havia entendido bem o que ele
dissera.
— Olhe, vá lá com olhos de dono. Veja o lugar como se aquilo tudo estivesse ao seu inteiro
dispor daqui pra frente. Depois me ligue de volta — disse ele com a objetividade empresarial que
fez com que se transformasse em um dos maiores fabricantes de fórmica do Brasil.
Reuni Alda, minha esposa; João Bezerra, meu companheiro de muitos anos de trabalho;
Cristina, minha secretária executiva; Sônia, nossa diretora financeira, e Edivaldo, nosso curinga
tecnológico. Andamos por ali, nos desviando de ferros e colonas retorcidos pelo fogo, pulando
fora de águas que escorriam pelo teto e subindo e descendo pelo chão sob nossos pés,
completamente ondulado, com desníveis de até cinqüenta centímetros, tamanha fora a ação do
fogo sobre a estrutura. Os 17 galpões dos fundos estavam intactos. Lá o fogo não chegara.
— Pastor, sinceramente acho que isso aqui é presente de grego — disse-me Cristina. — Se
eu fosse o senhor, não pegava isso aqui não — concluiu, contrariando o estilo positivo e
esperançoso que sempre a caracterizara.
— Não sei, não. Só pra manter isso aqui, a gente iria precisar de uma grana. Acho que temos
que considerar muito bem até que ponto vale a pena — disse João, confirmando seu gênero
prudente.
— Eu gostei. Dava pra trazer a Vinde todinha pra cá — falou Sônia, contrariando seu estilo
de economista sempre preocupada com mudanças e despesas.
Edivaldo andou calado. Pensou e olhou em silêncio para tudo.
— É grande à beça. Dá pra pôr tudo aqui. Vai dar um trabalhão, mas dá — disse finalmente.
Alda, minha esposa, em geral é muito cautelosa. De temperamento melancólico, ela sempre
tende a fazer julgamentos mais tímidos a priori. Só depois de sentir e racionalizar os processos é
que ela parte pra dentro. Naquele dia, entretanto, ela agiu diferente.
— Olha, isso aqui é coisa de Deus. Eu estou com medo é das conseqüências. Se a gente
puser a mão aqui, não tem mais volta. Não dá pra dizer que estava enganado. Mas eu vejo coisa de
Deus aqui — ela falou com muita convicção.
— Eu não perguntei o que vocês pensavam pra saber se devo ou não aceitar esse desafio.
Queria apenas saber o que vocês pensavam. Mas eu já decidi aceitar essa guerra — falei com um
ar de doce tirania.
— A gente tá junto pro que der e vier — disseram todos.
Naquele mesmo dia, telefonei para Alípio e comuniquei minha decisão.
— Alípio, eu aceito o desafio. E agora? O que a gente faz?
— Bem, agora eu tenho que falar com meus sócios. Eles são socialmente sensíveis, mas
ninguém se acostuma a fazer uma doação dessas. São quase 55 mil metros quadrados de área
construída. Mas se Deus está nisso, eles vão aceitar fazer a doação. Mas ore muito. Eles são
judeus e o senhor é evangélico. Não sei como eles vão reagir.
Durante cerca de três meses nós apenas oramos sobre o assunto. Enquanto isso, eu ia à
Formiplac de vez em quando. Andava em volta, conforme Moisés ordenou que Josué fizesse antes
de tomar posse da Terra Prometida. “Onde as plantas de teus pés pousarem, esse chão será teu”,
era a mesma promessa que eu reivindicava quase três mil e quinhentos anos depois.
Num daqueles dias, quando estacionava meu carro em frente ao prédio da Vinde em Niterói,
veio um homem na minha direção.
— Irmão, eu tive um sonho profético com você — disse ele. — Eu vi você numa reunião com
uns judeus. E nessa reunião você vai ter uma surpresa. Os judeus vão lhe dar um presente que vai
mudar sua vida. Não passa de fevereiro. É daqui até lá. Espere. Deus tá falando — disse o
desconhecido e foi embora.
Fiquei embasbacado com o sonho do homem. Guardei no coração e me calei, como tinha
feito a Virgem Maria, mãe de Jesus, ajuntando os pedaços das profecias que ouvia.
Em setembro de 1993, quando entrei no gabinete de Nilo Batista, fiquei surpreso com
amistosidade com a qual ele nos recebeu. Embora houvesse outras pessoas no lugar, ele foi claro,
direto e aberto. Falou do interesse dele em estreitar a parceria do estado com os evangélicos,
mencionou uma pesquisa interna que apontava a conversão religiosa como sendo o fator mais
eficaz na regeneração de detentos e disse que dentre tais conversões a evangélica era a mais
freqüente.
— Eles sabem como falar com o pessoal. Os evangélicos sacam muito melhor que os outros
como se comunicar — falou, olhando para a Dra. Julita Lemgruber, então coordenadora geral do
Desipe, também presente ao encontro.
Depois de todas as amenidades, o reverendo Washington mencionou um assunto que no
sistema carcerário era ainda totalmente fechado: o presídio de segurança máxima Bangu I, onde
os 48 criminosos mais temidos do estado estavam presos.
— E essa parceria se estenderia a Bangu I? Será que daria pra gente evangelizar lá? É lá que
estão os presos mais inteligentes do sistema. Ganhá-los pode fazer diferença — disse ele,
pensando estrategicamente.
— É claro que sim! Vamos providenciar um credenciamento imediato para o senhor e para o
reverendo Caio, certo? — afirmou Nilo.
Aproveitando a deixa, falei um pouco porque eu cria que evangelizar aqueles homens não era
perda de tempo. Contei minha história, que nem de longe se comparava à deles, mas que,
existencialmente, fora tão complicada quanto a de qualquer um daqueles homens.
— Jesus veio ao mundo salvar os pecadores, mas especialmente os mais perdidos — falei
com paixão.
— Reverendo, o senhor sabe, eu não entendo o que acontece comigo. Não consigo me
entregar à fé e nem deixá-la de vez. Fora uns poucos momentos de ateísmo, tenho sido sempre
um ser perseguido pela fé. Não gosto de coisas da instituição, mas não consigo me livrar da
religiosidade. Quem sabe uma hora dessas a gente conversa — falou Nilo, tragando gostosamente
seu cigarro, talvez já o terceiro em pouco mais de quarenta minutos de conversa.
Como sentisse que era hora de terminar nosso encontro, pedi então licença para fazer uma
oração. Aproximamo-nos uns dos outros e orei por todos os presentes, pela nossa parceria, pelos
detentos e pelo estado do Rio de Janeiro.
— Puxa, a Verinha tinha que conhecer você — disse Nilo depois da oração, já com mais
intimidade.
— Diz pra ela que você esteve com o Caio e que eu mandei um beijão pra ela — falei.
— O quê? Você conhece a Vera? — perguntou surpreso.
— Sim, há uns vinte anos, talvez. Desde o tempo que ela namorava o João Paulo, com quem
se casou. O João era meu conhecido desde a adolescência — completei.
Senti que ele ficou emocionado com o fato de eu saber que ele era divorciado e que estava
vivendo com uma mulher também separada e, mesmo assim, não ter mudado minha postura
espiritual em relação a ele.
— O cardeal não me serviu a eucaristia na última vez que fui à missa. Depois me deu um
cartão vermelho. Estou “excomungado”. Já pensou? Cartão vermelho pra sempre — disse com
um certo ar de dor e decepção no olhar.
— É por isso que eu detesto a frieza da religião. Tentam ser mais santos que Deus. Jesus foi
diferente disso tudo. Olha, Jesus não cabe na instituição religiosa. Se estivesse aqui hoje, teria
que pregar na rua porque dentro das igrejas não deixariam — falei. — As companhias dele eram
ruins demais pros santos da igreja.
— A gente tem que se encontrar — disse Nilo muito sério.
Quinze dias depois, Nilo, Verinha e os filhos estavam lá em casa para um churrasco.
Conversamos sobre as chacinas da Candelária e de Vigário Geral e outros casos. Depois falamos
de fé e de mudança de vida. E para terminar, a filha de Nilo me perguntou sobre o assunto do
momento nas telenovelas: espíritos e possessão de demônios. Contei um monte de histórias,
enquanto as crianças, os adolescentes e os adultos ouviam com atenção. Depois demos as mãos e
oramos juntos.
Ali, sem nenhuma liturgia, eu orei abençoando a união de Nilo e Verinha, em nome de Jesus.
No fim de tudo, eles foram para casa felizes.
Daquele dia em diante, Nilo e eu nos encontramos pelo menos duas vezes por semana e
conversamos muito sobre Jesus e os evangelhos. Falei-lhe bastante sobre os pressupostos
teológicos da reforma protestante e a centralidade da salvação pela Graça exclusiva de Cristo. Ou
seja: não é o que fazemos ou somos o que nos salva, mas a nossa fé no que Jesus fez por nós o que
faz a diferença.
— Era só isso que faltava pra minha conversão — disse Nilo a uma amiga comum, Lucilia,
após me ver tomando gostosamente um copo de vinho. — Só um pastor capaz de apreciar um
bom Porto teria autoridade pra me batizar — afirmou brincando, mas talvez falando mais sério do
que nunca na vida.
— Quando você quiser, meu irmão — respondi ao ouvir sua declaração.
— Deixa passar só um pouquinho mais pra gente encontrar uma hora mais calma — disse
ele. A hora mais calma jamais chegaria.

O Natal de 1993 foi muito especial para mim. Celsinho, meu amigo de primeira juventude, a
quem eu não via desde 1973, estava no Rio fazendo uma especialização em oftalmologia.
— Celso, é Caio. Quero ver você. Cê num quer vir passar o Natal com minha família? —
perguntei ao telefone, vinte anos depois, para alguém que no passado me fora muito importante.
Quando nos vimos em frente ao Niterói Plaza Shopping, na tarde do dia 24 de dezembro,
instintivamente levantamos o braço direito e fizemos com os dedos da mão o V de paz e amor com
o qual nos saudáramos centenas de vezes na juventude.
Só que agora eu era pastor, estava casado, tinha quatro filhos e pesava cerca de cem quilos.
Ele, por sua vez, estava calvo, se vestia com discrição inconcebível no passado e mostrava um ar de
profunda circunspecção.
Passamos o Natal nos reapresentando um ao outro e às nossas famílias. E a pergunta que
mais nos fizemos foi: “Lembra de...?”
Sim, nós nos lembrávamos de tudo e de todos.
Capítulo 42

“Sem dúvida o permitiste Senhor apenas para que... começasse já a aprender que
ao julgar outro homem, ninguém deve condenar ninguém levianamente, e com
temerária crueldade.”

Santo Agostinho, Confissões

O dia 16 de dezembro de 1993 amanheceu com sabor de adrenalina.


— Quem é que o senhor vai batizar?
— O senhor tem certeza de que eles mudaram de vida?
— Mas esses homens são bandidos. Como é que o senhor pode querer convertê-los?
Eram essas as perguntas que choviam sobre mim de toda parte à porta de Bangu I.
— No fim de tudo eu falo, gente. Agora vamos nos preparar para os batismos — respondi
com um medo danado de que aquele ato fosse virar escândalo nos telejornais do dia e nos jornais
do dia seguinte.
— Eles vão entrar pelos fundos — disse o administrador do presídio.
Gregório, o Gordo, veio na frente de todos, com um sorriso estampado no rosto, de orelha a
orelha, carregando uma Bíblia no peito. Atrás dele vinham outros detentos famosos na cidade.
Tudo o que eu sabia sobre Gregório era o que a mídia dizia. Ele era inteligente, fora o maior
ladrão de carros da história do Brasil e um dos principais estrategistas do Comando Vermelho,
considerado o mais organizado cartel do crime no Brasil. Além disso, Gordo era também o gênio
que fugira do presídio da Ilha Grande e voltara de helicóptero para pegar o lendário Escadinha, na
época encarcerado na ilha e agora preso em Bangu I, na galeria D.
— Washington, cê tem certeza que esse pessoal sabe o que está fazendo? — perguntei ao
capelão que estava encarregado daquele ato, referindo-me à conscientização dos batizandos
quanto à seriedade do sacramento do batismo.
— Eles sabem sim! — respondeu Washington.
Quando tomei a palavra para pregar naquela manhã em Bangu I, a primeira passagem que me
veio à mente foi a de Jesus morrendo entre dois ladrões.
— A Cruz se ergueu em Bangu I. O monte Calvário era o Bangu I de Jerusalém. Era o lugar
da morte, da execução. Lá era uma morte rápida, mais misericordiosa. Aqui é lenta, disfarçada de
civilidade, mas é morte ainda — falei sem saber que aquelas palavras estavam sendo
interpretadas por dezenas de policiais como denúncias de natureza política. — Jesus morreu
entre ladrões, mas não os livrou da execução. Ele ofereceu salvação e perdão ao homicida que se
arrependeu ao lado dele. Mas, ainda assim, o homem sofreu a execução. Assim, aprende-se que a
conversão nos salva espiritualmente, mas não nos livra de pagar o que devemos aos homens —
afirmei, já percebendo as perguntas que me fariam depois.
Após a cerimônia, os repórteres voaram em cima de mim.
— Não. Não estamos endossando o crime. Estamos, sim, é denunciando o crime. Batismo é
ato de arrependimento. O que estamos fazendo é ajudar esse pessoal a dizer que a vida anterior
deles foi um grande equívoco — respondi. — Não. Não estamos dizendo que agora a sociedade
tem que perdoá-los. Só Deus perdoa pecados. Quem cometeu crimes contra a sociedade deve
pagá-los até o fim. As leis sociais não se baseiam em perdão, mas em justiça. Só as leis de Deus é
que se baseiam em Graça, em perdão. E isso só Deus tem pra dar, pois só Ele conhece o coração
— respondi outra vez.
— Mas não fica fácil demais ficar convertido aí dentro? — perguntou-me um repórter.
— Você quer trocar de posição com eles? Tá com inveja deles? — perguntei com ironia,
começando a ficar meio cansado do simplismo de algumas perguntas.
Depois que todos haviam saído, eu entrei na galeria C para batizar o Isaías do Borel,
traficante temido na cidade, que estava preso e doente, contaminado pelo vírus HIV.
— Na frente da mídia, não. Eles vão me sacanear! — dizia ele. Peguei água de um balde e
pedi a ele que se ajoelhasse e confessasse a Deus que era pecador e que estava arrependido.
— Isaías, eu te batizo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo para arrependimento e
para perdão de pecados — pronunciei sobre ele. Levantei-o e vi que seus olhos estavam
marejados. — Leia a Bíblia. Nela você vai aprender a viver — falei a ele, lembrando o conselho
que meu pai me dera muitos anos antes e que eu repetira para milhares de pessoas desde então.
Naquela noite, as imagens do batismo estavam em todas as redes de televisão. E, no dia
seguinte, os jornais de todo o Brasil estampavam aquele ato sacramental. Para minha surpresa, as
matérias beiravam o irônico, mas ao mesmo tempo sempre mostravam o lado sério daquele ato.
Ora, uns dois meses antes daquilo tudo acontecer, Rubem César havia me telefonado
dizendo que a casa da família evangélica da chacina de Vigário Geral estava à venda.
— Eu compro, Rubem. Eu compro — falei excitado.
— Eu sei. É isso que eu quero falar. Tem um rapaz lá, teu xará, Caio Ferraz, que fala à beça,
mas é um cara superinteressante. É sociólogo, mas nasceu e foi criado na favela. Ele tá
trabalhando lá com os adolescentes do lugar. Foi ele que me falou da casa. Eu acho que vocês
podiam se conhecer — falou Rubem com calma, mas achando engraçado que eu tivesse logo
pulado do assento dizendo que comprava a casa.
— Diz pra ele que tenho total interesse naquela casa. A Vinde compra, e a gente faz lá a Casa
da Paz — falei pro Rubem assim de chofre.
Dias depois, recebi um telefonema do próprio Caio Ferraz.
— Pastor, eu sou o Caio. A gente precisa conversar — disse-me ele pelo celular, pegando-me
na avenida Brasil, perto de Vigário Geral, quando eu estava voltando de uma pregação numa igreja
evangélica de Bangu.
— Olha, vem ao meu escritório amanhã. Mas traz logo tudo sobre a casa. A gente compra e
você faz lá a Casa da Paz — falei com excesso de objetividade.
— É, o Rubem me falou do nome. Gostei. Amanhã estarei em Niterói.
Conversamos muito, Caio, Rubem e eu. Depois de muito assunto, cheguei à conclusão de
que minha participação na Casa da Paz seria apenas formal.
— Olha, eu compro a propriedade, a casa, o bar da frente etc., mas a Vinde não pode ficar na
administração da casa. Não precisa. Eu fico apenas no conselho. O Caio toca sozinho — falei
muito seguro.
— Mas por quê? Vocês podem fazer uma parceria no gerenciamento — sugeriu Rubem.
— Aqui, ó, não me levem a mal, mas é que eu detesto confusão. Onde eu estou com a mão,
ou eu mando ou eu só ajudo. Mas onde eu mando, eu mando. Esse negócio de ficar sem saber o
que é de quem num negócio não é comigo, não. O Caio é uma bombinha de energia social. Ele é
agitado e é do tipo que vai fazendo as coisas. Se ele trabalhasse comigo e agisse assim, não daria
certo. Ele é inadministrável. É melhor ele tocar a coisa e a gente só aconselhar, se der tempo —
falei, enquanto Rubem e Caio Ferraz caíam na gargalhada.
Daquele dia em diante, foi assim que aconteceu. Percebendo o desconforto de Caio Ferraz
com a idéia de que a Casa da Paz pudesse ser vista como um projeto social evangélico,
mantive-me presente, financeiramente falando, mas à distância. Eu queria que ele se sentisse
bem à vontade.
O plano, entretanto, era que no dia 24 de dezembro nós iríamos inaugurar a Casa da Paz do
jeito que desse. Corremos como pudemos. Pusemos dinheiro lá e também recebemos ajuda da
Caixa Econômica Federal. No dia combinado estaríamos prontos para a celebração-denúncia que
ali haveria.
Eu disse a Nilo que a casa da chacina se transformaria em casa da paz. E como ele tinha tido
ação mais que firme na tentativa de resolver logo aquele crime pavoroso e no processo, pôde
também ajudar bem de perto a alguns dos sobreviventes da matança que eram membros da
família ali sacrificada, e não hesitou em afirmar que no dia 24 ele e Verinha estariam lá.
— Vem pra rua da Relação, na Polícia Civil, que a gente vai de helicóptero pra lá. E de lá
vamos juntos a Bangu I — falou Nilo.
Não durou mais do que cinco minutos a viagem do heliporto da Polícia Civil até uma pracinha
próxima de Vigário. De lá fomos de carro. Quando íamos iniciando a subida da passarela Verde
que dá acesso à favela, vi Caio Ferraz correndo agitado em nossa direção e percebi que havia
problema no lugar.
— Assim não dá. Vou declarar Nilo Batista persona non grata em Vigário Geral — foi logo
dizendo Caio, muito nervoso, sem explicar por que estava falando aquilo.
— Calma. O que está acontecendo? — perguntei.
— Ele encheu a favela de ninjas do Bope, com metralhadoras. Hoje é dia de paz e ele está
estragando a nossa celebração. Se quer participar com a gente, ele tem que tirar essa humilhação
daqui — falou, metralhando em todas as direções mais uma vez.
— Olha, eu vou ver o que está acontecendo. Pode ficar tranqüilo que eu não quero prejudicar
a celebração de ninguém. Estou aqui com o pastor e a convite dele. Mas constrangimentos eu não
quero causar — disse Nilo em resposta à pergunta de Zuenir Ventura, muito presente na
localidade em razão de estar fazendo pesquisa para escrever seu livro Cidade partida, que
indagara se Nilo tinha ciência daquela operação policial tão ostensiva.
Nilo chamou o comandante do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e pediu que se
retirassem da favela.
— Mas é pra sua proteção que nós estamos aqui — disse o oficial.
— Eu assumo a responsabilidade. Podem ficar de longe. Mas assim desse jeito, tá muito
ostensivo — disse Nilo.
Fomos com aquele batalhão de repórteres até a entrada da Casa da Paz. Preocupado com o
que poderia acontecer e com eventuais constrangimentos que Verinha e Nilo pudessem sofrer, e
já me sentindo culpado por tê-los convidado para um ambiente que poderia se tornar pesado para
eles, tratei logo de iniciar a celebração.
Josué Rodrigues, Graça e Paz e Vanda Sá cantaram músicas cristãs. Caio Ferraz falou e
desceu a lenha em Nilo, que ouviu tudo calado. Depois foi a vez do presidente da Associação de
Moradores descascar. E mais outro, e mais outro. Cada um tirava uma casquinha da presença do
vice-governador. Alguns dizendo coisas interessantes; outros, nem tanto. Perguntei a Nilo se ele
desejava falar alguma coisa. Ele disse que não. Foi aí que tomei a palavra e falei que aquela guarda
estava ali não para proteger Nilo da favela, mas para protegê-lo de alguns maus policiais, dos
mesmos que estavam com raiva dele por ter colocado seus companheiros tão rapidamente na
cadeia.
Aí o povo aplaudiu e percebi que era a hora de passar por sobre aquele assunto e entrar na
verdadeira mensagem que ali nos reunira: esperança. Como era Natal, lembrei que no advento de
Cristo também houvera uma chacina: a morte dos inocentes.
— Aqui, neste Natal, nós estamos próximos de um dos muitos aspectos do Natal: a tragédia.
No primeiro Natal, sangue inocente também foi derramado. Mas mesmo assim, a vida continuou.
Aqui em Vigário Geral, apesar de tudo, a vida se manifestará vitoriosa. Nós estamos aqui pra dizer
que Herodes pode até matar inocentes, mas nós somos daqueles que sobrevivem ao seu ódio e
encontram o caminho da vida desarmada, e que realizam a paz — eu disse em meio a muitas
outras coisas.
Acabada a cerimônia, saí logo com Alda, Verinha e Nilo. As duas foram de carro para casa.
Nilo e eu fomos de helicóptero para Bangu I. Chegando lá, examinamos juntos todos os sistemas
da prisão: as câmeras de vigilância, as escutas e os fundos falsos de onde cada detento é visto e
ouvido.
— Teoricamente falando, é impossível fugir daqui — comentei com Nilo.
— Isso aqui é uma vergonha. É uma prisão nazista. É coisa do Moreira — disse Nilo,
aludindo à construção do presídio, realizada durante o governo linha-dura de Moreira Franco, no
fim da década de 80.
Entramos e fomos direto para a galeria A. Depois visitamos a B. E então chegamos à C.
Cantávamos com os presos e depois eu pregava uma mensagem de Natal de no máximo dez
minutos. Orávamos juntos e íamos adiante. O problema era que ao final eles se amontoavam
sobre Nilo com toda sorte de reivindicações e queixas sobre o sistema. Todos foram ouvidos com
extrema paciência.
Na galeria C, entretanto, o clima foi diferente.
— Olha gente, não é todo dia que nós temos um Natal como esse. O Dr. Nilo aqui com a
gente e o nosso reverendo Caio. Vamos aproveitar bem o tempo. Por isso, antes de tudo eu quero
passar às mãos de Dr. Nilo as reivindicações do nosso grupo. Ele lê em casa, depois. Aqui nós
vamos nos congratular — disse Gregório, o Gordo, passando um envelope às mãos do
vice-governador e secretário de Justiça.
Como não perdemos tempo, pude me alongar bem mais em minha pregação na galeria C.
— Vocês já ouviram a fábula do elefante e do escorpião? Pois bem, havia um elefante que
estava atravessando para o outro lado de um rio, quando chegou um escorpião e pediu carona.
“Tá louco? Dou nada”, disse o elefante. “Cê pode me enfiar esse ferrão nas costas.”— Mas o
escorpião perguntou se o elefante não percebia que ele jamais faria aquilo. Afinal, se ele ferrasse o
elefante, morreria afogado junto com ele. Convencido de que o amor à sobrevivência era maior
que o amor ao crime, o elefante deixou o venenoso escorpião subir pelo seu rabo e acomodar-se
em seu lombo. No meio do rio, no entanto, o elefante sentiu aquela dor aguda lhe penetrar a
carne. “Que foi que você fez, escorpião? Assim eu morro e você morre também”, falou o
agonizante elefante. “Desculpe, eu não resisti. Ferrar é minha natureza”, falou o escorpião,
afundando junto com o elefante — contei-lhes. — Muitos de vocês têm dito a mesma coisa: que
vocês estão aqui porque essa é a natureza de vocês. E é mesmo. A natureza humana, de um modo
geral, é cheia de perversidade e de autodestruição. Eu sou assim. A diferença é que vocês foram
pegos, e eu não. É assim porque muitas vezes a gente faz aquilo que nos mata. Mas Jesus veio ao
mundo pra tirar essa natureza de escorpião da gente e nos dar uma natureza de paz e vida. Mas
esse milagre só o Espírito Santo opera. Isso não existe em nós. Tem que vir de Deus, e só vem
quando deixamos o Espírito de Cristo crescer em nós — falei com a certeza de quem conhecia
tanto a natureza humana quanto a graça regeneradora do evangelho.
Enquanto pregava, vi claramente que todas aquelas mensagens caíam fundo no coração de
Nilo. Ele se emocionou várias vezes na medida em que caminhávamos de galeria em galeria. Ali,
bem diante dos meus olhos, o homem estrategicamente mais importante do governo de Leonel
Brizola estava amolecendo seu coração para Deus.
— Aqui, Dr. Nilo, de homem pra homem. Me tira daqui que eu num vou nunca voltar pro
crime — disse Gregório, vividamente emocionado, apontando para sua filhinha que se enroscava
entre as pernas dele.
“Senti que ele nunca falou tão sério na vida. Creio que o Gordo não está brincando. Quando
eu deixar a minha posição atual, vou dar uma força a ele como advogado”, disse Nilo, promessa
que cumpriu em março de 1995, três meses depois de deixar o governo, quando, em minha
companhia, visitou o juiz da Vara de Execuções, Dr. Leomil, a fim de se inteirar da situação do
Gregório e sugerir caminhos legais que pudessem ajudá-lo.
Passamos o resto do dia 25 em presídios. Ainda de helicóptero, voamos de Bangu I para o
complexo penitenciário da rua Frei Caneca, onde nossas famílias já nos aguardavam para um
almoço com os detentos. No dia seguinte, alguns jornais fizeram pouco-caso do vice-governador
ter decidido passar o dia entre os presos. Eu, entretanto, achei que aquele era um dos lugares
onde todos os governantes deveriam passar o Natal, pois numa cidade como o Rio de Janeiro a
penitenciária é um lugar de muito poder e, portanto, precisa ser estrategicamente entendido.
Não que lá haja a força do chamado crime organizado. O poder que opera ali é o de inspirar
milhares de pessoas do lado de fora, nas favelas, a pensarem em muitos daqueles prisioneiros não
como criminosos atrás das grades, mas como exilados políticos. É daí que vem o poder de muitos
deles. Para mim, foi chocante descobrir, à medida que conversava com os detentos de Bangu I,
que a tal organização chamada de Comando Vermelho nada mais era que uma grife, uma espécie
de fraternidade criminal, que funcionava muito mais como uma filosofia de gerenciamento de
presídio do que como uma estrutura criminosa em operação do lado de fora.
Para terminar aquele estranho ano, ainda me aventurei à criação de mais um evento: A
Guerra da Paz, uma vez que o recém-criado movimento Viva Rio queria terminar o ano com uma
grande celebração fraterna no Aterro do Flamengo. Como parte de tudo aquilo, nos mobilizamos
como pudemos, mesmo sem tempo. O show foi lindo, mas foi um fiasco de público. Na
concentração dos evangélicos havia apenas umas oito mil pessoas e ao evento do Viva Rio não
compareceram mais do que umas cinco mil pessoas.
Eu, entretanto, estava mais que feliz. Enfim, pela Graça de Deus, nós, os evangélicos,
estávamos deixando de ser vistos como um bando de reacionários religiosos e estávamos
passando a ser percebidos como um segmento que participava da vida da cidade. E isso, para
mim, era um sonho de muitos anos. O que eu não sabia era que haveria um altíssimo preço a
pagar. Isso, entretanto, era parte de minha ingenuidade pastoral e de minha ignorância em
relação às forças que se movem perversamente nos intestinos das elites enciumadas.
Capítulo 43

“Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a mim com estreito vínculo de


amizade... Também ficou provada sua integridade não só contra os atrativos da
cobiça, mas também contra o aguilhão do medo.”

Santo Agostinho, Confissões

O movimento Viva Rio foi criado no segundo semestre de 1993 com a finalidade declarada
de ser um agente social aberto, suprapartidário e cidadão. No início, ajudei a iniciativa apenas
porque me pareceu interessante e, sobretudo, por causa de minha amizade com Rubem César
Fernandes, um dos idealizadores do projeto, mas foi somente em 1994 que me tornei mais
próximo da coordenação do movimento.
Como de costume, passei o mês de janeiro fora do Brasil, nas montanhas de Connecticut, nos
Estados Unidos, onde Rose, irmã de Alda, mora com o marido. Quando retornei em fevereiro,
Alípio Gusmão informou-me que poderíamos nos encontrar com seus sócios judeus e a diretoria
da empresa nos próximos dias, a fim de conversarmos sobre a fábrica de Acari.
O sonho — profecia do homem desconhecido — estava se cumprindo. Afinal, ele dissera:
“Antes de fevereiro o senhor vai estar em volta de uma mesa com alguns judeus.” Assim, fui a São
Paulo para a reunião da esperança!
Além de Alípio e eu, estavam presentes à reunião dois dos sócios judeus, Salo Seibel e seu
irmão Hélio; além de João, irmão de Alípio; Kalil, o advogado, e outras pessoas que eu não
conhecia.
— Bom gente, eu convidei o pastor aqui porque ele tem uma proposta a nos fazer — disse
Alípio, passando-me a palavra.
— Eu conheci a fábrica que vocês têm em Acari e constatei que está situada num lugar ideal
para se transformar no maior projeto social não-governamental do Brasil — falei e fui
distribuindo cópias do projeto que minha amiga Dilma D’Avila havia preparado, com gráficos da
população, faixas etárias, necessidades, oferta de escolas, déficit educacional, número de
empresas na região, e quantidade de desempregados etc. — São 18 favelas em volta e um dos
tráficos de drogas mais bem armados do Rio. Dá para transformar a fábrica numa cidade de
refúgio. Já ouviram falar em cidade de refúgio? — perguntei olhando para o Dr. Salo.
— Não, o que é isso? — ele indagou.
— É uma idéia social que um dos patrícios do senhor desenvolveu. É um lugar para onde
fogem todos os que derramaram sangue involuntariamente, os que estão sob a ameaça do
vingador, e todos os que praticaram pequenos crimes, mas que querem uma chance de
recomeçar na vida — falei como se aquilo tudo fosse óbvio.
— Quem foi o judeu que desenvolveu esse conceito? — perguntou mais uma vez Dr. Salo.
— Moisés. O Moisés do Êxodo. Foi ele. Está num dos livros do Pentateuco, no Velho
Testamento — mencionei a referência bíblica.
Eles riram gostosamente e me motivaram a continuar. Expliquei tudo. Seria um projeto com
muitas facetas. Ao todo, cerca de setenta programas sociais existiriam ali.
— O senhor quer o prédio que pegou fogo? — indagou Salo outra vez.
— Não senhor. Aquele ali é bom, mas ainda é pequeno — respondi.
— Mas são cerca de sete mil metros quadrados — ele esclareceu.
— Eu sei, por isso mesmo é que digo que é pequeno. Se o senhor não se ofender, eu quero
mesmo é a coisa toda, com os 17 galpões — falei como quem estava pedindo um pirulito.
— O senhor é engraçado, pastor. Vem aqui e nos pede uma fortuna como se fosse nada —
falou Hélio Seibel.
Todos rimos muito. Então contei a história de quatro leprosos judeus que tinham vivido nos
dias do profeta Eliseu, há cerca de três mil anos.
— Eles estavam morrendo de fome. A cidade em que viviam estava sitiada pelos inimigos.
Como não tinham comida, pensaram: “Vamos pedir comida ao inimigo. Se nos matarem, nós
morreremos. Afinal, aqui sentados é que nós vamos morrer de qualquer jeito. Mas se nos derem
alguma coisa, nós viveremos.” E foram. Quando chegaram lá, encontraram o acampamento
abandonado, pois um anjo do Senhor assustara os inimigos, que haviam fugido. Assim, os quatro
leprosos comeram até se fartar e depois foram chamar a cidade para se alimentar. Aqui, eu sou
como aqueles quatro leprosos. Pior do que está, não pode ficar. Eu só tenho uma chance aqui:
ganhar. Estou encurralado na possibilidade de ser bem-sucedido. Perder eu não posso. Perder o
quê? O que eu não tenho? — finalizei.
Rimos de novo.
— E como é que o senhor pensa em manter aquela fábrica? Olha, o senhor sabe quanto custa
manter a porta aberta lá? — perguntou-me Salo.
— Bem, o Alípio me disse que custa uns trinta mil dólares só pro básico. Mas se o senhor
quiser nos ajudar financeiramente, eu também aceito — disse brincando, mas no fundo falando
sério.
— Olha aqui, pastor, com todo respeito. O senhor é o maior cara-de-pau que já conheci. O
senhor vem aqui me pedir uma fábrica que vale milhões de dólares e ainda me pede dinheiro? —
disse ele, também se divertindo. — Agora, falando sério. Como é que o senhor pensa em
sustentar a fábrica e depois o projeto todo? Serão milhões de dólares.
Eu vi a parede envidraçada que corria paralela a boa parte da sala de reuniões e fiquei olhando
a linha do horizonte. Então meus olhos se encheram de lágrimas e o peito de fogo.
— O senhor vê a linha do horizonte e tudo o que está aí embaixo, para além do vidro? Onde
seus olhos alcançarem, podem olhar. É tudo propriedade de meu Parceiro. Ele cuida de mim há
muito tempo. Eu só estou aqui porque Ele está prometendo que vai caminhar comigo pelo
caminho. É Nele que eu confio. Tenho muitos amigos, contatos, relacionamentos e sei vender
idéias. Mas é no meu Parceiro que eu confio — disse com fé.
O ambiente ficou silencioso! Convidaram-me para almoçar, mas declinei, visto que tinha de
sair dali para o aeroporto, pois ainda ia pregar numa outra cidade naquela noite.

— É nossa. É nossa. Aleluia! — vibrava Alípio, no dia seguinte, do outro lado da linha, como
se a fábrica jamais tivesse sido dele. — Vamos preparar os documentos agora. Como é que
faremos isso? — disse com extrema felicidade.
— Pode mandar preparar o contrato de comodato que eu assino. As condições, seu advogado
pode estabelecer que eu aceito — falei.
Alípio e os irmãos Seibel não apenas nos entregaram a propriedade num comodato sem custo
para nós, como ainda se dispuseram a reconstruir o prédio central, que fora todo destruído pelo
fogo. Puseram todo o seguro do incêndio na reconstrução da estrutura, e Alípio ainda tirou do
próprio bolso e investiu na complementação da obra. Ao todo, foram gastos um milhão e
oitocentos mil dólares.
Um milagre!
Para aquele primeiro momento de assentamento das bases da cidade de refúgio, eu precisava
de uma pessoa de confiança. Por isso, chamei Lídia Mello, que já trabalhara comigo durante
cerca de oito anos e agora estava de volta à Vinde.
A notícia de que eu havia ganhado a Formiplac de presente espalhou-se como um incêndio
em depósito de pólvora. A mídia correu em cima. Todos queriam saber o que faríamos ali.
“Cidade de refúgio é um bom conceito, mas não é um bom nome. Isso aqui não é uma cidade.
É uma fábrica, pensei.” Fui para a esquina lateral da fábrica, de onde ainda se podia ver as letras
de aço escovado com o nome Formiplac, e fiquei contando as letras. “Qualquer que seja o nome,
é bom que se utilizem letras já existentes. Nessa dureza que nós estamos não podemos gastar
dinheiro à toa”, ponderei outra vez. “Como isso aqui é uma fábrica e nós vamos criar melhores
condições de vida para as pessoas, e considerando as letras de aço de Formiplac, podemos
chamar o empreendimento de Fábrica de Esperança” — concluí sozinho, em pé na esquina da
favela de Acari.
— Olha, o nome que vamos usar é Fábrica de Esperança — falei aos que trabalhavam
comigo.
— Mas não era bom a gente fazer um brainstorm — sugeriu alguém.
— Desculpem, mas agora é a hora de meu doce despotismo se manifestar. O assunto não
está mais aberto para discussão. Já registrei o nome no banco de logos e patentes de meu coração.
Não tem mais volta — falei e tomei todas as providências para que nosso empreendimento social
fosse conhecido com aquele nome.
Os meses seguintes foram de muitas visitas a presidentes de multinacionais, a fim de
convencê-los a entrar no projeto da Fábrica de Esperança conosco. A Xerox foi a primeira a
aderir, e com o capital moral que ela nos “emprestou”, ajudou-nos imensamente a atrair outros
parceiros.
Minha agenda pessoal, no entanto, estava mais louca do que nunca. Continuava viajando para
pregar em todo o Brasil semanalmente, dirigia empreendimentos que cresciam, presidia
entidades que demandavam tempo para articulações diversas, estava mais que envolvido nos
assuntos de natureza social da cidade, despendia tempo com as várias situações que a amizade
pastoral com Nilo foram também criando e, ainda, de quebra, me comprometera a visitar Bangu I
pelo menos uma vez a cada 15 dias.
Capítulo 44

“Quando Deus manda algo contra os costumes ou pactos, sejam eles quais forem,
deve ser obedecido, embora o que mande nunca tenha sido feito antes; e se se
deixou de fazer, deve ser restaurado, e se não estava estabelecido, deve ser
estabelecido.”

Santo Agostinho, Confissões

Parazão não conversa. Parazão mata, era o que dizia a placa que o Jornal Nacional
mostrou pendurada na frente de uma grade de ferro.
Parazão era um traficante que lutava pelo domínio da favela de Acari, então sob o controle de
Jorge Luís. E pior: a placa estava sobre treze corpos abandonados em frente à Fábrica de
Esperança.
— Você viu? É lá na frente da fábrica — disse Alda, desviando o olhar da televisão e me
olhando assustada.
— Meu Deus, onde é que nós fomos nos meter? Mas como você disse, não tem mais volta —
falei para minha esposa.
Como estava profundamente dedicado à evangelização dos presos de Bangu I, e como lá
dentro conhecera pessoas que do lado de fora tinham fama pior do que o tal Parazão, preferi
pensar que talvez por trás daquele bicho houvesse um homem, e assim prossegui sem medo.
As idas ao presídio de segurança máxima eram incríveis sob todos os aspectos. Primeiro,
porque ali cheguei mais perto do que nunca da ambigüidade humana; tanto a minha quanto a dos
outros. Conhecer um criminoso temido por todos e de repente perceber a humanidade dele mais
que viva foi algo esmagador para mim. Não podia mais tratar aquelas pessoas, e ninguém mais
dali para a frente, apenas como caricaturas de jornal.
No início, eu achava que lá havia apenas bandidos mantidos atrás das grades. Depois é que vi
que havia gente nas celas de Bangu I. E tais pessoas, antes de estarem presas dentro dos cárceres
de cimento, estavam confinadas dentro de seus próprios corpos, os quais, às vezes, estavam
dominados por monstros ou apenas por fantasmas de um momento, que fizeram vítimas de tempos
e circunstâncias históricas, feitas crônicas. Mas foi só depois de constatar a prisão dos corpos que
percebi a prisão nos corpos. E isso me liberou para visitar não apenas o presídio, mas a prisão
mais profunda, onde aqueles espíritos humanos se encontravam.
A experiência ali também me revelou o poder enorme que a mídia tem de estabelecer a
existência referencial de certos monstros, cuja existência passa a ser uma necessidade social. O
Rio não tem como viver sem a presença histórica daqueles bichos. Eles são fundamentais quanto
a afirmarem a bondade do carioca, cuja sociedade estaria como está, não por causa de milhares
de desencontros coletivos, mas em razão da existência de apenas alguns seres perversos, que
destroem as esperanças coletivas e a boa intenção dos governantes e das elites. As elites soltas
precisam criar elites presas, a fim de maquiarem a realidade coletiva. É mais simples e mais
barato. Por isso, passei a ver Bangu I como um lugar que ocupava um papel de natureza
psicopolítico-religiosa. Não tinha o poder de redimir a sociedade dos seus pecados, mas dava a ela
certeza de onde poder encontrá-los e explicá-los.
Ali também pude perceber que o poder que aqueles homens presos exercem do lado de fora é
exatamente proporcional ao poder que aqueles que, estando fora, com força para governar
legitimamente, deixam de exercer para o bem comum. Ou seja: eles não tinham poder. Eles eram
ungidos pela omissão das forças constituídas e pela sua incapacidade de agir consistentemente a
favor dos desgraçados deste mundo.
Além disso, constatei a conexão que havia entre aquelas criaturas e o poder constituído. Ali
dentro podiam-se ouvir histórias incríveis de como, em outros tempos, governantes se serviram
politicamente da ajuda de alguns deles e do quanto seus vínculos do lado de fora atingiam pessoas
aparentemente acima de qualquer suspeita. Havia quem afirmasse ter tido até caso com grandes
mandatários do mundo político. Algumas das histórias que ouvi eram claramente fantasiosas.
Outras, todavia, tinham todos os contornos e detalhes da verdade. Depois de ouvi-las, às vezes
não podia dormir à noite.
Até março de 1994 eu pregava em todas as galerias de Bangu I, menos na D, onde estavam
Escadinha, Japonês, Paulo Maluco, Adão de Vigário e outros.
— Hoje eu vou lá — disse assim que botei os pés no presídio naquela tarde.
— Cuidado, que a barra aí é pesada — disse o agente carcerário que estava abrindo as três
portas de barras de ferro que dão acesso ao interior de cada galeria.
Bati palmas e pedi um pouquinho de atenção. Paulo Maluco, irmão de Escadinha, gritava
num dos cantos.
— Eu quero é o diabo. Eu odeio Deus — dizia aos berros.
Pastor Washington e outro rapaz iniciaram os cânticos. Apenas uns seis dos doze homens que
ali estavam vieram para junto de nós.
— Gente, quero contar uma história sobre um homem que dava pinote de todas as prisões. É
sobre um cara que abria todas as cadeias e fugia — eu disse com um sorriso sério na face.
— Essa história eu tô precisando ouvir — disse Escadinha, enquanto os outros davam uma
gargalhada coletiva.
O grupo aumentou substancialmente. Apenas Paulo Maluco continuou distante, gritando
suas provocativas invocações ao diabo.
— Havia um homem que morava numa cidade chamada Geresa. Ele era o Geraseno. Um dia,
aquele homem se percebeu cheio de vontades ruins dentro dele. No início, ele apenas notava
aqueles desejos. Depois, os desejos cresceram tanto, que o dominaram. Então, ele ficou possuído
pelos desejos. Eram mais de dois mil desejos que possuíam o homem a só um tempo. Cada um o
impulsionava numa direção. A força do homem era tão grande, que ele quebrava as correntes que
nele eram postas, arrebentava todas a grades das prisões e fugia de qualquer cadeia — falei.
— Iiiii cara! O bicho era muito doido — alguém falou rindo.
— Traz um desses pra cá, reverendo! — falou outro. Outra gargalhada.
— Jesus atravessou o mar da Galiléia e foi até Geresa libertar o homem da tirania dos desejos
do mal. “Saiam dele, espíritos imundos”, disse Jesus quando viu o homem dos dois mil desejos
ruins. “Não mande a gente pro abismo”, disseram os desejos do inferno. “Como é o nome de
vocês”, indagou Jesus. “Nosso nome é Legião”, falaram os espíritos.
— Eu não quero Deus. Eu quero é o diabo. Meu Deus é dólar no bolso — gritou mais uma
vez Paulo Maluco, interrompendo minha história. Escadinha e Japonês olharam para ele com
firmeza. Escadinha fez um gesto com a mão mandando ele se calar, e Maluco sossegou na hora.
— Os demônios saíram do homem e entraram nos porcos que estavam ali. Então, os dois mil
porcos se jogaram de um abismo e morreram afogados no lago de Genezaré — falei, enquanto
eles e o carcereiro, que mostrava apenas a metade do rosto atrás da porta, me fitavam sem piscar.
— Os demônios saíram do homem e ele ficou sentado aos pés de Jesus, em perfeita paz —
concluí.
— É, cara, tem muita coisa ruim no ar — falou um deles.
— Mas o que quero falar aqui é o seguinte, gente. Jesus libertou esse homem de dois
poderes. O primeiro foi o poder dos demônios, dos desejos invisíveis do mal. Esse poder é fácil de
sair. “Sai dele”, a gente diz, e ele sai, porque o nome de Cristo tem poder sobre as forças
invisíveis da maldade. O difícil é a libertação de um outro poder — falei.
— E que outro poder é esse? — perguntou Japonês, saindo do silêncio e entrando na
conversa como quem não quer nada.
— Ora, o nome da cidade do homem era Geresa. Esse nome vem de uma palavra hebraica
que significa “o expulso” ou “o possuído”. Então, até a cidade estava possuída pela “idéia da
possessão”. Durante mais de trezentos anos eles tinham sido possuídos por exércitos de
inimigos. Naquela época, os romanos e suas legiões estavam lá. Por isso os demônios disseram a
Jesus que o nome deles era Legião — falei fazendo uma pausa para me certificar de que estavam
me entendendo.
— Que barato, cara. Que barato! — disse Escadinha.
— Mas olha, alguém aqui acredita que seja possível construir uma corrente que nenhum ser
humano possa quebrar ou fazer uma cadeia que ninguém possa arrebentar? — indaguei.
— É claro. Tem corrente tão forte que nem com o diabo no couro a gente consegue quebrar
— alguém comentou e os outros riam.
— É isso aí. O limite de um demônio num corpo é o próprio corpo. Se eu fizer mais força
com meu braço do que o meu osso agüenta, o braço quebra — falei.
— Mas e daí? O que o senhor tá querendo dizer? — indagou Adão.
— O que eu estou dizendo é que se aquele homem quebrava tudo e fugia sempre, era porque
o pessoal da cidade queria que ele fizesse aquilo. Caso contrário, fariam uma prisão da qual o
homem jamais fugiria — afirmei.
— E como é que o senhor sabe que eles não queriam que o cara ficasse preso? — indagaram.
— Quando Jesus libertou o homem, os moradores da cidade foram ver o que estava
acontecendo e não gostaram de ver o homem livre, são. Então, pediram a Jesus pra ir embora de
lá. Dá pra entender um negócio desses? — perguntei.
— Que é isso, bicho? Que negócio maluco — falaram entreolhando-se.
— Pois é, mas aconteceu. E sabem por quê? Porque a cidade precisa de seus malucos. Ela
precisa do Escadinha para se sentir melhor. Precisa do Japonês pra se sentir mais humana. O Rio
precisa dos “desencontros” de vocês pra ficar com a sensação de ser um lugar de gente
equilibrada. Vocês são tão malucos e fazem coisas tão incríveis, que acabam sendo úteis aos
demais. Perto de vocês, todos os loucos se sentem sãos e todos os malandros se sentem honestos
— falei sem certeza de que estava sendo entendido. — E mais: como os crimes de vocês são
crimes dos pobres, vocês servem para fazer com que o banditismo do rico se torne civilizado,
entenderam? — acrescentei.
— É isso aí. Os caras não querem que a gente se recupere, não. Quando a gente fala em
regeneração, eles brincam com a gente. Num dá pra entender. O que eles querem? Que a gente
morra bandido? — perguntou Escadinha, chegando exatamente onde eu queria que todos
chegassem.
— Das forças dos desejos malignos, Jesus liberta vocês. Mas das forças dos desejos loucos da
sociedade, só vocês mesmos podem se libertar. E vocês se libertarão disso quando, em vez de
fugirem de cadeias e quebrarem correntes, vocês se assentarem aos pés de Jesus. Se vocês
começarem a buscar sanidade andando com Jesus, o Rio vai entrar em crise. E essa crise será
boa, pois obrigará os cariocas a ficarem cara a cara com suas próprias loucuras e culpas. Afinal,
vocês já não estarão aí pra carregar as sombras, as loucuras e as feiúras de todos — acrescentei
com força.
— É, a culpa é dos caras e eles querem jogar na gente — disse um deles.
— Não! A culpa é de vocês. Ou vocês estão aqui de graça? Ninguém aqui aprontou à beça pra
estar aqui? É claro que sim. O que eu estou dizendo é que, além da culpa de vocês, que existe e é
real, vocês também estão carregando uma culpa coletiva, que é de muitos — afirmei com medo
que alguém ali achasse que eu estava alisando a cabeça deles. Afinal, eu sabia que estava sendo
ouvido e gravado.
— Tá na hora, reverendo — falou o carcereiro mostrando-me o relógio.
— Tá cedo, gente boa — eles responderam quase em coro.
— O senhor volta quando? — indagou Escadinha.
— Semana que vem — respondi.
— Aí ó, posso dá um abraço no senhor, reverendo? — indagou o famoso José Carlos dos Reis
Encina.
— Claro — consenti. Ele me abraçou com extrema ternura.
Depois veio o Japonês. Não pediu para abraçar. Apenas abraçou com os músculos do peito
retesados como uma tábua. Em seguida, olhou-me profundamente os olhos.
— O senhor é gente boa. Vem aqui com a gente sempre, certo? — disse.
Um a um, todos fizeram questão de me abraçar.
— Reverendo, num leva a mal o meu irmão, não. Ele é ruim da cabeça — falou Escadinha, se
desculpando pelas provocações de Paulo Maluco.
— Fica tranqüilo. Eu tô acostumado — falei e desapareci no labirinto de corredores,
enquanto ouvia o bater forte das portas de ferro que iam sendo irremediavelmente trancadas
atrás de mim.
Durante todo o ano de 1994 visitei aqueles homens quase todas as semanas. Ouvi suas
histórias e contei-lhes histórias do evangelho. Orei com eles e ouvi sobre suas memórias de
arrependimento. Para mim, eles deixaram de ser apenas bandidos e passaram também a ter
nome e humanidade. Alguns, eu sabia, estavam buscando cura para a vida. Outros me recebiam
bem apenas porque não havia razão para me receber mal. Eu, entretanto, perdi completamente
qualquer temor deles.
Depois de muitas visitas e muitas orações, tive a suprema declaração de sua simpatia para
comigo.
— Reverendo, eu não tenho nada além de muita coragem. Se alguma vez na vida o senhor
precisar de um homem pra oferecer o peito pra levar uma bala pelo senhor, é só me chamar. Pelo
senhor, eu morreria com prazer — disse Japonês numa das muitas vezes em que me despedi
deles naquelas tardes de quinta-feira.
Capítulo 45

“Não obstante isto, o menor de Teus Apóstolos, por cuja boca pronunciaste essas
palavras, quando suas armas venceram o orgulho do procônsul Sérgio Paulo,
quando, sujeitando-o ao leve jugo de Teu Cristo, elas fizeram dele um súdito do
grande Rei.”

Santo Agostinho, Confissões

Na véspera da posse de Nilo Batista como governador do estado do Rio de Janeiro, o jornal O
Globo amanheceu com uma matéria devastadora. A fortaleza do banqueiro do bicho Castor de
Andrade havia sido estourada, e lá haviam encontrado uma lista com nomes de pessoas
importantes do cenário político carioca. Na tal lista havia as iniciais N.B., que foram
imediatamente interpretadas como sendo as de Nilo Batista. No mesmo caderno de anotações
havia valores que, presumivelmente, corresponderiam a investimentos do banqueiro em
campanhas políticas.
— Verinha, tá tudo bem? — perguntei à esposa de Nilo ao telefone.
— Que nada. Que barra-pesada, Caio. Esse pessoal é mau. Querem destruir a gente. Você
quer falar com o Nilo? Ele tá no telefone vermelho com o governador. Ele te liga em cinco
minutos — falou Verinha com a voz agitada, como era de se esperar.
Não demorou nem cinco minutos e Nilo me ligou de volta.
— Olha, eu te conto tudo depois. Mas é suficiente apenas dizer que não é nada disso. Estão
querendo me incriminar e sujar meu nome. Faço questão de lhe contar tudo com calma — Nilo
falou com sinceridade na voz.
— Olha, eu não preciso saber de nada. Eu acredito em você. E mesmo que tivesse acontecido
alguma coisa, e daí? Todos cometemos equívocos. Não haveria nada de extraordinário nisso, não
fosse sua posse amanhã — falei com carinho pastoral.
— Eu sei. Mas o fato é que eu não estou nessa lista. Não do jeito que eles querem me fazer
aparecer. Se estivesse, eu falaria. Quero ser tudo, menos hipócrita — reafirmou Nilo sem
qualquer titubeio.
Pedi para fazer uma oração por ele ao telefone e depois subi ao escritório de minha casa para
escrever um fax com uma palavra pastoral para Nilo, Verinha e as crianças. E daquele dia em
diante, eu lhes enviaria dezenas de outros fax com textos bíblicos e palavras de conforto e
estímulo.
No dia seguinte, Lucilia, amiga de Verinha e minha amiga desde a infância, foi comigo à
posse de Nilo. O corredor polonês estava montado. Ele teria de passar por dentro dele, com
políticos e repórteres para todos os lados. Eu e Lucilia ficamos de longe.
— Que massacre, Caio. Que horror será essa posse! — disse Lucilia preocupada com o
clima.
Nilo veio entrando sob as luzes e os microfones. Eram perguntas de todos os lados. As vozes
se misturavam de tal modo, que nem dava para entender direito o que a multidão dizia.
— Nilão, meu irmão — falei sem esperança de ser ouvido quando ele passou a uns cinco
metros de nós. Nilo parou e me procurou no meio da multidão. Saiu de seu caminho e veio em
minha direção. Abraçamo-nos com fraternidade e compromisso afetivo ali no meio de todos. —
Vai firme, irmão. Vai firme porque Jesus tá contigo — falei discretamente, mas sem sussurrar.
A posse aconteceu e o massacre continuou. Depois fiquei sabendo que a história do nome de
Nilo na lista do bicho poderia ter relação com uma doação feita por um banqueiro à ABIA,
instituição de apoio a aidéticos da qual Nilo era conselheiro e Betinho o fundador. Mas como a
explicação envolvia Herbert de Souza, uma das figuras mais inatacáveis da nação, em vez de
esclarecer os fatos, apenas os turvou ainda mais.
— Nilo, deixa esse pessoal provar o que está dizendo. Você sabe que não recebeu nada. Não
fica se defendendo. Olha, o prefeito César Maia e o ex-prefeito Marcello Alencar também têm
seus nomes na tal da lista. Mas como estão calados, vão ser esquecidos. Não fica aí se defendendo
por que isso atrapalha você — falei muitas vezes.
Mas o problema era que Nilo sabia que aquilo era uma tremenda injustiça que estavam
fazendo com ele e não podia admitir que o nome que ele construíra com tanto esforço fosse
enlameado tão perversamente. Se Nilo fosse um político de carreira, aquilo não o teria
machucado tanto. Mas como ele tinha outra história, tendo ganhado a vida como um dos mais
brilhantes criminalistas do Brasil e como intelectual, aquela controvérsia o feriu com um poder
devastador.
Um grupo de amigos fiéis esteve sempre presente, dando a ele e a Verinha a certeza de que
não estavam sós. Com pressões de todos os lados, Nilo encontrou na leitura da Bíblia e nas
orações seu refúgio pessoal. Começou a ir aos cultos da Catedral Presbiteriana do Rio e decidiu
instituir um culto semanal no palácio, todas as segundas-feiras. Além disso, achou que não era
justo que o cardeal dom Eugênio Salles fosse o único líder religioso com acesso à rede do telefone
vermelho pelo qual ele podia chamar o governador e todos os secretários de estado a hora que
quisesse. “Vou instalar telefones vermelhos na AEVB e no Rabinato também”, disse ele e fez o
que prometeu alguns dias depois.
Em maio de 1994 batizei o governador do estado, Nilo Batista, e sua esposa, Vera Malagute
Batista, na sala de sua casa, no morro de Santa Teresa. Foi uma cerimônia simples, presenciada
apenas por uns poucos amigos de fé. Depois conversamos até de madrugada e fizemos votos de
felicidade uns aos outros. Enquanto isso, a luta continuava em todas as frentes. A campanha
presidencial se acirrava, a violência no Rio era maximizada e já se falava em intervenção militar no
estado.
Quanto a mim, estava tão “tomado de coisas”, que a sensação que me dava era a de que eu
estava vivendo dentro de uma câmara de lapso de tempo. A cada dia acontecia de tudo. Eram
repórteres querendo ver se chegavam ao governador por meu intermédio; outros queriam que eu
os ajudasse a entrevistar Gregório, o Gordo, ou Escadinha; outros, ainda, desejavam saber se eu
era aliado político de Lula ou Brizola. E ainda havia o contingente que desejava me entrevistar em
razão de temas diversos, com os quais me envolvi sem nem bem perceber: arbitrariedade da
polícia, direitos dos favelados, situação da população carcerária, crescimento da violência urbana,
liberação ou não das drogas e, de quebra, o tema do crescimento vertiginoso dos evangélicos.
Naqueles dias, lançamos também a Cartilha evangélica do voto ético. A tal cartilha gerou mais
um monte de entrevistas. E a Fábrica de Esperança, que começava a se desenhar como um
megaprojeto social, também atraía imensa curiosidade. Em meio a tudo aquilo, Edir Macedo e a
Universal eram temas que estavam sempre presentes em todas aquelas entrevistas diárias tanto
da mídia nacional quanto da internacional. Eu falava de tudo, mas fugia como podia dos assuntos
relacionados a Macedo e sua igreja.
A grande questão para a mídia a partir de julho de 1994 eram as eleições para presidente e
governador. Assim, de repente eu me vi no meio de uma briga que não era minha. A Universal
dizia que apoiava Orestes Quércia, mas fazia pactos com Fernando Henrique Cardoso. E para
ficar mais à vontade, dizia que eu e a AEVB estávamos comprometidos com o PT de Lula. Assim,
a fofoca política corria solta no meio evangélico. No Rio, a briga pelo governo do estado era entre
Marcello Alencar e Garotinho, o candidato de Brizola.
— É verdade que nas eleições nacionais o senhor é Lula e nas estaduais é Garotinho? — foi a
pergunta que ouvi até não agüentar mais naqueles dias, o que me fez desejar ardentemente que
as eleições acabassem logo. Até ali, contudo, minhas relações com Macedo e a Universal
mantinham-se controladamente distantes, porém sem confrontação.
Como Nilo e Verinha levaram Brizola lá em casa para comermos um gostoso tambaqui
amazônico e passamos a tarde numa saborosa conversa sobre a história política do Brasil neste
século, com direito a viagens íntimas pelas nossas percepções espirituais e leituras de fé sobre a
realidade que nos cercava, correu também que eu estava costurando uma possível aliança entre os
evangélicos e o PDT ou, quem sabe, um acordo entre Brizola e Lula para um eventual segundo
turno das eleições presidenciais. Tudo invenção!

— Meu nome é Sérgio Rodrigues e eu queria fazer uma entrevista com o senhor para a capa
da Vejinha desta semana — disse-me o repórter naquela terça-feira.
Três dias nos encontrando para conversar. No domingo, dia 7 de agosto, passei na banca de
revista da entrada do condomínio onde moro em Itaipu e vi minha foto na capa.
— O senhor saiu na capa da Vejinha — disse o jornaleiro.
A capa era singela. O bom pastor. Subtítulo: Líder evangélico acusa bispo Macedo de
mercantilismo e prega ação social. As palavras que introduziam a matéria diziam o seguinte: “O
homem que converteu o governador Nilo Batista e o presidiário Gordo ao protestantismo não é
famoso como o vilanizado bispo Macedo, mas está a caminho disso. E pelo lado bom. Líder dos
evangélicos éticos, o pastor Caio Fábio, da Igreja Presbiteriana, luta para erguer numa antiga
fábrica em Acari a maior obra social do país.”
No texto havia uma referência a mim como sendo o anti-Macedo, e a afirmação de que eu o
acusara de fetichismo e mercantilismo religioso me fizeram gelar o estômago.
— Mas você disse isso? — perguntou-me Alda com desconforto, como quem dizia: “você
está procurando sarna pra se coçar”.
— Falei e não falei — disse. — Descrevi os métodos deles e disse que eram mercantilistas e
fetichistas. Mas não fiquei falando deles. Foi mais dos conceitos. Mas se saiu na capa que falei, tá
falado. É isso que eu penso mesmo — disse como quem estava cansado de fugir do assunto.
— Mas o repórter não podia ter escrito isso se pra você não era importante — disse Alda com
uma certa ingenuidade jornalística e com seu habitual senso de justiça.
— Mas eu falei. Só não falei como a coisa mais importante da entrevista e nem fiquei pisando
nessa tecla. Mas falei sim. Em três dias de papo, mencionei o assunto uma vez e de passagem. O
editor lá deve ter achado que a chamada estava aí. O que eu posso fazer? Com a mídia a gente só
tem uma opção se não quiser correr nenhum risco: não dar a entrevista. Mas se der, tem que
arcar com as conseqüências — falei sem ressentimento. Afinal, eu havia falado algo sobre
Macedo, sem dúvida.
De fato, o trabalho jornalístico de Sérgio Rodrigues havia sido limpo, sensível e até poético.
No encontro das contas, eu estava feliz com a matéria, e não somente eu, mas dezenas de líderes
evangélicos, que me telegrafaram ou telefonaram dizendo-me orgulhosos de que enfim nós
estivéssemos sendo vistos como gente séria pela imprensa.
A matéria da Vejinha foi a gota d’água para deflagrar meu confronto com Macedo e seus
liderados. Dali em diante, a Universal entrou na briga para valer, e eu iria sentir o poder de sua
fúria.

— O Quércia e o FHC não virão ao debate da AEVB com os presidenciáveis — foi o que o
reverendo Luís Wesley, secretário executivo da Associação Evangélica, me disse com um tom de
angústia na voz, e eu corri para o escritório de Quércia em São Paulo.
— Desculpa, reverendo. Houve uma confusão na agenda. Não poderei ir ao Rio amanhã —
disse-me o candidato do PMDB.
Expliquei que a ausência dele seria desastrosa. Tiraria o equilíbrio do evento e daria a
impressão de ser um debate tendencioso.
— Farei o possível para comparecer — disse-me.
Eu, entretanto, sabia que ele não iria ao hotel Glória, onde aconteceria o debate evangélico
brasileiro com os presidenciáveis.
— Reverendo, lamento muito, mas não será possível que o senador esteja aí para o debate de
amanhã — disse-me Pimenta da Veiga, coordenador da campanha de FHC.
Botei todo mundo em cima dele: deputados, senadores e assessores, mas ninguém conseguiu
recolocar Fernando Henrique em nossa agenda.
— Reverendo, o senador Fernando Henrique está na linha — disse-me Cristina.
— Senador, sua presença aqui é imprescindível — falei em tom de súplica.
— Reverendo, houve uma confusão aqui na agenda e não poderei ir. Lamento muito. Não
quero que a AEVB me entenda mal. Estou mandando uma carta para o senhor. Espero
encontrá-lo em breve — disse aquele que viria a ser o próximo presidente do Brasil.
A carta veio. Mas FHC não apareceu!
Quércia mandou um preposto. Foi um fiasco. Lula veio e roubou a cena toda. Brizola foi
singelo e acabou participando de uma sessão de nostalgia metodista, falando dos tempos em que
foi evangélico e freqüentou aquela igreja em Porto Alegre.
Foi só depois que fiquei sabendo o que aconteceu. Amigos de São Paulo, bem próximos à
liderança da Universal, disseram-me que “os bispos” puseram pressão nos coordenadores
políticos dos dois candidatos ameaçando retirar o apoio da igreja, caso eles fossem ao debate. E
como demonstração da validade de seu pedido, teriam mandado uma cópia da Vejinha daquela
semana.
— A questão era: quem fosse estaria trocando o certo pelo duvidoso. Vocês são muitos
também, mas não dão apoio formal a ninguém. Os candidatos teriam que conquistar o voto de
vocês. A IURD não. Eles podiam dizer pra eles: “Nós apoiamos mesmo e vestimos a camisa.”
FHC e Quércia escolheram o certo ao invés do duvidoso — foi o que me disse um irmão de São
Paulo.
À medida que chegávamos à reta final das eleições, eu pedia a Deus que o ano acabasse logo.
A pressão de candidatos era imensa e o assédio da mídia era muitíssimo intenso não só em
relação àquele assunto, mas no que se referia a todos os outros temas também. Eu já não podia
trabalhar de tanto dar entrevista.
— Você precisa decidir o que vai fazer da vida Caio. Esses repórteres não deixam você em
paz o dia inteiro. Assim seu ministério vai passar a ser o de “entrevistado de Deus”, não o de
ministro do evangelho — disse-me Alda, irritando-me de início, mas depois me fazendo perceber
onde eu havia me metido.
ministro do evangelho — disse-me Alda, irritando-me de início, mas depois me fazendo perceber
onde eu havia me metido

Capítulo 46

“Mas longe de mim pensar que na Tua casa são mais aceitas as pessoas dos ricos
que a dos pobres, e as dos nobres mais que as dos plebeus, porque preferiste
escolher os fracos segundo o mundo para confundires os fortes; o que é vil e
desprezível segundo o mundo, o que nada é, para aniquilar o que é.”

Santo Agostinho, Confissões

— C aio, estou nomeando você para uma comissão de investigação desse episódio de Nova
Brasília — disse-me o governador Nilo Batista pelo telefone vermelho que estava instalado em
meu escritório em Niterói. Ele se referia a uma operação legítima das polícias civil e militar
naquela favela do chamado Complexo do Alemão, mas que acabara sendo prejudicada pela ação
livre e exterminadora de alguns policiais. No final da noite, havia mais de dez jovens mortos,
alguns deles com clara indicação de terem sido executados sumariamente com tiros nos dois
olhos e em outras áreas do corpo que indicavam uma ação meticulosamente estudada pelo
executor.

— O que a gente vai fazer com essas meninas? — perguntou-me Arthur Lavigne, secretário
de Justiça, fazendo referência às três garotas que tinham sido usadas sexualmente por alguns dos
exterminadores e que haviam testemunhado algumas das execuções.
Acompanhavam as três jovens dois advogados da favela. Um deles era magro e bastante
articulado no modo de se expressar. Disse que era advogado de bandido porque encontrava mais
humanidade neles que nos policiais. Contou-nos histórias bárbaras sobre suas negociações com
alguns policiais, para os quais havia passado dinheiro dos bandidos nas famosas maneiras, a fim
de que seus clientes pudessem ser liberados após o resgate.
— Eu choro de amargura quando meu filho diz que quer ser policial. “Pelo amor de Deus,
menino, vai ser qualquer outra coisa”, é o que eu digo pra ele. “Polícia, não” — contou Dr. Paulo
com lágrimas nos olhos, mostrando um sentimento que até ali eu não sabia que existia em
profissionais que ganham a vida como ele.
O outro advogado era uma figura inconfundível. Falava através de um aparelho especial que
ele posicionava num pequeno orifício existente em seu pescoço, o que dava à sua voz um tom
metálico, como se um computador multimídia estivesse conversando com você. Esse outro falava
pouco, mas parecia saber muito.
Depois de longa sessão de depoimentos tomados pela Dra. Marta Rocha e outro profissional
da Corregedoria de Polícia, chegamos de novo à questão crucial.
— Onde é que a gente vai colocar essas meninas? — perguntou Lavigne olhando para mim.
— O estado não tem como protegê-las? — indaguei.
— Onde?, se os acusados são policiais? É muito perigoso. O caso é sério. Elas podem morrer
— concluiu.
— Então deixe-as comigo. Vou guardá-las — disse.
— Ninguém aqui precisa saber. Pode levá-las. Eu aviso quando a gente vai ouvi-las outra vez
— falou o secretário de Justiça que, por acaso, era meu primo de quinto grau, vindo do mesmo
tronco dos Lavigne do qual procedera minha avó Zezé.
Alda, minha esposa, estava viajando. Tentei colocar as garotas numa casa evangélica em São
Gonçalo, mas não deu certo.
— É quieto demais lá, tio — disse uma delas.
O jeito foi levá-las para minha casa.
Cilene, morena, magra, de rosto fino, tinha 18 anos e era uma mulher já de certa experiência.
Aninha, entretanto, era uma adolescente de apenas 16 anos, falante, alegre, charmosa em sua
pobreza e dona de uma apuradíssima inteligência. Tinha resposta para tudo e estava sempre à
frente de todos durante as entrevistas. Martinha, no entanto, não passava de uma criança.
Grande, meio gordinha, tinha todas as formas de uma mulher bem desenvolvida, mas idade e
coração de uma menina. Apenas treze anos. Sendo a mais nova, foi, no entanto, a mais
traumatizada de todas na chacina de Nova Brasília.
— Eles me abusaram. Enfiaram tudo que quiseram em mim. Puseram até faca dentro das
minhas partes. Fizeram tudo do jeito que quiseram. Me arrombaram. O negão ficava rindo
enquanto o outro derramava o gozo dele na minha cara — disse ela entre muitas outras
declarações chocantes.
As três tinham “enviuvado”. Seus homens, todos rapazes de idades variando entre 17 e 19
anos, haviam sido executados na mesma noite e praticamente do mesmo jeito. Os “meninos”
eram do tráfico e andavam armados. Apenas um deles tinha envolvimento secundário no
“movimento”.
— Eles levaram o Biriba para o fundo do quintal algemado e depois eu vi o corpo dele sem
algemas e com dois tiros nos olhos — disse Aninha acerca de seu “homem”, como elas os
definiam.
Fui e voltei daquelas sessões de interrogatório com elas algumas vezes, talvez três ao todo. No
fim do processo, percebi que minha chegada ao local dos interrogatórios causava agitação. Era
como se o inimigo tivesse chegado. Depois de alguns dias, as meninas desapareceram. Cheguei a
pensar que tivessem sido mortas. Apenas dois meses depois foi que as encontrei vivas na favela de
Nova Brasília, numa das “invasões noturnas de paz” que fazia na cidade, e fiquei sabendo que
elas haviam fugido porque preferiam o risco da morte na favela do que a confortável reclusão de
minha casa.
— Aquele seu loirinho é um gato. Mas tá amarrado, né? Se tivesse livre, eu pegava pra mim.
Mas homem dos outros a gente tem que respeitar — disse Aninha, fazendo alusão ao fato de meu
filho Davi ter namorada.
O episódio de Nova Brasília foi seguido de um outro em Vigário Geral. A denúncia foi feita
por Caio Ferraz, mas eu fui outra vez o mediador da situação. O clima ficou pesado, pois, numa
incursão legal na favela, os policiais pegaram um rapaz. O moço tinha carteira de trabalho e a
multidão dizia que ele era “trabalhador”, palavra mágica naqueles contextos, só superada pelo
elogio “otário”, especialmente quando pronunciado por um bandido em favor de uma pessoa
honesta. Mesmo assim, o moço foi levado pela polícia para a beira do rio que passa atrás da favela
e encapuzado com um saco plástico, após o que foi virado de cabeça para baixo e enfiado dentro
d’água. A intenção alegada era fazer o rapaz falar onde estavam as armas que os policiais estavam
procurando. Repetiram tantas vezes essa “ação de convencimento”, que o moço faleceu dentro do
rio. O corpo foi então posto num puçá e guindado pelo helicóptero da polícia. A multidão correu
pela favela olhando para cima, na direção onde o corpo estava sendo levado pelo meio do céu. O
helicóptero, então, parou em cima do CIEP local e, de uma altura de cerca de cinco metros, abriu
a rede e deixou o corpo cair na quadra da escola.
— Chegou a quicar no chão. O som foi horrível. Nunca vou esquecer — disse-me a mãe do
rapaz.
Falei com Nilo e ele disse para eu levar as testemunhas ao palácio. Depois de ouvi-las,
encaminhou-as para a Corregedoria de Polícia, onde a Dra. Marta Rocha iria interrogá-las. Eu
havia aprendido na prática, desde o outro episódio, que Marta era gente com quem nós podíamos
contar. Mas quando deixei Caio Ferraz e as testemunhas na porta da Polícia Civil, deu para ver os
olhares incendiados de ódio que recebi dos guardas do portão. Fiquei ali apenas um pouco e tive
de me ausentar para o aeroporto, a fim de viajar.
No dia seguinte eu estava de volta ao Rio.
— Nós não ficamos lá não, pastor! — disse-me Caio Ferraz. — Os caras começaram a
ameaçar a gente. Até a mulher do cafezinho disse que a gente tava fazendo besteira, que o garoto
que foi afogado pela polícia era traficante e que nós estávamos prejudicando a carreira de policiais
pra defender bandido — continuou. — Depois disso e de muitas outras ameaças, até a mãe do
garoto estava querendo ir embora e retirar a queixa — terminou Caio com seu estilo nervoso de
quem fala mais palavras ao mesmo tempo que a maioria dos mortais que conheço.
Não deu em nada. Aqueles dois episódios me ensinaram duas lições. Tínhamos tudo para ver
as coisas andarem. Um governador humano e disposto ao sacrifício para fazer a Justiça
prevalecer, um secretário de Justiça socialmente comprometido com causas justas, uma
corregedora de Justiça amiga e bem-intencionada, mas nem assim conseguíamos ir a lugar
algum.
Por quê?
Primeiramente porque o corporativismo da instituição policial só funciona eficientemente
quando se trata de proteger os maus-elementos dentro da corporação, mas é completamente
incapaz de agir para proteger a corporação dos maus-elementos. Além disso, também ficou claro
para mim que qualquer tentativa de se exercer uma política de direitos humanos que
eventualmente aconteça contra membros da instituição policial, estando esta instituição no Rio
de Janeiro, será sempre entendida como ação a favor de criminosos. O clima de enfrentamento
entre policiais e bandidos ganhou tal grau de rivalidade marginal, que o espírito que prevalece já
não é mais o da cidadania fardada contra a criminalidade perversa. O que se tem é apenas a
guerra do nós contra eles. E quem quer que pleiteie que a nossa ação seja feita de modo
diferenciado da ação deles, vai ser julgado como alguém que está do lado de lá.
Meu compromisso com os direitos humanos colocaram-me na pior lista em que estive em
toda a minha vida: a lista negra de alguns maus policiais do Rio.
Capítulo 47

“Tinhas ferido nosso coração com Teu amor, e lá levávamos Tuas palavras
cravadas em nossas entranhas; reuniam-se no fundo de nosso ser numa espécie de
fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que o vento da contradição
das línguas dolosas não apagasse a chama em nós, antes nos incendiasse mais
ardentemente.”

Santo Agostinho, Confissões

Em setembro de 1994 a mídia começou a falar mais explicitamente em “intervenção federal


no Rio”. O assunto era, no mínimo, confuso e profundamente controverso. Para uns, soava como
a grande chance de desmoralizar o governo do PDT, de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Para
outros, era apenas uma questão de simplismo pragmático, calçado na idéia de que o Exército
tinha conseguido acalmar o Rio durante a conferência internacional Eco 92, razão pela qual
poderia voltar a fazê-lo. Tolice.
— Gregório, o que você acha disso? — perguntei ao Gordo, agora preso no complexo da rua
Frei Caneca.
— Reverendo, eles estão loucos. Fazendo assim eles correm o risco de desmoralizar as
forças armadas e ainda sofisticar o crime. Os “meninos” vão ficar mais espertos, os soldados vão
ser corrompidos, os “grupos” que estão organizados em uma ou duas favelas numa região vão
acabar ficando unidos a outros grupos espalhados pela cidade. Não sei, não. Vai ser pior — disse o
Gordo.
Rubem César não queria a intervenção, mas apenas uma ação coordenada das várias polícias
trabalhando juntas, especialmente nas divisas, coibindo a entrada de drogas e armas. Entretanto,
no Viva Rio havia também visões pessoais diferentes da dele. E alguns dos que pensavam com
outros interesses emitiam suas opiniões na mídia não em nome do Viva Rio, mas a partir de suas
bases de operação, fossem políticas, comerciais ou empresariais. Assim, ficava a impressão de
que a intervenção era uma bandeira do movimento.
Conversas freqüentes com Artur Lavigne deixaram Rubem César completamente
convencido de que a interpretação que Nilo tinha dos fatos estava correta. Desde o início daquele
ano Rubem vinha conversando regularmente com o então secretário de Justiça, de quem ouvira
coisas que estavam totalmente de acordo com a ordem dos fatos, ou seja: ações meramente
repressivas nas favelas não passavam de um cansativo, humilhante e custoso modo de enxugar
gelo. Era preciso reprimir o crime, mas era mais imperativo ainda fazê-lo nas suas causas
geradoras e no seu modus operandi, e não apenas na ponta pobre do processo: a favela.
O problema, contudo, era que certas ações e declarações de alguns membros do movimento
suprapartidário Viva Rio muitas vezes se manifestavam de modo bastante ideológico e partidário
ou, então, posicionavam-se justamente na direção das forças que tendiam a favor de uma possível
intervenção federal gerando, assim, um terrível mal-estar no palácio das Laranjeiras, onde Nilo
agonizava ao ver, “gente de tradição democrática se aliando à causa da remilitarização do Rio”.
Não é preciso dizer o quanto tais fatos e predisposições magoaram Nilo. E some-se a isso o
episódio da lista do bicho que, para além de todo o desconforto público que havia causado na vida
do governador, tivera ainda o poder de afastá-lo de Betinho, que também era membro do Viva Rio.
Eu estava no meio da briga. Nilo era meu amigo e, além disso, eu também tinha com ele um
vínculo pastoral. Era tudo e era só. Não havia de minha parte qualquer tipo de engajamento
político partidário com o PDT, como também jamais houvera com qualquer outra agremiação
política. Rubem César, por seu turno, era meu amigo de outras jornadas. E ambos mantiveram
uma boa amizade entre si até que o Viva Rio começou a ser identificado com um movimento
intervencionista. Então Nilo e Rubem passaram a ser vistos como estando em lados separados. O
clima ficou tão difícil, que cheguei a pensar que minha posição de “neutralidade fraterna e cristã”
poderia ser interpretada por gente mais radical como sendo acomodação interesseira e
conveniente. Minha interpretação dos fatos e fenômenos sociais, no que dizia respeito à violência
no Rio, estava em total sintonia com a leitura que Nilo e Lavigne faziam da situação. Além do que,
minha ação pastoral nos presídios deixara-me muito bem-informado sobre os grandes esquemas
de “fabricação política de violências artificiais”. Gregório me dissera muitas vezes como no
passado ele fora convidado por representantes dos interesses de alguns candidatos a “infernizar a
cidade”, a fim de que o poder em exercício fosse prejudicado no ano das eleições.
— Olha, reverendo, tem uma violência aí que é real. Mas tá havendo muito duelo de São
Pedro também. Muito tiro pro céu — contara-me ele.
No auge da tensão, Rubem estava muito angustiado. Às vezes me telefonava depois de
meia-noite e eu podia ouvir o som pesado de sua respiração. Falava-se cada vez mais em
intervenção federal ou em operação militar. Rubem queria uma ação conjunta coordenada pelas
forças estaduais, mas envolvendo todos os recursos do nível federal. Para Nilo, entretanto, a
posição que Rubem assumira se confundia com os interesses daqueles que desejavam ver seu
governo naufragando nas vésperas das eleições, favorecendo outras candidaturas.
Aí pelo final de setembro, nas vésperas da decisão de se haveria ou não o tal golpe, Rubem me
pediu para marcar um encontro dele com Nilo.
— Não vejo necessidade. Nós estamos em times diferentes. Mas em consideração ao seu
pedido e ouvindo-o como meu pastor, vou atendê-lo — disse o governador.
Eles se encontraram e conversaram. O resultado imediato da conversa foi bom e acabou num
clima fraterno. No dia seguinte, entretanto, o rolo compressor dos acontecimentos, envolvendo a
própria interpretação da mídia sobre o tal encontro, não permitiu que aquele clima de
amistosidade pudesse tê-los reaproximado de vez.
As forças armadas foram para as ruas, e o melhor que Nilo conseguiu negociar foi que o
governo do estado estivesse incumbido da gestão das operações, pelo menos no nível da
hierarquia confessada pelos responsáveis pelo golpe.
Para quem quer que tenha lido os jornais e acompanhado os meus passos naqueles dias,
apesar de toda confusão, uma coisa estava clara: eu era completamente contrário à Operação Rio,
pois achava que aquilo era apenas um show de malabarismo militar fadado ao ridículo. A minha
façanha, contudo, foi ter ficado numa posição que coincidia com a interpretação de Nilo, mas que
entendia também a situação na qual Rubem César se pusera em relação às percepções mais
magoadas daqueles que se sentiam atingidos pelo clima de humilhação para as instituições do
estado. Ao mesmo tempo, pude separar as ações mais radicais de membros do Viva Rio mais à
direita das verdadeiras motivações da maioria dos que ali estavam, que, se eventualmente se
mostravam equivocados, não estavam, entretanto, mal-intencionados.
Dias difíceis foram aqueles. Pedia a Deus todos os dias que me fizesse um pacificador de
irmãos ao perceber o profundo desencontro de pessoas a quem eu amava fraternalmente, mas
que estavam ficando cada vez mais distantes umas das outras. Não adiantava chorar mais sobre os
fatos e suas conseqüências. Na minha maneira de viver, sempre que o inexorável e o irreversível
se estabelecem com a força dos carmas, tento usar sua própria força contra eles mesmos. É um
princípio de jiu-jítsu que aplico freqüentemente à vida.
— Nilo, você já imaginou se em vez de simplesmente promover o enfrentamento do tráfico
com a polícia fosse possível estimular a própria favela a convencer o tráfico a se desarmar? Porque
do jeito que eles estão, armados até os dentes, quem paga o preço é a comunidade. A polícia
invade atirando, e inocentes morrem numa guerra que não é deles. E agora com o Exército a coisa
pode ficar feia — falei ao governador depois de um dos nossos cultos de segunda-feira no palácio.
Nilo tragou profundamente a fumaça do cigarro e me disse que estava cansado de enxugar gelo.
— Quanto vale cada gota de sangue derramado? Como é que devemos calcular? Em relação
aos salários dos policiais ou em relação ao preço do grama da cocaína? — disse Nilo, começando a
mostrar lágrimas nos olhos. — Eu recebo todos os dias o relatório das mortes. Não tem fim. E as
peças de reposição são infindáveis. Morre um, vem outro. São cada vez mais jovens e não pára de
se apresentar gente pra morrer. Quanto vale cada vida? — falou, já com grossas lágrimas rolando
pela face.
Eu não disse mais nada. Não tinha o que dizer. Então, saí dali e fui ao Nordeste para uma
rápida conferência. Na noite daquele mesmo dia, no hotel em Recife, não pude dormir. Minha
mente viajava a mil por hora. Eram imagens de gente morrendo e de crianças chorando. A
intervenção militar já tinha data marcada para começar.
“Senhor, eu não sei o que está acontecendo comigo. Mas minha mente está cheia dessas
imagens de morte. O que é que podemos fazer para impedir que haja uma grande chacina nas
favelas do Rio? Fala comigo, Senhor”, orei sozinho no quarto do hotel.
Na manhã seguinte, voltei bem cedo para o Rio e fui direto ao palácio falar com o governador.
— Nilo, tive uma idéia. Vou lançar uma campanha pelo desarmamento do Rio. Muita gente
não vai acreditar, mas, ainda assim, pode criar um clima mais consciente na cidade. O que você
acha? — perguntei.
— Pensando com categorias humanas, eu diria que é loucura. Esse pessoal não quer paz. É
guerra o que as elites querem. Além disso, não há meios de se operacionalizar uma campanha de
desarmamento. Pensando assim, é um devaneio e uma insanidade. Mas estou falando como um
homem de justiça e como governador. Se você me pergunta como homem de fé, eu digo: “Vá em
frente e que Deus o abençoe.” Conte comigo pro que precisar — disse-me ele já me conduzindo
para a porta a fim de voltar para uma reunião que eu havia interrompido.

— Caio, corre aqui. Tem algo acontecendo — disse Verinha no celular no dia seguinte.
Como eu estava mesmo a caminho do palácio, não demorei mais de dez minutos para chegar.
— O helicóptero está esperando. Vamos lá. Te conto no caminho — disse-me Nilo assim
que cheguei. Enquanto voávamos para a favela de Parada de Lucas, fiquei sabendo que dona
Santusa, presidente da Associação de Moradores da localidade, havia telefonado dizendo que os
“meninos” estavam querendo entregar umas armas.
Quando chegamos, a multidão já estava presente. A mídia também já se aglomerava,
esperando a comitiva descer do helicóptero.
— Governador, o que o senhor acha que está acontecendo? É estratégia de provocação? —
perguntavam uns.
— O senhor acredita nisso? Não acha que é brincadeira? — questionou outro.
— Por que o senhor veio pessoalmente? Não é se expor demais? — indagavam outros ainda.
Nilo foi cauteloso. Disse que saudava com bom coração a iniciativa, mencionou a conversa
comigo e falou que era preciso dar uma chance à paz. A mídia ridicularizou o gesto como um
todo. “As armas eram poucas e velhas.” “O governador não deveria ter ido.” “Os bandidos estão
ficando mais ousados.” Essas foram as interpretações divulgadas nos meios de comunicação.
— Nilo, agora é que estou mais animado. Vou tocar pra frente a idéia de desarmamento —
disse a ele.
— Você viu o que acontece? Esses caras só querem é sacanear a gente. Até da paz eles fazem
gozação. Mas se você quer ir, vá. Estou contigo — ele me disse outra vez.

Quando eu estava no processo de instalação da Fábrica de Esperança em Acari, havia


conhecido um “gerente do movimento” na localidade.
— O Gerê quer falar com o senhor — dissera-me um funcionário da Fábrica. Marcamos o
encontro e eu fui.
— Qual é a sua, seu reverendo? — perguntara-me Gerê, naquela ocasião. Expliquei quais
eram os nossos objetivos no lugar e disse que éramos pessoas de paz, mas que, entretanto, não
fazíamos acordos com coisas ilícitas.
— A Fábrica de Esperança vai ser tudo isso que o senhor tá falando? Quantas pessoas cês vão
atender aí? — indagou com os olhos bem postos em mim.
— Cem mil por mês daqui a três anos. A maioria será de jovens e adolescentes — falei como
quem fazia uma declaração religiosa.
— Então o senhor é meu pior inimigo, sabia?
— Sim, sabia.
— Mas num faz mal, não. Se eu perder essa guerra pro senhor, fico feliz. Eu perco, mas
graças a Deus que meus filhos vão tá ganhando — concluíra Gerê para minha total perplexidade.

Pois bem, naquele dia, depois da entrega de armas em Parada de Lucas, fui para Acari e pedi
para alguém localizar Gerê e dizer que eu precisava falar com ele.
— O que o senhor quer, reverendo? — foi logo perguntando, superdesconfiado. Expliquei
que havia fortes indícios de que o Exército iria ocupar as favelas do Rio e que, a menos que a
atitude dos traficantes mudasse, haveria um banho de sangue, numa guerra na qual poucos
bandidos morreriam, mas que poderia atingir centenas de inocentes.
— Mas e daí? O que o senhor quer que a gente faça? A gente tá aqui pro que der e vier. Num
temos nada a perder — disse Gerê.
— Eu acho que vocês poderiam ser só um pouquinho menos egoístas e ajudar esse povo
daqui a não sofrer por algo que eles não fizeram. Vocês poderiam entregar as armas para as
autoridades e poderiam tirar todo o armamento de vocês de circulação. Do jeito que está, vocês
provocam a polícia o tempo todo — falei como um bobo para ver qual seria o resultado. Afinal, eu
havia aprendido com Jesus que a melhor maneira de enfrentar o lobo é indo como ovelha. “Eis
que vos envio como ovelhas para o meio de lobos”, disse Jesus.
— Qui é isso, reverendo? A gente se desarmar? O senhor tá brincando — replicou o gerente.
— Não estou falando em entregar todas as armas. Estou apenas falando em dar um sinal de
boa vontade. A atitude de vocês tem que mudar, senão inocentes vão pagar a conta — falei.
Ele saiu na carreira. Dois dias depois, no dia 9 de novembro de 1994, recebi o recado de que
nos fundos da favela de Acari, na praça Roberto Carlos, iria haver uma entrega de armas. Quando
cheguei lá, a mídia já estava presente. Foram 29 armas. Entre elas uma AR 15.

— Caio, a gente precisa conversar urgente — disse Rubem César. No dia seguinte,
sexta-feira à noite, nos encontramos na casa do primo de Rubem, Ernan Caldeira, que também
trabalha como meu assessor jurídico.
— Essa ação do Exército não vai dar certo. Tínhamos sugerido ao ministro da Justiça uma
ação de inteligência das forças armadas e das polícias no sentido de controlar fronteiras. Mas eles
estão partindo para uma ação de invasão de favelas. Pode ser trágico. Mas agora não tem mais
volta. Esse negócio de desarmamento pode ser a única coisa a impedir enfrentamentos
sangrentos — disse Rubem.
— Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. O problema é que ninguém acredita nisso. A
mídia nos trata como imbecis quando a questão é levantada. Não creio que possamos desarmar o
Rio, mas podemos ajudar a impedir um banho de sangue — respondi.
— Só gente de Deus pode ter coragem para fazer isso. Ninguém mais. Como é que você
manda um traficante entregar armas? Com que autoridade? Só se for coisa da fé — falou o meu
amigo e coordenador do Viva Rio, arrancando do fundo da alma suas reminiscências de neto de
pastor e filho de presbítero.
— A minha idéia é uma invasão de paz. A gente tem que fazer uma operação por terra, mar e
ar. Cercar o Rio com a idéia do desarmamento. Enquanto isso, vamos subir as favelas e pedir que
as comunidades pressionem os que usam armas a fazerem, pelo menos, “gestos de
desarmamento”. Pode ser pouco, mas pode ajudar — concluí.
Na segunda-feira, reuni os principais líderes da Associação Evangélica no Rio no meu
escritório e expus o plano. A adesão foi total. Dividimos o grupo em diversas comissões e criamos
um contingente especial de inteligência formado por oficiais evangélicos da Aeronáutica, Corpo
de Bombeiros e Polícia Militar, além de pastores que trabalhavam em zonas de extrema violência.
Dez ao todo. Solicitamos autorização ao Ministério do Exército para receber armas, entregá-las à
polícia e depois reavê-las, a fim de usá-las na construção de um monumento à paz. Conseguimos
permissão escrita. Uma tenda de oração foi armada no centro do Rio, onde pessoas se revezavam
dia e noite fazendo preces pela cidade. Mandamos imprimir cerca de cinqüenta mil adesivos de
carro com a frase Rio, Desarme-se.
Gravamos uma fita de TV com Gregório, o Gordo, chamando o Rio à paz, fizemos com que
circulasse ao máximo nos meios de comunicação e convocamos uma coletiva com a imprensa
para a Fábrica de Esperança. Naquele dia, às nove da manhã, Nilo inaugurou o primeiro projeto
social instalado nas dependências da Fábrica: o Centro Comunitário de Defesa da Cidadania,
idéia dele, que presta serviços de documentação e assistência jurídica básica à população. Às onze
horas a mídia estava toda lá. Rubem apresentou a campanha e depois eu expliquei como cada
coisa iria acontecer e apresentei os responsáveis por cada área.
— Nosso objetivo é tríplice: criar um espírito de desarmamento na cidade, estimular os
moradores de favela a usarem seu capital moral para pedir aos que entre eles promovem a
violência armada para que façam gestos de desarmamento e, por último, construir, com a
eventual coleta de armas, um monumento à paz, no Rio — esclareci.
Choveram perguntas de todos os tipos e respondi ao maior número possível. Ali, entretanto,
já era possível perceber que a maioria das pessoas não acreditava no que estávamos propondo.
Quase todas as questões apontavam para uma indisposição em aceitar a operacionalidade daquele
tipo de ação.
— Mas os senhores pensam em desarmar a cidade? — era o que mais se ouvia.
— Não. Somos idealistas, mas não chegamos a ser estúpidos. Desarmar o Rio é tarefa para
Deus, e eu não sou Ele e nem secretário Dele. Apenas achamos que é possível fazer gestos de
desarmamento que afetem a atitude mental das pessoas na sociedade — repeti inúmeras vezes.
Organizamo-nos em grupos de invasão de paz e partimos para o ataque. Em cerca de 45 dias
visitamos mais de trinta favelas. A primeira subida foi ao morro Dona Marta e quase não
aconteceu, pois na hora de subir chegaram três pessoas dizendo que alguns irmãos tinham tido
visões de que eu morreria naquela favela.
— Reverendo, ligaram de São Paulo dizendo que alguém teve uma visão do senhor coberto
de sangue. O senhor acha que deve subir aí hoje? — perguntou-me minha secretária às 17 horas
pelo celular.
— Se hoje for dia, será — respondi. Mas os que estavam comigo não estavam tão certos de
que deveríamos subir.
— Olha, eu acredito em profecias, mas não dirijo minha vida por elas. Se eu aceitar a tirania
das profecias, estou perdido, não faço mais nada na vida. Profecia é pra se cumprir, não para
impedir o caminho da gente. Mas essa profecia vai ser mudada. Vamos orar e vamos subir. Nós
servimos a Deus, não aos profetas — falei.
— A gente vai contigo até o fim — disse o pastor Ezequiel Teixeira.
Subimos e foi uma bênção. Descemos exaustos e felizes por volta da meia-noite. O medo
desapareceu e as invasões passaram a ser uma grande festa. Eram grupos que iam de 12 até mil
pessoas, como foi o caso da Rocinha. Sempre fomos recebidos com extremo carinho. Íamos de
casa em casa, cantávamos nas ruelas e becos, orávamos com os doentes, ensinávamos canções às
crianças, dávamos as mãos aos bêbados em bares e nos confraternizávamos com eles, parávamos
em lugares marcados por crimes, mortes, chacinas e sombras e pedíamos a Deus que libertasse
as pessoas de suas lembranças dolorosas e de seus fantasmas.
Houve de tudo naquelas invasões. No morro Dona Marta, encontrei uma moça encostada a
um poste, às dez horas da noite, chorando, com o rosto inchado, quase a ponto de explodir, tanto
era o pus que havia sob a pele dela.
— Meu Deus! Que é isso menina? — perguntei. Ela só gemia. Quis levá-la ao médico.
— Tô vindo de lá. Ele não sabe o que fazer — ela me respondeu entre gemidos.
— Então, deixa eu botar a mão na tua cabeça e pedir a Jesus pra curar você. Posso? —
perguntei, movido de compaixão por ela. Ela apenas confirmou com os olhos.
— Senhor Jesus. Sei que Tu estás aqui no Dona Marta. Vê a dor desta moça e tira dela esse
mau. Cura esta garota, Jesus — orei rapidamente, mas com fé e intensidade. Havia umas
quarenta pessoas olhando o que estava acontecendo. Prosseguimos no nosso caminho. No dia
seguinte, André Fernandes, nosso companheiro de aventura, me contou que a moça estava
totalmente curada. O pus desaparecera de sua face. Demos glória ao nome de Deus e nos
animamos em relação à nossa missão.
O chocante era constatar como, à medida que a mídia divulgava nossas incursões, duas coisas
aconteciam mais e mais freqüentemente.
A primeira era que nossa popularidade e respeito nas favelas alcançava níveis inimagináveis.
— Pára de beber. O pastor tá passando — eu ouvia.
— Fecha a boca. Tem gente de Deus no pedaço — falavam outros.
— Reverendo, o senhor é sangue bom — gritavam “os meninos”.
— Tira tudo que é bebida com álcool daqui. O reverendo vai entrar pra tomar um guaraná —
disse um certo rapaz que só depois fiquei sabendo que era o segundo na hierarquia do tráfico de
uma importante favela.
A segunda percepção era a de que nossas intenções não estavam sendo bem entendidas.
Onde íamos, o Exército chegava junto.
— Que negócio é esse, gente? — comecei a perguntar.
— É que nossa agenda está sendo divulgada pelos jornais, rádios e pela TV Globo, no Bom
dia Rio, todas as manhãs — disse-me André Fernandes.
— Então, de hoje em diante, a gente não divulga mais. Vamos ver o que acontece — falei.
Melhorou. Não encontramos mais o Exército com a freqüência anterior. — Pode ser apenas
coincidência, mas vamos deixar assim. Caso contrário, vai ter gente pensando que nós
trabalhamos para as forças armadas.
— Nós estamos sendo vigiados — diziam-me os membros do nosso “serviço de
inteligência”. Continuamos as invasões assim mesmo. Como não estava acostumado a tanto
sacrifício físico, as subidas levavam até seis horas. Muitas vezes subimos às cinco da tarde e
descemos por volta da meia-noite. Em muitas daquelas subidas, levei comigo minha filha,
Juliana, naquele tempo com apenas dez anos.
— Papai, eu nasci num lugar assim? — ela me perguntou mais de uma vez.
— Foi, amor. Você nasceu num lugar como este — eu respondia.
Depois de já ter ido comigo a mais de cinco favelas, numa noite, por volta de uma da
madrugada, ela veio até o meu quarto com o cabelo molhado de um bom banho que acabara de
tomar.
— Move over, Dad. Let me be here with you just a bit — ela me disse. Cheguei para o lado, e
ela deitou. Fitou-me profundamente os olhos e depois disse ainda em inglês: — Papai, obrigada
por me deixar ir às favelas com você, porque agora eu sei como a minha vida seria se Deus não
tivesse me amado tanto que mandou você e mamãe pra me darem a vida maravilhosa que eu
tenho.
Eu não consegui nem responder. Ela foi embora para o quarto dela. Eu fiquei na cama e
chorei até às três da manhã. Era a maior recompensa paterna que eu poderia almejar da parte
dela.
Capítulo 48

“Sou uma criança, mas meu Pai vive eternamente, e é o tutor que me convém; Ele
é ao mesmo tempo o que me gerou e o que me protege.”

Santo Agostinho, Confissões

No início de dezembro de 1994, eu estava no morro Dona Marta, numa tarde ensolarada,
trocando armas de brinquedo por brinquedos de paz. O lugar já me era muito familiar desde a
primeira vez que havia subido a favela, seis meses antes, para orar com um grupo de setenta
pastores que atenderam ao meu convite para abençoar o Rio desde o cume daquela montanha.
Depois daquele dia, eu voltei várias vezes ao Dona Marta. Naquela tarde, entretanto, era
diferente. Estávamos no meio da campanha Rio, Desarme-se, e onde íamos havia repórteres de
jornais, rádios e televisões. A garotada ficava agitada, os adultos, perplexos, e os traficantes, de
plantão.
— Ei, moçada. Nós estamos aqui para trocar armas de brinquedo por brinquedos de Natal.
Quem quiser é só chegar junto — eu gritava no alto-falante que levávamos e o lugar ficava
inflamado de crianças.
De repente, André Fernandes, o jovem guerreiro do evangelho que havia largado o conforto
de sua casa de classe média para ir viver naquela favela a fim de melhor pregar o evangelho, me
disse:
— Há três traficantes nos olhando, sentados ali embaixo naquela casa, e eles mandaram
dizer que querem conversar com o senhor.
— Então vamos lá — eu falei.
Aproximamo-nos do lugar e vimos dois rapazes sentados no chão e um outro numa mesa,
com as pernas balançando irrequietamente. Os três pareciam ter a mesma idade. Eu daria, no
máximo, uns 22 anos. O rapaz sobre a mesa perguntou se eu queria beber um pouco do
refrigerante dele. Aceitei e dei uma golada.
— Escuta aqui, qual é a tua de ficar trocando armas de brinquedo por brinquedos de paz? Cê
acha que vai acabar com a violência fazendo isso? — perguntou-me o rapaz agitado, assentado
sobre a mesa.
— Sou pastor, mas não sou idiota — respondi. Então mostrei que aquela “troca” era apenas
um mecanismo através do qual se pretendia mexer com a fantasia das crianças e com a sociedade
como um todo, levantando a questão de como nossos brinquedos são violentos.
— É, grande sacada. Sua campanha é mais profunda do que pensei — falou, dando um
risinho maroto, o rapaz sentado sobre a mesa. — Mas me disseram que a sua ousadia vai mais
longe. É verdade que cê quer desarmar a gente, os traficantes? — perguntou com um tom
provocativo. Respondi que não era tão ingênuo assim e que sabia que os traficantes jamais
entregariam todas as suas armas.
— Então, qual é a tua? U quê qui cê qué? — perguntou um rapazinho negro que estava
sentado no chão, intrigado com minha aparente firmeza e frieza.
— Os traficantes podem iniciar um processo de diálogo com a sociedade se começarem
entregando algumas armas — disse como quem não queria nada. Aí olhei direto para ele e
demonstrei que o fato dele ser traficante não me dizia nada. — A vida de vocês é burra. Tenho
visto vocês morrerem todos os dias. Quem não morre, vai pra Bangu I, o que é morte também.
Por que vocês não se perguntam a quem é que a vida de vocês está sendo útil? Vocês são
instrumentos úteis nas mãos de um pessoal que nunca é apanhado e que mantém essa porcaria
sempre funcionando — disse com raiva.
Foi quando ele me fez confissões seriíssimas de como o Exército era ineficaz no combate às
drogas e de como a polícia estava nas mãos deles.
— O Exército, a gente passa batido, não sabem de nada. E a polícia a gente compra. Eu ando
com cem mil real pra dar pros homem. Não adianta. Eles prende a gente e a gente dá grana pra
eles. Aí a gente sai da cana ainda na rua. É tudo podre. Os cara são pior que a gente. Também,
ganhando aquele salário miserável. Eu tenho até pena dos cara — falou o garoto da mesa, com um
ar misto, onde o bandido e o cidadão frustrado se encontravam numa síntese perversa. — Cê já
ouviu falar no Nem Maluco? — perguntou em seguida.
— Já, várias vezes. Ele tá sempre nos jornais. Dizem que é um rapaz bem jovem e até bonito.
Mas é uma pena, pois vai morrer a qualquer momento — falei como um mensageiro de Deus. A
essa altura da conversa, já desconfiava a identidade do traficante sentado na mesa, que
monopolizara quase inteiramente a conversa.
— Vira essa boca pra lá. Qui morrê nada — disse. — Muito prazer, Nem Maluco —
complementou, estendendo-me a mão.
Aí então eu fui fundo. Vendo que a máscara fora tirada, entrei com vontade. Disse que vinha
acompanhando os movimentos dele no Complexo do Alemão e que, pra mim, estava claro que, se
a polícia ou o Exército não o pegassem, os rivais o pegariam.
— É, podem até pegá, mas vão cumê muita bala — disse com uma gargalhada.
— Que idade você tem, filho? — indaguei.
— Dezenove. Parece? — ele devolveu bem-humorado.
Fiquei surpreso. Tinha a idade de meu filho mais velho. Dentes lindos. Sorriso aberto.
Desinibido. Desgraçadamente cheio de vida. Nossa conversa prosseguiu. Contei-lhes de minha
conversão e falei que Jesus dava a chance de uma vida nova. Eles ouviram atentos. A seguir, disse
a Nem Maluco que desejava fazer uma prece por eles. Fiz uma oração com meus olhos abertos na
direção deles. Apenas estendi minha mão e liguei a conversa com eles à fala de uma oração,
pedindo que Deus desse luz para que eles (especialmente Nem), não fossem apanhados pelas
“trevas totais”.
Saí dali deixando-os no mesmo lugar. Alguns repórteres chegaram nesse ínterim e ficaram
querendo saber com quem eu estivera conversando. A alma de evangelizar figuras públicas
(sejam homens de bem ou bandidos) é a total discrição. Por isto, disse apenas que eram uns
“meninos da favela”.
— Pastor, os outros dois são o Raimundinho e o Ronaldinho. Eles são os donos do tráfico
aqui no Dona Marta — informou-me André.
Alguns poucos dias depois desse episódio, um repórter telefonou-me bem cedo para dizer
que o Nem Maluco tinha sido brutalmente assassinado pelos homens do Uê naquela madrugada.
O corpo foi esfolado e arrastado pelas ruas do Complexo do Alemão. Nem Maluco foi decapitado.
Que desperdício!
Dias depois, Ronaldinho e Raimundinho se desentenderam. Eram irmãos. Mas Ronaldinho
mandou dar um tiro na cabeça de Raimundinho. Ronaldinho está preso em Bangu I: a última
parada antes da sepultura.
Nós continuamos nossas incursões nas favelas. Mangueira, Rocinha e Borel foram as mais
marcantes das mais de 45 que visitamos. No Borel, Rubem César Fernandes subiu conosco. O
Exército tinha acabado de realizar duas ações ali: tiraram a cruz que havia no alto do monte,
alegando que o Comando Vermelho era o dono do símbolo, e tomou uma Igreja Católica que fica
no alto da favela, já na outra comunidade fronteiriça ao Borel, chamada Chácara do Céu, e
transformou-a em sala de interrogatório de suspeitos. Encontraram sangue dentro do templo. As
“irmãs católicas” disseram que haviam torturado pessoas no lugar de culto. Foi um escândalo.
Nós fomos subindo o Borel entre canções e preces. Às cinco da tarde, quando iniciamos,
éramos no máximo trinta pessoas. À meia-noite, quando chegamos à igreja, que fica quase no
topo do monte, já éramos mais de trezentas. À nossa frente, como guia local, ia o tempo todo
Pedro do Borel, missionário de não mais que trinta anos de idade, com cara de garotão de praia e
que, à semelhança de André Fernandes, compõe o grupo cada vez mais apaixonado de jovens
cristãos de classe média que saem de suas casas, alugam barracos, e vão servir a Deus na favela.
Pedro estava todo remendado. Sua canela tinha sido severamente ferida por chutes e botinadas
que recebera de soldados do Exército, quando da recente invasão da favela.

— Qui é isso, moço? Num faz isso não, moço! Sou missionário. Trabalho aqui e tenho
carteira de trabalho — dizia Pedro, enquanto o pau cantava na canela dele.
— Que missionário que nada, seu safado! Tu tem cara de bandido. Tá é disfarçado. Vai
apanhar sim — respondiam os soldadinhos, enquanto descascavam o osso da canela de Pedro,
que apanhou até que o povo do local chegou para socorrê-lo.
— Ele é pastor sim. Ele é da Jocum. Num faz isso, não. O Pedro ajuda a gente — disseram
muitas vozes em seu favor, fazendo os militares pararem de bater no irmão.

As estações da subida eram tantas quantas a vida nos oferecesse: um doente numa casa, um
velho chorando numa cadeira de rodas, crianças se agarrando às nossas pernas, jovens na esquina
sorrindo para nós e nos chamando de sangue bom, uma “mãe de santo” local que estava doente e
queria receber uma oração do “pastor Caio”. Enfim, tudo era pretexto para nós pararmos.
Entretanto, o mais significativo de todos os momentos foi uma parada no lugar que tinha sido a
casa de invocação de espíritos de Isaías do Borel, preso em Bangu I.
— Aqui é o lugar mais temido do morro — disse-me uma pessoa do local.
— Por quê? — indaguei.
— É que o Isaías “chamava” os espírito aí. Pra nós, é um lugar mal-assombrado — explicou.
— O Isaías agora não invoca mais espíritos malignos. Eu o batizei na prisão e ele agora lê a
Bíblia e deseja mudar seus caminhos — falei, enquanto uma multidão do lugar se juntava ao
nosso grupo aumentando bastante a audiência. Os olhos da maioria estavam arregalados. Havia
temor no ar. Então constatei a profundidade do poder de Isaías sobre os moradores do Borel.
Além de ser considerado pelos habitantes o bandido mais temido e justo que entre eles já vivera,
Isaías também tinha sobre si a mística dos bruxos e dos feiticeiros. Ele carregava sobre sua
imagem duas grandes forças: a militar e a religiosa, e ambas eram, no seu caso, combinações de
poder incomparável: o traficante-militarizado e o bandido-sacerdotalizado. Naquele lugar, a força
da presença de Isaías, mesmo estando preso, era incomparável. Ele tinha muito mais força no
Borel do que qualquer outra autoridade do país. Tornara-se religião e estado para o inconsciente
coletivo. — Gente, vamos nos reunir aqui nas proximidades da laje do lugar de “invocação de
mortos” do Isaías, porque nós vamos desmanchar isso agora, em nome de Jesus Cristo — disse
eu diante de um público perplexo.
— O senhor tem certeza? — foi a pergunta assustada que ouvi de alguém atrás de mim.
— O Isaías não vai ficar com raiva. Se ele se tornou cristão pra valer, ele vai aceitar o que nós
vamos fazer. Além disso, a autoridade de Jesus é maior que a de Isaías. E eu sou ministro de
Cristo. Vamos desfazer a consagração desse lugar aos espíritos e vamos dedicá-lo ao Espírito de
Jesus — falei com autoridade.
Cantamos hinos de vitória, que afirmavam a soberania de Cristo sobre todos os principados e
potestades espirituais, e fizemos uma oração intrépida.
— Jesus, nós desfazemos todos os vínculos desse lugar com forças negativas de
espiritualidade e ligamos esse espaço a Ti. Tira daqui as forças da morte e do medo. Põe Tua luz
aqui, Senhor Jesus — eu orei em companhia dos que ali estavam.
Continuamos a viagem para o topo da montanha. No alto do Borel há uma fronteira. Quem
mora do lado de cá da linha nunca passa para o outro lado e vice-versa. Os traficantes do Borel
vivem em pé de guerra com os da Chácara do Céu. Por isso, todo mundo do Borel parou a alguns
poucos metros da linha imaginária.
— O que foi gente? — perguntei.
— Daqui a gente não passa — falaram.
— Por quê? — insisti como quem não sabia de nada.
— É que quem passou, morreu. A Chácara do Céu começa ali — disse-me uma garotinha de
uns 11 anos, agarrando-se às minhas pernas e apontando para um lugar no chão escuro a não
mais que três metros adiante de nós.
— Hoje pode. Nós estamos aqui em paz e essa caravana traz amor — gritei em voz bem alta,
quase discursando, na certeza de que por trás dos capins e muretas arruinadas havia um pequeno
exército nos vigiando. — Não tenham medo. Venham todos. Em nome de Jesus, eu assumo a
responsabilidade — gritei fazendo sinal de avançar com a mão e iniciando imediatamente a
caminhada para cruzar a “fronteira”.
— Ai, ai, ai — diziam as crianças esfregando as mãos com excitação e medo. Era como se
estivessem entrando em Marte ou num outro planeta.
Então, os habitantes do Borel que conosco estavam ficaram bem juntinhos, fazendo
exatamente o que não deveria ser feito. Fui entrando à frente com Pedro.
— O senhor tá vendo a moçada aí do lado, com as AR 15 e as máscaras na cara? —
perguntou-me Pedro, num sussurro.
— Tô sim. Vamos em frente — falei, vendo umas silhuetas humanas e as pontas das armas
de porte viradas para o alto.
Era meia-noite quando cruzamos a fronteira. Chegamos, enfim, ao lugar onde as freiras
católicas moravam. Cantamos hinos evangélicos e acordamos as irmãs. Elas saíram e nos
abraçaram. Oramos juntos e celebramos algo que tínhamos em comum muito mais forte que
nossas diferenças religiosas: nosso amor à paz e nosso desejo sagrado de pacificar o Rio.
À uma da manhã estávamos no cruzeiro, sob a nova cruz que o Exército havia posto no mesmo
lugar, em reparação ao erro anterior. Afinal, frei Olinto, sacerdote sério, lúcido e plantado
missionariamente há anos no chão do Borel, viera a público dizer que a igreja, e não o CV, é que
havia fincado o símbolo cristão naquelas alturas. Aquela noite será inesquecível para todos os que
se sentaram no chão, em volta da cruz, e se deixaram abandonar em canções e preces pela Cidade
Maravilhosa. Lá de cima, o Rio é ainda mais lindo.
— Eu não sou evangélica, mas se tivesse que ser, eu queria ser uma cristã como você. Assim
vale a pena ser de Cristo — disse-me, em inglês, a repórter do Miami Herald que estava andando
comigo há uma semana, preparando uma matéria para o jornal americano.
Capítulo 49

“Em todas essas coisas que percorro não encontro segurança para minha alma
senão em Ti: Tu és o lugar onde se reúnem meus sentimentos esparsos, sem que
nada se parta em mim.”

Santo Agostinho, Confissões

— R everendo, o Caco gostaria de conhecer o senhor. Quando é que a gente pode ir


encontrá-lo? — perguntou Cadu, da produção do Fantástico.
— Amanhã de manhã na Fábrica de Esperança — falei, sem nem entender direito do que se
tratava, pois o barulho do trânsito na avenida Rio Branco estava insuportável.
No dia seguinte, Caco Barcelos chegou com extrema pontualidade. Conversamos sobre a
Operação Rio que o Exército estava realizando e o ouvi dizer que desejava fazer exatamente o que
nenhum repórter que eu havia conhecido até então, naquele contexto, tivera peito para fazer.
— Eu quero ficar dentro da favela de Acari, escondido, com uma câmera. Quando eles
entrarem, eu não quero entrar com eles. Eu quero estar lá dentro. Quando a gente vai com eles,
acaba só vendo o que eles deixam. Eu quero vê-los em ação antes deles saberem que tem mídia lá
— disse-me aquele que para muitos, se não para a maioria, é o melhor e mais sensível repórter
social do Brasil.
Arranjamos uma casa de uma evangélica para ele ficar dentro da favela e fizemos contatos
com a Associação de Moradores para ninguém pensar que ele era X-9: olheiro da polícia. Caco,
Cadu e o cameraman, entretanto, preferiram ficar dormindo na laje do sexto andar do prédio
central da Fábrica de Esperança.
— Daqui a gente tem uma visão melhor. E ainda dá tempo de entrar antes deles na favela, se
eles vierem — disseram.
Como o Exército não invadia Acari e a Globo cobrava resultados rápidos para a matéria de
Caco, eles ficaram desanimados.
— Acho que a gente não vai conseguir nada. Os rumores é de que vão invadir Acari a
qualquer momento. Mas quando? O Caco tá cheio de outras pautas. Acho que não vai dar pra
esperar mais — disse Cadu.
— Quando é que o senhor vai subir outro morro, reverendo? — indagou Caco Barcelos.
— Hoje eu vou subir o Juramento, a favela que fica na região onde Escadinha foi criado —
falei sem maiores excitamentos. Afinal, naquele mês de dezembro, “subir favela” era meu middle
name, como diriam os americanos.
— A gente pode ir com o senhor? — perguntou Caco.
— Olha, a Globo anda meio queimada nas favelas. A maioria das matérias são muito “chapa
branca” e os moradores ficam magoados. Cê viu aquela menina da Globo na frente da Mangueira,
apontando para a favela e dizendo: “Agora o Exército está cercando os bandidos?” Meu Deus,
Caco, ela estava apontando pra favela e lá há milhares de cidadãos honestos, vivendo sob o terror
de apenas alguns bandidos. Ela não podia falar assim — comentei com tom de discurso.
— É, infelizmente isso às vezes acontece — disse Cadu.
— Mas dá pra gente ir com o senhor? — insistiu Caco com perseverança jornalística.
— Vamos sim, e seja o que Deus quiser — falei.
Naquele fim de tarde caiu um pé d’água de assustar. Não pudemos reunir quase ninguém
para ir conosco. Os que apareceram foram apenas os do time base que andava comigo naquele
dia: Marcos Batista, pastor Samuel Brum e Edinaldo, um evangelista da Assembléia de Deus local
que nos acompanhava. Os demais eram membros das duas equipes de televisão que vieram
conosco: o Fantástico e o Pare & Pense. Municiamo-nos de folhetos com mensagens de
desarmamento e fomos entrando. Não havia ninguém nas ruas. Todos estavam em casa ou
socados nos ínfimos bares que havia no caminho.
E a água não parava de cair em profusão. Batíamos nas portas dos barracos e entrávamos.
Falávamos de paz, perguntávamos se havia alguma necessidade espiritual na casa que nós
pudéssemos atender, fazíamos preces e depois íamos adiante.
— Paz seja nesta casa — gritei com os braços abertos para um grupo de mulheres que estava
no fundo de uma viela. Eu vestia branco de alto a baixo. Atrás de mim, estavam as luzes da
televisão e a chuva caía forte, dando ao ambiente um clima de filme Blade runner.
— Meu Deus, meu Deus, não meu Deus! — gritaram as mulheres, para em seguida pararem
congeladas, umas com as mãos na boca, outras ainda tentando sair na carreira para dentro de
casa.
— Calma gente, calma gente! — gritei percebendo que algo muito estranho estava
acontecendo.
— Ai, meu Deus, que susto. Assim o senhor mata a gente. Eu pensei que fosse o anjo da
morte que tinha vindo buscar a gente — falou com a respiração ofegante e a mão na frente na
testa uma senhora gordinha de uns quarenta anos.
Foi então que eu percebi que a cena fora de fato apavorante. Com o Exército nas ruas, as
quadrilhas do Juramento em guerra contra as de outras regiões, a chuva torrencial com seus
trovões e relâmpagos apavorantes e as conversas sobre possíveis conflitos armados, a atmosfera
psicológica dos habitantes era de total suspense. E lá estava eu: falando de paz, com os braços
abertos, na escuridão, no meio da chuva e com minha silhueta desenhada de maneira surrealista
pelas luzes dos refletores que estavam nas minhas costas. Eu era, naquela noite, a visagem
perfeita para aquelas apavoradas senhoras da favela.
— Perdão. Eu não quis assustar vocês. Será que dá pra gente conversar um pouco? —
perguntei. Não deu para conversar. As mulheres riam tanto e nós também, que não houve clima
para reflexões de natureza espiritual. Rimos, rimos e rimos. Depois partimos, na escuridão,
morro acima, pela lama.
A favela do Juramento é maior no imaginário dos cariocas do que no chão de sua geografia. Na
verdade, trata-se de um morro não tão alto, onde se abrigam alguns milhares de pessoas, mas que
está longe de ser grande. Grande é a sua fama. É o morro do Escadinha, do bandido herói que
protagonizou cenas criminosas que entraram para a história marginal do Brasil. A mãe de José
Carlos dos Reis Encina ainda hoje mora numa rua que dá acesso à favela, lá embaixo, no asfalto.
— A senhora está com medo da intervenção do Exército? — perguntava Caco às mulheres
que cruzavam nosso caminho. — O senhor crê que as coisas vão melhorar? — indagava de outros.
“O que vocês acham da visita do pastor aqui na comunidade? — perguntava ainda.
— Vira essa luz pra lá. A Globo num entra aqui — falou um moço que vestia uma jaqueta
preta de couro, parado na chuva, no alto de um platô que dava acesso a mais um lance de casas da
favela.
— Ele é da Globo, mas não vai prejudicar você! — falei.
— Eu falei pra não me filmar — disse o homem, começando a engrossar.
— Meu senhor, nós estamos aqui para orar, e eles estão filmando a gente. Eles não estão
fazendo nada que prejudique a vocês — falei, colocando a mão no ombro do homem. — Vem cá!
Deixa eu te dar um abraço — prossegui.
— Güenta aí que eu tenho que proteger o trabuco aqui debaixo da capa — falou o soldado do
tráfico comandado por Uê. Então, abraçou o rifle de um lado e me abraçou do outro.
— Fique tranqüilo que a gente não mostra o seu rosto. Eu vou cobrir você com aqueles
xadrezinhos, sabe? Não aparece nada — disse Caco Barcelos.
— Mas os homens podem ir lá e ver a cara da gente — falou o “soldado”, olhando para o
outro lado, mas já sem oferecer resistência.
— A gente está te dando a palavra de que ninguém vai pegar esse material. Certo? — falou
Cadu. O homem não respondeu nada e nós prosseguimos subindo.
Naquela noite eu caí na lama, me atolei em cocô de porco, me cortei em pedaços de alumínio,
rasguei as calças, molhei minha Bíblia. Nós todos nos encharcamos até a alma. Enfim, chegamos
à caixa-d’água, no topo do Juramento. A chuva havia diminuído. Apenas uma garoa nos mantinha
úmidos. As luzes do Rio piscavam aos milhares. A visão da Zona Norte da Cidade Maravilhosa era
fantástica.
— Senhor, abençoa esta cidade — começou a orar em voz alta o pastor Samuel Brum. Então,
todos nós estendemos os braços sobre aquela vista exuberante e clamamos a Deus, pedindo que
tivesse piedade de lugar tão lindo. Ficamos ali em cima fazendo orações pela cidade, suas
autoridades, seus habitantes e seus conflitos por uns quarenta minutos. Enquanto isso, Caco e
Danille Franco gravavam suas “cabeças” para as matérias que estavam preparando para seus
respectivos programas.
Obviamente descemos o morro bem mais rapidamente que subimos.
— Pastor, o senhor não sabe como me fez bem ter vindo aqui hoje — falou-me Caco
Barcelos quando nos despedimos lá embaixo, no asfalto.
Assim findava a sexta-feira. No domingo, o Fantástico mostrou uma linda matéria sobre
nossa invasão noturna ao Juramento. Mas na segunda-feira, duas coisas totalmente opostas
aconteceram em relação à matéria do Fantástico.
— O Zuenir, o Walter de Matos e eu vamos visitar o general Mei e o general Câmara Sena.
Eu queria que você fosse com a gente — disse Rubem César, bem cedinho, chamando-me em
casa.
Corri para o Comando Militar do Leste, na Central do Brasil, a tempo de encontrá-los. O
lugar estava apinhado de repórteres. Entrei pelos fundos, mas eles me viram e me chamaram pelo
celular. Queriam uma declaração.
— Agora não. Depois — falei e corri para o elevador.
Logo chegaram Rubem e Zuenir Ventura. Esperamos uns 15 minutos. Os generais estavam
numa outra reunião.
— Tá vendo ali embaixo? — perguntou-me Zuenir, apontando para o pátio imenso do fundo
daquele imponente prédio. — Em 1968, eu fiquei aqui, sendo interrogado. Foi uma coisa — falou
o repórter, jornalista e autor dos livros 1968: o ano que não terminou e Cidade partida.
— Veja você como a história é irônica. Você esteve aqui sendo interrogado e hoje está aqui
para aconselhar as forças armadas — brinquei.
— O general vai receber os senhores — disse o ordenança. Rubem entrou na frente, seguido
de Zuenir.
— Eu estou acompanhando o senhor — foi logo dizendo o general Mei e apontando para
mim, que vinha atrás dos dois amigos. — Ele sobe os morros de noite, sem segurança. Não tem
medo. Estou impressionado — prosseguiu Mei. — Ontem eu vi o senhor no Fantástico. Escute,
aquele homem que parou vocês e não queria ser filmado. Ele estava armado, não? É um deles, não
é? — indagou o general sem nem nos deixar sentar.
— Estava sim, mas não nos ofereceu maiores resistências — falei.
— Eu tenho uma proposta a lhe fazer. Será que o senhor não poderia usar a sua rede de
igrejas para mapear essas favelas pra nós? Vocês entram, olham tudo e depois contam pra gente
— disse o general de modo tão direto, franco, simples e ingênuo, que me assustou. Fiquei mudo
uns dez segundos. Quem me conhece bem sabe que, para mim, tal fração de tempo é uma
eternidade quando significa prazo para responder qualquer coisa.
— Não daria não, general. O pastor perderia completamente a isenção e o respeito se ele
fizesse isso. São ações diferentes. A do senhor tem um objetivo, a dele tem outro — disse Rubem
César, livrando-me pessoalmente do embaraço de ter de dizer ao general a mesma coisa.
— Não daria certo, com certeza — disse o general Sena, comandante da Operação Rio. Daí
em diante, entramos no assunto que ali nos levara.
— General, invadir as favelas não dá nenhum resultado. É só festa pra mídia. O que poderia
ajudar seria uma operação de reforço de policiamento nas ruas, mas, sobretudo, se as forças
armadas pudessem exercer um papel de articulação entre as diversas polícias do estado e do nível
federal. Tá tudo aberto. As drogas e as armas entram pelos imensos buracos que existem nas
divisas, e o aeroporto do Rio é um queijo suíço — disparou Rubem.
— Eu também não acredito nessa pirotecnia. Isso é apenas parte de uma estratégia. Mas sei
que não dá resultados em si — disse o general Sena.
— O problema, general, é que essas ações são tão enfatizadas pelos senhores, que dá a
impressão de que são as únicas coisas que os senhores têm pra fazer em relação ao combate ao
tráfico de drogas e armas — falei com igual intensidade.
— O agravante é que a mídia está gostando disso no início, mas logo vai começar a cobrar
resultados mais objetivos. E a operação, até aqui, não tem muito a mostrar — disse Zuenir do alto
de sua vastíssima experiência como repórter.
— Os senhores estão bem com a mídia. Poderiam pedir para que fossem mais pacientes com
a gente — pediu com um tom impositivo o general.
— Eles estão aí embaixo e esperam que na saída a gente diga alguma coisa. O que é que a
gente pode dizer, general? — perguntou Rubem César.
Daquele ponto em diante, a conversa ficou mais objetiva. Conversamos por mais de uma hora
e fizemos inúmeras sugestões no sentido de tirar a Operação Rio do nível do humilhante show
militar para algo mais prático e inteligente.
Depois, descemos ao pátio e conversamos com os repórteres, mas não havia muito a dizer.
— O general vai estudar a possibilidade de impedir a entrada de armas compradas em
Miami, que chegam aqui sem controle — disse Rubem. — Ah! Anotem. Ele prometeu que não vai
haver o dia D. Não vai haver dia de confronto, que era o que nós todos temíamos — concluiu.
Quanto ao mais, os repórteres queriam saber de mim como as favelas estavam reagindo e se
nós já tínhamos recebido armas dos bandidos. Desconversei, pois não podia dizer o que estava
acontecendo naquele particular. Então, voltei para o meu escritório em Niterói.
— Reverendo, tem um homem na linha que quer falar com o senhor e não quer se
identificar. Tá com a voz estranha. O senhor vai atender? — perguntou-me Cristina.
— Sim, estou às suas ordens — falei ao tal homem.
— Olha aqui, seu reverendo. Ninguém deu autorização pro senhor subir o Juramento. Num
aparece mais lá, senão a gente te mata. O senhor pensa que pode ir lá filmá pros homens e ficá
assim mermo? Num fica não. Se der mole, a gente mata. Num abusa de ser homem de Deus. A
gente tá avisando — falou o homem, com voz agressiva, mas nitidamente nervosa.
— Olha aqui. Nós não fomos lá pros homens. Eu não sei quem são os homens. Eu só
trabalho pra Jesus. Pra mais ninguém. Minha consciência tá tranqüila — falei.
— Bom, eu avisei — falou outra vez e bateu o telefone.
No fim da tarde do dia seguinte, encontrei com o pastor Marcos Batista na Vinde, que estava
perplexo.
— Pastor Caio, o senhor não pode imaginar o que aconteceu com aquele irmão da
Assembléia de Deus que estava com a gente no morro do Juramento — foi logo me dizendo.
— Não me diga que aconteceu algo ruim com ele? — indaguei, já me sentindo culpado.
— Os caras do Uê o pegaram e levaram para a beira de um riacho que tem por lá. Puseram o
irmão de cara pro chão, a cabeça quase dentro d’água, o pé no pescoço dele e uma AR 15 na
cabeça. Então, começaram a mandar que ele confessasse que estava ali com o senhor trabalhando
pro Exército. “A gente vai te matar’’, eles gritavam. O moço pediu pelo amor de Deus pra eles não
fazerem aquilo. Disse que nós estávamos ali pra orar e que era só. Mas eles não se convenciam.
Iam apagar o rapaz. Então chegou um outro correndo e falou: “Parem com isso. Ele é de Deus
sim. Os cara são de Deus sim” — contou Marcos, enquanto eu ouvia com extrema ansiedade.
— E o que mais, Marcos? — perguntei.
— O cara disse que quando a gente subiu, ele tinha ordens pra executar a gente se fosse
preciso — disse Marcos.
— Mas ordens de quem? — perguntei.
— Ordens superiores, foi o que ele disse. Mas parece que eles não querem falar o nome da
pessoa — respondeu. — Bom, o cara que veio correndo disse que eles foram nos acompanhando
pelos becos paralelos até lá em cima. Quando nós chegamos na caixa-d’água, ele estava escondido
dentro do tanque, com a arma na mão para matar todo mundo. A ordem era para acabar conosco.
Eles achavam que lá em cima, sem ninguém por perto, nós íamos abrir e falar o que estávamos
fazendo lá. No entanto, nada disso tinha acontecido. Nós tínhamos ficado só rezando por eles e
tinha gente até chorando. Enfim, o cara disse que nós não éramos X-9, mas homens de Deus, e
mandou eles soltarem o irmão. — Marcos contou o que ouvira do jovem e assustado evangelista
da Assembléia de Deus.
— Faz sentido. Ontem eu recebi uma ligação de alguém que se dizia de lá me ameaçando de
morte — disse eu.
— Veja só onde a gente tá metido, pastor. Acho que o senhor precisava ir mais devagar —
aconselhou-me Marcos Batista.
Eu, no entanto, estava anestesiado. Naqueles meses, tudo o que eu não conseguia sentir era
medo.
Capítulo 50
“De onde veio este sonho, senão porque tinha os ouvidos atentos a Teu coração, ó
Deus bom e onipotente, que cuidas de cada um de nós como se não tiveras mais
nada que cuidar, cuidando de todos como de cada um!”

Santo Agostinho, Confissões

D ezembro de 1994 deve ter sido o mês mais intenso de minha vida até hoje. Subia morros
três vezes por semana, pregava todas as noites, passava o dia dando entrevistas para repórteres do
Brasil e de outros países, participava de dezenas de reuniões, visitava Bangu I e o presídio Milton
Dias Moreira todas as semanas, articulava campanhas com o pessoal do Viva Rio, buscava
dinheiro para um monte de projetos novos, e corria com os preparativos para a inauguração da
Fábrica de Esperança. Naquele mês, aconteceu de tudo.
— Amor, tive uma visão espiritual estranha. Eu estava orando em casa quando tive uma visão
da Fábrica. Era como se eu estivesse num ponto no espaço, sobre ela. De lá, eu via uma luz
dourada, um luz líquida, circundando e penetrando na Fábrica. Mas dentro dela, havia umas
manchas negras nas quais a luz não conseguia penetrar. Não sei o que é, mas acho que Deus está
falando que tem coisa ruim enterrada lá — disse-me Alda numa daquelas manhãs.
Alda convidou umas amigas e foi até a Fábrica de Esperança. Para quem visse de longe,
poderia parecer que aquelas três mulheres estavam ali usando algum tipo de aparelho detector.
Andavam de um lado para o outro, “sentindo” as “impressões do lugar”.
Depois de passarem um dia inteiro em oração, elas se sentiram satisfeitas.
— Deus vai mostrar o que está acontecendo aqui. Mas é bom você mandar vasculhar este
lugar. Tem algo ruim aqui — Alda me falou no fim daquele dia.
Em muitas ocasiões ela tinha tido aquele tipo de premonição espiritual, e todas as vezes que
eu não lhe dera ouvidos, de algum modo eu havia sofrido as conseqüências. Assim, depois de
muito penar, aprendi a levar a sério as intuições espirituais de Alda.
— Lidinha, mande passar um pente fino aqui na Fábrica. Alda acha que podem ter posto
alguma coisa ruim aqui. Pode ser desde macumba até drogas. Veja isso — pedi à administradora.
O problema é que são 55 mil metros quadrados de área, e 45 mil metros quadrados de espaço
construído. Conseguir varrer aquela propriedade toda, com seus múltiplos esconderijos, seria
uma tarefa quase impossível da noite para o dia.
— Pastor, o senhor não vai acreditar. Achamos armas enterradas numa área baldia nos
fundos da Fábrica, bem perto da fronteira com a favela — disse-me Lídia, com voz notadamente
nervosa, no fim da tarde do dia seguinte. — O que a gente faz? — perguntou.
Eu chamei Ernan Mafra, assessor jurídico da Fábrica, e contei a história.
— O que a gente faz, Ernan? — perguntei.
— Olha, se você chamar a polícia, eles vão ficar contentes, mas você nunca mais vai ter
sossego ali. Os traficantes vão infernizar a sua vida. Se você fingir que não sabe, é um perigo pois
alguém pode vazar essa história e você vai ficar de cúmplice de uma coisa que você odeia — falou
o advogado.
— Não, nem pensar. Essa segunda opção eu não consideraria nem morto. É contra tudo o
que eu creio — falei com contundência.
— Eu sei. Estou apenas colocando as alternativas. O que eu acho que devemos fazer é dar
algumas horas de prazo para o dono desse material tirar isso de lá e mandar dizer pra ele que se
isso acontecer outra vez você não vai mais mandar tirar. Você vai chamar a polícia. Mas fazendo
assim, você dá a eles a chance de nunca mais colocarem esse tipo de coisa aqui — completou
Ernan.
— Tô de acordo. Pode mandar fazer exatamente assim.
Naquela mesma noite as armas foram retiradas. A “visão” de Alda estava certa.
— Por que você não entregou direto pra polícia? — perguntou-me Rubem César, único
amigo para quem contei o episódio, enquanto comíamos um sanduíche no Bob’s da avenida
Brasil alguns dias depois. A pergunta de Rubem apontava numa direção legalmente correta, mas
absolutamente suicida para nós, que estávamos lá, na frente de batalha.
— Olha, não existe hoje situação mais complicada que aquela. A gente tem que andar no fio
da navalha. Tem que deixar claro que não aceita intimidação de bandido, mas que não se torna,
de outro lado, sócio da polícia. Só Deus pode nos dar sabedoria ali pra fazermos a nossa própria
guerra, sem nos envolvermos na guerra deles — falei, repetindo para ele o que eu dizia quase
diariamente àqueles que me faziam perguntas sobre nossa existência em fronteira tão complexa.
A descoberta das armas aconteceu numa sexta-feira, só Deus sabia do que Ele estava nos
livrando.
— Pastor Caio, o Exército invadiu a Fábrica de Esperança — disse-me Lídia Mello, às seis
da manhã, no domingo imediatamente posterior à sexta-feira da nossa varredura.
— Ernan, invadiram a Fábrica — falei ao meu advogado, que nem me deixou terminar a
frase.
— Estou pronto. Me apanha aqui — respondeu ele, quase se enfiando pela linha do telefone
até a minha casa. — Deus é muito bom, pastor. Já imaginou se aquelas porcarias ainda estivessem
lá? Se eles descobrissem, poderiam até pensar que nós tínhamos alguma coisa a ver com aquilo.
Deus é muito bom — disse Ernan.
Quando chegamos ao portão lateral da Fábrica, vimos uma multidão. As duas bandas do
portão estavam abertas e havia militar armado para todos os lados. Parecia um Vietnã.
Helicópteros voavam sobre nós, caminhões enormes, jipes e motocicletas entravam e saíam;
enfim, havia uma tremenda agitação no local.
— Quem é o comandante da operação? — perguntei a um soldado que usava uma máscara
preta.
— É o coronel. Ele está lá na laje do prédio.
Como a casa era nossa e não deles, fomos subindo. Os seis andares tinham sido
transformados em central de interrogatório. Eram mesas, cadernos e outros materiais postos nos
mais diferentes lugares.
— Bom dia, reverendo! Que bom vê-lo nesta manhã. Muito obrigado por nos deixar fazer
nossa base de operações aqui na Fábrica. É o lugar ideal — foi logo dizendo o simpático coronel.
— Coronel, é uma grande alegria encontrar o senhor também. Só tem uma coisa: eu nunca
autorizei ninguém a usar a Fábrica de Esperança para nada. O que está havendo aqui não é uma
utilização, mas sim uma invasão de propriedade particular. O senhor tem alguma autorização
escrita? — perguntei com educação, porém com firmeza.
— Não é possível. Ninguém falou com senhor? — indagou visivelmente constrangido.
— Não, senhor — respondi, e ele imediatamente se dirigiu para o rádio.
— Alô, quem foi que deu a autorização para a utilização da Fábrica? — perguntou a alguém
do outro lado da linha. — O quê? Não, não é não. O reverendo está aqui e não sabe de nada —
falou o comandante.
— Pergunte a ele quem deu a autorização, coronel — insisti.
— Quem? Hã! — resmungou. — Foi um tal de Reginaldo. O senhor conhece? — perguntou,
dirigindo-se novamente a mim.
— É esse moço aqui. E ele diz que o único pedido que lhe fizeram foi para subirem aqui, a
fim de tirarem umas fotos, com o que ele concordou na sexta-feira passada. Só isso. Quanto ao
mais, ele não deu a autorização porque ele não tem autoridade para isso — falei.
Então, o coronel desligou o rádio com raiva, e sua fisionomia mostrara a raiva que estava
sentindo de quem armara aquela confusão.
— Esses caras pensam que estão brincando. Eu não trabalho assim. Agora, estamos aqui,
humilhando o senhor, e forçando o senhor a nos humilhar. O que o senhor quer que eu faça? —
indagou o oficial.
— Bom, o senhor só tem duas opções: ou o senhor fica aqui, assume conosco o projeto da
Fábrica de Esperança e implanta todos os programas sociais que nós vamos realizar aqui, pro
resto da vida; ou então o senhor sai em dez minutos. O que eu não posso é deixar o senhor ficar
aqui e continuar a contar com a simpatia do povo. Se o senhor ficar, a Fábrica de Esperança vai
virar o Quartel da Esperança, e perderá a sua vocação. O senhor é que sabe, coronel — disse com
um sorriso no rosto, mas falando seriíssimo.
— O senhor tem razão. Eu também trabalho com atividade social e sei que a autoridade de
quem faz essas coisas vem da isenção da pessoa. A gente vai sair — respondeu-me de modo
humilhado e digno aquele oficial tão diferente.
Àquela altura, olhando lá de cima, vi que o povo estava aglomerado em frente à Fábrica para
ver o que aconteceria. Desci e fiquei em pé ao lado do portão. Dez minutos depois, os caminhões
começaram a sair. O povo aplaudia com a pontinha dos dedos. Por último, veio o coronel. Parou o
jipe ao meu lado, olhou-me sem ressentimento e bateu continência para mim. Respondi
pondo-me em posição de sentido, como o militar que nunca fui. Então o povo delirou. Ernan e eu
voltamos para casa aliviados.
Chegou o sábado, dia 17 de dezembro. Cerca de setecentas pessoas enchiam o sexto andar da
Fábrica. Alípio e Marli Gusmão, Salo Seibel e Clarice Pechman eram os casais de honra daquela
manhã. Os primeiros, por serem os grandes incentivadores daquele empreendimento social. Os
dois últimos, por terem se encontrado acidentalmente, descoberto seus vínculos com a Fábrica
(Clarice por ser fundadora do Viva Rio e minha companheira no movimento de cidadania, e Salo
por ser um dos doadores da propriedade) e, em seguida, caído em paixão tão profunda, que os
levou ao casamento.
Declaramos a Fábrica de Esperança inaugurada. Para minha alegria, havia gente de todos os
níveis sociais. A mídia foi extremamente generosa na cobertura do evento.
Na semana seguinte veio o Natal, o que nos infiltrou de indizível força espiritual. Subimos
favelas e trocamos mais de dez mil armas de brinquedo por brinquedos de paz. No dia 25 nossa
campanha de desarmamento fazia a primeira página de seis dos maiores jornais do Rio e dos três
maiores de São Paulo, e ganhou repercussão em todo o Brasil. Assim, a marca do Natal de 1994
foi a loucura cristã de convidar o leão e a ovelha para comerem juntos a refeição do amor. E, em
certa medida, aquele milagre aconteceu. Havia muita gente feliz. Outro grupo, contudo,
imaginava que por trás de tanto sucesso existiam outras intenções escondidas. E 1995 traria à luz
tais suspeitas.
Capítulo 51

“Não quero estar onde posso e não posso estar onde quero: miséria em ambos os
casos!”

Santo Agostinho, Confissões

Nos últimos dias de 1994 eu fui a Bangu I visitar os mais estranhos amigos que eu já fizera
na vida. No verão, aquele lugar é o inferno. É mosca para todos os lados e a vida humana se torna
um acontecimento inconcebível naquele calor e com todos aqueles insetos voando
incansavelmente sobre você e se agarrando ao seu corpo, como se sentissem saudade e fome de
sua pele. É insuportável. Comprei ventiladores, alguns presentes, Bíblias e livros, e fui visitar
aqueles que eram considerados os mais perigosos bandidos do Rio.
— O reverendo chegou — eles gritaram, como de costume.
Eu, entretanto, sabia que, provavelmente, aquela era a última vez, em muito tempo, que
aquele ritual seria realizado.
— Caio, até o dia 31 de dezembro a gente garante essa política de direitos humanos do
estado. De primeiro de janeiro em diante, eu não posso dizer nada. O seu trabalho nos presídios
pode sofrer mudanças daí em diante. Quer dizer, espero que eles não façam nada, mas não dá pra
garantir — dissera-me Arthur Lavigne cinco dias antes do Natal.
O clima na administração já estava diferente. Antes, eu chegava lá como o pastor do
governador. Agora, eu seria apenas o amigo do Nilo. Levei Alda, meu filho Davi e uma amiga
conosco. Queria que os detentos vissem que eu valorizava tanto aquela experiência no meio deles,
que até levava parte de minha família àquele estranho encontro de humanidade e nudez moral.
— Davi, me dá um abraço. Eu sempre quis conhecer você — disse o educadíssimo Carlão,
do alto de seu metro e noventa.
— É, reverendo, o menino parece o Davi da Bíblia: ruivo e de boa aparência — disse Eucanã,
por muitos considerado irrecuperável, demonstrando que estava lendo a Bíblia toda, de cabo a
rabo.
Passamos a tarde toda com eles.
— Dá pro senhor batizar uns meninos aqui? — perguntou-me um dos presos.
Batizei seis deles, inclusive o jovem e famoso Polegar, líder do tráfico no morro da
Mangueira, recentemente preso em Araruama, quando se divertia num jet-ski.
— Eu encontrei tua mãe quando eu estava subindo a Mangueira outro dia. Ela está pedindo a
Deus que você mude de vida — falei ao rapaz.
Depois de alguma conversa, ele pediu para ser batizado com os outros. Vacilei. Afinal ele não
tinha sido preparado. Mas como eu compreendia que talvez não voltasse mais, estava decidido a
não negar o batismo a ninguém. Além disso, a cada dia mais me convencia que só Deus pode
avaliar o que acontece entre Ele e um ser humano, e eu não queria ficar no meio do caminho.
Então, batizei Polegar e os outros rapazes.
— Gente, o governo mudou. Vocês sabem que a minha vinda aqui tinha a ver também com
uma política de governo. O Dr. Nilo acreditava na nossa ação pastoral e nos deu acesso a vocês.
Agora não sei o que vai acontecer. Pode ser que nos fechem essa porta. Eu apareci muito na mídia
nos últimos dois anos, e o atual governador pode pensar que isso esconde algum projeto político.
Então, tudo pode acontecer. Mas mesmo que eu não venha nunca mais ver vocês, eu vou orar por
vocês para o resto da minha vida. Vocês fizeram muito mal à sociedade, e a sociedade fez muito
mal a vocês. Chega de ficar magoado com a vida. Aproveitem a chance e mudem de vida. A porta
está aberta. Jesus já mostrou isto a vocês — repeti em cada uma das quatro galerias.
Quando as portas de ferro se cerraram atrás de nós naquele fim de tarde, eu sabia que era a
última visita.
Nilo passou o governo para Marcello Alencar no início de 1995. A primeira coisa que o novo
governador fez em relação a mim foi mandar tirar imediatamente o telefone vermelho que a
administração anterior tinha concedido à Associação Evangélica e que ficava em meu gabinete.
Besteira? Não! Aquilo apenas confirmava que, naquele governo, eu teria que comprar ficha na
esquina para poder telefonar. Para completar as minhas suspeitas, o que não me faltou foi
repórter e amigo para me dizer que a Universal estava forte no governo do Marcello.
— O secretário do bem-estar social é pastor da Universal. A tua vida vai ficar difícil —
disseram-me várias pessoas que freqüentavam o palácio.
— Eu estou em paz. Não precisam nos ajudar. Basta não nos perseguirem — repeti até
cansar.
De 1994 para 1995 as coisas estavam mudando profundamente não apenas fora de mim, mas
sobretudo em meu coração, onde as principais transformações estavam sendo operadas.
Capítulo 52

“Fazes com que eu conheça uma extraordinária plenitude de vida interior, na qual
experimento misteriosa doçura, que, se chegasse à perfeição, não sei o que seria,
porque nesta vida não poderia suportar.”

Santo Agostinho, Confissões

Amanheci o dia 6 de janeiro de 1995 com um estranho pressentimento. A sensação era de


que naquele dia minha vida seria tocada por algo inusitado, como se um anjo fosse me encontrar
na rua ou me beijar o rosto.
Cheguei ao meu escritório às oito e meia da manhã e pouco mais de quarenta minutos depois
comecei a sentir algo estranho. Era um calor que eu nunca experimentara. Meus lábios, peito e
alma ardiam com um fogo que jamais me queimara antes. Eu estava a ponto de desmaiar. Minha
cabeça rodava e meu coração galopava. Era como se eu estivesse completamente seduzido por um
amor divino que fora sempre meu, mas que até aquele dia eu não sabia que existia com aquela
intensidade. No entanto, a mera percepção daquela forma de amar o sagrado me deprimia, ao
mesmo tempo em que me possuía. Aquilo iria passar. Não era meu privilégio manter aquele fogo
vivo dentro de mim. Ele estava ali, mas não era meu.
“Oh, Deus! Por que Tu me deixas sentir isto e não me dás garantia de que isto viverá pra
sempre em mim?”, orei em doce aflição.
A síntese daquele momento era de pura mística e cheia de indizível complexidade. O que de
mais próximo posso chegar ao tentar descrever aquela hora é da experiência do nascimento e da
morte, acontecendo ao mesmo tempo. Ou talvez seja como ter o dedo cortado por uma
afiadíssima lâmina, ver o sangue escorrer em profusão, instintivamente levar a língua ao golpe
para lambê-lo, e então sentir que o líquido que de você se derrama tem o doce sabor de sapoti.
Assim me foi aquele momento. Divino e mortal. Eterno e frugal. Experimentei o encontro
com o destampar de meu ser, em profunda reclusão.
Tranquei a porta. Somente eu e a projeção de quem sempre tive saudade poderíamos estar
ali. Queria abraçar o ser para quem eu fora criado e em quem minha existência na Terra
encontrava sua própria explicação.
Derramei-me no sofá preto de minha sala. A vida saiu e entrou em mim duas vezes. Deus
estava ali, e minha mais ambígua condição mortal também ali estava.
Tive medo de nunca mais ser o mesmo, mas tive mais medo ainda de nunca mais deixar de
poder viver aquilo.
— O senhor está bem? — perguntou Cristina pelo interfone.
— Nunca estive melhor e nunca estive pior — respondi.
Pedi para não ser interrompido. Às onze e meia da manhã vi que não podia mais fazer de
conta que o mundo não continuava o mesmo em volta de mim. Era hora de voltar ao inexorável
caminho da vida-morte-vida. Eu desejava morrer ali. Estava satisfeito e, paradoxalmente,
desgraçado. Abençoado e ferido. A graça me tocara como nunca antes, mas com ela me veio a
mais profunda revelação que eu já tivera a respeito de minha total relatividade e de minha mais
humana complexidade.
— Você está bem? — perguntou Alda quando me encontrou meio pálido por volta do
meio-dia.
— Muito bem! Aliás, não, não estou bem! Estou indo para casa. Preciso ficar sozinho —
respondi de modo estranho.
Ela ficou preocupada. Aquele era, entretanto, um momento que eu não podia compartilhar
com mais ninguém nesta vida. E mesmo agora, nesse imenso esforço que faço para abri-lo, sei
que não estou sendo bem-sucedido. Afinal, até o dia de hoje, eu não tenho palavras para descrever
o que me aconteceu. Como é que no passado os antigos descreveram seus encontros com o
mistério na sua forma mais divina e mais esmagadora? “E Abraão enxotava os abutres até que
passou uma tocha de fogo no meio da noite.” Ou: “E Jacó lutava com o anjo, no meio da noite.” E
ainda: “Eis que dois viajantes se aproximaram de Abraão e falou Abraão aos anjos.” Homens e
anjos se confundem à noite ou nas esquinas da alma.
A experiência que tive foi, sem dúvida, religiosa e profana, ao mesmo tempo. Talvez tenha
comido do fruto da mangueira mágica da casa de minha avó e tenha sentido gostos deste mundo e
do outro, mas não tenha sabido nem conseguido processá-los. Também pode ser que tenha sido
o saborear de um cacho de uvas encantadas que existiam dentro de mim e eu não conhecia, mas
que naquele dia derramaram seu caldo doce na minha boca. Sentirei seu gosto para o resto da
vida. Os judeus falam de sabra: uma fruta cheia de espinhos por fora, mas doce ao extremo por
dentro. Parece com a vida e seus mais fascinantes encontros: espinhosos e, ao mesmo tempo,
irresistivelmente sedutores.
Só sei é que eu mudei. Provavelmente para sempre. Passei a ter um imenso pavor de pensar
de mim mesmo qualquer coisa que não me pusesse na condição do mais carente de todos os
humanos e, ao mesmo tempo, do mais abençoado de todos os pecadores. A Graça de Deus me
tocou de uma forma diferente. Revelou minha mais trágica perdição e minha mais feliz salvação.
Mostrou-me o poder e o fogo da paixão que nasce na alma de um homem e me fez ver a força
imorredoura do amor de Deus, quando enternece o coração de um mortal.
Decidi ali que, fosse o que fosse, e acontecesse o que acontecesse, eu seria de Jesus até o fim
da vida, e até a vida sem fim. Amém!
Capítulo 53

“As palavras de nossa boca ou as de nossos atos que são conhecidas em público
nos expõem a uma tentação muito perigosa, filha desse amor aos louvores, que,
para nos fazer valer, recolhe e mendiga os pareceres alheios. Essa paixão ainda me
tenta quando eu a critico em mim, e por isso mesmo eu a critico.”

Santo Agostinho, Confissões

— C aio, o Fernando Henrique Cardoso está vindo ao Rio e a gente está pedindo a ele para
ir conhecer a Fábrica de Esperança. Vai ser no dia 20 de janeiro — disse-me Rubem.
— Ih, rapaz! Eu não vou estar no Brasil — falei.
— Não, Caio. Não faz isso, irmão.
— É que não dá. Estou com uma viagem agendada com mais de duzentas pessoas que vão
comigo fazer uma peregrinação pelo deserto do Sinai. Vamos subir o monte Horebe. Eu os
convidei, e eles aceitaram. Como é que eu posso dizer que não vou? Não tem jeito — expliquei. —
Mas a Fábrica tá aí. Eu não tenho que estar. Você será o cicerone no dia.
Mandamos fazer os preparativos. Quando chegou o dia 15 de janeiro, eu estava em Vigário
Geral. André Fernandes e um grupo de voluntários estavam me acompanhando numa outra
invasão de paz. Meu xará, Caio Ferraz, também estava conosco, nos ciceroneando em sua
comunidade.
Depois de passarmos um tempo na Casa da Paz numa reunião de orações e preces, Caio
Ferraz disse que recebera um recado do dono da favela, o traficante Flávio Negão, dizendo que
queria um encontro comigo. Eu já vinha orando por Flávio Negão desde que lera sua entrevista no
livro Cidade partida.
— Manda dizer que eu encontro com ele na hora que ele quiser — falei.
Recebemos ordens de andar pela favela para que desse tempo de irem acordá-lo.
— Gente como ele dorme de dia e trabalha de noite — nos informou o rapaz que foi acordar
o Negão na casa de uma de suas esposas.
Depois de quase uma hora de caminhada, dando tempo, paramos num bar para tomar um
refrigerante.
— O Negão chegou — falou Caio Ferraz.
Saudou-nos com o cumprimento clássico, tocando a palma da mão na sua, girando a mão
sobre seu polegar e voltando para o aperto final. Perguntei se não havia um lugar mais discreto,
menos exposto que aquele bar, onde pudéssemos sentar e conversar. Ele sugeriu o andar de cima
do mesmo bar. Subimos os quatro — ele, Caio Ferraz, André Fernandes e eu —, acompanhados
de um cachorro amigo do Negão, que não parava de lamber-lhe os pés.
A conversa foi interessantíssima. Ele iniciou dizendo que acompanhava meu trabalho
ministerial e, especificamente, meu esforço pela pacificação da cidade.
— Essa campanha Rio Desarme-se foi a melhor coisa que já vi acontecer nessa cidade. Lá
em casa eu dei ordens para que meus filhos entregassem as armas de brinquedo e que só
brincassem com brinquedos de paz — disse com um tom calmo de voz. — Eu vivo assim, pastor,
mas não quero que ninguém viva essa vida. É um inferno! — acrescentou o traficante de 24 anos,
idade de ancião para quem vive daquele tipo de negócio.
Eu peguei dali e levei a conversa adiante, dizendo que lera sua entrevista no livro do Zuenir e
percebera como sua humanidade ainda estava lá, explorável, potencialmente presente. Disse-lhe,
também, o que Jesus ainda poderia fazer por ele e como poderia transformá-lo, se ele quisesse. O
Negão sacudiu a cabeça. Depois, começou a nos contar como a Operação Rio já estava
corrompida.
— Aí, ó. Os “meninos do Exército” estão encontrando muito mais armas do que eles dizem,
cara. Tão achando muita droga escondida também. Mas eles num dizem nada. Escondem e
depois revendem pra gente. Vê se pode. Tá tudo corrompido — disse o Negão.
Falou também da corrupção de alguns elementos da polícia e de como agora, com a saída dos
traficantes de peso da cidade, havia policiais seqüestrando até mulher de bandido para forçar a
mineira, ou seja, a extorsão, como pagamento de resgate. Falou ainda de torturas e extermínios.
— É, reverendo, a coisa tá feia, muito feia — repetiu, olhando para o chão.
Eu juntei a conversa daquele ponto e tentei, mais uma vez, trazer o assunto para Jesus. Disse
que o Adão, ex-companheiro dele de tráfico, preso em Bangu I, havia me pedido para batizá-lo.
— É, o cara é maneiro. Batiza sim, pastor — falou.
Insisti no fato de que, se ele largasse aquela vida marginal, fosse para um lugar distante e
buscasse socorro em Jesus, a igreja seria, ainda, um “último recurso”. Negão prometeu pensar no
caso. Mas para gente como Flávio Negão, a marginalidade é muito mais que uma maneira ilegal e
bandida de ganhar a vida. É, na maioria das vezes, um caminho sem volta, pois trata-se de um
enraizamento num chão abandonado pelo estado, no qual eles ganharam usucapião. Por isso,
Negão não sabia pensar na vida sem se ver como aquele sultão favelado no qual ele se tornara. A
conversa toda durou uma hora e vinte minutos, mais ou menos. No fim, ele disse que tinha armas
para doar à campanha Rio, Desarme-se.
— Em alguns dias vou fazer contato dizendo quantas armas serão doadas. Mas vai ser um
montão.
Finalizei dizendo que queria orar com ele, pois tinha o terrível pressentimento de que ele iria
morrer logo. Então Negão pegou uma de minhas mãos entre as suas, enquanto eu colocava a outra
mão sobre sua cabeça.
— Jesus, dá luz à alma do Flávio. Ele tá vivendo nesse caminho de morte. Abre sua mente pra
ele ver como esse caminho é perverso. Jesus, salva a alma do Flávio antes que ele morra na
escuridão. Tem misericórdia dele, Senhor — orei com emoção. O cachorro ficou ali o tempo
todo, lambendo o pé do segundo traficante mais famoso do Rio como se ele fosse um rei ou um
mendigo.
— Valeu, pastor — foi o que ele disse quando me levantei para sair. Descemos as escadas até
a rua ao lado do bar.
— É bandido, mas é gente boa, não é, pastor? Tem um bom coração — afirmou Djalma, o
irmão dele, assim que me viu.
— É, sim. Ele é gente. Mas tem que largar essa vida, senão vai morrer — falei de passagem.
Voltei para minha casa, e Flávio Negão voltou para o caminho da morte.
Capítulo 54

“Que me retire em mim mesmo, que levante a Ti cantos de amor, que gema
indizivelmente, durante minha peregrinação terrestre, lembrando-me de
Jerusalém, levantando a ela meu coração — Jerusalém, minha pátria, Jerusalém,
minha mãe — e para Ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu
esposo, suas castas e grandes delícias, sua sólida alegria, seu conjunto de todos os
bens inefáveis, porque és o soberano Bem e o Bem verdadeiro.”

Santo Agostinho, Confissões

No dia 17 de janeiro embarquei com um grupo de 210 peregrinos para a minha décima nona
viagem à Terra Santa desde aquela primeira vez, em 1977. Atrás de mim, deixei um grupo de
diretores da Vinde a serviço de Lídia Mello, na Fábrica de Esperança, a fim de que nada saísse
errado quando o presidente Fernando Henrique Cardoso chegasse ali para sua primeira visita
oficial ao Rio de Janeiro depois de empossado.
— Pastor Caio, fica ruim uma visita do presidente à Fábrica sem que o senhor esteja lá! —
disse-me o doutor Salo Seibel na sede da Formitex, durante uma visita que fiz aos meus
principais parceiros de obra social antes de minha viagem.
— Deus proverá um modo de que tudo saia bem, mesmo que eu não possa estar presente —
falei em consideração ao cuidado de Salo com minha pessoa, mas sempre soube que, na prática,
minha presença ou ausência importaria muito pouco ao processo. A Fábrica era apenas o lugar do
encontro, mas o verdadeiro objetivo era apresentar ao presidente uma lista de demandas que o
movimento Viva Rio desejava ver realizadas na cidade com a ajuda de FHC, visto por todos como
aberto e não-traumatizado com ONGs e nem com ações de parceria com a iniciativa privada.
Deixei um vídeo para FHC e fui para o deserto do Sinai. Era uma gravação de três minutos de
saudação, na qual pedia desculpas pela minha ausência, explicava o conceito de funcionamento
da Fábrica de Esperança e passava a palavra a Rubem César Fernandes e Betinho, os anfitriões
daquela tarde.
— Você está se vingando por ele não ter ido à sua reunião antes das eleições, não está? —
perguntou-me um amigo.
— Olha, eu jamais faria isso, por duas razões. Primeiro, porque sou cristão, e nesse caso, sou
chamado a perdoar. Depois, porque não sou burro. Você acha que eu teria meios de me vingar do
presidente? Quem se vinga de presidente é burro, é otário — falei com prazer.
Chegou o dia 20 de janeiro. O governador Marcello Alencar estava lá, ao lado do presidente.
Eu, entretanto, estava na companhia de Moisés e dos anjos do monte Horebe.
A viagem pelo deserto é sempre fascinante para mim. São sons, cores, formas e cheiros que
os cidadãos da urbanidade ocidental desconhecem completamente. Estava muito frio no Sinai:
dez graus de dia e menos de dez à noite. Mas a mística do lugar dava um sentir especial ao nosso
culto noturno, a céu aberto, em volta da fogueira, na estreladíssima noite mágica da mesma
abóbada celeste que inspirou Moisés e Elias nas suas falas com o Eterno.
No dia 24 de janeiro já havíamos chegado em Eilat, às margens do mar Vermelho, quando
recebi no hotel um fax com recortes de jornal do Brasil. Não havia nenhuma revelação divina
naquela mensagem. Apenas o óbvio sobre a vida de bandidos: Polícia mata Flávio Negão, era a
manchete.
Triste, pois era uma vida. Entretanto, tratava-se de algo totalmente previsível. A
criminalidade carrega em si mesma uma carga profética de cumprimento autônomo. Self-fulling
prophecy — dizem os americanos. Vida de bandido termina muito cedo. E o estranho é que
termina sem nunca ter começado. Estava aprendendo todo dia que bandido apenas existe; nunca
vive.
Mostrei o fax para Marcos Batista, capelão em Bangu I, que estava fazendo a viagem em
minha companhia. Tentei esquecer a imagem de Flávio Negão. Afinal, minha viagem continuava
no deserto e na vida. Negão tinha sido apenas mais uma estação.
Aquele período pelo deserto e depois em Israel foi de grande impacto. Ali pude ver que
algumas coisas tinham mudado profundamente em mim, mais do que jamais poderia imaginar. A
mais forte de todas as percepções foi a de que fora muito mais abalado pela experiência do dia 6
de janeiro, na solidão de meu escritório, do que supusera. Sentimento idêntico me atingiu outra
vez na noite de 29 de janeiro, no hotel Jordan River, na Galiléia.
Subi para o terraço de visão panorâmica, de onde se vê o lago da Galiléia em toda a sua
extensão. Do outro lado estão as colinas de Golã. Ao norte, as luzes das cidades que fazem
fronteira com o Líbano. E nas costas de quem olha para o mar dos milagres de Jesus estão as
montanhas da Alta Galiléia.
A solidão era total. Estava frio. Talvez dez graus. Eram dez e meia da noite. De repente, a
mesma presença se fez perceber. Senti-me tocado no mais íntimo de meu ser. Foi como beijar a
morte e a vida, outra vez. Quase morri com a força daquela visitação de amor e medo, conforme
ela se me mostrou em céu aberto, no mesmo cenário bíblico no qual Jesus acolhera a pecadores
tão controvertidos quanto eu.
Era como a história bíblica de Abraão expulsando os abutres que vieram comer a carne do
sacrifício que ele oferecera a Deus, no mais importante pôr-do-sol de sua vida, horas antes de
receber a promessa de possuir a Terra Prometida. Trevas o acometiam, aves de rapina o
ameaçavam, ele expulsava os abutres, sentia sono e temores, mas desejava a vida com ardor.
Então, Deus selou um pacto de amor e graça com ele. Um anjo tomou uma tocha de fogo,
passou-a entre os pedaços das carnes do holocausto que Abraão pusera umas adiante das outras
na presença do Eterno, e o Patriarca da Bíblia percebeu naquele símbolo uma aliança de amor
entre o Criador e a criatura.
Comigo o sentir foi o mesmo. Aquela foi a noite da realização de meu mais íntimo desejo
humano e também a hora da mais profunda agonia. Luz e treva estiveram presentes. Ofertas de
amor e abutres da culpa voaram por ali. Eu enxotei a uns e acolhi a outros. Foram cerca de 45
minutos de profunda ambigüidade. Mas era eu quem estava lá, na companhia de quem em mim
eu mais amo e mais aborreço.
Foi ali, mais do que em qualquer outro lugar, que entendi que a árvore do conhecimento do
bem e do mal continua a dar seus frutos, bons e maus, e que é somente quando nossa alma se
abre que descobre que o éden da queda ainda existe entre os rios Tigre e Eufrates, na esquina do
coração de cada ser humano. Cheguei mais perto do que nunca da árvore. Apesar de ter revelação
de quem eu era, pude ainda me sentir amado e acolhido por Deus. A despeito das trevas e das
lutas que me visitavam invisivelmente o éden da alma, pude ver que o caminho da Árvore da Vida
continua proibido para aquele que dela quer comer apenas para viver como eternamente caído.
Estamos forçados a ser perdoados.
“E colocou o Senhor um anjo com uma espada de fogo na mão a fim de proibir o caminho da
Árvore da Vida, porque disse: a fim de que o homem dela não coma a vida eternamente”, diz a
Bíblia. Que doce revelação. O homem estava impedido de viver para sempre perdido em sua
culpa. A morte seria uma porta para fora de sua dor de existir longe do Criador.
Continuei ali para um segundo turno de amor e angústia. Olhei para o outro lado do mar da
Galiléia e me lembrei de outro encontro noturno. A cerca de 15 quilômetros dali, em linha reta,
três mil e quinhentos anos antes, um outro ser ambíguo lutara contra suas próprias sombras e
luzes. Jacó enfrentara o anjo do Senhor. Não quisera ser vencido, e por isso lutara. Mas também
não quisera ser abandonado pelo anjo, e por isso o segurara e não o deixara fugir.

— Não te deixarei se não me abençoares — dissera Jacó ao anjo em fuga.


— Qual é o teu nome? — perguntara-lhe o anjo.
Certos encontros mudam tanto a gente, que depois de tê-los vivido é melhor mudar
de nome.
— Jacó — que significa o competidor, o dissimulador, o enganador — é o meu
nome — dissera o homem em sua doce agonia.
— Já não te chamarás Jacó, mas Israel, pois com Deus e os homens lutaste e
prevaleceste — dissera o Ser que se atracara ao Patriarca.

Deus gosta dos seres que ousam combatê-lo. Os que lutam com Deus são sempre os que
querem amá-lo mais. Por isso o enfrentam. Ficam cara a cara com o divino. Com sede de amor,
luta-se contra Ele e por Ele. Luta-se contra Ele porque se O quer mais, e luta-se por Ele, pois fora
Dele nossa vida perde o ânimo para existir. Aquela foi minha guerra e meu vau de Jaboque, como
o de Jacó não tão distante dali. Ninguém ficou sabendo o que me aconteceu no alto daquele hotel.
Mas o resultado foi que, daquela noite em diante, minha mensagem mudou. Era possível
ver-me chorando quase todas as vezes que abria a boca para falar do amor de Deus. Fiquei mais
do que nunca tomado pela consciência profunda de como a graça divina era a única fonte de
minha existência. Minhas presunções pessoais de natureza moral haviam terminado
misteriosamente, e eu estava percorrendo o mais solitário de todos os caminhos: aquele no qual
só Deus pode andar com você, pois somente passeia por esse chão quem tem coragem de andar
nu com o Criador, e quem conhece a Deus de modo tal que pode crer que o Senhor é aquele que
“conheceu a minha alma e não me desprezou”, como diz a canção.
Trata-se do caminho da graça divina, onde você sabe quem é, e justamente por isso chega
diante do Criador sem roupa, pois sabe que somente Ele tem vestimentas para vestir sua nudez.
Somente a graça divina pode cobrir as ambigüidades da existência terrena de cada um de nós.
Assim, minha espiritualidade mergulhava numa nova forma de sentir. Jamais desejaria, dali para
a frente, ser o juiz existencial de quem quer que fosse. Minha vida não ficaria destituída de
valores que me permitissem discernir o certo do errado, mas eu mesmo não queria estar nunca
mais na posição de juiz dos homens, lugar onde até então me encontrara com extrema
regularidade em razão de freqüentes solicitações que me eram feitas, todos os dias, pela religião.
Aquela experiência remeteu-me para o sentir dos evangelhos e para a prática da ética do
humano, que fora minha herança familiar, conforme o melhor legado de vovô João Fábio, e que
havia sido corrompida pelo moralismo superficial de invasões religiosas das quais, mesmo
combatendo, não havia conseguido me livrar.
Tossi até não poder mais quando retornei ao meu quarto naquela noite. Eu havia apanhado a
pior de todas as tosses que eu já tivera na vida.
— Você deve ter pegado isso nas favelas — disse Alda.
Era estranho. Tossia uma vez, tentava tomar ar e não conseguia. Então ficava cerca de 45
segundos sem tragar oxigênio. Por três ou quatro vezes a sensação foi tão ruim, que pensei que
fosse morrer na Terra Santa. Parecia que estava levando uma gravata invisível, um
estrangulamento de braços espirituais. Foram 21 dias de tormenta. Era como se três vezes ao dia
eu fosse enforcado. Sabia, entretanto, que minha luta era contra forças invisíveis. Por isso me
entreguei Àquele que me amava mais do que ninguém e pedi que Ele me deixasse lutar apenas
com o Seu anjo, mas que o enfrentamento das outras forças invisíveis de malignidade Ele mesmo
fizesse por mim. Dessa forma, o enforcamento acabou. Fiquei livre e em silêncio. Aquele era um
caminho só meu e eu tinha que andar por ele em profunda solidão.
De Israel fomos para Nova York. Fizemos então outra peregrinação anual: pela Time Square
e pelos musicais da Broadway. Encontrei Nelsinho Motta e conversei longamente com ele sobre
Cristo e música. Na Big Apple, recebi dois fax: um perfil de seis páginas que saíra sobre mim no
jornal da Flórida The Miami Herald, e uma entrevista que eu dera para as páginas vermelhas da
revista IstoÉ entre o Natal e o Ano-Novo.
— Isso não vai ficar bom. O bispo Edir Macedo vai chegar pesado em você. Você tem certeza
de que precisava falar as coisas que falou? Você é franco demais, Caio. Eu temo que isso ainda lhe
traga problemas — disse-me Alda, após ler a entrevista da IstoÉ, da qual transcrevo as duas
perguntas mais significativas sobre a “questão Macedo”.

— O que o horroriza nas ações da Igreja Universal do Reino de Deus? —


perguntaram Daniel Stycer e Domingos Fraga.
— Em primeiro lugar, esses pedidos ostensivos e esse saqueamento psicológico e
espiritual feito ao bolso das pessoas. É um saqueamento dizer “se você não contribuir, a
maldição vai continuar sobre a sua vida e a única maneira que você tem para prosperar é
dando, e dando aqui”. A maioria das pessoas que está debaixo dessa chantagem é de
pessoas miseráveis, algumas desempregadas, passando por uma situação social pavorosa e
que estão se agarrando ali como última tábua de salvação.
— Qual é a sua opinião sobre o bispo Edir Macedo? — continuaram.
— Acredito que o Macedo está disposto a morrer por aquilo em que ele acredita. Há
um simplismo enorme da mídia em achar que ele é um grande picareta que talvez nem
creia em Deus. Ele crê em Deus. Agora, o Deus no qual ele crê é diferente da maneira que
eu vejo Deus, o Evangelho e Jesus. Ele acredita ser um enviado de Deus com uma missão
messiânica. Ele está disposto a morrer em praça pública por isso aí. Ele acredita que o que
ele prega é uma mensagem enviada por Deus a ele, para ele fazer conhecida no mundo. E
aí, meu amigo, quando você tem uma finalidade messiânica absurdamente definida na sua
mente, os meios tornam-se relativos.

— A gente tem que orar muito. Eles vão querer nos pegar — repetiu Alda, após ler e reler as
quatro páginas da entrevista.
— Mas o que você quer que eu responda? Eu não sou o juiz de ninguém e não estou
tentando julgar indivíduos. A prova disso é que eu fugi da questão sobre o caráter dele. Eu falei foi
sobre as ações de natureza social, coletivas; sobre as coisas que eles fazem que não têm nada a ver
com o evangelho e que se tornam públicas. São ações que tocam a muitos. Se eles quiserem fazer
o que fazem, é problema deles. Mas têm que parar de dizer que são evangélicos. O que eles fazem
não é evangélico, e se ser evangélico é ser como eles estão fazendo todo mundo pensar que eles
são, então quem não é evangélico sou eu. Eu não quero ser parte de uma igreja que acha que essa
ação de camelô da fé é algo natural — respondi com certa irritação, mas com muita angústia de
alma.
Afinal, tudo que eu havia dito sobre eles fora antes de eu lutar com o anjo de meu ser. Agora,
não queria mais me envolver com aquela polêmica, mas não era mais possível recuar. Além disso,
não estava julgando indivíduos e suas motivações, mas apenas externando uma opinião sobre
ações de natureza social, com implicações profundamente coletivas. E se a luta com o anjo me
tirara o desejo de julgar pessoas, não arrancara de mim, entretanto, a consciência ética sobre o que
era humano ou não era humano. E, para mim, era desumano o que eles estavam fazendo em
nome da fé. Depois de alguns dias em Nova York, voltamos ao Brasil.
— Eu sinto que esse vai ser um dos anos mais difíceis de nossas vidas — falei para minha
família e para alguns amigos.
— O que é isso! Tá tudo dando certo pra você — era o que ouvia como resposta da maioria
das pessoas.
A impressão era tão forte, que escrevi no boletim Vinde Informa, que nós enviamos para nossa
assembléia de cinqüenta mil pessoas, algo que acabaria tendo caráter profético para mim: 1995:
Ano das grandes lutas e tentações.
Em meu artigo, dizia que havia estado travando grandes lutas espirituais e experimentado
certa depressão, e sabia que isso era porque 1995 seria um ano de imensas tentações para mim.
Sobretudo a tentação de entrar em coisas que Deus não nos mandara e lutas contra a
perversidade humana. Entretanto, quando março começou, as atividades esquentaram e veio-me
a sensação de que tudo aquilo havia sido apenas um pesadelo acordado, um sentir equivocado que
me acometera em razão de no ano anterior eu ter vivido dez anos em um, emocionalmente
falando.
“Não foi um anjo. Foi apenas um estresse”, falei a mim mesmo. Anjos e angústias se parecem
muito em dias de escuridade ou de muita luz. Os fatos, entretanto, mostrariam que eu estava
enganado.
Capítulo 55

“O que me mantinha cativo e como que sufocado eram as tais grandes massas, que
pareciam oprimir-me, debaixo de cujo peso, arquejante, me era impossível
respirar a aura pura e simples de tua verdade.”

Santo Agostinho, Confissões

No início de 1995, havíamos lançado uma nova campanha para as favelas. Ponha esta idéia
no ar: cerol nem de brincadeira. A idéia nascera num dia em que eu estava andando pela Fábrica
de Esperança e percebera como alguns garotos da favela se arriscavam correndo sobre telhados
frágeis, simplesmente porque estavam fascinados por suas pipas.
Passar o cerol é uma expressão usada na favela quando se trata de definir a morte de alguém.
E “cerol” é aquela goma de cola e vidro que os garotos passam nas linhas das pipas para que
possam “guerrear nos ares” contra seus “inimigos”.
A linguagem do cerol era perfeita para falar de nossa luta contra a violência nas comunidades
faveladas. A campanha consistia em um concurso da pipa da paz mais criativa. Quem ganhasse,
levaria trezentas pipas com o símbolo do desarmamento, que o cartunista Ziraldo havia feito e
nos ofertado. Lançamos a campanha, e muitas comunidades compraram a idéia. Mas como
aquele início de ano foi agitadíssimo, tivemos de adiar o concurso para o início de março.
No dia anterior ao concurso, o cabo Flávio, da Polícia Militar, matou um criminoso a
sangue-frio em frente ao Shopping Rio Sul. A Globo estava lá e registrou tudo. Foi um escândalo.
No dia seguinte, nós estávamos no Aterro do Flamengo, no meio do concurso de pipas, quando as
repercussões começaram.
— Reverendo, a mídia toda está atrás do senhor. Querem falar sobre a morte de alguém na
frente do Rio Sul. O que é que eu digo? — perguntou-me Cristina pelo celular.
— Pode mandar todo mundo pra cá — falei. Nem todos foram, mas meu celular não parou
mais.
— O que o senhor acha disso? O governador disse que foi errado, mas que a sociedade
precisa entender. O que o senhor pensa? — era a questão comum a quase todos os que me
procuravam.
— A maior arma que a polícia tem contra os bandidos é a sua diferença cidadã. A polícia tem
que ser a cidadania fardada. Quando a polícia age com os mesmos critérios de crueldade dos
bandidos, ela fica pior do que eles. Nada é mais perverso do que a crueldade feita em nome da lei.
Isso acaba com as instituições. E o governador sabe disso. Por isso, numa hora dessas, acho que
ele não poderia dizer nenhum mas. Ele não pode desculpar uma ação assim. Falando desse modo,
ele está tentando falar para agradar os dois lados: a sociedade (dizendo que tá errado), e a polícia
(dizendo que a gente precisa entender o cabo). Isto é perigoso — respondi, esquecendo que 1994
havia acabado e que já estávamos em 1995, tempo no qual já não se podia mais falar à vontade.
Daquele dia em diante, passei a ser um dos repercutidores de matéria sobre o governador e o
prefeito. Falava muitas vezes com tom crítico, mas também elogiava todas as ações que me
pareciam boas. E para provar isto, tenho inúmeros recortes de jornal que evidenciam tanto uma
coisa quanto a outra. Fazendo assim, achei que estava apenas sendo cidadão. E como não era
partidariamente político, mas apenas um pastor, imaginava que não seria jamais visto como
inimigo do indivíduo circunstancialmente elevado à posição de autoridade, fosse o governador ou
o prefeito.
— Sou apenas um cidadão com voz e com capacidade crítica construtiva — disse mais de
uma vez quando me perguntavam acerca de minhas “participações políticas”.
Então começaram a vir os sinais de que eu estava equivocado. O convênio do estado com a
AEVB para a capelania nos presídios foi cancelado e nossas carteiras para visitação em
penitenciárias foram invalidadas.
— Caio, a gente tem que conversar. E não dá pra ser por telefone. Dá pra ser hoje no almoço?
— perguntou Rubem César em meados de março. Encontramo-nos num restaurante próximo à
ladeira da Glória. — Eu tenho uma pessoa amiga, que trabalha no palácio do governo, que me
disse que os assessores chegados ao Marcello andam dizendo que vão pegar você — disse-me
Rubem com ar de muita preocupação.
— Não pode ser. Junto dele também tem gente que me conhece. É o caso do coronel Ferraz
e do comandante Dorazil, da Polícia Militar, ambos evangélicos. Eles não deixariam o governador
ficar enganado a meu respeito — falei, tentando me convencer de que aquilo tudo não passava de
fofoca palaciana.
— Olha, tem mais. O Alfredo me telefonou pedindo pra eu te dar um recado.
— Ah, é! O quê?
— O César Maia disse a ele que, num papo com o cardeal e o presidente do Tribunal, o
governador Marcello Alencar falou muito mal de você e da Fábrica de Esperança. Disse que você
é um picareta, oportunista, que defende bandidos como parte de uma estratégia política do
Comando Vermelho e que a Fábrica é uma fachada.
— Diz pro Alfredo que eu quero falar com ele.
— Liga pra ele. Foi ele que me pediu pra te falar isso. Eu acho que ele não vai ligar de você
perguntar sobre o assunto.
Dois dias depois, Alfredo e eu estávamos almoçado no restaurante Alcaparras, no Aterro do
Flamengo.
— Eu conheço você e sei quais são as suas motivações. Mas fiquei preocupado que num papo
entre o governador, o prefeito, o cardeal e o presidente do Tribunal você tenha sido jantado de
uma vez. São homens de muito poder e você deveria tentar saber o que está acontecendo. Se eu
fosse você, iria falar com o Marcello — disse meu amigo de dentro da Prefeitura.
Eu tinha estado com Marcello Alencar no início do ano. Havia encontrado com ele na
companhia de meu amigo Eduardo Mascarenhas, psicanalista e deputado federal pelo PSDB.
Naquela ocasião, minha visita tivera duplo objetivo: mostrar para ele que eu não mordia e saber se
o estado tinha qualquer interesse em fazer parcerias sociais com a Fábrica. A idéia era que
empresas vinculadas à Fábrica pudessem receber incentivos fiscais especiais do governo. Fui
bem-recebido, mas não deu em nada.
— Bom, eu já estive com ele uma vez. Vou tentar marcar outra audiência. Só que agora o
assunto será este — falei a Alfredo.
Poucos dias depois, recebi um telefonema de uma amiga que ocupa uma posição
superestratégica num dos principais veículos de comunicação do país, dizendo que precisava
falar comigo com urgência. Eu a encontrei para almoçar no 14 Bis, restaurante do aeroporto
Santos Dumont.
— Olha, isso aqui é um tremendo off. Meu nome não pode aparecer, OK? — perguntou.
— Claro! Não fique preocupada — garanti.
— Semana passada, eu e dois outros profissionais lá da empresa almoçamos com o Marcello
Alencar. No meio da conversa, ele começou a falar mal de você, de graça, sem mais nem menos —
disse a jornalista.
— Ah, é? E o que ele falou? — perguntei como se ainda não soubesse de nada.
— Ele disse que você é o mentor de toda a política de direitos humanos de bandidos no
estado, que o Comando Vermelho e você trabalham juntos, e que a mídia ainda não percebeu
como você é importante no esquema dos bandidos. Disse também que a Fábrica é uma fachada
do tráfico de drogas e que era uma questão de tempo até tudo estar provado.
— Cê tá brincando. Esse negócio é sério, mesmo. Olha, você é a terceira pessoa em uma
semana que me diz a mesma coisa. Agora estou preocupado.
— Reverendo, se eu fosse você, eu iria falar com o governador o quanto antes. Ele está muito
cheio de sentimentos ruins. Ninguém puxou o assunto, mas ele ficou falando insistentemente.
Para ele, isso parece ter se tornado algo importante.
Naquela mesma semana, recebi cinco outras mensagens idênticas de amigos que me
disseram ter ouvido a mesma conversa.
— Olha, lá na igreja há um irmão que trabalha com o governador. Ele me disse que o
Marcello anda dizendo que você é um espertalhão, que ganha dinheiro do exterior para a Fábrica
e põe tudo no bolso. Disse que você recebeu vinte milhões de dólares da Alemanha e embolsou
tudo. Acho que você deveria ir saber o que está acontecendo — disse-me por aqueles dias, com ar
de extrema preocupação, o pastor Ezequiel Teixeira.
— Reverendo Caio, meu irmão, o Aldir Cabral está doido. Sabe que eu encontrei com ele na
ante-sala do gabinete do governador e ele me disse que, depois de muito pensar, o Macedo e os
bispos da Universal concluíram que o irmão é um “infiltrado católico” no meio evangélico? Ele
me disse isso sério. No início, pensei que fosse gozação. Mas não, o cara tava falando sério —
contou-me um importante político da cidade, que também é evangélico.
— Que coisa louca. Mas que é engraçado, é. O cardeal participa de conversas onde eu sou
estraçalhado, e vem o Aldir Cabral e diz que sou espião católico. Só pode ser piada. Mas o que
você acha que ele está conseguindo com isso? — perguntei.
— Eu acho que ele tá envenenando o Marcello contra o senhor — concluiu.
Pensei, orei e decidi ir ao encontro de Marcello Alencar o quanto antes. Assim, recorri a
alguém que eu sabia que não teria dificuldade em marcar a entrevista.
Capítulo 56

“Com efeito: quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Contudo, a espera
do futuro já está no espírito. E quem poderá contestar que o passado já não existe?
Contudo, a lembrança do passado ainda está no espírito. Enfim, haverá alguém
que negue que o presente carece de duração, porque é um instante que passa?
Contudo, perdura a atenção, pela qual o que vai ser seu objeto tende a deixar de
existir. O futuro, portanto, não é longo, porque não existe.”

Santo Agostinho, Confissões

Em 1995, percebi que minha maior vulnerabilidade social estava na Fábrica de Esperança,
daí ter resolvido colocar lá alguém que ocupasse a função de supervisão geral. A pessoa naquela
posição precisaria possuir grande habilidade política e diplomática, pois, naquele momento, mais
do que de dinheiro, nós precisávamos de articulação e de vínculos. Havia ainda uma outra
preocupação por trás daquela mudança. Sentia que existia algo estranho acontecendo nos
bastidores da cidade e, para mim, estava claro que, o que quer que fosse acontecer, iria tocar
naquele que era o meu calcanhar-de-aquiles: a Fábrica de Esperança. Se alguma coisa desse
errado ali, estaria de canela quebrada. Portanto, precisava ter lá uma pessoa de minha mais
absoluta confiança.
— Cris, eu tenho uma proposta a lhe fazer. Você quer assumir a supervisão geral da Fábrica?
Serão quase quatro horas por dia dentro do carro só pra ir e voltar, e os maiores abacaxis do
mundo pra descascar. Você quer? — perguntei àquela que me dissera, quando de nossa primeira
visita ao prédio da Fábrica, que “aquilo era presente de grego”, e não dei tempo para a resposta.
— Vá pra casa. Fale com seu marido e com seus filhos e me dê uma resposta amanhã.
Cristina já trabalhava como minha secretária há dez anos e sabia que eu não preciso falar
muito tempo para expressar o desejo de uma decisão profunda. E, depois de chorar de medo da
nova função e saudades da última, ela aceitou o desafio.
— Eu não me sinto saindo, mas apenas continuando. Se o senhor precisa de mim lá, eu vou
— disse com emoção. E foi para ficar.

No dia 8 de junho de 1995, uma fagulha quase pôs nosso sonho a perder. Um funcionário que
soldava uma placa de ferro nas proximidades de um dos galpões da Fábrica de Esperança teve a
infelicidade de ver uma pequena faísca desprender-se de seu maçarico e passar por entre as
frestas do portão de ferro e a parede do galpão. A fagulha caiu sobre um lote de mil e seiscentas
máquinas Xerox embaladas em caixas de isopor. As chamas gulosas por pouco não engoliram
aquilo que estávamos construindo a duras penas.
Mas aquele incêndio era inevitável. Fazia parte de um desígnio divino. E como todo plano de
Deus, a gente só entende bem depois.

— Caio, eu sonhei com a Fábrica. Era uma coisa ruim, um acidente, mas eu não tenho
detalhes — contou-me Alda.
Não disse nada, mas fiquei preocupado. A sensação que eu tinha era a de que um anjo de
trevas, com imensa fúria, estava grunhindo contra nós.
— Nós estamos mexendo em coisas cruciais: a miséria, a perversidade, a violência, o
banditismo, a polícia, os políticos, a mídia e as vaidades humanas. Além disso, também temos
tocado em alguns nervos expostos desta cidade. Então, é de se esperar que os principados espiri-
tuais do Rio estejam revoltados conosco — eu dizia a algumas pessoas mais íntimas.
Dizendo isso, estava ecoando uma importantíssima convicção cristã: as cidades, nações e toda
sorte de relações humanas comunitárias são marcadas por forte presença dos anjos. A Bíblia dá
margem para que se creia que em cada povoado humano haja anjos que protegem
especificamente aquele grupo. Mas a mesma doutrina tem o seu outro lado. Anjos da escuridão
também disputam o controle psicossocial daquele ajuntamento. Aquilo que Jung chamou de
“inconsciente coletivo”, a Bíblia chama de “principados e potestades”, e existem não apenas
como subprodutos da fabricação cultural da sociedade, mas também como seres autônomos, que
tanto se alimentam da cultura social como a influenciam decisivamente. E como nós estávamos
tocando nos nervos sociais daqueles poderes invisíveis, eu achava possível esperar represálias.
— Pastor, estou muito incomodada com a Fábrica — disse-me uma pessoa amiga. — Estou
com o pressentimento de que algo está para acontecer por lá.
— Brother Caio. I am calling you because I have been concerned with you. God gave me a text
from the Bible. It is for you. Read it, Brother — disse-me o reverendo Samuel Doctorian,
chamando-me de Los Angeles.
A passagem bíblica que ele me mandara ler dizia que Deus haveria de proteger seus servos
com um muro de fogo.
— Dona Cristina, vem cá que eu quero lhe contar uma coisa. Eu tava aqui na cozinha da
Fábrica quando vi uma coisa feia. Era uma grande sombra. Tive certeza que era coisa do Maligno.
Peguei o garoto da cozinha e fomos orar. Pusemos os joelhos no chão e clamamos ao Senhor.
Pedimos a Sua proteção. Os Seus anjos. Mas eu queria que a senhora soubesse. Tem luta aqui —
disse tia Biga, cozinheira da Fábrica.
— Hum. Estou sentindo cheiro de fogo aqui. Vai ver se tem alguma coisa queimando. Estou
com esse cheiro de fogo no nariz — disse Cristina para o encarregado da segurança às dez horas
daquela manhã.
— Num é nada, dona Cristina — disse o homem.
— É melhor ficar de olho aberto. Eu estou sentindo esse cheiro — repetiu Cristina sem
saber que estava tendo uma premonição olfativa.
— Fooogo. Fooogo. Fooogo! — eram os gritos que se ouviam por todos os lados às 11h45
min da manhã, gritos que se misturavam ao som ensurdecedor da sirene da Fábrica.

O pânico foi geral. Logo a mídia estava lá. O helicóptero da Globo voava sobre o incêndio.
Transmissões ao vivo foram feitas simultaneamente para todo o Brasil. Centenas de pessoas
começaram a telefonar e a orar a Deus por nós. Um multidão correu para a frente da Fábrica. Eu
estava na sede da Vinde, em Niterói.
— Reverendo, o Robin está no telefone dizendo que a Fábrica está em chamas — disse Elisa,
minha secretária à época, com os olhos arregalados.
Não esperei nem que ela terminasse a frase. Corri para o carro e disparei para Acari em
companhia do pastor Ariovaldo Ramos.
— Caio, fica tranqüilo. Parece que é um incêndio setorizado e que já está sob controle. Não
fica angustiado — dizia Alda, enquanto os meus olhos me provavam que a informação estava
incorreta, pois ainda estávamos na avenida Brasil, na altura de Parada de Lucas, a uns seis
quilômetros de distância, e já era possível ver as nuvens negras cobrindo toda a região da Fábrica.
Fomos orando em silêncio. Não gritamos e nem nos agitamos. Silêncio e o pensamento em
Deus era o que eu conseguia fazer.
Quando chegamos, já havia centenas de pessoas se espremendo em frente à Fábrica. Muita
gritaria e muito desespero. Tive de entrar no peito e na raça, pois a mídia queria uma
“declaração” minha já ali fora.
— Se eu declarar, eu perco a Fábrica. Depois. Agora é hora de apagar o incêndio — falei e
entrei pelo portão lateral.
A cena era caótica. O Galpão 17, o primeiro da lateral direita da propriedade, já tinha acabado.
Dois outros ao lado ameaçavam ter o mesmo fim. As chamas corriam pelo telhadão único de
amianto, que cobre pelo menos 15 mil metros quadrados de área e onde havia vários outros
galpões. Tudo aquilo poderia virar cinzas. Quando me dei conta, havia um espetáculo fascinante
acontecendo paralelamente à catástrofe. Funcionários da Parmalat, nossa vizinha, estavam
correndo por todos os lados com suas empilhadeiras, tentando tirar as máquinas da Xerox de
dentro dos outros galpões. Bombeiros recebiam ajuda heróica dos funcionários da fábrica.
Policiais militares que por ali iam passando pararam e entraram na luta contra as chamas,
ajudados por um monte de rapazes suspeitos, que, vendo as chamas invadirem o lugar, pularam o
muro e levaram sua colaboração.
— Corre gente. Anda gente. Aqui está nossa esperança. Ela não pode virar cinzas. Vamos
apagar esse fogo — eram os gritos que se faziam ouvir durante todo o tempo.
Não fosse tamanha solidariedade, o desfecho poderia ter sido outro.
No meio de tudo aquilo, subi correndo para o topo do prédio central, de onde vi que as
chamas corriam sobre o telhado, animadas que estavam pelo vento produzido pela hélice do
helicóptero de reportagem da Globo.
— Mande o pessoal passar um rádio pro helicóptero levantar e filmar de longe. Ele tá
abanando o fogo. E mande um grupo quebrar uma linha de uns três a quatro metros de largura
em toda extensão do telhado para as chamas não passarem — falei para Egnaldo Júnior e
Reginaldo.
As duas providências foram tomadas e com a ajuda informal do grupo da solidariedade
antiincêndio conseguimos extinguir as chamas depois de três horas de combate.
Aquele incêndio queimou mais de mil máquinas Xerox, mas gerou três coisas. Primeiro, a
consciência da importância da Fábrica para os habitantes do lugar. Além da solidariedade dos
adultos, recebemos depois centenas de trabalhos infantis das escolas da região mostrando o
impacto do incêndio na produção dos alunos. Eram declarações lindas de amor à Fábrica.
Segundo, a enorme mídia que o episódio nos deu em todo o Brasil. Até aquele dia, a Fábrica era
um projeto social do Rio, conhecido na cidade e cuja existência era de alguma forma percebida
em outros lugares. Mas as transmissões ao vivo, bem como nos telejornais e demais veículos de
comunicação, nos tornaram conhecidos em todo o país. Terceiro, a constatação de nossa
fragilidade contra aquele tipo de coisa e contra qualquer outra situação na área de segurança
física da Fábrica. Numa área tão grande como aquela, não havia meios humanos que nos dessem
garantias totais de que coisas daquele tipo não pudessem acontecer outra vez.
— O que foi que o senhor sentiu quando viu a Fábrica em chamas? — perguntaram os
repórteres.
— Olha, eu fui lá pra cima e disse: “Deus, mesmo que isso tudo pegue fogo, a gente vai
começar tudo das cinzas, outra vez.” Sabe, gente, o fogo que nos arde aqui dentro é mais forte do
que aquele que nos ameaçou. Mesmo que tivéssemos que recomeçar das cinzas, nós
recomeçaríamos. Não tem mais volta — falei para um batalhão de jornalistas que, àquela altura, já
tinham deixado o profissionalismo de lado e expressavam claramente seu alívio com o desfecho
da situação.
Capítulo 57

“Também a estes odiava meu coração, porém não com ódio perfeito, porque, na
realidade, mais os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela
simples injustiça de seu comportamento. Naquele tempo — confesso — preferia
que não fossem maus para meu interesse do que bons por Teu amor.”

Santo Agostinho, Confissões

— V eloso, dá pra você marcar um encontro meu com o governador? — perguntei ao então
vice-líder do partido de Marcello na Assembléia Legislativa.
— Tá marcado para o dia 12 de julho. Eu disse que vou junto, tá bom? — informou-me o
pastor Veloso, deputado pelo PSDB, algum tempo depois.
No dia marcado, já à porta do palácio, o pastor Veloso me perguntou o motivo do encontro.
— Para ser franco, é uma coisa pessoal. Quero conversar com ele sobre a Fábrica e também
sobre mim — respondi sem esclarecer muita coisa.
— Ei, reverendo! Dá pro senhor fazer uma oração pela multidão que está ali à porta do
palácio? — pediram uns repórteres que estavam no lugar.
É que um grupo de pessoas amigas da jornalista Vera Dias, mulher do executivo David
Kogan, seqüestrado há sessenta dias, tinha ido até lá protestar contra a ineficiência da polícia
quanto a solucionar o caso. Fui até lá e orei com a multidão. Depois, entrei no palácio e
encontrei-me com o governador.
A conversa foi cordial. Falamos sobre o valor do voluntariado cristão em obras sociais e de
como o estado não conseguia fazer coisas tão baratas quanto as igrejas e organizações baseadas
no serviço voluntário. A seguir, Marcello falou do quanto a situação do estado estava difícil.
Depois, passou para a mídia, que, segundo ele, o estava poupando de críticas mais sérias, apesar
de tudo. E fomos adiante. Eu já estava ansioso. Já tínhamos conversado quase uma hora e não
tinha conseguido trazer à tona o assunto que me levara até lá. Então decidi que, se ele não me
desse nenhuma deixa, criaria uma, por minha própria conta.
— Governador, eu pedi ao Veloso para me trazer aqui hoje porque eu tenho um assunto
pessoal para tratar com o senhor — falei interrompendo as amenidades que haviam marcado
nossa conversa até ali.
— Claro. Pode ficar à vontade — disse Marcello Alencar amavelmente.
— É que nos últimos dias eu tenho recebido informações, vindas de pessoas distintas, umas
afirmando que souberam de primeira mão, outras dizendo que ouviram de terceiros, mas todas
falando que o senhor está muito magoado comigo. Eu queria saber o que houve. Se eu fiz algo que
o machucou, por favor, tire isso do coração. Eu não quero criar situações que venham a
amargurá-lo — falei, enquanto ele se ajeitava na cadeira mais de uma vez.
Eu pensei que ele iria mudar o tom e julgar minha palavra impertinente. Achei que talvez ele
fosse me confrontar. E até preferia que fosse assim, pois me daria a chance de esclarecer as
coisas e botar um ponto final naquilo tudo.
— Olhe, nós estamos vivendo dias difíceis. A imprensa entra no processo para cumprir um
papel muito negativo. No primeiro semestre, até que me pouparam, embora o tom seja sempre
contra as instituições do estado. Mas eu acredito na democracia. Se antes eu já acreditava, agora
acredito mais. Críticas fazem parte do processo. Agora, devo dizer, todo mundo quer que o estado
seja o paizão que dá tudo. Não funciona. Temos é que ajudar as pessoas a gerarem renda por elas
mesmas — disse o governador com um ar filosófico.
— Certo, governador. Certo — disse eu, enquanto ele prosseguia.
— Agora, jornalista, repórter, não, eles não têm acesso às minhas intimidades sobre as
instituições e a respeito das pessoas — completou o governador. Naquele momento, eu entendi
que ele estava achando que aquelas informações haviam sido passadas a mim especificamente
por algum jornalista. — Aqui no estado, é tudo muito difícil. Até para reequipar a polícia é difícil.
Você tenta, mas pode vir um tribunal e botar a sua intenção por terra. Lá na sua Fábrica de
Esperança é diferente. Você aperta o botão, determina e tudo acontece. Aqui eu aperto o botão,
mas não funciona. Caio, pra fazer funcionar, tem que se dar por inteiro. Eu tenho muita
preocupação com a parte institucional. É por isso que eu me preocupo com alguns movimentos
de vocês. Às vezes o teor é muito radical, às vezes cometem muitos equívocos — naquele ponto,
eu estava tentando entender onde o governador Marcello Alencar queria chegar, mas ainda não
estava claro para mim. — Olha só o Betinho. Sou amigo dileto dele. Mas quando ele trabalhou
como “ouvidor” da prefeitura, foi para Brasília com o (ex-prefeito) Saturnino para abraçar o
Congresso de mãos dadas, para pressionar a votação de uma lei. Bonito, mas não dá. Estou
falando do Betinho como exemplo clássico. Agora ele está numa boa, amadureceu. Já quer que
todos os cidadãos façam alguma coisa. Antes ele jogava muito só. Ele melhorou. Eu não quero
magoar o Betinho, eu o adoro. O que eu acho é que, às vezes, esses movimentos de vocês são um
pouco maniqueístas: o governo não presta, e nós é que temos que fazer as mudanças — disse o
governador.
Naquele momento, entendi um pouco melhor. De alguma forma, ele nos percebia como
inimigos da ineficácia do estado. Reconhecê-la era muito fácil para ele. Afinal, ele mesmo dissera
que “apertava os botões e não funcionava”. Mas gostaria que ele mesmo fosse aquele que tivesse
sempre o direito de criticar a máquina do estado. Quem quer que o fizesse de fora do sistema
corria o risco de ser visto como um radical maniqueísta.
Ele prosseguiu falando de como a reputação dos políticos andava baixa e do quanto isso
atrapalhava as ações do governo. Então entrou mais objetivamente na questão das chamadas
ONGs.
— Eu acompanho, respeito, estimulo e acolho esses movimentos. Mas faço isso confiante de
que esses movimentos não deixem de dar ao estado as responsabilidades que lhe são inerentes. O
estado não pode se dar ao luxo de dar satisfação para uma ONG. Elas não têm a legitimidade que
o estado tem. Eu tive experiências muito ruins com as ONGs na Eco 92. Mas o movimento de
vocês eu respeito, tem caráter religioso e eu aprendi a respeitar os evangélicos na campanha
política. Foi quando eu tive a idéia de terceirizar a ação social do estado para as instituições
religiosas. O governo não tem como competir com o voluntariado das igrejas, tem? — concluiu
Marcello Alencar, indiretamente dizendo por que ele havia entregado toda a Secretaria de
Bem-Estar Social do estado para a Igreja Universal. — Na Fábrica de Esperança você tem algum
serviço para tratar de drogados? — perguntou.
— Não. Lá nós só tratamos preventivamente ou psicologicamente. Mas não internamos
ninguém. Internação não fazemos lá — eu respondi.
A conversa prosseguiu extremamente cordial. Falamos um pouco mais da Fábrica de
Esperança e terminamos conversando sobre um hospital dirigido por umas freiras. Ele estava
impressionado com o que tinha visto lá.
— Aquilo funciona, ouviu, é uma coisa incrível — disse o governador.
Depois de ouvi-lo falar, acreditei que ele estava realmente dizendo coisas de seu coração e
que tudo o que me tinha sido dito antes não passava de um grande mal-entendido.
— Não se esqueça de mim em suas orações — disse-me ele quando nos preparávamos para
sair.
— O senhor nos permitiria orar agora mesmo, governador? — perguntei.
— Claro — consentiu ele.
Então demos as mãos e oramos juntos. Pedi a Deus que abençoasse o estado e que desse ao
governador sabedoria para governar. Pedi por sua vida e saúde. Roguei ao Senhor que ele sempre
tivesse todos os recursos para realizar um bom governo para o povo. Enfim, orei aquilo que se ora
por um governante.
— Caio, você aceitaria ser convidado de vez em quando para vir até aqui conversar um
pouco? Eu sou um homem experiente, mas conselho é sempre bem-vindo. Você viria aqui de vez
em quando? — perguntou-me Marcello Alencar para minha total surpresa quando nós já
estávamos na ante-sala de seu gabinete.
— Se o senhor achar que eu tenho qualquer coisa útil para lhe oferecer, por favor, não hesite
em me chamar. Eu estarei sempre às ordens — falei e me retirei.
— Rapaz, essa conversa foi maravilhosa, Caio. Eu nunca tinha visto o governador tão
tranqüilo quanto hoje — disse Veloso.
— Tomara que sim. Espero que esteja tudo resolvido — eu disse quase com um suspiro de
alívio.
No dia seguinte, minha visita ao governador tinha virado notícia exatamente pelo lado
contrário à minha intenção ao ir ao seu encontro: — Pastor Caio Fábio faz prece pela multidão
que foi protestar contra Marcello, dizia a chamada da matéria de um dos principais jornais do Rio.
Fiquei preocupado e tratei de me certificar se aquilo não tinha modificado os humores do
governador.
— Fica tranqüilo. Tá tudo bem — disse-me o pastor Veloso dias depois.
Por alguma razão, entretanto, tudo o que eu não conseguia era ficar tranqüilo. Alguma coisa
daquela “profecia” do início do ano voltou a me garantir que aquele seria ainda o ano das grandes
tentações e das grandes tribulações.
Capítulo 58

“Se fazem réus dos mesmos crimes os que com o pensamento e a palavra se
enfurecem contra Ti, dando coices contra o aguilhão, ou quando, quebrados os
freios da sociedade humana, alegram-se, audazes, com as facções ou sedições, de
acordo com suas simpatias ou antipatias. E tudo isso se faz quando és abandonado,
fonte da vida, único e verdadeiro criador e senhor do universo, e com orgulho
egoísta, ama-se uma parte do todo como se fosse o todo.”

Santo Agostinho, Confissões

Até junho de 1995, meus conflitos com o bispo Edir Macedo eram claros e perceptíveis,
mas jamais tínhamos nos enfrentado. A mecânica dos nossos desencontros era alimentada pela
maneira como eles apareciam perante a sociedade, as cobranças que nos eram feitas em razão
disso, as freqüentes misturas de imagem (Vocês são crentes do tipo “Macedo”?), as posturas de
arrogância deles em relação aos evangélicos quando estavam por cima e as tentativas de se
esconderem atrás da bandeira dos outros evangélicos quando estavam mal. Estas eram as
questões sobre as quais eu respondia, dizendo que eles eram eles, e nós éramos nós.
Como resultado, às vezes dava entrevistas que os desagradavam, e eles partiam para o ataque
não no plano das idéias, mas sempre baixando o nível. De janeiro de 1995 em diante, começaram
a aparecer cartoons com caricaturas minhas na Folha Universal, bem como alguns artigos
atacando-me e alcunhando-me de Balaão Evangélico. Para quem não sabe, Balaão foi um bruxo
da Mesopotâmia que recebeu dinheiro para amaldiçoar o povo de Deus. Macedo começou a dizer
desde uma reunião no hotel Caesar Park, no final do ano anterior, que eu era como Balaão: um
infiltrado dos jesuítas católicos no meio evangélico, a fim de desmoralizar gente como ele.
Tudo piorou com o anúncio da estréia da telenovela Decadência.
O escritor Dias Gomes possivelmente nunca imaginou que fosse entrar para a história da
Igreja Evangélica Brasileira. O personagem do pastor Mariel, interpretado por Edson Celulari na
novela, apresentava um rapaz pobre, complicado e extremamente confuso, porém dono de um
grande carisma e de uma fantástica presença, que teve um encontro com a luz. O problema é que
a conversão de Mariel tirou-o do estado anterior e projetou-o num mundo de ambições,
manipulações e mercantilismo da fé. Tendo começado de modo simples, logo ele percebeu que a
fé é o mais caro e o mais vendável de todos os produtos, pois é dentro de seu embrulho que se
pode encontrar um milagre.
Fé produz milagre. Para quem vende, é ótimo. Não custa quase nada para produzir e é
facílimo de vender. Se não funciona, a culpa é sempre do comprador, que não soube ligar o
produto, tendo lhe faltado a energia: a fé. Se o fabricante precisa subir o preço, é só pedir mais
pelo produto. Ele pode valer tudo, pois a demanda é ditada pela necessidade do coração, e este
não mede sacrifícios para encontrar coisas que o introduzam à possibilidade do amor, da alegria,
da prosperidade, da saúde ou do fim de alguma crise que lhe tire o sono, roube-lhe uma paixão ou
o afaste de um sonho obsessivo.
A fé, todavia, abre portas para tudo isto. E quem não dá tudo o que tem para comprar tais
tesouros? Num país como o Brasil, e muitos outros do chamado Terceiro Mundo, especialmente,
a oferta da fé, como coisa a ser comprada, tem um apelo extraordinário. Muito mais eficiente do
que para os revolucionários marxistas do passado, quanto mais miséria, pobreza, crise, angústia e
medo, melhor — mas muito melhor mesmo. Isto porque se paga pela fé exatamente o preço que o
desejo de se livrar da dor impõe. Em tempos de calamidade, dá-se o que se tem por um recurso
que move montanhas, seca rios, pára o sol, faz pão cair do céu e cura toda enfermidade. E nesse
sentido, o Brasil tem sido um paraíso nos últimos trinta anos.
O pastor Mariel, de Dias Gomes, foi um iluminado espertalhão. Religioso e velhaco, ele
combinou carisma e tortuosidade de caráter a fim de criar uma religião quase evangélica, porém
marcada por uma teologia de aparência pentecostal, ainda que cheia de conteúdos de natureza
pagã extremamente perversa. Para Mariel, a vontade de Cristo se confundia com a sua própria
vontade, e a Bíblia era apenas um livro que ele usava ao seu bel-prazer, ainda que seus conteúdos
não fossem jamais objeto de reflexão ou apreciação. Mariel tinha sido feito para aquela hora, e a
hora fora criada para Mariel.
Com o anúncio na mídia de que a Rede Globo lançaria uma novela que seria uma
caracterização de Edir Macedo e sua igreja, a Universal iniciou imediatamente uma ação no
sentido de estabelecer um enfrentamento. O problema é que assim fazendo eles vestiram a
carapuça. Quando espernearam, o Brasil inteiro disse: “Serviu.” Ao perceberem o erro de
marketing que haviam cometido, mudaram brilhantemente a estratégia.
— Esta novela é uma agressão a toda a Igreja Evangélica. Temos que nos unir e lutar contra a
Globo porque esse é o início da perseguição contra o povo de Deus — disseram eles no programa
25ª Hora e em suas mídias, especialmente o rádio.
Eu já havia me posicionado contra a inclusão dos pastores evangélicos no estereótipo do tal
pastor Mariel, de Decadência. Que há muitos Mariéis disfarçados de pastores, não há dúvida.
Somente um ser muito estúpido ou radicalmente fanatizado poderia ter a coragem de negar esse
fato. Entretanto, os Mariéis estão longe de ser maioria. Ao contrário, aqueles que vivem com
dignidade e honram o evangelho mediante uma vida limpa e sóbria são tantos, que seria ridículo
pretender que a figura do pastor de Decadência pudesse caber como definição de um típico
pastor evangélico.
A virada na ênfase de que Decadência fosse um ataque à liderança da Universal, mas, ao
contrário, revelasse uma tentativa de desmoralização de todas as igrejas e todos os pastores
evangélicos do Brasil por parte da Globo, foi brilhante e rápida. Assim agindo, a Universal fez
com que a maioria dos pastores que fazem o gênero Mariel procurassem imediatamente abrigo à
sombra dos bispos de Edir Macedo ou de sua Rede Record de televisão. E mais que isto: muitos
outros pastores, que não tinham nenhuma identificação com as práticas da Universal, foram para
lá, atraídos pelo medo da falada “perseguição contra os pastores”.
A mania de perseguição que existe entre os evangélicos é o fenômeno mais forte a unir o
grupo todo. Durante todos esses anos de circulação no meio cristão, verifico, aturdido, que
mesmo a centralidade de Cristo e a referência máxima da Bíblia não têm tanta capacidade de unir
os diferentes no nosso meio quanto uma boa “onda de perseguição”. Quando isso acontece,
mesmo os hereges se unem, e aqueles que se acusam de práticas completamente inaceitáveis
descobrem a necessidade de se protegerem para lutar contra adversários supostamente comuns.
Nesse caso, o pensamento é que o pior herege é ainda melhor do que o mais verdadeiro dos
homens que não esteja do lado de cá do muro. E tudo o que se diga sobre nós e contra nós só pode
ser dito por nós mesmos e dentro de nossas paredes; do contrário, nos unimos contra a suposta
perseguição, mesmo que na verdade saibamos que merecemos ser tratados com tal atitude.
“Roupa suja se lava em casa” não está escrito na Bíblia, mas é, sem dúvida, o mais obedecido
de todos os mandamentos evangélicos.
O problema era que, mesmo os mais surtados pela fobia persecutória, tinham ainda imensa
dificuldade de ficar ao lado da Universal. O que eles esperavam era que eu me levantasse e
pegasse a bandeira da luta contra a mídia, a Globo e as elites intelectuais e formadores de opinião
do país. Entretanto, mesmo não tendo nenhum temor de assim ter de proceder um dia, não me
via em condições de fazê-lo naquele momento por três razões: a primeira, era que eu sabia que
aquele estereótipo encontrava muitos representantes legítimos em nosso meio; a segunda, era que
eu tinha consciência de que para os líderes da Universal aquela defesa da fé não era nada além de
uma estratégia de marketing e que, da parte deles, não haveria nenhum compromisso com os
demais evangélicos uma vez que tudo passasse e eles se sentissem fortalecidos; e a terceira e
última razão tinha a ver com o fato de que, mesmo que a tal caricatura pastoral criada por Dias
Gomes fosse verdadeira no todo de sua descrição — e não o era nem de longe —, eu jamais
acharia que a melhor maneira de enfrentar a situação fosse mediante a declaração de uma guerra
contra a mídia. O silêncio e a indiferença, nesse caso, teriam poderes muito maiores no confronto
de tais ataques.
Quando comecei a dizer que não me via incluído no personagem dom Mariel, a Universal
percebeu que aquilo enfraqueceria a campanha deles quanto a serem a cara pública dos
evangélicos. Afinal, eles tinham sua própria mídia na mão e não havia a menor razão para que eles
não falassem pelos demais evangélicos.
No dia em que a minissérie estreou, a Igreja Evangélica se dividiu profundamente no Brasil.
Os Mariéis e aqueles que sofriam de fobia persecutória ficaram com os bispos de Macedo. Os
que desejavam uma diferenciação radical daquele estereótipo perceberam que, mesmo não
gostando de ver aquele assunto tratado em rede nacional de televisão, ainda assim, era melhor
ficar do lado que eu representava no conflito. Ou seja: as posições de natureza ética apregoadas
pela Associação Evangélica Brasileira.
No entanto, naquele momento as frentes de combate e as motivações para o enfrentamento
eram muitas e diferentes. A Globo trazia o assunto ao palco da mídia por verificar o crescimento
estrondoso da Universal e do império de comunicação das Organizações Macedo. Por seu turno,
Macedo enfrentava a Globo por se julgar forte o suficiente para fazê-lo, sobretudo no papel de
injustiçado, o que lhe renderia, sem dúvida, bons pontos de audiência. A grande mídia, por seu
lado, divulgava o assunto com prioridade por ser preconceituosa e, ao mesmo tempo, por ter
ainda, mesmo que de modo ateu, uma alma com memória católica. E a Veja, nitidamente
comprometida com a Universal naquele episódio, assumiu o papel da revista isenta, a fim de
bater na Globo, inimiga dos Civitta, donos do Grupo Abril, pois, na percepção deles, quem quer
que ajude a diminuir o poderio da Globo está trabalhando ao lado das intenções igualmente
hegemônicas e expansionistas que eles nutrem no coração e em suas ações. E quem não as tem?
Já do lado de dentro da igreja, as razões para a defesa ou o ataque encontravam motivações
diferentes. Muitos dos que aderiram à Universal naquele momento o fizeram pelo medo da
perseguição. Alguns outros líderes que a eles se aliaram o fizeram, entretanto, por outras formas
de interesse ou obrigação. Os tais interesses iam desde uma participação societária numa das
televisões da Universal, como era o caso do pastor Fanini; no canal 13, Rio, até o desejo de poder
também manter a cota de 20% da conta de Macedo na compra de horário na CNT-Rio, no valor
de aproximadamente duzentos mil reais mensais, à época, como diziam ser o caso do pastor Silas
Malafaia.
Os demais defensores eram caracterizados por três motivações básicas: uns eram pastores do
bispo e tinham mesmo a obrigação de entrar na luta pela sobrevivência ou pela conquista de mais
poder interno; outros eram pastores candidatos a cargos políticos, que viam na Universal e na
chance de estarem na televisão uma excelente estratégia de autopromoção e de conquista de
votos, como era o caso dos pastores Glaico e Ciro Terra Pinto, pai e filho, que tinham postulações
políticas nas eleições em Belo Horizonte. Os últimos eram ilustres desconhecidos entre os
evangélicos, em busca de alguma notoriedade, como um certo João Campos, cujo único grau de
familiaridade nacional com a Igreja Evangélica vinha-lhe por carregar o nome de um outro João
Campos, de Recife, esse sim, conhecido em quase todo o país.
Meia hora de luzes de estúdio e o encantamento de lentes de câmeras de televisão têm mais
poder de sedução no meio evangélico que mulher pelada ou que o próprio diabo.
O único que, a meu ver, estava lá não apenas por causa de interesses de natureza política ou
comercial era o pastor Silas Malafaia. Segundo soube, o negócio publicitário no agenciamento da
CNT era uma de suas motivações, mas não a única. Ele estava lá também porque é uma pessoa de
temperamento colérico, e com seu temperamento colérico, dificilmente perderia a oportunidade
de se apresentar ao país como grande defensor da fé. No caso dele, entretanto, tal defesa tem
aspectos genuínos. Ele é fervoroso em suas convicções e lutaria até mesmo contra Macedo se seus
princípios o induzissem a isso. O problema é que, apesar de jovem, o pastor Silas possui uma
mente sempre disposta à defesa corporativista e ao sentimento sindicalista e dinossauriano de
proteção da categoria. Este livro, certamente, lhe provocará intenso desejo de partir para o ataque
outra vez, e o argumento será corporativista: roupa suja se lava em casa.
A análise que aqui faço da presença de tais pessoas ao lado de Macedo naquele episódio não é
especulação minha, pois conversei com várias delas antes de que suas posições fossem definidas.
O conflito começou entre a Rede Globo e a Rede Record, mas acabou se concentrando num
enfrentamento pessoal entre Macedo, supostamente o defensor dos evangélicos perseguidos, e
Caio Fábio, o amigo da mídia e sócio de Dr. Roberto Marinho, conforme a versão que eles
divulgavam.
— Ele é consultor informal da Rede Globo. Não sou eu quem tá falando não. É ele mesmo.
Tá aqui nesse jornalzinho da Vinde. Ó, Ó. Tá vendo — dizia Malafaia, agitadíssimo, na telinha da
Record, enquanto sacudia diante das câmeras o Vinde Informa. — Amigos, eu conheço o homem.
Ele é íntegro e sério, mas tá aqui. O órgão de informação dele mesmo é que diz isso. Que pena! —
falava Silas repetidamente, fazendo alusão ao fato de que em 1994 e 1995 a Globo, bem como a
maioria dos outros meios de comunicação, quase sempre me procurava antes de lançar ao grande
público coisas sobre os evangélicos.
— A gente tá só querendo saber com o senhor se as coisas são assim mesmo — indagavam os
repórteres.
E muitas vezes eu disse que eles estavam completamente equivocados em suas intenções, o
que fez com que não raramente seus trabalhos jornalísticos fossem substancialmente alterados
após a consulta. Fiz isto, muitas vezes, até mesmo a favor da Universal.
Minhas motivações naquela batalha não tinham a ver com nenhuma das razões mencionadas
até aqui. Não tinha e não tenho nada pessoal contra o bispo Macedo, não ganho nada de nenhum
de seus inimigos, não sou candidato a nada e não me vejo na obrigação de defender os evangélicos
apenas por uma questão de fidelidade a uma ética corporativista, mafiosa. Além disso, não tenho e
nunca tive nenhum vínculo societário ou empregatício com nenhum grupo de comunicação. E os
que possa ter tido foram todos definidos por prestação de serviço deles para comigo, na compra
de horário.
Para mim, aqueles dias foram o inferno. Não fora para aquilo que eu me tornara cristão. Em
meio a tudo, às vezes eu me lembrava dos tempos em Manaus, das vigílias de oração, das reuniões
nas escolas e faculdades, onde dava pura e simplesmente o testemunho de minha fé e amor, e me
perguntava: “O que me trouxe até aqui?” Também me vinha ao coração a convicção de que não
estava fazendo nada que tivesse a ver com as coisas pelas quais vale a pena viver e morrer. Aquela
briga era necessária, talvez; mas era perversa, com certeza. Era preciso esclarecer ao Brasil que
Macedo e sua igreja tinham e têm o direito de existir, mas eles precisavam assumir que suas
práticas eram suas, e não podiam tentar fazer a nação crer que todos nós fazíamos as mesmas
coisas. Na minha mente, não havia como evitar fazer tais esclarecimentos. Por outro lado, estava
com raiva de precisar assumir aquele papel ingrato. Entretanto, naquele contexto, não havia mais
nada que eu pudesse fazer para evitar aquele confronto, a menos que um outro assumisse o meu
lugar.
Durante e depois da novela, as notícias sobre “a briga entre o bispo Macedo e o pastor Caio”
passaram a ser diárias. Meu sossego acabou completamente. As matérias saíram das páginas de
miolo dos jornais e começaram a ser chamadas na primeira página. Eram repórteres todos os
dias, e o telefone não parava de tocar um só momento. A mídia internacional também nos achou.
A história corria o mundo. Era a BBC de Londres, a TV Alemã, os canais da América Latina e de
Portugal. Eu tinha a sensação de que estava sendo esmagado por um rolo compressor, e não havia
nada que eu pudesse fazer para evitar aquele atropelamento.
Aquela foi a primeira vez que pude realmente sentir a força avassaladora da mídia, pois mais
do que com fatos importantes, estávamos lidando com a construção de um espírito coletivo. E o
processo de sua formação era o seguinte: os repórteres vinham e tiravam de mim tudo o que eu
pensava sobre as ações dos líderes da Universal. Então publicavam. No dia seguinte, era a vez
deles reagirem. Também era publicado. E assim íamos, andando não sobre fatos que
espontaneamente brotassem do chão, mas sobre a pavimentação de uma idéia, de um espírito, de
uma entidade quase autônoma, que se alimentava de nossas energias mentais.
Aquilo não afetou apenas a mim, mas a eles também. Nos cultos da Universal, o clima de
guerra cresceu para níveis quase islâmico-xiitas. Era ódio para todo lado. Repórteres foram
ameaçados, o Dr. Roberto Marinho teve sua morte “decretada” no programa 25ª Hora para no
máximo até o fim de 1996, e eu fui declarado como sendo “o Golias que seria derrubado” pelas
pedras deles. E mais do que isso: disseram-me que eu tinha um Exu na boca e que a maldição
divina estava sobre a minha cabeça.
— Quem é o reverendo Caio Fábio? — perguntou uma amiga que ligou para o templo
central da Universal no Brás, em São Paulo, fazendo de conta que não me conhecia.
— Esse é o Golias que a gente vai derrubar. Ele é aquele que casa homossexuais e que é
nosso inimigo. Nós vamos derrubá-lo — disse a pessoa do outro lado da linha.
— Pastor Caio, estou chocado. Nunca vi nada igual. Eles vão enlouquecer. Há brilho de ódio
nos olhos deles — disse-me João Bezerra, que trabalha comigo desde 1984 e que fora a uma
Igreja Universal ver como o clima estava. — Eles pediram dinheiro 45 minutos. Depois,
começaram a pedir provas de fé. O pastor perguntou quem tinha coragem de levar uma garrafada
na cabeça até o sangue jorrar. Insistiu. Ele dizia que queria ver sangue no chão. Ninguém foi. Até
que veio um rapaz e ofereceu a cabeça para levar uma garrafada por amor a Cristo. Já pensou?
Mas o pastor não deu. Então disse: “Você só está oferecendo a cabeça porque já conhece o
esquema. Volta pro teu lugar.” E continuou: “Se você quer qualquer coisa de Deus, tem que ser
louco. Tem que oferecer a cabeça para levar a garrafada.” Foi aí que ele começou a pedir para as
pessoas fazerem loucuras, darem o que não tinham e oferecerem todos os bens que possuíam.
Ele limpou até a moedinha de uma velhinha. Levou vale-transporte, ticket refeição e o dinheiro do
ônibus. Não deixou nada. Limpou tudo. Aí, então, ele percebeu que eu estava chocado. Acho que
foi por causa da minha cara de angústia. O homem então começou a ameaçar colocar câncer na
garganta de quem estivesse olhando para ele com ar de incredulidade. Disse também que quem
assistir à Globo vai ficar com AIDS, câncer e outras maldições. Era muito ódio. Nunca vi nada
igual — falou João, sem conseguir nem parar para respirar de tão agitado que estava.
A pressão vinha de todos os lados. Eram líderes ligados à AEVB que queriam uma tomada de
posição. Eram outros que queriam que silenciássemos. E havia também os que exigiam um
esclarecimento público e final sobre as razões de nós sermos tão contrários às práticas e posturas
da IURD.
— Só se fizermos um manifesto e o divulgarmos em nome da AEVB, botando um ponto final
nesse bate-boca — disse para várias pessoas.
A idéia do documento prevaleceu. Assim, nos reunimos da noite para o dia e elaboramos o
texto. A idéia era afirmar o direito constitucional da Universal existir do modo que bem
entendesse, dentro das fronteiras da legalidade, mas mostrar as imensas diferenças de natureza
ética, doutrinária, prática e de conteúdos que nos separavam. Por isto, solicitaríamos que eles
falassem em seu próprio nome e parassem com aquela estratégia de se esconderem atrás dos
evangélicos sempre que aprontavam e não queriam ficar para pagar a conta sozinhos.
O texto foi aprovado, e cerca de cento e dez líderes de expressão o subscreveram em menos
de 24 horas. A legitimidade do documento estava garantida do ponto de vista da AEVB, visto que
nós mesmos não ousávamos falar em nome de todos os evangélicos, pois nossa associação não
representava mais do que 45% do total. Entretanto, mesmo sem representatividade absoluta,
ainda assim, refletíamos o pensamento da maioria esmagadora e silenciosa, possuída de um
pudor religioso extremamente covarde.
Na véspera de entregar o documento, recebi um telefonema de um conhecido líder
evangélico de São Paulo.
— Alô, pastor Caio? Olha, irmão, eu estou implorando para você não apresentar o manifesto
amanhã. Eles são tudo o que você está dizendo e muito mais. Eu vivo com eles e sei que tem gente
ali que é capaz de tudo. Eles não têm escrúpulos. Sabe aquele negócio do dom Mariel botar uma
mulher para seduzir o empresário? Eles são capazes de criar uma situação para envolver você
com alguém. Não corra o risco. Você é a nossa liderança legítima. Eles são artificiais. Mas olha,
irmão, se você entregar o documento, eu vou ter que ficar com eles por razões comerciais. Eu não
posso perder meu programa na Record.
— Obrigado pelo telefonema e pelo incentivo que você está me dando para convocar a
imprensa amanhã e entregar o nosso manifesto. Se eu ainda tinha dúvidas, você acabou de me
tirá-las agora — falei com profunda dor no coração, enquanto caminhava do restaurante 14 Bis no
aeroporto Santos Dumont e ia ao estacionamento pegar o meu carro.
Durante o resto do dia que antecedeu a coletiva à imprensa recebi inúmeros telefonemas. A
maioria deles, entretanto, era de gente preocupada se eu iria me queimar.
— Olha, está tudo certo. Mas eles são poderosos. As armas deles não são idéias. Eles jogam
pesado. Vão destruir você. Será que vale a pena o sacrifício? — foi a pergunta que ouvi naquele
fim de tarde de vários pastores de todo o Brasil.
Ouvindo aquele desfile de declarações que revelavam apenas um profundo instinto de
sobrevivência por parte dos pastores que me telefonavam, percebi como o nosso país, e nele a
própria igreja, está dramaticamente destituído de princípios que, eventualmente, nos conduzam
ao espírito de sacrifício, entrega, idealismo e até de martírio. A fé chegara até nós porque muita
gente de fibra tinha tido a coragem de brigar contra coisas e pessoas maiores e mais fortes. Agora,
entretanto, esse espírito de compromisso was gone with the winds. Eu, contudo, aprendera com
papai e com a Bíblia que, por princípios, fica-se e luta-se contra os adversários, mesmo que eles
sejam até mais fortes do que você.
— Olha, eu vou. Não tenho medo de combate desde que tenha certeza de que a verdade está
do meu lado. Se eu morasse lá em Israel nos dias de Davi, quando ele lutou contra o gigante
Golias, não teria sido tão fácil para Davi como foi. Eu e ele iríamos disputar no “palitinho” o
privilégio de ir enfrentar o gigante. Se vocês me disserem que eu estou errado, eu não vou. Mas se
tudo o que vocês tiverem para me dizer for esse blablablá de sobrevivência e de não se queimar,
me perdoem: eu vou morrer algum dia e prefiro que seja por uma boa causa do que por uma que
não exalte a verdadeira fé — declarei para muita gente naquele dia.
A coletiva à imprensa aconteceu e a maior parte da mídia do país estava lá naquela tarde de
inverno de 1995.
— O senhor não tem medo de estar lutando contra gente muito mais forte que o senhor?
Eles têm poder para infernizar sua vida se quiserem. O senhor está com medo? — indagou o
repórter do jornal da Bandeirantes.
Respondi que não e fui para casa aliviado. Agora, o Brasil todo, e não somente o Rio de
Janeiro, saberia que a posição dos evangélicos não era a de Macedo.
Triste ilusão a minha. Vendo que não poderiam nos enfrentar à altura da cabeça, partiram
para o golpe baixo. Começaram os ataques cada vez mais pessoais contra a minha pessoa. O que
me espantava era a incapacidade que tinham de responder numa boa, sem partir para a
ignorância. Além disso, alguns fanáticos de lá começaram a me fazer ameaças por telefone.
— Nós vamos te pegar, seu desgraçado — dizia um aviso.
— Quem avisa amigo é. Diz pra ele que a gente ainda vai destruí-lo — falou um outro.
— Ou ele se cala ou a gente cala ele — ouvimos ainda.
Diante de tudo aquilo, minha esposa perdeu completamente a paz. A situação ficou tão grave,
que num daqueles dias ela me disse, em meio a muita angústia, que desejava apressar sua
temporada com nossos filhos mais novos fora do Brasil.
— Olha, Caio. Eu sou fiel a você até a morte, mas não quero viver assim.
— Por que a gente não passa um tempo nos Estados Unidos? Você fica lá direto, se restaura,
enquanto eu posso ficar lá e aqui: sete dias lá e 12 aqui no Brasil. O que você acha? — sugeri. Alda
aceitou.
Uma semana depois do Manifesto da AEVB, veio a carta aberta da Universal. Dizem os
entendidos que a tal carta teria sido redigida pelo pastor Silas Malafaia e autenticada pelos bispos
de Macedo. Não posso afirmar, mas foi o que correu pelo meio evangélico, ainda que isto não seja
importante para o desfecho dos fatos. Eu estava em Foz do Iguaçu, no congresso Vinde para
pastores, quando Fernando Molica, então repórter da Folha de São Paulo, me telefonou
perguntando o que eu tinha a declarar.
— Eu não sei do que você está falando — afirmei com ar de perplexidade.
— Bem, há uma carta assinada pelos principais líderes da Universal e alguns pastores do Rio
e de Minas Gerais. A surpresa é o nome do Fanini. O que deu nele? Ele é batista e assinou o
documento. O que o senhor tem a dizer? Pedi tempo para ler a tal carta aberta e então dar uma
resposta. Mal acabei de falar com Molica e já havia várias cópias da carta chegando ao fax do hotel.
Além disso, amigos de todo o Brasil começaram a telefonar empenhando solidariedade.
Li o texto e fiquei sem saber o que sentir. Primeiro deu raiva. Afinal, nós havíamos sempre
tratado o assunto no nível da reflexão, e eles o haviam trazido para um plano absolutamente
pessoal. Mas depois que li o texto pela segunda vez, me deu vontade de rir. O material era tão
pobre e sem construção de idéias, tão simplista nos seus argumentos e, ao mesmo tempo, tão
cheio de tolices, que achei que eles todos, os que assinaram aquela carta, estavam me fazendo um
favor.
Respondi à mídia com uma “nota” na qual lamentava que as questões levantadas pelo nosso
manifesto continuassem sem resposta — com certeza devido à impossibilidade de negar as
evidências de tudo o que disséramos — e que, ao invés de partirem para o nível das idéias, “eles”
estivessem gastando tanto dinheiro — a matéria era paga — para tentar enlamear o meu nome.
Continuei em Foz e não mudei a rotina de minhas pregações naquela região do Brasil até o
fim de meus compromissos. Na semana seguinte, a situação tinha ganhado outro contorno, do
ponto de vista interno. A diretoria da Associação Evangélica em São Paulo queria tomar medidas
imediatas para afastar o pastor Jabes Alencar, membro da entidade naquele estado, que, por
razões de interesse pessoal, havia decidido assinar a carta da Universal.
— Na minha opinião, como se tratou de um texto dirigido a mim e não à AEVB, não há nada a
ser feito. Não foi ético o que o pastor Jabes fez, mas não foi ilegal do ponto de vista de seu vínculo
para conosco — eu disse mais de uma vez, com medo de que o episódio gerasse um tempo de
caça às bruxas dentro de nosso grupo espalhado por todo o Brasil.
— Mas por que o pastor Fanini também assinou a carta? — era, entretanto, a pergunta que
eu mais ouvia.
Tendo sido eleito para uma função diplomática de representação dos batistas mundiais,
Fanini estava cumprindo uma formalidade da política daquela igreja, que faz rodízios
democráticos, indicando presidentes de continentes diferentes a cada período.
— O que fez o pastor Fanini mudar tanto? Não foi ele quem disse que preferia a Umbanda à
Igreja Universal? — indagou de mim um evangélico que é repórter de um grande jornal.
— Olha, você é repórter, então investigue para ver se descobre o que fez com que ele
mudasse de um extremo para outro tão radicalmente — disse de modo vago, ainda que soubesse
qual era a razão daquela mudança.
Mas como ouvira a verdadeira história de pessoas de “dentro”, o que incluía informações que
o próprio pastor Fanini me passara num almoço que tivera comigo cerca de dois meses antes do
episódio da carta aberta, julguei que não cabia a mim desvendar o mistério, embora as razões
existissem e fossem bem objetivas.
Não sou e nunca fui uma pessoa amargurada. Mas aqueles fatos estavam fazendo mal à minha
alma. Meu coração estava começando a ficar malicioso outra vez, depois de 22 anos. Às vezes, me
apanhava construindo um plano sofisticado para trazer tudo aquilo à luz de modo irrefutável.
Então, me recolhia na solidão de mim mesmo e buscava a Deus em oração.
“Jesus, não foi para isto que a Tua Graça me alcançou um dia. Salva-me da amargura e da
iniqüidade de pensamento. Eu me entrego a Ti, que és o único que conheces a verdade. Vem e
traz Tua luz”, era minha prece constante.
Foi naquele período, mais do que em qualquer outro, que pude perceber a bênção da criação
que tivera, apesar de todos os percalços. Se papai não tivesse me estimulado a ir empinar a minha
pipa longe de casa, sem medo de andar sozinho, e se ele não me tivesse forçado a lutar contra
adversários sempre maiores do que eu, certamente estaria esbagaçado pela força daqueles
acontecimentos.
Ainda que sendo traído por pessoas até então tão próximas a mim, e mesmo tendo de andar
por aquele caminho em profunda solidão, jamais me senti sozinho na estrada. Podia ver onde o
vento estava soprando e para onde a minha pipa estava indo. “Para longe de casa?”, você
perguntaria. É, talvez eu estivesse indo away from home. Mas as vozes do Pai e de papai estavam
sempre comigo. “Caiozinho, pode ir até lá soltar o seu papagaio. Se você sabe onde está saindo e
para onde está indo, então não há perigo. Você sempre vai saber o caminho de volta para casa”,
dizia ele me mostrando the long and winding road, ensinando-me, assim, que não importa por
onde passe a estrada, pois ela sempre leads me to your door, como ensinaram os meninos de
Liverpool. E, no meu caso, the door era Cristo. Sabia que aquele caminho estava me levando para
longe de casa, especialmente se pensasse que a igreja e suas instituições tinham sido minha casa
nas últimas duas décadas. Entretanto, havia em mim a certeza de que aquela estrada me
conduziria cada vez mais para perto de mim mesmo e de meu Deus.
Mas nem tudo foi triste naqueles dias. Houve também coisas com um tom engraçado.
— Ó, pastor Marcos, diz pro reverendo Caio que tem um tal de Mala-qualquer-coisa falando
muito mal dele na TV Record — disse um dos mais temidos prisioneiros de Bangu I.
— Malafaia. Esse é o nome. É um pastor — disse Marcos Batista.
— Pois é. Diz pro reverendo que a gente tá ouvindo esse cara falar mal dele e que tem gente
aqui perdendo a paciência. Se esse cara continuar a falar mal do nosso reverendo, a gente acaba
mandando dar um esfrega nele. O que ele pensa? Que pode falar mal de gente que só faz o bem e
ficar assim mesmo? Num fica assim não, pastor. A gente tá aqui, mas nossos amigos tão lá fora.
Esse cara leva um aperto e não sabe nem por quê. Diz pro reverendo que a gente tá às ordens —
disse o detento.
— Olha aqui. O reverendo Caio é um homem de Deus. Ele é cristão. E um cristão não paga o
mal com o mal. Um cristão paga o mal com o bem. Então, se vocês puderem, orem pelo pastor
Silas Malafaia e assim vocês vão cumprir a lei de Cristo. Eu não vou dizer um negócio desses pro
reverendo Caio de jeito nenhum. Ele iria ficar muito angustiado. E tem mais: ele está triste com o
pastor Silas, mas gosta dele. Orem pelo pastor Silas. Só isso — explicou Marcos Batista numa de
suas últimas visitas a Bangu I.
— Desculpa o mau jeito, pastor. Mas esse é o nosso modo de ser amigo. Aqui com a gente,
amizade é amizade, parceria é parceria, e ninguém trai. Se trair, dança — disse o bandido, muito
mais consciente do valor de certos princípios que alguns de meus companheiros de ministério
cristão.
No dia 12 de outubro, o bispo von Helder, da Igreja Universal, chutou a imagem de Nossa
Senhora de Aparecida, vista pelos católicos como a Padroeira espiritual do Brasil. Foi um
escândalo. Ele agrediu, provocou, chutou e esmurrou a imagem da santa, ao vivo, na televisão.
— Olha essa coisa feia, desgraçada, miserável. Isso aqui num tem poder nenhum — disse ele
em meio a muitas outras coisas.
O país parou, e eu fui outra vez “guindado” para dentro do conflito com a Universal.
— Tá certo chutar a santa? — era a questão que repórteres do Brasil e do exterior me faziam
o dia todo.
— Nós, evangélicos, vemos o culto aos ídolos ou santos como idolatria inaceitável, de acordo
com a Bíblia. Mas entendemos que num país pluralista como o Brasil, ninguém tem o direito de
fazer enfrentamentos físicos e públicos contra objetos de culto, sejam eles quais forem. Portanto,
mesmo condenando a idolatria, temos também que condenar o modo pagão como von Helder
brigou com o ídolo — foi o que respondi inúmeras vezes.
Foram mais duas semanas de confrontos, opiniões e debates. Parecia que o disco não
mudava. Eu já estava cansado e começando a evitar dar entrevistas sobre o assunto.
Capítulo 59

“E conheci por experiência que não é de admirar que o pão seja um tormento para
o paladar do enfermo, embora seja agradável para o paladar do sadio, e que olhos
enfermos considerem odiosa a luz, que para os puros é amável.”

Santo Agostinho, Confissões

No ano de 1995 houve muitos seqüestros no Rio, o que era muito ruim para o governo do
estado, pois o governador Marcello Alencar havia sido eleito com forte apoio da classe média e
com a promessa de reduzir a situação de pânico a níveis de razoabilidade em um ano. No entanto,
o ano correra carregado de confusão e crescente perplexidade na questão da violência. E, para
piorar, vários atos isolados de barbarismo haviam acontecido a pessoas vinculadas à chamada alta
sociedade carioca, fazendo com que um clima de histeria tomasse conta da mídia. A gota d’água
foi o seqüestro de Eduardo Eugênio, filho de um industrial de renome, que acabara de ser eleito
para o cargo de presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.
Os poderosos da sociedade carioca estavam se sentindo extremamente inseguros, o que
poderia deixar o governador numa situação difícil, politicamente falando. E aqui é bom lembrar
que, no Rio, os governantes ganham ou perdem eleições dependendo de como o termômetro da
violência se mostra. E na definição desses níveis, a mídia tem papel preponderante, uma vez que
há a violência real e a violência psicossocial. A primeira, aqueles que nós convencionamos chamar
de bandidos realizam; já a segunda, é basicamente uma produção da mídia, e afeta o inconsciente
da sociedade.
O processo é o seguinte: os órgãos de comunicação constatam a violência real e divulgam-na a
tal ponto, que fazem com que algo de dimensão particular se torne um fenômeno de proporções
coletivas incomparavelmente mais abrangentes do que o fato noticiado. Então, todos comentam o
assunto e um espírito comunitário é criado. E é essa entidade psicossocial que alimenta a
marginalidade potencial que existe no coração humano, a qual resulta tanto de perversões de
natureza intrinsecamente individual quanto de contribuições feitas pela miséria, pelas
desigualdades e pelas injustiças instituídas em microssociedades, onde inúmeros seres humanos
são forçados a existir. E as favelas são o mais trágico exemplo dessa forma de existência.
— Reverendo, o publicitário Roberto Medina está sugerindo que a cidade do Rio pare para
um ato contra tanta violência. O que o senhor acha? — perguntou-me uma repórter.
— Não acredito em atos contra a violência. Acredito em ações contra a violência. Atos desse
tipo só fazem sentido se forem seguidos de ações práticas, tipo: intervenção econômico-social nas
favelas, uma política de geração de renda para áreas empobrecidas e um trabalho de saneamento
moral das polícias, com uma melhor remuneração para os policiais — respondi, já cansando de
dizer a mesma coisa.
— Mas se houver o ato contra a violência, o senhor vai? — perguntou.
Respondi que sim, desde que o propósito do ato não fosse o ato em si.
— Caio, há uma mobilização sendo preparada. Preciso de você nesse negócio. Dá pra você
mobilizar o pessoal do Rio Desarme-se e os evangélicos? — indagou Rubem César.
Reunimo-nos e conversamos sobre a marcha Reage Rio, como o ato começou a ser chamado.
Levei ao Rubem César as impressões de alguns grupos de favela, que achavam que a coisa estava
mais para Reage Rico do que para qualquer outra coisa. Combinamos que a Fábrica de Esperança
e a Casa da Paz puxariam o movimento dos lados Norte e Oeste da cidade, e que eu tentaria
também envolver os evangélicos no processo.
No dia 18 de novembro os jornais noticiaram amplamente o relançamento da campanha Rio
Desarme-se como mais uma contribuição de peso ao Reage Rio.
Naqueles dias, entretanto, aconteceu algo que me deixou muito preocupado. Os jornais
publicaram um cartaz feito por Caio Ferraz, André Fernandes e Cristina Leonardo, convidando a
população para telefonar para a Fábrica de Esperança ou para a Casa da Paz em casos de
denúncias contra bandidos ou policiais. Gelei quando vi o anúncio estampado nos jornais O Dia e
O Globo.
— André, que negócio é esse? Isso aqui acaba com a gente. Já pensou na situação em que
esse anúncio nos colocou? A polícia nos verá como “aliados do tráfico”, e os traficantes nos verão
como X-9 da polícia. Assim não dá, André. A Cristina Leonardo pode fazer isso porque ela não
está aqui, em Acari. Nós estamos aqui, completamente vulneráveis aos dois lados da guerra.
Nunca mais deixe essas coisas que têm o nome da Fábrica saírem sem minha ordem escrita —
disse a André Fernandes, assessor comunitário da Fábrica, já percebendo o risco gratuito no qual
estávamos sendo colocados. No dia seguinte, esclareci o assunto nos jornais, mas fiquei com a
desconfiança de que o estrago já estava feito.
O assunto “Universal” ficou esquecido por um tempo, e a mídia passou a me procurar apenas
pela temática do Reage Rio. Enquanto isso, as reuniões de organização da caminhada
continuavam seu curso, com adesões de todos os tipos e engrossando aquele que se queria que
fosse um ato tão cheio de significado, que pusesse nas mãos da população da cidade do Rio de
Janeiro um capital cidadão grande o suficiente para permitir que fosse solicitado ao governo
federal investimentos na cidade na ordem de um bilhão de dólares. Para isto, esperava-se que um
milhão de pessoas viessem às ruas.
A idéia era de Betinho: Um milhão por um bilhão. Esse era o desafio que o Viva Rio,
organizador do ato, tinha pela frente. E a julgar pelo número de adesões e pelo apoio da mídia,
aquele seria um evento pleno de sucesso. De minha parte, estava disposto a contribuir.
Entretanto, nem de longe eu era um dos maiores incentivadores do ato. Achava que todas as
ações de cidadania eram bem-vindas, mas precisávamos de mais objetividade. Mas fosse qual
fosse o resultado da marcha, comecei a perceber que a mobilização em si carregava um objetivo
bem prático: aproximar segmentos da cidade até então completamente distantes. E se alcançasse
apenas aquele resultado, já julgava que o evento teria valido a pena.
No entanto, o governador entendeu que aquele ato era algo que acontecia contra os poderes
constituídos ou com a intenção de enfraquecer as forças institucionais para que alguém se
beneficiasse politicamente com o resultado do evento. Assim, daquele momento em diante, nosso
evento saiu de seu fluxo de ação cidadã e passou a ser tratado pelas autoridades como uma
mobilização subversiva e marginal. Todavia, considerando os que se sentam à mesa da
coordenação do Viva Rio, aquele julgamento dos objetivos do evento eram hilários. Desde quando
os que ali estavam tinham jamais participado de ações contra governos instituídos? Com exceção
de uns dois ou três que militavam na esquerda, e de outros dois que haviam sido mais afoitos long
ago, os demais eram apenas empresários e executivos cansados de se sentirem impotentes em
relação à única dimensão da vida social sobre a qual eles não tinham muito como se proteger: o
enlouquecimento de seres humanos tomados por imensa desesperança e animados por profundo
ódio.
Somente o desespero político do governador Marcello Alencar, incentivado pela angústia
militar do secretário de Segurança, general Nilton Cerqueira, poderia ter visto nos membros do
Viva Rio algum tipo de potencial subversivo. Mas de qualquer forma, foi assim que alguns de nós
fomos tratados, especialmente aqueles que estavam mais próximos da população. E neste
aspecto, creio que mais do que qualquer outra pessoa ali eu me tornara o mais vulnerável de
todos: pastor evangélico, agente social em zona de guerra, capelão de presos perigosos, Don
Quixote de favelas, proponente de desarmamento, comunicador de TV e rádio, recebendo muita
atenção da mídia e capaz de se expressar de modo razoavelmente articulado e carismático — eu
era a figura ideal para ser o nervo pelo qual a dor de um ataque se fizesse sentir naqueles dias.
— Gente assim como “o irmão” pode ser a parte mais fraca de um movimento, mas também
pode ser a mais forte. Tudo depende do dia e da hora — disse o pastor Ariovaldo Ramos.
— Tudo depende da Graça de Deus e do momento histórico em que se está vivendo — eu
acrescentaria.
Capítulo 60

“Se Tua justiça desagrada aos maus, muito mais desagradam a víbora e o
caruncho, que criaste convenientes para a parte inferior de Tua criação; como
também os injustos que tanto mais se assemelham ao mau quanto mais diferem de
Ti, assim como outros se assemelham às partes superiores do mundo na medida
em que se assemelham a Ti.”

Santo Agostinho, Confissões

No dia 23 de novembro de 1995, o plano para o meu seqüestro moral foi executado de modo
habilidosíssimo. Eles não capturaram meu corpo, mas conseguiram botar a mão nas únicas
coisas que poderiam significar bem público para mim: minha integridade como cristão e minha
honra como cidadão.
Aquele dia tinha amanhecido como todos os outros naquela semana, uma vez que após a troca
de chumbo no episódio com os líderes da Universal e alguns de seus sócios, a vida parecia ter
voltado ao normal. Fui mais cedo para o aeroporto do Galeão, comi uma deliciosa picanha com
pimenta, ainda me aventurei numa rabada, e aguardei a hora do embarque. Eu tinha de ir até
Caruaru, em Pernambuco, a fim de encerrar o Primeiro Congresso Sertanejo de Evangelização.
O vôo era pingado: Rio, Salvador, Aracaju, Maceió, para só então chegar ao Recife, aí por volta das
18 horas.
— Caio, olha! Tenho notícias ruins. Acharam cocaína na Fábrica de Esperança — me disse
Alda na primeira ligação que entrou no meu celular tão logo liguei o aparelho após o pouso em
Salvador.
— Mas e daí? Naquele lugar, com aquele tráfico de drogas ali do lado, com a polícia
invadindo a favela todos os dias e fazendo o pessoal tentar pular o nosso muro, e com uma área do
tamanho da que temos, como seria possível garantir que isso jamais aconteceria? — perguntei a
ela como quem questiona o óbvio.
— O problema é que a mídia tá toda lá. Parece que querem fazer um escândalo — respondeu
ela.
— Chamem o Ariovaldo Ramos, redijam um texto e mandem para os jornais. Amanhã,
quando eu chegar, dou uma coletiva para esclarecer o assunto — disse sem ver por que aquela
situação pudesse ter maiores repercussões.
Para mim, era como alguém dizer que havia achado uma estopa nas proximidades de uma
oficina mecânica ou que nas imediações de um campeonato de surfe haviam encontrado um vidro
com parafina. Afinal, nós não estávamos em Acari para as férias, mas para correr o risco de tentar
ajudar a quem vivia na região da sombra da morte.
— Reverendo, que bom que eu achei você. Já tá sabendo que acharam uma sacola com
papelotes de cocaína na Fábrica? — perguntou Eliane Azevedo, que trabalhava na chefia de
reportagem de O Globo.
— Já sim. A Vinde está soltando uma nota sobre o assunto. Não vejo nada demais nisso —
falei, crendo realmente que aquilo tudo era natural naquelas circunstâncias.
— Mas, olha, a coisa não é tão simples assim. O comandante da operação, tenente-coronel
Marcos Paes, disse que foi lá guiado por uma denúncia feita ao Disque Denúncia e que não achou
apenas a droga, mas também encontrou evidências de que a direção da Fábrica era conivente com
aquilo, pois havia até mesmo um colchão ao lado para o pessoal tomar conta à noite — disse-me
ela com um tom nervoso. Afinal, além de repórter, ela também era minha amiga.
— Olha, tem algo errado aí. Nós vamos investigar. Amanhã eu vejo isso — falei, ainda
tentando diminuir o impacto da situação.
— Reverendo, não dá pra esperar até amanhã. Agora estou falando como repórter e não como
sua amiga. A coisa tá feia e o senhor tem que esclarecer. Além disso, o governador já se
manifestou sobre o assunto. Falta o senhor — falou Eliane.
— E o que foi que ele falou? — perguntei, começando a ficar nervoso.
— Vou lhe dizer, porque o assunto vai estar no jornal de amanhã e ele não pediu segredo. A
questão é que havia um repórter de O Globo ao lado dele quando ele recebeu um telefonema no
celular. O governador estava em Brasília. O repórter disse que ele ouviu, e depois disse: “Que
bom. Quer dizer então que chegou a hora de pipocar esse negócio? Vai cair tudo.” Então, virou
pros outros que estavam com ele e disse: “Acharam droga lá na Fábrica de Esperança. A coisa vai
começar a pipocar”, e aí, reverendo, deu uma gargalhada. O repórter ficou chocado. Ele disse que
esperava que o governador lamentasse. Mas que nada. Ele chamou a imprensa e deu uma
entrevista dizendo que sempre soube que a Fábrica era um paiol de drogas e outras coisas. Como
o senhor vê, a coisa tá feia. Meu Deus, ele é o governador do estado!
— Olha, Eliane, tudo o que eu tenho a dizer é que uma coisa dessas acontecer lá em Acari é
mais que possível, é provável. A gente está numa zona de risco. É como ser ferido em guerra. O
perigo vem com o trabalho, e todo mundo sabe disso. E mais: acontece todos os dias em lugares
diferentes do Rio. Ele só está dando valor a isso por causa do movimento Reage Rio — falei com
muita angústia.
O desassossego de meu coração foi profundo daí para a frente. Meus pés gelaram como todas
as vezes que, na adolescência, tinha uma briga marcada para o dia seguinte. Meu desejo era pegar
o avião de volta ao Rio e partir para o confronto. Fiquei com raiva. Imaginei a irresponsabilidade e
maldade daquelas declarações. No meu coração, fiquei tomado de ira. Minha vontade era não ser
um pastor e nunca ter comprometido a minha vida com os princípios do amor e da não-violência
dos evangelhos.
“Ai, meu Deus. Esse ímpio só tá dizendo isso porque ele sabe que nós não vamos reagir. Eu
Te confesso, Senhor, se eu não fosse cristão, esse cara iria conhecer o poder da língua irada de
um homem que não deve nada a ele. Ajuda-me, Jesus. Eu não quero odiar esse homem. Dá-me a
chance de fazer o que Tu mandaste, quando disseste que devemos amar os inimigos e orar pelos
que nos perseguem. Dá-me forças, Senhor. Eu não quero ser vencido pelo ódio e pela amargura”,
orei insistentemente e em lágrimas durante o resto do vôo até Recife.
Quando cheguei lá, todo mundo já sabia. Algumas redes de televisão haviam mostrado a ação
policial quase ao vivo e a coisa se transformara num assunto de repercussão nacional. Fiquei com
mais raiva ainda. O celular não parava de tocar. Além da imprensa, as rádios e TVs estavam
querendo informações. Nas rádios eu entrava ao vivo. O duro era não perder o controle. Tudo o
que não queria era “ventar” minha ira e baixar o nível. Mas quanto mais entrevistas eu dava pelo
celular, mais “notícias” tinha de tudo e mais indignado ficava.
Fui direto para o hotel tomar um banho e tentar orar um pouco. Tomei o banho, mas não
consegui me concentrar na oração. O mundo inteiro girava na minha cabeça.
— Cristina, você está bem? — perguntei à supervisora geral da Fábrica, que naquele dia, em
razão de minha ausência, tivera de lidar com toda aquela pressão.
— Reverendo, foi o pior dia de toda a minha vida. Tem muita maldade no ar. Eles querem é
fazer mal à gente, não importa como. Eles odeiam a gente e a Fábrica. Volte logo, por favor.
Amanhã a coisa vai ser pior. O governador não pára de fazer declarações cheias de ódio. Parece
coisa do diabo — ela respondeu ainda dentro do carro, às sete e meia da noite, tentando voltar
para seu esposo e filhos naquele dia de angústia e injúria.
O assunto da cocaína na Fábrica estava em todos os telejornais. Mas bastava estar no Jornal
Nacional para já ser um estrago. Assisti às notícias e saí para o lugar do culto.
— Caio, meu irmão. Acho que eu posso te ajudar. Não faz nada sozinho. Nós temos de agir
juntos. O que o governador quer é atingir o Reage Rio. Ele meteu na cabeça que é uma passeata
contra ele. E como você é parte disso e também é o nome por trás da questão do desarmamento,
ele pensa que, usando o episódio da Fábrica, ele vai quebrar com a gente e desmobilizar a marcha
— disse-me Rubem César na hora em que eu ia entrando no auditório superlotado, com mais de
quatro mil pessoas, onde eu iria pregar em trinta minutos.
Agradeci ao Rubem e disse que falaria com ele depois do culto. Só Deus sabe como eu estava
por dentro. Pela misericórdia divina, os cânticos espirituais acalmaram a minha alma e eu tive
paz. Preguei uma mensagem sobre o amor como único motivador legítimo da ação missionária
dos cristãos. “Se você se entregar à vida missionária motivado por qualquer outra coisa que não o
amor, você vai se amargurar. Não há recompensas lógicas para a prática do bem. Não espere que
paguem a você. Por isto, pague a você mesmo com a alegria de servir a Deus e ao próximo por
nada, só pela bênção de poder amar”, disse muito mais para mim do que para a multidão que ali
estava.
Finalizada a reunião, falei com Alda para saber como ela estava; chamei Rubem para ouvi-lo
sobre os desdobramentos dos fatos, e liguei para Cristina pedindo que ela chamasse a mídia toda
para a Fábrica às 11 horas do dia seguinte.
Não dormi a noite toda. No meu coração não havia medo do governador nem de suas
declarações. Eu tinha medo era de mim mesmo. Meu pavor era perder a linha e falar o que não
devia. Marcello Alencar já perdera a compostura de governante e eu não queria perder a postura e
a conduta de um pastor, ainda que tivesse de falar de modo enérgico, se fosse necessário.
Graças a Deus o avião que me levou de volta não tinha os jornais do Rio e de São Paulo, pois
se eu tivesse lido o que o governador havia dito sobre nós, certamente minha reação não teria sido
de tanto controle. Quando botei o pé na esteira da porta automática da saída do aeroporto do
Galeão, um batalhão de flashes espocou sobre mim e uma multidão de microfones cercou meu
rosto.
— O senhor vai processar o governador?
— O governador disse que desde janeiro sabia que a Fábrica era depósito de drogas.
— Ele disse que vai fechar a sua obra social.
Estas eram algumas das muitas perguntas que vinham juntas.
— Olha, o que eu tenho a dizer é que ele está sendo precipitado, leviano e irresponsável. Ele
não pode sair por aí tentando julgar quem ele não recebeu mandato para julgar. Ele é o
governador. Não é investigador, delegado, promotor público, juiz nem Deus. Ele tem que se
acalmar em vez de tentar destruir obras que não conhece — falei com energia, mas,
estranhamente, já sem ódio no meu coração. Eu orara tanto na viagem, que meu coração ficara
livre daqueles sentimentos de hostilidade que haviam habitado em mim desde o pôr-do-sol do dia
anterior.
“Não se ponha o sol sobre a vossa ira e nem deis lugar ao diabo”, era o texto de Paulo que eu
lembrava a mim mesmo nas horas de recaída.
Na viagem do Galeão a Acari, Jorge Antônio Barros, editor-chefe da Revista Vinde, e o pastor
Ariovaldo Ramos atualizaram-me sobre as notícias dos jornais do Rio e de São Paulo e me fizeram
uma avaliação da situação.
— Apesar de chamadas ambíguas ou mesmo ruins, os textos dos jornais estão com a gente.
Tá todo mundo percebendo que há algo pessoal da parte do governador contra o senhor e contra
o Reage Rio. Já as rádios estão todas descaradamente a nosso favor. O povo também. Hoje de
manhã, o Aroldo de Andrade, da Rádio Globo, fez uma pesquisa de opinião a respeito do assunto
e ninguém foi contra nós. Todo mundo desceu a lenha no governador. É um assunto
constrangedor, mas fique calmo que a coisa vai ficar bem — disse-me Jorge Antônio.
O carro parou à porta da Fábrica. Outro grupo de repórteres correu para cima de mim.
Estranhamente, entretanto, minha mente se desconectou completamente de tudo aquilo. Não foi
nada mais longo do que um intervalo de uns vinte a trinta segundos. Para mim, no entanto, foi
uma viagem existencial intensa e de profundo significado psicológico. Olhei a fachada enorme da
Fábrica e fui transportado até a primeira “fábrica de esperança” que eu criara na minha vida, aos
cinco anos de idade, no quintal da vovó, no paraíso, em Manaus. Era aquela casinha de
compensado que papai me dera e que tivera um papel psicológico importantíssimo para mim.
“Meu filho, entre aí. Ame seus filhos...”, era a lembrança da voz de papai, mais viva do que nunca,
que me vinha à mente, apontando-me a porta de entrada da pequena casa.
“Meu Deus, a vida toda eu tenho construído casas simbólicas. Esta aqui é mais uma das casas
que construí. Aqui é mais um lugar mágico, onde eu encontro meus filhos espirituais. Senhor,
ajuda-me a proteger a minha casa, a casa que meu pai me deu”, orei, gritando para dentro de
mim mesmo, enquanto olhava para a fachada da Fábrica. Depois, fiz algumas declarações à
imprensa, mas insisti que só falaria tudo uma hora mais tarde.
Lá em cima, no sexto andar, encontrei Alda, em companhia de Cristina Christiano, Henrique
Calado, Egnaldo Júnior, Ernan e Rubem César. Então nos reunimos para ouvir o que realmente
havia acontecido na tarde do dia anterior.
A versão oficial dizia que, estando em Acari para uma operação de rotina, o tenente-coronel
Marcos Paes, comandante do 9º Batalhão da Polícia Militar, teria recebido um informe do serviço
Disque Denúncia, avisando que dentro da Fábrica haveria o tal “volume”. Assim instruídos, os
PMs teriam tentado entrar na Fábrica, recebendo resistência por parte da vigilância da
propriedade, e só conseguindo fazê-lo após ameaça de enfrentamento. Em lá chegando, os
policiais não só teriam trocado tiros com bandidos escondidos no interior da Fábrica, mas
também teriam achado a droga dentro de uma caldeira abandonada, conforme a dica recebida.
A versão dos funcionários da Fábrica, bem como de Cristina, Henrique e Júnior, todos
trabalhando lá em cargos de minha confiança, era completamente diferente.

1) Os primeiros guardas não entraram pelo portão da frente, mas pulando o muro, pela
lateral, em perseguição a três rapazes que fugiram para dentro da Fábrica.
2) O segundo grupo de policiais não foi “detido” à porta da Fábrica, pois o portão estava
aberto para que Fernando Moça, funcionário da Xerox, pudesse sair. Assim, os guardas entraram
atirando em perseguição aos rapazes, que já haviam pulado para dentro da propriedade.
3) Os vigilantes da Fábrica não tentaram deter ninguém, apenas disseram que iriam
informar à diretoria o que estava acontecendo. Deviam esta informação a um guarda que havia
ficado para trás, enquanto os demais invadiram a propriedade em perseguição aos invasores do
tráfico.
4) Os guardas viram quando um dos rapazes jogou um saco para o lado na correria, foram
até o local e apreenderam o material.
5) Os três rapazes foram então presos e levados dali.
6) Os cerca de 16 guardas que participaram da operação dentro da Fábrica disseram estar
com fome e subiram para o nosso refeitório, onde almoçaram descontraidamente.
7) Cristina desceu do sexto andar, onde fica sua sala, e foi conversar com o comandante
Marcos Paes. Viu, então, que ele estava falando com alguém num telefone celular. “Tem mala”,
dissera ele, fazendo alusão à presença de alguém estranho, no caso Cristina.
8) Marcos Paes foi entrando na Fábrica, já depois da operação, aparentemente sendo
guiado por alguém do outro lado da linha.
9) Ao telefone, o comandante Paes recebeu instruções para “preservar o local”, quando,
então, mandou que retirassem a droga de dentro da Patamo da polícia, que estava estacionada ao
lado da caldeira.
10) Cristina viu quando da mala da caminhonete foi retirada uma sacola preta e levada outra
vez para as proximidades da caldeira, a fim de que houvesse a perícia. Foi quando a supervisora
da Fábrica estranhou que a quantidade de drogas retirada de dentro da Patamo fosse bem maior
do que a que fora anteriormente posta dentro do veículo.

Depois disto, a mídia foi chamada, e o circo foi montado.


Como eu conheço muito bem aqueles que trabalham comigo, não havia de minha parte a
menor dúvida sobre o que eles estavam falando. E, baseado no testemunho deles, não cederia sob
hipótese alguma ante as ameaças de quem quer que fosse quanto a pretender lançar sobre nós
uma suspeição que nós abominávamos.
Logo a seguir, reunimos a imprensa, mas não falei tudo o que já sabíamos. Preferi dizer que
estávamos fazendo três coisas:

1) Criando uma comissão de investigação paralela, formada por uma policial federal, um juiz
e um oficial militar. Razão: como o governador já demonstrara seu ânimo acusatório, perdera
completamente a autoridade para conduzir o processo, de modo que teríamos de nos precaver;
caso contrário, seríamos julgados sem tribunal. O veredicto governamental já estava dado.
2) Contrataríamos uma vigilância independente para cuidar da segurança da Fábrica.
3) Solicitaríamos a presença do Ministério Público acompanhando as investigações policiais,
visto havermos perdido a confiança quanto à idoneidade do processo de investigação.

Depois que eu falei, Rubem César pediu a palavra e abriu o coração. Falou de como aquela
atitude governamental era perversa e disse que ninguém ali tinha nada contra o governador, mas
que ele insistia em nos ver como inimigos.
— Essa cidade é nossa. É de cada um de nós que vive nela. Não vamos nos sujeitar a esse
arbítrio que quer nos tirar o direito de construirmos a sociedade onde vivemos — disse Rubem
batendo no peito, fugindo ao seu estilo quase sempre comedido e pedagógico. E enquanto ele
falava, eu me emocionava.
Em seguida, chegaram flores de Betinho para mim e para a Fábrica. Depois, Caio Ferraz, da
Casa da Paz, pediu a palavra, caiu no choro e anunciou que estava deixando o Rio, pois não
agüentava mais o terror ao qual fora submetido naquele ano, vivendo sob ameaças e a freqüente
sensação de estar sendo seguido. Pediria asilo ao Ministério da Justiça, em Brasília, e depois iria
para Boston, estudar.
Durante todo aquele tempo de entrevista coletiva vi um rapaz branco, de cara redonda e
cabelo liso, escorrido sobre a testa, em pé, encostado a uma coluna.
A imprensa se retirou, mas as declarações ensandecidas do governador não cessaram.
Marcello Alencar atacava de todos os lados, e eu respondia. Algumas declarações do governador
merecem ser aqui transcritas, ainda que resumidamente:

“Não venham me dizer que eles (os traficantes) passaram ali e deixaram a droga em
trânsito. Estavam fazendo daquele lugar um depósito de drogas e os titulares dessa
entidade terão que ser responsabilizados porque consentiram.” — Jornal do Brasil,
25/11/95
“A polícia tem fortes suspeitas de que as crianças são usadas para transportar a
droga.” — Jornal do Brasil, 25/11/95
“Suspeito que aí tem o fio de uma meada que não sei onde vai parar. A Fábrica pode
fechar como instrumento equivocado de assistência. Ou então extinguir a ação daqueles
que comandam um empreendimento que não apresenta as características que anuncia.”
— Tribuna, 25/11/95
“Essa investigação vai nos levar aos enganadores de nossa sociedade.” — Jornal do
Brasil, 25/11/95
“Eles não vão pedir nada (investigação acompanhada pelo Ministério Público), pois o
Ministério Público não vai dar atenção (ao pastor), não vai desmoralizar uma ação do
governo. Eu é que quero saber como eles funcionam, de onde vêm e para onde vai o
dinheiro dessa gente.” — O Globo, 27/11/95, sobre o meu pedido ao MP para que
acompanhasse as investigações. Mas em 28 de novembro, vendo que havíamos sido
atendidos e a fim de não se desmoralizar, Marcello Alencar então solicitou ao Ministério
Público que designasse alguém para acompanhar o caso.
“O que eu quero é a apuração real, verdadeira, sem preconceito. Então, vem esse
cidadão e diz que vai fazer investigação paralela. Ele que faça o que quiser no âmbito de
suas atividades. Isso eu não posso impedir, mas que é ridículo dizer que vai apurar sem ser
através da polícia, isso é. É uma bobagem.” — O Globo, 28/11/95
“O pastor Caio fez uma afirmação ridícula de que vai apurar o caso. Essa função é da
polícia. Onde já se viu desprestigiar a autoridade.” — Jornal do Brasil, 28/11/95
“É hora de confiarmos no poder público e não em aventureiros que aparecem aí sob a
capa da generosidade.” — O Dia, 28/11/95
“Eu não falo de Caios. Os únicos Caios que eu respeito são os da história romana.” —
O Dia, 1º/12/95

Além de tudo isso, o governador chamou a Fábrica de Esperança de Fábrica de


Desesperança e disse que iria fechá-la, pois desde janeiro daquele ano sabia que ali havia
tráfico de drogas.
Respondi às acusações do governador do estado conforme me mandou a consciência
e não me arrependo, até o dia de hoje, de uma única resposta sequer.

“O governador foi leviano, irresponsável e inconseqüente. Isto não é declaração de um


governador de estado.” — 25/11/95, frase repetida em todos os órgãos de imprensa do Rio
e nas redes de televisão a propósito das primeiras declarações de Marcello Alencar sobre
a Fábrica ser depósito do tráfico de drogas e a utilização de criancinhas para aquela
suposta tarefa.
“Não tenho medo de tráfico nem de traficante. Isso aqui foi uma puxada no tapete. Mas
nós vamos reagir.” — O Globo, 25/11/95, sobre se eu não tinha medo de estar acusando
os traficantes de terem nos “puxado para dentro de uma guerra que não era nossa”.
“A Fábrica não é autarquia do estado, não está submissa ao governador. Afinal,
vivemos num país livre, regido por leis, e não numa tirania. Nada pode ser feito pelos
governantes que não seja dentro da lei. É só à lei que eu me submeto.” — O Globo
26/11/95
“O governador está se esquecendo de que é nosso parceiro no projeto da Fábrica,
através do Centro de Defesa da Cidadania, que funciona dentro da área da Fábrica.” —
O Globo, 26/11/95
“É coisa do diabo.” — O Dia, 26/11/ 95, respondendo sobre de onde vinha tanto ódio
de Marcello Alencar contra mim.
“Isso é a coisa mais idiota. Ele que prove minha conivência com o tráfico. O
governador não fala como estadista, mas como pessoa amargurada e raivosa.” — O Dia,
26/11/95
“Será que ele está enciumado porque a Fábrica está dando certo sem a tutela do
estado?” — O Dia, 26/11/95
“A tentativa dele de nos incriminar mostra que ele está mal-intencionado. Eu o desafio
a investigar a minha vida até mesmo com a ajuda da Interpol. Se for investigação limpa,
sem armação, podem fazer até escuta no meu telefone.” — O Dia, 26/11/95
“Se eu acusasse o bispo Macedo, estaria agindo como o governador Marcello Alencar,
que condena antes mesmo de investigar.” — O Dia, 28/11/95, sobre uma possível conexão
entre o ódio de Marcello e as influências da Universal.
“O governador foi tão peremptório em seu julgamento, e já demonstrou que na sua
opinião a direção da Fábrica é culpada, daí a nossa investigação particular.” — Jornal do
Brasil, 28/11/95, sobre o fato de termos criado uma comissão de investigação paralela,
formada pelo ex-delegado de Polícia Federal, Neemias Carvalho, o coronel reformado da
Polícia Militar, José da Costa Santos, e o juiz aposentado José Gonçalo Rodrigues.
“Estamos num país livre, onde a Constituição garante liberdade religiosa. Isso aqui
não é o Irã, onde o soberano tem poderes absolutos.” — O Dia, 30/11/95, sobre o fato de
que, por “ordens superiores”, o presidente do Instituto de Assistência aos Servidores do
Estado, cancelou a programação evangélica que eu realizaria naquele lugar.
“Quando eles falaram de ‘ordens superiores’, certamente não estavam se referindo a
Deus, estavam?” — O Dia, 30/11/95, sobre a mesma questão do cancelamento do culto.
“Poderíamos criar o Muro de Acari, uma versão carioca do Muro de Berlim, onde
soldados do estado armados metralhariam quem tentasse subir. Ou então, poderíamos nos
tornar um CIEP (escola pública do estado), pois bem perto daqui tem um sem cerca, onde
todo mundo entra e ninguém cobra nada do governo sobre quem é que pula lá dentro.” —
Jornal do Brasil, 2/12/95, sobre a tentativa do governador de nos responsabilizar pela
invasão da Fábrica.
“Não posso transformar a Fábrica no Bunker da Esperança. O estado que venha
proteger o nosso muro.” — Jornal do Brasil, 2/12/95
“Estão querendo inverter as responsabilidades. É a mesma coisa que pedir a Eduardo
Eugênio (que havia sido seqüestrado) garantias de que ele não será seqüestrado
novamente.” — Jornal do Brasil, 2/12/95

Para piorar a situação, o prefeito César Maia entrou na briga a favor de seu pior
inimigo político na cidade: o governador.
“Os menores entram para assistir aula e saem levando os papelotes.” — Jornal do
Brasil, 25/11/95
“Esse fato é muito grave e tem que ser apurado rapidamente, e o responsável, se for
comprovada alguma coisa contra ele, tem que ser imediatamente retirado da direção do
Viva Rio.” — Jornal do Brasil, 25/11/95
“Desde a visita do presidente Fernando Henrique que já se sabia. Perguntei ao
Marcello como ele ia levar o presidente lá. Ficou preocupado. A polícia e o governador já
sabiam há algum tempo. Estavam só esperando a hora certa de agir.” — Jornal do Brasil,
25/11/95, fazendo referência à conversa na qual ele, Marcello e dom Eugênio Salles,
arcebispo do Rio, teriam tratado do assunto.
“O quê? Todo mundo em Acari sabe. Até os cachorros, gatos e Aedes aegypts.” —
Jornal do Brasil, 25/11/95, respondendo de onde vinham as informações que ele dizia
possuir.
“O hipotético envolvimento das pessoas ligadas à Fábrica com o tráfico deve ser
investigado e provado. A polícia já sabia de tudo. Havia pessoas infiltradas investigando a
instituição.” — O Dia, 27/11/96

Que o governador me atacasse, eu podia entender. Mas o prefeito não tinha razão para isso.
Para ser franco, os ataques de César Maia me doeram na alma muito mais do que os de Marcello
Alencar, pois eu o respeitava muito mais como administrador público e como político com amplas
condições de se projetar em nível nacional. Tê-lo contra nós, e sem maiores explicações,
deixou-me arrasado. Respondi a algumas de suas “alfinetadas”, mas tentei me distanciar do
confronto com ele. Além do mais, entre aqueles que trabalhavam na equipe do prefeito havia
gente que eu respeitava pela competência e por afinidade.
— Não sei o que deu no prefeito. Estou estranhando a atitude dele. Mas pode ter certeza de
uma coisa: o César é um cara bom. Se ele perceber que está errado, vai mudar de posição. Ele não
é do tipo que guarda ressentimento e não é vingativo. Mas o Marcello é vingativo. Não tenha
muita esperança de se reaproximar dele nunca mais — disse-me um político da cidade com livre
trânsito entre o prefeito e o governador.
Alda estava de viagem marcada para a Flórida para o dia 24 de novembro. Ela iria encontrar
uma casa para que nós pudéssemos dar seqüência ao nosso plano de passar 1996 e 1997 com os
filhos mais novos nos Estados Unidos.
— Desculpa amor, mas não vou de jeito nenhum — disse ela.
— Que nada. O pior já passou. Daqui pra frente é só administrar a situação. Vá em paz. Se
acontecer qualquer coisa diferente, eu aviso a você — eu disse a ela, sabendo, entretanto, que a
estava enganando. O pior ainda estava por vir, e eu sabia disso. O problema é que eu conhecia o
sentido de justiça de minha esposa e não queria que ela morresse de raiva vendo todas as
perversidades que contra nós ainda seriam praticadas nos próximos dias.
Ela foi à Flórida para um período de nove dias com a promessa de que se algo diferente
acontecesse eu a avisaria. Tive de enganá-la todos aqueles dias.
— Caio, como estão as coisas? — ela me perguntava.
— Estão se arrumando. Não se preocupe que está tudo em paz — dizia a cada noite, depois
de um dia pior que o outro.
Durante cerca de dez dias o assunto mais palpitante na cidade foi o caso da guerra entre o
governador e o pastor. E para animar o debate, não faltavam rádios, televisões e jornais. Se eu
fosse um forte candidato a algum cargo público de expressão, poderia até conseguir entender
aquela “atitude” do governador contra mim. Mas aquele não era o caso. No meio de todo aquele
fogo cruzado, deixei as reflexões de lado e parti para dentro. Os inimigos eram bem maiores do
que eu, mas desde menino a minha luta tinha sido aquela: enfrentar o adversário maior. Agora
não seria diferente.
“Meu Deus, se o governador me ataca é porque está vendo em mim, ou no que ele acha que
eu represento, um adversário muito forte. Mas o que é que eu represento que o ameaça tanto?”,
orei muitas vezes a Deus, em profunda angústia.
A situação estava do jeito que o diabo gosta. Mas os anjos do Senhor estavam acampados ao
nosso redor e nos guardavam. Em meio a tudo aquilo, meu consolo vinha da Palavra de Deus.
Naqueles dias, o Salmo que eu mais lia era aquele que Davi escreveu quando enfrentava a
perseguição do rei:

“Tem misericórdia de mim ó Deus, porque o homem procura ferir-me; e me oprime


pelejando todo o dia. Os que me espreitam continuamente querem ferir-me, e são muitos os
que atrevidamente me combatem. Em me vindo o temor hei de confiar em Ti. Em Deus,
cuja Palavra eu exalto, neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode
fazer o mortal? Todo o dia torcem as minhas palavras; seus pensamentos são todos contra
mim para o mal. Ajuntam-se, escondem-se, espionam os meus passos, como aguardando a
hora de darem cabo de minha vida. Contaste os meus passos quando sofri perseguições;
recolheste as minhas lágrimas no Teu odre: não estão elas inscritas no Teu livro? No dia
em que eu Te invocar baterão em retirada os meus inimigos: bem sei isto que Deus é por
mim. Pois da morte me livraste a alma, sim, livraste da queda os meus pés, para que eu
ande na presença de Deus na luz da vida.” De Davi, quando Saul o perseguia e os
filisteus o prenderam em Gate. Salmo 56.
Capítulo 61

“Não há prazer algum em beber ou comer se não se sentiu antes o aguilhão da sede
e da fome. Os que bebem costumam comer antes alguma coisa salgada, que lhes
cause sede ardente; que se transformará em prazer quando acalmada com a
bebida.”

Santo Agostinho, Confissões

A presença de Deus era forte em meu coração, apesar das turbulências. E o melhor de tudo
foi que naquela hora me foi possível perceber que os anos de viagem por todo o Brasil e pelo
exterior não tinham sido em vão. Centenas de cartas, fax, telegramas e telefonemas vinham de
todas as partes. Eram governadores, secretários de estado, senadores, deputados, empresários,
pastores e amigos de todas as classes e vivências. Todos se manifestavam indignados e pediam
orientação sobre como proceder em relação ao governador Marcello Alencar.
Naquela hora, entretanto, por mais que todas as manifestações de apoio fossem
importantíssimas do ponto de vista da relação política, o que mais me preocupava era como os
parceiros empresariais da Fábrica de Esperança haveriam de se posicionar frente ao fato. Alípio
Gusmão e Salo Seibel manifestaram-se absolutamente solidários. Marly, esposa de Alípio, pegou
um avião da ponte aérea e veio ao Rio a fim de estar conosco. A Xerox também hipotecou
solidariedade total. Mas e os demais? Iria aquele episódio desestimular os outros parceiros?
Minha emoção foi enorme quando a irmã do tricampeão de Fórmula 1, Ayrton Senna, decidiu
gravar uma mensagem de apoio incondicional à Fábrica. Dois meses antes daquilo, o Instituto
Ayrton Senna, presidido por Viviane Senna, havia inaugurado, em regime de parceria com a
Fábrica, um curso de informática para seiscentos adolescentes das favelas da região. O gesto de
compromisso de Viviane nos fortaleceu muito publicamente, e encorajou os demais parceiros a
fazerem o mesmo. Então vieram fax da Golden Cross, Yázigi, Caixa Econômica Federal e outros,
afirmando que aquele incidente tinha apenas mostrado a eles como nós estávamos fazendo o que
devia ser feito naquela zona de guerra.
— Ore por Marcello Alencar, peça a Deus para ele voltar a si e também mande um fax para
ele dizendo o que você está sentindo — era a resposta que eu e meus assessores invariavelmente
dávamos aos que nos buscavam desejando saber como proceder para mostrar ao governador o
repúdio que sentiam por suas declarações.
— Reverendo, eu trabalho no palácio e tenho uma coisa pra lhe dizer: nós nunca recebemos
tantos telefonemas e fax como nesta semana. Tão até desligando o fax porque está incomodando
muito — disse uma jovem presente a uma reunião evangélica na qual eu falei naquela ocasião.
No dia 25, um grupo de amigos se reuniu em minha casa para planejar o que faríamos. Entre
eles estava Otávio Guedes, o repórter que me introduzira às questões sobre a violência no Rio
alguns anos antes. A esperteza e a mordacidade jornalística de Otávio se manifestaram
impressionantes naquela reunião.
— O quê? O governador tá dizendo que sabia que havia tráfico na Fábrica desde janeiro? Tá
brincando? No mínimo ele devia ter avisado ao senhor, pastor. Ou então tinha que ter agido como
governador e feito alguma coisa. O senhor pode cobrar uma das duas posições dele. Tá brincando
— disse ele logo no início da conversa. — O prefeito falou que até os mosquitos, cachorros e
gatos de Acari sabiam que a Fábrica era lugar onde drogas eram escondidas? Tá louco! Então,
pastor, peça a ele pra trazer as testemunhas dele para depor. Vai ser um barato. O prefeito vai
chegar com aquela cachorrada, gataria e com nuvens de mosquitos. Que testemunhas, hem? —
falou com ironia, mas nos mostrando que o ridículo de tudo aquilo tinha que ser tratado por nós
com igual ridículo e ironia.
— Ele falou isso tudo da gente, mas o terreno onde o estado construiu o Centro Comunitário
de Defesa de Cidadania é nosso. A Fábrica cedeu a eles — disse Cristina.
— O quê? O CCDC está dentro do terreno da Fábrica? Que beleza. Pastor, o senhor só tem
que se referir ao governador agora como o nosso parceiro — disse ele com veneno.
— Eles nos acusaram de termos dificultado a entrada da polícia na Fábrica, mas eles têm
acesso à área da Fábrica pelo CCDC a hora que quiserem. A chave está nas mãos dos PMs do
Centro e a fechadura fica virada para o lado de dentro, do estado — falou Henrique Calado, então
diretor de operações da Fábrica.
— Que é isso, gente? Isso tudo é gozação! Então eles estão acusando vocês de dificultarem a
ação enquanto a chave dos fundos tava com eles, com os PMs? — largou com picardia.
E assim a reunião para avaliar o que deveríamos fazer acabou em muita risada. Otávio não
parou ali. Foi adiante nos mostrando o quão insólita a situação toda era, e nos ajudando a ver que
contra aquele tipo de “argumentação insana” a seriedade não deveria ser jamais um recurso.
— Pastor, a coisa é tão ridícula, que é melhor contar como piada! — disse Otávio.
A única coisa séria que saiu da reunião foi a nossa decisão de fazer uma concentração na
frente da Fábrica na segunda-feira a fim de mostrar para a população que nós não estávamos
intimidados diante de nada daquilo. E mais: transformaríamos o evento um avant premier do
Reage Rio, que aconteceria no dia seguinte.
Na segunda-feira não tínhamos uma grande multidão na frente da Fábrica, mas
considerando-se o tempo de preparação (24 horas) e a hora do evento (dez da manhã de um dia
útil), o happening foi de bom tamanho. Cerca de mil pessoas se amontoaram ali, enquanto
pastores, presidentes de associações de moradores, políticos de vários partidos de direita,
esquerda e centro; artistas e amigos tomavam a palavra para fazer suas declarações de
solidariedade, que não podiam ser mais longas do que cinco minutos.
A mais interessante de todas as falas foi a de Garotinho, adversário político de Marcello
Alencar nas eleições para o governo do estado, que naquele ano tivera uma experiência de fé e
fora por mim batizado alguns meses antes daquela manhã em Acari.
— Reverendo Caio. As mesmas mãos que hoje estão tentando destruir esse projeto virão
aqui acariciá-lo. A consciência deles vai pesar. Quem sabe o que aconteceu vai falar. É só esperar.
Essa não é uma luta política, é espiritual — disse Garotinho em tom profético, para então
terminar seu discurso com um texto da epístola do Apóstolo São Paulo aos efésios. — Pois a
nossa luta não é contra carne e nem sangue, mas contra principados e potestades; contra os
dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestes —
disse para delírio da multidão, acostumada a vê-lo falar como político, mas não como pregador do
evangelho.
A expectativa para o dia seguinte era enorme. O dia enfim chegou e, com ele, uma chuva
pesadíssima.
— Pastor, o senhor está na charge do Chico Caruso com o Betinho e o Rubem César
Fernandes. São os três. O senhor é o “R”, meio gordinho; o Betinho é “I”, bem fininho; e o
Rubem é “O”, fazendo Rio — disse-me Jorge Antônio Barros logo de manhã cedo.
O Globo, Jornal do Brasil e O Dia tinham determinado que colocariam um repórter ao lado
de cada personagem da charge de Chico Caruso. Assim, desde cedo três repórteres colaram no
meu pé e quiseram saber a que horas eu acordara, tomara banho, comera etc. Depois, os três
foram almoçar comigo no restaurante La Mama, em Niterói. Decidi ir a pé até o centro do Rio.
No caminho, as pessoas falavam conosco e nos estimulavam. Eu, todavia, estava cada vez mais
preocupado. A chuva era tão forte, que muitos dos que haviam se vestido de branco para a marcha
— e havia uma multidão de gente vestindo a cor da paz — estavam voltando para casa antes
mesmo da hora da caminhada.
— Pastor, pelo jeito o negócio vai gorar — disse Otávio Guedes, um dos três “colas” que
estavam comigo naquele dia.
— É, tô com medo. Mas acho que vai ter gente pro gasto. Se não fosse a chuva, seria muito
melhor — respondi.
Chegamos e fomos direto para a Associação Comercial onde a coordenação da caminhada
deveria se encontrar. O lugar estava cheio de repórteres e artistas. Parecia que as comportas da
Globo tinham sido abertas e os elencos de todas as novelas haviam resolvido se encontrar ali. Foi
só naquele momento que percebi o quanto as minhas atividades no Rio estavam repercutindo em
todas as camadas sociais. Até então eu sabia que a população já tomara conhecimento de muito do
que fazíamos, mas não imaginava que aquelas pessoas, a quem eu sempre vira como “gente
distante”, pudessem ter interesse em acompanhar as atividades de um pastor evangélico.
Foram beijos, abraços, juras de solidariedade, declarações de carinho, palavras de estímulo
— enfim, recebi toda sorte de palavra de esperança naquela tarde.
— Eu estava proibido de mencionar o seu nome e o de Betinho lá. Era um patrulhamento
terrível — disse Chico Pinheiro, recém-saído do jornalismo da Rede Record.
— Foi uma tentativa de seqüestro que lhe fizeram, pastor. Afinal, seu bem maior é seu nome
— disse Frei Beto, também presente naquela tarde de chuva.
Caio Fábio, de algoz a mártir. No seu texto o jornal O Dia disse como viu a virada que o caso
teve. Tendo sido usado para me atingir e assim esvaziar a marcha do Reage Rio, o incidente da
Fábrica acabara tendo efeito oposto.

“Do tremendão Erasmo Carlos ao presidente da Central Única dos Trabalhadores


(CUT), Vicentinho, quase todas as personalidades convidadas para a caminhada fizeram
questão de abraçá-lo. ‘Pastor, parabéns pela sua obra. Se a declaração do governador foi
impensada, não sei como ele está conseguindo dormir tranqüilo’, apoiou Erasmo. Quando
entrou na Associação Comercial onde autoridades e artistas se concentravam para o ato,
Vicentinho fez questão de ir direto falar com o pastor. ‘O governador pisou na bola. A
postura e a conduta de Caio Fábio são um atestado de dignidade.’”

À medida que caminhava pela avenida Rio Branco, ouvia as pessoas dizendo palavras de
ânimo.
— Num liga não, pastor. Só jogam pedra em árvore cheia de frutos — dizia alguém.
— Fica firme, irmão. Isso só vai te ajudar — falava um outro. E assim por diante.
O único senão foi com uma famosa atriz da Globo. Como haviam pedido que eu andasse mais
rápido para chegar à plataforma antes do ato final da marcha, Sirkis e Fernando Gabeira me
levaram para um canto da avenida Rio Branco e fizeram uma cordão de isolamento bem
espontâneo, dando as mãos, de modo a abrir espaço para que passássemos. De súbito, no entanto,
a multidão se moveu junta. Nós perdemos o equilíbrio e eu quase caí. Tropecei e pisei sem
querer no pé da atriz global.
— Ai. Puxa vida. Vê se enxerga. Fica pisando no pé dos outros. Vê se vê onde anda, tá? —
disse ela afetadíssima, em voz alta, enquanto eu me derretia em pedidos de desculpa, não por ser
“a atriz global”, mas por ser uma mulher em cujo pé meus 105 quilos haviam descansado por
cinco segundos.
“Meu Deus, como é que alguém vem para um evento desse com essa atitude tão hostil?”,
pensei envergonhado diante do papelão que ela fizera.
O grupo da Fábrica de Esperança saiu em alguns ônibus e foi para a avenida. Quando
chegaram, milhares de pessoas os reconheceram e a eles se juntaram. De repente, a maioria dos
evangélicos da avenida e mais gente de todos os tipos, inclusive o bloco dos funkeiros e até o dos
alcoólatras, pediram licença e foram “sair” com a garotada da Fábrica. Foi uma festa.
O SONHO DE DEUS NÃO PODE VIRAR PÓ — era o que estava escrito na grande faixa que
o artista plástico cristão Vilmar Madruga levou para a avenida naquela tarde. O impacto da frase
comoveu a muitos pela alusão que fazia ao pó de cocaína “achado” na caldeira da Fábrica.
O dia estava acabando quando, completamente molhados, chegamos ao fim da avenida Rio
Branco, onde fogos de artifício foram queimados e um sino foi tocado pela paz no Rio. Não houve
discursos, apenas esperanças e aplausos. Muitas lágrimas também. Voltamos para casa sabendo
que o Rio continuava o mesmo. Havia, entretanto, a esperança de que alguns de nós tivéssemos
mudado, e para melhor.
No dia seguinte, Chico Caruso fez outra charge do Reage Rio com as mesmas três figuras:
Rubem, Betinho e eu. Só que, agora, havia sobre nós um guarda-chuva com o slogan: Rega Rio.
Capítulo 62

“Fala com Tua verdade ao meu coração, porque só Tu sabes falar assim. Enquanto
isso, eu os deixarei fora [os adversários], soprando no pó e levantando terra contra
os próprios olhos.”

Santo Agostinho, Confissões

Alda voltou da Flórida poucos dias depois do Reage Rio. Logo na chegada, ainda no
aeroporto, ela percebeu que havia sido enganada e chorou.
— Como é que você me deixa fora de tudo o que você tem passado? Você não tinha o direito
de decidir por mim. Mesmo que fos- se muito pra mim, eu queria ter estado aqui — ela disse
com certa mágoa.
Aqueles dias tinham sido terríveis. É horrível estar nas primeiras páginas dos jornais por um
motivo tão perverso quanto aquele. Vendo de manhã bem cedinho os jornais, Juliana, ainda com
dez anos, escondia as primeiras páginas, querendo me poupar.
— Cadê o jornal? Onde está a primeira a página? — eu perguntava.
— Não precisa ler não, pai. Esse governador não conhece você — ela respondia.
E tinha sido por tudo isso que eu ficara feliz por ter podido poupar Alda.
A Fábrica estava sendo intimada em juízo e eu, na condição de presidente da entidade;
Cristina Christiano, na posição de supervisora; e Henrique Callado e Egnaldo Júnior, como
diretores de área, tínhamos que depor.
Naquele momento, havia uma decisão muito difícil a ser tomada. A Fábrica precisava de um
advogado e a escolha natural seria a de meu amigo e irmão, Nilo Batista, que já havia me
telefonado e dito que estava às ordens. No entanto, gente de “dentro” do palácio havia dito a
mim que tudo o que os assessores do governador queriam era que eu fizesse aquela escolha.
— Se ele escolher o Nilo, a coisa fica do jeito que a gente quer. Então vira política e ele perde
a isenção — diziam eles, segundo me contou essa pessoa que transita por lá.
O problema era que eu sabia que Nilo poderia ficar magoado se eu não desse a ele a chance
de mostrar o seu compromisso de amizade para comigo e a Fábrica. Mas todos os que estavam
mais chegados a mim na ocasião achavam que tudo o que nós não precisávamos naquele
momento era transformar o confronto numa disputa de natureza política. Não que Nilo fosse
levar a questão naquela direção, mas os nossos adversários certamente levariam.
— Nilo, meu irmão. Vou ter que fazer outra escolha. Estou convidando o Dr. José Carlos
Fragoso para pegar a causa, pois temo que eles só estejam esperando você pegar pra cair matando
— falei angustiado, pois não queria magoar Nilo de jeito nenhum. Senti, entretanto, que ele ficou
magoado. Mas sabia que aquele não era um mal sem cura. Afinal, o que nos unia era muito maior
do que os desencontros de um momento. E foi o que aconteceu: Nilo não achou que fiz o melhor,
porém me perdoou pela decisão que tomei.
O depoimento aconteceu no dia 30 de novembro, na 40ª DP de Rocha Miranda, num
subúrbio do Rio. O delegado se dizia evangélico, mas, pelo menos ali, não demonstrava ter nem
mesmo cacoete de crente. No início nos tratou bem, depois endureceu e, por fim, tornou-se
extremamente amável. A mídia cobriu amplamente o assunto.
O clima estava pesado. Havia sempre um carro parado em frente à Fábrica de Esperança com
alguns homens mal-encarados dentro, que filmavam todos os nossos movimentos de entrada e
saída. Meu carro também estava sendo seguido por um Santana marrom metálico, com quatro
homens fortes, que não faziam questão de disfarçar que iam atrás de mim onde quer que eu
fosse.
— Que foi isso, Ivo? — perguntei assustado por ter sido acordado de um cochilo com uma
manobra súbita que ele fizera na entrada da ponte Rio—Niterói.
— Reverendo, é que eu consegui dispensar os caras. Fiz que ia pra avenida Brasil e, na
horinha, virei pra Niterói. Dessa vez eles dançaram. Num dá pra retornar com todos esses carros
atrás deles — disse meu motorista, feliz da vida por ter despistado os “homens”.
— Da próxima vez, vê se não me acorda, Ivo. Tô dormindo pouco à noite e aproveito pra
cochilar aqui no carro — falei brincando.
— Reverendo, os caras tão aí atrás de novo. O que a gente faz? — perguntou Ivo,
decepcionado.
— Nada irmão. A gente não faz nada. A gente num tá nem aí. Eu vou dormir — falava
brincando, mas certo que aquela era a única coisa a ser feita.
— Quem são esses caras? — perguntava o motorista.
— Sei lá, meu irmão. Acho melhor a gente nem descobrir — respondia com convicção.
Naqueles dias, tive certeza que nossos telefonemas estavam sendo “ouvidos”. Então,
contratei a firma de um cristão que trabalha com essas tecnologias de espionagem e
contra-espionagem e pedi que passassem um “pente fino” em nossos aparelhos.
— Reverendo, os da Fábrica estão grampeados. Os da Vinde, não. E o seu celular é fácil
grampear. Os caras que estão atrás do senhor no Santana podem ouvir tudo com um aparelho
muito simples. Até mesmo com outro celular. Não converse nada pessoal ou íntimo no celular
porque é cilada — informou-me ele.

— Tem umas cartas estranhas aqui. Abri porque vi que eram pro senhor e foram mandadas
pra Fábrica. Gente que escreve pro senhor não escreve pra cá, mas pra Vinde. E essas aqui têm o
timbre da PM — disse Cristina me estendendo duas cartas.
Os textos das cartas eram confusos para leigos dos assuntos policiais da cidade. Mas para um
entendido, ali podiam estar algumas pistas interessantes.
Eis aqui um trecho do conteúdo da primeira carta:

A outra carta seguia uma linha diferente, mas levava basicamente ao mesmo tema: teria
havido manipulação ou mesmo armação no episódio da apreensão de cocaína na Fábrica de
Esperança. A diferença é que a segunda carta fora encaminhada ao governador do estado. Eis o
texto:

— Se o senhor quiser fazer um estrago, já tenho dois jornais que dão essa matéria com
chamada de primeira página — disse-me Jorge Antônio Barros. — Mas o senhor tem que avaliar
se quer sair pra briga. Se for esse o caso, tudo bem. Mas o senhor não vai ter mais sossego. Os
caras vão partir pra dentro e as armas deles são pesadas — concluiu Jorge com a experiência de
quem conhecia aquele jogo muito bem.
— Se eu sair pro enfrentamento, vou estar sendo irresponsável com a Fábrica e com aqueles
que passam o dia e a noite lá. Eu quero prosseguir investigando, mas quero fazer isso de modo
discreto — falei para alívio de todos eles.
Entreguei as duas cartas ao Ministério Público, mas decidi agir também por trás dos panos.
Sabendo que o comandante geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro era um irmão na
fé, resolvi procurá-lo.
Eu havia sido formalmente apresentado ao comandante Dorazil alguns meses antes, numa
conversa em seu gabinete. Agora, no entanto, dadas as circunstâncias, achei melhor não expor o
“irmão”, indo até a sede da PM. Por isto, pedi a um amigo comum que marcasse o encontro à
noite, nos fundos da Igreja Evangélica Congregacional, no centro velho do Rio.
Quando cheguei, Dorazil já me aguardava conversando com o pastor Paulo Leite. Paulo pediu
licença e saiu. Então eu fui logo ao assunto, mostrando as cartas ao militar. Dorazil leu ambas as
cartas com muito cuidado, em silêncio. Então, releu-as. Pensou, suspirou fundo e mostrou o
constrangimento que aquela situação estava lhe causando. Ele me conhecia bem e sabia que as
acusações eram tresloucadas. Mas na sua função militar, ele tinha que estar lá, do outro lado, e do
modo mais discreto possível.
Dorazil agiu de modo totalmente ético. Não disse uma única palavra sobre o episódio, mas
“suspirou” sua dor e desagrado. Entendi e agradeci.
— Meu irmão, você acha que o que aconteceu pode ter sido como as cartas sugerem? —
indaguei.
— Tudo pode acontecer. Eu não posso botar a minha mão no fogo por ninguém. O Marcos
Paes, entretanto, tem uma história limpa na PM. Nunca ouvi nada que o desabonasse —
respondeu. — Posso ficar com as cartas? — perguntou.
— São suas, comandante — respondi.
Passados dois dias, recebi uma terceira carta; uma semana depois, me chegou a quarta.
Um trecho da terceira carta segue aqui transcrito:

Já a quarta carta apontava apenas um certo cabo como sendo alguém que havia tramado tudo.
Tirei cópias das duas últimas cartas e enviei-as ao comandante Dorazil. Foi tudo o que fiz a
respeito.
— Reverendo, tem um homem na linha dizendo que sabe algo sobre a cocaína na Fábrica
que vai interessar ao senhor. O senhor atende? — perguntou Rosângela, que estava me
secretariando no meio daquela guerra. Obviamente eu corri para atender o tal homem.
— Pastor, meu nome é João Carlos. Eu sou cristão evangélico e acho que Deus botou algo na
minha mão que vai dar poder pro senhor até derrubar esse governo que tá aí, tentando destruir o
senhor — disse o misterioso João.
— E? Que informação é essa?
— É uma fita de vídeo, pastor. Uma fita que conta a história toda do que fizeram pro senhor
— falou com voz nervosa, com o ar sendo entrecortado, como se ele estivesse cansado ou sem
fôlego.
— E que fita é essa? — insisti, iniciando a gravação da conversa no pequeno aparelho que um
de meus assessores havia conectado ao meu telefone direto.
— Pastor, é coisa de Deus. O senhor sabe, a PM tem um serviço de gravação interna pra
eventos e outras coisas. Meu amigo Renato trabalha nesse serviço. Olha, umas três semanas
atrás, antes da coisa na Fábrica acontecer, ele foi gravar uma fala do governador, na casa dele,
pros policiais. Era um negócio interno. O Renato tava sozinho pra gravar e me levou com ele.
Quando acabou a gravação, a gente começou a desligar o equipamento. Desligamos tudo e fomos
embora.
— Mas e daí, João? O que isso tem a ver comigo e com o que me aconteceu?
— Calma, pastor. Calma. O senhor vai gostar. Foi Deus que me mandou lá. Bom, mais de
uma semana depois, a gente foi editar as fitas. Foi quando eu vi que, enquanto a gente
desmontava o equipamento, uma câmara continuava gravando tudo, porque a gente tinha
esquecido de desligar. Gravou tudinho pastor — falou com um tom de mistério.
— Tudinho o quê, João? — falei um tanto impaciente.
— O papo do governador com os outros caras, dizendo que o senhor tinha que levar uma
dura, que o senhor tinha que ser ferrado. Olha, era tudo o que eu tinha pra dizer. Agora que o
senhor já sabe, tome as providências — disse o tal João, como se tivesse ajudado muito.
— João, assim você não me ajudou. Você só me angustiou. Afinal, você apenas confirmou o
que eu já suspeitava, mas isso não me ajuda em nada. Você só vai me ajudar se me der essa fita.
— Olha, é muito perigoso. O Renato num queria nem que eu falasse com o senhor. É tudo
que eu posso fazer. Se eles descobrirem que a gente tem isso, a gente tá ferrado.
— Olha, eu posso proteger vocês tanto aqui no Brasil quanto no exterior. Isso não é
problema. Tenho muitos amigos no mundo todo e aqui também. Sei que posso proteger vocês
dois. João, eu tenho que te ver.
— Eu vou conversar com o Renato e ligo pro senhor amanhã — disse ele, desligando.
Chamei o pessoal que estava junto comigo naquela situação e mostrei a gravação. Eles riram à
beça de meu jeito “súplice”.
— Pô, pastor, o senhor é bom mesmo pra implorar. Tá dando uma pena danada do senhor —
disse Jorge Antônio Barros, já caindo na risada.
— Sabem qual é meu medo? Eu não acredito nessa fita. O governador jamais seria capaz de
uma baixeza dessas. Ele nunca se exporia assim e também não acredito que ele seja esse tipo de
homem. E mesmo que fosse, não daria uma bandeira dessas. Sabem o que eu acho? Acho que
estamos sendo extorquidos ou gravados por gente que quer ver se arranca de nós declarações
contra o governador. E se eu entrar nessa, amanhã viro o vilão dessa história. Vou dar corda pra
ver até onde vai, mas vou pisando em ovos — falei a todos.
No dia seguinte, João ligou de novo. Durante uma semana ele agiu do mesmo modo. Fez de
tudo para criar um clima de ansiedade insuportável, de perigo iminente. E, conforme havíamos
decidido, entrei no clima, gemendo de angústia ao telefone, mostrando o meu espírito de
seqüestrado e de parente da vítima, ao mesmo tempo, e implorando para saber o preço do resgate.
Mas João endureceu ao máximo. Protelou como pôde. Até que na quinta-feira, dia 14 de
dezembro, dei um ultimato a ele.
— João, eu não tenho mais tempo a perder. Ou você me encontra amanhã ou não ligue nunca
mais — disse de modo absolutamente resoluto.
— Amanhã a gente se vê. Mas onde? Tem que ser um lugar seguro pra nós dois — falou
João.
— Sabe o restaurante que tem no segundo andar do Santos Dumont, o 14 Bis? Lá é bom.
Tem muita gente em volta, mas é tranqüilo. Pode ser lá — sugeri.
— Tá bom. Mas o senhor tem que ir sozinho. E tem que ser às oito da manhã — disse João.
— O senhor vai só, num vai? — perguntou para se certificar.
— Não, é claro que não. Eu sempre ando com o meu motorista. A cidade é muito grande e
ele me ajuda a tornar as coisas mais rápidas. Ele vai comigo, mas vai ficar no estacionamento, me
esperando.
— Não, claro. Tá bom. Até amanhã — disse João.
E começou a discussão para ver o que faríamos. Eu queria ir só, levando apenas o coronel
Santos, militar aposentado, evangélico e meu amigo, para tomar o lugar do motorista. Antônio
Carlos, pastor e uma espécie de filho na fé para mim, implorava que eu não fosse.
— Pode ser perigoso — dizia ele, querendo me proteger.
Jorge Antônio Barros, a essa altura envolvidíssimo na coisa toda, dizia que devíamos montar
uma operação de documentação jornalística.
— A gente vai com gravador, câmera, um bom fotógrafo e documenta tudo de longe —
sugeriu.
— O senhor vai me desculpar, pastor, mas acho que a gente precisa chegar arrepiando. Isso
aí é operação de espionagem. Esse cara num é evangélico querendo ajudar o senhor coisa
nenhuma. É P2 (polícia secreta da PM) ou bandido, querendo extorquir o senhor. Então, a gente
tem que jogar pesado. A gente prende os caras. Não se preocupe que eu cuido dessa parte —
disse o coronel em meio a intensa gesticulação e uma enorme disposição para cumprir o que
estava sugerindo.
Já Ernan Caldeira de Andrade e o pastor Ariovaldo Ramos achavam que devíamos ficar no
meio-termo. Um pouco de documentação jornalística e um pouco de prontidão policial, se fosse o
caso de agirem numa emergência.
De minha parte, não estava convencido de que deveríamos trair João e seu amigo Renato.
Minha consciência não deixava. Afinal, lá no fundo, queria dar algum crédito aos dois homens da
fita, ainda que minha mente se negasse a crer que eles pudessem estar falando a verdade.
Depois de muito pensar, decidimos o que faríamos. Eu levaria um aparelho de escuta dentro
do bolso de meu paletó, enquanto o coronel Santos e Ernan ficariam rondando o lugar, sendo que
Ernan chegaria mais cedo e ficaria tomando um café numa mesa do restaurante. Jorge Antônio e
Ariovaldo Ramos pousariam de executivos da ponte aérea, mas sempre por perto.
O primeiro problema aconteceu às sete horas. Ivo, meu motorista, já vinha dando claros
sinais de exaustão nervosa, mas naquele dia seu limite chegou ao fim. Com o pescoço
endurecendo e a perna rígida de tensão, dez minutos antes das sete da manhã, em frente à sede
da Vinde, em Niterói, Ivo pediu para ir tomar um cafezinho na esquina e só apareceu três meses
depois. Assim, Ernan tomou o lugar de Ivo e foi de meu chofer particular. Os demais foram em
carros separados, em intervalos de cinco minutos.
Fui direto para o restaurante 14 Bis e descobri que estava fechado. Então fui para o Café
Palheta, aberto ao lado. Sentei e pedi um cafezinho: oito horas e nada; oito e meia e nada ainda.
Pouco antes das nove fui até o balcão do segundo andar e olhei para o hall da ponte aérea. Vi Jorge
Antônio conversando com Domingos Meireles, repórter da Rede Globo, e fiquei com medo de ser
reconhecido.
Voltei para o Café. Umas dez pessoas passaram e me reconheceram. Pararam e falaram
comigo.
“Com essa gente toda me reconhecendo, esse cara não vai me abordar nunca”, pensei
preocupado e já achando que nosso “time” tinha sido descoberto por João e Renato. Olhei outra
vez para o relógio: nove horas e nada. “Se não chegar em cinco minutos, vou embora”, pensei
inquieto e impaciente.
— Bom dia. O senhor não pensou que fosse eu, pensou? — disse um rapaz branco, tamanho
médio, cabelos lisos, castanho-escuros, um pouquinho acima do peso, vestindo jeans e camisa
branca e aparentando ter uns 35 anos.
— Não. Nunca pensei que fosse você — disse apenas para fazê-lo pensar que eu realmente o
havia reconhecido.
— Desculpa a demora. Mas é que o Renato é desconfiado e queria se certificar de que tava
tudo limpo — falou nervoso.
Nesse momento, percebi que a pele de “João” estava completamente empolada, tão forte era
o arrepio que percorria seu corpo. Então vi uma mancha nervosa, vermelha, brotar entre o
pescoço e o queixo do rapaz. Deixei-o falar. Dois minutos depois, eu já tinha um perfil básico da
peregrinação lingüística de João. Seu “s” era do Brasil Central, quase goiano. O “r” soava um
pouco sulista. E, no geral, o sotaque era sem dúvida carioca.
— Onde você morou no Brasil Central? — perguntei sem dar margem a nenhuma dúvida.
— Em Campo Grande, lembra? Foi lá que eu vi o senhor pregar pela primeira vez.
— Certo. Você tá falando da primeira vez que eu fui pregar lá, há uns 12 anos?
— É, naquele tempo eu morava lá. Eu fui no ginásio de esportes ouvir o senhor.
— Mas você morou no sul também, não foi?
— Como é que o senhor sabe?
— É o seu “r”. Tem um quê de sulista nele.
— Morei em Santa Catarina. Depois voltei pro Rio. Eu sou carioca.
— Você estava na Fábrica no dia em que eu dei a primeira coletiva à imprensa lá, não estava?
Cê tava encostado na coluna, num tava? — perguntei outra vez de chofre, sem dar margem a
outra resposta a não ser a confirmação.
— É, eu tava sim. Também estava lá no dia da manifestação na frente da Fábrica. Até gravei
em fita. Mas hoje eu tô aqui pra ajudar o senhor — disse.
— Mas e aí, João? Como é que a gente vai fazer? — perguntei.
— Olha, o Renato não quer proteção; o que ele quer é dinheiro. Ele não é crente como eu,
por isso não tem interesse de ajudar de graça. Eu, sim. Ajudo o senhor de graça — explicou com
ar “sacerdotal”.
Nesse momento vi uma cena hilária. O coronel Santos veio até onde João e eu estávamos. Ele
carregava uma linda menina loira no colo e parou bem na minha frente, mostrando os aviões lá
fora, na pista.
— Olha o viãozinho. Tá vendo, neném? — dizia o coronel num fantástico acesso de
babysitter militar. Fiz de tudo para não rir.
— Você num quer chamar seu amigo pra vir tomar um cafezinho com a gente? — perguntei,
jogando um verde, e apontei para um rapaz moreninho, que andava agitado de um lado para o
outro do pátio em frente ao local em que estávamos.
— Não. Deixe ele lá. Se ele souber que o senhor sacou ele, vai ficar chateado. Ele achou que
o senhor num ia perceber.
— Puxa, mas dando a bandeira que ele deu, não tinha como não perceber — falei,
começando a me divertir. — Mas, João, vamos lá. O que eu tenho de fazer pra ter a fita? —
reconduzi o assunto à “extorsão”.
— O Renato quer 210 mil reais. Ele diz que é muito arriscado e só vale se for por muito
dinheiro. O senhor sabe, esses caras podem matar a gente.
— Mas, João, eu sou apenas um pastor. Não tenho esse dinheiro todo. E se tivesse, não
poderia entregá-lo num negócio desses. Dinheiro de pastor é para fazer a obra de Deus, não pra
pagar por informação — disse em tom manso, desejando encontrar um caminho que me
permitisse penetrar nas tais sensibilidades cristãs que João dizia possuir.
— Eu entendo, pastor. Mas com o Renato vai ter que ser grana. Quanto é que os seus amigos
do Viva Rio estariam dispostos a pagar pela informação? Tá bom que 210 mil é muito, mas faça
seu preço — falou João com voz firme, inflexível.
— Eu jamais levaria um assunto desses para o Viva Rio. Tenho vergonha de falar o que está
acontecendo comigo. Portanto, ou você ajuda ou não ajuda — falei para ver até onde ele ia.
— O que a gente pode fazer é baixar bem o preço. Vê o que dá pra fazer, pastor. É muito risco
pra gente — propôs João, jogando sua última cartada, enquanto olhava firmemente para a mesa,
como que tentando evitar os meus olhos, fixos nele.
— Olha, eu vou estudar a situação. Mas, de qualquer forma, a coisa vai ter que funcionar
assim: você vai, fala com o Renato, copia a fita e me telefona. Então, eu ponho um vídeo dentro do
carro e vejo a fita com você. Se o material justificar, eu vou ver o que consigo de “compensação”
para você e seu amigo — evitei usar a palavra “dinheiro” ou seus equivalentes explícitos, tamanho
era meu medo de que a conversa estivesse sendo gravada a fim de “provar o contrário”; ou seja:
que eu era aquele que estava tentando “subornar” um policial.
Durante aquele meio-tempo muitas pessoas passaram pela frente do Café e me saudaram.
Eu percebia que a cada saudação João se inquietava profundamente. Era como se na sua testa
estivesse escrito o que ele estava fazendo ali.
— O senhor vai sair comigo? — perguntou João depois que paguei a conta de nossa água
mineral, suco de laranja e cafezinho.
— Não. Se não viemos juntos, por que vamos sair juntos? Você vai sozinho e eu vou depois —
disse com medo de que ele estivesse também fotografando ou filmando a distância os nossos
movimentos. — Ah! João, uma coisa. Vou deixar esse Mobi com você, e por meio dele vou mandar
mensagens e você responde. Você tem até domingo à noite para resolver tudo. Caso contrário, não
precisa gastar mais tempo comigo, pois não tenho tempo para investir em ansiedade.
Naquele mesmo dia João me telefonou para dizer que Renato tinha topado fazer a cópia.
Queria saber onde nos encontraríamos para fazer a troca.
— João, eu falei que antes eu vejo a fita e depois faremos a troca. Como é que eu vou saber se
não é uma gravação do Pato Donald e seus sobrinhos?
— Bem, é que o Renato quer simplificar a coisa. Dá pra ser? — perguntou.
— Não. Não dá. Ou é como falei ou não tem mais conversa.
— Tá bom. Vai dar sim. E o senhor vem de novo? — perguntou.
— Não. Dessa vez eu não vou. Quem vai é o “missionário” Ernan. Ele trabalha comigo há
anos e é pessoa de minha inteira confiança. Você viu como eu sou reconhecido onde vou. Já
pensou se me reconhecem no meio de uma operação como essa? Não vou, não. Mas não haverá
problema, haverá?
— Olha, eu ligo amanhã cedo pra gente definir o local.
— João, só mais uma coisa. Se você não ligar até segunda-feira, às doze horas, não ligue
nunca mais, pois não atenderei. João, eu não sou emocionalmente seqüestrável. Quando chega a
um determinado ponto, eu viro a mesa e me torno inconseqüente, mas não fico escravo de
ninguém — falei com uma ponta de raiva.
— Não. Fica tranqüilo, pastor. A fita já tá comigo. Vai ter jogo sim — disse João.
Esperamos o fim de semana todo. No domingo passei uma mensagem para o Mobi de João
advertindo sobre o nosso trato.
— Rosângela, mande cancelar o Mobi. Pague a multa, mas cancele. Diga que se extraviou —
disse para minha secretária quando passaram cinco minutos do meio-dia de segunda-feira.
João nunca mais ligou. Tudo pode ter acontecido. O mais provável, no entanto, é que eles
tenham descoberto que o pastor encurralado não estava tão intimidado quanto imaginavam e,
então, tenham percebido que não valeria a pena tentar me enganar. Já as outras hipóteses prefiro
esquecer, pois ao listá-las, estaria fazendo juízo de valores sobre pessoas públicas, e não é meu
feitio proceder assim.
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?”, era o texto de São Paulo que não me deixava o
coração. Fosse como fosse, o Senhor esteve ao nosso lado e nos ensinou que não basta fazer o
bem, é preciso saber também a quem aquele bem está incomodando. Nesse caso, não se deve
jamais deixar de fazê-lo, mas fazê-lo com extremo cuidado. Caso contrário, a prática do bem pode
fazer com que aqueles que o “praticam” a partir de motivações diferentes possam ver você como
um inimigo da hegemonia social que eles pretendem seja somente deles.
A pior luta que existe não é por dinheiro, mas pelo direito de dominar o coração do povo!
Capítulo 63

“O que eu desejava não era tanto estar mais junto de Ti, mas mais firme em Ti.”
Santo Agostinho, Confissões

A s acusações do governador diminuíram, mas as ações contra nós aumentaram. A Fábrica


entrou num túnel, onde havia investigações de todos os níveis. Conforme esperávamos, tudo
aquilo só nos passou um atestado de idoneidade. Viraram-nos de cabeça para baixo e nos
sacudiram. Só caíram moedinhas. A perplexidade deles foi constatar como com tão pouco
dinheiro a Fábrica conseguia fazer tanto. Para que se tenha uma idéia, basta dizer que um dos
quatro fiscais designados para a investigação de nossa obra social saiu chorando de sua primeira
visita de apuração.
— Com tanto safado solto na cidade, o que eu estou fazendo aqui, meu Deus? — foi o que
ele disse a Cristina depois de andar pela Fábrica vendo as atividades que lá são desenvolvidas.
O prefeito César Maia continuou agressivo até o fim de 1995. E nas vésperas do Natal disse
algo que me transtornou.
“Os pastores e padres têm que fazer como os sacerdotes italianos, que andam com
seguranças armados, mas entregam os mafiosos. Aqui nas favelas, os pastores e padres são
coniventes”, foi a síntese do que ele disse em todos os jornais da cidade.
Obviamente a mídia veio em cima de mim e sobre o arcebispo do Rio, a fim de saber o que
pensávamos das declarações do prefeito. Dom Eugênio, bem dentro do seu estilo, disse que
esperaria “as repercussões do caso na mídia” para decidir se falaria algo ou não. Eu, de minha
parte, fui logo falando.
— O prefeito tinha mais era que pensar em asfaltar e levar água para as favelas em vez de
ficar querendo ensinar padre a rezar a missa e pastor a ganhar perdidos. Nós, pastores
evangélicos, jamais seremos informantes da polícia, tanto quanto jamais seremos cúmplices do
tráfico. O prefeito está se excedendo.
César não gostou!
— Ele vestiu a carapuça. Quem é que falou nele? É a consciência pesada — disse o prefeito.
— É que o César esqueceu que eu sou pastor. Ele vive tentando fazer com que eu seja visto
como candidato a um cargo político, o que eu não sou. Quando fala de pastores, ele está falando
da única coisa que eu sou, publicamente — contestei.
Pensei que as coisas iriam parar ali. Mas, não. O prefeito me devolveu com um petardo.
— Quem tem que se explicar é ele. Ele é que é o pastor do pó — falou com todo o veneno que
tinha.
— O César Maia precisa de ajuda médica, ou melhor: psicoterapêutica. Ele vive, hoje, num
estado de profunda esquizofrenia. Quando ele acorda César, enche o peito e sai para construir
grandes obras, faz rampas, estradas e monumentos. Mas quando o coitado acorda Maia, ele evoca
a memória genocida dos maias e cai em depressão. Pensa que o Rio vai acabar e começa a brigar
com fantasmas. O caso dele é médico — falei com extrema picardia, já começando a me
acostumar com aquele jogo de imagens, caricaturas e factóides.
— Agora ele excedeu. Deixou de falar como pastor e falou como político — disse César Maia,
esquecendo-se que ele mesmo havia dito, semanas antes, que não me via como pastor, mas como
político.
— Depois de amanhã é Natal. Daqui pra frente, não falo mais nada sobre o prefeito. Vou me
recolher à oração por ele. Ele pode dizer o que quiser. Eu sei quem sou, e Deus também o sabe.
Que Deus abençoe o prefeito e sua família — falei depois de ter me arrependido de ter trazido o
debate para o campo pessoal, na jocosa resposta que dera sobre a suposta esquizofrenia entre
César e Maia.*

*Somente 11 meses após aquele tiroteio foi que o prefeito e eu pudemos nos encontrar, longe da mídia e do processo eleitoral, e
descobri que nem ele era aquele que eu havia dito que ele era, que nem eu sou a pessoa que ele pensou que eu fosse. Ao contrário,
depois de uma visita à Fábrica de Esperança em companhia do deputado federal Arolde de Oliveira, o prefeito pôde ver de perto o
nosso trabalho. De minha parte, pude vê-lo não como um criador de factóides, mas como um ser humano capaz de voltar atrás e
reparar equívocos, o que o fez crescer imensamente ante os meus olhos, uma vez que só consigo crer em homens capazes de
penitência. Os inflexíveis são perigosos, e os rancorosos são os piores e mais letais de todos. Mas graças a Deus, César Maia não
parece ser assim. Dessa forma, em novembro de 1996, se reconciliou comigo e com a Fábrica de Esperança, e terminamos como
parceiros em vários projetos sociais.
Naquele mesmo dia 22 de dezembro de 1995, o Jornal Nacional, da Rede Globo, anunciou a
existência de uma fita de vídeo feita por um ex-sócio pastoral de Edir Macedo, que vinha a
público para revelar os estratagemas do bispo para levantar fundos para sua igreja. O material era
chocante. As caretas, posturas e frases traziam para um plano horrível a questão de como o
dinheiro é tratado pelos líderes da Universal.
— Ó! Ó! Ou o cara dá ou desce — foi a frase do bispo Macedo que mais ecoou de tudo aquilo.
O problema é que a tal frase trazia à memória um monte de anedotas de natureza erótica, o que
aumentava imensamente o impacto da declaração.
A mídia voou em cima de mim. Fugi de quase todos eles. As poucas declarações que me
permiti fazer foram extremamente “distantes e frias”.
— Tô cansado disso tudo — falei aos repórteres.
Peguei a esposa e os filhos e fui a Manaus passar o Natal com meus pais, em cuja companhia
não celebrava aquela data há mais de dez anos.
— Pastor Caio? Aqui é a Guta, do Jornal Nacional. O senhor já chegou a Manaus? —
indagava uma jovem da produção do Fantástico tão logo liguei o telefone celular, com o avião
ainda taxiando na pista. — Olha, pastor, tem uma equipe do Fantástico esperando o senhor no
hall do aeroporto. Dá pro senhor dar só uma entrevistinha? — perguntou-me ela.
Foi a última entrevista que dei em 1995. Fui lacônico. A partir dessa data, recusei cada uma
das tentativas que a mídia fez de me trazer para dentro daquele e de vários outros temas.
No dia 26 de dezembro fomos passar cinco dias às margens do rio Urubu, a cerca de
duzentos quilômetros de Manaus. Os cheiros de minha infância voltaram aos meus sentidos.
Andei sozinho pela beirada do rio e nadei nas suas águas negras. Lavei-me e batizei-me de todas
aquelas sujidades que haviam poluído minha alma no ano que estava findando.
Naqueles dias fiz uma viagem histórico-mística às raízes daquela região. Em conversa com
minha irmã Suely, fiquei sabendo que algumas tribos que tinham vivido às margens daquele rio,
exatamente onde estávamos, haviam sido chacinadas pelos colonizadores.
Suely estarreceu-me, tamanho era seu conhecimento sobre a história indígena do lugar. Sua
memória viajava por caminhos lúgubres, nostálgicos, cheios de dores. Ela falava daqueles índios
extintos como se pertencesse à linhagem direta de cada um deles.
— É, a gente briga, se enfrenta e, depois de um século, se torna apenas um amontoado de
lembranças na mente de algum curioso. Quando se dá a sorte de encontrar alguém como Suely,
que se torna cúmplice da história que lê, ótimo. Caso contrário, vira-se fantasma no inconsciente
coletivo e essa é toda a contribuição que cada um dá à história dos humanos. Eu não quero isso
pra mim. Meus “pactos” espirituais sempre foram os de que eu queria ser uma contribuição
significativa à história da fé. É como homem de fé que eu quero ser lembrado — disse a meu pai
numa das muitas conversas que tivemos em volta de uma grande mesa de madeira rústica,
enquanto comíamos tucumã, pupunha e farinha de mandioca.
Minha briga no Rio não havia ajudado a ninguém. Foi um montão de energia jogada fora.
Sofri com aquela percepção. Orei muito. Sentei nas pedras lisas e rosas que existem às margens
do Urubu e pedi a Deus que não permitisse que os meus sonhos de servi-Lo como homem de
Deus não acabassem me levando a um caminho tão distante de meus ideais e princípios.
Amargurara-me profundamente com algumas pessoas e não queria reter aqueles sentimentos
dentro de minha alma.
— Pastor, o governador desceu a lenha no senhor no “Informe JB”. O senhor quer que eu
leia pro senhor? — perguntou Jorge Antônio Barros, chamando-me no celular.
— Não, não quero não, Jorginho. Essa é uma página virada. Daqui pra frente, o Marcello
Alencar não vai nunca mais ser objeto de meu revide. Eu agora só falo sobre ele com Deus, que é
o juiz de minha vida e meu advogado de defesa — respondi, literalmente virando a última página
de 1995.
Capítulo 64

“Os prazeres da vida humana não só tiram os homens de desgraças que lhes
sucedem contra a vontade, mas também de moléstias premeditadas e desejadas.”

Santo Agostinho, Confissões

O ano de 1996 foi o de juntar os estilhaços de 1995. E foi isso que comecei a fazer tão logo
voltei de Israel e da Turquia, no final de janeiro, onde estive conduzindo mais um grupo de
cristãos, dessa vez tendo ocupado um Jumbo inteiro para a viagem. Éramos quase quatrocentas
pessoas.
Os alvos para o ano que estava iniciando eram claros para mim. Desejava estabelecer uma
base da Vinde na Flórida, onde estaria a cada 12 dias em companhia de Alda e dos filhos mais
novos, Lukas e Juliana, que fixariam residência lá. Iríamos duplicar o número de projetos na
Fábrica de Esperança: de 13 para 26. Precisávamos também nos estruturar para colocar no ar o
canal Vinde TV, com programação cristã 24 horas por dia. Além disso, desejávamos fortalecer a
Revista Vinde e aumentar significativamente seu número de assinantes. Seguindo o trend
mundial, percebemos que precisávamos cortar custos na Missão Vinde e enxugá-la, a fim de que
nos tornássemos mais ágeis e úteis. E, para finalizar, queria encontrar tempo para a leitura, a
oração e para escrever um livro sobre minha caminhada de fé, com meus encontros e
desencontros, mas sempre na busca de estar em Cristo.
Hoje, dia 2 de novembro de 1996, quando termino este livro, vejo que pela Graça de Deus
cada um daqueles objetivos foi alcançado. Minha esposa e meus filhos mais novos estão na
Flórida, realizando seu sonho de adolescência, e tenho estado 12 dias aqui e oito lá; a Fábrica de
Esperança está terminando o ano com 33 projetos em pleno funcionamento, e não apenas os 26
aos quais nos havíamos proposto; a Vinde TV entra no ar no dia 23 de dezembro, véspera de
Natal, realizando assim meu mais antigo sonho infantil: ver os filmes de tio Carlos Fábio,
embrião de minha paixão por projeção de imagem, se tornarem um veículo de comunicação; a
Revista Vinde “fecha o ano” com uma edição especial de 114 páginas e, definitivamente, firmada
como “a revista cristã do Brasil”; a Missão Vinde está ficando bem enxuta, e dentro de mais
alguns meses vamos poder usar os recursos que ela recebe para cumprir melhor a sua missão de
evangelização, especialmente em países onde a palavra de Cristo não tem sido difundida. Além
disso, este livro só foi escrito porque eu pude achar tempo para orar, pesquisar e escrever,
especialmente em razão dos dias “diferentes” que tenho tido na Flórida.
Hoje, minhas percepções são outras. Descobri que 1996 foi o ano de juntar não apenas os
“estilhaços” do ano anterior, mas os retalhos de minha vida psicológica, pois o processo de
escrever este livro me abismou num mundo de sentimentos e memórias que eu julgava que
haviam desaparecido quase completamente de dentro de mim. Que nada! Este livro me fez ver
como seu Araujinho e suas energias vitais, boas e más, me habitam com mais profundidade que
poderia imaginar. Vovô João Fábio e seus ideais, sua casa-hospital, sua “atração-desconfiada” em
relação à polícia, porventura não se repetem em meus sonhos de solidariedade, na Fábrica de
Esperança e no meu namoro sempre esquivo com os políticos? E que dizer de vovô Firmino e seu
espírito andarilho? Há ou não traços dele em mim? E mais: sua busca de prazeres perigosos
existe em mim desde há muito, sendo que hoje exerço razoável controle sobre isso.
Ora, e a Mãe Velhinha? Seu encanto pela natureza e seus mundos feitos de odores ainda hoje
me alucinam, me inspiram e me seduzem. Sou vítima de aromas e de suas inesquecíveis
lembranças.
Meu pai? Ora, desse então não preciso nem falar. Mais da metade de mim é ele. Ou de onde
me vem essa esperança incurável e inamovível, senão de raízes que nascem no peito cabeludo
daquele ser de alma amazônica incorrigível?
Mamãe? Além dos seios cheios de leite e de muito cafuné, ela me deu apetite existencial.
— Como é que a senhora está se sentindo hoje, mamãe? — indaguei no mês que passou.
— Como uma menina de vinte anos. Minha alma se recusa a envelhecer. Pena que meu
corpo não saiba disso. Por que será, meu filho? — devolveu-me mamãe.
Escrevendo este livro, foi-me possível ver como eles todos estão vivos em mim e em minhas
ações. Muitos dos meus sentimentos e sonhos nada mais são do que uma projeção de seus
sonhos, assim como muitos dos meus fantasmas nada mais são do que lembranças de seus
medos.
E a vida se repete. Hoje, 2 de novembro de 1996, faz vinte anos que meu irmão Luiz Fábio
partiu para o Eterno. Mas é possível vê-lo nas mãos cheias e hábeis de meu filho Ciro, de vinte
anos — um ano mais velho que meu irmão no ano de sua partida —, quando ele escorre o mesmo
talento musical que do tio vazava para o piano, ao qual ele jamais fora formalmente apresentado,
mas pelo qual irremediavelmente seduzido. Luiz vive em Ciro.
Foi por querer que você soubesse que eu não existo sozinho, mas que sou apenas extensão,
continuidade emocional e histórica de outros seres que me precederam, que escrevi este livro
iniciando em 1820, com aquele cearense apaixonado pela vida, que meus pais disseram foi o meu
bisavô, a quem amei, respeitei e em quem muitas vezes me inspirei, mesmo sem jamais lhe ter
dado sequer um único cheirinho no cangote.
Possivelmente quando este livro vier a ser publicado eu já estarei com 42 anos. “É cedo
demais para se escrever uma autobiografia”, disseram-me alguns amigos mais velhos. Eu
concordo. Mas como é que eu poderia saber se era cedo, se nem mesmo sei se estarei vivo na
Terra no dia de amanhã?
O tempo de escrever uma autobiografia é hoje, é tudo o que posso responder. Mas o que de
fato aprendi escrevendo estas “memórias” é que todo ser humano neste planeta deveria escrever
as suas. Mesmo que não seja para torná-las públicas, devem ser escritas para “publicar” para nós
mesmos os intrincamentos de nosso interior. Eu me tornei público para mim mesmo puxando
este livro de dentro de minha alma. Autobiografias podem ser as melhores auto-ajudas que se
pode receber do melhor de todos os analistas: a sua própria alma, quando tomada pela mão de
Deus e conduzida a “encontros” de cura e bálsamo. E isso só acontece quando a gente se dispõe a
abraçar seus monstros e seus príncipes, neste lugar onde mito e realidade são a mesma coisa: a
psique.
Olho para o futuro e vejo que já estou no lucro. Afinal, sou aquele rapaz que sempre achou
que não passaria dos trinta e que no auge de sua paixão existencial pelas coisas da fé desejou
morrer aos 33 anos, como Jesus.
A vida já me deu um crédito de mais de dez anos. Só que agora, quanto mais vivo, mais longe
gostaria de ir. E tem mais: se eu fosse o seu Araujinho, não teria deitado naquela rede, lá no rio
Purus, embalando-me nela até morrer. Tenho dentro de mim uma presença alien que meu
bisavô parece não ter conhecido com clareza. A presença do Espírito Santo faz nascer na gente
uma vontade enorme de viver, e viver, e viver.
Um dia desses eu estava dentro das águas azuis do mar que se derrama sobre a costa de Boca
Raton, na Flórida. As ondas estavam relativamente encapeladas. Iam e vinham, naquela dança
líquida inimitável. Gaivotas e pelicanos voavam sobre minha cabeça. Tudo em volta parecia
absolutamente irreal, tamanha era a beleza natural. De repente percebi que aquilo, sim, era mais
que real. Irrealidade é essa vida de vaidades, sejam elas religiosas, políticas, intelectuais, plásticas
ou de qualquer outro tipo, de cujos “espíritos” temos estado quase todos “possessos”.
As ondas se alternavam: umas grandes, outras pequenas. De súbito, uma enorme. Mergulhei
dentro dela e saí do outro lado.
“Jesus, só Tu sabes que ondas ainda virão sobre mim, se serão grandes, pequenas ou enormes
vagalhões. Não quero saber o que me aguarda. Peço apenas que Tu me livres de meu pior inimigo,
e este, Senhor, não são os poderosos deste mundo e nem o diabo. Eu sou a pessoa com maior poder
de destruir aquilo que com tanta paixão eu mesmo venho edificando. Assim, Senhor, não apenas
livra-me do mal, mas livra-me de mim, pois ninguém pode fazer mais mal a mim do que eu
mesmo”, falei com Deus em meio a lágrimas de confissão e, ao mesmo tempo, de entrega à Graça
Divina.
É difícil terminar um livro como este. Estou olhando para trás e tentando descobrir quais são
as imagens simbólicas mais fortes de toda a minha existência até aqui. Descubro que minha alma
tem dois grandes sacramentos: uma árvore encantada e uma casinha de compensado. A primeira
me segue desde que a mangueira do quintal da vovó virou Sarça Ardente. Sei que encontrarei a
sua versão final naquela Árvore da Vida, que me está prometida no livro do Apocalipse.
Já a casinha, essa nunca me deixou. Eu a carrego comigo desde os cinco anos. Meu pai a
colocou nos meus ombros. Ela cresce, encolhe e toma formas diferentes. Nela, todavia, sempre
encontro meus amores e meus filhos da alma. A sensação que me dá é a de que construirei casas
imaginárias até o último dia de minha vida, quando então irei morar com Aquele que disse: “Na
casa de meu Pai há muitas moradas... Eu irei preparar-vos lugar... Eu voltarei.”
Viver esses poucos anos neste planeta me tem sido uma experiência apaixonante. Amo ser um
humano. Gosto de existir. Cada dia, a cada sabor que os momentos trazem, vejo-me mais
seduzido pelas possibilidades de ser quem eu posso ser, ainda. Mesmo quando mergulho nas
minhas memórias mais escuras e plenas de ambigüidades, ainda aí e nelas encontro a certeza de
que, sendo quem sou e carregando as emoções humanas que carrego, teria sido quase impossível
existir de outro modo. Nesse caso, o milagre da conversão é ainda mais profundo, pois, se assim
é, conversão não é apenas uma mudança de história, mas, sobretudo, a invasão da Graça Divina,
penetrando as teias de nossa intimidade e nos fazendo desabrochar de dentro para fora, não para
uma outra existência, mas para o melhor de nossa possibilidade existencial, levando em
consideração quem somos. E o que somos se engra-vida com a graça de Deus, fazendo com que
nossa vida encontre em Cristo a melhor variável de nós mesmos. E esta é a vida que vale ser, pois
é vida Nele.
Percebo que lateja em mim uma paixão constante. Com ela tenho passado pela cadeia dos
momentos que formam minhas horas, dias, semanas, meses e anos. Disse minhas, fazendo alusão
ao tempo, pois cada pessoa tem o seu tempo. E os mais felizes são os que sabem que o tempo é
nosso, não de Deus. O tempo é dádiva divina aos mortais. É essa paixão de viver que me dá esse
fortíssimo sentimento de que o tempo é meu. Mesmo me vendo como um cristão que crê na
imortalidade da existência espiritual, ainda assim trato esta dimensão como única, pois ela vai
acabar. Ainda que eu viva para sempre, vou morrer, contingencialmente, como cidadão da Terra,
daí minha sôfrega paixão pela experiência consciente que Deus me deu conhecer neste lapso da
existência cósmica.
É a vida movida por paixão o que nos arremete ao mundo como uma dádiva divina, mesmo
nos dias de nossos equívocos. É também essa paixão que nos põe no único espaço onde o medo de
existir se desvanece: o chão do amor. Quando se chega a esse lugar existencial, percebe-se que
dele se pode ver o perigo de existir, mas descobre-se também que nele a vida não conhece
infelicidade, mesmo quando dói, pois nesse lugar a vida é pura celebração, vez que o verdadeiro
amor nos liberta de toda culpa e nos põe a salvo de todo medo.
Eu sei que viver assim é fascinantemente assustador para os que assistem a tal vida em seus
processos. Dessa forma, coletam-se amores, devoções, imitadores e patrocinadores. Mas
também surgem os aduladores, os traidores, os invejosos, os inimigos gratuitos de toda liberdade
conquistada pelo amor e pela graça. É neste ponto da existência que eu me sinto hoje. A tentação
agora é fazer opção por um dos lados. Se me dedico aos primeiros, vivo para a mediocridade que
se alimenta de fantasias. Se me entrego ao segundo grupo, passo a existir para manter um poder
que não me foi dado pela força, mas pela graça do amor e que pode sutilmente se converter em
poder satânico, que é aquele que existe para se proteger e para exercer controle, fruto do medo de
perder o que tem.
Prefiro morrer hoje a me entregar a qualquer desses dois grupos. Meu compromisso com
minha própria consciência é o de perseguir novas possibilidades de ser em Deus, pois de uma
coisa estou certo: bondade e misericórdia me segurão todos os dias de minha vida e habitarei na
casa do Senhor para todo o sempre.
Sou feliz, mesmo quando não estou feliz. Afinal, depois de tudo, eu pude perceber que
felicidade só existe como a possibilidade de ser, a cada dia, em Deus e em Seu amor. Assim, sem
escusas, eu confesso quem sou.

You might also like