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SOCIEDADE
Altair Alberto Fávero*
favero@upf.br
Introdução
*
Doutor em Filosofia da Educação pela UFRGS, Mestre em Filosofia do
Conhecimento pela PUCRS, professor e pesquisador do Curso de Filosofia da
Universidade de Passo Fundo (UPF).
suspeita” com relação a tudo e a todos. A sobrevivência impôs-se
como valor primeiro, relegando o valor do conhecer e da verdade a
um permanente processo de questionamento e refutação (Popper). A
filosofia, nesse contexto, foi perdendo “seus objetos” de estudo,
reduzidos a serem objetos empíricos das mais diversas ciências: a
“mente” humana passou às mãos dos neurologistas e psicólogos; a
“sociedade”, às dos sociólogos e dos historiadores; a “política”, às dos
cientistas políticos; a “ética” passou a ser assunto de “éticas
aplicadas”, nas quais os mais diferentes “profissionais” se sentem
aptos a discursar sobre ela. Como a filosofia não tem nenhuma “fatia”
da realidade para investigar (um objeto empírico propriamente dito),
assumiu a tarefa de estudar os “valores”, porém mesmo esses, “em
tempos pós-modernos”, parecem ter se evaporado na emanação
invisível de suas mensagens. “O que nos resta, pois, que possamos
estimar como tema aceitável de investigação filosófica?”, pergunta
Ferrater Mora. E ele mesmo responde: “Não há outro remédio que
concluir que o filosófico não é ‘aquilo do que se trata’, senão o modo
de tratá-lo. A filosofia se converte assim em um ‘modo de ver’ e em
um ‘um ponto de vista’” (1996, p.120). É nesse contexto que situo a
idéia de compreender a filosofia como redescrição e estetização da
sociedade. A intenção do texto é analisar, a partir dos escritos de
Richard Rorty, o impacto que tal concepção de filosofia pode ter
diante da atual crise de legitimação da própria filosofia e de sua
relação com a sociedade e com a educação.
1. A emergência da “estetização”
1
Rorty expõe de forma adequada o que tentei desenvolver até o presente momento
sobre a contribuição de Freud para pensar a redescrição enquanto estetização do
mundo. Optei por fazer uma apropriação livre, não literal do resumo, pois, do
contrário, demandaria um longo espaço no meu texto.
humana comum, Freud transformou-a em apenas mais
uma parte, não a mais central, de uma máquina
homogênea mais ampla. Com isso, ele identificou o
sentido do dever com a internalização de uma hoste
de episódios idiossincráticos acidentais, na qual o
sentido da obrigação moral limita-se a traços de
encontros entre pessoas particulares e nossos órgãos
corporais. Assim, a voz da consciência não é uma voz
da alma que lida com generalidades, mas é,
simplesmente, a memória (usualmente distorcida) de
certos eventos particulares.
3. A estetização e a moralidade
2
Essa expressão é utilizada por Richard Shusterman em seu livro Vivendo a arte,
anteriormente referido. Na leitura de Shusterman, Rorty estaria igualando os dois
(o ironista e o poeta-forte) “como sendo essencialmente o mesmo em sua busca
ético-estética, dado que ambos estão engajados na aspiração incerta do
enriquecimento e da criação do eu, pelo uso de novas linguagens para descrevê-lo”
(1998, p.209). No entanto, Shusterman discorda dessa abordagem rortiana, pois
acredita que os objetivos de autocriação e de auto-enriquecimento não são
idênticos. Diz Shusterman: “Não apenas podemos atingir um sem atingir o outro,
como os dois podem entrar em profundo conflito. A curiosidade insaciável pode
ameaçar a concentração necessária para uma criação gratificante de si. O ironista
curioso e o poeta criador podem representar, de fato, duas formas bem diferentes
de vida estética que Rorty mistura, de maneira errônea, na mesma vida estética
que preconiza” (1998, p.209). Não me deterei em analisar de forma detalhada essa
crítica apontada por Shusterman, pois demandaria uma outra direção de minha
pesquisa. No entanto, cabe registrar como um importante elemento para futuras
pesquisas.
A longa citação de Shusterman caracteriza, de modo compacto,
diversos traços que foram sendo apresentados no decorrer do
presente artigo. As fortes expressões de Rorty, acertadamente
ressaltadas por Shusterman na citação transcrita, são indicativos
importantes para percebermos a tarefa imprescindível do ironista na
cultura poetizada rortiana. Nesse sentido, que perspectivas a cultura
poetizada rortiana pode trazer para as crises do nosso tempo? Como
se daria o processo de autocriação e auto-enriquecimento no âmbito
educacional pensado com base na idéia rortiana de redescrição? Não
haveria o risco de um certo “esvaziamento do eu”? Tem razão
Shusterman (1998, p.210) ao dizer que “a ausência de um eu
estrutural”, “a geração ilimitada de vocabulários alternativos”, a
transformação do eu numa “multiplicidade inconstante de egos” e,
mesmo, a “redescrição permanente de si mesmo” anulariam “o
projeto de vida estética de Rorty, tornando-o sem significação”? É
possível, nesse sentido, conceber a redescrição como uma utopia
educacional? Que conseqüências a idéia de redescrição e estetização
teriam para pensar o ensino de filosofia? São questões que não
podem estar ausentes para pensarmos as possíveis conexões e
interfaces entre filosofia e sociedade numa perspectiva rortiana.
Talvez a filosofia não consiga mais ostentar a pretensão de ser um
saber universal, totalizante, abrangente e arquitetônico que
perseguiu no passado, mas possa, enquanto redescrição e estetização
da sociedade, garantir sua presença efetiva no conturbado mundo
que vivemos.
Bibliografia