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Assim por diante até onde? Até formar uma cadeia fechada de
sucessões harmônicas, um grande acorde cósmico pitagórico de relações
boas, verdadeiras e belas, nas quais podemos confiar para teorizar um
modelo ético platônico? Não, a verdade é que a chamada série
harmônica - ou série de Obertöne - progride até certo ponto
comportada, e depois começa a apresentar dissonâncias.
O canto dos monges tibetanos, portanto, que se inicia com uma nota
fundamental, a partir da qual, pouco a pouco, vão sendo reforçadas as
sonoridades parciais, oriundas das vibrações múltiplas contidas na série
original, não reproduz a imagem estática e ordenada de um universo
harmonioso e bom – aqui harmonioso e bom tomados como categorias
metafísicas da filosofia ocidental. O que se expressa aqui é, isto sim,
uma concepção de totalidade em que estão contidos todos os sons,
todos os seres, os ordenados e os desordenados, os consonantes e os
dissonantes, os belos e bons e os feios e maus. Entenderemos melhor
isto se desconsiderarmos o paradigma neo-platônico renascentista de
uma teologia da beleza.
O não-belo clássico, cristalizado em obras como o Quarteto 19, As
dissonâncias, de Mozart, ou o Concerto Tempesta di Mare, de Antonio
Vivaldi, pode ser considerado uma disputa lúdica entre ético e estético.
Pergunta: para garantir uma ética máxima teríamos que prescrever um
grau zero de dissonância e de feiúra? E mais: a abolição da categoria da
dissonância não passaria porventura de um estratagema sofístico, já
que, ao decretar-se a inexistência de dissonâncias por meio de um novo
sistema – atonal – este não sugeriria, por conseqüência, corresponder a
uma nova ordem amoral? Qual o sentido, então, de falar-se de música
boa, de som bom? Diante de tal tabula rasa, o aconselhável seria
procurar, como Descartes o fez com a moral, uma estética provisória?
Talvez Beethoven e Hegel já tenham dado resposta a isto: a grande
fuga do Quarteto opus 133 nos diz muito claramente que a música, a
partir dali, teria que procurar outros parâmetros para se expressar: o
belo já não seria possível. De outra forma, tout est bom qui fait du son
resulta em uma tautologia que nos fará correr eternamente em círculos,
buscando o belo em novas dissonâncias para daí em seguida decair ao
grau de belo acadêmico, isto é, feio, e assim eternamente. A reação já
existe dentro da própria série harmônica, como demonstrei no exemplo
do canto dos monges tibetanos. O feio musical é parte constituinte do
belo musical, e o fato de que o conjunto de punk rock Os Ramones
tenha destilado seu estilo se insurgindo contra o rock bem comportado
de sua década nasce da mesma raiz que fez, há quatro séculos, Claudio
Monteverdi fundir, nas Vespro della beata Vergine, todas as correntes
estéticas que tinha à mão, não se importando com os cânones estéticos
metafísicos então agonizantes do Renascimento. Monteverdi e os seus
sons são bons porque foram colocados juntos, lado a lado, mais que
isto: superpostos, assim como belo e bom na música não podem ser
categorias exclusivas. O convite de Beethoven é o mesmo de Hegel.