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Corrêa, B. C. A Educação Infantil. In: Oliveira, R. P.; Adrião, T. (org.

) Organização do Ensino no B
Xamã, 2002, pág. 13-32.

A EDUCACAO INFANTIL
BIANCA CRISTINA CORRÊA

INTRODUÇÃO

"... uma criança mal instruída encontra-se mais longe da sabedoria do que aquela que não recebeu
nenhuma instrução. Vós vos preocupais ao vê-la gastar seus primeiros anos em não fazer nada? Como!
Ser feliz será não fazer nada! Não será nada pular, correr, brincar o dia inteiro? Em roda a sua existência
não andará mais ocupada" (Rousseau).

No século XVIII, o grande educador francês Jean-Jacques Rousseau já sabia c nos falava sobre a
importância da infância, afirmando o Que para as crianças deve ser a ocupação principal: brincar e ser feliz.
Ele também já se preocupava com o tipo de educação oferecida às crianças, radicalmente, afirmava ser
melhor viverem livres do que receberem "instrução" inadequada.
O que temos a dizer, no século XXI, sobre a educação oferecida às crianças brasileiras de zero a seis
anos de idade fora do ambiente doméstico, em instituições educacionais coletivas? Como essa história vem
sendo construída? O que a legislação nacional mais recente traz de importante para essa educação?
Entender a legislação atual referente à educação infantil - creches e pré-escolas - pressupõe conhecer
um pouco de seu percurso ao longo da história educacional brasileira. Não pretendemos apresentá-Ia em
todos os seus detalhes ou nuances, com as suas diferentes perspectivas e diversas contradições, mas as
linhas gerais aqui apresentadas poderão orientar leituras posteriores que aprofundem o conhecimento
sobre um ou vários aspectos dessa história que, afinal, é relativamente recente em nosso país. No
presente texto será apresentado em primeiro lugar uma síntese do movimento pelo qual passou a
educação infantil no Brasil, especia1mentc em relação às políticas públicas voltadas para a área. A partir
daí veremos como a questão foi tratada na Constituição Federal de 1988 (CF 88), grande marco na história
da educação em geral, mas, sobretudo para a educação infantil, pois os elementos nela contidos
apontavam, quando de sua promulgação, para um futuro promissor no atendimento à criança pequena.
Em seguida, discutiremos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei Federal nº 8.069 de
13/7/1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - Lei n° 9.394, de 20/12/1996),
especialmente para observarmos como esta última, lei maior da educação nacional, tratou da educação
infantil face ao que propugnava já a CF 88. Com relação à LDB, nesse tópico abordaremos não apenas a
seção que trata especificamente da educação infantil, mas também aqueles artigos que lhe dizem respeito
de alguma forma e, ainda, algumas normatizações posteriores à referida lei que afetaram de modo
inequívoco a educação infantil, direta ou indiretamente.
Embora só a idéia de ler ou estudar qualquer tipo de legislação cause sensações desagradáveis em
muitos estudantes - e em muitos profissionais -, o conhecimento acerca das leis em todos os âmbitos é
absolutamente fundamental quando se quer defender uma causa ou fazer valer direitos de cidadania. No
caso da educação infantil, conhecer a legislação é importante não apenas para se buscar a efetivação de
direitos das crianças de zero a seis anos de idade, como também para se ter uma idéia sobre como o
nosso país é tão competente para fazer boas leis quanto o é para não cumpri-Ias. Divirtam-se! Mas, se não
for possível, pelo menos aproveitem as "dicas" e conheçam um pouco sobre o universo da educação
infantil, vale a pena.
Creche, jardim, parque, pré-escola: que espaços são estes que acolhem as crianças antes da
escolarização obrigatória?
Pode-se afirmar inicialmente que o que há em comum entre as diferentes instituições de atendimento
à criança de zero a seis anos de idade ao longo da história educacional brasileira é o fato de que, de um
modo geral, os serviços prestados variaram sempre entre o péssimo e o precário quando destinados à
população de mais baixa renda. Assim, quando pensamos em educação infantil pública no país, podemos
logo ter a imagem da precariedade, salvo alguns raros períodos em que, em alguns municípios dirigidos
por gestores mais sensíveis à questão, de fato houve investimento sério na educação da criança pequena.
A expressão "educação infantil" no Brasil de hoje diz respeito ao atendimento, em instituições
coletivas, da criança de zero a seis anos de idade; mas nem sempre foi assim e, ademais, a idéia não é
tão simples quanto possa parecer.
Como em muitos países, o atendimento à infância no Brasil teve seu início marcado pela idéia de
"assistência" ou "amparo" aos pobres e "necessitados", daí as creches, por exemplo, terem estado por
tanto tempo vinculadas a associações filantrópicas ou aos órgãos de assistência e bem estar social, e não
aos órgãos educacionais nas diferentes esferas administrativas do país.
De um modo geral, as creches se caracterizaram pelo atendimento às crianças mais novas - zero a
três anos -, embora muitas também atendessem à faixa dos quatro aos seis, em período integral ou
parcial1. Outra característica marcante é o fato de que elas surgiram como trabalho beneficente para o
atendimento às populações de mais baixa renda e, ao serem oficialmente oferecidas pelo Estado,
vincularam-se aos seus órgãos de assistência e bem-estar social.
Já os jardins da infância e as pré-escolas voltaram-se para a faixa dos três ou quatro a seis anos e
vincularam-se desde o seu início aos órgãos ou sistemas educacionais - embora também tenham sido
oferecidas por igrejas e associações filantrópicas. O jardim de infância foi a nossa primeira instituição
pública de educação infantil (Kuhlmann Jr., 1998).
O fato de uma vincular-se a órgãos assistenciais e as outras duas vincularem-se à educação não
implica afirmar que a primeira seria "assistencial/assistencialista" e as demais, educacionais. O que se
pode dizer, com Moysés Kuhlmann Jr. (I998; 2000), é que todas as instituições de educação infantil -
creches, jardins ou pré-escolas - sempre tiveram (e têm) um projeto educacional, fosse ele voltado para a
submissão ou para o atendimento e formação das camadas médias ou da elite nacional. Assim, a distinção
que se pode fazer é entre os programas de atendimento voltados aos mais pobres e aqueles destinados
às camadas médias ou mais abastadas da população brasileira.
Os jardins da infância surgiram no Brasil, como em outros países, sob a influência de Friedrich
Froebel. Criador do "Kindergarten", este educador alemão preconizava o trabalho sistemático com as
crianças pequenas baseado em jogos c brincadeiras, numa minuciosa rotina de atividades e com caráter
disciplinador, visando à formação moral dos pequenos para que se tornassem adultos "virtuosos". Um dos
primeiros jardins da infância existentes no Brasil foi criado em 1896 como anexo à antiga Escola Normal do
Estado, Caetano de Campos, na cidade de São Paulo. Com a sua difusão, em 1940, por exemplo, Porto
Alegre já contava com cerca de 40 jardins da infância (Kuhlmann Jr., 1998).
Já os parques infantis surgiram na cidade de São Paulo em 1935 por ocasião da criação do
Departamento de Cultura daquele município e sob a direção de Mário de Andrade, idealizador do projeto.
Nesse período, os parques atendiam crianças de 3 a 6 anos e também as de 7 a 12 em período inverso
àquele em que freqüentavam a escola regular e objetivavam assistir, educar e recrear as crianças (Faria,
1999). Na década de 1940, os parques infantis também se difundiram pelo país a fora.
Além das creches, jardins e pré-escolas, outra denominação das instituições de atendimento
educacional à infância (na faixa dos quatro aos seis anos) bastante conhecida é Emei, que quer dizer
Escola Municipal de Educação Infantil. Esta denominação surgiu em meados da década de 1970 e na
cidade de São Paulo os parques infantis adotaram-na em 1975. Atualmente, a grande maioria das
instituições que atende crianças de quatro a seis anos está a cargo dos municípios e possui esta
denominação.
Se até a década de 1970 a oferta de educação infantil deu-se de maneira bastante tímida, foi a partir
desse período que ela começou a expandir-se de modo mais acentuado.
A partir de meados da década, a expansão na oferta de creches e pré-escolas deu-se, por um lado,
em função da pressão da demanda, especialmente aquela exercida por movimentos organizados da
sociedade civil e, por outro, porque o governo militar que dirigia o país à época temia por uma "explosão"
das camadas populares, dado que o nível de pobreza se acentuava.
Assim, nesse período surgiram, novamente, propostas de atendimento em grande escala e a baixo
custo para as camadas populares. De responsabilidade do governo federal, o assim chamado "Projeto
Casulo" foi um dos mais exemplares modelos nesse sentido. Defendia-se, por um lado, a idéia de que o
importante era atender a todas as crianças "necessitadas", não sendo possível preocupar-se com padrões
de qualidade para esse atendimento e, por outro, que era preciso otimizar os poucos recursos disponíveis,
além de envolver a comunidade nessa tarefa. A idéia também se difundiu pelo país; na cidade de São
Paulo, por exemplo, projetos chamados falaciosamente de "participacionistas" propuseram o trabalho
voluntário, por parte das mães, junto às escolas de educação infantil, com agrupamentos de até 70
crianças para uma professora e mais uma "mãe-monitora" (D'Antolla, 1983; Corrêa, 2001).
Entre as décadas de 1970 e 1980 entraram em cena as teorias de privação cultural e a idéia de
educação compensatória que, de certo modo, também influenciaram a expansão na oferta de educação
infantil. Acreditava-se ser possível resolver os altos índices de reprovação na primeira série do ensino
regular por meio da "compensação" oferecida, por antecipação, na pré-escola.
1
Estudo de Campos. Rosemberg e Ferreira (1995) indica que, mesmo se propondo ao atendimento de crianças
desde o seu primeiro ano de vida. a maior parte das creches brasileiras tem atendido principalmente as crianças
entre os quatro e os seis anos de idade.
O final dos 1970 e os anos 1980 também foram marcados pela forte discussão acerca do papel das
instituições de educação infantil: o meio acadêmico fez severas críticas às teorias de privação cultural e ao
caráter compensatório - ou preparatório - que a pré-escola teria e os movimentos organizados da
sociedade civil, bem como os profissionais da área, passaram a defender o que entendiam ser um caráter
"educacional ou pedagógico" para as instituições, contrapondo-se ao que então se via como meramente
"assistencial", tanto nas creches quanto nas pré-escolas públicas.
Para Kuhlmann Jr., o problema dessa polarização entre educacional e assistencial é que ela resultou
em perda de qualidade dos serviços em ambos os aspectos - tanto na sua dimensão de assistência quanto
na de cuidado - além de ler ajudado a encobrir o que de fato é o cerne do problema, ou seja, o de que há -
houve e sempre haverá enquanto não se alterar a lógica socioeconômica vigente - dois modelos de
educação para a infãncia, sendo aquele voltado para os pobres o que o autor define como "pedagogia da
submissão" .
Chegamos à nova década e ao novo milênio com uma sofisticada discussão em torno dos conceitos
de infância e de sua educação no plano das instituições coletivas. Contudo, sob o ponto de vista das
práticas concretas, do cotidiano das instituições – seja sob a ótica das famílias usuárias ou a dos
profissionais que atuam na área -, estamos muito aquém do que se poderia chamar de, no mínimo,
satisfatório. Isto porque, entre outros aspectos, os investimentos em educação infantil sofreram uma
sensível diminuição em função da criação do chamado Fundef, cujos recursos são vinculados apenas à
matrícula no ensino fundamental, restando muito pouco para aquela que passou a ser reconhecida, pela
nova LDB, como a primeira etapa da educação básica nacional (Guimarães e Pinto, 2001).
Todavia, a despeito dessa diminuição nos já parcos investimentos, é preciso ressaltar as conquistas e
avanços no plano legal, os quais, se bem explorados, podem, ainda, garantir o que nesta Constituição
passou a ser um direito, ou seja, o acesso à educação infantil a todas as crianças cujas famílias assim o
desejarem.

CF 88: PRENÚNCIO DE VIRADA NA EDUCAÇÃO INFANTIL


O que a CF 88 traz de novo para a educação infantil brasileira e por quais razões isto ocorre?
O aspecto mais relevante presente na lei maior do país, para a educação infantil estão em seu Art.
208, inciso IV, quando afirma que "o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia
de: 1...1 atendimento em creche c pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade."
Entendemos ser este um dos pontos centrais porque, em que pesem outras normatizações ou a
discussão das competências no oferecimento dessa modalidade de educação ou, ainda, a discussão
quanto à prioridade nacional que é a universalização do ensino fundamental, o fato é que a redação dada à
Constituição não deixa dúvidas: a oferta de educação infantil em creches e pré-escolas é um dever do
Estado e um direito de todas as crianças de zero a seis anos. Embora a matrícula não seja obrigatória,
cabendo às famílias decidirem se querem ou não colocar suas crianças antes dos sete anos na escola,
para o Estado o seu oferecimento não é uma opção, mas um dever. Isto significa que, no plano jurídico,
uma nova lógica se impõe, dado que qualquer família que deseje colocar sua criança numa creche ou pré-
escola e não encontre uma vaga pode recorrer à própria Promotoria Pública para que esta, baseada e
fundamentada na Constituição Federal, acione o Estado a fim de que este cumpra seu dever. Sendo assim,
este é o grande diferencial e o aspecto mais relevante para '1 educação infantil, pois o que a CF 88 fez foi
instaurar um novo direito, impondo ao Estado um novo dever (Cury, 1998).
Mas, se nas constituições anteriores o atendimento à infância aparecia tão somente na condição de
assistência ou amparo, não é sem razão ou repentinamente que ela aparece, pela primeira vez, como um
direito e, sobretudo, na seção que trata da educação no país (Cury, 1998). Tal como mencionado
anteriormente, a década de 1980 foi marcada por importantes discussões teóricas acerca do papel da
educação infantil, bem como pela organização da sociedade civil em favor desse atendimento,
especialmente por movimentos de mulheres que, entre outras razões, ao entrarem em maior número para
o mercado de trabalho, incluindo se aí as camadas médias da sociedade, passaram também a procurar as
instituições coletivas de atendimento à criança de zero a. seis anos de idade. Durante o movimento da
Constituinte, quando se discutiam os pontos a serem abarcados pela nova Carta Magna do Brasil, o
engajamento dos profissionais da área por meio de associações representativas foi bastante intenso no
sentido de conquistar direitos para a criança de zero a seis anos. Esta mobilização contou com o apoio de
outros setores da sociedade civil organizada, tais como movimentos de mulheres, do Fórum em Defesa da
Criança e do Adolescente (DCA) e do Grupo Ação Vida, entre outros (Campos, Rosemberg e Ferreira,
1995).
Sendo assim, as conquistas garantidas pela CF 88 não se deram sem uma forte e necessária
mobilização e sem que as condições históricas as favorecessem, pois, como afirma Cury
esta Constituição incorporou a si algo que estava presente no movimento da sociedade e que advinha
do esclarecimento e da importância que já se atribuía à educação infantil. Caso isto não estivesse
amadurecido entre lideranças e educadores preocupados com a educação infantil, no âmbito dos
Estados membros da federação, provavelmente não seria traduzido na Constituição de 88 (1998, p.
11).

Ainda que o Artigo 208, inciso IV, seja, por assim dizer, o mais importante, há outros pontos que se
referem à educação como um todo e que atingem também a educação infantil. Vejamos quais são eles.
O Artigo 20S indica que a educação é "direito de todos", "dever do Estado e da família", que deve ser
"promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho." Aqui, o que resta mais
importante para a educação infantil são as idéias do direito ao acesso para todos e os objetivos de pleno
desenvolvimento da pessoa.
Nos sete incisos do Artigo 206, enumeram-se os princípios sob os quais o ensino deve ser ministrado
e, como a LDB de 1996 vai afirmar a educação infantil como primeira etapa da educação básica nacional,
entende-se que tais princípios também lhe digam respeito. Embora todos sejam da maior relevância,
dentre eles, destacamos os seguintes:
I - "igualdade de condições para o acesso e permanência na escola". Este princípio ratifica, em
primeiro lugar, o direito de acesso a todas as crianças, o que pode ser mais uma forma de pressionar o
Estado à ampliação na oferta de vagas e, além disso, embora pouco tenha-se falado a respeito, muitas
pré-escolas, com o conhecimento ou não dos órgãos de supervisão de seus respectivos sistemas, criam
experiências em suas práticas cotidianas que simplesmente excluem ou em muito dificultam o acesso e a
permanência a todas as crianças (Corrêa, 2001);
VII - "garantia de padrão de qualidade". Garantir padrão de qualidade é condição que jamais pode-se
perder de vista, dado que na história da educação infantil brasileira a marca de sua origem, bem como a de
sua expansão, sempre foi a precariedade. É preciso, assim, combinar quantidade - ampliação na oferta e
acesso a todos que a queiram - com qualidade (Corrêa, 2001).
O Artigo 209 afirma que "o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I -
cumprimento das normas gerais da educação nacional; e II - autorização e avaliação de qualidade pelo
Poder Público". Isto significa um importante avanço, na medida em que pode, se não impedir totalmente,
dadas as dificuldades para que uma efetiva fiscalização aconteça, ao menos inibir a existência de
instituições privadas que atendam crianças na faixa dos zero a seis anos de idade sem nenhuma
preocupação com a qualidade do serviço (as conhecidas "escolinhas de fundo de quintal", onde muitas
vezes os problemas vão do espaço inadequado à falta de qualificação ou formação mínima daqueles que
respondem por essas crianças). Dado que o Artigo 213 da CF 88 prevê a possibilidade de repasse de
recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos - o que foi
ponto de muita polêmica durante a Constituinte -, a garantia de fiscalização e avaliação destas instituições
pelo Poder Público torna-se ainda mais premente (Campos, Rosemberg e Ferreira, 1995; Oliveira, 2001).
O outro artigo fundamental da CF 88 é o 212, no que diz respeito à vinculação de percentuais
mínimos de gastos da receita de impostos com educação para cada ente federativo, a saber: União. 18%;
Estados. Distrito Federal e municípios. 25%. Esta idéia expressa na lei faz-se relevante porque, como já
demonstraram alguns estudos, nos períodos em que esta vinculação esteve firmada pela Constituição
Federal os gastos com educação no país foram significativamente maiores (Melchior, 1984 apud Campos.
1989).
Aqui chegamos finalmente a um dos pontos polêmicos pois se de um lado há a vinculação de gastos
mínimos com educação a CF 88 também especificou níveis prioritários de atuação e aplicação de recursos
para cada esfera administrativa - União, Distrito Federal, Estados e municípios. Em parte a polêmica se
deve à legislação posterior que regulamentou ou "emendou" a CF 88 mas também às formas diferenciadas
pelas quais tem-se interpretado a própria CF 88 face a estas regulamentações posteriores. Vejamos a
questão mais detidamente.
O Artigo 211 afirma que "a União, os Estados, o Distrito Federal c os Municípios organizarão em
regime de colaboração seus sistemas de ensino." O texto, sem nenhuma leitura de entrelinhas, é claro
quando diz "em regime de colaboração" portanto entende-se que a nenhuma esfera caberá a
responsabilidade única e exclusiva por quaisquer deveres relativos à educação pública.
Além da alteração nos dois primeiros parágrafos do Artigo 211, foram aí acrescentados mais dois pela
Emenda Constitucional 14, de 1996 (EC 14). a qual também altera o disposto no Artigo 60 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e dispõe sobre a criação de um "Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério", determinando que 60%. no
mínimo dos recursos referidos no caput do artigo 212 sejam destinados ao ensino fundamental. Mas afinal,
o que isso tudo tem a ver com a educação infantil?
O fato é que a interpretação geral que tem sido dada à lei - e a LDB de certa forma reforça esta
interpretação - é a de que caberia tão somente aos municípios a responsabilidade pela oferta de educação
infantil. Além disso a EC 14 acima citada. Posteriormente regulamentada pela Lei n" 9.424/96 - Fundef -,
acabou implicando uma diminuição ou o congelamento da oferta de educação infantil na maior parte dos
municípios do país (Dourado. 1999). A educação infantil ficaria, assim, como que "órfã" sendo o ensino
fundamental a prioridade dos municípios e estes os únicos responsáveis pela educação infantil, como
resolver o impasse?
Todavia, como bem observou Carlos Roberto Jamil Cury (1998), a Emenda 14 não alterou o Artigo 30
da CF 88. Este é um aspecto que tem sido pouco explorado, embora seja de importância capital. No
capítulo em que trata dos municípios, a CF 88 em seu Artigo 30, inciso VI, é bastante clara: "Compete aos
municípios [...} manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de
educação pré-escolar e de ensino fundamental [...1" Pelo que se lê, "os Estados continuam co-
responsáveis pelo ensino fundamental e pela Educação Pré-Escolar", afirma Cury (J 998), esquecendo-se,
entretanto, de que o texto do Artigo 30, inciso VI não menciona apenas o Estado como co-responsável por
esses dois níveis ou modalidades educacionais juntamente com os municípios, mas também a União. Logo,
não apenas o Estado tem deveres diretos para com a educação infantil, como também a União, não
podendo estas duas instâncias furtarem-se de suas responsabilidades sob a alegação de que caberia
apenas ao município a oferta dessa educação. Infelizmente, esta não tem sido a leitura mais usual da lei; a
título de ilustração, só para se ter uma idéia sobre o quanto o atual governo tem usado o que seria uma sua
obrigação - o auxílio financeiro aos municípios - como forma de marketing e com vistas a tornar
hegemônicas as suas propostas curriculares. Em 2001, as parcas verbas federais destinadas a projetos de
formação continuada de professores e professoras de educação infantil foram vinculadas e dirigidas apenas
aos municípios que estivessem "implantando" o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil,
documento elaborado e proposto centralmente pelo MEC para "orientar" a elaboração de projetos
pedagógicos por parte das escolas de educação infantil.
Embora tenha havido conquistas e o fato de a lei comportar a idéia de educação para a criança de zero
a seis anos de idade como um direito desta e um dever do Estado, do mesmo modo que foram necessários
muitos movimentos e a organização dos profissionais da área e da sociedade civil em geral para que isto
ocorresse (c porque a história não pára e porque as contradições continuam presentes), faz-se ainda
necessária uma forte e contínua mobilização para que o direito conquistado na letra da lei se efetive na
prática. Nas palavras de Cury "para dar a devida proteção a um direito social específico é preciso
financiamento; assim, o direito da criança, para que tenha a devida instrução, necessita de proteção com
eficácia e com financiamento" (1998, p. 10) Até o momento, a questão do financiamento permanece em
aberto: não há nenhuma vinculação OU fundo específico para a educação infantil e, na prática, apenas os
municípios é que têm-se responsabilizado pela sua oferta.
De qualquer maneira, é possível concordar com a reflexão realizada por Campos, Rosemberg e
Ferreira logo após a promulgação da CF 88: "as novas obrigações para o sistema educacional,
decorrentes da Constituição, não são poucas. Desde a coleta de dados estatísticos, passando pelas
legislações complementares até aS prioridades no planejamento e implementação de políticas
educacionais, a creche e a pré-escola não poderão mais deixar de ser incluídas, ao lado dos demais níveis
de ensino" (1995, p. 20).
Como se viu, após 1988, a educação infantil passou a fazer parte da educação básica e a ser motivo de
preocupação dos órgãos que legislam sobre a educação. O que ela ainda não conquistou, passados 13
anos da promulgação da nova Constituição Federal, foi o reconhecimento governamental de sua real
importância, com o decorrente investimento necessário.

ALGUMAS NORMATIZAÇÔES QUE AFETARAM A EDUCAÇÃO INFANTIL


O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n2 8.069, de 1990 - ECA) foi elaborado e sancionado na
forma de lei logo após a promulgação da Constituição Federal. Isto talvez explique, em parte, o seu
conteúdo tão significativo no que diz respeito às propostas de garantias e direitos para a infância e a
adolescência, pois os grupos e movimentos organizados em defesa dessa faixa etária haviam acumulado
experiência durante o processo constituinte e ainda se mantinham fortemente articulados dois anos após a
promulgação da Magna Carta. Pode-se afirmar que o texto dessa lei é extremamente avançado, pois ele
cobre por completo, de forma detalhada e incisiva, todos os aspectos relativos à vida da criança e do
adolescente (Oliveira, 2001).
Logo no início, em seus Artigos 3º e 4º, tem-se uma dimensão da importância conferida a estes dois
grupos etários:
Art. 3º - A criança c o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lci, assegurando-se-
Ihes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária.
Parágrafo Único - A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude.

Para o que nos interessa mais imediatamente na discussão acerca da educação infantil, vale ressaltar
a ênfase e a amplitude dos direitos consignados nos referidos artigos e a idéia de "garantia de prioridade"
no atendimento a esses direitos.
No Artigo 5º afirma-se que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer
atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais." Seria muito interessante que a sociedade
de fato começasse a se organizar e a acionar judicialmente Estado pelo serviço prestado, por exemplo, em
muitas creches pelo país afora, pois o que se vê em algumas instituições - públicas ou privadas configura-
se, no mínimo, como "negligência", para não falar em "violência e crueldade".
Com relação à educação, o ECA reafirma o texto constitucional, acrescentando alguns sutis, mas
fundamentais detalhes. No Artigo 53 ao tratar do direito à educação, define que esta deve assegurar, entre
outros aspectos - ou só para citar uma "sutileza": o "direito de ser respeitado por seus educadores". Para a
educação infantil em especial, face às limitações de auto-defesa das crianças em razão de sua pouca
idade, isto é absolutamente relevante. Sabe-se que, em algumas instituições, práticas como os castigos de
toda natureza, algumas vezes físicos, ainda se fazem presentes. O fato de haver uma lei contra isto não
garante, evidentemente, a sua superação, mas representa, sem dúvida, um poderoso instrumento de
repressão a tais práticas.
Uma diferença importante entre a CF 88 e o ECA - ou outra "sutileza" - refere-se ao tratamento
dispensado à forma de gestão da escola pública. Na primeira, em seu Artigo 206, afirma-se apenas que um
dos princípios sob os quais o ensino será ministrado é o da "gestão democrática do ensino público, na
forma da lei". Na segunda, não se fala especificamente em gestão, mas o Parágrafo único de seu Artigo 53
a pressupõe de modo que a participação das famílias nos rumos da escola - um dos pilares da gestão
democrática - é indicada numa perspectiva que, dadas as resistências e dificuldades no âmbito dessa
discussão (Paro, 2000), poderíamos classificar como arrojada: "É direito dos pais ou responsáveis ter
ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais" (grifo
nosso).
Finalmente, o Artigo 54 reafirma o dever do Estado -'sem especificar uma ou outra esfera
administrativa - em assegurar, entre outras coisas, o "atendimento em creche e pré-escola às crianças de
zero a seis anos de idade."
Em suma, esta é mais uma de nossas leis tão bem formuladas Que, por sua riqueza e para que seja
respeitada na prática, precisa ser lida com atenção, conhecida e amplamente divulgada.
Vejamos agora o que a LDB nos traz sobre a educação infantil. Em primeiro lugar, é preciso dizer que
a atual LDB, promulgada em 1996, passou por um longo processo de discussão; foram quase dez anos,
durante os quais as diferentes forças e segmentos sociais e econômicos se enfrentaram, por assim dizer,
em defesa de interesses muitas vezes antagônicos (Saviani, 1997). Quando ela finalmente foi
promulgada, o contexto político acabou por favorecer, em muitos aspectos, interesses dos setores da
educação privada e da Igreja, entre outros, em detrimento de alguns importantes ideais daqueles que
defendiam a escola pública, laica e democrática.
Desse modo, se este texto legal guarda consigo algumas conquistas históricas, é preciso ter em
mente que ele também apresenta limitações e até mesmo perdas para as camadas populares no que se
refere à educação. Detenhamo-nos, por ora, em seus pontos considerados como os mais positivos.
O Artigo 29 afirma que "A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade
o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico,
intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade." Já o Artigo 31 determina que
"Na educação infantil a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento,
sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental." Ambos são importantes
porque, trazem uma nova idéia, no plano legal, sobre as necessidades da criança de zero a seis anos de
idade, prevendo Que a escola deva ocupar-se de seu desenvolvimento global, configurando-se esta
educação como um complemento à ação da família (e da comunidade) e não como uma substituição
desta(s). Por outro lado, o Artigo 31 inibe práticas avaliativas absurdas que até bem pouco tempo eram
ainda comuns em algumas regiões do país, tais como as classes de alfabetização, nas quais crianças
eram retidas, mesmo após completarem os sete anos, caso ainda não estivessem alfabetizadas.
No inciso IV do Artigo 4º ao tratar do dever do Estado com a educação, a LDB inclui um termo que
reforça tal dever para com a educação infantil: "atendimento gratuito em creches e pré-escolas às
crianças de zero a seis anos de idade." A expressão "gratuito" não aparecia na CF 88 e tampouco no
ECA.
Como vários autores e estudiosos da área vêm ressaltando desde a sua promulgação, o que a LDB
traz de essencialmente importante para a educação infantil é o fato de tê-Ia incorporado como a primeira
etapa da "educação básica nacional", que além da educação infantil também é composta pelo ensino
fundamental e pelo ensino médio. O que significa dizer que a partir dai a educação infantil passa a fazer
parte dos sistemas, das estruturas regulares de ensino, trazendo como conseqüências para estes não
apenas o seu efetivo oferecimento - o que a CF 88 já determinava ao colocar a educação infantil como
um dever do Estado -, mas também a sua normatização e a sua fiscalização. Nas palavras de Cury: "a
educação infantil passa a fazer parte [...] da estrutura e funcionamento da educação escolar brasileira.
Isto quer dizer que a educação infantil deixou de estar prioritariamente no campo das escolas livres e
passou ao âmbito das escolas regulares" (1998, p. 12).
Esta inovação está presente no Artigo 21, inciso I, da LDB: "A educação escolar compõe-se de: I -
educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;" e é reforçada na
medida em que a educação infantil ganha, no corpo da lei, uma seção própria para definir a sua
especificidade.
Vale destacar que, em seu Artigo 30, a LDB define uma nomenclatura e uma faixa etária
correspondente, subdividindo a educação infantil, primeira etapa da educação básica, em duas etapas:
creche para crianças de zero a três anos e pré-escolas para crianças de quatro a seis. Todavia, ela não se
refere a horário de funcionamento ou duração de turnos de atendimento (integral ou parcial) para nenhum
dos dois grupos; tampouco determina que ambas as modalidades não possam ser oferecidas
concomitantemente ou por uma mesma instituição.
O fato de também as creches, que estiveram historicamente vinculadas aos organismos de
assistência social, passarem obrigatoriamente a integrar os sistemas educacionais reforça o direito e a
idéia de inclusão ao sistema regular sujeito a normas e regras gerais da educação pública nacional (ver
também Art. 89 das Disposições Transitórias).
Todavia, não se pode inferir que por si só estas inovações legais garantam um melhor padrão de
atendimento. Isto porque, dada a falta de recursos para a educação infantil - e por vezes também devido
à má-fé -, muitos municípios vêm interpretando a lei de forma enviesada: passaram a atender em
creches, de período integral, apenas as crianças de O a 3 e as de 4 a 6, em pré-escolas, de turno
parcial ou meio-período. Tal medida representa, em muitas localidades, um retrocesso, dado que o que
se oferecia anteriormente era o atendimento em período integral para crianças de zero a seis anos de
idade.
Isto posto, vale afirmar uma vez mais o quanto ainda se tem a fazer para que as medidas legais
não se transformem em letra morta e destacar que, como "a segmentação do atendimento da criança
pobre em instituições estruturadas precariamente continua na agenda dos problemas da educação
infantil brasileira" (Kuhlmann Jr., 1998), um longo caminho ainda temos a percorrer para que se
conquiste, de fato, uma escola infantil de qualidade para as nossas crianças.
Passemos agora a outros pontos que se referem à educação básica em geral para discutir algumas
conseqüências, problemas e especificidades da e para a educação infantil.
O Artigo 4' da LDB, já mencionado, em seu inciso IX, também prevê a garantia de "padrões
mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de
insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem." O Artigo 25, por seu
turno, afirma que "Será objetivo Permanente das autoridades responsáveis alcançar relação adequada
entre o número de alunos e o professor, a carga horária e as Condições materiais do estabelecimento"; e,
em seu Parágrafo Único, que "Cabe ao respectivo sistema de ensino, à vista das condições disponíveis e
das características regionais e locais, estabelecer Parâmetro para atendimento do disposto neste artigo".
Como já dissemos reiteradas vezes, a situação do atendimento público à criança de zero a seis anos de
idade no país tem sido marcada pela precariedade e pela falta de qualidade em todos os sentidos.
Mas, se por um lado a lei afirma a necessidade do estabelecimento de padrões mínimos de
qualidade, incluindo-se aí a razão adulto/criança, por outro lado ela abre a possibilidade de que cada
sistema de ensino adapte-se conforme as suas condições concretas de oferecimento e garantia desses
padrões. É certo que de nada adiantaria estabelecer-se padrões rígidos e idênticos para todo o território
nacional, uma vez que se sabe das grandes discrepâncias em termos de capacidade financeira nos
diversos Estados e municipios do país. Todavia, é preciso que se fique alerta para que esta "flexibilidade"
não acabe se configurando em mais uma justificativa para um atendimento precário.
O Artigo 92, que estabelece as incumbências da União, afirma, entre outros pontos, que é dever
dessa esfera administrativa "estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os
municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,
que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum"
(inciso IV, grifos nossos).
Com relação à educação infantil, o que se viu posteriormente à promulgação da LDB foi, em primeiro
lugar, o lançamento, pelo governo federal, do Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil
(RCNEI), no início de 1998. Se inicialmente a elaboração desse documento passou por um processo de
discussão mais ou menos democrático, envolvendo a consulta quanto ao seu conteúdo a alguns sistemas
de ensino e a especialistas na área, sua finalização não resultou deste movimento. O documento foi
finalizado por um pequeno grupo de especialistas, a despeito de uma série de críticas feitas por
pesquisadores e entidades representativas da área, amplamente divulgado e distribuído fartamente por
todo o país, como se fora uma cartilha. Uma das críticas mais recorrentes ao referido material incide sobre
o seu pretenso caráter modelar, na medida em que ele não seria "uma" referência curricular de apoio aos
educadores infantis, mas uma verdadeira "receita", um manual passo-a-passo para ser seguido na íntegra,
em flagrante desrespeito tanto à CF 88 quanto à LDB, que prevêem, entre outros princípios, o "pluralismo
de idéias e de concepções pedagógicas". A outra grande crítica refere-se ao seu formato fragmentado e
escolarizante, pois, da forma como o documento apresenta as áreas de conhecimento, é possível supor,
por exemplo, que o que se deseja é que os educadores orientem suas ações, mesmo com os bebês nas
creches, para que estes já tenham acesso aos conhecimentos "sistematizados" e possam "formular
hipóteses" sobre a língua escrita, a matemática etc. (Faria e Palhares, 1999, e especialmente os trabalhos
de Kuhlmann Jr.).
Como legislação complementar, temos também a Resolução nº 1, de 7 de abril de 1999 (Conselho
Nacional de Educação), que institui as "Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil".
O Conselho Nacional de Educação também coordenou a elaboração de um documento lançado pelo
governo federal em maio de 1998 com vistas a orientar os diversos sistemas educacionais quanto às
normas para credenciamento e funcionamento dos estabelecimentos de educação infantil. Com o título de
Subsídios para credenciamento e funcionamento de instituições de educação infantil, este documento, que
contou com a participação de diversos estados e municípios por meio de seus conselhos de educação,
traduziu-se num intercssante referencial com vistas à garantia de padrões de qualidade. Em vários
municípios ele já vem sendo adotado, se não na totalizada, em boa parte, para normatizar o funcionamento
das instituições já existentes e para o credenciamento das novas, incluindo-se aí as escolas privadas de
educação infantil.
Finalmente, resta falar um pouco sobre o profissional que atua na educação infantil.
Retomando a LDB, em seu Artigo 62 afirma-se que "A formação de docentes para atuar na educação
básica far-se-á em nível superior, cm curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e
institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na
educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na
modalidade Normal." Isto implica a obrigatoriedade de formação mínima - de nível médio, na modalidade
Normal - para todos aqueles que irão trabalhar com crianças de zero a seis anos de idade. Nas pré-escolas,
16% dos profissionais que aí atuavam em 1996 não possuíam esta formação mínima de nível médio
(MEC/lnep. Informe Estatístico, 1996). Entretanto, nas creches, mesmo nas Regiões Sul e Sudeste, e
mesmo na capital paulista, a grande maioria dos profissionais não possui a habilitação exigi da,
encontrando-se ainda muitos destes profissionais com formação apenas no ensino fundamental, muitas
vezes incompleto. Projeção feita por Fúlvia Rosemberg em meados da década de 1990 indicava que 40%
das pessoas que trabalhavam com crianças em creches municipais em todo o território nacional, não
possuíam sequer o ensino fundamental completo.
Nesse aspecto, temos dois problemas principais. O primeiro é de ordem econômica, embora esteja
vinculado a outros fatores relativos à organização dos sistemas educacionais, pois dada a escassez de
recursos - tantas vezes aqui mencionada -, os municípios, na prática os principais responsáveis pela
educação infantil, não têm tido como arcar com a formação dos profissionais que já constam de seus
quadros e que não podem, mais do que justamente, ser trocados por outros que possuam a certificação
mínima indicada pela LOB. Vale dizer que a formação exigida não se refere a qualquer formação em
serviço, mas, antes, a uma formação específica, que pode, sim, ser em serviço, desde que garanta a cada
profissional uma "certificação" no mínimo equivalente àquela que ele teria cursando o ensino médio regular
na modalidade Normal. O que se tem observado como tendência é a busca de alternativas por parte dos
próprios trabalhadores da educação infantil, individualmente, em grande parte porque não está claro se
eles poderão continuar atuando, já que o § 42 do Artigo 87 das Disposições Transitórias da LDB afirma que
"Até o fim da década da educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou
formados por treinamento em serviço." A "década da educação" teve início um ano após a promulgação da
LDB, em 1997, e o prazo mencionado para que todos os profissionais estejam habilitados observe-se, em
"nível superior" - expira em 2007.
Um segundo problema que entendemos ser dos mais sérios no que tange à formação dos
profissionais de educação infantil diz respeito às características dos cursos existentes, mesmo os de nível
superior2.
Iniciamos este texto citando Rousseau E a sua preocupação com a "instrução" das crianças. Claro
que o contexto era outro e o autor não se referia estritamente a essa faixa etária ou à educação infantil tal
como a estamos discutindo hoje, mas o princípio geral de sua afirmação nos vale para o momento. Pensar
sobre a formação do profissional que atuará com crianças de zero a seis anos de idade requer uma
reflexão em torno de quais são as necessidades delas, além de considerar os seus direitos. O que se quer
oferecer às crianças? Instrução, educação, cuidado, assistência? Há que se oferecer o mesmo tipo de
atendimento para as mais novas (zero a três) e para as mais velhas (quatro a seis)? Quais são as
características, do ponto de vista físico ou biológico, psicológico, afetivo, cognitivo e social, desses dois
agrupamentos etários? O que elas são capazes de aprender e de que maneira? O que elas "precisam"
aprender? Como interagir com as famílias, já que, dada a faixa etária, há maior necessidade de contato
entre elas e a escola? Estas e outras tantas questões precisam ser objeto de reflexão por todos aqueles
que irão trabalhar com crianças dessa idade.
Em vista disso, a preocupação deve-se ao fato de que os cursos de formação de professores, em
geral, estão centrados nos problemas e questões relativas às séries iniciais do ensino fundamental, e
mesmo assim, de maneira muito genérica. Só para citar o exemplo daquela que é considerada uma das
maiores universidades da América Latina, em seu curso de Pedagogia a USP oferece apenas uma
disciplina obrigatória que trata especificamente da educação infantil 3. A faixa dos zero a seis anos de idade
é extensa demais e cobre uma das fases mais complexas do desenvolvimento humano, exigindo, portanto,
muito mais tempo e profundidade de estudos por parte daqueles que atuarão nesse segmento.
Assim, para além da discussão legal acerca da qualificação ou da "certificação" mínima e cumprindo-se
ou não a lei quanto à obrigatoriedade desta certificação até 2006, ainda há muito que discutir e que avançar
a respeito do desenho, ou da estrutura que os cursos de formação de profissionais para a educação infantil
precisam incorporar.
Como se pode ver, tanto a oferta de educação infantil - com mais vagas e padrões mínimos de
qualidade - quanto a formação dos seus profissionais, implicam investimentos cujos montantes não são
nada pequenos.
A verdade é que ainda vigora o discurso de que faltam recursos para a educação infantil em vista das
"prioridades" do país, no caso, o ensino fundamental. Entretanto, é preciso enfatizar que, na verdade, o que
falta é disposição política por parte do governo para investir - ou gastar - com a educação pública de um
modo geral. Assim, o embate para que a educação pública em nosso país seja de fato um direito, incluindo
a educação infantil, passa, entre outras coisas, pela discussão e pelo acompanhamento das fontes de
financiamento e das formas de sua utilização.

2
Após a promulgação da LDB com a exigência de nível superior aos professores da educação básica o que se tem
visto é uma gradual extinção dos cursos de ensino médio modalidade Normal (também chamado de segundo grau
com habilitação para o magistério), dado que em pouco tempo valendo a lei esta formação não terá mais validade
alguma.
3
3 Para citar apenas um exemplo. o curso de pedagogia da UFRGS oferece 6 disciplinas que tratam especificamente
da criança de zero a seis e de sua educação, Sem entrar na discussão acerca de sua qualidade há de se convir que
os estudantes daquele curso têm no mínimo uma maior carga horária e. seguramente, um maior período para
conhecer sobre o assunto.

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