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Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

A História
do Historiador
Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


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É proibida a reprodução parcial ou integral, sem autorização dos detentores do copyright
Humanitas Publicações – FFLCH/USP – maio 1999 FFLCH
Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

ISBN: 85-86087-??-?

Tereza Aline Pereira de Queiroz


Zilda Márcia Grícoli Iokoi

A História
do Historiador

PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP

1999
Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

4 Copyright
QUEIROZ,
QUEIROZ, 1999 da
Tereza Humanitas/FFLCH/USP
Tereza
Aline Pereira
A. Pereira
de &de
IOKOI,
& IOKOI,
ZildaZilda
MariaM.Grícoli.
Grícoli
É proibida a reprodução parcial ou integral,
sem autorização prévia dos detentores do copyright

SERVIÇO DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO DA FFLCH/USP


FICHA CATALOGRÁFICA: MÁRCIA ELISA GARCIA DE GRANDI CRB 3608

Q 42 Queiroz, Tereza Aline Pereira


A História do Historiador / Tereza Aline Pereira de Queiroz,
Zilda Márcia Gricoli Iokoi. – São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP,
1999.
116 p

ISBN 85-86.087-54-8

1. História 2. Historiografia 3. Historiadores I. Iokoi, Zilda


Márcia Gricoli II. Título.
CDD 901

HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP

e-mail: editflch@edu.usp.br
Tel.: 818-4593
Editor responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial e Diagramação


M. Helena G. Rodrigues

Capa
Joceley Vieira de Souza

Revisão
Autoras / Simone Zaccarias

Montagem
Charles de Oliveira / Marcelo Domingues
Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

SUMÁRIO

Introdução ......................................................................... 7

As Antigüidades ............................................................... 13

As Idades Médias ............................................................. 37

As Idades Modernas ......................................................... 53

A Modernidade ................................................................. 69

O Historiador Contemporâneo ........................................... 87

Bibliografia .................................................................... 113


INTRODUÇÃO 7

INTRODUÇÃO

“Quando eu evoco um arco, cheio de beleza e simetria,


(...) uma certa realidade que o espírito conheceu
através dos olhos e que foi transmitida à memória,
suscita a visão imaginária.”

Agostinho, De Trinitate, IX, xi, 6.

Passado e memória dão conteúdo, identidade e espessura


a todos os humanos. Por mais isolado que se encontre um gru-
po, uma comunidade ou mesmo um só indivíduo, todos estão
imbuídos de um passado, de uma memória e de uma história. A
história de si mesmos é também a história da vinculação com
determinado tempo e espaço. Embora a individualidade se ela-
bore dentro de uma dinâmica, onde se relacionam o vivido e o
concebido, isso não torna todos os homens historiadores. A his-
tória pessoal de cada um inevitavelmente terá raízes numa his-
tória externa, mais ampla, mais difusa, imbricada com o social,
o econômico, com as estruturas da cultura, nem sempre per-
ceptível no plano da consciência individual. É justamente da
tradução dessas histórias através de narrativa coerente, elabo-
rada a partir de elementos concretos, não ficcionais, com bases
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num múltiplo e complexo inter-relacionamento entre tempo, es-


paço e a expressão dos grupos humanos, que se ocupará o
historiador. O historiador não será guardião da memória indivi-
dual, ou memorialista, mas aquele que ao indagar capta o sen-
tido da construção de uma memória social no tempo, criando
uma imagem do passado. Neste sentido a memória é documen-
to e não produto final.
Apesar de o indivíduo existir na história, não será ele o ob-
jeto principal do historiador. Mesmo em períodos onde se privile-
giou uma história de heróis, foi impossível caracterizar a
heroicidade isoladamente; o herói sempre precisou de um mo-
mento adequado para demonstrar sua habilidade e, principal-
mente, de uma identificação com um objetivo suprapessoal, com
um grupo e com idéias por este concebidas. As relações interpes-
soais, a construção mental e física do mundo, o exercício do po-
der de uns sobre os outros, os encontros entre diferentes estão na
base daquilo que Virginia Woolf definia como “fantasma imenso e
coletivo, incapaz de ser exorcizado” ou seja, o passado, ao qual o
historiador dará forma para que ele se transforme em história.
Assim como o conteúdo da história não é o indivíduo isola-
do, tampouco o historiador expressará uma subjetividade ilimi-
tada na sua captação do passado. Pelo simples fato de partici-
par de um passado realizado no presente, de pertencer ou se
projetar num determinado grupo social, seu trabalho expressa-
rá uma historicidade intrínseca na escolha de temas, na abor-
dagem, na leitura da documentação, no processo de reflexão
convertido em texto. Paradoxalmente, nesta condenação do his-
toriador ao presente situa-se a eternidade de um passado que
nunca se esgota. Caso contrário, a história da Grécia, por exem-
plo, teria sido escrita por Heródoto e ponto final. No entanto,
cada século reelaborou a história grega dentro de suas perspec-
tivas e possibilidades. Nos limites entre a “consciência possível”
e a “consciência real” próprias e de seu tempo, o historiador
busca no passado a consciência de seu próprio tempo.
INTRODUÇÃO 9

Devemos considerar também que nem sempre o termo his-


toriador foi utilizado para identificar aquele que se ocupa do
passado. Tampouco existiu uma profissão ou uma carreira de
historiador em todos os tempos e todas as sociedades. Pessoas
com os mais diferentes perfis e formações desempenharam fun-
ções de destrinchar, refletir, falar ou escrever sobre o passado,
tendo em vista as mais variadas preocupações e múltiplas per-
cepções de tempo.
O historiador, diante da necessidade de organizar seu pen-
samento, seu entendimento, cria medidas e categorias de tem-
po, organiza esse tempo em função de fatos, de ciclos, de épo-
cas, de estruturas. Com isto acrescenta uma noção de tempo
diversa daquela vivida pelas comunidades; na antigüidade, por
exemplo, foi Timeu da Sicília, no século IV a.C., que introduziu
um sistema numérico estabelecendo uma correlação entre as
crônicas das diversas cidades-estados, dado que cada uma es-
tabelecera uma cronologia a partir das listas de dignatários que
a cada ano as governavam. O tempo jamais é único no estudo
da história, pode ter uma predominante qualitativa ou quanti-
tativa, é desigual e particular a cada sociedade, a cada momen-
to e a cada espaço. É físico e metafísico. Pode até mesmo não
existir.
Dependendo de suas crenças, é possível a uma sociedade
conceber o mundo sem passado, num eterno presente em que
passado e futuro se fundem. No Egito, na China, na Índia, em
Aztlán, há deuses que significam o próprio tempo, um tempo
contínuo, sem fraturas, sem imperfeito ou mais-que-perfeito;
predomina então uma idéia do não-tempo divino que interpenetra
o cotidiano.
Na cultura do cristianismo, forjadora de uma forte estru-
tura conceptiva no ocidente, ocorre o inverso, o tempo existe na
esfera do humano, fora da divindade, que é eterna. No século V,
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Santo Agostinho atribuiria ainda ao tempo cristão uma nuance


psicológica; o presente torna-se uma experiência na alma; o
passado é uma imagem memorial da alma; o futuro existe como
expectativa psíquica; o tempo comum é passageiro e sem senti-
do e cessará no momento em que a alma se unir com Deus – o
fora do tempo. A noção personalizada do tempo de Agostinho
coincide, num outro plano de conjectura, com a percepção de
Albert Einstein de que as indicações de tempo eram sempre re-
lativas à posição do observador; assim, dois fatos simultâneos
podem ser vistos tanto simultaneamente como numa seqüência
temporal. Para Einstein espaço e tempo formam um contínuo
quadridimensional, exatamente como os astecas haviam conce-
bido o deus Omotéotl, com os quatro Tetzcatlipocas nos quatro
cantos do espaço, criando o espaço e o tempo simultaneamente.
Em virtude da crença numa determinada idéia do tempo
– cíclico, por exemplo, como uma cobra mordendo seu próprio
rabo, como o ritmo das estações, ou linear, como um rio que
flui, como a areia da ampulheta – o narrador da história busca-
rá seus conteúdos e o próprio espírito da narrativa de maneiras
diversas. Se baseada no eterno retorno, no cíclico, na idéia de
nascimento, desintegração e renascimento, a história assume o
papel de mestra, pois conhecendo o passado descortina-se um
futuro sem surpresas. Na visão linear, judaico-cristã por exce-
lência, com um início, meio e fim assegurados, a ênfase recairá
no processo de aperfeiçoamento do mundo até atingir seu ponto
culminante representado por seu próprio fim; a esta concepção
liga-se uma idéia intrínseca de progresso, de progressão contí-
nua, de propósito divino, excluindo a noção de ruptura. Em 1830,
Hegel propõe a seus alunos a construção de uma história filosó-
fica plena de necessidade, de totalização e de finalidade, que
evocaria “a manifestação do processo absoluto do Espírito em
seus mais elevados aspectos: a marcha gradual através da qual
a humanidade atingiria sua verdade e tomaria consciência de
INTRODUÇÃO 11

si. Para ele, os povos históricos, com as características determi-


nadas de suas éticas coletivas, de sua constituição, de sua arte,
de sua religião, de sua ciência, constituiriam as configurações
desta marcha gradual (...) Os princípios dos espíritos dos povos
(Volksgeist), na série necessária de sua sucessão definidas ape-
nas como momentos do único Espírito universal: graças aos
homens, Ele se eleva na história a uma totalidade transparente
a si mesma e traz a conclusão.” Nada mais distante da prática
histórica das últimas décadas do século XX, que leva em conta
diferenças, descontinuidades e descompassos.
Estas diferenças, as descontinuidades, que por vezes só
travestem a própria continuidade, estão na base deste trabalho,
uma análise suscinta das idéias que nortearam as diversas cons-
truções do passado elaboradas pelos historiadores no ocidente.
A partir de uma pré-história da história na antigüidade grega e
romana até a contemporaneidade observaremos quão variável
foi o papel da história e do historiador nas sociedades. No interior
do discurso histórico poderemos perceber as injunções do poder
na escolha dos temas evocados, a ausência quase total ou a
detratação e estigmatização dos elementos que não partilhavam
desse poder – artesãos, camponeses, escravos, índios, mulheres,
crianças, incapacitados, desocupados, doentes –, as ideologias
do poder religioso que muitas vezes emprestaram suas estraté-
gias para o poder temporal. Observaremos quão útil pode ser o
passado na criação de mitos destinados à mobilização de po-
vos para a guerra e a conquista, à criação das nações e nacio-
nalidades, de culturas hegemônicas, de despotismos e imperia-
lismos, mas também de um senso de libertação e justiça através
do conhecimento e da consciência de um estar no mundo eiva-
do pela dinâmica do passado.
Também a análise da vida pessoal, dessa individualidade
relacionada com o todo, e dos móveis particulares que guiam os
historiadores mencionados no corpo do trabalho, nos auxilia a
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vislumbrar a importância maior ou menor desta especialização


do saber nos diferentes tempos e espaços, bem como suas fun-
ções ideológicas, políticas e culturais. Mas, sobretudo, a enun-
ciar uma história dos historiadores.
AS ANTIGÜIDADES 13

AS ANTIGÜIDADES

“Vocês gregos são apenas crianças, falantes e vãs, que


nada sabem do passado.”

Sacerdote egípcio falando com Solon.

Antes da história havia as lendas, as cosmogonias. A me-


mória coletiva dos ancestrais era narrada por homens sábios
para toda a coletividade. O passado, quase nunca interpretado
com o distanciamento próprio à racionalidade ocidental, contri-
buía com medidas e parâmetros, certezas e temores, para um
sentido de enraizamento, de identidade dos grupos. A sofistica-
ção intrínseca à construção dos passados míticos é enorme. A
importância dos narradores na sociedade, primordial. Estas
narrativas tinham uma ligação profunda também com o não
verbal, danças, rituais, elementos arquitetônicos, pinturas, pa-
drões téxteis, cerâmicos etc...; inseriam-se numa totalidade sem
distinções entre a “história”, a “geometria”, a “literatura”, a “re-
ligião” ou os afazeres cotidianos da vida. Hoje em dia, na África,
ainda encontramos comunidades onde os velhos detêm a me-
mória de acontecimentos ocorridos no século XV ou mesmo antes;
na Albânia, há poucas décadas, ainda podiam ser vistos poetas
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que, de vilarejo a vilarejo, narravam epopéias evocativas de uma


tradição homérica.
A relação interno-externo, humano-divino, alto-baixo,
cheio-vazio, direito-esquerdo, portanto, a relação entre opostos
norteia as narrativas míticas, que tendem a horizontalizar um
discurso, abrandar os lapsos entre duas ações consecutivas,
estabelecer laços. Assim, Deus criou o céu e a terra; a terra era
informe e vazia, mas antes dela deveria existir o grande vazio
sobre o qual a Bíblia nada fala, mas que encontramos no texto
de uma pirâmide egípcia: “quando o céu não havia nascido,
quando a terra não havia nascido, quando o homem não havia
nascido, quando os deuses não haviam sido concebidos, quan-
do a morte não havia nascido...”. A idéia do vazio para o cheio,
do antes para o depois, da seqüência de atos, da detecção dos
momentos de mudança, da vontade de preservação dos diferen-
ciais, serão algumas das formas da mitologia adotadas pelo dis-
curso histórico escrito.
Esta história escrita, no entanto, não é de imediato aceita
sem resistências, mesmo entre as elites e os intelectuais. No
Phaedrus de Platão (428 a.C. - 348 a.C.), Sócrates lamenta a
expansão do texto escrito e da leitura, que fariam esmorecer a
memória e suas faculdades críticas. A nostalgia da tradição oral
pode ser sentida na época de Tucídides (c. 470 - c.395), quando
gregos cultos se lembram do tempo em que a história era pre-
servada pela memória do povo.
Heródoto (c. 484 a.C. - 425 a.C.) declara no início de suas
Histórias – este título, aliás, é posterior, pois na época as obras
não vinham com denominação – seu desejo de expor suas pes-
quisas (historíé) para impedir que os feitos de gregos e bárbaros
se apagassem da memória, principalmente as razões de terem
entrado em conflito. Estão aí presentes, portanto, as noções de
memória, identidade, seqüência de acontecimentos e confronta-
ção entre opostos como apresentadas pela tradição mítica. Ago-
AS ANTIGÜIDADES 15

ra, no entanto, centrados no mundo da ação, com pouca ênfase


ou nenhuma nas correspondências entre universo e humanida-
de, separando as esferas do sagrado e do profano.
Esta tentativa de distinção, na verdade, já fora concebida
antes de Heródoto, nas Genealogias de Hecateu de Mileto (c.
540 a.C. - 480 a.C.). Situada na costa da Ásia Menor, Mileto era
um dos maiores centros comerciais internacionais na época e,
portanto, aberta a contactos muito diversos. O aristocrata
Hecateu cresce durante os primeiros tempos da ocupação persa
(a partir de 546 a.C.), num momento que corresponde também
a uma mudança de atitude nas indagações e explicações sobre
o mundo, sua origem e natureza, a um ensaio de afastamento
em relação às tradições legendárias e mitológicas pela chamada
escola jônica de filósofos. Após suas viagens pelo Egito e Pérsia,
Hecateu chega à conclusão de que as tradições históricas vigen-
tes na Grécia tinham algo de ridículo e deveriam ser discutidas.
Este processo de separação do mito e do fato concreto é seme-
lhante àquele ocorrido no âmbito da passagem do pensamento
mítico à razão e à construção da pessoa, como analisa Jean
Pierre Vernant em Mito e pensamento entre os gregos. Por outro
lado, esta nova história escrita, ao implicar uma desconfiança
frente à memória e à oralidade comum, privilegiará uma elite
alfabetizada, público alvo desta nova memória.
O registro escrito grego, no entanto, é relativamente tardio
quando comparado com o de outras culturas, como a judaica. O
Pentateuco data de c. 900 a.C. Por volta do ano 80, o historiador
judeu Josephus ironizava a crença de que os mais antigos fatos
estariam ligados aos gregos e que estes fossem a única fonte da
verdade; considerava que a história grega era muito recente, “de
ontem ou ante-ontem” e que a idéia de compilar histórias era
ainda mais recente; diz ainda que os próprios gregos estavam
cientes de que os egípcios, caldeus e fenícios, para não falar dos
judeus, teriam preservado a memória das tradições mais anti-
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gas. Josephus argumentava também que os gregos não tinham


um sentido do passado enraizado e que um acontecimento como
a guerra de Tróia (c. 1250 a.C) era considerado legendário e não
histórico.
Apesar de não ser o primeiro e nem o único, é a figura de
Heródoto que assombra o imaginário dos historiadores de todas
as épocas. O republicano Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), ao
transformá-lo em “pai da história”, acabou por despertar em
todos um sentido de filiação, de dependência em relação a uma
autoridade. Em vista disso, Heródoto foi tripudiado, acusado de
mentiroso, louvado, protegido, perdoado, imitado, tratado com
condescendência, com eqüidade, mas inevitavelmente acabou
por estar sempre presente numa espécie de raiz de uma árvore
genealógica fantasmagórica dos historiadores.
Muito pouco sabemos sobre Heródoto. As informações de
que dispomos são indiretas e por vezes tidas como fictícias. Nas-
cido em Halicarnasso por volta de 480 a.C., tornou-se cidadão
de Thourioi na Itália do sul. Foi exilado em Samos, viajou pelo
Oriente Médio, sobretudo no Egito, conheceu a região do mar
Negro, a Grécia continental e a Itália do sul. Parece ter vivido
algum tempo em Atenas, mas segundo tradições diversas teria
morrido em Thourioi, ou em Pella na Macedonia ou em Atenas
mesmo. Viveu numa época atormentada, entre o fim das guer-
ras médicas e o início da guerra do Peloponeso.
Hoje em dia conhecemos as Histórias de Heródoto dividi-
das em nove livros – cada um correspondendo a uma musa.
Este formato, no entanto, parece ter sido criado na época
helenística. Num estudo publicado em 1980 sobre a representa-
ção do outro na obra de Heródoto – a questão do outro é funda-
mental na historiografia da segunda metade do século XX, como
você verá mais adiante – o historiador francês François Hartog
considera que a associação das narrativas das Histórias com as
musas demonstraria que a obra deveria então ser vista em
AS ANTIGÜIDADES 17

proximidade com a poesia e a ficcão. O mesmo sentimento sur-


ge num comentário de Voltaire, em 1768, em que Heródoto é
louvado pela novidade de seu empreendimento e sobretudo por
suas fábulas. Voltaire une duas tradições contraditórias; de um
lado reforça o mito fundador de Heródoto como modelo dos his-
toriadores e de outro aponta para o caráter ficcional da obra. A
tradição de que a obra de Heródoto é fabulosa, portanto menti-
rosa, reporta-se a Tucídides, que não acreditava na possibilida-
de de se escrever uma história do passado, mesmo próximo.
Mais tarde, Plutarco (c.46-49 - c. 125) reitera as acusações de
falsidade e acusa ainda Heródoto de philobárbaros – admirador
dos bárbaros – e traidor da Grécia.
Os primeiros quatro livros das Histórias falam dos não gre-
gos – lídios, persas, babilônios, massagetas, egípcios, citas, líbios,
etc., enquanto que os demais narram principalmente as guer-
ras médicas. A escrita da história nascia então sob o signo da
guerra, pois o Heródoto historiador durante muito tempo foi
associado a esta parte da obra, em contraponto com o Heródoto
viajante – dicotomia hoje superada pela semântica histórica.
Heródoto trabalhou com um material diverso e enorme.
Com fontes orais ao interrogar pessoas com quem se encontra-
va, com a experiência visual obtida nas viagens ao observar,
classificar e medir costumes, edifícios, santuários, esculturas,
monumentos, rios, mares, caminhos – ver com os próprios olhos
era então considerado mais importante do que o ouvir com os
próprios ouvidos – e também com textos e inscrições. Registra
depoimentos conflitantes, indica o que prefere e deixa ao leitor
sua escolha final. Documenta as crenças populares, a maneira
como o povo egípcio, por exemplo, via seu próprio passado.
Embora desconfie de muitas de suas informações, não hesita
em transcrevê-las. Mostra-se discreto em relação a mistérios
religiosos – “sobre a metempsicose há gregos (os pitagóricos)
que defendem certas idéias; eu os conheço, eu nada falarei so-
bre isso”.
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A história grega é construída com testemunhos orais, crô-


nicas locais e inscrições. A primeira invasão da Grécia pelos
persas ocorrera pouco antes de Heródoto nascer, a segunda
quando ainda era criança. A cronologia geral da obra, no entan-
to, é confusa; passa por vezes abruptamente de uma série de
acontecimentos para outra, indo e voltando no tempo. Por outro
lado, não consegue apreender claramente as transformações
advindas com o tempo na história dos povos.
Quanto ao espaço, grandes deslocamentos marcam as His-
tórias; Heródoto faz da Grécia o centro do mundo em relação às
outras terras. A geografia é fundamental para toda a obra, daí
frases como “o Egito é a dádiva do Nilo” etc. Nesse sentido tam-
bém, ao descrever os usos e costumes de cada país, as formas
de poder dos não gregos, reforça a idéia da diferenciação entre o
grego e o bárbaro, ao mesmo tempo em que diferencia um bár-
baro de outro; um egípcio não é um persa, que não é um cita etc.
No todo, é tolerante em relação às diferenças. Apesar de ter sido
apontado como um instrumento de propaganda do poder de
Atenas, não pode ser considerado como um tradutor oficial des-
te poder; nunca trabalhou para o governo e não poupa críticas
aos próprios atenienses. A vontade dos poderosos aparece como
uma determinante na engrenagem da história, mas o Destino
prevalece sobre tudo e sobre todos. Heródoto acredita nos orá-
culos, nos presságios.
A história nascia também sob o signo da prosa. Por se
tratar de uma obra que iria também ser lida para o público
aparecia como uma grande novidade. Algumas fontes, embora
discutíveis, atestam o êxito e a popularidade da obra lida em
Atenas, Corinto, Tebas e Olímpia. Há até mesmo uma anedota
em que Tucídides ainda criança acaba chorando de emoção ao
ouvir Heródoto. A história, ainda sem muita definição, deveria
oscilar entre estória e história. O modelo épico ainda se encon-
tra na base da narrativa e o historiador ainda não existe como
profissão.
AS ANTIGÜIDADES 19

Tradicionalmente considera-se Tucídides (c.470 - c.395


a.C.) como o sucessor de Heródoto. Tucídides detesta o passa-
do. É o historiador do presente e da Grécia. O passado e o mun-
do além de suas fronteiras lhe parecem completamente destitu-
ídos de interesse. Para ele os gregos antigos deveriam viver como
os bárbaros seus contemporâneos, o que torna o conhecimento
do passado grego e do bárbaro inúteis. Paradoxalmente, o sécu-
lo XIX tornar-se-á o século da história positivista, da história
somente do passado que será considerado um grande modelo a
ser seguido, objetivo e científico.
Nascido num meio aristocrático, como Heródoto, prova-
velmente foi aluno de Anaxágoras, dos sofistas Gorgias e
Antiphon. Foi eleito estratego em 424 a.C. Comandou uma ex-
pedição naval de Atenas na Trácia, mas, como não pôde impedir
a tomada de Amphipolis pelo espartano Brasidas, foi acusado
de traição. Para escapar à pena de morte, refugiou-se durante
vinte anos na Trácia, onde sua família explorava minas de ouro.
Voltou a Atenas em 404 a.C., por ocasião da anistia imposta
pelos espartanos, morrendo logo depois, talvez assassinado por
seus inimigos políticos.
A História da guerra do Peloponeso – a luta entre Esparta e
Atenas – cobre o período do início da guerra (431 a.C.) até 411
a.C., com a queda dos 400. Tucídides considera esta guerra a
mais importante de toda a história, mesmo diante das guerras
persas ou da guerra de Tróia. Enxergava nela um embate direto
entre sistemas políticos e desempenhos políticos, entre modos
de vida irrenconciliáveis. A obra não foi acabada; a atual divisão
em oito livros tampouco corresponde à composição original. O
artifício cronológico usado por Tucídides é o da divisão da ação
em invernos e verões, tentando superar a confusão causada pelos
diferentes calendários das cidades gregas. Não utiliza nenhuma
data. O tempo é construído de uma maneira lógica, não cronoló-
gica.
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A documentação básica advém de textos transcritos (paz


de Nicias), das viagens realizadas pelo próprio Tucídides na Itá-
lia, na Sicília e no Peloponeso, de informantes com os quais
mantinha contacto em várias cidades e do testemunho pessoal
do autor. Ao contrário de Heródoto, descarta totalmente a idéia
de destino, de um curso da história. Considera que os fatos
ocorrem em virtude dos interesses e das paixões dos homens. A
moral guia a vida privada, não dos Estados; a vontade de poder
atua como força motriz do mundo. Ecos de Tucídides permeiam
as obras de Machiavel e de Nietszche.
Tucídides considerava que a inteligência seria o único ins-
trumento passível de ser utilizado para o entendimento da his-
tória; queria uma história sem estórias, com um estrito encade-
amento de fatos políticos e militares, onde a verdade fosse ex-
posta, não somente versões múltiplas dos fatos. Seu objetivo –
escrever uma história do presente para o futuro, útil para aque-
les “que queiram entender claramente os acontecimentos que
tiveram lugar no passado e que (a natureza humana sendo o
que é) mais dia menos dia, quase que da mesma forma, serão
repetidos no futuro. “Assim, tendo em vista a imutabilidade da
natureza humana, a história tenderá a se repetir; o que supõe
que a natureza humana pode moldar a história, mas que a his-
tória não pode afetar a natureza humana. Num estilo denso e
sóbrio, tenta revelar as razões e a psicologia das partes envolvi-
das no conflito entre atenienses e espartanos e, diante da docu-
mentação, pretende ser imparcial; no entanto, não consegue
deixar de imprimir suas próprias idéias filosóficas e preferên-
cias políticas no decorrer da narrativa, de adorar algumas per-
sonagens, execrar outras. Utiliza discursos para expor opiniões
contraditórias e antíteses como a do interesse e do direito. Um
dos tradutores de Tucídides, o filósofo Thomas Hobbes (1588-
1679), pensador do poder absoluto, considerava-o “o maior his-
toriógrafo político” jamais visto.
AS ANTIGÜIDADES 21

Tucídides está do lado de Atenas e Péricles e a história da


guerra do Peloponeso é uma obra plena de suas paixões. Mesmo
considerando os argumentos contra a expansão ateniense, as
discussões sobre o direito, a justiça ou a nobreza de exercer seu
poder sobre outros, nunca vacila em defender a causa de Ate-
nas, a superioridade de suas instituições e de sua cultura. En-
cara como uma tragédia a deterioração moral do mundo grego
em guerra. É um historiador engajado politicamente com limi-
tes de tolerância mais estreitos em relação a Heródoto. Seu
mundo é fechado, centrado na natureza humana, e desligado
da história da natureza. Tucídides constrói uma história con-
temporânea perene, imune ao processo histórico e ao exterior.
Xenofonte (c. 430 a.C. - c.352 a.C.), aristocrata e rico como
Tucídides, freqüentou os sofistas e foi aluno de Sócrates, mas
segue uma trilha política totalmente diversa. A desintegração
progressiva da democracia no século IV e o aumento dos encar-
gos para os ricos fazem com que as críticas ao regime se tornem
constantes entre os próprios atenienses. A hostilidade à demo-
cracia faz com que Xenofonte entre para um exército de merce-
nários gregos recrutados por Ciro, o Jovem para uma expedição
contra seu irmão Artaxerxes II. Após a derrota de Cunaxa con-
duziu a retirada dos Dez Mil. Como chefe de mercenários lutou
ao lado do rei de Esparta, Agesilas, contra os persas na Ásia
Menor. Banido de Atenas e despojado de seu bens acaba lutan-
do contra Tebas e os próprios atenienses. Após 394 a.C. retira-
se numa propriedade doada pelos espartanos. Por volta de 367
a.C., é anistiado e volta para Atenas.
Sua vontade era a de ser um continuador de Tucídides,
mas o espírito de seus escritos é diverso. Traduzem o clima de
desarvoramento e desintegração política das cidades gregas. Nas
Helenicas estende a narrativa de 411 a 362 a.C., e em Anabase
narra a expedição dos Dez Mil. Prossegue, portanto, com a ela-
boração da história do presente, instantânea. Acredita, no en-
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Aline Pereira
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MariaM.Grícoli.
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tanto, que os deuses têm um enorme papel no desenrolar dos


acontecimentos. Em seus livros chamam atenção seus conheci-
mentos militares e a tradução do gostos e das preocupações da
aristocracia da época, sua paixão pela caça, pelos cavalos, ao
mesmo tempo em que fala dos estranhos costumes dos povos
que conhecera; a pretensa objetividade de Tucídides está au-
sente. Da subjetividade de Xenofonte, de uma certa desconexão
intrínseca ao seu texto, de sua naturalidade sem retórica, das
explicações desconcertantes que atribui aos fatos, fluem
desveladamente sua parcialidade mas também uma tradução
menos intelectualizada da representação do mundo dos que
partilhavam do poder. Em geral, a historiografia o descreve des-
favoravelmente em relação a Tucídides. Isto se explica pelo seu
menor brilho, pela sua falta de “objetividade”, de inteligência
histórica, mas talvez também pelo fato de ter tomado o partido
de Esparta contra Atenas, o que choca o imaginário europeu
com sua idealização das virtudes atenienses.
Com a perda da liberdade, as cidades gregas integram-se
ao império de Alexandre, aos reinos de seus sucessores e final-
mente ao império romano. Da época alexandrina restaram nar-
rativas sobre as conquistas e descrições das terras invadidas,
que retomam a etnografia de Heródoto. Nearco (séc. IV a.C.),
companheiro de Alexandre, descreve a Índia como Heródoto fi-
zera com o Egito, plena de espaço, geografia, etnografia, cor lo-
cal, anedotas, diferenças. Restam fragmentos de vários autores
da época. De Filisto de Siracusa – que se ocupa das cidades
gregas do ocidente e da Sicília, ausentes na obra de Xenofonte.
De Ctesias, que elabora a história dos impérios assírio e meda e
dos reis da Pérsia até 395, e também uma Indica com relatos
fabulosos e descrições de plantas, animais e homens imaginári-
os. De Teopompo, talvez o mais importante historiador do sécu-
lo IV; protegido de Alexandre, para louvar seu senhor Felipe da
Macedônia escreveu uma obra caudalosa e barroca de cinqüen-
AS ANTIGÜIDADES 23

ta e oito livros, introduzindo assim um elemento pessoal deter-


minante – não mais a guerra, a cidade ou o império, mas o líder.
A louvação a Alexandre transborda nos escritos de historiado-
res como Calístenes de Olinto, e é mais velada nas histórias de
Alexandre de Ptolomeu e Aristóbulo. No geral, continua prevale-
cendo o presente como tema historiográfico e de maneira cada
vez mais clara e aberta impera o elogio do poder.
Políbio (c. 202 a.C. - 120 a.C.), grego de origem, permane-
ceu dezesseis anos em Roma como refém. Amigo de Scipião
Emiliano, conheceu vários políticos e teve acesso a arquivos.
Viajou pela Itália, Espanha, Gália, e acompanhou Scipião em
suas campanhas contra Cartago e Numância. Apesar de grego,
era um admirador incondicional dos romanos – “que homem
seria tão indiferente ou preguiçoso a ponto de não querer saber
como e sob que forma de governo quase todo o mundo habitado
se submeteu ao governo único dos romanos, em menos de cin-
qüenta e três anos ?”. Suas viagens, portanto, são mui distintas
daquelas de Heródoto. Não mais incursões de um homem isolado
em mundos diversos, mas de alguém identificado com as idéias
hegemônicas de Roma, pisando num terreno “universal” – “Há
analogia entre meu plano da história e o maravilhoso espírito da
idade de que me ocupo...a fortuna fez todos os assuntos huma-
nos convergirem para um só e mesmo fim; assim, é minha in-
tenção de historiador colocar diante dos leitores uma visão ge-
ral...” . Várias obras que têm por base suas experiências, como
uma sobre a guerra na Numancia e um tratado de tática foram
perdidas. Restaram os quarenta livros de suas Histórias, com-
preendendo o período de 220 a.C. até 146 a.C., mas com refe-
rências a épocas anteriores. Políbio faz a apologia do poder de
Roma. Sua hegemonia dever-se-ia à moral, à superioridade da
constituição romana e à capacidade desse povo. No entanto, foi
um dos primeiros escritores a deplorar a corrupção moral exis-
tente em Roma, o que se tornaria um tema corrente durante
mais de seis séculos.
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Ciente do papel utilitário que a história poderia desempe-


nhar nesta sociedade expansionista, a concebe como matéria
isolada da eloqüência, da erudição ou da poesia, porque a ver-
dade deveria prevalecer sobre a forma literária. Para Políbio a
história deve ser universal – como o domínio romano –, pragmá-
tica – narrando as ações dos estadistas ou chefes militares, as
decisões tomadas por assembléias e as revoluções políticas, num
período recente –, fundamentada nas experiências política e mi-
litar, lastreada pela geografia e iluminada pela filosofia. Estabe-
lece que as causas determinantes dos acontecimentos não são
fatos imediatos, mas sim o conjunto das instituições, das reli-
giões, a organização militar e o poder econômico; o historiador
deve sempre escolher um começo, uma causa, para explicar o
que diz. Estuda os regimes políticos para situar o regime roma-
no entre os outros e fazer o elogio de sua constituição. Ao estu-
dar o mecanismo das instituições, Políbio pretende estabelecer
leis que seriam úteis para prever o futuro, dado que cada regime
seria uma espécie de organismo vivo sujeito às leis biológicas.
Apesar disso, não deixa de atribuir um papel importante à per-
sonalidade dos grandes homens e ao próprio destino. Segundo
diz, nunca a fortuna havia obtido tal triunfo como o do estabele-
cimento do Império Romano. A força romana era irresistível e
seria um crime qualquer rebelião contra ela. Políbio representa
um exemplo acabado de historiador trabalhando para o poder.
A posteridade viu em Políbio uma noção racionalista da história
– o pensamento precede a ação, o individualismo domina –, e
também o construtor de uma grande síntese.
Entre os escritores de origem grega, mas já imersos na
cultura romana, Plutarco ocupa um lugar singular pela reper-
cussão que terá durante séculos no ocidente. Para termos uma
idéia, entre 1450 e 1700, suas obras tiveram 62 diferentes edi-
ções. Nascido em Cheronéia, na Beócia, por volta do ano 46,
viajou para Roma, onde conheceu políticos e intelectuais, e para
o Egito. Dividiu a maior parte de seu tempo entre suas funções
AS ANTIGÜIDADES 25

de arconte em Cheronéia e a de sacerdote de Apollo em Delfos.


Morreu por volta do ano 120. Os remanescentes de seus inúme-
ros escritos estão reagrupados em duas obras, as Vidas parale-
las – biografias de homens ilustres organizadas em pares, um
grego e um romano, com exceção de quatro – e as Obras Morais
– uma miscelânea de escritos sobre assuntos os mais variados,
como o porquê dos velhos lerem melhor de longe do que de per-
to, o porquê da existência de um rosto na face da lua e muitos
outros, que bem retratam o ócio da paz romana. Plutarco é
eclético, acreditando na imortalidade da alma, nas práticas
divinatórias e na justiça da Providência. Grande analista da psi-
cologia humana, moralista, considera como grandes virtudes a
piedade, a moderação e o bom senso. Foi um dos ídolos de
Montaigne: “Plutarco, eis o meu homem”.
A produção biográfica de Plutarco deriva de uma longa
tradição de anedotas e de reminiscências mais ou menos histó-
ricas que remonta aos tempos de Xenofonte e Platão. Apesar de
não se considerar historiador – distingue biografia e história –,
de não ter qualquer gosto pela pesquisa de documentos, de ob-
ter suas informações somente através de livros, durante séculos
Plutarco serviu de fonte e de inspiração para os historiadores.
As vidas paralelas, ao criarem um quadro moral idealizado dos
“grandes homens” como Alexandre e César, Demóstenes e Cícero,
entre outros, centram a história em torno de personalidades e
subsidiam o individualismo e a heroicidade presentes durante
séculos na historiografia política.
Numa sociedade conservadora como a romana, a história
encontrou um terreno favorável, expresso numa vasta produção.
Em relação à história grega haverá mudanças. Embora os his-
toriadores romanos não sejam menos subjetivos, haverá um
deslocamento temporal acentuado para o passado e espacial-
mente a história do mundo será a história de Roma. A subservi-
ência ao poder, ainda tênue na Grécia, torna-se uma constante.
Considerada um genero literário privilegiado, animada por um
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ideal patriótico, a forma da história podia ser mais importante


que seu conteúdo.
A questão da memória parece ter tido sempre importância
para os romanos. Já no século IV a.C., o grande pontífice escre-
via num album, uma tábua embranquecida, os acontecimentos
diários. As famílias tradicionais guardavam recordações de seus
antepassados; a tradição oral era forte, as imagens preserva-
vam rostos e as inscrições funerárias exaltavam os feitos dos
mortos. Canções épicas narravam as vidas de heróis como
Rômulo, Coriolano, os Horácios e Curiácios e muitos outros. No
século III, as guerras púnicas fundamentam um tipo de história
épica como o Bellum punicum de Nevio, que misturava mitologia
grega e história romana. No século II, os Anais de Ennio, em
versos, remontam às origens troianas e se estendem até a guer-
ra da Istria (178-177), louvando o heroísmo e a superioridade
moral de Roma.
Durante a segunda guerra púnica surgem anais em pro-
sa, como um instrumento de propaganda anti-cartaginesa. Re-
montando às fundações de Roma, os primeiros analistas como
Fabio Píctor e Cincio Alimento escreviam em grego. Esta pro-
dução patriótica toma impulso com Catão (234 a.C. - 149 a.C.),
que vê na história uma atividade apropriada à velhice e à apo-
sentadoria. Nas Origens remonta à fundação de Roma e desen-
volve sua história até o presente; apresenta a conquista romana
como um feito do povo romano e não só das famílias aristocráti-
cas.
A tradição dos analistas sobrevive durante séculos. Cícero
(106 a.C. - 43 a.C.) os vê apenas como cronistas, não escritores.
Embora não tivesse escrito nenhuma obra histórica, Cícero, ao
longo de sua obra, irá refletir sobre o papel da história na políti-
ca e sobre as formas que deveria assumir. Para ele o conheci-
mento da história nacional, da história dos povos conquistado-
res e daquela dos homens ilustres era um instrumento funda-
AS ANTIGÜIDADES 27

mental para os estadistas e oradores. Cícero atribui à história


um caráter utilitário. É uma fonte de exemplos morais e pode
dar uma estrutura de discernimento para o estadista, além de
situar todos numa tradição. Para isto então torna-se necessário
o respeito a uma ordem cronológica. Insiste em dizer que a his-
tória não é epopéia e nem poesia, embora seja um gênero retórico,
pois possui uma verdade objetiva e que são necessários méto-
dos para chegar a esta verdade.
Cícero concebe uma história ideal baseada na veracidade
e na imparcialidade, com uma base cronológica, assentada na
geografia, destacando o relato dos fatos com suas causas e con-
seqüências e as imbricações entre as ações humanas e os aza-
res da fortuna; julga importante tecer o retrato moral e cívico
dos grandes homens. Investe contra a busca de um passado
remoto, preferindo as narrativas do contemporâneo.
O contemporâneo, a paixão e o comprometimento político
basearão a obra do historiador Salústio (c. 86 a.C - 35 a.C.).
Excluído do Senado em 50 a.C., por adultério com a filha de
Sila, retorna no ano seguinte pela intermediação de César, de
quem é partidário incondicional. Enriquecido pela prática da
corrupção no posto de governador da África Nova (Numídia) em
46 a.C., fica no entanto sem qualquer futuro político após a
morte de César em 44 a.C. Decide então tornar-se historiador.
Com a Conjuração de Catilina, a Guerra de Jugurtha e as Histó-
rias, das quais só restam fragmentos, pretende demonstrar a
ruína progressiva do regime aristocrático instaurado após a der-
rota dos Gracos.
Para Salústio o trabalho como historiador foi um prolon-
gamento de sua vida política. Em suas obras destila seus ódios
e convicções. Na base da história romana estaria uma luta se-
cular entre o patriciado e a plebe. Findo o cesarismo só restava
a decadência dos tempos em que vivia. Em suas obras critica a
vida ativa – tão elogiada por Cícero – e enaltece a nobreza e a
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dignidade do espírito, o que denuncia seu platonismo. Em Catilina


faz a apologia do passado, dos tempos gloriosos dos inícios da
república, idade de ouro estóica, em que a virtude, a justiça, a
frugalidade reinavam tanto na paz como na guerra; a este tem-
po ideal contrapõe a Roma contemporânea, poço de todos os
vícios, escravizada pela oligarquia detentora de magistraturas e
riquezas, assentada na demagogia. É um texto todo permeado
por uma violência concentrada e retratos bem lavrados das per-
sonagens.
A Guerra de Jugurtha também trata da história contempo-
rânea. Para além da pintura do caráter de Jugurtha, das descri-
ções exóticas, deixa entrever a inquietação de Roma após a re-
volução dos Gracos.
Nas duas obras há dramaticidade, vivacidade, painéis des-
critivos da geografia, do passado, da etnografia, uma escolha
deliberada de alguns episódios em detrimento de outros para
criar o efeito desejado, uma ênfase no peso da personalidade na
condução dos acontecimentos, a relação das pessoas com suas
origens e seu meio social para explicar suas condutas. Salústio
é inevitavelmente comparado a Tucídides no que tange à forma,
à brevidade do discurso, à língua densa e difícil. Seus discursos
caracterizam as personagens importantes, descrevem sistemas
políticos, preparam os acontecimentos. À medida que narra, in-
terpreta. Sua grande precisão nos temas – o maior episódio de
que se ocupa cobre apenas dez anos – reproduz-se também na
análise minuciosa, na explicação daquilo que conhece como tes-
temunha. Para Salústio cabia ao historiador não somente nar-
rar, mas ver as causas sob os efeitos das ações. Seu trabalho
reitera uma concepção de história profundamente associada à
experiência, ao vivido.
O patriotismo do reino de Augusto fará com que também a
história se transforme. Há, portanto, uma diferença de fundo
entre Salústio e Tito-Lívio (c. 64 a.C. - 10 A.D.), autor de uma
AS ANTIGÜIDADES 29

história de Roma (Ab urbe condita libri) em cento e quarenta e


dois livros, de suas origens até o ano 9 a.C. Movido por um
patriotismo exacerbado e não por uma convicção política deter-
minada como Salústio, o burguês, republicano e sedentário Tito-
Lívio procura as causas da grandeza de Roma na moral roma-
na; constrói o retrato de um romano ideal, heróico, trabalhador,
justo, uma figura una que corresponde à unidade do império e
contribui para sua propaganda; o homem romano é o bem mais
precioso da nação.
Fundamentada numa pesquisa livresca, em fontes secun-
dárias, sem um espírito crítico agudo – muitas vezes Lívio cita
fontes contraditórias e somente aponta o que lhe parece mais
plausível, outras vezes se contradiz fragorosamente –, convenci-
do de estar cheio de razão, com gravidade, em tons dramáticos
ou épicos, a obra expressa um sentido de grandeza provavel-
mente vivo na mente dos romanos. A história seria uma mani-
festação do espírito ético romano. Os cento e quarenta e dois
livros nos chegaram divididos em décadas, estabelecidas prova-
velmente a posteriori.
Tito-Lívio rompe com a história em moda na sua época, a
história contemporânea de Salústio. Tampouco quer fazer uma
história universal, mas sim nacional, negando-se a tratar de
temas alheios à história romana. A base de sua história é a vida,
política e coletiva, e suas paixões, passíveis de serem controla-
das pelos princípios tácitos aceitos por todos para a conduta
individual e coletiva. Os grandes homens seriam os instrumen-
tos da história, os guias do povo, encarnando os interesses su-
premos da pátria, dando os grandes exemplos, dominando cada
período; são geralmente caracterizados através de discursos. Mas
é tão pessimista quanto Salústio no que concerne ao presente; a
grandeza estava no passado. Por outro lado, representa um ou-
tro tipo de personagem. Não é o homem experiente, político,
diplomata ou militar que no fim da vida resolve fazer história.
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Sem participar da vida pública é um dos primeiros historiado-


res do gênero intelectual de gabinete. Não pertencia a qualquer
seita filosófica, respeitava a religião e via nela um meio para
manter a ordem e a disciplina entre o povo; acreditava na im-
portância da Fortuna no desenrolar da história e, particular-
mente, num crescimento de Roma como manifestação de uma
vontade divina. Achava natural que, após tantas provações, os
romanos fossem senhores do universo. Afinal, haviam pratica-
do todas as virtudes: a piedade em relação aos deuses, a fé, a
concórdia, a moderação, a prudência, a clemência. Tito-Lívio
proclama o conservadorismo e a moral ecoando o programa de
regeneração do mundo romano de Augusto.
Veleio Patérculo (c. 19 a.C. - 31 A.D.) é de novo um homem
de ação que se engaja na construção do passado romano. Lega-
do de Tibério na Germânia, fez uma brilhante carreira militar
antes de se tornar o historiador do imperador. Suas Historiae
tentam descrever toda a história do mundo greco-romano desde
a guerra de Tróia e inserir a história de Roma na história uni-
versal.
Na base de seus escritos, porém, está a louvação dos pri-
meiros césares – César, Augusto e Tibério – e uma panfletagem
rasgada do próprio Tibério. Este aparece como um herdeiro pre-
destinado de Augusto; é bem nascido, é belo, é culto, é virtuoso,
é bravo, é prudente etc. É o grande continuador da missão
regeneradora de Augusto. Veleio acredita que a causa da gran-
deza dos césares reside numa conjunção do sobrenatural com a
virtude; os grandes homens, no entanto, não concentram todo o
poder sobre o devir histórico, pois existem também mecanismos
invisíveis, determinantes, absolutos e coletivos que levam os
povos à decadência.
A produção laudatória terá vários seguidores. Após a
monumentalidade de Lívio, a historiografia tendeu por outro lado
a se diluir em gêneros menores, biografias, memórias, anais,
AS ANTIGÜIDADES 31

ensaios. Em meio a este panorama destaca-se a obra de Tácito


(c. 55 - 120).
Originário do meio eqüestre e possivelmente provincial,
entrou na carreira administrativa durante o governo de Vespa-
siano; foi cônsul (97), procônsul da Ásia (110 - 113). Sua gran-
de eloqüência já era notória antes de se dedicar à história.
Diálogo dos oradores, Vida de Agrícola e a Germânia precedem
suas obras propriamente históricas, as Histórias e os Anais.
Os Anais tratam do passado não vivido pelo autor, o reino dos
júlios-cláudios: Tibério, – Calígula e Cláudio – Nero; as Históri-
as da contemporaneidade, das guerras civis de 69 e do reinado
dos flavianos.
Tácito objetiva fazer uma obra moral; diante da miséria,
da crueldade e do deboche da época, quer salvar as virtudes do
esquecimento, execrar os vícios. É um grande leitor de almas
complexas, de povos estrangeiros – como os germanos. Sua filo-
sofia da história é totalmente pessimista; em sua obra transparece
uma obsessão pela tirania, pela discórdia, um desejo de liberda-
de de expressão e de restauração do poder da palavra. Seu estilo
conciso, rápido, quase sem verbos, transmite violência, inquie-
tação, amargura, brutalidade, de uma forma compacta, dando
um tom totalmente diverso em relação à historiografia praticada
até então.
Para Tácito a história não é um campo para louvações pes-
soais, não se presta a floreios oratórios como em Tito-Lívio, não
é uma lição política como em Tucídides e Políbio. A história deve
proceder a uma análise moral, avaliar as mudanças, as defor-
mações da alma humana quando pressionada por circunstân-
cias externas. O historiador deve comparar, analisar, levar em
conta detalhes mínimos que podem indicar a essência de uma
pessoa ou de uma época. A explicação dos fatos deve ser mais
completa e extensa do que a narração dos fatos. Uma das carac-
terísticas mais interessantes nos retratos humanos criados por
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Tácito é que nunca se repetem – Cláudio é fraco e inerte, mani-


pulado por suas mulheres e seus libertos, atravessa as mais
aterrorizantes tragédias sem agir e sem compreender o que se
passa; Nero é um louco romanesco, extravagante, desequilibra-
do, com sede do impossível e do extraordinário; Messalina tem
sede de escândalo e luxúria; Agripina pende para o crime, é
mais viril, mais decidida, ambiciosa. Estas personagens tam-
bém se modificam sob as circunstâncias. Da mesma forma são
analisados os sentimentos coletivos: o medo e a fraqueza do
Senado ao aclamar Tibério, a tristeza dos soldados diante de
seus companheiros mortos, a apatia do povo após o principado
de Augusto, os rompantes de violência popular no teatro, os
motins militares, o saque de Cremona, o incêndio do Capitólio
etc.
Tácito utilizou fontes orais e escritas para construir sua
história; ouvia os rumores do Senado e os das ruas e consultava
arquivos oficiais e crônicas divergentes; brada contra o servilis-
mo de cronistas como Veleio Patérculo. Acredita na intervenção
dos deuses no processo histórico, mas ataca a superstição, e
procura decifrar o quanto há de vontade e liberdade naquele
processo. Embora não fosse alheio aos mecanismos coletivos,
econômicos e sociais da história – analisa as relações entre os
desmandos dos imperadores e o déficit nas finanças públicas, a
crise do ano 33 – é certo que constrói uma história dramática,
centrada em tragédias, pessoais e coletivas. Sua obsessão pela
violência e as regiões mais sombrias da psique faz dele um com-
panheiro de historiadores cristãos tão diversos como Agostinho
e Gregório de Tours.
A partir do século XVI, principalmente, quando as refle-
xões sobre a tirania são freqüentes, a obra de Tácito será muito
valorizada na Europa; Guicciardini (1483 - 1540) dizia que Táci-
to ensinava muito bem as pessoas a viverem sob o jugo das
tiranias, ao mesmo tempo em que ensinava aos tiranos como
AS ANTIGÜIDADES 33

fundar suas tiranias. Muito já se escreveu sobre o tacitismo de


Machiavel.
Na época de transição entre a historiografia antiga e a
medieval destacam-se Suetonio (75 - c.140) e Amiano Marcelino
(330 - c. 391), considerado o último historiador da antigüidade
por ser pagão. Suetonio, originário da ordem eqüestre, dedicou-
se à carreira administrativa, onde chega a trabalhar como se-
cretário de Adriano; suas funções fazem com que tenha acesso a
arquivos e documentos secretos. De grande erudição, amigo de
Plínio, mantém a crença na religião tradicional, na adivinhação,
e desconfia profundamente dos cultos orientais, como o cristia-
nismo. Sua paixão era a pesquisa, os livros, a escrita. A maior
parte de sua obra, incluindo uma enciclopédia de história natu-
ral, foi perdida. Restaram as Vidas dos doze Césares (c. 120),
Sobre os homens ilustres (c. 113), De gramáticos e retóricos e
uma Vida de Terêncio. Além de pesquisar em livros e arquivos,
utilizava fontes orais para escrever seus trabalhos, o que lhes
dá um tom anedótico e escandaloso muito acentuado.
Os Doze Césares tratam do mesmo período estudado por
Tácito; mas o nome deste e muito menos seu espírito não estão
presentes. Obedecendo a uma ordem cronológica, Suetonio ela-
bora as biografias dos doze primeiros césares romanos; prefere
se estender mais sobre a reconstituição das vidas dos mais an-
tigos, ao contrário do hábito de carregar a pesquisa nos tempos
mais próximos. Mesmo assim não quer ser considerado histo-
riador. Seus contemporâneos o vêem como um gramático. Sua
proximidade com a história pode ser detectada principalmente
pela massa de documentação presente nas biografias, embora
haja pouca crítica, nenhum julgamento de valor muitos silênci-
os e nenhuma visão de conjunto. A opção pela biografia suben-
tende sua convicção no poder pessoal sobre a história, mas tam-
bém uma concepção dinástica de poder. Apesar disso, os Doze
Césares fizeram uma longa carreira no ocidente.
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Amiano Marcelino, o último historiador antigo, era oficial


militar. Nasceu em Antioquia em 330, começou sua carreira na
guarda do Palatino, integrando um corpo do séquito imperial
que realizava missões nas províncias. De 353 a 360 trabalhou
com Ursicino, participando da luta contra o rei Sapor da Pérsia.
Em 363 fica sob o comando do imperador Juliano. Para compi-
lar o material de sua História foi para Roma, estabelecendo-se
depois em Antioquia. A obra abrange desde o período do adven-
to de Nerva (96) até a morte de Valente (378) em trinta e um
livros, os trezes primeiros perdidos.
Amiano diz querer ser historiador imparcial, ater-se à ve-
racidade, basear-se em documentos, negar o fantástico, procu-
rar um meio termo entre vícios e virtudes para retratar os
governantes, convencer. Não tem uma posição anti-cristã abso-
luta; diz ser a virtude mais importante do que paganismo ou
cristianismo. Suas pesquisas e a transposição de suas experi-
ências resultaram numa obra altamente patriótica, de fundo
belicista, contrária aos germanos, laudatória das façanhas de
um Juliano sábio e herói, plena dos fatos que considera dignos
de memória, na linha de Políbio. Vivendo em pleno período da
desintegração do Império, Amiano faz a apologia da Roma eter-
na, santa, venerável, mãe dos deuses, base da liberdade e da
sabedoria, ao mesmo tempo em que canta as virtudes do
universalismo imperial romano. Flagrante de anacronismos em
sua exaltação do agora inexistente, de uma ideologia exangue, a
escrita de Amiano, no entanto, fecha um ciclo da história roma-
na ufanista, centrada na saga deste povo eleito pelos deuses e a
Fortuna para dominar o mundo. Iniciava-se agora a saga dos
outros eleitos. Por Deus e sua Divina Providência.
A crítica contemporânea, notadamente Alberto Momigliano,
tem se preocupado em indagar qual seria o público da história
na antigüidade. Evocaremos aqui alguns resultados de sua pes-
quisa. Ao contrário da poesia, das obras teatrais, da oratória, a
história não era um genêro elaborado para ser ouvido. Por outro
AS ANTIGÜIDADES 35

lado, os historiadores não formavam um grupo profissional e


nem mesmo um grupo distinto dentro da sociedade. Vários his-
toriadores gregos viveram no exílio, vários romanos ocupavam
cargos políticos, militares ou administrativos. A história, por-
tanto, seria uma atividade marginal ou complementar à vida
das pessoas.
Momigliano acredita que no princípio, no século V a.C.,
deveria haver leituras públicas das obras, mas que com o tempo
devem ter caído em desuso. Sabemos que Tucídides escrevia
para ser lido. Entre os séculos III a.C. e IV A.D., porém, há uma
documentação esparsa sobre leituras de obras históricas.
Amiano, por volta de 392, teria lido alguns trechos de seu livro
em público. Temos alguma documentação sobre as persona-
gens que leram obras históricas – Brutus lendo Políbio, Cláudio
lendo Tito-Lívio etc. Sabemos também da existência de resumos
de obras para o grande público. Dispomos de alguns indícios
sobre a disponibilidade de algumas obras no mercado, sua exis-
tência nas bibliotecas públicas do império, mas muito fragmen-
tários. Na medida em que Roma, a história e o poder andavam
juntos, há fontes sobre as relações entre historiadores e
governantes; mas estas deveriam ser desiguais, Tácito como aris-
tocrata deveria ter mais penetração na alta sociedade do que
Suetonio, simples cavaleiro. Augusto não tolerava historiadores
fora de uma linha oficial, o que leva a pensar que a história pode
ser uma disciplina perigosa. Tibério queimou as obras do histo-
riador Cremutius Cordus, que acabou se suicidando. A isto se
acrescenta que na antigüidade não havia uma distinção clara e
universalmente aceita entre história e ficção.
Na base de todas as indagações estaria uma grande incóg-
nita. Segundo Momigliano, a de compreender o porquê da exis-
tência da história em sociedades onde ela não fazia parte da
educação formal e onde a religião, a filosofia e os costumes de-
terminavam a conduta dos homens.
AS IDADES MÉDIAS 37

AS IDADES MÉDIAS

“O mundo é o conjunto de todas as coisas, que se


compõem do céu e da terra. (...) No sentido místico, o
mundo é propriamente o signo do homem. Pois da mes-
ma maneira que aquele é constituído de quatro elemen-
tos, este igualmente se compõe de uma mistura de qua-
tro humores, cuja combinação forma um só ser exis-
tente.”

Isidoro de Sevilha, De natura rerum.

A institucionalização do cristianismo como religião de es-


tado em 313, a desintegração política e econômica do império
romano e a ruptura de seu quadro geográfico estão na base do
surgimento de uma nova história e de um novo historiador.
Embora a história não esteja enquadrada no trivium – gra-
mática, retórica, dialética – ou no quadrivium – aritmética, as-
tronomia, música, geometria –, que compõem a estrutura bási-
ca da educação e nem o historiador tenha se profissionalizado,
a História, com um grande H, será um elemento primordial na
composição da identidade do homem cristão.
A noção de história universal liga-se aos judeus cristiani-
zados. No momento em que seguidores de Cristo, como S. Pau-
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lo, transformam sua crença, até então nacional, em uma reli-


gião universal, absorvendo a ideologia política do império, dão
margem ao surgimento desta história universal. Assim o Novo
Testamento, continuação do Testamento nacional, historiará as
batalhas e as conquistas dos apóstolos em terras estrangeiras;
não mais conquistas militares, mas que utilizam ainda uma arma
dos pagãos, a oratória e a discussão intelectual. Na medida em
que cristãos estão imbuídos da verdadeira verdade, esta palavra
passa a ter um peso muito grande na maneira de refletir sobre o
mundo. No entanto, não devemos confundir verdade com obje-
tividade. A verdade do passado terá fins utilitários, variados,
como o de legitimar o poder, numa seqüência infinita, de Deus
até o mais obscuro dos príncipes. A verdade da história poderá
ser utilizada no momento de decisões, da tomada de atitudes
políticas. As teorias do poder divino do papa e do imperador
documentam-se nos exemplos da história, no poder exercido
por Melchisedec ou no procedimento da passagem do poder de
Cristo para S. Pedro. A subjetividade presente na historiografia
antiga assumirá contornos diversos, em conformidade com ou-
tros padrões.
Uma imagem comum nas catedrais góticas francesas é a
da seqüência de reis judeus e reis franceses. Numa linha reta.
Assim muitos concebem a história cristã. Ordenada, olhando
para a frente, sem reviravoltas cíclicas. Uma história linear com
começo – a Criação –, meio – a Encarnação – e fim – o Juízo
Final. Outros se voltarão para uma experiência do tempo orde-
nada por cadências regulares – a cada mil anos, por exemplo,
seria necessária uma purificação para que tudo renasça. Num
mundo organizado por Deus, os fatos se legitimam automatica-
mente e se amoldam sempre a uma explicação de ordem sobre-
natural. A própria expansão do império romano seria um desíg-
nio de Deus para facilitar posteriormente o trabalho apostólico.
Nos primeiros séculos do cristianismo ocidental, a Igreja se apre-
sentará como fiadora da ação de Deus na história; o historiador,
AS IDADES MÉDIAS 39

nesse sentido, será uma testemunha da presença de Deus no


mundo.
A noção de tempo tornando-se primordial, o conhecimen-
to do tempo, sua ciência, tomarão um aspecto religioso. Apoiada
na astronomia e na matemática, a cronografia, que estabelecia
datas e computos, era considerada uma ciência cristã. Por ou-
tro lado, acentua-se a diferenciação entre história “antiga” e con-
temporânea. História passa a ser um termo empregado diante
de uma visão geral e recuada dos fatos; para o contemporâneo,
a presença de uma cronologia minuciosa passa a ser de praxe.
Podemos constatar também uma enorme variedade de gê-
neros históricos desde os primeiros séculos da Idade Média. Uma
inovação é a dos textos hagiográficos – história dos santos, nar-
rativas sobre milagres, sobre o translado e a descoberta de relí-
quias ou listas episcopais. Estas listas fundam uma pseudo-
linhagem episcopal e legitimam o bispo como pai dos fiéis. As
histórias de santos também podiam ocultar um propósito legiti-
mista, que favorecia uma comunidade ao estabelecer uma anci-
enidade, uma história para determinados locais. Além disso dis-
pomos de inúmeros Anais e Crônicas; homens ligados à Igreja
ou a administração dos reis eram responsáveis pela catalogação
de fatos geralmente políticos, militares e extraordinários – pas-
sagem de cometas, milagres etc. – considerados importantes du-
rante o ano nos anais. As crônicas implicam uma maior ampli-
tude cronológica e também uma análise dos acontecimentos no
âmbito de desígnios políticos e religiosos. Ecos da historiografia
antiga, alusões a Tácito, a Salústio, a Tito-Lívio por exemplo,
permeiam esta nova história, que, no entanto, trata o passado
numa perspectiva bem diversa. Conscientes das transformações
operadas pelo cristianismo no mundo, tentam explicá-las à luz
da religião.
Uma reflexão sobre todos os cronistas, analistas, escrito-
res que se referem ao passado e historiadores dos quinze pri-
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meiros séculos do cristianismo seria muito extensa. Nos limita-


remos a alguns exemplos nos quais a intenção de escrever uma
história é mais definida. Assim, Agostinho (354 - 430), por exem-
plo, importantíssimo na definição da ideologia e das funções da
história medieval – na Cidade de Deus defende a teoria de que a
queda de Roma era apenas uma pequena amostra dos infinitos
e universais poderes divinos – não será considerado como histo-
riador.
A tentativa de interpretar a história humana numa pers-
pectiva cristã já se manifesta no panfleto de Lactâncio (c. 260 -
c. 325) sobre a Morte dos perseguidores. Convertido ao cristia-
nismo em 300, foi preceptor do filho do imperador Constantino;
suas ligações com o poder – Constantino oficializa o cristianis-
mo no império – e a paixão de neófito se confundem em seu
trabalho, onde anuncia a vitória do Ponte Mílvio com violência.
S. Jerônimo (c. 341 - 420) atribuirá à história um papel
decisivo na vida pessoal de cada um e no próprio cristianismo.
Aristocrata convertido por volta de 366, buscou na pregação, no
aconselhamento, no eremitismo, no celibato, as formas de vida
cristã. Com uma sólida formação clássica, tendo sido secretário
do papa Damásio e fundador de inúmeros conventos, deixou
uma produção enorme em livros, panfletos, cartas, onde o tem-
po presente é sempre avaliado em função da missão cristã; as-
sim, numa carta a uma de suas amigas romanas que desejava
se casar, argumenta que, diante do horror das invasões de “bes-
tas ferozes” – os germanos – ao império romano, era inconcebí-
vel pensar na felicidade pessoal e que a única atitude digna e
cristã seria a do celibato.
Jerônimo traduz do grego para o latim a Cronica de Eusébio
de Cesaréia (265 - 340), considerado o pai da história eclesiásti-
ca, e a atualiza até sua época. Nesta obra, Eusébio tratava do
passado longínquo, da vingança divina contra os perseguidores
da Igreja, da luta contra perseguidores e heréticos, das disputas
AS IDADES MÉDIAS 41

doutrinais e da sintonia entre a pax romana e o cristianismo,


utilizando uma enorme documentação e poucos discursos; a
citação, a “autoridade”, fundamental nas obras medievais, e não
a retórica, se impunha. No Dos homens ilustres, Jerônimo traça
um quadro completo do desenvolvimento da Igreja, enumeran-
do todas as grandes personagens desta história. As Vidas dos
anacoretas Paulo de Tebas, Hilarion, Malchus, dão o tom para
as biografia santas medievais. Seu maior empreendimento foi a
tradução para o latim e revisão crítica da Bíblia (Vulgata), consi-
derada por pagãos e mesmo veladamente pelos cristão como
uma obra de padrão literário execrável. Seus prefácios e co-
mentários sobre os livros das Escrituras objetivam melhor
elucidar fatos, datas e seus encadeamentos.
Sulpício Severo (c. 360 - c. 420) originário da Aquitânia,
em sua História Sagrada pretende descrever a história do mun-
do desde a criação até o ano 400 para instruir os ignorantes e
convencer os cultos.
Paulo Orósio (c. 390 -?), um padre espanhol que, em 414,
foge das invasões germânicas e refugia-se em Hippo, também
pensará na história como um amplo painel. Discípulo de Agos-
tinho, escreveu vários trabalhos ligados à defesa da ortodoxia e,
a pedido daquele, um suplemento histórico à Cidade de Deus. A
História contra os pagãos (415 - 417) objetiva provar que o cris-
tianismo não fora responsável pela queda de Roma, e que, ao
analisar a história humana evidencia-se um desígnio providen-
cial; seu livro é um exaustivo catálogo dos males da humanida-
de, detectados desde os mais antigos impérios do mundo. Du-
rante séculos este trabalho, bem como o de Eusébio, servirão de
subsídio para a escrita de crônicas universais como a de Otto de
Freising, no século XII.
Com a divisão do antigo império em reinos germânicos, os
historiadores tendem a traduzir uma visão de mundo mais loca-
lizada, focada num cotidiano mais limitado, numa nova lingua-
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gem, embora se digam herdeiros de Tácito ou da historiografia


antiga. É o caso da História dos Francos de Gregório de Tours e
da História dos lombardos de Paulo Diácono.
Gregório de Tours (c. 539 - 594), bispo de Tours, descende
de uma família romana senatorial integrada ao reino franco. No
prefácio da História dos francos, Gregório deplora a inexistência
de um homem capaz de escrever sobre os acontecimentos atuais
e decide assumir esta tarefa; de fato, vai além. Inspirado por
Eusébio, Jerônimo e Orósio e mais seu conhecimento da Bíblia,
começa a narrativa nos dias da Criação.
No livro I cobre 5596 anos da história da humanidade, de
Adão até a morte de S. Martinho de Tours, em 397. Os outros
nove livros da história dos francos relatam os acontecimentos
desde a morte de S. Martinho até 591, pouco antes de sua mor-
te. A partir do livro II, quando começa a mencionar os reis fran-
cos, suas fontes forçosamente serão outras; as agora perdidas
Historia de Renatus Profuturus Frigeridus e a Historia de
Sulpicius Alexander, cartas de Sidonio Apolinário e de S. Avito,
vidas de santos e de mártires, escritos de seus contemporâneos
Venancio Fortunato, Sulpicio Severo e Ferreolo e muitos outros.
Cita Virgílio e Salústio. Insere a transcrição de uma série de
documentos originais, como a carta enviada a bispos por oca-
sião da fundação do convento de Santa Radegunda em Poitiers;
sete respostas a esta carta; o texto do tratado de Andelot assina-
do entre os reis Guntram e Childeberto II em 587; a carta do
papa Gregório aos flagelados da peste de 590 em Roma, e ou-
tros. A presença desta documentação demonstra o espírito que
anima a escrita da história de Gregório; uma história baseada
no documento, na autoridade e na discussão desta autoridade.
Mas também as fontes orais e o testemunho ocular, a perspicá-
cia de observação, a participação pessoal em vários aconteci-
mentos, servirão de subsídio à narrativa. Além de descrever,
Gregório tenta desvendar pontos obscuros, como o da primeira
AS IDADES MÉDIAS 43

vez que um líder franco se transforma em rei, através de uma


investigação minuciosa. Apesar de se preocupar em ler nos acon-
tecimentos os signos da intervenção divina no mundo, está atento
ao real, ao visual.
Um dos aspectos mais cativantes desta história dos fran-
cos é a linguagem. Gregório escreve como deveria falar. Muito
criticado por não mais seguir os padrões antigos, é justamente
neste latim falado, menos conciso que o clássico, no seu estilo
simples, que podemos desvendar inúmeros traços da mentali-
dade, da visão de mundo de sua época. Gregório, ao contrário
de muitos historiadores antigos, nunca saiu da Gália. Seu hori-
zonte é fechado. Logo, pode descrever com minúcia cenas que
jamais seriam consideradas dignas de nota pela historiografia
antiga. Sem enunciar qualquer julgamento, pinta com precisão
os horrores, as intrigas, a luxúria e a volúpia sanguinária dos
merovíngios. As fúrias encarnadas em Fredegonda, as misérias
de Brunhilda, renascerão na historiografia romântica do século
XIX, com as Narrativas dos tempos merovíngios de Augustin
Thierry, e no romance gótico.
No século VII, numa distante região da atual Inglaterra
dominada pelos anglo-saxões, a história será uma das expres-
sões da cultura religiosa de Beda (673 - 735), dito o Venerável.
Aos sete anos de idade, órfão, foi ele encaminhado a um conven-
to; com treze anos fixou-se na abadia beneditina de Yarrow e daí
não mais saiu até sua morte. Educado tanto pela leitura das
obras cristãs como clássicas aí existentes, escreveu comentá-
rios bíblicos, tratados de gramática, uma versão expurgada do
De rerum natura de Isidoro de Sevilha, dois trabalhos de histó-
ria, A História do povo e da igreja dos anglos (731) – da conquista
de Júlio César em 73 até o presente – e a Vidas dos abades, e
uma cronologia universal calculada pela era cristã e fundamen-
tada em estudos astronômicos.
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No prefácio de sua história eclesiástica, Beda informa seus


leitores sobre as fontes que utilizara e o tratamento a elas con-
cedido. Procura sempre reunir a maior documentação possível
sobre todos temas, utilizando tanto testemunhos escritos como
orais e mesmo arqueológicos. Para isto estabelece uma intensa
correspondência no sentido de obter cópias ou originais de ma-
nuscritos. Descarta o que não lhe parece adequado e não se
contenta em somente arrolar o material utilizado, mas em fun-
di-lo num todo coerente. “Como as leis da história exigem, tra-
balhei honestamente para transmitir o que pude aprender das
fontes, para a instrução da posteridade”. Escrevendo como cris-
tão, o maravilhoso e os milagres estão presentes no texto; come-
tas, tempestades, curas, são apontadas como intervenções dire-
tas de Deus no mundo. Assim, não somente a história dos povos
que colonizam a ilha e da igreja é narrada, mas também as
lendas, as crenças populares, que possam ser interessantes ou
edificantes para seus leitores. Apesar das dificuldades que deve
ter tido em reunir sua documentação, a crítica moderna consta-
ta uma grande precisão nos fatos arrolados em sua história. Por
outro lado, Beda representa bem tanto a dinâmica da cultura
anglo-saxônica como a cultura eclesiástica quase profissional
que dominará a Europa por séculos.
Um outro tipo de historiador, de formação religiosa, mas
trabalhando para o poder temporal, é Eginhardo (c. 770 - 840),
uma das estrelas da chamada renascença carolíngia. Nascido
numa família aristocrática, foi educado na abadia de Fulda, e,
posteriormente admitido na escola palatina de Carlos Magno,
em Aachen. Ingressa na política no reinado de Luiz, o Piedoso;
foi secretário e amigo pessoal de Carlos Magno até a morte deste
em 814, e posteriormente conselheiro de seu filho Lotário. O
conflito entre Luiz, o Piedoso e seus filhos o leva a prudentemen-
te se afastar da política, em 828. É neste momento de sua vida
que decide escrever uma biografia de Carlos Magno. Em 830,
AS IDADES MÉDIAS 45

retira-se na abadia de Selingenstadt. Além da vida de Carlos


Magno, deixou cartas e obras hagiográficas.
A Vita Caroli é um panegírico do imperador, seguindo fiel-
mente os moldes da Vida dos doze Césares de Suetonio e, parti-
cularmente, a biografia de Augusto. Este será um procedimento
comum durante vários séculos; os autores copiam a seqüência
de temas e mesmos os comentários dos autores latinos. Colo-
cam suas personagens numa espécie de camisa de força. Ape-
sar disso, as diferenças de sensibilidade acabam por aflorar. Há
também um outro aspecto a ser considerado nesta imitação. Na
medida em que a cultura cristã assume formas e conteúdos
próprios e mais definidos no ocidente, parece haver um certo
abandono da literatura latina profana, considerada imprópria;
no entanto, as obras históricas não teriam sido afetadas por
estas restrições; talvez porque a história edificasse.
No prefácio da Vita Caroli, Eginhardo define suas metas:
escrever sobre a vida pública de Carlos Magno e descrever sua
vida cotidiana. Aproveitava o fato de ter sido uma testemunha
ocular dos dois aspectos da existência do imperador a partir de
791, quando este estava com quarenta e nove anos de idade.
Apesar desta proximidade, e de dispor de documentação para o
período anterior, ao escrever de memória, Eginhardo cometerá
uma série de imprecisões.z Algumas vezes deliberadamente, para
camuflar a verdade e proteger seu senhor. No todo, porém, tra-
ta-se de uma obra surpreendente pelo seu estilo, concisão, e
também por ter como motivo um tema não religioso.
Uma outra biografia de Carlos Magno seria escrita mais
tarde pelo chamado monge de S. Gall (c. 840 - c. 912), sobre o
qual quase nada se sabe. Trata-se de uma obra com um caráter
mais mítico, legendário, recheada de anedotas saborosas, even-
tualmente derivada das lendas populares sobre o imperador.
Além da biografia cortesã, a época é pródiga em histórias
eclesiásticas locais, de sedes episcopais, mosteiros, comunida-
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des, escritas por religiosos mais ou menos obscuros. Assim a


História da Igreja de Reims de Flodoardo (894 - 966), a História
do mosteiro de S. Bertin do abade Fulcuino (m. 990). A Cronica
do religioso de Angoulême, Adémar de Chabannes, é mais am-
pla, cobrindo a história do povo franco; a partir de 980 torna-se
uma crônica da aristocracia da Aquitânia. Inúmeras são as
cronografias universais como a de Reginono de Prum (906), a do
monge Hermann, o curto, de Reichenau – retomando a divisão
agostiniana de seis épocas do mundo –, a do bispo Othon de
Freising, entre outras. A produção de vida de santos também é
considerável; servem a propósitos piedosos, políticos, e econô-
micos ao propagandear os milagres de santos locais e atrair pe-
regrinos: vida de Sta. Eulália (881), vida de S. Legério (950 -
1000), vidas de Santa Foi (1000 - 1050) – santa que atrai milha-
res de peregrinos, no caminho de S. Tiago –, vida de S. Alexis
(1040). Há ainda a História dos normandos de Dudo, deão da
colegial de S. Quentin, as Histórias de Richer, monge de S. Rémi
de Reims, cobrindo o período de 888 a 995, e os textos das His-
tórias do monge Raul Glaber, talvez findos por volta de 1048.
O ano mil, segundo Georges Duby, parece ter passado quase
despercebido em vários anais e crônicas contemporâneos. Nada
ou quase nada é dito sobre a data nos anais de Benevento, nos
de Verdun e outros. O cronista Raul Glaber, no entanto, em sua
obra dedicada a Odilon, abade de Cluny, talvez explique esta
ausência ao formular um outro cálculo do tempo, um outro
milenio, relativo à morte de Cristo. Assim 1033, e não 1000,
seria o outro milênio, dentro de uma cadência temporal religio-
samente marcada.
A história continua a ter grande importância para a cons-
ciência cristã. Os méritos das obras históricas são definidos
no livro Das Maravilhas do abade de Cluny, Pedro, o Venerá-
vel (c. 1092 - 1156): “boas ou más, todas as ações produzidas
no mundo, pela vontade ou pela permissão de Deus, devem ser-
vir à glória e à edificação da Igreja. Mas se nós as ignoramos,
AS IDADES MÉDIAS 47

como podem contribuir para a louvação de Deus e a edificação


da Igreja?”
A partir dos séculos XI-XII, no entanto, a escrita da histó-
ria passa a ser utilizada com maior freqüência pelos poderes
laicos, que nela também vêem uma ocasião para cantar suas
glórias e legitimar seus direitos. Uma série de crônicas familia-
res, de biografias individuais de grandes personagens laicos e
de histórias nacionais podem ser encontradas. Assim Henrique
II da Inglaterra (1133 - 1189) contrata clérigos para escrever a
história de seus predecessores. Wace, cânone de Bayeux no sé-
culo XII, traduz a Historia Regum Britanniae, de Geoffrey de
Monmouth (c. 1100 - 1154), que ajuda a popularizar as lendas
do rei Arthur na França, e elabora o Roman de Rou (c. 1175),
narrando a história dos duques da Normandia, com bases em
fontes latinas. Um anônimo encarrega-se da biografia de Gui-
lherme, o Marechal (c. 1145 - 1219), regente da Inglaterra du-
rante a minoridade de Henrique III; o escritor é contratado pelo
filho de Guilherme, o conde de Pembrocke, por volta de 1226.
Surge assim um novo tipo de produtor da história. Não
mais preso a uma estrutura monástica ou episcopal, mas geral-
mente de formação religiosa, e que passa a trabalhar a soldo
para a aristocracia para escrever suas genealogias, algumas vezes
míticas. É o caso de Lambert d’Ardres, analisado por Georges
Duby, que entre 1201 e 1206 termina sua História dos condes
de Guines “à gloria dos altos senhores de Guines e de Ardres”.
Lambert era um clérigo que servia no castelo de Ardres, parente
distante desse senhor; apesar de clérigo, era casado e tinha fi-
lhos, também sacerdotes. Dizia-se “mestre”, tinha conhecimen-
tos de retórica, da poesia antiga e das produções literárias cor-
teses contemporâneas, além, certamente, de dispor de toda uma
base religiosa de conhecimentos.
Os deslocamentos para o oriente motivados pelas cruza-
das dão margem ao surgimento de um outro tipo de história,
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mais heróica, próxima da epopéia. O beneditino Guibert de


Nogent (1053 - 1124) escreve sobre a primeira cruzada em seu
Gesta Dei per francos, a partir de Gesta anonimos, sem ter sido
testemunho direto. A Historia eclesiastica do monge Orderico
Vitale (c. 1075 - 1143), que em princípio deveria contar a histó-
ria da abadia de Saint-Evroul en Ouche, acaba abarcando um
espaço geográfico bem mais amplo. Partindo dos documentos
de que dispunha a abadia, além de construir sua história, narra
a história de toda a vizinhança e da aristocracia normanda. As-
sim, acaba seguindo estas personagens pela Inglaterra, a Itália
do Sul e o oriente das cruzadas. Escreve por meio de círculos
geográficos e cronológicos sucessivos, a partir do ponto fixo que
é a abadia, utilizando todos os tipos de fontes disponíveis, escri-
tas, orais, populares e canções.
Um peregrino de Évreux, Ambrósio, companheiro de
Ricardo Coração de Leão, nos fins do século, narra a Terceira
Cruzada (1188 - 1192). Sua História da guerra santa, em ver-
sos, é trabalho de um profissional, que tem por fonte seu pró-
prio testemunho ocular dos acontecimentos.
Paradoxalmente, são as cruzadas que definitivamente con-
solidam a história laica na Idade Média, nas crônicas de Geoffroy
de Villehardoiun (c. 1150 - c. 1213) e Robert de Clari. Ambos
participaram da quarta cruzada, mas o resultado das duas obras
é bastante diverso. Clari dá o testemunho do combatente co-
mum, subordinado a chefes que o mantêm ignorante da razão
de seus movimentos, alheiado da grande política. Ao contrário,
Villehardouin, marechal da Champagne e um dos chefes da
quarta cruzada, vê a cruzada de cima, do lado dos poderosos.
Seu relato da Conquista de Constantinopla tende a ser muito
claro, muito lógico, muito preciso, para ser considerado total-
mente verossímil; na base de sua narrativa está a vontade de
justificar o porquê da mudança de rumo da quarta cruzada para
Constantinopla, que transformou os cristãos desta cidade em
AS IDADES MÉDIAS 49

infiéis. Sem mentir abertamente, escamoteia a verdade sobretu-


do através de seus silêncios.
Além da história oriental, surge uma outra vertente, na-
cional. A afirmação das monarquias nacionais fará com que a
história submeta-se gradativamente ao serviço da política. O
abade de S. Denis, Mathieu de Vendôme, no século XIII organi-
za a reunião de um vasto material de notícias necrológicas dos
reis de França, há séculos redigidas pelos monges; traduzida
em francês a partir de 1274, esta compilação foi o ponto de
partida das Grandes crônicas de França, cuja redação prosse-
gue até Luiz XI.
Na História de S. Luiz (1309) de Joinville (c. 1224 - 1317),
senescal da Champagne, há uma fusão da hagiografia com a
história das cruzadas. Escrita sob encomenda para a rainha
Joana de Navarra, após a canonização de Luiz IX, a obra preten-
de edificar seus leitores através das “santas palavras” e dos “bons
ensinamentos” do grande rei. Admirador e amigo de Luiz IX,
Joinville não poupa anedotas que enalteçam sua figura, mistu-
rando o concreto e o maravilhoso. Narra sem preocupação com
um encadeamento lógico de fatos ou idéias.
No século XIV, a guerra dos Cem Anos fornecerá o mate-
rial para a história nacional e política. Escrita em francês, o
espírito cavalheresco e as proezas militares ocupam o primeiro
plano. Dos cronistas da guerra, o mais considerado é Jean Frois-
sart (c. 1337 - c. 1400), que, apesar de ser um clérigo de origem
burguesa, admira a aristocracia e seu modo de vida.
Froissart desde jovem trabalhará para a nobreza; vai para
a corte da Inglaterra, onde cai nas boas graças da rainha, sua
compatriota Felipa de Hainaut, com um pequeno ensaio histo-
riográfico sobre os fatos ocorridos desde 1356. Freqüenta a alta
sociedade inglesa, partindo depois para a Escócia e a Itália, onde
teria conhecido Petrarca em 1367. Com a morte da rainha, fica
sob a proteção do duque Venceslau de Luxembourgo, e conti-
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nua seu trabalho de historiador. Com base em informações pes-


soais escreve sobre a atualidade, mas tenta buscar um início
para seu texto nos anos entre 1325 e 1356, utilizando como
fonte a crônica de João, o belo. Em 1388, vai para o sul para
obter informações para sua história e conhecer a corte do conde
de Foix, o famoso Gaston Phébus. De volta a Paris continua sua
crônica, volta para Inglaterra, e daí em diante nada mais se sabe
de sua vida. Dos quatro livros de suas Crônicas, o primeiro era
bastante favorável à Inglaterra, e por isso foi corrigido mais tar-
de, quando Froissart se aproxima do círculo de Guy de Chati-
llon. A partir daí, seu texto pende para a França e os Valois. No
terceiro livro, escrito já na velhice, mostra uma certa indepen-
dência de julgamento.
Froissart já encarna um historiador diferente de
Villehardouin ou Joinville. Não escreve para manter viva a me-
mória dos grandes acontecimentos de sua vida. Escreve profis-
sionalmente como defensor dos aristocratas. Não participa dos
acontecimentos que relata, e seu objetivo é o de agradar a no-
breza que compra seus livros, e seus protetores que aí vêem
seus nomes em destaque. Sua história tem um tom romanesco,
era também poeta. Os temas de suas crônicas poderiam servir
também para epopéias cavalherescas: as proezas, as festas, os
torneios, as grandes aventuras, a audácia dos mercenários ou
dos nobres, como Aymerigot Marcel ou Du Guesclin, e os peri-
gos da guerra dos Cem Anos vividos nas grandes batalhas como
as de Crécy ou Poitiers.
A guerra dos Cem Anos dará emprego a muitos outros
historiadores. A luta interna na França, entre armagnacs e
borguinhões, fará com que cada lado contrate seus próprios cro-
nistas, encarregados de expor as visões adequadas a seus se-
nhores. Huizinga dirá que os cronistas borguinhões “encenam
um sonho”.
AS IDADES MÉDIAS 51

Dentro da cronologia tradicional, Felipe de Commynes


(1447 - 1511) representaria o limite entre o medieval e o moder-
no. Suas Memórias, escritas entre 1489 e 1498, expressam um
maior cuidado no estabelecimento de laços entre os aconteci-
mentos e um julgamento mais ácido sobre os homens; não são
mais uma invocação das virtudes tradicionais e nem elogio ou
panegírico.
Em seu prólogo ao arcebispo de Viena, Commynes define
o objetivo de seu livro: “escrever o que eu soube e conheci dos
fatos do rei Luiz XI”. Diz ter observado em seu herói coisas boas
e más, e portanto não quer mentir.
Commynes nasceu na Flandres. Seu pai era governador
de Cassel e bailio de Gand. Destinado à vida militar, integrou
desde cedo a corte de Felipe, o Bom, ficando depois a serviço do
conde de Charolais, Carlos, o Temerário. Neste momento foi tes-
temunho das primeiras lutas entre Luiz XI e a casa da Borgonha.
Pouco depois muda de lado e, a partir de 1472, se torna confi-
dente do rei, de quem recebe a senhoria de Argenton em troca
de terras que possuía na Borgonha. Até a morte de Luiz XI par-
ticipa de todos os acontecimentos a seu lado. Cai em desgraça
por um tempo com a morte do rei, mas acaba se reconciliando
com Carlos VIII; com ele parte para a Itália, onde é enviado como
embaixador a Veneza.
As Memórias exploram os grandes desígnios da política. O
aspecto exterior dos acontecimentos não interessam a
Commynes; observa, analisa, pesa, julga, compara a partir do
interior dos acontecimentos. Enquanto moralista e cristão, per-
mite-se tecer considerações gerais sobre a natureza humana e o
príncipe ideal.
Como vemos, a escrita da história na maioria dos casos
continua a ser um trabalho paralelo a outros. Monges cumprem
funções religiosas e fazem história, homens de estado traba-
lham para o governo e fazem história, outros são poetas e retóricos
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e fazem história. Há um outro aspecto que também devemos


considerar. Diante da diversidade, da profundidade e amplitude
dos debates filosóficos e místicos ortodoxos e heréticos, das ex-
pressões plásticas do românico e do gótico, das novas formaliza-
ções da vida, a partir do século XII, é difícil atribuir aos analis-
tas-cronistas-historiadores um lugar preeminente. As inquieta-
ções de Abelardo, o fervor de Bernardo, o sorriso do anjo de
Reims, o rigor sistemático de Aquino, acabam por ofuscar os
mais dignos labores históricos.
Bernard Guenée invoca razões contingentes para esta si-
tuação. Os cronistas seriam intelectualmente medíocres, a his-
tória não era ensinada nas escolas, servia apenas de auxiliar na
exegese dos textos sagrados, os autores são modestos – só que-
rem relatar, pois se acham indignos de esclarecer a vontade
divina...
No entanto, mesmo admitindo esta mediocridade, o senti-
do da história está presente. No século XII, frases como “a ver-
dade é filha do tempo” e “somos anões em pé nos ombros de
gigantes” (autores antigos e cristãos) são ditas naturalmente,
admitindo que os contemporâneos viam mais longe do que os
antigos. Além disso, não é negligenciável o papel que a história e
a hagiografia medievais desempenham na criação de uma mito-
logia política e religiosa no ocidente. E, sobretudo, é inimaginável
o valor que as obras medievais, as mais canhestras, podem ter
para o historiador do século XX. Na verdade, quanto mais es-
pontâneos, ingênuos, confusos, e maus escritores, melhores fon-
tes se tornam!!!
AS IDADES MODERNAS 53

AS IDADES MODERNAS

“Quando Tales estima ser o conhecimento do ho-


mem muito difícil ao homem, ensina-lhe que o conheci-
mento de qualquer outra coisa é impossível.”

Montaigne, Ensaios, II, xii.

A providência divina não se aposentará nos séculos ditos


modernos. A questão da fatalidade estará presente sob outros
nomes – fortuna, acaso, sorte – e, no século XVII, literalmente
como providência divina na obra de Bossuet (1627 - 1704).
Ordenado sacerdote em 1652, foi levado à pregação por S.
Vicente de Paula. Seus depois publicados Sermões e Orações
fúnebres, sua condição de preceptor do delfim, entre 1670 e
1680, sua luta contra os protestantes, a função de chefe da
igreja galicana, atribuem uma coerência à sua obra histórica.
Bossuet decide se dedicar à história no momento em que está se
ocupando da formação do delfim; acredita que mais do que nin-
guém os reis devem encarnar os valores morais do cristianismo.
O Discurso sobre a história universal (1681) é uma defesa da
história providencialista contra seus detratores, como Richard
Simon que publicara uma História crítica do Velho Testamento –
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submetendo os textos sagrados a uma exegese profana – e con-


tra Spinoza, que deseja submeter Deus às leis da natureza; visa
também ressaltar a utilidade da história como mestra de precei-
tos morais e políticos. Em sua última versão (1700) aparece di-
vidido em três partes: as épocas, a continuidade da religião, os
impérios. Na parte relativa aos impérios explica como todos ser-
viram aos desígnios de Deus, permitindo o triunfo da Igreja.
Tudo, mesmo aquilo que aparece sob uma forma anárquica,
estaria submetido à ordem de Deus. Por outro lado, Bossuet
elabora um aparato crítico para a abordagem do fato histórico:
para os grandes acontecimentos diz ser necessário o estudo das
causas longínquas, dos móveis imediatos e dos resultados atra-
vés de uma busca no tempo remoto e da distinção de povos
dominantes e homens extraordinários.
Diante dos conflitos da igreja galicana com o papa, os pro-
testantes e os quietistas, Bossuet revigora o providencialismo
como plataforma política.
Se, tradicionalmente, Bossuet representa a continuidade
da história sacralizada, isto não significa que Deus tenha desa-
parecido para os demais historiadores. O próprio Machiavel em
seu poema “Da ambição” diz ter sido o mundo criado por Deus
para benefício do homem; este Deus, através de si mesmo ou
através dos céus, da fortuna e outros seres sobrenaturais, con-
tinuaria a fazer prevalecer seus desígnios nos fenômenos da
natureza e também na esfera humana.
Devemos considerar, no entanto, que também outras ques-
tões se acrescentam às tradicionais. Do ponto de vista prático, a
história será favorecida pelo sistema de imprensa de Gutenberg.
Caem por terra os temas intocáveis, e verdades consagradas
passam a ser discutidas ou desmentidas; é o caso de Lorenzo
Valla (1407 - 1457), que mesmo objetivando um acordo entre
antigüidade e moral cristã, desmascara a farsa do texto denomi-
nado “doação de Constantino”, pelo qual este imperador conce-
AS IDADES MODERNAS 55

dera autoridade suprema sobre a Igreja e a Itália ao papa Silves-


tre I (314 - 335). No todo, uma “humanização” da história tende-
rá a prevalecer, por razões principalmente de ordem política.
Isto nos leva à Itália do norte principalmente, onde a complexi-
dade da experiência comunal deu margem à criação de idéias
políticas particularistas ou universalistas, mas imbuídas de um
voluntarismo humano. Neste sentido, os usos do passado, da
tradição, dos historiadores antigos, romanos principalmente, não
será inocente. A historiografia será apenas mais uma das ex-
pressões da consciência cívica, do nacionalismo local, do
chauvinismo geralmente, e da exaltação dos governantes.
As obras históricas de Petrarca (1304 - 1374) traduzem
com precisão suas aspirações no sentido da criação de uma uni-
dade italiana, de uma restauração do império romano. Pede ao
passado que sirva de consolo para o presente, pois sente a neces-
sidade de viver numa pátria. Seu pai e a família haviam sido
exilados pelos guelfos negros em 1312; isto fez com que vivesse
em Avignon e freqüentasse a universidade de Montpellier, antes
de estudar Direito em Bologna. Durante sua vida viajou constan-
temente pela Flandres, França e Itália, muitas vezes encarregado
de missões políticas. De temperamento melancólico, refugia-se
numa história idealizada de Roma para fugir da atualidade; em
seu Viri illustres (Homens ilustres), ao comentar as grandes perso-
nagens romanas, principalmente utilizando as idéias de Tito-Lívio,
elimina qualquer elemento que ameace seu quadro ideal. Em ge-
ral, não critica suas fontes; provido que sejam antigas as conside-
ra dignas de crédito. Petrarca inova, no entanto, pelo fato de seus
trabalhos históricos terem sido elaborados por vontade própria e
não sob encomenda de alguma autoridade.
Boccacio (1313 - 1375), segue os passos de Petrarca, mas
com um espírito diverso; tem os pés no presente. Suas Mulheres
ilustres (105 biografias de mulheres da antigüidade, em sua
maioria gregas e romanas, sem santas), publicadas por volta de
1362, seriam a contrapartida dos “homens ilustres”. Mas,
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Petrarca queria exaltar a grandeza militar e política de Roma, ao


passo que Boccaccio quer agradar seu público com anedotas.
As fontes que utilizam são semelhantes, os grandes autores
antigos e alguns obscuros; Tácito, desconhecido de Petrarca,
entra na bibliografia de Boccaccio. Em outra obra, De casibus
virorum ilustrium, que pretende ser uma história universal, uti-
liza fontes medievais como Gregório de Tours e Paulo Diácono.
Boccaccio não se atém só ao passado ao retomar a tradi-
ção da biografia dos grandes homens do presente. Na Vida de
Dante não parte de um molde pré-estabelecido pela tradição
literária e, ao mesmo tempo, abre caminho para o gênero histó-
rico “vida dos artistas”, consagrado com Vasari no século XVI.
Petrarca e Boccaccio utilizam a história como moralistas;
além do mais, suas obras históricas se diluem numa vasta pro-
dução literária de maior peso. A chamada história humanista
será produzida por homens ligados ao governo, com fins propa-
gandísticos bem marcados e com um agudo cuidado estilístico
próprio a seduzir o leitor. A história volta a se ligar à retórica,
tanto na Itália como na França. O objetivo de se igualar a Tito-
Lívio é tão grande, que alguns voltam a escrever em latim e não
mais em língua nacional.
Na Itália, a primeira obra considerada como história
humanista é a História florentina de Leonardo Bruni (1369 - 1444).
Bruni nasceu em Arezzo, estudou Direito, foi secretário do papa,
em 1405, e, a partir de 1415, passa a morar em Florença, onde
desempenha diversas funções públicas.
Sua história de Florença abandona todas as explicações
lendárias, os mitos, os milagres, que normalmente apareciam
nas histórias locais, como a de Giovanni Villani (c. 1275 - 1348).
Enfatiza a política e as circunstâncias gerais – geográficas, es-
tratégicas – como substrato da história, ignorando a interven-
ção da providência. Fortemente marcado pela leitura dos auto-
res da antigüidade, a retórica muitas vezes toma o lugar de uma
AS IDADES MODERNAS 57

visão crítica de personagens e situações; as contigências econô-


micas desaparecem e são travestidas em motivos elevados. Em
se tratando de uma cidade construída pelo comércio e o artesa-
nato como Florença, deixa uma lacuna irreparável.
Bruni segue uma cronologia anual, o que também resulta
numa abundância de relatos de pequenos acontecimentos e
ausência de visão de conjunto, além de nem sempre acabar o
relato de um fato, caso se estendesse para o próximo ano. No
todo, concentra-se mormente na história interna da cidade e, a
partir daí, faz sua apologia. Florença é a campeã das comunas,
a que resiste aos planos hegemônicos dos inimigos, a predesti-
nada pela sua tradição histórica, pela geografia, a salvaguardar
a estabilidade da Itália e os princípios republicanos. Florença é
o lugar ideal, concebido segundo um plano racional, numa pers-
pectiva geométrica que define seu papel histórico, sua vocação
para a liberdade.
Bruni terá seus seguidores em Poggio (1380 - 1459), con-
selheiro em Florença de 1453 a 1458, que também escreve uma
história florentina, em Accolti (1415 - 1466), chanceler da repú-
blica em 1459, em Scala (1430 - 1497), também chanceler. Para
estes, a escrita da história era praticamente uma continuidade
de suas funções públicas. Accolti, por exemplo, era um súdito
fiel dos Médici; em sua história florentina, o que prevalece é a
vontade de louvar ao máximo a família e Lorenzo de Médici,
através de uma releitura da história local. É o típico exemplo de
historiador propagandista, escravo do poder.
A exemplo de Florença, todas as cidades italianas passa-
ram a produzir uma história local, promovidas pelo governo.
Governantes e intelectuais comprovavam pelo exemplo florentino
o quanto poderia ser útil uma panfletagem erudita. Contrata-
vam então letrados, alguns até nascidos fora do local, para pro-
mover suas cidades. Assim, Sabellicus (1436 - 1506) e Pietro
Bembo (1470 - 1547) em Veneza.
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Bembo é um humanista considerado, contratado pelo Con-


selho dos Dez para continuar a obra de Sabellicus. Veneziano
de origem, de família aristocrática, foi secretário do papa Leão X
e, mais tarde, nomeado cardeal em 1539. Começou em 1531 a
Rerum Venetarum Historiae, onde, sem espírito crítico, registra
todos os tipos de acontecimentos, enaltecendo sem limites o
poderio militar veneziano e calando sobre qualquer atitude polí-
tica que pudesse prejudicar a imagem da república.
A história que Lorenzo Valla (1407 - 1457) escreve para
Nápoles também serve aos interesses dinásticos locais. Entre
1434 e 1447, Valla viveu como secretário e leitor da corte do rei
Afonso de Nápoles, e é nesta qualidade que escreve a sua
Historiarum Ferdinandi regis Aragoniae, a história do pai de seu
patrão.
Uma figura curiosa é a de Paulo Giovio (1483 - 1552), ir-
mão do historiador de Como, Benedetto Giovio. Paulo estudou
medicina em Pádua e Pavia; em 1516 já pratica medicina em
Roma. Protegido do papa Leão X, a quem dedicara uma obra
sobre história contemporânea, acaba nomeado professor da uni-
versidade romana. A partir daí trabalha principalmente como
historiador, embora em 1526 tivesse também sido nomeado bispo
de Nocera por Clemente VII.
Giovio não esperava ser contratado para escrever a histó-
ria de cidades e de famílias governantes. Ele próprio se oferecia,
cobrando altos honorários; caso não pagassem, transformava
os elogios em insultos e fazia com que linhagens inteiras desa-
parecessem da história. Mais do que historiador era uma espé-
cie de repórter e jornalista; fazia inúmeras entrevistas, seguia
passo a passo o desenrolar das batalhas, conhecia todos, emitia
juízos sobre todos. Em suas obras misturava altas doses de elo-
gio a seus clientes, ao mesmo tempo em que insinuava detalhes
picantes e comprometedores que fariam as alegrias do grande
público. Apesar de tudo seus escritos possuem um tom moral
AS IDADES MODERNAS 59

bem acentuado. Por outro lado, percebe que as histórias locais


não mais tinham sentido diante dos sinais de alargamento do
mundo, como a descoberta da América; introduz, então, em seus
escritos digressões – ainda que vagas – sobre a história da civili-
zação. Mostra-se indignado com Machiavel por ter sido tão pa-
triota em seus textos.
Entre 1519 e 1521, Machiavel (1469 - 1527) consegue a
patronagem dos Medici para escrever uma história de Florença.
Sua situação pessoal era então muito difícil, tanto moral como
financeiramente, e este encargo tinha uma função bastante prag-
mática. Uma de suas maiores dificuldades foi a de conciliar a
dedicatória com o estudo da lenta escravização de Florença aos
Médici. Para evitar constrangimentos, carregou o livro com do-
cumentação e reduziu ao máximo os comentários.
Na biografia do tirano de Luca Castruccio Castracani,
condottiere do século XIII, elaborada por volta de 1520, Machiavel
busca materializar suas idéias políticas numa pessoa. Resume
sua personagem dizendo que era bom para seus amigos, terrível
para com os inimigos e infiel com todos os outros. Interessa-se
por Castruccio por ter sido ele capaz de ao menos tentar forjar
um estado – a formação de um estado era uma obsessão em
Machiavel. Quando faltam dados que documentem a vida do
tirano, não hesita em tomar emprestado traços de biografias
antigas. Utiliza muito o historiador antigo Diodoro em sua his-
tória do tirano de Siracusa, Agatocles. Como este, Castruccio
torna-se uma criança abandonada – porque não devia pertencer
a nenhuma família aristocrática – e depois um homem sem
mulher e nem filhos – porque não deveria fundar uma dinastia.
No conjunto da obra de Machiavel, a produção histórica é
menos original; na história de Florença, por exemplo, recopia
autores anteriores, como Blondus, Villani e Simonetta. O mais
significativo são os ecos de suas teorias na compreensão do pro-
cesso histórico ; a inserção dos fatos históricos em grandes mo-
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vimentos gerais e naturais, o papel da Fortuna, o pragmatismo,


e sua crença totalmente a-histórica de que a natureza humana
é sempre igual.
O historiador e amigo de Machiavel, Francesco Guicciardini
(1483 - 154O), como ele também fora funcionário público. Sua
primeira história de Florença data de 1509, mas, como político
hábil, não deixou que fosse publicada enquanto vivo; não pou-
para críticas à tirania de Lorenzo de Médici, considerando-o res-
ponsável pela ruína do Estado. Mais tarde, numa primeira histó-
ria da Itália tratada como um todo, diria que a época de ouro
italiana fora a de Lorenzo de Médici. Ao contrário de Machiavel
não se interessa pela filosofia da história, mas com o estudo da
realidade, uma realidade vista com a maior parcialidade possível.
Dos historiadores do século XVI, talvez o mais conhecido
hoje em dia seja Vasari (1511 - 1574), autor das Vidas dos mais
excelentes pintores, escultores e arquitetos – de Cimabue a Tiziano.
Pintor e arquiteto, foi empregado por Cosimo de Médici, em 1555,
como arquiteto no Palazzo Vecchio, onde concebia cerimônias
elaboradas e grandes decorações para as festas da família. Se-
guindo uma ordem cronológica, Vasari se ocupa da vida dos
artistas, sem pretender com isso realizar uma obra histórica de
conjunto. Acredita basicamente que o tempo vai melhorando a
arte; vê progressos, aperfeiçoamentos, que poderiam ser trans-
mitidos aos leitores mediante a apresentação das biografias in-
dividuais de cada artista; “tentei distinguir entre o bom, o me-
lhor e o máximo”. Na dedicatória que faz a Cosimo, reitera que
seu propósito é didático. Considera que o inevitável declínio das
artes pode ser sustado pelo esforço humano; Machiavel dizia
que a decadência podia ser detida pela virtú.
Apesar da parcialidade de seus julgamentos, da impreci-
são de muitos dados, de sua visão da arte desvinculada da so-
ciedade, suas anedotas sobre os pintores, verídicas ou não, es-
tão integradas ao imaginário de qualquer estudioso da arte. Além
AS IDADES MODERNAS 61

disso, formulou alguns conceitos para os historiadores da arte:


o de distinção entre o que é boa arte e arte ruim, de estabeleci-
mento de relações entre as obras, as intenções do artista, e a
tradição de sua época, de julgar as obras pelos padrões e conhe-
cimentos disponíveis na época de sua produção e pelos mais
altos padrões estabelecidos pela crítica contemporânea.
Na França, os historiadores também estão à serviço da
política, da sedimentação dos estados modernos e dos patriotis-
mos. Fascinados pela Antigüidade, Tito-Lívio e pela história
humanista italiana, escrevem em latim, as histórias gerais da
França – De rebus gestis francorum, de Paul Émile em 1500 – ou
a história imediata – Historia mei temporis, do estadista católico
Jacques Auguste de Thou (1553 - 1617). Por outro lado, o culto
dos grandes homens, a crença numa finalidade pedagógica e
moral da história, animam as biografias do historiógrafo oficial
de Carlos IX e Henrique III, Girard de Haillan. Uma outra cor-
rente é a dos eruditos que empreendem a catalogação das
“antigüidades”, atribuem historicidade ao direito romano, e se
voltam para a filologia, a numismática; assim Pierre-Pithou (1539
- 1596) e seu irmão François (1543 - 1621) – galicanos, patrio-
tas, defensores dos direitos da coroa francesa, que estudam o
direito francês em nome do interesse nacional contra os ultra-
montanistas e os jesuítas –, o advogado Etienne Pasquier (1529
- 1615), que em suas Pesquisas sobre a França, examina as
origens das instituições francesas e os progressos da autorida-
de real, abordando a evolução dos costumes, das crenças, das
idéias e das letras.
Na Alemanha, em 1531, é publicada uma História da Ale-
manha, onde o humanista de Selestat, Beatus Renanus (m.1547),
leitor de Plínio, Tácito e Tito-Lívio, utiliza textos antigos em alto-
alemão com um grande sentido da crítica.
Evidencia-se o fato de que todos aqueles que se ocupam
da história têm uma outra formação e que esta atividade é uma
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entre outras. Também Claude Fauchet, autor das Antigüidades


gaulesas e francesas até Clóvis (1599), era magistrado antes de
ser nomeado historiógrafo de França por Henrique IV; sua obra
situa-se numa corrente patriótica cuja expressão mais triun-
fante tomará forma na história do século XIX.
A indiferença à história parece ser uma marca do século
XVII. O interesse do classicismo pelo permanente e o universal
faz com que a história seja vista como o domínio do contingente
e do particular. Descartes (1596 - 1650) despreza a história em
nome da metafísica e da física. O espírito científico prevalece
sobre a erudição – sob seu signo era vista a história. Segundo
Pascal (1623 - 1662) a história seria incapaz de qualquer pro-
gresso por ser um conhecimento livresco, dependente da me-
mória; ao contrário das ciências físicas não depende nem do
raciocínio, nem da experiência, mas somente do princípio de
autoridade, como a jurisprudência ou a teologia. Em 1668, sur-
ge um ensaio Do pouco de certeza que há na história. Considera-
da inútil em geral, continua, no entanto, a ser útil na formação
dos futuros reis de França.
Por outro lado, o trabalho dos eruditos na compilação de
documentos antigos será importante. A erudição dos séculos
XVI e XVII engloba a arqueologia, a epigrafia, a numismática e a
filologia e seus praticantes eram denominados “antiquários”. É
o caso do jesuíta de Liége, Jean de Bolland, com as Acta
sanctorum, coletânea de vidas de santos, classificadas dia a dia,
seguindo o calendário; dos beneditinos de S. Maur, com as Acta
santorum ordinis S. Benedictis, editadas a partir de 1668 sob a
direção de Mabillon – que introduz a “diplomática” – e os traba-
lhos de dom Bernard de Montfaucon, como os Monumentos da
monarquia francesa (1729 - 1733), para citarmos apenas alguns
centros de erudição religiosa. É importante também o trabalho
do oratoriano Richard Simon (n.1638), que marca o início da
exegese bíblica crítica. Em 1663, Colbert funda a Pequena Aca-
AS IDADES MODERNAS 63

demia, que em 1716 se transforma na Academia Real de Inscri-


ções e Belas Letras, com membros religiosos e laicos, e cujo
objetivo é a publicação de “memórias” consagradas à história, à
arqueologia e à lingüística. Nestes círculos eruditos, aparecem
as primeiras obras sobre o mundo árabe, a Pérsia, a Índia e a
China, escritas por missionários e viajantes. Ecos do colonialis-
mo.
A integração de outros povos no horizonte histórico faz
com que Fenelon (1651 - 1715), escreva, em 1714, que “o ponto
mais necessário e mais raro para um historiador é que saiba
exatamente a forma de governo e o detalhe dos costumes da
nação sobre a qual escreve a história, a cada século. Um pintor
que ignore il costume, não pinta nada com verdade.”
No século XVIII, os filósofos fazem obra de historiadores.
D’Alembert (1717 - 1783) dizia que a história era o último dos
conhecimentos sem a filosofia; algumas obras deixam de ter o
título história para se denominarem “progresso do espírito hu-
mano”, como a de Turgot (1750) e Condorcet (1790). David Hume
(1711 - 1776) escreveu uma história da Inglaterra .Montesquieu
(1689 - 1755), em 1734, publica Considerações sobre as causas
da grandeza dos romanos e da sua decadência. Voltaire (1694-
1778) realiza a História de Carlos XII, Século de Luiz XIV e Ensaio
sobre os costumes. É de Voltaire a expressão “filosofia da histó-
ria” (1756). As primeiras filosofias modernas da história tam-
bém tomam forma no século XVIII. Voltaire, Kant (1724 - 1804)
e Condorcet (1743 - 1794) acreditam num progresso da huma-
nidade em direção a um ideal.
Esses filósofos com pele de historiadores verão o passado
com outros olhos. Montesquieu quer explicar “a história pelas
leis e as leis pela história”, partindo do princípio de que cada
civilização forma um todo original, tem um “espírito geral”, com-
posto pelas instituições políticas, a vida econômica, a geografia,
a religião e os costumes. Voltaire diz que seu objetivo “é sempre
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o de observar o espírito do tempo; é ele que dirige os grandes


acontecimentos da história.”; na verdade, tem horror aos crimes
e às loucuras da humanidade, por isso renuncia a uma história
narrativa, ao detalhe factual inútil, quer esclarecer o leitor e não
sobrecarregar sua memória. Apesar de admirar os grandes ho-
mens, diz pretender no Século de Luiz XIV “pintar à posterida-
de, não as ações de um só homem, mas o espírito dos homens
no século mais esclarecido que jamais houvera”.
Muitos historiadores do iluminismo conseguem se liberar
da camisa de força do Estado e da Igreja, escrevendo com o
intuito de divulgar suas idéias; atacam as formas tradicionais
da religião e concebem a importância do fato histórico em rela-
ção com suas teses. Os que continuavam na dependência do
governo eram criticados; Montesquieu diz que Voltaire, como
historiador, escrevia como um monge para seu convento.
O inglês Edward Gibbon (1737 - 1794) produz uma obra
clássica sobre a antigüidade, a História do declínio e queda do
Império romano (1776 - 1788). De origem aristocrática, Gibbon
viveu muito tempo em Lausanne na casa de um erudito calvinista.
Conheceu Voltaire e do iluminismo sua obra expressa uma filo-
sofia da história e tendências anti-eclesiásticas e profanas; seu
estudo sobre as origens do cristianismo – responsável pelo grande
êxito da obra – foi trabalhado como um tópico de história profa-
na, através de um crítica cética de lendas e autores eclesiásti-
cos.
A mudança de atitude frente ao fato e à concepção de his-
tória será absorvida pela historiografia do século XIX. Introdu-
zindo a dúvida, a crítica racionalista, uma metodologia, as no-
ções de história cultural e universal, os filósofos dão à história
elementos para que se afirme triunfante no século XIX. O século
da história e também do historiador. A história deixa de ser
assimilada à erudição, ao antiquarismo e passa a desempenhar
um importante papel na educação e no cotidiano das pessoas.
AS IDADES MODERNAS 65

Tudo se historiza, o historiador se profissionaliza e passa a


encarnar a consciência da nação. De matéria secundária, apên-
dice do conhecimento humano, transforma-se num mecanismo
imprescindível para a compreensão do mundo e dos homens.
Esta mudança radical liga-se profundamente ao próprio mo-
mento histórico da Europa. Seu fundamento é a Revolução Fran-
cesa.
A Revolução é sentida por todos os franceses como uma
ruptura. Os contra-revolucionários dizem que a revolução fora
um atentado à história, esta entidade milenar baseada num flu-
xo natural do tempo. Os revolucionários queriam acabar com
tudo o que fosse passado, principalmente religioso; daí, num
primeiro momento, a destruição sistemática dos monumentos
franceses, da monarquia ou da igreja, dos objetos que formali-
zavam o tempo.
Passado esse rápido momento, as mais diversas pessoas
viram o interesse que o passado podia apresentar na educação
dos cidadãos. Já em 1789, temas da história francesa – Carlos
IX, Fenelon – passam a ser encenados no teatro, substituindo os
temas antigos. A Revolução abre os arquivos públicos, senho-
riais, eclesiásticos. A criação por Alexandre Lenoir do Museu
dos Monumentos Franceses, com salas montadas com objetos
referentes a cada século da história francesa, desde a Idade
Média, atraiu multidões ávidas por conhecer os estilos de vida
do passado.
A Convenção (1792 - 95) estabelece que, para a terceira
sessão de suas Escolas Centrais, deveria haver um professor de
história especial, ensinando dez horas por semana, encarrega-
do de fazer com que seus alunos “repousassem deliciosamente
seus olhares sobre os acontecimentos memoráveis que lhes li-
bertaram”.
Esta história na verdade ainda estava se fazendo, não ha-
via sido escrita. Diante disso, a história não será ensinada nas
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escolas primárias por medo que as crianças possam “contrair


medos e preconceitos”, como diz Volney (1757 - 1820), membro
do comitê de instrução pública sob o Diretório (1795). Mas, no
ano III, Volney já ensina história na Escola Normal, junto com
outros Ideólogos – o grupo de filósofos que abandona a metafísi-
ca em proveito das ciências do homem, destacando a análise da
linguagem, da gramática e da lógica.
Napoleão (1769 - 1821) quer historiadores capazes de mos-
trar “a desordem perpétua das finanças, a falta de regras e de
recurso na administração” do passado, em contraste com a épo-
ca do Consulado, onde “se gozam dos benefícios derivados da
união das leis, da administração e do território”. Uma história
oficial. Acha absurdo que nas escolas sejam dadas aulas sobre
as guerras púnicas e não sobre a guerra da América. Em 1807,
numa carta, Napoleão fala do projeto de criação de “uma escola
especial de história”, de “um curso de bibliografia” e de várias
cadeiras no Colégio de França.
No programa de ensino dos liceus napoleônicos, a história é
matéria obrigatória nos primeiros e segundos anos de Humani-
dades, onde estudam jovens de 15 a 17 anos. O professor de
história nasce do improviso, na medida em que ainda não existe
uma especialização na matéria. Em 1812, o jovem Guizot (1787 -
1874) ensinava na Sorbonne “o trabalho comparado das leis,
das artes e dos costumes, a origem dos impérios com as causas
de seus progressos e de suas decadências” e também “as regras
da ciência crítica”.
No entanto, mesmo na época napoleônica não aparecem
manuais diversos daqueles que vinham sido produzidos há
vários séculos; como o de Le Ragois, da época de Luiz XIV,
apresentando uma série de fichas com as histórias dos reis
de França.
A grande virada, no sentido de uma ampla aceitação da
história pelo grande público, do reconhecimento de seu valor
AS IDADES MODERNAS 67

primordial na escolaridade, e de uma mudança no enfoque da


história será empreendida pelos historiadores chamados român-
ticos. Romantismo é um conceito utilizado para caracterizar uma
certa visão de mundo, idealista, metafísica e poética, cuja ex-
pressão intelectual, artística e política começa a tomar forma
em fins do século XVIII. Contrapondo a sensibilidade e o idealis-
mo filosófico ao racionalismo e ao empirismo da ilustração, o
individualismo ao universalismo, a estética européia medieval à
clássica, privilegia a interioridade, a espiritualidade; no âmbito
político esse individualismo será traduzido em idéia nacional.
A MODERNIDADE 69

A MODERNIDADE

“Nossa Geração teve que pagar para saber, pois a


única imagem que irá deixar é a de uma geração vencida.
Será este o seu legado aos que virão”

Walter Benjamin – Sobre o Conceito de História, 1940.

Na França, Rousseau é um dos primeiros a articular a


sensibilidade romântica diante do mundo. Mas, para a história,
tudo começa com o êxito retumbante do Gênio do Cristianismo
(1802) de Chateaubriand (1768 - 1848). No dia em que é lança-
do, as pessoas disputam a tapas os exemplares; depois da leitu-
ra se convencem de que o cristianismo “é delicioso”, como diz
Mme. Hamelin em suas lembranças. Militar, monarquista,
Chateaubriand vê sua carreira interrompida pela Revolução; viaja
para a América e depois para a Inglaterra. De volta à França, em
1802, publica o Gênio, uma apologia da religião estritamente de
acordo com os desígnios de Napoleão de reconciliação da Igreja
com o Estado. Um ano depois o autor era admitido na diploma-
cia pelo próprio Napoleão.
Chateaubriand vê na religião católica um alicerce da civili-
zação, uma inspiração para a arte e um modelo para a sociedade.
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As páginas que comparam as grandes catedrais góticas com as


florestas primitivas da França expressam uma arrebatadora vi-
são onírica do passado, a força dos primeiros franceses, da pá-
tria. A visão tradicional de que a beleza só poderia ser clássica
desabava por completo. O que Goethe (1749 - 1832) esboçara
no seu ensaio sobre a Catedral de Strasburgo (1773), para ele a
encarnação do gênio alemão, Chateaubriand apresenta com a
exaltação e magnificência de uma sinfonia.
O século XVIII havia apresentado o cristão como um ridí-
culo. Chateaubriand, que pertence a este século e ainda com-
partilha muitas de suas idéias, concebe a apologia cristã não
partindo de Deus, ignorado pelos cultos, mas ao contrário, com
espírito empírico, partindo do real, pela experiência. Como diz,
“era preciso pegar o caminho inverso, não provar que o cristia-
nismo é excelente porque vem de Deus, mas que ele vem de
Deus porque é excelente.” Em seu livro não ataca os filósofos,
mas os exalta fazendo de Voltaire e Rousseau dois homens im-
buídos dos fantasmas do cristianismo.
Chateaubriand coloca Deus como uma garantia para a
manutenção da ordem social, mas, em realidade. Deus mal apa-
rece no livro. Consciente da insegurança do mundo diante da
quebra das hierarquias, das contradições de sua época, atinge o
leitor pela emoção, pelos movimentos de seu coração. Vê no cris-
tianismo uma filosofia histórica do progresso, que quebra o eterno
retorno, que tem um nítido sentido do antes e do depois – exata-
mente como Voltaire via a história. O tempo era um elemento
criador e a história possui uma objetividade absoluta; é o plano
de encontro entre o tempo e a eternidade. Deus não era arquite-
to como na Idade Média, mas doutor em história.
Apesar de não ser propriamente um historiador, suas obras
foram fundamentais para despertar em muitos a vocação pela
história. Augustin Thierry (1795 - 1856) narra: “em 1810 (...)
um exemplar dos Mártires (de Chateaubriand), trazido de fora,
A MODERNIDADE 71

circulou na escola... A impressão que me causou o canto de


guerra dos francos tinha algo de elétrico. Eu saí do lugar onde
estava sentado e, andando de um lado para outro da sala, eu
repetia em voz alta e batendo os pés no chão: “Faramond !
Faramond ! nós combatemos com a espada !...” Este momento
de entusiasmo foi decisivo para minha vocação futura... Eis aqui
minhas dívidas para com o escritor genial que abriu e que deno-
mina o novo século literário. Todos aqueles que, em diferentes
sentidos, caminham pelas vias deste século, o encontraram na
fonte de seus estudos, em suas primeiras inspirações; não exis-
te ninguém que não deva lhe dizer, como Dante à Virgílio: Tu
duca, tu signore e tu maestro”...
Se os primeiros momentos do romantismo são anti-revo-
lucionários, logo haverá um fusão entre Revolução e romantis-
mo convergindo para o estudo da história nacional, para a cap-
tação da cor local. Os historiadores românticos serão liberais e a
Idade Média, o gótico, o bárbaro, o passado nacional, serão te-
mas privilegiados.
A história liberal, história da burguesia conquistadora, tem
por missão afirmar o valor e legitimar a nova classe detentora do
poder, ao mesmo tempo que pretende criar uma identidade na-
cional. Após a restauração de 1815, a história torna-se o campo
de luta entre liberais e conservadores. Estes querem apagar a
Revolução, o corte num contínuo histórico, enquanto os liberais
ansiavam pela integração dessa ruptura no presente e também
numa relação com o passado. O estudo da história torna-se
uma questão de Estado e historiadores como Guizot, Thiers,
Cousin serão nomeados ministros. O historiador liberal é o por-
ta-voz da burguesia.
Em 1832, Guizot (1787 - 1874), ministro da instrução pú-
blica, inicia uma catalogação sistemática de todas as fontes da
memória nacional e a publicação dos Documentos inéditos rela-
tivos à história da França, “uma pesquisa integral do passado”,
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em suas palavras, seguindo o êxito dos Monumenta Germaniae


historica, publicado na Alemanha. Prosper Merimée (1803 - 1870),
nomeado inspetor dos monumentos históricos, em 1833, per-
corre toda a França – tendo como assistente Viollet-le-Duc, fu-
turo responsável pelas grandes restaurações de igrejas, castelos
e cidades medievais – para efetuar um levantamento das rique-
zas arqueológicas francesas; Merimée “descobre”assim as igre-
jas românicas, iniciando uma série de estudos e ensaios sobre
as artes da idade média.
Augustin Thierry, após ter sido secretário de Saint-Simon
e colaborado em jornais liberais, não se tornará um político,
mas vê na política, no momento pós-revolucionário um impulso
para sua dedicação à missão de escrever história: “A história da
França tal como foi feita pelos historiadores modernos não é a
verdadeira história do país, a história nacional, a história popu-
lar. A melhor parte de nossos anais, a mais grave, a mais instru-
tiva, ainda está por ser escrita; falta-nos a história dos cidadãos,
do povo. Esta história nos apresentará exemplos de conduta e
este interesse de simpatia que procuramos em vão nas aventu-
ras deste pequeno número de personagens privilegiados que
sozinhos ocupam a cena histórica. Nossas almas ligar-se-ão ao
destino das massas de homens que viveram e sentiram como
nós. O progresso das massas populares para a a liberdade e o
bem estar nos parecerá mais imponente que a marcha dos
fazedores de conquistas, e suas misérias serão mais tocantes do
que aquelas dos reis despossuídos.” Assim, o historiador não
deve ser o porta-voz dos grandes, mas sim aquele que se inter-
roga sobre os sentimentos e os movimentos do povo. Em 1820,
Thierry publica A verdadeira história de Jacques Bonhomme,
evocando as diferentes formas de servidão do campesinato fran-
cês desde a época da invasão romana até seus dias. Em 1840,
diz que no lugar das antigas ordens, da desigualdade de clas-
ses, a Revolução havia construído uma sociedade de vinte e cin-
co milhões de cidadãos vivendo sob a mesma lei. Em 1850, o
A MODERNIDADE 73

Ensaio sobre a história da formação e dos progressos do Terceiro


Estado, uma comparação das burguesias inglesa e francesa,
uma desenvolvida pelo Estado e a outra pelo comércio e indús-
tria, distingue no passado a existência de uma massa popular,
conduzida e encarnada pela burguesia.
Numa outra dimensão, a leitura do Ivanhoé de Walter Scott
resultará numa mudança no estilo da escrita da história para
Thierry. Tradicionalmente, o livro de história apresentava uma
narração dos fatos e em seguida os comentários do autor. Thierry
acha falsa essa divisão que separa “os fatos daquilo que consti-
tui sua cor e sua fisionomia individual”, acha que o historiador
deve narrar e pintar ao mesmo tempo. Na Narrativa dos tempos
merovíngios (1824), livro que reafirma o gosto do público pela
Idade Média, o texto reflete as leituras de Chateaubriand e Scott.
A Narrativa baseia-se na teoria da luta de raças – entre galo-
romanos e germanicos – como motor da história do desenvol-
vimento nacional; a luta de raças antecederia a luta de classes.
No Ensaio sobre a história do terceiro estado, dirá que 1789 e
1830, enquanto movimentos populares, serão a revanche da
conquista franca.
Guizot, fiel à Luiz Felipe, durante a Monarquia de Julho
será o chefe do partido da Resistência, ministro do interior, da
educação pública, embaixador em Londres; em 1840 substitui
Thiers no ministério dos Assuntos Estrangeiros e se torna o ver-
dadeiro chefe do governo. Sua política, que favorecia a grande
burguesia nacional, contribuiu para aumentar a miséria dos
trabalhadores e instigar uma crescente oposição. Antes disso,
na década de 20, fora professor de história na Sorbonne, onde
em seus cursos celebrava a Revolução como a batalha decisiva
da história francesa. Dizia então “que a luta das diversas clas-
ses de nossa sociedade preencheu nossa história. A Revolução
de 1789 foi sua explosão mais geral e mais poderosa.” Mas, no
governo, diante do triunfo burguês quer congelar a história con-
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tra os perigos do “quarto estado”; considerava, em 1847 – pouco


antes da revolução de 48 – que todos os interesses haviam sido
satisfeitos e que a luta de classes havia terminado.
Marx será um atento leitor da historiografia romântica
burguesa francesa. Nela vê uma consciência explícita da luta de
classes como motor da história.
O grande astro da historiografia burguesa será Jules
Michelet (1798 - 1874). Nascido num meio popular, filho de um
impressor, Michelet, após ter sido um aluno brilhante, é encar-
regado do curso de história antiga na Escola Normal Superior. É
um apaixonado pela filosofia da história de Victor Cousin, Herder
e sobretudo Vico (1668 - 1744), de quem traduz os Princípios de
uma ciência nova sobre a natureza comum das nações (1725).
Nesta obra, Vico critica o racionalismo cartesiano e utiliza um
método comparativo, apoiando-se na filologia, para estudar a
formação, o desenvolvimento e a decadência das nações que,
obrigatoriamente, passariam por três fases sucessivas: idade dos
deuses, dos heróis e dos homens; em cada uma destas fases é
possível colocar em paralelo o modo de governo, o sistema jurí-
dico e a linguagem. O princípio de “humanidade que se cria”,
utilizado por Michelet, é de Vico.
Nomeado chefe da sessão histórica dos Arquivos Nacio-
nais (1831), volta-se para o passado nacional e elabora sua enor-
me História da França, cujos seis primeiros volumes, das ori-
gens à morte de Luiz XI, aparecem entre 1833 e 1844; neles cria
uma idade média romântica, idealizada, em que as pedras se
animam e se espiritualizam na mão dos artistas, tempo da in-
fância da França, da união da religião e do povo sofredor e de
suas lutas, do “grande movimento progressivo, interior, da alma
nacional”. Seus cursos no Colégio de França atraíam multidões;
tendo rompido com o catolicismo, neles desenvolve suas idéias
democráticas laicas. Entre 1847 e 1853 publicou os sete volu-
mes da História da Revolução Francesa, um trabalho profun-
A MODERNIDADE 75

damente passional e ao mesmo tempo minuciosamente docu-


mentado: “eu não poderia compreender os séculos monárquicos
se antes, antes de tudo, não tivesse dentro de mim a alma e a
fé do povo.” Após 1851, destituído de suas funções oficiais,
continua a publicação dos volumes relativos à história da Fran-
ça, de Luiz XI a Luiz XVI, todas imbuídas de um espírito de
polêmica política.
Michelet explica sua paixão arrebatada pela história e pela
França como uma obra da política, da revolução de 1830: “Esta
obra laboriosa de quase quarenta anos foi concebida a partir de
um momento, do raio de Julho. Nestes dias memoráveis, fez-se
uma grande luz e eu vislumbrei a França”. Como Thierry, acha
que a França ainda não possui uma história e que a escrita
desta história, “a ressurreição total da vida” é uma missão. O
historiador é um sacerdote com poder de ressuscitar os mortos,
que passam a falar através de seus livros. É necessário entre-
gar-se totalmente a esta tarefa imortal. A geografia, o homem, o
povo – “tal pátria, tal homem”– e todos os aspectos da vida pas-
sada, o historiador deve buscar na mais ampla documentação,
para criar uma história total. Para Michelet o nome da França é
Revolução, acima de tudo, dos conflitos políticos, econômicos,
de classe. “Franceses de todas as condições, de todas as classes
e de todos os partidos, guardem bem uma coisa, sobre esta terra
vocês só tem um amigo verdadeiro, é a França”. A nação é o
quadro e o resultado essencial de sua busca. Para Michelet,
liberdade não é um conjunto de garantias jurídicas, como acre-
ditava “o pobre Montesquieu”; a vida é que era tudo.
Georges Lefebvre considera que um gênio como Michelet
não podia deixar nem método, nem programa de pesquisa e
nem discípulos. E, como Lucien Febvre gostava de lembrar, após
Michelet a história sofre de uma considerável perda de vigor, de
um encolhimento de seus horizontes. Mas é Roland Barthes quem
capta Michelet com sutileza, imaginação e argúcia: “Tudo para
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ele é enxaqueca... Este homem que deixou uma obra enciclopé-


dica feita de um discurso ininterrupto de sessenta volumes de-
clara-se a todo momento “ofuscado, sofredor, fraco, vazio.
“...Michelet tem enxaquecas históricas....Estar doente da histó-
ria é não apenas constituir a história como um alimento, como
um veneno sagrado, mas também como um objeto possuído...”.
O historiador e o professor de história viverão seus dias de
glória absoluta na França após a derrota de Sedan e a perda da
Alsácia e da Lorena. Com a queda do Segundo Império e a pro-
clamação da Terceira República, em 1870, não se tratava mais
de construir uma nação através do livro de história, mas sim de
preparar a juventude para a recuperação concreta desta nação.
Esta será a tarefa dos professores de história nas últimas déca-
das do século XIX até 1914. Nunca, nem antes e nem depois, o
ensino da história fora ou seria considerado a tal ponto impres-
cindível e redentor.
Entre 1876 e 1896, Hippolyte Taine (1828 - 1893), crítico
literário, filósofo e historiador, havia buscado as causas da guerra
de 70 e da Comuna na obra As origens da França contemporâ-
nea; aí adota seu método, feito à imagem das ciências naturais,
baseado nos determinismos da raça, do meio geográfico e social,
do momento da evolução histórica, que antes lhe havia servido
para explicar as manifestações artísticas, para agora explicar a
situação da França.
No âmbito do grande público e da educação cívica, a divul-
gação de uma idéia republicana de pátria, sagrada mas laica,
histórica mas científica, será empreendida pelo historiador Ernest
Lavisse (1842 - 1922), autor de uma História da França, com-
posta entre 1892 e 1911, e do manual Lavisse, lido por todas as
crianças francesas nas escolas públicas. Lavisse constrói uma
história linear da França, com base nas batalhas e na heroicidade
daqueles que sacrificaram sua vida pela pátria. O presente, a
Terceira República, é considerado como o ápice da história fran-
A MODERNIDADE 77

cesa e todos os períodos anteriores são considerados em relação


com o presente. A França aparece como um soldado de Deus, o
país de maior ação civilizatória de todos os tempos. Cabe aos
professores de história, segundo Lavisse, a maior de todas as
missões, fazer com que cada um se projete nessa grandiosidade,
inculcar uma adoração pela pátria que impulsionará os jovens à
sua defesa e à retomada da Alsácia e da Lorena.
Até 1880, a disciplina histórica ainda não tinha total auto-
nomia universitária, pois se ligava à filosofia ou às humanida-
des literárias. São criadas então uma licença específica para o
ensino de história e um grande número de cátedras universitá-
rias. O historiador é agora um profissional. Em 1890, Charles
Seignobos (1854 - 1942) é encarregado de um curso de pedago-
gia das ciências históricas. Em 1898, é publicada a Introdução
aos estudos históricos de Charles-Victor Langlois e Seignobos, o
manual por excelência da história positivista.
A escola dita metódica ou positivista desenvolve-se na Fran-
ça durante a III República. Seus princípios estão expostos no
manifesto de Gabriel Monod escrito para o lançamento de sua
Revista histórica, em 1876, e no manual de Langlois e Seignobos.
Encontrava-se na linha do cientificismo histórico de Taine e de
Fustel de Coulanges (1830 - 1889) para quem a história podia
ser uma ciência, mas jamais uma filosofia da história. Para os
metódicos, a pesquisa histórica deveria ter um caráter científi-
co, distante de qualquer especulação filosófica, visando a uma
objetividade absoluta, alheia ao meio social do historiador que a
elabora; esta objetividade seria produto da aplicação de técnicas
rigorosas no inventário das fontes, na crítica dos documentos,
na organização dos trabalhos na profissão. Os historiadores
positivistas participam ativamente nas reformas do ensino su-
perior, dirigem grandes coleções – História da França, de Lavisse,
Povos e Civilizações, de L. Halphen e Ph. Sagnac, História geral
de A. Rambaud, por exemplo –, ocupam cadeiras nas novas uni-
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versidades e elaboram os manuais para as escolas primária e


secundária com galerias de heróis, seqüências de fatos e datas.
Langlois e Seignobos, visando a constituição de uma his-
tória científica, descartam o providencialismo de Bossuet, as
filosofias da história de Hegel e Comte, a história-literatura de
Michelet, o progressismo racionalista e o finalismo marxista. A
história seria apenas “o trabalho de documentos”, atrás dos quais
o historiador se apaga; estes documentos seriam limitados ape-
nas aos escritos voluntários – cartas, decretos, correspondên-
cias, manuscritos diversos; para a escola metódica não são con-
siderados documentos, por exemplo, os sítios arqueológicos ou
testemunhos involuntários, como manuais de confissão, can-
ções etc. O historiador primeiro deve fazer um inventário do
material disponível – “heurística”–, salvar, registrar e classificar
esse material e passar à crítica externa, de erudição, do docu-
mento. Esta consiste em encontrar a fonte do documento, des-
cobrir sua autenticidade pela paleografia, enumerar seus pon-
tos principais – nomes, datas, lugares – fazer uma ficha de tudo
e passar à crítica interna; retomar as informações da crítica de
erudição, fazer a análise do conteúdo e a crítica positiva da in-
terpretação para ter certeza do que o autor quiz dizer. Analisar
as condições nas quais o documento é produzido e fazer a críti-
ca negativa para controlar os dizeres do autor. Esta parte de
hermenêutica recorre à lingüística, para determinar o valor de
palavras e frases. Feito isso, é necessário comparar com outros
documentos da época para estabelecer um fato particular,
reagrupar fatos isolados em quadros gerais – sociais, institucio-
nais – e, finalmente, por dedução ou analogia, ligar os fatos en-
tre si e preencher as lacunas da documentação levando o histo-
riador a arriscar algumas generalizações ou interpretações, sem
que, no entanto, ele se iluda de que está desvendando algum
mistério, “a história será constituída....quando todos os docu-
mentos forem descobertos, purificados e colocados em ordem.”
A MODERNIDADE 79

Diante de trabalho tão complexo, o manual de Langlois e


Seignobos sugere que deva haver eruditos de um lado, e do ou-
tro, jovens pesquisadores com pesquisas modestas, escrevendo
pequenas monografias, sob a tutela dos grandes professores
universitários que analisam essas monografias e, cientificamente,
por meio delas constroem teses gerais. Os professores devem
ser especialistas num deteminado assunto e assumirem capítu-
los concernentes às suas especializações nas grandes obras de
história universal, do país etc. Estava instaurado o regime uni-
versitário da cátedra.
Apesar de este ter sido o modelo histórico predominante
na França até 1930, sua origem não é francesa. A tentativa de
aniquilamento das filosofias da história originou-se na Alema-
nha, em meados do século XIX, como uma contra-posição ao
romantismo e ao idealismo de Hegel.
Nas primeiras décadas do século XIX, o romantismo ale-
mão confundiu-se com o nacionalismo e a luta política pela
unificação. O filósofo Herder (1744 - 1803) ao dizer que “toda
perfeição humana é nacional, secular, e estritamente conside-
rada, individual”, fundia as noções de pátria, história e indiví-
duo; para ele tudo o que existe era produto do clima, das cir-
cunstâncias temporais aliadas a virtudes nacionais e seculares.
Nas Idéias sobre a filosofia da história da humanidade (1784 -
1791) postula que a história é um estudo dos tipos de civiliza-
ções humanas, de suas línguas, de suas culturas, de onde se
desprende a alma popular. Com este espírito são elaborados
trabalhos sobre a história do direito, por exemplo, como os de
Karl Friedrich Eichhorn (1781 - 1854), que considera o direito
como uma emanação popular, e os de Friedrich Karl Savigny,
que também via no gênio nacional alemão as origens do direito.
A busca de um passado comum que justifique a supera-
ção dos particularismos políticos é intensa na Alemanha; erudi-
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tos concentram seu saber em dicionários especializados; na


Prússia, em 1819, o Barão von Stein, ministro de Frederico
Guilherme III, funda em Frankfurt uma sociedade de estudos
alemães antigos; a série dos Monumenta, reunindo as fontes
alemãs entre 500 e 1500, é publicada a partir de 1826.
A história é também um terreno de especulação para os
filósofos. As primeiras reflexões de Hegel (1770 - 1831), ao assu-
mir a cátedra de filosofia em Berlim, substituindo Fichte, em
1818, foram sobre o espírito do judaísmo e do cristianismo. Ape-
sar de acreditar no poder da razão, é também um homem de fé,
e seu sistema visa a permitir que todo o Universo seja pensado.
Hegel pretendia forjar novos conceitos aptos a traduzirem a vida
histórica do homem e sua existência num povo ou numa histó-
ria. Este será o tema da Fenomenologia do Espírito (1807), que
descreve a história da consciência desde o “aqui e agora” até o
saber absoluto; considera que o problema fundamental é o da
realização da humanidade em nós e da humanidade na histó-
ria. A história expressaria o movimento do espírito, dado que o
mundo seria um espelho do espírito. Menos individualista que
os românticos, acredita que o indivíduo se funde inteiramente
no espírito do universo. Retoma o providencialismo cristão e
descarta o acaso, postula que no desenvolvimento histórico e do
espírito haveria sempre um progresso; neste sentido, o presente
seria sempre o objeto da história. Esta história no entanto seria
racional, pois a razão governa o mundo, e a dialética seria a
“alma motriz da história”. A história universal representaria o
progresso na “consciência de liberdade”; assim, teria inícios no
oriente, passava pelos gregos e romanos e terminava com os
povos germânicos-cristãos. O Estado aparecia no centro desta
história universal em que a razão tiraria partido do instinto co-
letivo para fazer avançar a humanidade nos caminhos da perfei-
ção. Protegido da monarquia prussiana, considera o Estado o
objetivo final absoluto, a realização da liberdade.
A MODERNIDADE 81

Estas teorias Hegel aplicaria em suas obras históricas, como


a História da filosofia. Pela primeira vez, construia-se uma his-
tória da filosofia baseada numa conexão entre os diferentes sis-
temas e não somente em vidas dos filósofos. Hegel retoma para
a filosofia o projeto de Winckelmann (1717 - 1768) para a histó-
ria da arte, baseado no estudo dos estilos e não dos artistas. Ao
historiador da filosofia não caberia julgar, mas compreender e
justificar cada um dos sistemas, os mais diversos. A refutação
de um sistema por outro seria própria ao desenvolvimento da
filosofia: “O desenvolvimento da árvore é a refutação da semen-
te, a flor refuta as folhas mostrando que não são a existência
suprema e verdadeira da árvore. A flor acaba sendo refutada
pelo fruto, mas este não poderia ter chegado a existir sem as
etapas precedentes.”. Tese, antítese, síntese. Em história políti-
ca: no fim da república romana, César, ambicioso, toma o poder
(tese); seus inimigos, ambiciosos, lutam contra César (antítese);
César triunfa e se impõe como único governante (síntese), cor-
respondendo assim às circunstâncias históricas.
O idealismo absoluto de Hegel não distingue o sujeito do
objeto, o ser do conhecer. Nas Lições sobre a filosofia da história
diz que “o espírito tem em si mesmo o seu centro; não existe
unidade fora dele, mas ele a encontra, ele é em si e consigo...O
espírito sabe-se a si mesmo; ele é o julgamento de sua própria
natureza; ele é também a atividade pela qual volta a si, se pro-
duz assim, se faz o que é em si. Segundo esta definição, pode-
mos dizer que a história universal é a representação do espírito
em seu esforço para adquirir o saber daquilo que é.” História do
espírito e do universo são a mesma coisa. A integração da di-
mensão do tempo como categoria de inteligibilidade feita por
Hegel é uma manifestação da importância assumida pela histó-
ria no século XIX. Hegel formou vários historiadores idealistas
como Baur (1792 - 1860) e Zeller (1814 - 1908), além de ter sido
intelectual que estimulou amplos setores da juventude, “os jo-
vens hegelianos”, entre os quais aquele que mais se debruçou
sobre seu pensamento, Karl Marx.
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O romantismo alemão, entretanto, baseava-se na utopia


libertária, bebendo no messianismo judaico os elementos ques-
tionadores tanto do individualismo como da articulação dos in-
divíduos na idéia de nação. Evidentemente, a configuração his-
tórico-cultural da formação da Europa Central e a ausência de
projeto de unificação alemã, que só será realizado no final do
século XIX, permitiu que ali se constituísse um outro paradig-
ma mais anarquizante especialmente com Martim Buber, Franz
Rosenzweig, Gershon Scholem ou Leo Lowenthal. A aspiração
do grupo a uma organização nacional judaica os afasta do na-
cionalismo político. Leo Loventhal, por exemplo, considera o
marxismo demasiadamente articulado com a sociedade indus-
trial. A cultura judeo-alemã aparece com Heine e Marx, Freud e
Kafka, Ernest Bloch e Walter Benjamin. Um pouco esquecida
especialmente depois da maré nazista, sobreviveu apenas no
exílio, como uma cultura da diáspora, e seus últimos represen-
tantes Marcuse, Erick Fromm, Ernest Bloch, Georg Lukács aca-
bam de se extinguir, não sem deixar profundas marcas na ciên-
cia, literatura ou filosofia do século XX. Unidos pela idéia polis-
sênica que significa redenção, restituição, reparação, restabele-
cimento da harmonia perdida, estes pensadores contraditoria-
mente vivem com orgulho esse sincretismo (Landauer) ou pelo
dilaceramento (Kafka), negando as origens alemãs (Scholem) ou
a identidade judaica (Lukács).
Em contrapatida ao hegelianismo e ao romantismo, Leopold
von Ranke (1795 - 1886) nega as filosofias da história “especu-
lativas”, “subjetivas” e “moralizadoras” em prol de fórmulas “ci-
entíficas”, “objetivas” ou “positivas”. Para ele o historiador não
deve “julgar o passado nem instruir seus contemporâneos, mas
simplesmente dar conta do que se passou”; não haveria qual-
quer relação entre o sujeito – o historiador – e seu objeto – o fato
histórico; o historiador escapa a qualquer tipo de condiciona-
mento social, portanto é absolutamente imparcial; a história
existe em si, independente de quem a estuda; o historiador deve
A MODERNIDADE 83

registrar os fato passivamente, como um espelho reflete uma


imagem; ao historiador cabe apenas reunir os fatos, baseados
em inúmeros documentos e a narrativa histórica deve então se
organizar a partir destes fatos; toda e qualquer reflexão é inútil
e prejudicial. Só assim pode-se chegar ao conhecimento da ver-
dade.
Ranke pertence a uma família de pastores alemães protes-
tantes, estudou teologia, gramática e filologia na Universidade
de Leipzig e busca uma utilidade para esta ciência fora da anti-
güidade, onde havia uma grande massa de estudantes; volta-se
então para a história moderna. Entre 1816 e 1825, torna-se
professor de história em Frankfurt-sobre-o Oder; trabalha mui-
to nesse período lendo os historiadores italianos e os autores do
fim da Idade Média, desviando-se um pouco dos autores latinos
e principalmente de Tucídides, a quem muito admirava. Em 1824,
escreve sua primeira obra, sobre os povos romanos e germânicos,
onde já se atém à sua fórmula de apenas narrar os fatos. Apesar
disso insiste sobre a influência de Deus sobre a história e a
continuidade das duas nações que estuda. Ranke decide nesta
época estudar história moderna, um dos períodos que ilustraria
a vontade de Deus sobre os grandes acontecimentos. Para ele,
que por pouco não se tornara pastor, a história era uma manei-
ra de se conhecer Deus. Publicado, seu livro desperta interesse
no meio universitário. Ranke é convidado a lecionar na recém-
fundada universidade de Berlim. Guilherme de Humboldt dese-
java então transformá-la no maior centro cultural da Alema-
nha; nela trabalhavam Niebuhr, Schleiermacher, Fichte, Savigny,
Bockel, todos a serviço da Prússia e de uma Alemanha nova. Já
como professor, Ranke decide continuar suas pesquisas sobre o
século XVI italiano e parte para Viena, onde havia uma infinida-
de de documentos venezianos. Desse período resultam a Histó-
ria do papado – onde destaca a importância das nações depois
da queda de Roma e a impotência da Igreja a impor seus sonhos
de soberania nacional – e a História da revolução sérvia – em que
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demonstra a comunidade de civilizações que une os povos ro-


manos e germânicos em oposição ao destino histórico dos eslavos
oprimidos pelo sistema imperial oriental, incapazes de afastar
os muçulmanos e de conseguir uma independência nacional. A
partir de 1828, passa três anos na Itália, onde percebe que sua
vocação de historiador é um mandato de Deus. A revolução de
30 o faz voltar à Alemanha. Em Berlim inicia a publicação do
Historische Politische Zeitschrift – jornal de história política, em
que explica a história européia contemporânea e a verdade das
teses prussianas. Continua a pensar na ordem divina presidin-
do a sucessão de épocas e de nações dominantes; mas não vê
como Hegel um progresso nesta sucessão, mas sim uma conti-
nuidade cristã, que soube encampar a riqueza da antigüidade.
Prosseguiu como professor da universidade de Berlim e como
pesquisador e autor de livros até o fim da vida. Encara a vitória
da Prússia sobre a França em 1870 como uma corroboração de
sua tese sobre a ascensão e queda das nações. Morre em Berlim,
em 1886. Em 1865 havia recebido um título de nobreza por seu
trabalho como historiador. Ranke é um exemplo da penetração
do cientificismo na história, mas sem resultados concretos; sua
imparcialidade apenas desnuda a enlevo da burguesia diante
do que considerava progresso, ao mesmo tempo em que man-
tém firme uma tradição da história política, factual, religiosa-
mente providencial, e, sobretudo, voltada para a defesa das te-
ses do governo vigente. Por outro lado, representa o historiador
já inserido num quadro universitário. Seus discípulos ocupa-
ram todas as mais importantes catédras de história na Alema-
nha.
Entre seus alunos, um se tornaria mais famoso do que o
próprio Ranke. É Jacob Burckhardt (1818 - 1897), autor da
Civilização do renascimento na Itália (1860), obra marcante na
afirmação autônoma da história da cultura. Com um fundo
hegeliano e sua admiração incontida pelo classicismo,
Burckhardt tenta captar o renascimento em sua individualida-
A MODERNIDADE 85

de, fazendo dele uma época de ouro forjadora do futuro, embora


só visse decadência no século XIX.
Na Inglaterra, as revoluções industrial e francesa dão mar-
gem a uma historiografia romântica, conservadora, anti-
industrialista, anti-iluminista e anti- francesa, exemplificada nas
obras de homens políticos como Edmund Burke (1729 - 1797)
Reflexões sobre a Revolução na França (1790), Thomas Carlyle
(1795 - 1881), História da Revolução Francesa (1837) e Heróis e
culto dos heróis (1841), onde insiste sobre o papel dos gênios na
história, opondo-se ao utilitarismo e ao materialismo, e Thomas
Macaulay, História da Inglaterra a partir de James II (1849 -
1861). Macaulay, muito popular em sua época, formula suas
considerações a partir do presente e procura provar que a salva-
ção da Inglaterra nunca esteve na revolução ou no despotismo,
mas sim num governo parlamentar liberal.
Ranke, Macaulay, Michelet, e na geração seguinte Lavisse,
cada um dentro da especificidade de seu país de origem e de seu
momento, respondem a um imperativo de compreensão das
mudanças do presente que torna o especialista em pensar a
história em um elemento ativo dentro da sociedade. A acelera-
ção do tempo provocada pelas Revoluções – americana, france-
sa, industrial – e também pela penetração da máquina e das
produções derivadas das ciências no cotidiano abria caminho
para que fossem pensados métodos de análise do passado, im-
pregnados de paixão política e cientificismo. Embora aparente-
mente contraditórios, tanto a paixão como o cientificismo con-
vergiram para a escrita de uma história política, mítica, rechea-
da de fatos, batalhas e grandes nomes.
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 87

O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO

“Nada é mais real do que nada.”

Samuel Beckett

A grande revolução para o historiador contemporâneo vem


da Alemanha, quando Karl Marx escreve um manifesto que ga-
nha dimensões de uma bomba. A história e a luta de classes. No
manifesto de 1848, e nos Manuscritos estabelece-se um novo
rumo para a história e os historiadores. A partir de noções aber-
tas como formação econômico-social, consciência de classe, modo
de produção, reinstaura-se um campo de debates com conse-
qüências de longo prazo. A Dialética da Natureza de Hegel é
substituída pela constituição da noção de necessidade especial-
mente a partir das análises da escassez e da abundância. Os
estudos sobre economia política permitem encontrar o sentido
dos interesses restritos dos economistas clássicos, que
debruçados sobre conceitos de preço e lucro justificam as no-
ções de valor agregados apenas ao capital, mas não extraídos do
trabalho. Marx reorganiza o pensamento de David Ricardo so-
bre o valor de uso e o valor de troca e nele insere o valor do
trabalho não pago, extraído do trabalhador na medida em que
se define o salário pela média do tempo gasto socialmente na
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produção de uma mercadoria. Em A Ideologia Alemã, dialoga


tanto com os jovens hegelianos, como com os socialistas român-
ticos ou utópicos que propunham uma alteração moral na rela-
ção entre os proprietários e os trabalhadores. Dedica-se a en-
tender a sociedade da necessidade e projeta como devir o reino
da liberdade, onde não haveria estado nem classes sociais. Em
Grundisses recupera dimensões cotidianas das experiências
humanas e desenvolve com muita precisão o método hipotético
analítico. Exercício primoroso é realizado em 18 Brumário, onde
estuda os conflitos entre as classes sociais na França de 1848 e
o golpe de Luiz Bonaparte. Estabelece um combate aberto con-
tra o idealismo e termina por destacar com muita força o papel
da economia no desenvolvimento da história humana. Sua obra
mais citada, O Capital, foi organizada a partir de estudos esparsos
em três volumes, por Karl Kautisky. Evidentemente a ordem
estabelecida aos estudos permite um bom entendimento do sis-
tema capitalista em seus três tempos: produção, circulação e
realização do valor, ou seja, o processo de acumulação. Os se-
guidores, nomeados marxistas, foram inicialmente os economis-
tas entusiasmados com as possibilidades de mensuração aber-
tas pela crítica da economia política. A contribuição mais signi-
ficativa, entretanto, refere-se à luta de classes e ao sentido da
práxis revolucionária. No desenvolvimento do capitalismo o ho-
mem perde o sentido do trabalho enquanto criação, o trabalho
parcelar aliena e compartimenta o trabalhador à lógica da pro-
dução. A mercadoria se humaniza e o homem é coisificado. A
classe que se forma nesse processo é o proletariado, que para
libertar-se deve se apropriar daquilo que é tomado pelo capita-
lista libertando-se a si e a sociedade como um todo. Recupera-
se a noção de revolução constituída pela burguesia e inclui-se o
sentido de superação. Este novo modo de pensar a história es-
palha-se como um fio de pólvora e os debates em torno da revo-
lução ampliam-se para toda a Europa.
A primeira guerra mundial, de 1914 a 1918, seria um fator
decisivo na mudança de rumo da construção da história. Após a
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 89

carnificina perpetrada pelas nações envolvidas no conflito mun-


dial, mesmo tendo sido realizada a expansão dos impérios colo-
niais britânicos e franceses ficava impossível cultuar os mitos
da sacralidade do Estado nação, do herói nacional, da missão
civilizadora do ocidente contra os bárbaros, da história-batalha,
do progresso. Os funcionalistas e liberais norte-americanos ade-
riram prontamente aos postulados do presentismo, especialmen-
te J.H.Robinson em A nova História publicado em 1912 em Nova
York e H.E.Burns em História e Escritos Históricos de 1937. A
tendência relativista se espraia com maior vigor depois da se-
gunda guerra mundial, especialmente no combate aos postula-
dos do pensamento marxista e na relativização das lutas que se
abriram entre as classes naquele período.
A oposição ao relativismo será concebida na idéia de que o
conhecimento histórico se constitui por determinações sociais
que lhe atribuem um caráter de classe.
Marx ao questionar a dialética hegeliana define a História
como luta entre as classes sociais, e especifica os interesses de
classe como elemento central no entendimento dos conflitos so-
ciais, dando ao presentismo outras centralidades móveis e arti-
culadas não no sentido do relativismo niilista, mas como ele-
mentos norteadores da reflexão no entendimento das estrutu-
ras sociais, das desigualdades e das diferenças existentes entre
os donos dos meios de produção e dos que, desprovidos desses
níveis de propriedade, tornaram-se vendedores de sua força de
trabalho.
O problema da verdade passa a ser explicado de modo
distinto do universo da idéias, encaminhando-se para a desco-
berta dos conflitos mediados por necessidades subjetivas e ob-
jetivas das relações entre o ser e o existir.
Deve-se ainda perguntar se o político e o estatal contêm a
verdade dessa realidade, ou seja, a História? O pensamento
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marxista considera que a verdade do político encontra-se no


social e que apenas as relações sociais permitem compreender e
explicar as formas políticas. Na medida em que elas se consti-
tuem como relações vivas e ativas, possuem uma base material,
ou seja, os meios de trabalho e sua organização e se desenvol-
vem por meio de técnicas e da divisão social do trabalho. Conhe-
cê-las e desvender o seu significado pressupõe a apreensão do
real e a quebra tanto do relativismo como das verdades indivi-
duais. Para Marx a única possibilidade de apreensão do real se
dá pela práxis, ou seja, pela prática social na medida em que
esta só é compreensível se forem articulados os conhecimentos
teórico/filosóficos com a crítica radical da prática social. Essa
teoria dialética da realidade e da verdade não pode separar-se
de uma prática. Teoria e prática em uma noção essencial no
pensamento de Marx, qual seja, a superação. Deste modo, o
conceito de superação em Marx comporta uma crítica da sínte-
se hegeliana acabada, na qual o movimento dialético, o tempo
histórico, a ação prática se desmentem a si mesmos. Deste modo,
a religião deve e pode ser vencida. Ela já o é na filosofia e pela
filosofia. A superação da religião consiste em seu desapareci-
mento.
Em que consiste para Marx a superação da Filosofia? Ela
difere da superação da religião pois é mais complexa. Desa-
parece o lado especulativo, sistemático e abstrato, deixando o
espírito da crítica radical, o pensamento dialético, os conceitos e
abrindo a um projeto de ser humano integral, que deve ser rea-
propriação da integralidade do humano enquanto razão, senti-
do e obra, e superação do homem coisificado pela divisão social
do trabalho que alienou o homem criador que pode ser reencon-
trado. A superação da filosofia compreende, pois, sua realiza-
ção, ao mesmo tempo que o fim da alienação filosófica.
Para Marx, o homem deve também empreender a supera-
ção do político. Ela comporta a superação do Estado, e a transfe-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 91

rência para as relações sociais organizadas das funções por ele


açambarcadas. Mais precisamente, afirma Henri Lefebvre na So-
ciologia de Marx, a democracia contém o segredo da verdade de
todas as formas políticas, elas desembocam na democracia, mas
a democracia só vive senão lutando para manter-se e superando-
se em direção a uma sociedade liberta do Estado e da alienação
política. Para Marx, o rompimento com a alienação política per-
mite a recuperação da racionalidade imanente às relações sociais
em razão dos conflitos, substituindo a coerção que o Estado exer-
ce sobre os homens. A gestão social das coisas são centrais na
superação do conceito hegeliano do Estado.
No período inicial deste século, os pensadores marxistas
enrijeceram a dialética propugnada por Marx e desenvolveram
análises macroestruturais da economia e da demografia
redefinindo o sentido materialista desses pressupostos. O grupo
de Ernest Labrousse na França criou uma escola econométrica
de grande importância, mas que paulatinamente foi sendo assi-
milada pelos supostos positivistas e pelas análises estruturali-
zantes.
Ao longo da segunda metade deste século o esgotamento
das formas estruturais foi sendo sentida como dilema da inves-
tigação histórico-social e também do enrijecimento estatista da
política definida para o bloco soviético no pós-guerra. Em am-
bos os casos, os historiadores se debruçaram em busca das
subjetividades, e procuraram reencontrar os desafios postula-
dos no século XIX e desviados pelos conflitos e interesses do
século XX.
No que se refere ao entendimento da religião, esta passa a
ser decodificada como alienação inicial e fundamental do ser
humano, raiz de toda a alienação. Ela mostra a gênese do pen-
samento filosófico que se desenvolve como já foi apontado neste
texto, no terreno das lutas sociais, travando com elas violentas
batalhas nem sempre vitoriosas e se redefinindo num campo
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específico. Deve-se perguntar, deste modo, onde se encontra a


verdade da filosofia? As idéias filosóficas, ou melhor, as repre-
sentações (do mundo, da sociedade, do homem individual), ela-
boradas pelos filósofos, sempre mantiveram certa relação com
os combates da vida política, ou porque os filósofos se manifes-
taram contra os senhores do momento, ou porque lhes dispen-
sam seus apoios. A razão humana, nos dizeres de Henri Lefebvre,
se manifesta por dois caminhos contraditórios e inseparáveis: a
razão de Estado (a lei, sua capacidade organizativa) e a razão
filosófica (o discurso, a lógica e a coerência). O hegelianismo
pretendeu ser o sistema filosófico perfeito dessa díade. A crítica
radical desse sistema fez com que ele explodisse retirando-lhe o
método (Lógica e dialética), e os conceitos (totalidade, negatividade
e alienação). Em meio aos acontecimentos da guerra, na Rússia
realizavam-se duas revoluções inesperadas: a de fevereiro,
dirigida pelas facções burguesas anti-aristocráticas e a de outu-
bro, cuja direção introduziu na cena histórica o partido proletá-
rio revolucionário. Na europa central e oriental desenrolavam-
se acontecimentos que encontrariam eco posterior no ocidente.
Os socialistas alemães sofrem um duro golpe, especialmente a
Liga Spartakista, e os Bolcheviques passam a governar um grande
país – a Rússia.
No ocidente, as primeiras inquietações frente à história
positivista começam a manifestar-se antes mesmo da guerra.
Em 1903, François Simiand (1873-1935), discípulo de Durkheim
e entusiasta da estatística como técnica de estudo das ciências
sociais, denuncia na história positivista sua tendência a exage-
rar a importância dos fatos, do individualismo dos heróis e da
cronologia, ao se perder na busca das origens. Para outros, a
história econômica parecia ser uma opção à exaltação do políti-
co; esta tendência toma forma nos trabalhos de Henri Hauser,
que inaugura a cadeira de história econômica na Sorbonne, Henri
Sée e na tese de Paul Mantoux (1906) sobre a revolução indus-
trial no século XVIII. O socialismo francês da época, misturando
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 93

várias tendências, do marxismo ao “populismo” de Michelet, atra-


vés da História socialista da revolução francesa, dirigida por
Jaurès (1859 - 1914), aponta para novos caminhos. Da mesma
forma, a reabilitação de Robespierre feita por Albert Mathiez (1874
- 1932) surge como uma versão diversa da história republicana
dantonista.
Na Alemanha, Oswald Spengler (1880 - 1936), que tivera
uma formação mais científica do que humanista, inicia antes da
guerra um Esboço de uma morfologia da história universal; pu-
blicado em 1918, no momento da derrota alemã, com o título O
declínio do Ocidente, obtém um enorme sucesso, com mais de
100.000 exemplares vendidos. Spengler, que até 1933 flertou
com os nazistas, atribui um caráter nitidamente pessimista ao
presente e formula uma teoria das catástrofes. Ao mito do pro-
gresso, opõe uma concepção cíclica da história, comparando
cada cultura a um todo orgânico, a uma entidade homogênea,
com nascimento, crescimento, maturidade e decadência; “os
homens são os escravos da vontade da história, os órgãos auxi-
liares executivos de um destino orgânico”, “a humanidade é uma
grandeza zoológica”. Ao contrário do pontilhismo positivista, O
declínio representa uma orgia da síntese, em que culturas, obras
de artes, países, períodos, os mais diversos são comparados e
justapostos a cada página. Sobretudo, representa o sentimento
de aniquilamento dos alemães do pós-guerra.
Na França, partir de 1920, a escola metódica, positivista, e
seu discurso ideológico, que nada tem de imparcial como pro-
clamava, começa a ser atacada sistematicamente em várias fren-
tes. Seus integrantes, Seignobos, Louis Halphen, Ph. Sagnac e
outros herdeiros de Lavisse, que ocupam postos importantes
nas universidades, são contestados primeiro pelos integrantes
da Revue de Synthèse de Henri Beer; nos anos 30, pelos inte-
grantes da revista Annales d’histoire economique et sociale, fun-
dada em 1929 por Lucien Febvre (1878 - 1956) e Marc Bloch
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(1886 - 1944), que ensinavam na Universidade de Strasburgo.


Febvre fizera seus estudos de história em Nancy e depois em
Paris, na Escola normal superior e na Sorbonne; Bloch, nascido
numa família burguesa judia, também passa pela Escola nor-
mal superior e pela Sorbonne, indo depois para a Alemanha,
onde estuda nas universidades de Leipzig e Berlim.
O fato de o historiador ser agora um profissional dentro de
um quadro universitário permitirá a concepção de pressupostos
metodológicos derivados de uma discussão intelectual coletiva.
As novas ciências humanas, a sociologia de Durkheim (1858 -
1917), a geografia de Vidal de la Blache (1845 - 1918), a antro-
pologia, a filologia, a lingüística, a economia, a psicologia, con-
tribuem com seus aportes conceituais e metodológicos à discus-
são histórica, provocando uma renovação sem precedentes nes-
ta disciplina. Pela primeira vez, desde Heródoto, caía por terra a
tirania do político.
Febvre, Bloch e o grupo dos Annales condenam na histó-
ria tradicional, por eles chamada historizante, que: a atenção
dada somente a documentos escritos, voluntários, negligenci-
ando os documentos não escritos – vestígios arqueológicos, sé-
ries estatísticas – e os testemunhos involuntários que muito di-
zem sobre as atividades humanas; a ênfase no fato, no fato sin-
gular, num tempo curto – uma batalha, por exemplo –, ao invés
de apreender a vida das sociedades, que se mostra por fenôme-
nos comuns, repetitivos, e que se manifestam num tempo longo
– a cultura do trigo, por exemplo; o privilégio atribuído pela his-
tória historizante aos fatos políticos, diplomáticos, militares em
detrimento dos fatos econômicos, sociais e culturais; sendo a
história “dos vencidos de 1870”, a história historizante é extre-
mamente prudente, não se engaja em debates, não se arrisca a
interpretações e descarta qualquer tentativa de síntese.
A problemática do presente foi formulada de modo
instigador pelo italiano Benedetto Croce em 1919, com a publi-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 95

cação do ensaio A história reduzida ao conceito geral de arte.


Descarta simultaneamente o sentido objetivista dos positivistas
e a possibilidade de um caráter descomprometido do historia-
dor que não pode se referir ao passado senão motivado pelos
dilemas do presente. Retomando os elementos constitutivos do
pensamento de Dilthey e Simmel, Croce destaca dois níveis de
intervenção do historiador: a intuição e o sentido individual.
Procurando contudo definir a história como uma arte especial,
uma vez que o artista retrata o possível e o historiador o que
realmente aconteceu, polemiza com o sentido universal do co-
nhecimento histórico e com as formas enciclopedistas de ar-
mazenar de modo definitivo os conhecimentos sobre o passa-
do. Collingwood em sua Idéia de História considera a proposi-
ção presentista formulada pelo italiano, central no desenvol-
vimento do ofício do historiador, por estabelecer a polêmica
entre o singular e o universal, chave na distinção entre história
e ciência.
Para Croce, a distinção entre a arte e a história está no
pensamento. Ao conceber a arte como intenção pura e o pensa-
mento como revelador do real, para além do possível, coloca o
tempo presente como engendrador dos enigmas a serem revela-
dos pelo trabalho analítico do historiador e a projeção do devir
como enunciador do projeto a ser transformado em ação. Na
Lógica (1909) Croce demonstra com maior clareza sua oposição
aos positivistas quando discorre longamente sobre o juízo de
valor, apontando ser ele singular e universal simultaneamente.
Relaciona num todo a história e a filosofia, combatendo sua
separação em campos de conhecimento distintos, e, hierarqui-
camente colocados. Trata de reordenar as polaridades entre o
vivido e o concebido como níveis de apreensão do real a serem
capturados pela consciência. Considerando a história como
autoconhecimento do espírito vivo, atribui ao historiador a tare-
fa de fazer vibrar os acontecimentos, ou seja, que seus registros
e sentido estejam presentes no seu vivido.
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QUEIROZ,
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Aline Pereira
A. Pereira
de &de
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& IOKOI,
ZildaZilda
MariaM.Grícoli.
Grícoli

O presentismo de Croce inaugura orientações de novos


procedimentos no trabalho do historiador e do professor de his-
tória e remete-os à busca do significado do presente e à formu-
lação de problemas para tornar o conhecimento inteligível. Esti-
mulado por essa dimensão o historiador passa a considerar as
temporalidades históricas como objeto de reflexão e a epistemo-
logia do história pôde ser definida e formulada. Os objetivos e
métodos da investigação propugnados como objetividades cien-
tíficas pelos positivistas sofrem clivagens de crítica e a idéia de
interesses do presente na recuperação do passado põe abaixo a
veracidade inquestionável dos acontecimentos. Introduzindo o
subjetivismo relativista, Croce formula postulados gerais sobre
o sentido transitório e mutável do conhecimento, uma vez que
ele atribui ao historiador o poder de criar uma imagem histórica
sob influência dos interesses e motivos atuais. Na Teoria da His-
tória, ele se refere “à necessidade prática na qual todo o juízo
histórico se baseia, e confere à história a propriedade do atual
porque está sempre em relação – por mais longínquo que seja o
passado a que se referem os fatos – com uma necessidade atual,
uma situação atual...”
Defendendo o “espírito de partido”o historiador defronta-
se diretamente com o problema dos juízos históricos. Collingwood
divulga estas idéias entre os anglo-saxões sendo duramente cri-
ticado pelos marxistas. O presentismo de Croce é um marco nos
debates teóricos sobre a natureza da história e os fundamentos
teóricos filosóficos deste campo do conhecimento.
Na Inglaterra, a história positivista também recebe golpes,
de Arnold Toynbee (1889 - 1975) e dos “relativistas”, “presentis-
tas”. Toynbee, cuja obra é célebre e conhecida do grande público,
mas execrada pelos historiadores profissionais, decide durante a
primeira guerra ser um Tucídides dos tempos modernos, “com
um pé no presente e outro no passado”. Rejeitando a historiogra-
fia francesa, utiliza um método comparativo à la Spengler, base-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 97

ando-se em fontes de segunda mão. No Um estudo da história


(1930 - 1950), as civilizações aparecem como entidades fechadas,
amplas unidades históricas num longo tempo e num amplo es-
paço, coexistindo e não em necessária sucessão. Assim, no sécu-
lo XX, haveria cinco civilizações: o Ocidente, a União Soviética e
seus satélites, o Islão, a Índia e o Extremo-Oriente. Toda civiliza-
ção nasce de uma resposta a um desafio, geralmente de ordem
natural, passa depois a se desenvolver, pode fracassar ou não,
ser estimulada por grandes homens, mas fatalmente entra em
decadência. Guy Bourdé e Hervé Martin, em As escolas históri-
cas, vêem em Toynbee uma prefiguração do estruturalismo nas
ciências humanas. Mas, assim como Spengler, Toynbee e sua
teoria da decadência se afiguram sobretudo como uma resposta
à desintegração do Império Britânico no século XX.
Os marxistas ingleses vivenciaram de modo diferente a teo-
ria das classes e a concepção de história. Matrizados pela tradi-
ção empírico-prática, debruçaram-se sempre sobre as experiên-
cias, sobre os marginais, e produziram reflexões históricas –
tanto na academia, como fora dela – originais e instigantes. Cris-
topher Hill, George Rudé, Perry Anderson, seu irmão Benedict e
Edward Thompson são exemplos de uma fértil historiografia
marxista que não se submeteu aos modelos estruturais nem ao
presentismo desprovido de bases histórico-empíricas.
Os “presentistas” ingleses, nos anos 30 e 40, contestam os
pressupostos de Ranke para a história, apontam o cientificismo
como uma escolha ideológica. Acreditam que o historiador tem
sempre uma atitude ativa, construtiva, jamais passiva como
queria Ranke. Charles Oman, em 1939, afirma em seu livro Sobre
a escrita da história, que a história jamais pode ser puramente
objetiva, por ser a maneira como o historiador apreende e rela-
ciona uma série de acontecimentos. Em 1935, Carl Becker afir-
ma que cada século reinterpreta o passado da maneira que
melhor lhe convém; que cada geração projeta na história suas
próprias visões.
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O grande teórico idealista, contrário ao positivismo, da es-


cola inglesa é R.G. Collingwood. Suas visões da filosofia e histó-
ria, bem como o interesse pela estética e pelo idealismo hegeliano,
fazem com que freqüentemente seja comparado a Benedetto
Croce (1866 - 1952). Em A idéia da história (1946), um ensaio de
filosofia da história, Collingwood ressalta que o historiador des-
creve o passado em função do presente, através de uma escolha
deliberada dos fatos; que o pensamento histórico é uma ativida-
de da imaginação, um testemunho, válido num certo momento
e se transforma quando mudam os métodos históricos e os en-
foques: “S. Agostinho olhava para a história romana sob o ponto
de vista de um cristão primitivo; Tillemont sob o ponto de vista
de um francês do século XVII; Gibbon sob o ponto de vista de
um inglês do século XVIII; Mommsen sob o ponto de vista de um
alemão do século XIX. Não há sentido em perguntar qual é o
ponto de visto correto. Cada um dos pontos de vista é o único
possível para o homem que o adotou”. Apesar de relativista,
Collingwood não é absolutamente cético, considerando que o
historiador produz um tipo de conhecimento tão válido como o
das ciências naturais. “A história, como a teologia ou a ciência
natural, é uma forma especial de pensamento”, cujo objeto são
as ações humanas no passado, que são interpretadas com base
em documentos variados, tendo por finalidade o auto-conheci-
mento humano.
Estas buscas de rompimento com o positivismo, seja atra-
vés do idealismo ou de uma abertura às outras ciências huma-
nas, não significa o desaparecimento total da história política tra-
dicional. Mas, é sobretudo na França que a definição de novos
rumos para a história foi decisiva na produção historiográfica de
várias gerações, com enorme influência inclusive no Brasil.
O grupo dos Annales de Febvre e Bloch desde os primeiros
tempos pretende construir uma história total, orgânica, onde as
estruturas prevaleçam sobre os fatos, embora estes não desa-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 99

pareçam; dá atenção às evoluções mais lentas e significativas e


não somente ao tempo curto dos fatos fechados em si; abre um
enorme campo de conhecimento ao articular as bases econômi-
cas, os quadros sociais, com as sensibilidades, as diferentes ma-
neiras de pensar e ver o mundo, a dimensão psicológica do ser
humano. Profundamente sensível ao histórico, à mudança, o
grupo dos Annales descarta os mitos da natureza humana imu-
tável, do eterno retorno, das origens e seus anacronismos. Ex-
plora a história espiritual, religiosa e cultural de maneira inova-
dora. Duas obras magistrais que concretizam esse novo espírito
são Os reis taumaturgos (1923) de Marc Bloch, uma análise da
dimensão sobrenatural atribuída ao poder real e O problema da
incredulidade no século XVI – a religião de Rabelais (1942) de
Lucien Febvre, onde um anacronismo atribui o sentido de incré-
dulo, livre pensador e racionalista a Rabelais.
Para Bloch, a história não é a ciência do passado; seu ob-
jeto são os homens. É o que proclama no texto que escreve em
1941, mais tarde publicado sob o título Apologia para a história
ou O trabalho do historiador. “O bom historiador se parece com o
ogro da lenda. Onde sente o cheiro de carne humana, sabe que
lá está sua presa.” A história é uma ciência dos homens no tem-
po. “A atmosfera onde seu pensamento respira naturalmente é
a categoria da duração.” Este tempo, para Bloch é tanto contí-
nuo, como mudança perpétua. “O homem também mudou mui-
to: em seu espírito e, sem dúvida, até nos mais delicados meca-
nismos de seu corpo. Sua atmosfera mental transformou-se pro-
fundamente; sua higiene, sua alimentação, igualmente.” Diante
disso, a história deve ser feita através de uma multiplicidade de
documentos e de técnicas, tendo em vista a complexidade dos
fatos humanos; para Bloch desaparece a noção de ciências au-
xiliares da história, dado que não deveria haver especializações,
mas uma exploração global em todos os campos – etnologia,
lingüística, folclore etc. Por isso insiste em dizer que o historia-
dor deve ter uma formação sólida e ao mesmo tempo variada.
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A ignorância do tempo passado comprometeria não só o


conhecimento do presente, mas inclusive a ação no presente,
diz Bloch. A história não é um trabalho somente de erudição,
feito a quatro paredes. Afirma que os historiadores devem se
encontrar em congressos, trocar experiências, estabelecer quais
seriam os problemas dominantes de sua época, serem atuais,
ancorados no presente. No entanto, não cabe ao historiador jul-
gar, mas compreender com ética. A história deve ser verdade e o
historiador deve ser aquele que busca o verdadeiro e o justo,
dentro do tempo.
Também nos anos 30, na França, toma forma uma obra
de história econômica, próxima em alguns aspectos, mas não
totalmente inserida na corrente dos Annales. Esboço do movi-
mento dos preços e das rendas na França no século XVIII (1933)
e Crise da economia francesa no fim do antigo regime e no início
da Revolução (1944) de Ernest Labrousse abrem o caminho da
história quantitativa, que reconstitui séries e médias represen-
tativas da evolução econômica e social, os ritmos da conjuntura
na produção e no comércio, no trabalho e no nível de vida. Atra-
vés do fato econômico era atribuída uma nova coerência à histó-
ria colonial.
Naquele período pode-se encontrar fenômenos equivalen-
tes na historigrafia latino-americana, mais especialmente no
México, Argentina, Peru e Brasil. Ao longo da primeira grande
guerra, o tema fundamental é o da civilização contra a barbárie.
A Europa projeta sobre o mundo uma noção eurocêntrica, espe-
cialmente no rechaço da língua, costumes, valores religiosos,
raça e forma de governo. Na América Latina Sarmiento escreve
Facunto, cuja mensagem central é a defesa da idéia de uma raça
superior no novo continente, destinada a se projetar sobre o
planeta. A Raça Cósmica formada pelo melhor de todas as raças
existentes, simbiose de aperfeiçoamento obtido pelos mais dife-
rentes contributos no paraíso tropical. Oliveira Vianna, na se-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 101

qüência de Nina Rodrigues e de Oliveira Lima também insiste


na idéia de uma raça a ser constituída a partir de integração
nacional, de imigração européia e mesmo de educação controla-
da pelo estado. Assim, aos professores de história e aos historia-
dores cabe o desenvolvimento do senso de ordem, do valor do
trabalho, das generosidades do estado e mesmo da restauração
da noção de paraíso tropical.
Na década de 1930 dois trabalhos destacam-se na crítica
ao positivismo de base racial: Casa Grande e Senzala de Gilber-
to Freyre, que introduz um sentido sociológico para o contributo
do negro na formação cultural brasileira e mesmo no desenvol-
vimento do patriarcalismo e do paternalismo; e Sérgio Buarque
de Holanda que realiza um magistral trabalho de síntese da idéia
de Brasil no ensaio Raízes do Brasil. Trata-se de um texto que
analisa o caráter isolacionista e individual da colonização do
Brasil, responsável pela organização do patriarcado rural, pelas
relações de compadrio e de favor e de fato pelo que considerou
ser a síndrome do homem cordial. Já na década de 1940, Caio
Prado Junior desenvolve um amplo processo de pesquisa orien-
tado pela teoria de Marx e através do materialismo dialético pro-
cura encontrar o “Sentido da colonização” especialmente criti-
cando a teoria dos ciclos econômicos, dos determinismos ra-
ciais e geográficos demonstrando a complexidade da recupera-
ção histórica de um país marcado por rupturas superficiais,
quase invisíveis, de uma história que se move lentamente. For-
mação do Brasil Contemporâneo, História Econômica do Brasil e
a Revolução Brasileira são marcos fundamentais nessa trajetó-
ria. Ainda entre os historiadores marxistas deve-se destacar o
esforço teórico de Fernando Novaes no entendimento do caráter
exógeno das determinações econômicas e sociais no Brasil com
seu trabalho Portugal e Brasil no comércio do Atlântico e Jacob
Gorender O Escravismo Colonial. Já contrariando os estudos
estruturalizantes, Emilia Viotti escreve Da Senzala à Colônia e
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Da Monarquia à República – Momentos Decisivos. Em Novaes e


Viotti, o empirismo é o eixo central de comprovação ou negação
da historiografia estruturalizante do período. Finalmente, nos
ares da nova história, Maria Odila Leite da Silva Dias e Carlos
Guilherme Mota recuperam, cada um com procedimento dife-
renciado do outro, o cotidiano e a cultura brasileiros.
Destaque deve ser feito no Peru, ao volume entitulado Siete
ensaios de interpretación de la realida peruana de Jose Carlos
Mariátegui. Este escritor genial, que morreu aos vinte e seis anos,
iniciara estudos sobre o pensamento de Marx e com ele desen-
volvia um profundo processo analítico sobre a formação social
peruana retomando as análises sobre o império incaico e dele
derivando pesquisas sobre o campesinato do país para desco-
brir o sentido histórico das unidades produtivas socializantes
na tradição daqueles grupos, o que para o autor demandava um
processo orgânico dos revolucionários em consonância com a
mística andina. Assim, ainda na década de 1930, reúne utopia
e religiosidade que são para o autor elementos de expressão da
rebeldia do povo andino. Essa preocupação se explicita contra a
maré exatamente quando, na Terceira Internacional, definia-se
um sentido excludente entre os níveis concretos e subjetivos.
A influência francesa para a formação dos historiadores
profissionais brasileiros afasta-os de seus parceiros latino-ame-
ricanos, especialmente quando o próprio Braudel chega com a
missão francesa na formação da Universidade de São Paulo,
juntamente com Levy Strauss e Pierre Monbeig. Nesse mesmo
período Fernand Braudel redimensiona os estudos sobre o pa-
pel do dinheiro no mundo mediterrâneo. A partir das proposi-
ções de tempo longo, médio e curto ele desvenda os múltiplos
processos de intercâmbio que envolveu os vários países do oci-
dente e do oriente, através dos negócios que se realizavam atra-
vés de rotas terrestres, marítimas e de rios envolvendo merca-
dores, feiras, financistas, cientistas e interesses econômicos.
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 103

As missões alemã e italiana, presentes nos primeiros anos


de formação da USP, não produziram as determinações dos fran-
ceses, considerados como centralidades no processo civilizatório
pretendido pelas elites cafeicultoras paulistas.
Após a segunda guerra, a história dos Annales se impõe
definitivamente. A revista, desde 1946, passa a se chamar
Annales, Economies, Sociétés, Civilisations. Novamente a guerra
seria decisiva na escolha dos caminhos do historiador. Diante
da avalanche de pequenos e grandes fatos do presente, os histo-
riadores aprofundam sua busca de sentido da história total, na
estrutura, nos grandes espaços e na longa duração. Com a mor-
te de Bloch, fuzilado pelos alemães, Febvre e Fernand Braudel
(1902 - 1985), professor do Departamento de História entre 1935
e 1937 na Universidade de São Paulo, representam um segundo
momento do grupo. Em 1948, Lucien Febvre e Braudel assu-
mem também a direção da 6a. sessão da Escola Prática de Altos
Estudos em Paris. Durante as décadas de 50 e 60, o grupo dos
Annales publica um conjunto de obras centradas na territoriali-
dade – cujos trabalhos pioneiros são os de Braudel, O Mediterrâ-
neo na época de Felipe II e o de Pierre Goubert, Beauvais e os
beauvaisis nos séculos XVII e XVIII –, na história econômica e na
demografia histórica.
Braudel, após completar seus estudos de história, segue
para a Argélia como professor, onde descobre o Mediterrâneo.
Do encontro com Febvre, sua intenção de fazer uma tese sobre a
política mediterrânica de Felipe II, um assunto tradicional, se
transforma num estudo que tem por centro o próprio Mediterrâ-
neo, o que mostra sua mudança de perspectiva. Levanta a do-
cumentação em vários arquivos da área, de Dubrovnik à Veneza,
Roma, Madrid e outros centros. A obra de Braudel sobre o Medi-
terrâneo estender-se-á por toda a sua vida; desde seus primei-
ros esboços em 1929 até a publicação da versão final em 1966.
Seu horizonte geográfico se alarga com o trabalho sobre Civiliza-
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ção material, economia e capitalismo – séculos XV a XVIII, publi-


cado na década de 70.
Ao refletir sobre a dialética do tempo e do espaço, Braudel,
em sua tese sobre o Mediterrâneo, concebe várias formas de
tempo, ou durações: o de uma história factual da política e do
indivíduo, o de uma história do tempo conjuntural, cíclico,
interdecenal, da economia e, finalmente, o tempo longo, da lon-
ga duração da geografia. Este tempo longo, privilegiado em seus
trabalhos, representaria o de uma “história quase imóvel”, dos
habitantes das montanhas e seus costumes ancestrais nas ca-
deias do Atlas, dos Apeninos, do Taurus etc., dos homens que
vivem nas planícies do Languedoc, da Campania, etc. atacados
pela malária das águas estagnadas, e dos homens da beira do
mar Negro, do Egeu, do Adriático, onde os ventos e as correntes
impõem o ritmo da vida. O tempo geográfico tocaria a própria
eternidade não fosse pelas variações climáticas, biológicas, as
mudanças nos sítios urbanos e no traçado das rotas terrestres e
marítimas.
O segundo tempo é o da história social dos grupos, da
história estrutural, onde se avalia o comércio, a dimensão dos
mercados, as distâncias, a demografia, os mecanismos monetá-
rios, a expansão do ouro e da prata americanos no Mediterrâ-
neo, as oscilações de preços etc. No terceiro tempo encontramos
“uma história tradicional, não na dimensão do homem, mas do
indivíduo....; uma agitação superficial... Uma história com os-
cilações breves, rápidas, nervosas”; é a história da rivalidade
entre os impérios, espanhol e turco, de suas instituições, pro-
víncias, populações, da força militar, da ação e dos aconteci-
mentos como a abdicação de Carlos V, a paz de Cateau-
Cambresis, Lepanto etc.
Ao longo de sua carreira, como diretor dos Annales, pro-
fessor da Escola de Altos Estudos, do Colégio de França, diretor
de tese de inúmeros alunos, Braudel torna-se um historiador
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 105

muito conhecido também do grande público, que, principalmente


a partir dos anos 60, voltará a ter grande interesse pela história.
Aberta a todas as ciências sociais, à sociologia de Gurvitch, à
demografia de Sauvy, à etnologia e ao estruturalismo de Lévi-
Strauss, Braudel considera a história como um campo muito
flexível e, fiel à Bloch e Febvre, busca a história total.
A Segunda Grande Guerra foi inteiramente reveladora dos
dilemas abertos e das indefinições a serem superadas. Muitos
historiadores e filósofos marxistas reuniram-se em torno do que
se convencionou chamar de Escola de Frankfourt. Pensadores
como Theodor Adorno, Horkeiheimer e Benjamin procuraram
romper com a história projeto e passaram a ressaltar as subje-
tividades expressas pela arte, pela estética e pelos elementos
centrais da cultura. Com objetivos claramente anti-políticos es-
ses intelectuais procuraram encontrar não os nexos do poder,
mas o sentido do reencontro da humanidade do homem, ex-
pressa na obra de arte e nos valores da vida, da ecologia, da
defesa do devir e do planeta. Deste grupo, cujo fim trágico os
unifica, reconhece-se a narrativa histórica como central. A rela-
ção do historiador com a obra de arte e sua dimensão documen-
tal reintroduz o sentido das subjetividades nos comportamen-
tos humanos e a necessária recuperação deste nível na história.
Benjamin, em Estética, procura dimensionar as relações entre o
vivido e o concebido especialmente quando demonstra que nas
sociedades de consumo de massa o que se encontra é a estética
e não o estilo. A separação entre o homem trabalho e o homem
criador de cultura é para Benjamin um dilema do mundo mo-
derno e sua reversão deve significar também a reversão de todos
os elementos da dominação. Para ele, é preciso libertar o ho-
mem de suas institucionalidades, uma vez que elas impedem a
liberdade e a criação, sobrepõem-se contra a rebeldia para man-
ter a ordem estabelecida e os processos de controle já firmados.
Uma outra tentativa de fusão da história com a filosofia
também data desse período. Embora não se definisse como um
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praticante das ciências humanas, mas como um observador


exterior que analisa o discurso como esfera autônoma, a obra
de Michel Foucault (1926 - 1984), exterior aos Annales e crítica
do estruturalismo, encerra uma reflexão sobre a história e cau-
sou muita polêmica entre os historiadores a partir dos anos 60.
Para Foucault, o século XIX, ao introduzir a idéia de “tempo
histórico”, destruíra o saber analítico organizado em “represen-
tações” para submeter os conhecimentos às leis de suas evolu-
ções, o que teria levado às “ciências do homem”. Tendo em vista
que estas ditas ciências do homem estariam prestes a desapare-
cer, Foucault objetiva constituir um método de análise do ser
humano em sociedade na atualidade. Entre o estruturalismo
representado especialmente por Louis Althusser e a hermenêu-
tica, sua palavra-chave torna-se genealogia; a objetividade sen-
do falsa e a subjetividade enganosa, restaria estabelecer a
genealogia das práticas que fizeram do homem atual aquilo que
é; uma esfera “analítico interpretativa”do “poder, da verdade e
do corpo”. Contrário à história tradicional das continuidades,
Foucault privilegia as rupturas bruscas, as descontinuidades, e
a emergência de novas estruturas sobre as antigas, apesar de
situá-las na longa duração; para ele importa a coerência interna
dos sistemas conceituais e a passagem de um sistema a outro.
Conceitos como tradição, evolução e influências devem ser apo-
sentados. Cada discurso possuiria uma conexão com “um con-
junto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço.”; assim os sistemas repressivos de Vigiar e
punir dizem respeito a tudo mais que existe na sociedade, na
economia, na educação, fazem parte de um sistema global de
adestramento destinado a formar “corpos dóceis”. Para Foucault,
os documentos não mais são considerados como reflexos do pas-
sado, mas como um material que deve ser recortado; a própria
história não mais seria memória do passado, e sim apenas um
trabalho sobre documentos.
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 107

As polêmicas e a busca de novas metodologias colocam a


história em primeiro plano e fazem com que a produção histo-
riográfica francesa do pós-guerra seja imensa. Além dos traba-
lhos sobre economia, história quantitativa, demografia históri-
ca, fecundidade, natalidade, nos quadros de uma região ou épo-
ca – Os camponeses do Languedoc do século XV ao XVIII (1966)
de Emmanuel Le Roy Ladurie ou Os homens e a morte no Anjou
nos séculos XVII e XVII (1971) de F. Lebrun, por exemplo – come-
çam a surgir trabalhos mais qualitativos, voltados para uma
antropologia histórica. É o caso de História das populações fran-
cesas e suas atitudes diante da vida desde o século XVIII (1948)
de Philippe Ariès, que inaugura uma série de trabalhos sobre a
medicina e as doenças na história, o estudo do corpo doente e
saudável – assim, J. Léonard e Os médicos na França do oeste
no século XIX (1976) e muito outros. Os estudos de população
voltam-se para a história da família e da sexualidade, como em
Os amores camponeses do século XVI ao XIX (1975) de J.-L. Flan-
drin, O amor no ocidente na época moderna (1976) de J. Solé.
Temas antes poucos explorados, próximos àqueles do historia-
dor holandês J. Huizinga no Outono da Idade Média (1919), como
o da infância, da gravidez, do sentimento da morte, dos compor-
tamentos coletivos diante destes e de outros fenômenos como a
doença, o prazer, a contracepção, dão margem a inúmeros estu-
dos elaborados por Philippe Ariès, Pierre Chaunu, M. Laget en-
tre muitos.
As diferentes visões e manifestações da vida e do mundo, a
história dos oprimidos, do outro, tornam-se cada vez mais pre-
sentes como objeto de estudo do historiador, atraindo para a
história o leitor comum. Daí o grande êxito em vários países de
Montaillou (1975) de Le Roy Ladurie, um trabalho etnológico no
passado de uma aldeia cátara no século XIII. A aproximação
com a etnologia está presente também nos trabalhos de Jacques
Le Goff e Pierre Vidal-Naquet.
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Nos anos 70, os historiadores dos Annales, atentos ao pen-


samento de Lévi-Strauss e de Michel Foucault, partem para a
exploração das estruturas mentais, uma região nebulosa entre
a organização social e a ideologia, o consciente e o inconsciente.
Surge então um terceiro momento dos Annales, bastante pró-
ximo às teses de Bloch, mas situado no presente, carregado com
outros aportes e ingredientes, que é o momento da “história nova”,
da “história das mentalidades”, coincidindo com o pós-maio de
68. O historiador Michel Vovelle, autor de Piedade barroca e
descristianização na Provença no século XVIII (1978) diz que a
escola dos Annales sai do porão e sobe até o sótão. Com as
mentalidades, os livros de história se transformam em best-sellers
e os historiadores chegam ao grande público, não somente atra-
vés da imprensa, mas também da mídia eletrônica.
O termo história nova surge em 1978 e faz polêmica. Aspi-
rando “à mais global e coerente das visões sintéticas da histó-
ria”, como dizem Pierre Nora e Jacques Le Goff, o historiador
deve partir de hipóteses, submetendo-as à verificação e as mol-
dando de acordo com estas. O historiador constrói seu objeto de
análise através dos documentos de diversas naturezas que po-
dem ou não responder à sua interrogação – por exemplo, existi-
ria um espírito maternal na idade média, ou isto é uma inven-
ção recente ? Em função da pergunta, o historiador interpreta
seus documentos, utilizando-se de todas as técnicas possíveis –
fotos aéreas, informática etc.– e todos os documentos – escritos,
orais, arqueológicos, artísticos, o folclore, a festa etc. Do marxis-
mo, a nova história herda as amplas periodizações e a análise
estrutural do social; para Guy Bois, a história global seria ape-
nas uma novo nome para modo de produção ou formação eco-
nômica e social. Os temas são tratados em séries – por exemplo,
as variações de um culto de santo desde a idade média até o
século XX – em grandes espaços, analisando grandes conjuntos
com organização social e econômica coerentes e representações
homogêneas – por exemplo, a vasta Civilização do ocidente me-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 109

dieval de Jacques Le Goff, ou O tempo das catedrais de George


Duby. Estas obras são escritas mediante uma releitura de fon-
tes conhecidas, portanto dizem respeito a novas indagações e
não a novas descobertas; nelas os silêncios também podem ser
significativos; não caberia mais ao historiador ler somente o que
é dito, mas prestar atenção também no que é omitido – este é o
ponto de partida das Três ordens ou imaginário do feudalismo de
Georges Duby.
A questão do imaginário abriu todo um novo campo de
pesquisas para a história. O imaginário abrangeria um campo
muito vasto da experiência humana, em temas como a curiosi-
dade pelo desconhecido, a consciência do corpo, a angústia da
morte, as festas, a loucura, o erotismo, os sonhos, as relações
entre insconsciente e cultura e muitos outros. Le Goff atesta ao
caráter indefinido do termo e a dificuldade no estabelecimento
de fronteiras entre imaginário e representação – tradução men-
tal da percepção de uma realidade externa –, imaginário e sim-
bólico – relação de um objeto com um sistema de valores
subjacente, histórico ou ideal – e imaginário e ideológico – o
quadro conceitual organizador da sociedade; embora não seja
apenas representação, simbolismo ou ideologia, o imaginário
teria implicações com os três conceitos. Além disso, em imagi-
nário existiria imagem – iconográficas e também imagens men-
tais. Para Le Goff, no cerne do imaginário medieval estaria o
tema do “maravilhoso” – os ogros, os mortos que voltam do pur-
gatório, o passado mítico das dinastias nobres e muitos outras
expressões; como diz, “estudar o imaginário de uma sociedade é
penetrar no fundo de sua consciência e de sua evolução históri-
ca. É ir à origem e à natureza profunda do homem, criado à
“imagem de Deus”.
A nova história dos anos 70 traz então à tona outras
problematizações e outros temas para a história, dentro de um
padrão multidisciplinar. O próprio caráter vago de alguns de
seus conceitos – Le Goff diz explicitamente que “a atração fun-
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damental da história das mentalidades é seu caráter vago”– le-


varia a uma produção historiográfica das mais diversificadas –
mitos, corpo, sentimentos, mas também política e religião. Os
resultados da nova história, de fato, penderam mais para uma
pluralização dos tempos e dos objetos nas décadas de 60 a 80,
do que para a construção da “história total”.
Se os Annales negligenciaram a história política cara aos
positivistas, percebe-se nos últimos anos a retomada do políti-
co; não mais como o era no século XIX, mas num sentido mais
amplo, também simbólico e antropológico, como nos trabalhos
de Maurice Agulhon, Pierre Nora, René Rémond, e também Le
Goff e Duby. Outra tendência das últimas décadas tem sido a do
estudo do presente ou do passado recentíssimo, através da in-
corporação da memória à história e da transformação da me-
mória em objeto histórico. Não mais necessitando estar morto
para existir historicamente, o passado se amplia na oralidade e
não somente em seus vestígios materiais tradicionais.
Por outro lado, as questões relativas aos limites do conhe-
cimento histórico, seu caráter, a questão dos anacronismos con-
ceituais, das relações entre história e discurso, da indissolubili-
dade dos laços entre história e historiador (como advoga Henri
Marrou, no seu Do conhecimento histórico, 1959), entre outras,
continuam polêmicas nas últimas décadas.
Em 1971, Paul Veyne, historiador da antigüidade, em Como
se escreve a história, refuta as pretensões da história de se tor-
nar ciência, mesmo com uma metodologia positivista, marxista
ou estruturalista, e considera que desde Heródoto e Tucídides
não teria feito qualquer progresso. Para Veyne a história trata
de acontecimentos humanos que, como num romance, seriam
simplificados e organizados; o conhecimento histórico teria como
base o particular e não um estabelecimento de leis como na
física ou na economia. Seu interesse está na narrativa, que tem
por base o verdadeiro, o que aconteceu – daí sua vantagem so-
O HISTORIADOR CONTEMPORÂNEO 111

bre o romance –, mas de forma mutilada e lacunária; aos docu-


mentos caberia fazer e responder as perguntas. Distanciado dos
conceitos universais – “falsos porque fluidos” –, o historiador
deve se ater a seres e acontecimentos únicos e, para cada época,
forjar conceitos adequados aos fatos interpretados. Para Veyne,
o método do historiador deve depender de uma sabedoria, de
uma experiência, derivada do conhecimento dos textos e da cap-
tação das regularidades, não das leis, de um período.
Ao contrário do desengajamento e do ceticismo de Veyne,
Michel de Certeau considera a história como um conhecimento
a serviço do presente. Com uma formação pluridisciplinar em
filosofia, história, psicanálise e semiótica, discute a natureza da
história – uma divisão entre presente e passado própria ao oci-
dente e às suas relações com a morte – em A escrita da história
(1975). A história não seria uma ressurreição do vivido, mas
uma operação complexa, que deveria ser efetuada através de
técnicas como a análise estrutural dos textos. Certeau nega a
pretensão do historiador em enunciar o real, na medida em que
todos os discursos acabam por se referir a uma retaguarda oculta,
ao silêncio, às leis do inconsciente e do meio social a que perten-
ce o historiador. A consciência dos condicionamentos da histó-
ria seria uma exigência de sua cientificidade; o historiador não
vive fora do mundo, mas tem uma função social, está inserido
no quadro das instituições, e, portanto não pode se dizer objeti-
vo; o saber histórico, portanto, é ideológico, quando mais não
fosse por seus silêncios que ocultam relações de poder. Para
Certeau, os “métodos históricos” seriam práticas de iniciados
dentro de um grupo e de submissão a uma hierarquia e ao reco-
nhecimento; isto faz com que a história esteja “estritamente con-
figurada pelo sistema onde é elaborada.”
Com este texto a história do historiador se fecha. Podemos
perceber que tanto a inserção da história como a do historiador
no plano da educação e no plano social não são recentes. De
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uma atividade marginal, prazeirosa, erudita, própria a velhos,


aposentados, escritores em dificuldades financeiras, propagan-
distas políticos, monges reclusos, assume no século XIX seus
contornos atuais. O historiador deixa de ser um diletante, per-
dido no mundo da erudição, para ser o professor, o especialista,
dentro de um sistema educacional, da sociedade. E faz a histó-
ria do presente.
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HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp.br

Título A HISTÓRIA DO HISTORIADOR (TEXTOS DE APOIO N. 2)


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Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP
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