Professional Documents
Culture Documents
GRADIVA
Uma fantasia pompeiana
Produção editorial
Revisão: Cláudio Estrella (copy); Andréa Rodrigues, Nair Dametto,
Nanei Ribeiro (tip.);
Diagramação: Celso Bivar;
Composição e Arte-final: Linolivro
Composições Gráficas Ltda.;
Arte-final de capa: António Sampaio;
Impressão: Gráfica Pertinho Cavalcanti Ltda.
ISBN: 85-85061-80-4
5
Freud dá com esse texto? A resposta para tal questão, e
sobretudo em se tratando de Freud, não é certamente unívoca,
e variadas foram as tentativas de situar Gradiva em sua obra.
6
ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos essenciais
estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente
esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em algum
lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas
inacessíveis ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é
possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa
realmente ser vítima da destruição total. Depende
exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso em
trazer à luz o que está completamente oculto".(8)
7
com a história de um arqueólogo cujo "esquecimento das
mulheres", por assim dizer, obterá sua cura exatamente em
Pompéia!
8
para Freud, mais uma vez, de recolher os achados do escritor e
do poeta, achados cuja emergência na obra é tornada possível
pela especial aptidão do artista para se deixar perpassar pelos
elementos que, estruturados como uma linguagem — como
sabemos a partir de Lacan —, apontam para o inconsciente,
para a Outra Cena.
NOTAS:
9
Ao visitar uma das grandes coleções romanas de antiguidades,
Norbert Hanold descobrira um baixo-relevo que o
impressionara excepcionalmente. Alegrou-se de poder
encontrar, na volta à Alemanha, uma excelente cópia dele.
Alguns anos depois, esta se encontrava em lugar privilegiado
em seu gabinete de trabalho, cujas paredes estavam quase que
inteiramente revestidas de prateleiras cobertas de livros; a luz
caía diretamente sobre o relevo, e o sol poente o iluminava
durante alguns instantes. A escultura representava, de pé,
uma mulher caminhando, mais ou menos num terço do seu
tamanho natural. Ela era jovem, não criança e, evidentemente,
ainda não mulher, porém uma virgem romana de cerca de
vinte anos. Em nada lembrava os baixos-relevos tão freqüentes
de Vênus, de Diana, ou de alguma outra divindade do Olimpo,
nem Psique ou outra Ninfa. Havia nela alguma coisa da
humanidade contemporânea — expressão que não é tomada
num sentido desfavorável — atual, de algum modo, como se o
artista, ao invés de lançar, como teria feito hoje, um croquis
sobre uma folha de papel, tivesse esboçado um modelo de
argila, na rua, passando rapidamente ao lado da própria vida.
O corpo era grande e esbelto, os cabelos frouxamente
ondulados e quase que
11
completamente cobertos por um xale. O rosto, um pouco
pequeno, não tinha fascínio especial, mas era evidente que não
buscava tal efeito. Seus traços finos exprimiam uma tranqüila
indiferença em relação aos acontecimentos externos, o olho,
que olhava reto para frente, testemunhava uma visão excelente
e intacta, e de um voltar-se pacífico dos pensamentos para si
mesmo. Essa jovem mulher, que não atraía pela beleza de suas
formas, possuía, no entanto, uma coisa rara nas esculturas da
antiguidade, o encanto simples e natural de uma moça,
encanto que parecia ser a inspiração de sua própria vida. Ele
se devia, sem dúvida, à postura em que ela era representada.
Com a cabeça ligeiramente inclinada, tinha recolhida na mão
esquerda uma parte do vestido extraordinariamente
pregueado, que lhe caía da nuca aos calcanhares, e descobria
assim seus pés nas sandálias. O pé esquerdo estava à frente, e
o direito, disposto a segui-lo, só tocava o chão com a ponta dos
artelhos, enquanto que a planta e o calcanhar elevavam-se
quase verticalmente. Esse movimento exprimia ao mesmo
tempo a leveza ágil de uma jovem caminhando e um repouso
seguro de si, o que lhe dava, ao combinar uma espécie de vôo
suspenso com um andar firme, aquele encanto particular.
12
mesmo, de Gradiva, aquela que avança. Esse prenome, que os
poetas antigos reservam para Mars Gradivus, para o deus da
guerra que vai à batalha, parecia a Norbert, entretanto, o mais
característico do movimento da jovem, ou, empregando uma
expressão contemporânea, da jovem dama, pois ela
evidentemente não era de origem da classe inferior, mas filha
de um nobre, pelo menos de um honesto loco ortus. Talvez,
como sua aparência o sugerisse involuntariamente, fosse filha
de um magistrado patrício que desempenhava suas funções
sob os auspícios de Ceres, e ia-se ela, para uma atividade
qualquer, rumo ao templo da Deusa.
13
dras, enquanto que o outro se dispunha a segui-lo. Ao mesmo
tempo em que ele contemplava a menina andando, tudo aquilo
que o cercava, perto ou longe, se projetava na realidade diante
de sua imaginação. Graças a seu conhecimento de
antiguidades, aquela mulher fazia nascer nele a visão de uma
rua comprida, estendendo-se entre duas fileiras de casas a que
se misturavam os numerosos edifícios dos templos e dos
pórticos. O comércio e a indústria mostravam tabernae
offidnae cauponae, butiques, ateliês e tavernas. Os padeiros
exibiam seus pães, as ânforas de argila afundadas em mesas
de mármore ofereciam todo o tipo de coisa útil para o lar e a
cozinha; num canto de rua, uma mulher sentada oferecia aos
compradores legumes e frutas em cestos. Tinha tirado a casca
de meia dúzia de grandes nozes para atrair os fregueses,
mostrando que o interior de seus frutos era irrepreensível e
fresco. Em toda parte onde a vista pousava, descobria cores
vivas: as muralhas alegremente coloridas, as colunas com
capitéis vermelhos e amarelos, tons deslumbrantes e
resplandecentes sob o esplendor do sol de meio-dia. Mais
adiante, sobre um pedestal elevado, erguia-se uma estátua de
uma brancura gritante que, através das brumas de calor que
faziam tremer o ar, parecia contemplar o Vesúvio, que ainda
não tinha a forma de cone acastanhado e solitário que tem
hoje, mas estava recoberto, até o pico rude e despojado, por
uma vegetação de um verde ofuscante. Pela rua não passava
ninguém além de jovens que procuravam sombra. O calor
estival do meio-dia paralisava o tráfego em outras horas tão
intenso. No meio de tudo isso, Gradiva caminhava pelas lajes
espaçadas, fazendo fugir um lagarto verde e ouro.
Era assim que aquilo tudo revivia diante dos olhos de Norbert
Hanold; entretanto, a contempla-
14
cão diária daquele rosto havia feito nascer nele uma outra
hipótese. O ar geral de seus traços lhe parecia ser, cada vez
mais, não de raça latina ou romana, mas grega. E pouco a
pouco ele adquiria a certeza dessa origem helênica. A antiga
colonização do sul da Itália pela Grécia lhe fornecia uma série
de motivos suficientes, e ele daí deduzia uma nova série de
agradáveis suposições. A jovem domina talvez tivesse falado
grego em casa e fosse educada, nutrida, pela educação grega.
E seu rosto, bem examinado, o confirmava, pois sob a sua
modéstia se ocultava, sem dúvida, prudência e uma
inteligência fina e cheia de espírito.
15
incapaz de resolvê-la definitivamente, porque nunca tinha feito
observações sobre o tema. Repetida a experiência, o amigo
chegou ao mesmo resultado, mas acrescentou que não saberia
dizer se o andar feminino se distinguia do masculino, e a
questão não foi solucionada.
16
de aspecto bastante sedutor, uma espécie de encorajamento se
lia em alguns olhos; mas ele não compreendia o sentido desses
olhares. Pouco a pouco, sua perseverança ia sendo
recompensada. Colecionava um número considerável de
observações e encontrava entre elas numerosas diferenças. A
maioria das mulheres deixava escorregar a planta do pé quase
sobre o chão, e havia poucas que a erguiam obliquamente
numa posição mais graciosa. Mas nenhuma delas tinha o
andar de Gradiva, o que o satisfez bastante: ele não se tinha
enganado em seu exame do baixo-relevo, do ponto de vista
arqueológico. Mas, suas observações o contrariaram, porque
ele achava bonita a posição vertical do pé suspenso e
lamentava que ela apenas tivesse sido obra da imaginação e da
vontade do escultor e não correspondesse à realidade.
17
ela pudesse estar presente nem sequer lhe tinha aflorado,
agora, essa idéia surgia e lhe parecia completamente natural!
Gradiva era pompeiana, morava em sua cidade natal e, com
toda certeza, na mesma época que ele. Ele a reconhecia ao
primeiro olhar, a visão que tinha dela era perfeitamente exata,
até o mínimo detalhe, mesmo o seu andar, que ele designava
com a expressão lente festinans. Ela atravessava assim, com o
seu andar macio e tranqüilo, o lajeado do Fórum e se dirigia ao
templo de Apolo, em tranqüila indiferença para com tudo o que
a cercava, indiferença que lhe era característica. Parecia que
ela não se apercebia do destino que se abatia sobre a cidade,
absorvida unicamente em seus pensamentos; ele o esquecia
também, pelo menos por alguns momentos, o terrível
acontecimento, e procurava, ao pensamento de que a viva
realidade da moça fosse desaparecer em breve, gravar o mais
profundamente possível a sua imagem na memória. Mas a todo
momento lhe vinha à mente que se ela não fugisse
rapidamente, tornar-se-ia vítima da catástrofe geral, e um
terror violento arrancou dele um grito de aviso. Ela o ouviu,
pois voltou a cabeça em sua direção, de tal modo que ele viu o
rosto um tanto de lado, mas expressando uma incompreensão
total; sem mais prestar atenção, ela retomou o caminho no
mesmo rumo anterior. Seu rosto descoloriu-se como se ela se
tivesse transformado em mármore; ela continuou ainda seu
caminho até o pórtico do templo, mas, aí chegando, sentou-se
entre as colunas, sobre um degrau onde lentamente encostou
a cabeça. Agora, os lapilli caíam em tal número que se
pareciam com uma cortina completamente opaca. Apressando-
se na direção dela, ele encontrou o caminho do local onde ela
havia desaparecido de sua vista, e lá estava ela deitada, sobre
o grande degrau, protegida pela sa-
18
liência do telhado. Parecia dormir, estendida, mas não
respirava mais; os vapores do enxofre evidentemente a tinham
sufocado.
19
são, mas não conseguia, fazendo uso da razão, evitar a idéia de
que Gradiva tinha vivido em Pompéia e lá fora sepultada no
ano de 79. Sua primeira hipótese se transformava, ao
contrário, em convicção, e esta se unia aos precedentes. Ele
olhava melancolicamente, na parede do quarto, o antigo baixo-
relevo, que tinha ganhado para ele uma nova importância. Era,
em certa medida, um monumento funerário, no qual o artista
havia conservado para a posteridade a imagem da mulher que
tinha deixado a existência numa idade tão jovem. Mas quando
a olhava com o espírito bem desperto, a expressão de toda sua
atitude não deixava nenhuma dúvida: de fato ela tinha se
deitado, na noite fatal, para morrer, com uma calma
semelhante à que demonstrara no sonho. De acordo com o
antigo provérbio, os favoritos dos deuses são aqueles que eles
fazem com que deixem a terra na flor da idade.
20
tempo: outra coisa os solicitava. Ele percebia agora apenas que
não tinha notado, em particular, se Gradiva, viva, andava
assim como a representava o baixo-relevo e, pelo menos, se
andava de modo diferente das mulheres de hoje. Isso era bem
surpreendente, já que era a origem do interesse científico que
ele tinha pelo baixo-relevo, mas se explicava, por outro lado,
pela emoção que sentira diante do perigo de morte que a
ameaçava.
21
obesa, puxou-o pela manga e, fazendo-o parar, disse-lhe, meio
rindo:
O riso que estourou à sua volta lhe confirmou que não estava
em trajes dignos de se apresentar em público e o convenceu de
que tinha se dirigido para fora do quarto sem considerações.
Isso o atemorizou, porque se preocupava com a aparência e,
abandonando seus projetos, voltou rapidamente para o
apartamento. Os sentidos perturbados pelo sonho eram ainda,
evidentemente, joguete de falsas aparências, pois a última
coisa que ele notou foi que os risos e gritos por um instante
fizeram a jovem voltar a cabeça e ele jurava ter visto, não um
rosto desconhecido, mas aquele mesmo que Gradiva mostrara
quando o tinha olhado no sonho.
22
o pássaro. Com efeito, o jovem arqueólogo não tinha nascido
na liberdade da natureza nem tinha sido criado nela, mas ao
contrário, desde seu nascimento tinha sido fechado pelas
grades da gaiola com a qual o cercara a tradição familiar, a
boa educação e as disposições elaboradas pelos outros em
relação a ele. Desde a tenra infância, não havia dúvida, na
casa de seus pais, enquanto filho único de um professor de
universidade que tinha feito descobertas relativas à
antiguidade, tinha sido destinado a conservar, e se possível
aumentar, o lustro do nome de seu pai, seguindo o mesmo
caminho, e via a sucessão nessa carreira como tarefa evidente
para o seu futuro. Tendo ficado só após a morte dos pais,
ateve-se fielmente a essa idéia; fez a viagem obrigatória à Itália
depois de passar por excelentes exames de filologia e
abundantemente contemplar os originais das obras-primas da
escultura antiga, das quais até então tinha visto apenas
reproduções. Em nenhum outro lugar poderia encontrar algo
mais instrutivo que as coleções de Roma, Nápoles e Florença, e
podia felicitar-se por ter utilizado o tempo de sua estada
tirando o maior proveito para a sua ciência. Voltou ao seu país
inteiramente satisfeito, para mergulhar nos estudos com as
novas aquisições. Não lhe ocorria senão vagamente que afora
os objetos que testemunhavam um passado longínquo,
pudesse existir um presente em torno dele. O mármore e o
bronze não eram para ele matérias mortas, mas a única coisa
realmente viva, a que exprimia o valor e a razão de ser da
existência humana. Assim ele se mantinha entre suas paredes
cobertas de livros e de quadros, sem necessidade de qualquer
relacionamento com os outros homens, pelo contrário,
evitando-os, como se constituíssem uma pura perda de tempo,
resignando-se, no máximo, contra a sua vontade, ao tributo
inevi-
23
tável de algumas obrigações mundanas, às quais era
constrangido pelas antigas relações de sua família. Mas se
sabia que ele freqüentava esse tipo de reunião sem ver e sem
ouvir o que se passava à sua volta, que ele ia embora a
qualquer pretexto, logo depois do almoço ou do jantar, se fosse
possível, e que jamais cumprimentava na rua uma pessoa que
tivesse estado à mesma mesa com ele. Tudo isso não permitia
que ele fosse visto sob prisma muito favorável, sobretudo pelas
jovens mulheres, pois se acontecia de encontrar-se com uma
delas, mesmo que, por exceção, tivesse trocado com ela
algumas palavras, ele a olhava como uma estranha figura
desconhecida e não a cumprimentava.
24
condoía dele, acudindo de novo à janela. Era ao mesmo tempo
afetado pelo sentimento de que também a ele faltava qualquer
coisa, sem que pudesse dizer com certeza o que era: meditar
sobre este último ponto de nada lhe servia; o ar leve da
primavera, os raios do sol, o espaço perfumado lhe punham no
espírito um sentimento vago e o conduziam à comparação —
também ele se encontrava entre as grades de uma gaiola. Mas
logo lhe veio à mente uma idéia que o consolou, que sua
situação era infinitamente melhor que a do canário, pois
possuía asas que nada impedia de voarem rumo à liberdade
quando tivesse vontade.
25
Pouca gente tem a experiência de, sendo jovem, rica e
independente, ir da Alemanha à Itália, pois as pessoas que
possuem esses três privilégios nem sempre têm acesso ao
sentimento de tal beleza. Principalmente porque tais pessoas, e
infelizmente é o que ocorre na maioria dos casos, fazem essa
viagem a dois durante os dias e as semanas que se seguem a
seus casamentos; elas não permitem que nada passe por seus
olhos sem expressar seu contentamento através de inúmeros
epítetos superlativos, mas, no final das contas, nada trazem de
volta além do que poderiam ter descoberto, sentido e
saboreado se tivessem ficado em casa. Esses casais têm o
hábito de voar por sobre os Alpes na direção contrária à dos
pássaros migradores.
26
como aquelas lhe parecia ainda mais misterioso. Cada vez que
erguia a cabeça era obrigado a deixar seu olhar cair sobre o
rosto de uma delas e não encontrava nenhum detalhe que
desse prazer ao olho por sua forma agradável ou que
exprimisse uma alma terna ou espirituosa. Com certeza lhe
faltava algum padrão para avaliá-los, pois não se pode
comparar o sexo feminino contemporâneo com a sublime
beleza das obras antigas, mas ele tinha a vaga sensação de
que não era responsável pela injustiça desse método e de que
esses rostos não possuíam algo que ele tinha o direito de exigir
no dia-a-dia. Também refletiu durante algumas horas acerca
da atitude extraordinária dos homens e chegou à conclusão de
que, se dentre todas as loucuras humanas, o primeiro lugar
cabe sempre ao casamento, como a maior e a mais
inconcebível, conviria, no entanto, reservar o cetro da loucura
a essas absurdas viagens de lua-de-mel à Itália.
27
mene um azul úmido que nunca tinha notado na superfície de
água nenhuma. Veio-lhe à mente que a estrada estava cercada
dos dois lados por uma natureza que lhe era estranha, como
se tivesse sido obrigado a atravessá-la na luz de um
crepúsculo perpétuo ou durante uma chuva cinzenta e a visse
pela primeira vez sob cores opulentas douradas pelo sol. Às
vezes, se surpreendia com um desejo do qual não havia
suspeitado até então; o de descer e poder encontrar o caminho
que deveria fazer a pé, para tal ou tal lugar, porque lhe parecia
que alguma coisa particular e de certa forma misteriosa ali se
ocultava. Mas não se deixava seduzir por sugestões tão loucas,
o direitíssimo o conduzia direto a Roma, onde o acolheu,
mesmo antes de sua chegada, todo o mundo antigo, com as
ruínas do templo da Minerva Medica. Tendo deixado a gaiola
cheia de obstáculos e atingido a liberdade, estabeleceu-se
primeiramente num hotel que já conhecia, a fim de poder
procurar sem pressa um apartamento particular a seu gosto.
28
do vinho castelli romani que deviam, muito nitidamente, a
troca de sentimentos em alemão do norte.
— Meu adorável Augusto!
— Minha adorável Greta!
— Outra vez um para o outro!
— Sim, enfim sós!
_ Ainda devemos nos preocupar com amanhã? _ Veremos no
Baedeker à hora do café da manhã o que nos falta fazer.
— Meu Augusto querido, você me agrada mais que o Apolo do
Belvedere.
— Eu pensei a mesma coisa, minha doce Greta, você é muito
mais linda que a Vênus Capitolina.
_ O vulcão que vamos escalar fica perto daqui?
_ Não, para chegar lá, acho que teremos de fazer uma viagem
de trem de algumas horas.
— Se ele começasse a entrar em erupção exatamente no
momento em que nós estivéssemos no meio, o que você faria?
_ Não teria outra idéia senão a salvar e tomaria você nos
braços, assim.
— Não se fira com um alfinete!
_ Mas eu não posso imaginar coisa mais doce que derramar
sangue por você.
— Meu querido Augusto!
— Minha adorável Greta!
29
jeto qualquer. Devia ser um carro ou carroça no qual a iria
levar, pois dali provinha um rangido. Esse evento mitológico
não surpreendia muito o jovem arqueólogo, mas o que lhe
parecia digno de atenção era o fato de o casal não empregar o
grego, mas o alemão, e de ele os ouvir dizer um tempo depois,
quase retomando consciência:
Alguma coisa, com efeito, havia mudado nele, sem que ele
pudesse dizer o quê, pois de novo era presa daquele
sentimento particularmente angustiante de que estava preso
em uma gaiola que, desta vez, chamava-se Roma. Quando
abriu a janela, dúzias de mercadores lançaram a seu ouvido
gritos ainda mais agudos que em sua Alemanha natal. Ele
nada tinha feito além de vir de uma massa de pedras cheia de
barulho a outra, e uma apreensão inquietante e misteriosa o
afastava das coleções de antiguidades, onde desejava
reencontrar-se com o Apolo do Belvedere e a Vênus Capitolina.
Do mesmo modo, depois de uma breve deliberação, abandonou
seu projeto de procurar para si um apartamento, fez
rapidamente a mala e tomou o trem para ir adiante, mais para
o sul. Fez essa viagem, para evitar os casais insepará-
30
veis, na terceira classe, esperando, por outro lado, ter a
companhia daqueles tipos do povo italiano que antigamente
serviram de modelo às obras de arte, coisa de que tiraria
proveito para a ciência que estudava. Mas não viu nada além
da sujeira popular, o fedor assustador dos charutos da região,
uns homenzinhos tortos gesticulando braços e pernas e umas
mulheres perto das quais aquelas que viu emparelhadas com
seus compatriotas lhe pareciam, quando as revia na memória,
deusas do Olimpo.
31
nheceu que todos eram Augusto e que todas eram Greta. Mas,
em pleno dia, o clima geral de sua conversa tinha se
modificado. A presença de ouvintes fazia-os acalmarem-se e
baixar o tom.
32
ser, poderemos ir amanhã a Capri, meu amor. Dizem que é
tudo uma beleza, e na admirável luz da caverna azul enfim eu
conseguiria ver toda a perfeição do grande prêmio que tirei na
loteria da sorte.
— Olha, se alguém nos ouve, me dá vergonha. Mas onde você
me levar tudo estará bem e será sempre assim posto que você
estará do meu lado.
33
estava ele instalado em uma carozella que o levava
rapidamente através de Portici e Resina! Viajava por uma
estrada que parecia tão magnificamente ornada como a de um
conquistador da antiga Roma: à direita e à esquerda, em quase
toda casa, estendiam-se como que uns tapetes amarelos. Era,
suspensa, pasta da Napoli em abundância, chamada de
macaroni, vermicelli, spaghetti, canelloni e fidelini, conforme a
grossura, a iguaria nacional à qual a fumaça gordurosa das
tascas, as nuvens de poeira misturadas às moscas e pulgas, as
escamas de peixe que voavam no ar, o fumo das chaminés e os
outros fatores diurnos e noturnos davam todo o sabor de seu
gosto especial.
34
pois de terem, permanecido dois mil anos numa mortalha de
cinzas.
35
proteger através de uma atitude prudente. Mas, contra a
mosca comum, não havia nenhum meio de proteção e ela
aborrecia, ela paralisava, ela acabava, enfim, no homem, com
a inteligência, a capacidade de trabalho e de pensamento,
todos os impulsos superiores e todos os sentimentos sublimes.
Não era a necessidade de saciar sua fome, nem a sede da
chacina que a possuíam, mas apenas o desejo diabólico de
atormentar. Era a coisa em si na qual o mal absoluto havia
encontrado sua expressão e realização. Como o scacciamosche
etrusco — um tubo de madeira ao qual estava preso um feixe
de finas correias de couro — comprovava, elas haviam já
expelido da cabeça de Ésquilo os pensamentos poéticos mais
sublimes, haviam induzido Fídias a dar um golpe de martelo
mal dirigido e irreparável, haviam trotado sobre a fronte de
Zeus, sobre o peito de Afrodite e percorrido todos os deuses e
todas as deusas do Olimpo, da cabeça aos pés. Norbert
pensou, no mais profundo do seu ser, que era preciso, antes
de tudo, avaliar o mérito de um homem pelo número de
moscas que ele tivesse podido, ao longo de sua vida, a título de
vingador da raça humana desde os tempos mais remotos,
aniquilar, transpassar, queimar, e extinguir em hecatombes
cotidianas.
36
outra, a de que o seu descontentamento não era apenas
provocado pelo que o cercava, mas vinha também um pouco
dele mesmo. Os tormentos que as moscas lhe causavam
sempre lhe tinham sido insuportáveis, mas não o haviam
deixado, até então, num tal estado de furor. A viagem o havia,
incontestavelmente, excitado e deixado com os nervos à flor da
pele, estado cuja origem era, sem dúvida, devido à estafa e à
atmosfera fechada do inverno. Sentia-se de mau humor,
faltava-lhe algo que não podia compreender. E esse mau
humor ele o levava consigo aonde fosse. Os jovens casais e as
moscas que o haviam rodeado em massa não eram, nem uns,
nem outras, feitos para tornar a vida de ninguém agradável.
Todavia, se não queria se deixar envolver por uma nuvem
espessa de fatuidade, não podia dissimular a si próprio que se
conduzia como eles, sem quê nem porquê, surdo e cego, a torto
e a direito pela Itália, com uma faculdade de se distrair muito
menor. Sua companheira de viagem, a ciência, tinha muito, na
verdade, de uma velha trapista, não abria a boca senão
quando se dirigia a ela, e ele parecia estar bem perto de
esquecer com que língua havia podido comunicar-se com ela.
37
ca que se elevava da cratera do Vesúvio e revestia de púrpura
os cumes e os recortes do monte Sant'Ângelo. Soberbo e
solitário, o monte Epomeo se erguia por cima do mar azul e
cintilante onde faiscavam fagulhas de luz e de onde surgia,
como uma misteriosa construção titânica, a silhueta sombria
do cabo Misene. Onde quer que o olhar pousasse, descobria
um quadro maravilhoso em que o sublime se aliava à graça, o
passado distante ao alegre presente. Norbert Hanold tinha
acreditado aí encontrar aquele desconhecido para o qual o
impelia um desejo indistinto, mas não se encontrava com a
disposição de espírito que esperava. Não havia, no entanto,
sobre essas muralhas abandonadas, nem jovens casais, nem
moscas, para importuná-lo, mas a natureza mesma não estava
em condições de oferecer-lhe o que lhe faltava, quer dentro
dele quer fora. Passeou seus olhos com uma calma próxima da
apatia por sobre aquela profusão de beleza e não lamentou
nem um pouco quando o pôr do sol a fez empalidecer e se
apagar. Voltou ao Diomedes tão descontente como daí havia
partido.
Mas como tivesse sido, invita Minerva, aí levado pela sua falta
de reflexão, tomou a decisão, durante a noite, de ao menos
tirar algum proveito científico, ainda que por um dia, da
bobagem que tinha feito, e cedo, tão logo se abriu o Ingresso,
tomou o caminho obrigatório que leva a Pompéia. À sua frente
38
e atrás dele, os hóspedes eventuais dos dois hotéis avançavam
em pequenos grupos sob as ordens do inevitável guia, munidos
do Baedeker ou de suas imitações estrangeiras, ávidos de
meterem-se em escavações clandestinas. Tagarelices em inglês
ou anglo-saxônicas ressoavam no ar ainda puro da manhã
quase que exclusivamente. Os jovens casais alemães, lá longe,
por trás o monte Sant'Ângelo, se haviam sentado à mesa para
almoçar no seu quartel-general de Pagano, e se faziam
mutuamente felizes com uma doçura e um entusiasmo bem
alemães. Norbert sabia, por experiência própria, graças a
algumas palavras bem escolhidas e a uma gorjeta (de uma
manda), como se desembaraçar do guia, aquele pesadelo, a fim
de poder seguir livremente com suas intenções. Comprazia-se
com o fato de ter uma memória infalível; onde quer que seu
olhar caísse, encontrava um lugar exatamente semelhante
àquele cuja lembrança guardava, como se o tivesse gravado na
véspera em sua memória, depois de ampla contemplação. Essa
observação, que não cessava de fazer, o levava a pensar que
bem podia dispensar a ida a esses lugares; e assim, uma
notável apatia tomou sua vista e seu espírito, como já lhe
havia acontecido na tarde que havia passado sobre as
muralhas. Ainda que percebesse várias vezes, ao levantar os
olhos, o cone do Vesúvio e seu penacho de fumo se destacando
sobre o céu azul, não lhe veio sequer uma vez ao espírito, o
que não deixa de ser bastante singular, o sonho que ele havia
tido pouco tempo antes e no qual havia testemunhado o
sepultamento de Pompéia na erupção de 79. Depois de ter
caminhado durante horas, sentiu-se fatigado e meio sonolento,
mas não teve a impressão de se encontrar em um cenário de
sonho. Tinha ao seu redor apenas velhos pórticos, muros e
colunas do maior interesse arqueológico mas sem ne-
39
nhum sentido esotérico propriamente dito; não passavam de
um grande conjunto de ruínas devidamente mantidas, mas por
isso mesmo bastante insípidas. E embora a ciência e a fantasia
sejam normalmente bem antagônicas, hoje pareciam se ter
combinado para, de alguma maneira, privar Norbert Hanold de
sua ajuda, abandonando-o completamente ao curso de sua
ociosa caminhada.
40
alados ou rastejantes das. ruínas, ele exercia todo o seu ardor
vertical com menos amabilidade sobre a tez ocidental das
Misses e das Mistresses. E é preciso mesmo acreditar nessa
relação de causa e efeito pois durante a hora que acabava de
se passar, os Charming haviam diminuído consideravelmente,
os Shocking, aumentado igualmente, e os Oh! masculinos,
provenientes de duas carreiras de dentes ainda mais
divergentes do que anteriormente, se aproximavam de maneira
inquietante do bocejo.
41
cante e fremente. Ele havia retirado com uma lâmina de ouro a
pouca sombra desatada que subsistia rente às casas dos
semitae e dos crepidines via-rum — assim se chamavam
antigamente as calçadas. Jogava em profusão feixes de raios
em todos os vestibula, atria, peristyla e tablina, e lá onde um
telhado saliente impedia seu acesso, encontrava um jeito de
jogar por baixo dele raios esparsos. Mal conseguia algum canto
para proteger-se da onda de luz e obter uma penumbra
prateada. Cada rua se estendia entre as antigas paredes como
se aí tivessem posto para secar grandes peças de fazenda de
brancura resplendente E, sem exceção, tudo estava mudo e
calmo: os viajantes fanhosos e barulhentos enviados pela
América e pela Inglaterra desapareceram todos, até o último, e
mesmo o arremedo de vida que haviam emprestado até este
instante os lagartos e as borboletas, se dissipou. Pareciam ter
abandonado o silencioso campo das ruínas, o que em realidade
não havia, sem dúvida, acontecido, mas o olho não via mais
um só movimento. Assim também, antigamente, há milhares
de anos, acontecia com os animais seus ancestrais, os das
montanhas e os dos rochedos, era um costume, enquanto o
grande Pan repousava, eles também, para não incomodá-lo, se
estendiam sem moverem-se ou pousavam aqui e ali, fechando
as asas. E era como se se submetessem aqui, mais
rigorosamente ainda, à lei da calma tórrida e sagrada do meio-
dia, desta hora de espectros, quando a vida devia calar-se e
esconder-se porque os mortos, a esta hora, despertavam e
começavam a conversar na língua muda dos fantasmas. Não
era tanto a visão que ficava chocada com este novo aspecto
das coisas, mas o sentimento, ou um sexto sentido sem nome,
contudo este ficava tão fortemente impressionado e de uma
maneira tão decisiva, que a pessoa que o possuísse não
poderia
42
se subtrair ao efeito que ele causava. Na verdade, era pouco
provável que algum, ou alguma, dos honestos turistas, que já
se ocupavam em mergulhar na sopa a colher, no interior de
um dos dois hotéis situados perto do Ingresso, fosse dotado
desse sentimento, mas isso pouco importava, pois a natureza
havia sido pródiga em tal dom para Norbert Hanold, destinado
a sofrer seus efeitos. Sem dúvida, não o exercia por sua
própria vontade, pois não desejava senão uma coisa: poder
estar tranquilamente sentado no seu gabinete de trabalho, um
bom livro nas mãos, em vez de estar metido, sem razão, nessa
viagem de primavera. Entretanto, mal havia tido tempo de
penetrar no coração da cidade, ao voltar da porta de Hércules
pela Via dos Túmulos, tendo acabado de tomar, sem pensar,
um estreito vicolo à esquerda da Casa de Salusto, quando
aquele sexto sentido se manifestou nele. Ou melhor, não foi
bem assim, ele acabava de ser transportado, em função desse
sentido, a um estado de espírito estranhamente sonhador,
intermediário entre a consciência lúcida e a inconsciência. O
silêncio morto e inundado de luz estendia-se à volta dele, como
se o mistério se escondesse por toda parte sem um sopro, a tal
ponto que seu próprio peito não ousava respirar. Encontrava-
se no cruzamento do Vicolo di Mercúrio com a Strada di
Mercúrio. Essa avenida bastante larga que corta a ruela se
estendia a perder de vista à sua direita e à sua esquerda. Pelo
patronato do deus dos mercados, esse lugar deveria ter sido
outrora o local do comércio e da indústria, como testemunham
as esquinas mudas. Em diversos pontos, pelos lados, se
abriam tabernas, lojas guarnecidas de mesas cobertas com
mármore quebrado; aqui, a arrumação indicava uma padaria,
ali, muitos potes grandes, barrigudos, indicavam comércio de
óleo e farinha. Mais adiante, graciosas ânforas pre-
43
gadas às prateleiras de uma mesa indicavam que havia
funcionado uma venda de vinho na peça vizinha. Toda noite os
escravos e servidores das vizinhanças sem dúvida vinham ali
buscar a caupona, em suas bilhas, o vinho de seus senhores.
Via-se, com efeito, que uma multidão de passos havia gasto a
inscrição de pedrinhas de mosaicos incrustados na semita
diante da loja, tornando-a ilegível. Ela, sem dúvida, teria
cantado aos passantes o louvor de vini praecellentis. Sobre a
parede em frente, à altura da metade de um homem apenas,
um graffito, com certeza um rabisco de criança, com a unha ou
um prego, comentava esse anúncio, talvez ironicamente,
dizendo que o vinho do restaurante devia sua qualidade
incomparável à diluição em água, que não era mínima.
44
da árvore da ciência, sem nada dar a perceber da essência e de
seu verdadeiro conteúdo, sem dar o prazer de sua íntima
compreensão. O que a ciência professava era uma visão
arqueológica sem sentido e o que ela falava, uma língua morta
para uso dos filólogos. Ela não permitia apreender com a alma,
sentimento, o coração, pouco importa o nome. Ao contrário,
aquele que aspirava a essa compreensão sofria, único ser vivo
no silêncio abrasado do meio-dia por permanecer aqui entre os
restos do passado, para não mais ver com os olhos do corpo,
para não mais ouvir com os ouvidos carnais. Nesse momento,
de repente parte disso surgia, sem fazer, porém, um
movimento, e começava a falar sem emitir um único som.
Nesse momento, o sol tirava de seu entorpecimento sobre as
pedras velhas, um arrepio abrasado as perseguia, os mortos
despertavam e Pompéia recomeçava viver.
45
que se estendiam dessa casa ao outro lado da Strada di
Mercúrio avançava, no seu passo leve, Gradiva.
46
realidade. Isso se viu pelo efeito que fez ao se aproximar da
última laje, sobre a qual estava estendido, na luz quente do
sol, um grande lagarto, cujo corpo de ouro e malaquita
resplendia distintamente nos olhos de Norbert Hanold.
Quando os passos de Gradiva aproximaram-se do animal, ele
se precipitou de um só golpe para baixo da pedra e fugiu num
movimento ondulado e macio por entre o pavimento cintilante
da rua. Gradiva, após ter atravessado as lajes com tranqüila
agilidade, continuou o seu caminho. Norbert agora a via de
costas — na calçada da frente. Ela parecia se dirigir à casa de
Adónis, que se encontrava diante dela, mas, depois de uma
breve parada, continuou a caminhar, tendo sem dúvida
mudado de idéia, pela Strada di Mercúrio. Não havia mais,
nessa direção, outra residência célebre, a não ser, à esquerda,
a Casa di Apollo, assim chamada devido às numerosas figuras
de Apolo aí descobertas, e logo voltou à mente de Norbert, que
a observava, que ela já tinha elegido o pórtico do templo de
Apolo para abrigar seu sono eterno. Era, portanto, provável,
que um laço qualquer a unisse ao culto do deus do sol e que ia
à casa que lhe era consagrada. No entanto, ela logo parou
outra vez. Também aí as lajes iam de um lado a outro da rua e
ela passou de novo para a direita. Mostrou assim a Norbert a
outra face de seu perfil e lhe deu nesse momento uma
impressão diferente. Agora, escondia a mão esquerda, que
segurava o vestido, e mostrava o braço direito que, ao invés de
dobrar-se, pendia reto. Mas a essa distância pouco maior, a
faísca dos raios de sol a envolvia num véu mais denso, não
permitindo que se distinguisse onde ela poderia ter
desaparecido subitamente, ao passar diante da casa de
Meleagro.
47
desta vez, a visão de sua imagem que se distanciava. Retomou
profundamente a respiração pela primeira vez, pois até esse
momento seu peito esteve quase que paralisado. Entretanto,
ao mesmo tempo, seu sexto sentido, em detrimento de todos os
outros, o dominou completamente. Acabava de ver diante de si
uma criatura real ou um produto da imaginação? Não sabia se
sonhava ou se estava acordado, e em vão tentava descobrir.
Nesse momento um arrepio muito peculiar lhe percorreu
bruscamente a espinha. Não via nada, não entendia nada, mas
havia nele qualquer coisa misteriosa que o fazia sentir que
Pompéia em volta dele começava a reviver naquela hora
espectral do meio-dia e que Gradiva, ressuscitada acabava de
entrar na casa em que vivia antes daquele dia fatal em agosto
de 79.
48
O colchete polido fecha com o alfinete o alto de sua túnica.
Seus cabelos estão presos sem arte num único nó.
49
sala grande e silenciosa algo de solene. Via-se no centro uma
piscina em forma de fonte, rodeada de um belo cenário. A
julgar, por todos esses detalhes, a casa devia ter sido domicílio
de um homem conhecido, de boa educação e apreciador das
belas-artes.
50
buindo os sucos colhidos à noite em seus cálices vermelhos e
que provocavam nos espíritos um sonho crepuscular. Esse
antigo conquistador dos deuses e dos homens parecia ter
tocado Norbert com a sua varinha invisível que dá sono. Ele
acabava de penetrar no oecus pelo pórtico do peristilo e entrou
não num pesado torpor, mas num sonho leve e amável que
envolvia vagamente a consciência. Permaneceu, no entanto,
senhor de seus passos. Andava ao longo das muralhas da
antiga sala de festas onde o olhavam velhos afrescos
representando Páris dando a maçã e um sátiro que, com uma
víbora na mão, assustava uma jovem bacante.
51
sobre os joelhos qualquer coisa branca que ele era incapaz de
distinguir, mas que lhe parecia ser uma folha de papiro, onde
se destacava o luar vermelho de uma papoula.
52
— Teu pai é um nobre cidadão de Pompéia, e de origem latina?
53
Já não lhe parecia nada curioso que ela falasse alemão e que
pronunciasse as vogais segundo o costume moderno. Como
agira dessa maneira ele estava persuadido de que não podia
ser de outro modo e respondeu rapidamente:
— Não, não nos falamos, mas eu te chamei quando te deitavas
para dormir, e fiquei perto de ti. Teu rosto estava calmo e belo
como o mármore. Oh! Peço-te, pousa-o outra vez no degrau
como então.
54
do esposo foi tamanha que ela própria se imolou aos deuses
subterrâneos.
55
tinha durado pelo menos algumas horas, e a frescura do ar
não teve nenhum efeito sobre o seu estado de espírito e seus
sentidos. Voltou ao hotel quase no mesmo estado em que o
deixou. Encontrou os outros hóspedes ocupados com a cena,
fez-se servir num canto de sua sala de jantar um fiaschetto de
vinho do Vesúvio e se pôs a observar o rosto dos comensais e a
ouvir suas conversas. Parecia indiscutível, de acordo com a
mímica e com a conversa deles, que nenhum tinha encontrado
uma pompeiana morta, ressuscitada ao meio-dia por um
instante, nem falado com ela. Aliás isso se poderia supor de
imediato pois, nesse momento, todos se encontravam no seu
pranzo. Pouco depois, sem motivo e sem saber por que, Norbert
foi ao concorrente do Diomedes, o Hotel Suíço, sentou-se do
mesmo modo num canto, e depois de ter pedido meia garrafa
de Vesúvio, porque era preciso pedir alguma coisa, entregou-se
às mesmas observações, ouvindo e observando. Elas lhe deram
o mesmo resultado, mas fizeram ao mesmo tempo com que
conhecesse de vista todos os turistas atualmente hospedados
em Pompéia. Aí estava um aumento dos seus conhecimentos
que ele, absolutamente, não podia considerar como
enriquecimento, mas tirava certa satisfação do fato de que não
havia mais nenhum hóspede dos dois hotéis com quem não
tivesse tido uma relação pessoal, ainda que unilateral, vendo e
ouvindo. Bem entendido, não lhe tinha vindo ao espírito a
hipótese absurda de que poderia muito bem ter encontrado
Gradiva num dos hotéis, mas ele podia jurar que nenhuma das
pessoas ali hospedadas tinha com ela a mínima parecença, por
mais longínqua que fosse. Enquanto fazia essas observações,
entornava de quando em quando o conteúdo de seu fiaschetto
no copo, bebendo aos golinhos. Quando a garrafa por fim se
esvaziou, levantou-se para voltar para o Dio-
56
medes. O céu estava agora semeado de uma infinidade de
estrelas cintilantes e deslumbrantes. Elas não estavam
ordenadas imovelmente, como de hábito; parecia a Norbert
Hanold que Perseu, Cassiopeu, Andrômeda e todos os vizinhos
e vizinhas se inclinavam ligeiramente aqui e ali, dançavam
lentamente em círculo. Do mesmo modo, no chão, lhe parecia
que as silhuetas negras dos cumes das árvores e dos edifícios
não ficavam completamente retas. Esse fenômeno, é verdade,
não tinha nada de assustador nessa região sempre abalada
desde as épocas mais remotas, pois o fogo subterrâneo que
espera por todos os lados com impaciência para fazer erupções
encontra uma saída pelas parreiras e pelos cachos de uvas
com que fazem o- Vesúvio, esse Vesúvio que não era uma das
bebidas habituais de Norbert Hanold todas as noites. Mas ele
se lembrava de que, ainda que atribuindo ao vinho um pouco
do torvelinho dos objetos em volta, tudo havia já girado em
torno dele ao meio-dia, e de que não era um fenômeno novo
para ele, mas a sequência natural do que havia acontecido
anteriormente. Subiu à sua camera e aí descansou algum
tempo, diante da janela aberta, a contemplar o cone do
Vesúvio, sobre o qual não se via, naquele momento, o penacho
de fumaça, mas que envolvia uma espécie de manto de
púrpura escura que parecia se agitar de um lado para outro.
Depois o jovem arqueólogo se despiu sem acender a luz e
procurou sua cama às apalpadelas. Mas quando aí se
estendeu, não era mais a cama do Diomedes, mas um campo
vermelho de papoulas que se fechava sobre ele como uma
almofada fofa e aquecida pelo sol. A Musca domestica
communis, sua adversária, chegava ao número de meia
centena sobre a muralha, por cima de sua cabeça, mas elas
estavam domadas pela obscuridade que as mergulhava numa
letargia embotada. Uma só dentre
57
elas, tirada da sonolência pela necessidade de atormentar, se
pôs a zumbir em volta do seu nariz. Mas ele não a identificou
com o mal absoluto, com o flagelo eterno que aflige a
humanidade há milénios, ele a tomou, os olhos fechados, por
uma cleópatra vermelha e dourada ocupada em adejar à volta
dele.
58
forma de um branco prateado brilhante, que sua vista,
bastante baixa, não permitia distinguir claramente. Mas ele se
dirigiu involuntariamente até o objeto e descobriu uma haste
de asfódelo inteiramente coberta de campânulas brancas. O
vento havia trazido a semente do exterior. Era a flor do mundo
subterrâneo e ele pensou que ela havia brotado num tal lugar
especialmente para ele. Colheu a elegante haste e voltou ao
lugar onde estava sentado. O sol de maio estava cada vez mais
ardente, se aproximava enfim do meio-dia. Tomou então a
longa Strada di Nola. Esta se estendia vazia num silêncio de
morte, como quase todas as outras. Lá embaixo, na direção do
oeste, todos os visitantes da manhã se apressavam já para a
Porta Marina e os pratos de sopa. O ar em movimento vibrava e
no seu esplendor, Norbert Hanold, seu galho de asfódelo na
mão, parecia a solitária aparição do Hermes Psicopompos,
vestido com uma roupa moderna e pronto para acompanhar ao
Hades a alma de um defunto.
59
a qual convergiam todos os pensamentos e todas as reflexões:
qual a essência da aparição corporal de um ser como Gr adiva,
ao mesmo tempo morta e viva, embora ela só se revestisse
desse último estado ao meio-dia, à hora dos fantasmas, ou
quem sabe somente ontem, ou ainda uma vez a cada século ou
a cada mil anos. De repente, sentiu-se certo de que sua visita
de hoje era inútil. Não encontraria aquela que procurava
porque não se permitiria a ela regressar senão em uma época
em que ele também não pertenceria mais ao mundo dos vivos e
estaria, depois de muito tempo, morto, enterrado e esquecido.
Mas quando caminhava ao longo da muralha onde estava
pintado Páris no momento de dar a maçã, percebeu Gradiva à
sua frente, com o mesmo vestido da véspera, sentada sobre o
mesmo degrau, entre as mesmas duas colunas amarelas. Ele
não se deixaria enganar por uma fantasia de sua imaginação,
sabia bem que era objeto de uma alucinação que compunha
outra vez como uma ilusão, diante dos seus olhos, o que
ontem ele havia visto na realidade. Mas não pôde se negar a
abandonar-se à vã aparência saída da imaginação. Ficou
pregado no lugar e gritou, sem mesmo se dar conta, num tom
queixoso:
61
bem, mais ou menos há dois mil anos. Tu vivias já nessa
época? Tu me pareces mais jovem.
62
representar uma jovem pompeiana caminhando pela sua
cidade natal, sobre as pedras de uma rua, e seu sonho
confirmara essa idéia. Sabia agora que era esse sonho que o
havia incitado a vir de novo à cidade morta para explorá-la e
incumbir-se de descobrir seus rastros. E ontem quando parara
na esquina da rua de Mercúrio, ela caminhava precisamente
como uma imagem bruscamente aparecida diante dele, sobre
as lajes. Parecia encaminhar-se à casa de Apolo. Mas refez seu
caminho e desapareceu em frente à casa de Meleagro.
63
Era visível que o interesse dela a levava a esse ponto e ele se
pôs a dizer:
— Eu te peço, se tu queres...
64
Mas por que me pediste para caminhar diante de ti? Há
qualquer coisa de diferente no meu caminhar? Esse desejo de
saber isso, desejo que ela manifestava de novo, mostrava que
não era desprovida de curiosidade feminina. Ele respondeu
então que se tratava da posição particularmente vertical de
seu pé, que se demorava atrás, enquanto ela caminhava, e
acrescentou que havia tentado observar, na sua cidade natal,
a maneira de caminhar de suas contemporâneas durante
várias semanas. Mas suas observações haviam sido
frustrantes, exceto talvez uma só ocasião em que ele havia
acreditado perceber a mesma maneira de caminhar. Ele se
havia, sem dúvida, deixado levar, na confusão da multidão,
vítima de uma ilusão, pois havia pensado que os traços dessa
mulher se pareciam um pouco aos de Gradiva.
65
esgotou. Tu me trouxeste a flor dos túmulos para que ela me
mostre o caminho. Dá-ma, portanto.
66
dinário talento artístico, a lembrança do ambiente em que ela
havia outrora vivido. Seus desenhos testemunhavam um
grande sentido de observação finamente desenvolvido, assim
como cada palavra sua mostrava capacidade de raciocínio e
idéias inteligentes. Ela deveria ter se sentado frequentemente
perto da mesa adornada com os grifos e essa era, sem dúvida,
para ela, uma recordação particularmente preciosa. Norbert,
segurando o caderno, atravessou mecanicamente o pórtico e
descobriu, no momento em que ia virar-se, uma estreita
abertura na muralha, suficientemente larga, no entanto, para
deixar passar um corpo de uma esbelteza fora do normal para
dentro do edifício contíguo, e, de lá, para o Vicolo dei Fauno, do
outro lado da casa. Parecia-lhe, ao mesmo tempo, muita
insensatez sua acreditar que Zoé-Gradiva se entranhasse pelo
solo. Não podia compreender como ele havia acreditado nisso.
Ela tomava o caminho que a levava a sua tumba. Esta devia
encontrar-se na rua dos Túmulos. Precipitou-se e seguiu
apressado a rua de Mercúrio até à porta de Hércules. Mas
quando chegou aí, era já muito tarde. A grande Stirada dei
Sepolcri se estendia vazia, inundada de luz. O máximo que se
podia distinguir, na sua extremidade, por trás da cortina
resplandecente dos raios do sol, era uma sombra ligeira que
parecia passar vagamente diante da casa de Diomedes.
67
berta, ou se encontrava, pelo menos, numa nuvem brumosa.
Esta não era, como habitualmente, cinza, morna e
melancólica, mas, para dizer a verdade, era mais uma nuvem
alegre, particularmente mesclada de azul, de vermelho, de
marrom, e sobretudo de um branco amarelado e de um branco
de alabastro, onde os raios do sol misturavam fios de ouro. A
nuvem tampouco diminuía a capacidade ótica do olho, ou a
capacidade auditiva do ouvido. Somente o pensamento não
conseguia atravessá-la, e era, no entanto, uma muralha de
nuvens cujo efeito podia ser comparado ao da mais densa
bruma. Ao jovem arqueólogo parecia que lhe administravam
todas as horas de uma maneira invisível e, ademais, mal
perceptível, que um fiaschetto di Vesuvio girava
incansavelmente no seu cérebro. Procurava libertar-se disso
aplicando a si mesmo o antídoto, bebendo muita água e
fazendo caminhadas tão longas quanto possível. Seus
conhecimentos médicos não eram muito extensos, mas o
faziam diagnosticar que seu estado estranho se devia a um
afluxo de sangue muito forte à cabeça, o que estaria
relacionado talvez com uma aceleração da atividade do
coração, pois sentia, por outro lado, algo até aqui totalmente
desconhecido: um choque rápido, de tempos em tempos,
contra a parede do peito. Além disso, seus pensamentos, se
não podiam se exteriorizar, não ficavam inativos no seu
interior, ou, mais exatamente, não havia no seu espírito senão
um pensamento, seu dono exclusivo, e cuja atividade era tal
que, mesmo sendo perpétuo, se tornava vão. Girava em torno
da questão de saber que invólucro físico tinha Zoé-Gradiva,
durante sua estada na casa de Meleagro, ou se, ao contrário,
ela não era senão a enganadora ilusão do que havia sido
anteriormente. O fato de que dispusesse de órgãos para falar,
de que pudesse manter um lápis entre os
68
dedos, parecia testemunhar em favor da primeira hipótese dos
pontos de vista da física, da fisiologia e da anatomia. Mas a
idéia dominante em Norbert era a de que, se ele a tocasse, se
ele tentasse pôr sua mão sobre a dela, não encontraria senão o
vazio. Um estranho instinto o impelia a procurar uma
certificação, enquanto uma não menor timidez o impedia, em
imaginação, pois ele sentia que a confirmação de qualquer
dessas duas possibilidades tinha alguma coisa de assustador.
A existência física dessa mão o teria amedrontado e a ausência
dessa existência lhe daria um grande desgosto. Esterilmente
absorvido por esse problema, que continuaria sem solução
pelo menos até que uma experiência científica fosse instituída,
Norbert foi conduzido pelo seu longo passeio até à montanha
que se eleva acima de Pompéia e que é o primeiro contraforte
da alta cadeia do monte Sant'Angelo. Aí encontrou, de maneira
bastante imprevista, um velho senhor de barba grisalha que, a
se julgar pelos apetrechos de toda sorte com que estava
munido, devia ser um zoólogo ou um botânico ocupado em
pesquisar sobre uma encosta ardentemente ensolarada. Virou
a cabeça para Norbert, no momento mesmo em que este quase
o tocava, olhou-o por um momento com surpresa e lhe disse:
69
com um talo de erva comprido, diante de uma estreita fresta
de rochedo onde se via a cabeça brilhante de um lagarto a
espiar. O zoólogo permaneceu assim, sem se mexer. Norbert
passou por trás dele sem fazer ruído e retomou o caminho pelo
qual tinha vindo. Parecia lembrar-se vagamente de já ter visto
a figura do caçador de lagartos, provavelmente num dos dois
hotéis, e a acolhida que ele lhe dera parecia confirmar isso. O
mínimo que se poderia dizer dos motivos que levavam as
pessoas a demorar em Pompéia é que eram extremamente
curiosas e incríveis. Feliz por ter podido se desembaraçar
rapidamente do armador de laços e voltar a pensar no
problema da existência ou da não-existência corporal, sentiu-
se no dever de retornar. Mas um atalho o levou na direção
errada, conduzindo-o à extremidade leste das muralhas da
cidade e não a oeste aonde deveria ir. Absorvido pelos
pensamentos, só percebeu seu erro quando chegou perto de
um edifício que não era nem o Diomedes nem o Hotel Suíço.
Entretanto, a construção tinha as indicações de um hotel.
Notou, na vizinhança, as ruínas do grande anfiteatro de
Pompéia e lhe veio à lembrança que existia perto do teatro um
outro hotel, o Albergo dei Sole, que por ser afastado da estação
não conseguia senão um número restrito de hóspedes e, que
por essa mesma razão, era pouco conhecido. Tinha sentido
calor durante o trajeto e sua cabeça não se havia liberado das
nuvens que a rodeavam. Entrou então pela porta aberta e
pediu o remédio que acreditava seria bom contra a congestão,
uma garrafa de água mineral. A peça estava vazia, não se
levando em conta as moscas, que se amontoavam em grande
número, e o proprietário, que não tendo o que fazer, aproveitou
a ocasião para puxar conversa e recomendar-lhe sua casa e as
maravilhas, retiradas das escavações, que
70
continha. Fez alusões bem pouco veladas às pessoas em casa
de quem não havia um só objeto autêntico entre os que
punham à venda, mas apenas falsos. Ele, que se contentava
com uma coleção menor, pelo menos não oferecia aos seus
clientes senão peças absolutamente autênticas. Não comprava
jamais objetos provenientes de escavações às quais não tivesse
ele mesmo assistido e, em seguida, de seu discurso se
depreendeu que ele estava presente quando se descobriu, nos
arredores do Fórum, um jovem casal de amantes que, na
expectativa da inevitável catástrofe, se havia estreitamente
enlaçado para esperar a morte. Norbert já havia ouvido essa
história antes, mas havia dado de ombros, considerando-a
uma fábula saída da imaginação particularmente fértil de um
contador de histórias. Fez de novo essa observação, mas o
proprietário lhe trouxe um broche de metal coberto de patina
que teria sido encontrado, sob os seus olhos, na cinza, ao lado
da jovem. Quando o hóspede do Albergo dei Sole teve a jóia em
suas mãos, sua imaginação dominou-o de tal forma que a
comprou ali mesmo, abandonando todo senso crítico, pelo
preço para inglês que lhe pediam, e deixou logo em seguida o
hotel com a sua compra. Ao virar-se para trás viu, à janela de
um dos andares, uma haste de flores brancas de asfódelos
suspensa, mergulhada num copo de água. Sem que nada de
lógico houvesse nisso tudo, a vista dessa flor dos túmulos lhe
pareceu uma confirmação da autenticidade de sua nova
aquisição. Tomou então o caminho que segue ao longo das
muralhas da cidade até a Porta Marina, olhando a jóia com
atenção e timidez, tomado por um duplo sentimento. Não era,
portanto, uma fábula; um casal de amantes fora exumado
perto do Fórum e tinha sido perto do templo de Apolo que ele
vira Gradiva se deitar para dormir o sono da morte. Mas ele a
71
tinha visto em sonho e estava certo agora de que, na realidade,
ela podia ter avançado alguns passos no Fórum e aí haver
encontrado com o homem com quem havia morrido.
72
peito uma rosa vermelha de Sorrento, cujo aspecto recordava
qualquer coisa àquele que a observava de um canto da sala,
sem que ele pudesse se lembrar o que era. Era o primeiro casal
que encontrava na viagem que lhe causava uma impressão
simpática. Eles se entretinham diante de um fiaschetto e
falavam num tom nem alto nem confidencial, sem dúvida de
coisas tanto sérias quanto alegres pois, de vez em quando, um
ligeiro sorriso lhes subia, nos dois ao mesmo tempo, aos
lábios, tornando-os gentis e dando vontade de tomar parte na
conversa deles ou, pelo menos, a Norbert veio esse desejo, se
ele os tivesse encontrado dois dias antes numa sala povoada
de ingleses e de americanos. Mas ele sentia que o que tinha na
cabeça estava em grande contradição com a atitude natural e
alegre do jovem casal que, evidentemente, não estava envolvido
em nenhuma nuvem, que não meditava, certamente não, sobre
a substância de que é feita uma mulher morta há dois mil
anos e que usufruía do momento presente e da vida, sem se
deixar perturbar por um problema repleto de enigmas. Não
correspondendo seu estado ao deles, ele achou que não
saberiam ser uns para os outros de nenhuma valia e, além
disso, tinha bastante medo de travar conhecimento com
aquelas pessoas naquelas condições, porque sentia um vago
pressentimento de que seus olhos claros poderiam penetrar
sua fronte, seus pensamentos e mostrar, pela sua expressão,
que eles pensavam não estar ele em toda a sua razão. Meteu-
se então no quarto e ficou, como na véspera, algum tempo
frente à janela, a contemplar o manto de púrpura que, à noite,
revestia o Vesúvio, depois se estirou para dormir. Muito
fatigado, adormeceu logo e teve um sonho estranhamente
absurdo: em algum lugar, sob o sol, Gradiva estava sentada e
fez de um talo de erva um nó escorregadio para prender
73
um lagarto dizendo: "Eu te peço, não te movas, minha colega tem
razão, o procedimento é verdadeiramente bom, e ela o tem
aplicado com pleno sucesso". No sonho, tudo isso pareceu
absolutamente louco a Norbert Hanold, e ele se agitou,
dormindo, a fim de libertar-se do seu sonho. E conseguiu, com
efeito, graças ao socorro de um pássaro que, soltando um grito
breve, semelhante a uma gargalhada, voou levando o lagarto
no bico. Então, tudo desapareceu.
74
vermelhas. Estas últimas o haviam feito esquecer de tomar o
café da manhã, e seus pensamentos não apontavam a hora
presente, mas o meio-dia. Como tinha ainda muito que esperar
até lá, devia encontrar como empregar o tempo e, com essa
intenção, penetrou numa casa, depois numa outra, onde lhe
parecia possível que, outrora, Gradiva tivesse entrado com
frequência, e que ela devesse, de tempos em tempos, visitar. A
opinião de que ela só podia sair ao meio-dia lhe pareceu menos
correta. Podia ser que lhe fosse permitido sair em outras horas
do dia e durante a noite, ao luar. As rosas confirmavam
miraculosamente essa opinião quando as tinha sob o nariz e
as cheirava. E a reflexão ela própria lhe vinha confirmar essa
maneira de ver. Ele podia, com efeito, se orgulhar de não
manter uma suposição a priori e, ao contrário, deixar o campo
livre a todas as hipóteses plausíveis e sua última hipótese não
só lhe parecia lógica, como ainda desejável. Mas então colocou
a questão de saber se os outros homens eram também capazes
de perceber o invólucro corporal de Gradiva ou se era o único a
possuir esse poder. Não pôde repelir a primeira destas
hipóteses que chegou a tomar, a seus olhos, alguma
verossimilhança, ainda que ele desejasse que fosse o contrário,
e ela o pôr num estado de instabilidade e aborrecimento. O
pensamento de que outros pudessem falar com Gradiva e
sentar-se perto dela para a entreter o chocava. Era um direito
que não pertencia senão a ele ou, pelo menos, tinha direito a
um tratamento mais favorável, pois fora ele quem a havia
reencontrado, a esta Gradiva, em quem ninguém pensava. Ele
a havia contemplado diariamente, ele a tinha presa nele
mesmo, ele tinha infundido nela, por assim dizer, sua própria
força vital, e lhe parecia, por isso, haver dado a ela uma vida
que ela não mais teria possuído sem ele.
75
Por tudo isso, segundo o seu sentimento, tinha adquirido um
direito ao qual podia pretender sozinho, e que podia recusar
dividir com quem quer que fosse.
76
dado para que eles não descobrissem nada de estúpido entre
os seus pensamentos.
77
beijo e seu abraço pareciam realmente um pouco prolongados.
Era, pois, um casal de enamorados, provavelmente recém-
casados, uma Greta e um Augusto. Ê preciso notar que estes
dois personagens não vieram, desta vez, ao espírito de Norbert
e que este episódio não lhe pareceu de mau gosto ou ridículo,
ao contrário, aumentou a simpatia que sentia pelo casal. Como
o que faziam lhe parecia ao mesmo tempo natural e
perfeitamente compreensível, demorou-se a olhar o espetáculo
com seus dois olhos ainda mais abertos do que jamais haviam
estado para a contemplação da obra de arte mais admirada da
antiguidade e teria seguido nesta contemplação com prazer.
Mas tinha o sentimento de que havia penetrado sem nenhum
direito num recinto sagrado e de que estava perturbando as
práticas secretas de um culto. Também a idéia de que poderia
ser descoberto o encheu de terror e retirou-se apressado,
caminhando sem fazer nenhum ruído, na ponta dos pés. Tão
logo se viu a uma distância suficiente para não ser mais
ouvido precipitou-se para fora correndo, pelo Vicolo dei Fauno,
com o peito oprimido e o coração batendo.
78
samente, medo, ao mesmo tempo, de não encontrar Gradiva
no interior da casa e de a encontrar aí, pois lhe havia vindo à
cabeça, há alguns minutos que, no primeiro caso, ela estaria
em algum outro lugar com um rapaz e que, no outro, este
rapaz estaria com ela e lhe faria companhia, sentados os dois
nos degraus entre as colunas. Tinha, contra este último, um
ódio mais forte do que o que sentia por todas as moscas
reunidas e não teria acreditado que fosse capaz de sentir uma
emoção tão profunda e avassaladora. O duelo, que sempre lhe
parecera um ato estúpido, surgia de repente sob essa luz como
um direito natural e o único meio de um homem mortalmente
ofendido exercer uma vingança que o satisfizesse ou deixar
uma existência já então sem objetivo. Bruscamente dirigiu-se
para a entrada. Queria provocar aquela selvagem, queria, e
isso lhe vinha ainda com mais força, dizer àquela mulher que
ele a havia considerado melhor, mais nobre e incapaz de tal
comércio.
79
de uma certeza. E apesar de toda a realidade, não conseguia
chegar a pensar de outra forma. A mulher tinha os olhos fixos
nele, esperando que retomasse a palavra. Depois bateu com o
dedo na fronte e disse:
— Tu és... — Continuou: — Parece-me que já é bastante que
eu não me ausente, apesar de ter que esperar tua chegada.
Mas este lugar me agrada enormemente. Eu vejo que tu me
trouxeste o caderno de esboços que esqueci ontem. Agradeço
tua excelente intenção. Não queres mo dar?
Ele não se lembrava, mas espantou-se por ela lhe falar de uma
época indefinidamente distante, pois o reforço de solidez
causado pela comida na sua cabeça havia tido como efeito
uma mudança no estado do seu cérebro. A idéia de que ela
pudesse ter se encontrado neste local de Pompéia há tão
remoto tempo não lhe parecia enquadrar-se com o são racio-
82
cínio. Tudo nela não lhe parecia agora ter mais que vinte anos.
A forma e a cor do rosto, os cabelos castanhos ondulados de
maneira particularmente encantadora, os dentes imaculados e
o vestido claro, que nem a menor mancha mostrava, não
podiam, sem flagrante contradição, ter estado enterrados
durante inumeráveis anos sob a cinza. Norbert se pôs a
duvidar de que estivesse verdadeiramente sentado ali,
acordado, e pensou que era mais certo que estivesse em seu
gabinete de trabalho e que, enquanto contemplava a imagem
de Gradiva, o sono o tivesse tomado. Ele teria então sonhado
que estava em Pompéia, que aí havia encontrado Gradiva
ainda viva e continuava a sonhar que se encontrava sentado
ao seu lado na Casa de Meleagro. Pois o fato de que ela ainda
estivesse viva e rediviva não podia verdadeiramente acontecer
senão em sonhos... As leis da natureza se opunham a isso.
83
— As moscas eram então já tão diabólicas quanto agora e te
atormentavam a ponto de te dar desgosto pela vida?
Este nome, que ele não havia dito a ninguém em Pompéia, lhe
vinha com tanta certeza, com tal decisão e sem nenhuma
hesitação, dos lábios de Gradiva, que aquele que o possuía
levantou-se, ainda mais assustado, do degrau onde havia
estado sentado. Nesse momento ressoaram passos entre as
colunas, passos que se haviam aproximado sem serem
notados e diante do olhar perturbado de Norbert Hanold
apareceram os rostos do casal de amantes simpáticos da Casa
dei Fauno. A jovem gritou, num tom da mais viva surpresa:
84
Norbert se viu do lado de fora da Casa de Meleagro, na Strada
di Mercúrio. Não tinha a menor noção de que maneira havia
chegado ali. Devia ter saído instintivamente ao perceber, num
súbito clarão, que era tudo o que lhe restava fazer se não
quisesse se encontrar na situação mais ridícula do mundo aos
olhos do jovem casal, mais ainda aos olhos daquela que lhe
havia chamado por seus dois nomes e que eles haviam
saudado tão amigavelmente, e sobretudo aos seus próprios
olhos. Pois embora não compreendesse nada do que lhe havia
ocorrido, alguma coisa lhe parecia incontestável. Gradiva, com
aquela mão que era humana, que não era sem consistência,
que era morna e realmente viva, havia expressado esta
incontestável verdade: ele havia se encontrado, nos dois
últimos dias, num estado de completa loucura e não era um
sonho estúpido, os olhos e os ouvidos que a natureza põe à
disposição da razão humana tinham estado despertos. Não
compreendia em absoluto — não mais, aliás, que todo o resto
— como tudo aquilo pudera acontecer. Além disso, tinha o
vago sentimento de que um sexto sentido teria tido um papel
muito importante nesse caso, a ponto de tê-lo feito tomar uma
coisa, preciosa talvez, pelo seu oposto. A fim de tirar algum
proveito dessas reflexões, precisava de um lugar silencioso e
solitário, distante, o que impulsionou Norbert Hanold a
afastar-se o mais rápido possível de olhos, ouvidos e outros
órgãos dos sentidos que utilizam seus talentos naturais, como
convém, aos fins a que são destinados.
85
Quanto à pessoa que possuía a mão morna, tinha ficado
também surpreendida pela visita inopinada e particularmente
imprevista ao meio-dia, e deduzindo-se da expressão inicial de
sua fisionomia, a surpresa não fora exclusivamente agradável.
Mas no instante seguinte não aparecia mais o menor traço
disso sobre seu rosto circunspeto; levantou-se rapidamente,
dirigiu-se à jovem mulher e lhe apertou a mão.
86
lar, tagarelando como se faz com uma velha amiga. Nós não
somos, na verdade, velhas. Meu pai, às duas horas, deixa o sol
pela mesa dos hóspedes do Soleil e eu preciso ir fazer-lhe
companhia e tenho que renunciar, por agora, à de vocês. Vocês
podem, eu creio, admirar sem mim a Casa di Meleagro. Não
tenho certeza, mas suponho que sim. Favorisca signor! A
rivederci Gisetta! Já aprendi bastante italiano e não preciso
saber mais. Aquilo de que se necessita, se inventa. Com
licença, não, senza complimenti.
87
sidade, e os ciprestes, de um lado e de outro da Strada dei
Sepolcri se erguiam, aqui e ali, em negro escuro sobre o céu.
Era um quadro muito diverso do da véspera. A claridade que
tornava todas as cores misteriosamente radiosas havia
desaparecido. Via-se com morna precisão a rua, que parecia
haver tomado um aspecto de acordo com sua denominação.
Essa impressão não se desmentia, mas aumentava devido a
alguma coisa que se via mover-se no outro extremo da rua,
nas proximidades da villa de Diomedes e que se assemelhavam
a uma sombra tentando encontrar sua tumba para
desaparecer dentro dela. Não era o caminho mais curto para ir
da Casa de Meleagro ao Albergo dei Sole, melhor dizendo, era a
direção oposta, no entanto, Zoé-Gradiva devia ter-se lembrado,
de repente, de que o tempo não a pressionava tanto para ir
almoçar, pois, em seguida, após uma pequena parada perto da
porta de Hércules, afastou-se de costas, levantando quase
verticalmente a sola dos pés sobre as lajes de lava da Rua dos
Túmulos.
88
Pompéia. Todo prédio superior estava agora reduzido a um
grande amontoado de ruínas. Um pouco mais abaixo se
encontrava um jardim de dimensões excepcionalmente
extensas, inteiramente cercado por um pórtico cujos pilares
estavam bem conservados. No centro do jardim se
encontravam os magros resíduos de uma fonte e de um
pequeno templo. Um pouco mais abaixo ainda, duas escadas
conduziam a um subterrâneo abobadado que circundava o
jardim e era iluminado por uma claridade obscura e
crepuscular. A cinza do Vesúvio havia penetrado também aí,
onde foram descobertos os esqueletos de dezoito mulheres e
crianças. Haviam se refugiado com algumas provisões colhidas
às pressas nessa peça meio subterrânea e esse pretenso
refúgio se havia transformado em túmulo para todos os que
nele se haviam abrigado. Em outro local se encontrara o
suposto dono da casa que fora do mesmo modo asfixiado e
jazia sobre o solo. Havia querido fugir pela porta do jardim, da
qual tinha ainda a chave na mão. Ao seu lado encontrava-se
outro esqueleto contorcido, sem dúvida o de um de seus
serviçais, que trazia com ele considerável número de peças de
ouro e prata. A cinza endurecida conservara a forma dos
corpos que enterrara e assim se tirara moldes deles; no Museo
Nazionale de Nápoles se encontra, sob um vidro, o modelado
exato do pescoço, dos ombros e do belo busto de uma jovem
vestida num fino vestido de gaze.
89
tumba, um silêncio sem sopro e uma tranquilidade sem
movimento, mas uma inquietude poderosa crescia
energicamente no sistema arterial de Hanold contrariando essa
última pretensão. Tinha sido forçado a fazer entre as duas
reivindicações um acordo; a mente tentaria manter a sua,
permitindo, todavia, aos pés que contentassem seu desejo.
Assim, desde a chegada, passeava em volta do pórtico,
conseguindo manter o equilíbrio corporal e esforçando-se para
normalizar o de sua mente. Mas a realização se mostrava mais
difícil de atingir que a intenção; sem dúvida, Norbert via clara
e incontestavelmente que havia sido totalmente insensato ao
pensar que tinha se sentado ao lado de uma jovem pompeiana
ressuscitada e mais ou menos reencarnada, e esta idéia, bem
distinta da sua loucura, o levava incontestavelmente a um
progresso considerável no caminho de volta à razão. Mas sua
razão não retornara ainda ao estado normal, pois se lhe
parecera que Gradiva não era mais que uma figura de pedra
morta, estava da mesma forma fora de dúvida que ela vivia
ainda. Tinha disso uma prova irrefutável, ele não tinha sido o
único a vê-la, outros também o podiam fazer, sabiam que ela
se chamava Zoe e lhe falavam como a uma pessoa de sua
espécie. Por outro lado. Gradiva sabia o nome de Norbert
Hanold e isso só poderia dever-se a uma faculdade
sobrenatural do seu ser. Ora, essa dupla natureza continuava
igualmente indecifrável à luz da razão que começava a lhe
voltar. A essa contradição insolúvel se associava outra
parecida, que estava nele, pois se tinha o vivo desejo de se
enterrar com os outros na villa de Diomedes a fim de não
correr o risco de reencontrar Gradiva, ao mesmo tempo o
animava o sentimento extremamente alegre de que ela ainda
estava na vida e conseqüentemente ele podia reencontrá-la
outra vez. Isso girava na sua
90
cabeça, empregando uma comparação vulgar, mas exata,
como a roda de um moinho, e ele corria da mesma maneira ao
redor do longo pórtico, o que não dissipava suas contradições.
Muito ao contrário, tinha o vago sentimento de que tudo em
volta dele obscurecia sem cessar.
Percebeu agora, pela primeira vez, que chovia; era por isso que
o tempo se havia tornado tão sombrio. Isso seria, sem dúvida,
do melhor proveito para a vegetação de Pompéia e seus
arredores, mas seria ridículo acreditar que um homem
pudesse tirar qualquer vantagem daquela chuva e nesse
momento Norbert Hanold temia muito mais o ridículo do que
um perigo de morte.
91
Foi esta a razão por que abandonou, a contragosto, seu
desígnio, e ficou, todo sem graça, olhando os dois pés de
Gradiva que, agora, como que tomados de impaciência,
balançavam ligeiramente. E como isso não esclarecia
precisamente os pensamentos que pudesse estar exprimindo, a
proprietária dos pés graciosos tomou de novo a palavra:
— Nós fomos interrompidos... Querias dizer-me qualquer coisa
sobre as moscas... creio que fazias observações científicas ou
tinhas uma mosca dentro da cabeça... Conseguiste pegá-la
sobre a minha mão e matá-la?
92
— A cem léguas daqui — repetiu ele sem compreender e meio
gaguejante —, onde isso?
— Em frente à tua casa, na diagonal, na casa da esquina, à
minha janela há uma gaiola com um canário.
93
Não apenas os pés da jovem testemunhavam uma nova onda
de impaciência, mas também havia no tom da sua voz
qualquer coisa que parecia demonstrar que ela estava zangada
e de mau humor e Norbert tinha a impressão de desempenhar
o papel de um escolar repreendido, que leva um tapa na boca.
O que o fez procurar maquinalmente, mais uma vez, uma
saída entre os pilares, e ao movimento que expressava esse
desejo é que se referiam as últimas palavras que havia
acrescentado a senhorita Zoe Bertgang. E, para dizer a
verdade, eram incontestavelmente justas, pois para designar a
chuva que caía por fora do teto protetor a expressão chove
muito era bastante fraca. Uma tromba d'água tropical, de uma
espécie que raramente se abate, para benzê-los, sobre os
campos napolitanos, precipitava o mar Tirreno do alto do céu
sobre a villa de Diomedes e se erguia como uma firme muralha
composta de milhares de gotas da grossura de uma noz,
resplandecentes como pérolas. Essa circunstância tornava,
com efeito, impossível uma fuga ao ar livre e forçava Norbert
Hanold a permanecer na sala de aula que constituía o pórtico.
Sua jovem professora, de expressão fina e prudente,
aproveitava o aprisionamento para continuar, após curta
pausa, os esforços pedagógicos.
— Então, até essa idade em que, não sei bem por quê, nos
tratam de "Backfisch", eu, na verdade estranhamente, me
dediquei ao senhor, e acreditei jamais poder encontrar no
mundo amigo mais encantador. Eu não tinha mãe, nem irmão,
nem irmã, e quanto ao meu pai, a primeira cobra-de-vidro que
aparece, conservada no álcool, lhe parece muito mais
interessante do que eu; ora, é uma necessidade, necessidade
da mais absoluta para quem quer que seja, mesmo para uma
adolescente, ter com que ocupar seus pensamentos e tudo o
que daí se segue. Esse quê era,
94
então, o senhor, mas quando a ciência da antiguidade o
submergiu, eu fiz essa descoberta que tu — desculpe-me, mas
sua inovação protocolar parece tão insípida e pouco
apropriada ao que eu quero exprimir — eu queria dizer, então,
me pareceu que te havias transformado num homem
insuportável que, para mim pelo menos, não tinha mais olhos
na cara, língua na boca, lembranças no lugar em que eu
conservava intacta toda a nossa amizade de infância. Por isso,
sem dúvida, eu não tinha mais meu jeito de antes; pois
quando nós nos encontrávamos aqui ou ali no mundo, no
inverno passado ainda, tu não me vias, eu não ouvia o som da
tua voz, o que não me parecia, aliás, especial, pois fazias o
mesmo com todas as outras. Eu não era, para ti, senão o
vento, e com esse topete louro, que antigamente tantas vezes
eu despenteei, estavas também tão tedioso, seco e parco de
palavras como uma cacatua empalhada e com isso inchado de
importância como um arqueopterix (é bem o nome de pássaro
monstro, fóssil antedilu-viano). Mas que a tua mente
edificasse um fantasma assim tão monumental de me tomar
aqui, em Pompéia, como uma coisa qualquer exumada e
ressuscitada, eis o que eu não poderia ter esperado de ti e
quando surgiste de imprevisto diante de mim, foi com grande
esforço, primeiramente, que pude alcançar o que havia por
trás da incrível teia tecida pela imaginação no teu cérebro.
Depois comecei a me divertir e saboreei esse divertimento,
apesar do seu bolor de casa de loucos. Pois, como te dizia, não
esperava isso de tua parte.
95
Gradiva, não apenas pelos traços de seu rosto, pelo tamanho,
pela expressão séria dos olhos, os cabelos graciosamente
ondulados, a postura que ela havia tantas vezes manifestado,
mas ainda pelas vestes, o vestido e o xale de fina e macia
casimira creme, com numerosas pregas, que completavam a
extraordinária semelhança de toda a sua aparência.
96
— Que alguém tenha primeiro que morrer para encontrar a
vida. Mas isso sem dúvida é necessário na arqueologia...
— Não, eu quero falar de teu nome...
— Porque ele é. estranho?
97
— Ë bem natural. Por que outra razão estariam em Pompéia
em viagem de núpcias?
98
um pouquinho, o que poderia bem exprimir tanto um desafio
quanto um desejo de rir reprimido, talvez até as duas coisas
juntas. Norbert Hanold olhava essa covinha e, ainda que fosse
trazido à razão segundo o diploma que acabavam de conceder-
lhe, seus olhos devem ter se confundido por um erro de ótica.
Pois anunciou sua descoberta num tom particularmente
triunfante:
— Eis a mosca outra vez!
99
hora não viu acontecer nada capaz de provocar terror. Nesse
momento, então, surgiu na senhorita Zoe uma reflexão sensata
e ela disse, na verdade contra a vontade:
— Mas realmente preciso ir agora. Meu pai vai morrer de fome.
Creio que por hoje podes renunciar à companhia de Gisa
Hartleben no almoço e te contentares com o Albergo dei Sole,
pois já não tens mais nada a aprender com a minha amiga.
100
lega Eimer, pois sem a invenção genial dele, relativa a
lagartos, eu com certeza não viria à casa de Meleagro, o que
teria sido uma pena, não só para ti mas também para mim.
101
trava, ele próprio parecendo ter sido desenterrado de um
longo sepultamento:
— Acho que não há necessidade de quebrar a cabeça com
esse assunto hoje. Ê uma coisa que tem de ser seriamente
pensada e à qual dedicaremos nosso pensamento no futuro.
De minha parte, não me sinto ainda tão plenamente viva
para tomar tal decisão geográfica.
FIM
102