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Romário e a missiologia dos mil gols ...

ou, quem blogou um bom gol?

Alexis Carvalho

Todo mundo sabe que, dentro da área, Obina é mais craque que Romário. O
baixinho quarentão, no entanto é muito mais esperto. Senão como explicar o fato de
que, de uma hora para outra, tenha surgido esse papo-caveira de fazer mil gols?
Grande mesmo foi o Pelé que, ao mesmo tempo, fez o milésimo gol contra o
Vasco e contra um goleiro argentino. Ou seja, matou dois coelhos com um golaço só.
Por isso, ele dizia: Ensina a contar os nossos gols de tal maneira que alcancemos um
coração sábio.
Com o Romário, todavia, tudo é diferente. O Juca Kfouri mostrou que a contagem
dele é cheia de malandragens. Contou gol daqui, contou gol dali... o negócio é chegar a
mil, não importa como. Ato contínuo, contabilizou gols marcados na ridícula pelada
América-RJ contra os Amigos de Luizinho (marcou 4); considerou gol feito em jogo
anulado (contra o Brasiliense, em 1995); e, pior de tudo, anotou 77 gols que fez quando
ainda nem era profissional.
Se o atacante cruz-maltino tivesse usado o mesmo critério de Pelé (que só contou
os gols que fez depois de se profissionalizar), provavelmente não chegaria lá. Mas,
Romário é Romário e o seu milésimo gol pode, então, servir como metáfora de um
mundo de embustes. Um mundo onde a realidade objetiva sucumbe diante dos aplausos
e vaias da sociedade do espetáculo. Um mundo aqui bancado pelo delírio da
arquibancada.
Enfim, Romário é o cara, tá ligado? Marrento, conquanto esperto. Pois é, mas
antes de você achar que meu assunto é futebol — o que num blog como esse seria uma
má temática — gostaria de mostrar que essa parada de usar a matemática em proveito
próprio não começou em São Januário. Na verdade, já tinha sido apropriada muito
tempo atrás por um certo tipo de missiologia, de origem e inspiração oportunista.
Que fique claro então que o soccer aqui é off-side. O que está na marca do penalty
é a missiologia com seus usos e abusos, ou em outras palavras — a missiologia da igreja
de Roma, digo, de Romário. Afirmo essas coisas porque é necessário identificar, avaliar
e denunciar procedimentos que, sob a sacro-santa égide da missão eclesiástica,
consistem na maliciosa artimanha de contabilizar uns mil golzinhos só para mandar
beijinho para a galera.
O lance é olhar o Maracanã para mirar Canaã. Isso porque a missiologia romariana
é assim mesmo, valoriza a quantidade em detrimento da qualidade. É como se os
números, esses maravilhosos construtos pitagóricos, fossem suficientes para dar conta
de uma realidade que prescinde da ética e das opções e escolhas do servo-sofredor.
Lamentavelmente, a missiologia brasileira tende a fazer firula para tentar
impressionar a torcida. Tá mais interessada em construir uma Catedral no caminho de
Niemayer do que em edificar uma igreja no caminho da cruz. Tá mais mobilizada em
conseguir carimbo do MEC (ainda que com injunções da — argh!!? — bancada
evangélica) do que em ensinar o discipulado do Cristo. Tá mais preocupada em
constituir apó$tolos do que em denunciar os que vão após tolos. Tá mais engajada em a
marcha para Jesus do que em amar chamados por Jesus.
Ainda em dúvida? Então veja só o que acontece na Internet. De uns tempos para
cá tenho lido uns textos assinados por um curioso pseudônimo: “Augustus Nicodemos”.
Tem gente que até acha que esse cara existe mesmo, mas — fala sério — qual é a
progenitora que ia botar um nome desses num próprio filho?
É óbvio que se trata de um pseudônimo. “Augustus” era o título dado ao
imperador romano, amplamente criticado como “a besta”, no livro do Apocalipse.
“Nicodemos” era o cara-de-pau que, no evangelho de João, não queria se comprometer
com Jesus (por isso foi visitá-lo de noite). Ora, usar dois nomes tão impróprios à
ortodoxia é, evidentemente, uma bem-humorada gozação. Além disso, a justaposição de
ambos forma uma espécie de acrônimo — “Tusnico” — muito próximo de Tunico, o
que talvez aluda ao autor dessa brincadeira dos “demos”.
O fato é que após muita pesquisa, elaborei uma hipótese. Há, na verdade, alguém
(ou alguéns) que escreve(m) propositalmente textos reacionários, alopradamente ultra-
fundamentalistas, só com o intuito de ridicularizar o re-surjumento do fundamentalismo
em nosso meio. É o que pode se chamar de contra-informação, ou ainda, “contra-
teologia”.
A coisa funciona mais ou menos assim. Quando o leitor lê um texto
augustunicodemiano, por exemplo, pensa: “Caraca! Quanta maluquice! Eu não posso
aceitar isso de modo algum”. Pelo menos foi essa a sensação que tive quando li meu
primeiro texto do “Tusnico”, na parte em que ele dizia: “Devemos ser pontuais na hora
do estudo bíblico. A maior prova da ressurreição é que Ele saiu da cova domingo de
manhã, bem cedo, para não chegar atrasado na Escola Dominical”. No momento tomei
um susto danado, mas depois entendi o lance. O objetivo desses artigos
augustuspseudonimiados é apenas gerar estupor e ojeriza aos “reaças” de colarinho
clerical. É impossível achar alguém que realmente pense assim.
Mas, por que estou falando disso tudo se o meu assunto é a missiologia da fraude,
a malandragem dos mil gols? Bem, vou explicar direitinho. Afinal de contas, a clareza é
necessária até mesmo numa “teoblogia”. O ponto a que quero chegar é que devemos ter
muito cuidado com textos da Internet. Outro dia meu outlook estava baixando o de
sempre — spams, vírus, worms, listas de discusões, propagandas, correntes, porcarias,
quando, de repente, fiquei perplexo. Alguém tinha me enviado um desses web-artigos
malucos: “O gol 666”.
Na hora pensei: Esse email é meio “sem-noção”. Depois, tive certeza. Não é que
um maluco fez uma recontagem dos gols do Romário só para descobrir o simbolismo
oculto do 666 na escatologia pré-milenista?
É quase inacreditável, mas o tal articulista descobriu que o gol 666 foi feito
justamente contra o Santos, em jogo na Vila Belmiro. Você tem que ver os argumentos
do tal escritor anônimo: “Esse gol não foi feito a favor dos Santos, mas contra os
Santos, os Santos de Deus. Contra àqueles a quem se refere a Escritura: Sede Santos
porque Eu sou Santo. Daí o significado oculto do Apocalipse. E tem mais, no gol 666 o
atacante defendia a Cruz de Malta, e não a Cruz de Cristo. E Malta, como diz o livro de
Atos, foi o lugar de naufrágio do São Paulo, depois que ele escreveu a primeira epístola
aos Corinthians”. E tome blá-blá-blá e enche-lingüiça até a conclusão, onde o articulista
constata que o milésimo gol pode se vincular profeticamente ao milênio e, cruz-credo,
ao início da grande tribulação.
Quem acredita, coloca as barbas de molho. Não é o meu caso, eu que nem tenho
barba. O que me interessa, contudo, é descer a lenha naqueles que romarianamente
acham válido enaltecer a missiologia de base oportunista. Naqueles que advogam a
importância de acumular: contar gols, contar conversões, contar batismos, contar
número de membros de igreja, contar templos edificados, e, pasmem, contar vantagem.
Frente à missiologia quantitativa eu me lembro do pastorzinho que não se
vangloriou de ter quantificado 99 no aprisco, mas abandonou tudo para ir atrás de uma
única abandonada. Se liga, mermão, ele não tava querendo fazer cem. Ele estava
preocupado com aquela única, numa lógica onde uma vale mais do que noventa e nove.
Para mim, essa é a autêntica missão.
Informações sobre o autor:
Alexis Carvalho é Ph.D em Teologia pela Universidade Fundamentalista Barão
de Itararé e atualmente divide sua atenção entre a exegese do Livro do Riso de
Aristóteles e a recuperação de alcoólatras na Casa Branca, em Washington.

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