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O dia 9 de abril de 2005 fez lembrar os 60 anos do martírio de Dietrich Bonhoeffer. Impotente diante
da inteligência, persistência e espiritualidade do jovem teólogo, o regime nazista alemão teve que silenciar o
pastor luterano que discordou da igreja do Reich. Ele foi executado em 1945 pela Gestapo no campo de
concentração em Flossenbürg. O gosto amargo da irreparável perda foi superado este ano pela celebração de
um século de seu nascimento, no dia 4 de fevereiro, em Breslau, Prússia, hoje Wroclaw, Polônia.
A Igreja Evangélica na Alemanha (IEA) lembrou os 100 anos desta data com celebrações em Wroclaw,
Berlim e Londres. As alocuções foram proferidas pelo Bispo Presidente da IEA, Wolfgang Huber, pelo
Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, e pelo Bispo Luterano de Wroclaw, Ryszard Bogusz. No mesmo
dia houve uma celebração ecumênica vespertina em Berlim, com a participação do Cardeal Arcebispo Georg
Sterzinsky, da Polônia, do Arcebispo de Canterbury e do Bispo Presidente da IEA, seguido de um ato festivo
na Faculdade de Teologia da Universidade Humboldt. A Bispa Luterana Margot Kässmann, da Igreja de
Hannover, representou o Conselho da IEA no culto in memorian celebrado pela Igreja Anglicana em 5 de
fevereiro na Abadia de Westminster.
A existência de mártires e a eloqüência de seu testemunho em qualquer tempo e lugar se tornam a um
só tempo parte do tesouro da Igreja e Sinal dos Tempos, que levantam questões sobre o comprometimento
pastoral. Apesar das contradições da Igreja Evangélica Luterana naquele período conturbado, houve quem
ainda não as tivesse percebido anos depois, como o Bispo Meiser, da Igreja da Baviera, que se recusou a
participar da visita a Flossenbürg em 6 de abril de 1953, insistindo que não se tratava de um cristão mas
apenas de um mártir político, como observou Heimo Schwilk no artigo Das Wirkliche tapfer ergreifen,
publicado em Welt am Sonntag (04.02.2006).
O objetivo deste artigo é traçar a trajetória pastoral de Bonhoeffer e destacar suas principais idéias
teológicas. Para tal a escolha recaiu sobre os conhecidos livros Discipulado e Ética. O primeiro por lidar com
as diversas relações da vida de fé e serviço, ancorados no conceito de graça. O segundo por tratar da ética, algo
como um grito desesperado por causa da situação da guerra, da adesão popular em massa, do apoio e
condescendência de setores chaves das Igrejas e, sobretudo, por não ter sido concluído por causa da prisão.
Bonhoeffer vinha de uma família de classe média. Era o sexto filho de uma casa de oito crianças e tinha
uma irmã gêmea chamada Sabine. Seu irmão Walter foi morto durante a 1ª Guerra Mundial. Seu pai foi um
proeminente médico e professor de psiquiatria e neurologia em Berlim e sua mãe uma mulher devotada à
família. As expectativas iniciais em torno dele eram de que seguisse a trajetória profissional do pai, até que
ele, ainda muito jovem, decidiu tornar-se pastor. Seus pais apoiaram sua decisão e ele seguiu para seus estudos
de graduação na Universidade de Tübingen e mais tarde para o seu doutorado em Teologia na Universidade de
Berlim, sendo ordenado em seguida. Fez ainda estudos de pós-graduação por um ano no Union Theological
Seminary, em New York. Nessa época conheceu a Abyssinian Baptist Church, no Harlem, onde ficou
encantado com a forma musical que os estudiosos chamaram de African-American Spiritual.
Serviu como pastor assistente numa congregação de língua alemã em Barcelona, Espanha (1928-1929).
A reunião com Karl Barth, professor da Universidade de Bonn, o ajudou a ajustar o impulso crucial com a
não-compreensão da existência Cristã como devotada ao que está fora, mas como decisões-ações no meio da
vida. "Não qualquer um, mas aquele direito faz e ousa, não paira no possível mas se agarra valentemente à
realidade", dizia o crucial lema de vida do jovem Dietrich. No outono de 1931, passou a ministrar aulas de
Teologia em Berlim, escreveu artigos e livros e, junto com Martin Niemöller e outros, envolveu-se com a
Igreja Confessante e tornou-se um forte oponente do regime Nazista. Entre fins de 1933 e 1935, serviu como
pastor de duas comunidades de língua alemã em Londres.
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Após retornar outra vez à Alemanha, dedicou-se à formação teológica de pastores, tornando-se diretor
do Seminário da Igreja Confessante em Finkenwald, na Pomerânia, e depois em Gross Schlönwitz,
Blumenthal, que foi fechado com a irrupção da Guerra. A Gestapo também o proibiu de pregar, ensinar, e
finalmente, até mesmo de falar em público. Durante este tempo, Bonhoeffer trabalhou secretamente com
numerosos oponentes do regime nacional socialista.
Durante a 2ª Guerra Mundial Bonhoeffer tornou-se uma liderança chave no trabalho da Igreja
Confessante, que se recusou a colaborar com o regime, opondo-se às políticas anti-semitas de Adolf Hitler. Ele
esteve sempre ao lado daqueles que abertamente integravam a resistência das Igrejas ao tratamento que Hitler
dispensava aos judeus, ultrapassando o círculo de influência da pequena Igreja Confessante e tornando-se um
dos líderes do maior foco da oposição cristã ao governo nazista na Alemanha. Em 1939 Bonhoeffer
aproximou-se de um grupo secreto de oficiais do alto comando militar reunidos na Abwehr, a Inteligência
Militar, que julgou possível derrotar o regime Nacional Socialista através da morte de Hitler.
Ele foi preso em abril de 1943 como resultado da investigação sobre o dinheiro usado para ajudar
judeus a escaparem para a Suíça, sendo acusado de conspiração e ficando preso em Berlim por um ano e meio.
Após o mal-sucedido atentado de 20 de julho de 1944, as conexões de Bonhoeffer com os conspiradores foram
descobertas. A partir daí ele foi transferido para diversas prisões, terminando em Flossenbürg, onde foi
executado por enforcamento nas primeiras horas do dia 9 de abril de 1945, apenas três semanas antes da
chegada das tropas aliadas. Também foram enforcados seu irmão Klaus e seus cunhados Hans von Dohnanyi e
Rüdiger Schleicher. Como última humilhação e para o prazer sádico dos oficiais da Gestapo presentes, os
quatro homens foram obrigados a se despirem totalmente em suas celas, antes de caminharem para a forca. As
cartas destes dois anos finais de sua vida foram publicadas postumamente por seu aluno e amigo Eberhard
Bethge, em Cartas e papéis da Prisão. A correspondência com sua noiva, Maria von Wedermeyer, foi
publicada como Cartas de Amor da cela 92 (Love Letters from Cell 92).
Por último, trata do tema da verdade, especialmente nas circunstâncias em que viveu. Não devemos a
palavra veraz a esse ou aquele, mas somente a Deus, lembrando que Deus não é um princípio universal, mas
“o Deus vivo que me colocou numa vida dinâmica e nela exige meu serviço. Quem fala de Deus não pode
riscar simplesmente o mundo real em que vive. Senão não estaria falando do Deus que em Jesus Cristo entrou
neste mundo, mas dalgum ídolo metafísico”, do que decorre que “o dever da veracidade devido a Deus tem
que tomar forma concreta no mundo. Nossa palavra não deve corresponder à verdade em princípio, mas
concretamente. Veridicidade que não é concreta não tem caráter de verdade perante Deus” (p. 202).
A mentira não apenas nega a verdade, mas se contrapõe a ela. “Mentira é a recusa, negação e
destruição consciente e proposital da realidade como foi criada por Deus e nele subsiste, na medida em que
isso acontece por palavras e por silêncio. Nossa palavra tem a função de, em harmonia com a palavra de Deus,
expressar a realidade como ela é em Deus; nosso silêncio deve ser o sinal para o limite que foi colocado para a
palavra pela realidade como ela é em Deus” (p. 205). Falar a verdade supõe a competência de falar sempre
dentro dos limites do ofício concreto que me incumbe. Quando se desconsidera esses limites, a palavra se
torna agressiva, molestadora, arrogante e, criticando ou elogiando, ofensiva.
Ler os textos de Dietrich Bonhoeffer e as obras a respeito dele nos leva a pensar teologicamente em
termos limítrofes. Risco, dor perigo, morte, perda, dominação, corrupção de consciências e até legitimação
eclesial. Não é possível compreender sua teologia biblicamente embasada, comprometida, crítica e ácida sem
estudar o contexto de sofrimento físico e moral, com os reflexos que esse fato teve para a cristandade no velho
continente. A relevância de Bonhoeffer e de outros/as religiosos/as e místicos/as, como Edith Stein, não vem
apenas do martírio imposto a milhares de cristãos e a milhões de judeus, mas da reflexão teológica que nos
chega do seu martírio, da atualidade dessa reflexão e da proximidade histórica com nosso tempo, atualizando o
sentido de seu testemunho.
Entre as cartas e documentos da prisão, colecionados especialmente no livro Resistência e Submissão,
estão orações. Concluo com uma que conjuga solidão e confiança:
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Clamo a ti, ó Deus! Em mim há trevas, mas tu és a luz; sinto-me só, mas tu não me abandonas; estou
desanimado, mas em ti encontro ajuda; estou inquieto, mas em ti sinto tranqüilidade; em mim há
rancor, mas em ti sinto paciência; não entendo os teus caminhos, mas tu sabes por onde devo andar.
RIBEIRO, A. C. . Agarrar valentemente o real: Bonhoeffer, dos 60 anos do martírio ao centenário do nascimento.
Atualidade teológica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 22, p. 131-143, 2006. ISSN 1676-3742