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Agarrar valentemente o real


Bonhoeffer: dos 60 anos do martírio ao centenário do nascimento
Por Antonio Carlos Ribeiro*

O dia 9 de abril de 2005 fez lembrar os 60 anos do martírio de Dietrich Bonhoeffer. Impotente diante
da inteligência, persistência e espiritualidade do jovem teólogo, o regime nazista alemão teve que silenciar o
pastor luterano que discordou da igreja do Reich. Ele foi executado em 1945 pela Gestapo no campo de
concentração em Flossenbürg. O gosto amargo da irreparável perda foi superado este ano pela celebração de
um século de seu nascimento, no dia 4 de fevereiro, em Breslau, Prússia, hoje Wroclaw, Polônia.
A Igreja Evangélica na Alemanha (IEA) lembrou os 100 anos desta data com celebrações em Wroclaw,
Berlim e Londres. As alocuções foram proferidas pelo Bispo Presidente da IEA, Wolfgang Huber, pelo
Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, e pelo Bispo Luterano de Wroclaw, Ryszard Bogusz. No mesmo
dia houve uma celebração ecumênica vespertina em Berlim, com a participação do Cardeal Arcebispo Georg
Sterzinsky, da Polônia, do Arcebispo de Canterbury e do Bispo Presidente da IEA, seguido de um ato festivo
na Faculdade de Teologia da Universidade Humboldt. A Bispa Luterana Margot Kässmann, da Igreja de
Hannover, representou o Conselho da IEA no culto in memorian celebrado pela Igreja Anglicana em 5 de
fevereiro na Abadia de Westminster.
A existência de mártires e a eloqüência de seu testemunho em qualquer tempo e lugar se tornam a um
só tempo parte do tesouro da Igreja e Sinal dos Tempos, que levantam questões sobre o comprometimento
pastoral. Apesar das contradições da Igreja Evangélica Luterana naquele período conturbado, houve quem
ainda não as tivesse percebido anos depois, como o Bispo Meiser, da Igreja da Baviera, que se recusou a
participar da visita a Flossenbürg em 6 de abril de 1953, insistindo que não se tratava de um cristão mas
apenas de um mártir político, como observou Heimo Schwilk no artigo Das Wirkliche tapfer ergreifen,
publicado em Welt am Sonntag (04.02.2006).
O objetivo deste artigo é traçar a trajetória pastoral de Bonhoeffer e destacar suas principais idéias
teológicas. Para tal a escolha recaiu sobre os conhecidos livros Discipulado e Ética. O primeiro por lidar com
as diversas relações da vida de fé e serviço, ancorados no conceito de graça. O segundo por tratar da ética, algo
como um grito desesperado por causa da situação da guerra, da adesão popular em massa, do apoio e
condescendência de setores chaves das Igrejas e, sobretudo, por não ter sido concluído por causa da prisão.

Trajetória teológica e pastoral


Se saíres em busca da liberdade, aprende, antes de tudo, disciplina dos sentidos e da alma,
para que os desejos e teus membros não te levem ora para cá, ora para lá. Casto seja teu
corpo e teu espírito, plenamente sob teu domínio e obediente na procura do alvo que lhe
foi colocado. Ninguém experimenta o mistério da liberdade a não ser pela disciplina.

Bonhoeffer vinha de uma família de classe média. Era o sexto filho de uma casa de oito crianças e tinha
uma irmã gêmea chamada Sabine. Seu irmão Walter foi morto durante a 1ª Guerra Mundial. Seu pai foi um
proeminente médico e professor de psiquiatria e neurologia em Berlim e sua mãe uma mulher devotada à
família. As expectativas iniciais em torno dele eram de que seguisse a trajetória profissional do pai, até que
ele, ainda muito jovem, decidiu tornar-se pastor. Seus pais apoiaram sua decisão e ele seguiu para seus estudos
de graduação na Universidade de Tübingen e mais tarde para o seu doutorado em Teologia na Universidade de
Berlim, sendo ordenado em seguida. Fez ainda estudos de pós-graduação por um ano no Union Theological
Seminary, em New York. Nessa época conheceu a Abyssinian Baptist Church, no Harlem, onde ficou
encantado com a forma musical que os estudiosos chamaram de African-American Spiritual.
Serviu como pastor assistente numa congregação de língua alemã em Barcelona, Espanha (1928-1929).
A reunião com Karl Barth, professor da Universidade de Bonn, o ajudou a ajustar o impulso crucial com a
não-compreensão da existência Cristã como devotada ao que está fora, mas como decisões-ações no meio da
vida. "Não qualquer um, mas aquele direito faz e ousa, não paira no possível mas se agarra valentemente à
realidade", dizia o crucial lema de vida do jovem Dietrich. No outono de 1931, passou a ministrar aulas de
Teologia em Berlim, escreveu artigos e livros e, junto com Martin Niemöller e outros, envolveu-se com a
Igreja Confessante e tornou-se um forte oponente do regime Nazista. Entre fins de 1933 e 1935, serviu como
pastor de duas comunidades de língua alemã em Londres.
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Após retornar outra vez à Alemanha, dedicou-se à formação teológica de pastores, tornando-se diretor
do Seminário da Igreja Confessante em Finkenwald, na Pomerânia, e depois em Gross Schlönwitz,
Blumenthal, que foi fechado com a irrupção da Guerra. A Gestapo também o proibiu de pregar, ensinar, e
finalmente, até mesmo de falar em público. Durante este tempo, Bonhoeffer trabalhou secretamente com
numerosos oponentes do regime nacional socialista.
Durante a 2ª Guerra Mundial Bonhoeffer tornou-se uma liderança chave no trabalho da Igreja
Confessante, que se recusou a colaborar com o regime, opondo-se às políticas anti-semitas de Adolf Hitler. Ele
esteve sempre ao lado daqueles que abertamente integravam a resistência das Igrejas ao tratamento que Hitler
dispensava aos judeus, ultrapassando o círculo de influência da pequena Igreja Confessante e tornando-se um
dos líderes do maior foco da oposição cristã ao governo nazista na Alemanha. Em 1939 Bonhoeffer
aproximou-se de um grupo secreto de oficiais do alto comando militar reunidos na Abwehr, a Inteligência
Militar, que julgou possível derrotar o regime Nacional Socialista através da morte de Hitler.
Ele foi preso em abril de 1943 como resultado da investigação sobre o dinheiro usado para ajudar
judeus a escaparem para a Suíça, sendo acusado de conspiração e ficando preso em Berlim por um ano e meio.
Após o mal-sucedido atentado de 20 de julho de 1944, as conexões de Bonhoeffer com os conspiradores foram
descobertas. A partir daí ele foi transferido para diversas prisões, terminando em Flossenbürg, onde foi
executado por enforcamento nas primeiras horas do dia 9 de abril de 1945, apenas três semanas antes da
chegada das tropas aliadas. Também foram enforcados seu irmão Klaus e seus cunhados Hans von Dohnanyi e
Rüdiger Schleicher. Como última humilhação e para o prazer sádico dos oficiais da Gestapo presentes, os
quatro homens foram obrigados a se despirem totalmente em suas celas, antes de caminharem para a forca. As
cartas destes dois anos finais de sua vida foram publicadas postumamente por seu aluno e amigo Eberhard
Bethge, em Cartas e papéis da Prisão. A correspondência com sua noiva, Maria von Wedermeyer, foi
publicada como Cartas de Amor da cela 92 (Love Letters from Cell 92).

Na realidade, os sonhos se tornam ação


Não qualquer coisa, mas o correto deve ser feito e arriscado; não se deve flutuar no possível,
mas agarrar valentemente o real; a liberdade não está no vôo dos pensamentos, mas tão-somente
na ação. Sai da medrosa hesitação para a tempestade dos acontecimentos, sustentado apenas
pelo mandamento divino e pela tua fé, e a liberdade acolherá teu espírito com júbilo.

Bonhoeffer desenvolve o conceito de graça, polarizando as noções de barata e preciosa. A graça é


barata quando é esvaziada de seu real valor, sendo oferecida de forma oficial, sem o reconhecimento de quem
a oferece (a Igreja) e de quem a recebe (o pecador), sem penitência e sem arrependimento verdadeiro. Essa
atitude a torna “refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado”, como um tesouro
de que lançamos mão irresponsavelmente, como se não tivesse preço, “sem pensar e sem limites”. É apenas
doutrina, princípio, sistema.
Quando a Igreja assume em seu cotidiano pastoral essa noção frugal de graça, o mundo já tem
garantida a cobertura para todos os seus pecados. A graça assim anunciada é como “a pregação do perdão sem
arrependimento, o batismo sem a disciplina de uma congregação, a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados,
a absolvição sem confissão pessoal... sem discipulado... sem a cruz... sem Jesus Cristo vivo, encarnado”
(Discipulado. São Leopoldo, Sinodal, l989, p. 10).
Bonhoeffer retoma a ênfase de Lutero em compreender a realidade, para perceber a dádiva divina e,
sobretudo, poder dar uma resposta condizente. Crítico e perspicaz, este também vê “a hora histórica de seu
povo, ele vê a grandeza do presente divino e a tarefa de seu povo; ele porém também vê o aumento do abuso
da liberdade evangélica, ele vê a ingratidão em relação ao bem confiado, ele vê o desprezo à palavra de Deus”
(MARON, G. Luther und die ‘Germanisierung des Christentums’. Zeitschrift für Kirchengesschichte 1983
(94): 335).
Por outro lado, quando a graça adquire seu verdadeiro valor, para o pecador que a pede e para a Igreja
que a anuncia, ela se torna “o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria
tudo quanto tem; a pérola preciosa, para adquirir a qual o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o
governo régio de Cristo, por amor do qual o homem arranca o olho que o escandaliza; o chamado de Jesus
Cristo, ao ouvir do qual o discípulo larga as suas redes e o segue”. É preciosa porque adquire o significado de
bem último, de valor inestimável, daquilo pelo que daríamos a vida, a mesma que na verdade ela no-la dá. É de
graça mas não é barata, enfatiza Bonhoeffer, porque não pode ser barato para Deus o que lhe custou a vida de
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seu Filho e porque não julgou Ele que a vida de seu Filho “fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa
vida”.
Ao avivar, uma vez mais, o evangelho da graça pura e preciosa, somos chamados ao aprendizado da
obediência. Descobrimos que somente o crente é obediente e somente é obediente o que crê. Só na conjunção
destas duas expressões percebemos que o ‘fracasso na busca da própria justificação’ e a auto-afirmação
espiritual dos piedosos constituem o caminho que distancia da graça. Graça sem discipulado é graça barata,
sem custo, sem comprometimento, sem sofrimento, sem cruz. Eis sua frugalidade.
Ao crer, sendo obediente, e ao ser obediente, crendo, o discípulo entende o embate de dimensões
históricas e cósmicas de Jesus contra os poderes tirânicos. “Todo o pecado do mundo se abate, com toda a ira e
virulência, contra a sua justiça. Trava-se, literalmente, uma luta de vida ou morte. O pecado lança-se contra a
justiça, a maldição contra a bênção, a morte contra a vida. Tudo cai sobre este um: Jesus. Ele passa a ser,
conforme Lutero, ‘simultaneamente maldito e bendito, simultaneamente vivo e morto, simultaneamente
padecente e exultante’” (ALTMANN, W. Lutero e libertação. São Leopoldo, Sinodal, São Paulo, Ática, 1994,
p.68-9). No discipulado, há verdadeira graça, preciosa e cara, em meio ao sofrimento, comprometida. Eis sua
densidade.
Se a graça cara e preciosa se torna premissa da vida cristã, podemos ter antecipadamente a justificação
dos pecados. “Não queiras ser qualquer coisa senão aquilo que és; sim, sê pecador todos os dias e, não
obstante, sê corajoso... repudia ao pecado... renuncia a tudo que lhe serve de empecilho no discipulado de
Jesus”, lembrando a frase de Lutero ‘peca ousadamente, mas crê com ousadia ainda maior e alegra-te em
Cristo’ (Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo) (Enders III, p. 208, 118ss) (p. 15). Só a graça cara
sustenta, envolve, fortalece, por isso dá condições para o comprometimento, sem abusar da liberdade, nem ser
ingrato diante do bem confiado, e nem desprezar a palavra de Deus.
A graça e o discipulado estão associados à cruz. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue”
não consiste de uma série de auto-negações, de atos isolados de auto-martírio e nem de exercícios ascéticos
para Bonhoeffer, mas em “conhecer apenas a Cristo, e não mais a si próprio; em ver somente aquele que segue
em frente sem olharmos o caminho que julgamos tão difícil. A auto-negação diz apenas isso: Ele vai em
frente; apega-te a ele” (p. 43). Só o estar comprometido com Cristo traz a experiência da graça, insere no
discipulado, atualiza no crente a experiência da cruz.
A partir dessa compreensão, “a cruz não é desventura nem pesado destino; é o sofrimento que advém
em resultado da união com Cristo. A cruz não é sofrimento ocasional, mas sofrimento necessário”, não é
sofrimento natural apenas, mas sofrimento e rejeição por estarmos relacionados com Jesus Cristo. O
cristianismo que não tomou o discipulado a sério, que transformou o consolo do Evangelho em graça barata,
que misturou existência natural e existência cristã, acabou por “considerar a cruz uma desventura diária, uma
tribulação e angústia da vida natural. Esqueceu-se que cruz significa sempre também rejeição... é compaixão
com Cristo, sofrer com Cristo” (p. 44).
Isso faz do sofrimento uma característica dos seguidores de Cristo. Discipulado é ‘passio passiva’, é
sofrimento obrigatório, é esquecer a sua paixão para viver a do Senhor. Tomar sobre si a cruz é expor-se ao
sofrimento e à rejeição. Fugir disso é perder a comunhão com Cristo, romper o compromisso e deixar de ser
discípulo. Somente a união com Cristo, no discipulado, está, de fato sob a cruz de Cristo. Ao orar, como
Cristo, pedindo para passar o cálice sem ser bebido, os discípulos aprendem que o cálice do sofrimento passa
unicamente ao ser bebido (p. 46), que o triunfo sobre o sofrimento é suportar a cruz, e que “com Cristo
presente, tudo é superável” (Christo autem praesente omnia superabilia [WA 1, 16, 29]).
Para carregar o real é preciso coragem para assumir o discipulado e suportar o sofrimento. “A
comunidade dos discípulos não se desvencilha dos sofrimentos, como se ele não lhes dissesse respeito, mas
suporta-os. Justamente nesta atitude expressa-se sua solidariedade com os homens... Ela carrega o que lhe é
imposto e o que sobre ela recai por amor de Cristo no discipulado” (p. 59). Quem, porém, perder sua vida no
discipulado, no carregar da cruz, tornará a achá-la no próprio discipulado, na comunhão da cruz. Nesta
perspectiva, sofrimento verdadeiro é afastar-se de Deus. Ao compreender a dinâmica do discipulado diante do
desafio da realidade começa a fazer sentido a expressão de Frei Betto: “é preferível morrer, do que perder a
vida”.

Fazer o melhor, entregar a Deus e descansar


Maravilhosa transformação. As mãos fortes e ativas estão amarradas. Impotente e solitário,
vês o fim de tua ação. Não obstante, respiras aliviado e colocas o correto tranqüila e
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confiantemente em mãos mais fortes e te dás por satisfeito. Só por um momento tocaste,
feliz, a liberdade, entregando-a então a Deus para gloriosa consumação.

As linhas centrais do pensamento teológico de Bonhoeffer têm continuidade diante de temas


eminentemente práticos, como a ética. Firmemente ancorado no seu cotidiano e a partir de boa pesquisa
bíblica, ele divide seu livro compilado postumamente por seu aluno Eberhard Bethge com chaves claramente
teológicas. Começa a falar do ser humano relacionando-o com sua origem em Deus. Usa o termo Entzweiung,
que em alemão designa desunião, desavença, divisão, para descrever as distâncias entre a criatura e o criador
(Ética. São Leopoldo, Sinodal, 1988, p. 15) surgidas ao buscar conhecer o bem e o mal, já que o saber a
respeito dos outros, das coisas e de si mesmo ele já o tem no conhecimento de Deus.
Ao tornar-se como “um de nós, conhecedor do bem e do mal” (Gn 3,22), ele defronta-se com suas
possibilidades. Essa semelhança originária concedida por Deus se converteu no ser humano, com o tempo, em
igualdade roubada. Mesmo sabendo que depende exclusivamente da sua origem, ele esqueceu-se dela e, ao
querer ser por si mesmo aquilo que Deus lhe concedeu, transformou-se em seu próprio criador e juiz. Assim, o
ser humano que julgou poder viver da origem roubada, ao incorporar o mistério divino, vive apenas daquela.
Comeu da fruta proibida, pela qual vai morrer.
O conhecimento do bem e do mal, aquele que só Deus pode e deve saber, resulta duma inversão do seu
conhecimento, que Deus é sua origem, explica o mistério da desunião. O resultado é que, em vez de apenas
defrontar-se com o mistério, entende-se como origem do bem e do mal; em vez de olhar para aquele que é a
fonte da bondade e a superação da dicotomia, busca a bondade em si, em meio às contradições; em vez de
aceitar a escolha e a eleição divinas, quer ele mesmo escolher. Ele “tornou-se como Deus, mas contra Deus.
Eis o embuste da serpente. O ser humano sabe o que é bom e o que é mau; mas, como ele não é a origem,
como adquire este saber unicamente na separação da origem, o bem e o mal que conhece não são o bem e o
mal, mas bem e mal contra Deus” (p. 16).
A igualdade roubada é bem e mal da escolha própria, contra a eleição divina, explica Bonhoeffer. O ser
humano tornou-se igual a Deus como antideus, como seu contrário. Sem Deus por escolha própria, que se
entende em suas possibilidades discordes, está separado da vida unificadora e conciliadora em Deus, está
entregue à morte. O mistério que roubou de Deus o faz perecer.
“E abriram-se-lhes os olhos” (Gn 3,7) mostra o momento em que o ser humano, em lugar de Deus, se
vê a si mesmo. Reconhece sua desunião com Deus e com o semelhante ao perceber-se nu e exposto, sem a
proteção e a cobertura que Deus e o semelhante representam. Assim nasce o pudor. “É a indestrutível
lembrança do ser humano da sua separação da origem, é a dor decorrente desta separação e o desejo impotente
de desfazê-la. O ser humano se envergonha porque perdeu algo que faz parte de sua essência original e de sua
integridade. Tem vergonha de sua nudez” (p. 17).
A consciência, por sua vez, é o sinal da desunião do ser humano consigo mesmo. Ela está mais distante
da origem do que o pudor, pressupõe a divisão em relação a Deus e aos semelhantes e aponta para a cisão do
ser humano separado da origem consigo mesmo. Afastada de Deus, quer ao mesmo ter unidade consigo
mesma, por isso seu caráter de proibição: não deves... Ela só fica tranqüila quando a proibição não é
transgredida. Diante dela a vida se divide em coisas permitidas e proibidas, não havendo mais o registro da
desunião do ser humano e sua origem também naquilo que é permitido, que ela identifica como bem. Por isso,
diferentemente do pudor, ela não abrange a vida toda e nem trata da relação do ser humano com Deus e com o
semelhante, apenas aquela consigo mesmo, apesar de dizer-se norma do relacionamento com Deus e com os
outros.
O conflito da consciência opera uma tal inversão, que se torna uma pretensão, a de superar a desunião
consigo mesmo, mas só a vontade de Deus, em Jesus, recupera a origem perdida. No evangelho esse conflito
aparece estereotipado na figura do fariseu. Por faltar nele a ação que supera a cisão, esta é sempre
aprofundada. A conversão dos fariseus vem do não julgueis, de Jesus, que derruba sua autoridade baseada na
noção de bem e mal e possibilita a reconciliação ao julgar através do não julgar. “O saber dos fariseus era
morto e estéril; o saber de Jesus e dos que estão unidos a ele é vivo e frutífero; o saber dos fariseus é
dissolvente, o novo saber é redentor e reconciliador; o saber dos fariseus é a destruição de toda ação autêntica,
o saber de Jesus e dos seus consiste apenas na ação” (p. 24).
O exame de qual seja a vontade de Deus em Cristo inclui o não-saber a respeito do bem e do mal que
remete o ser humano a Cristo, de onde vem discernimento diário e autêntico, e sabem-se guiados pela vontade
do Pai. Esse raciocínio dificulta a noção farisaica marcada pela unidade com a origem ainda não reconciliada
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em Jesus. Só nele a desunião do ser humano com Deus e o próximo está terminada. Por graça, ao ser humano
é restituída a sua origem.
O conflito entre o homem consciente e o simples pode ser resumido assim: o primeiro luta solitário
contra a superioridade das forças que lhe exigem decisão, o segundo tem o coração indiviso e os olhos
voltados para a simples verdade de Deus; o primeiro, não tem conselho, nem apoio e nem suporte, a não ser da
própria consciência, o segundo, se apega aos mandamentos, ao juízo e à misericórdia que lhe chegam da boca
de Deus; o primeiro, sofre tantas pressões de disfarces verdadeiros e máscaras honrosas que a consciência fica
insegura e medrosa, e o segundo, faz da simplicidade de pertencer a Deus, seguir sua vontade e agir
comprometido pelo amor a inteligência para ver o fundo das coisas, a realidade em Deus no meio da história.
Uma tentação para o homem em Cristo é a idolatria do sucesso, que cega diante dos conflitos justiça e
injustiça, verdade e mentira, decência e canalhice. A glória do bem-sucedido é algo a embotar o discernimento.
Até a culpa cicatriza no sucesso. Quando este é o bem por excelência, será necessário o delírio para mantê-lo.
Nessa perspectiva de consciência, a Igreja que quiser servir ao mundo vai se transformar num suposto ideal de
comunidade cristã que confunde a realidade de Jesus Cristo vivo com a realização de uma idéia cristã. “É
dessa forma que o mundo que se tornou mau consegue tornar maus os cristãos. É o mesmo germe que
desagrega o mundo e torna os cristãos radicais. Ambas as vezes é o ódio contra o mundo, seja o ódio dos
ímpios ou dos devotos. É a negação do artigo da criação por ambos os lados. Com Belzebu, no entanto, não se
expulsa o diabo” (p. 76). As duas posturas são contrárias a Cristo. O mundo hostilizado, seja pelo mundo ou
pelos cristãos devotos, é um em Jesus. Ao se tornar ser humano, Jesus Cristo entra na realidade criada,
indicando que devemos sê-lo diante de Deus.
A condição do ser humano na vida cristã é a de “ser gente no poder da encarnação, estar julgado e
perdoado no poder da cruz, viver no poder da ressurreição. Uma não existe sem a outra. Só o ser humano pode
ser justificado, pelo simples fato de que só o justificado se torna realmente ‘ser humano’”(p. 78). Diante de
Deus não há vida que não valha a pena ser vivida, pois Deus valoriza a vida em si. O fato de Deus ser o
criador, preservador e redentor da vida torna a mais mísera existência digna de ser vivida (p. 93).
O critério da ética cristã é a revelação de Deus em Jesus Cristo. Sua origem não é a realidade do
próprio eu, nem a realidade do mundo, tão pouco a realidade das normas e valores, mas a realidade de Deus. A
pergunta pelo bem se transforma na pergunta pela participação na realidade divina revelada em Cristo. O bem
é o próprio real, isto é, não o real abstrato, desvinculado da realidade de Deus, mas o real como somente em
Deus tem realidade. O bem não existe sem esse real; portanto, não é uma fórmula geral, e esse real não existe
sem o bem. O desejo de ser bom só existe como anseio pelo que é real em Deus. Só temos parte no bem
participando da realidade (p. 108).
A motivação para agarrar corajosamente o real vem da compreensão de que o bem é a própria
realidade, a saber, a realidade vista e reconhecida em Deus. Com a pergunta pelo bem se abrange o ser humano
todo, junto com seus motivos e finalidades, com seus semelhantes, com a criação que o circunda, isto é, a
realidade como um todo, sustentada em Deus. O bem exige a totalidade, não apenas a mentalidade toda, mas a
obra toda, o ser humano todo, juntamente com os seus semelhantes que lhe foram dados. O ser humano é um
todo indivisível, não só como indivíduo em sua pessoa e obra, mas também como membro da coletividade dos
seres humanos e das criaturas na qual está inserido (p. 109).
Para compreender a relação com a culpa é preciso lidar com a responsabilidade. A disposição de
assumir a culpa, bem como a liberdade, fazem parte da estrutura da ação responsável. Jesus não quer ser o
único perfeito às custas dos seres humanos, não quer, como único inocente, olhar com desdém para a
humanidade a sucumbir sob o peso de sua culpa, não pretende fazer triunfar alguma nova idéia de um novo ser
humano sobre os destroços duma humanidade fracassada por causa da própria culpa. Mas ele também não quer
inocentar-se da culpa, sob a qual os seres humanos morrem. Um amor que abandonasse o ser humano em sua
culpa não teria como objeto o ser humano real.
Como quem adota uma postura claramente responsável frente à existência histórica dos seres humanos,
Jesus se torna culpado. O teólogo alemão insiste em lembrar: é apenas o seu amor que o torna culpado. É a
partir do seu abnegado amor, de sua não-pecaminosidade que ele entra na culpa dos seres humanos e a assume.
Em Jesus, estar sem pecado e carregar a culpa se fundem de forma indissolúvel. Como aquele em tudo igual a
nós, exceto no pecado, ele assume a culpa dos irmãos, e, sob o peso desta culpa, se revela como quem não tem
pecado. Com isso deixa à comunidade cristã o ensino de que toda ação representativa responsável tem sua
origem neste Jesus Cristo culpado sem pecado. Exatamente porque e quando é responsável, porque e quando
tem em mira somente o próximo, porque e quando emana do abnegado amor ao irmão real, não pode querer
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eximir-se da comunhão da culpa humana. Todo aquele que age responsavelmente se torna culpado porque
Jesus assumiu a culpa de todos os seres humanos.
Por outro lado, quem, na responsabilidade, quer eximir-se da culpa, desliga-se, também, do mistério
salvífico da inocente culpabilidade de Jesus Cristo e não tem parte na justificação divina que envolve este
acontecimento. “Quem valoriza a tal ponto sua inocência pessoal que acaba por colocá-la acima da
responsabilidade pelos outros, acaba por ficar cego para a culpa mais funesta que com isso chama sobre si,
cego também para o fato de que a verdadeira inocência consiste em entrar na comunhão da culpa dele por
amor aos semelhantes. Por Jesus Cristo, faz parte da essência da ação responsável que o inocente se torne
culpado por seu amor abnegado” (p. 134).
A reflexão sobre a consciência retorna dentro do debate sobre responsabilidade. Se esta obrigasse o ser
humano a agir contra a consciência, condenaria a si mesma. Certo é que jamais é recomendável agir contra a
própria consciência, aspecto em que os tratados de ética concordam. A questão é que a consciência é a voz
que, provindo duma profundeza situada além da vontade e da razão próprias, clama pela unidade da existência
humana consigo mesma. Ela aparece como acusação pela unidade perdida e como advertência contra a perda
de si mesmo. Seu objetivo primordial não é um determinado fazer, mas um determinado ser. Protesta contra
um fazer que põe em perigo esse ser na unidade consigo mesmo, por isso a consciência permanece uma
instância que não é nada recomendável contrariar.
Desrespeitar a voz da consciência tem necessariamente como conseqüência a destruição do próprio ser,
o desmoronamento da existência humana, e não uma entrega que faça sentido. A ação contra a consciência
está na linha da ação suicida contra a própria vida, e não é por acaso que as duas muitas vezes estão ligadas
entre si, insiste Bonhoeffer. Uma ação responsável não poderia violentar a consciência nestas circunstâncias.
Mas a pergunta de maneira alguma se esgota com isso. Se a voz da consciência procede da periclitante unidade
do ser humano consigo mesmo, deve-se perguntar também pelo conteúdo dessa unidade. Quem está por trás da
consciência? Não será, em primeiro lugar, o próprio eu na sua presunção de ser “como Deus”, no
conhecimento do bem e do mal?. A voz da consciência no ser humano natural é a tentativa do eu de justificar-
se perante Deus, os seres humanos e diante de si mesmo em seu conhecimento do bem e do mal e de conseguir
subsistir nessa autojustificação.
O eu, que não tem apoio em sua individualidade contingente, recorre a uma lei geral do bem e tenta
achar a unidade consigo mesmo na concordância com ela. A voz da consciência tem, portanto, sua origem e
seu objetivo na autonomia do próprio eu. Vai esforçar-se para concretizar essa autonomia. Se Cristo,
verdadeiro Deus e verdadeiro se humano, se tornou o ponto de unidade da minha existência, a consciência
continua sendo, formalmente, a voz do meu ser autêntico para a unidade comigo mesmo, só que essa unidade
não pode mais ser concretizada pelo regresso à minha autonomia alimentada pela lei, mas na comunhão com
Jesus Cristo.
A consciência natural revela-se como a autojustificação mais ímpia. Ela só é superada pela consciência
libertada em Jesus Cristo e que chama para a liberdade comigo mesmo em Jesus Cristo. Se ele se tornou a
minha consciência, isso significa que posso encontrar a unidade comigo mesmo entregando o meu eu a Deus e
aos semelhantes. Assim, Jesus Cristo é o libertador da consciência, para que esta sirva a Deus e ao próximo,
libertador da consciência também e de forma especial ali onde o ser humano se integrar na comunhão da culpa
humana. A consciência libertada da lei não haverá de temer a participação em culpa alheia por amor ao
semelhante, antes haverá de revelar-se justamente nisso em toda a sua pureza. A consciência libertada não é
temerosa como aquela comprometida com a lei, mas amplamente aberta para o próximo e suas necessidades
concretas.
Um conceito que se corresponde com a responsabilidade é a liberdade. A responsabilidade pressupõe
substancialmente a liberdade, e a liberdade só pode subsistir na responsabilidade. Esta é a liberdade humana
dada exclusivamente no comprometimento com Deus e com o próximo. O ser responsável vive sob risco
permanente. Sem cobertura por parte de seres humanos, circunstâncias ou princípios, mas levando em conta
todos os fatores humanos, o ser humano responsável age na liberdade do seu próprio eu. O fato de que nada
pode defendê-lo, desagravá-lo, a não ser ele mesmo e seu ato, é a prova de sua liberdade.
A base de sustentação da ação da pessoa responsável se dá no comprometimento com Deus e o
próximo, como os encontramos em Jesus Cristo. Esse comprometimento constitui a única forma de obter plena
liberdade; tal ação acontece totalmente no âmbito da relatividade, na penumbra que a situação histórica
espalha sobre bem e mal; acontece em meio às incontáveis perspectivas em que tudo que é real aparece. Nesta
perspectiva, Bonhoeffer passa ao tema da obediência. Obediência sem liberdade é escravidão, liberdade sem
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obediência é arbitrariedade. A obediência disciplina a liberdade, a liberdade enobrece a obediência. A
obediência e fé andam juntas porque estas vinculam a criatura ao Criador. Tal é a importância que é possível
afirmar que a obediência sabe o que é bom e o faz, a liberdade arrisca agir e confia a Deus o julgamento sobre
bem e mal. A obediência cumpre cegamente, a liberdade tem olhos abertos...
O ser humano responsável, que está entre comprometimento e liberdade, que, como comprometido,
tem que arriscar a ação em liberdade, não acha a sua justificação nem no compromisso, nem na liberdade, mas
apenas naquele que o colocou nessa situação humanamente impossível e lhe cobra a ação. O responsável
entrega a si e sua ação a Deus. Para agir como pessoa responsável, obediente e livre é preciso compreender
que o mandamento de Jesus não justifica um domínio da Igreja sobre o governo, do governo sobre a família,
ou da cultura sobre governo e Igreja, ou qualquer possível relação de domínio que aqui possa ser imaginada.
Só age assim quem compreende que o mandamento de Jesus Cristo governa Igreja, família, cultura e governo,
mas de tal forma que liberta cada um desses mandatos para cumprir a função que lhe compete.
Para Bonhoeffer, o fundamento do comportamento ético é a compreensão de que a realidade do mundo
e a realidade de Deus estão reconciliadas na realidade de Cristo. Para participar na realidade de Cristo o ser
humano é tornado uma pessoa responsável, que adota ações de acordo com a realidade e o cumprimento da
vontade de Deus. Há dois parâmetros para determinar a vontade de Deus em qualquer situação concreta: a
necessidade do próximo, e o modelo de Jesus de Nazaré. Sem que possamos ter conhecimento do bem e do
mal, não há outros parâmetros e nem certeza moral neste mundo. Não há justificação no avanço para a nossa
conduta. Todas as ações devem ser dirigidas ultimamente a Deus para julgamento, e nenhuma pode escapar à
confiança depositada na misericórdia e na graça de Deus.

Da busca da Verdade ao encontro de Deus


Pois vem, festa máxima no caminho para a eterna liberdade; morte, destrói as fatigantes
correntes e muralhas de nosso corpo passageiro e de nossa alma cega, para que
finalmente vislumbremos o que nos é negado ver aqui. Liberdade, procuramos-te longamente
em disciplina, ação e sofrimento. Morrendo, te reconhecemos agora na face de Deus.

Por último, trata do tema da verdade, especialmente nas circunstâncias em que viveu. Não devemos a
palavra veraz a esse ou aquele, mas somente a Deus, lembrando que Deus não é um princípio universal, mas
“o Deus vivo que me colocou numa vida dinâmica e nela exige meu serviço. Quem fala de Deus não pode
riscar simplesmente o mundo real em que vive. Senão não estaria falando do Deus que em Jesus Cristo entrou
neste mundo, mas dalgum ídolo metafísico”, do que decorre que “o dever da veracidade devido a Deus tem
que tomar forma concreta no mundo. Nossa palavra não deve corresponder à verdade em princípio, mas
concretamente. Veridicidade que não é concreta não tem caráter de verdade perante Deus” (p. 202).
A mentira não apenas nega a verdade, mas se contrapõe a ela. “Mentira é a recusa, negação e
destruição consciente e proposital da realidade como foi criada por Deus e nele subsiste, na medida em que
isso acontece por palavras e por silêncio. Nossa palavra tem a função de, em harmonia com a palavra de Deus,
expressar a realidade como ela é em Deus; nosso silêncio deve ser o sinal para o limite que foi colocado para a
palavra pela realidade como ela é em Deus” (p. 205). Falar a verdade supõe a competência de falar sempre
dentro dos limites do ofício concreto que me incumbe. Quando se desconsidera esses limites, a palavra se
torna agressiva, molestadora, arrogante e, criticando ou elogiando, ofensiva.
Ler os textos de Dietrich Bonhoeffer e as obras a respeito dele nos leva a pensar teologicamente em
termos limítrofes. Risco, dor perigo, morte, perda, dominação, corrupção de consciências e até legitimação
eclesial. Não é possível compreender sua teologia biblicamente embasada, comprometida, crítica e ácida sem
estudar o contexto de sofrimento físico e moral, com os reflexos que esse fato teve para a cristandade no velho
continente. A relevância de Bonhoeffer e de outros/as religiosos/as e místicos/as, como Edith Stein, não vem
apenas do martírio imposto a milhares de cristãos e a milhões de judeus, mas da reflexão teológica que nos
chega do seu martírio, da atualidade dessa reflexão e da proximidade histórica com nosso tempo, atualizando o
sentido de seu testemunho.
Entre as cartas e documentos da prisão, colecionados especialmente no livro Resistência e Submissão,
estão orações. Concluo com uma que conjuga solidão e confiança:
8
Clamo a ti, ó Deus! Em mim há trevas, mas tu és a luz; sinto-me só, mas tu não me abandonas; estou
desanimado, mas em ti encontro ajuda; estou inquieto, mas em ti sinto tranqüilidade; em mim há
rancor, mas em ti sinto paciência; não entendo os teus caminhos, mas tu sabes por onde devo andar.

*Doutorando em Teologia (PUC-Rio)

RIBEIRO, A. C. . Agarrar valentemente o real: Bonhoeffer, dos 60 anos do martírio ao centenário do nascimento.
Atualidade teológica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 22, p. 131-143, 2006. ISSN 1676-3742

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5999603915184645

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