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MÚSICA NAS CIDADES.

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MÚSICA NAS CIDADES


Manuel Fernandes Vicente
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FICHA TÉCNICA

TÍTULO : Música nas Cidades


AUTOR : Manuel Fernandes Vicente
manuel.f.vicente@clix.pt
DESIGN E PAGINAÇÃO : Nuno Murjal e Telma Leonor Ferreira
EDITORA : Formalpress, Publicações e Marketing, Lda.
COLECÇÃO : Rés XXI
IMPRESSÃO : Gráfica Xecompex

Reservados todos os direitos de autor. Esta publicação não pode ser


reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo
electrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia
autorização da Editora e do Autor.

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FILIAL : Praça Marquês de Pombal, nº 70, 4000-390 Porto


TELEFONE | FAX : 225 029 137

1ª edição - Maio de 2008


TIRAGEM : 750 Exemplares
ISBN : 978-989-8143-03-7
DEPÓSITO LEGAL :
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Manuel Fernandes Vicente
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ÍNDICE

PREFÁCIO 9

OS SONS URBANOS COMO SUSSURROS DA ALMA


DAS CIDADES QUE A TÊM 11

ROCK PROGRESSIVO DE AMESTERDÃO 17

A REMBETIKA DE ATENAS 23

A HAKA E OUTROS RITMOS DE AUCKLAND 29

NOVA CANÇÓ DE BARCELONA 35

THE BERGEN WAVE 41

ROCK PLANANTE DE BERLIM 47

ART FILM MUSIC DE BOMBAIM 51

TRIP- HOP, O SOM DE BRISTOL 57

O MOVIMENTO BUDAPEST TÁNCHÁZ REVIVAL 63

TANGO DE BUENOS AIRES 67

CANTERBURY SCENE 71

CHICAGO BLUES 75

FADOS E BALADAS DE COIMBRA 81

COLOMBO BAILA MUSIC 87

MAGIC SOUND OF CUSCO 93

DETROIT POP - SOUL 97

DANÇAS SINCRÉTICAS DE DÍLI 103

A CENA TECNO-POP DE DUSSELDORF 109

EL SON DE LA HABANA 113


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HONOLULU E OS RITMOS DO UKULELE 117

KRONCONG DE JAKARTA 123

JEREZ DE LA FRONTERA,
“O ÚTERO PRIMOGÉNITO DO FLAMENCO” 129

O SKA E O REGGAE DE KINGSTON 135

O KHOOMEI DE KYZYL 141

O AFRO- BEAT DE LAGOS 147

BALADAS DE INTERVENÇÃO DE LISBOA 151

FADO DE LISBOA 157

LISBOA, GERAÇÃO ROCK RENDEZ-VOUS 163

O MERSEY BEAT EM LIVERPOOL 169

MOVIMENTO MOD DE LONDRES 175

OS BLUES-ROCK PSICADÉLICOS DE LONDRES 179

PUNK- ROCK DE LONDRES 185

ACID FOLK-ROCK DE LOS ANGELES 191

EIXO OPELOUSAS/ EUNICE /LAFAYETTE/ BATON ROUGE 197

LA MOVIDA MADRILEÑA 203

BRANYO E FARAPEIRA DE MALACA 209

EIXO URBANO - DEPRESSIVO MANCHESTER/ LIVERPOOL 215

MARRABENTA DO MAPUTO 221

OS RITMOS GNAWA DE MARRAQUEXE 227

MEMPHIS, AQUI NASCEU O ROCK’ N’ ROLL 233

MEMPHIS SOUL 239

MORNAS E COLADERAS DO MINDELO 245

O KRAUTROCK LIBERTÁRIO DE MUNIQUE 249


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LA CANZONE NAPOLETANA 253

NEW YORK DISCO SOUND 259

NEW YORK FOLK REVIVAL 263

NEW YORK FREE JAZZ 267

NEW YORK JAZZ- ROCK 273

O RAP DE NOVA IORQUE 279

NEW ORLEANS JAZZ STYLE 285

O RAÏ DE ORAN 291

A ONDA YE-YÉ DE PARIS 297

POP-ROCK E DISSONÂNCIAS À MODA DO PORTO 301

BOSSA NOVA DO RIO DE JANEIRO 307

SAMBA NO RIO DE JANEIRO 313

OS BLOCOS AFRO DE SALVADOR DA BAHIA 319

NUEVA CANCIÓN DE SANTIAGO DO CHILE 325

SAN FRANCISCO SOUND 331

GRUNGE, O SOM DE SEATTLE 335

SHEFFIELD MUSIC SCENE 339

SINES, CAPITAL DA WORLD MUSIC 345

TOKYO CLUB SCENE 351

CLASSICISMO E ROMANTISMO EM VIENA 357


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PREFÁCIO

Os géneros musicais, é sabido, não nascem de geração


espontânea. São fruto de um tempo e de um lugar, filhos de outras
músicas que, por uma razão ou outra, se juntaram num determinado
sítio para dar origem a um som novo, a um género diferente, a um
movimento ou revolução musical. E, não por acaso, as maternidades de
muitas músicas, de muitas novas músicas, são cidades – a urbe como
ponto de convergência de povos e de culturas, cadinho de dinâmicas
sociais e de evoluções históricas, lugar de convulsões políticas ou da
fixação de religiões. Neste livro, Manuel Fernandes Vicente demonstra
(e desmonta) de forma brilhante a ligação umbilical, de raiz, de muitos
géneros musicais com as cidades que lhes deram origem, num trabalho
de pesquisa e análise valiosíssimo, sociológica e musicologicamente
sério e profundo, não se confinando a prateleiras pré-definidas ou
seguindo caminhos fáceis. Aqui podemos encontrar as razões por que o
jazz só poderia ter nascido em Nova Orleães ou o tango em Buenos
Aires, mas também avança resolutamente para o fado de Lisboa e a
música «urbano-depressiva» do eixo Manchester-Liverpool, para o afro-
-beat de Lagos e para a música romântica de Viena, para o krautrock de
Berlim e Munique e para o hip-hop de Nova Iorque, para o gnawa de
Marraquexe ou a música electrónica de Tóquio, desenhando um atlas
abrangente, vivo e alargado de muitas músicas novas ou antigas.
Diga-se, paralelamente, que tive o prazer de ler estes textos
quase em primeira mão, quando era chefe-de-redacção do BLITZ e
tinha como função editá-los. Foi um prazer, na altura, lê-los. Como foi
um prazer, agora, voltar a lê-los e saber que, mais que merecidamente,
estes textos estão finalmente compilados em livro. Este que aqui
começa e que, tenho a certeza, será lido por muita gente com o mesmo
prazer que senti. Um grande abraço, Manuel.

ANTÓNIO PIRES | JORNALISTA DE MÚSICA

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OS SONS URBANOS COMO SUSSURROS DA


ALMA DAS CIDADES QUE A TÊM

Uma colecção de sons e ressonâncias, citando as bandas, o espírito do


local, a filosofia das épocas e os estilos musicais de algumas das mais
notáveis cidades do Mundo

As reservas ecológicas e os parques naturais são sem grande


contestação os espaços onde hoje se salvaguardam os mais preciosos
valores ambientais. Em relação à música moderna e popular são,
porém, os espaços urbanos que lhe garantem a sobrevivência em toda
a linha. A música pop-rock e outras derivações deste estilo axial têm
sido ressonâncias das cidades com mais alma. As vibrações e as vivên-
cias urbanas, com as suas dinâmicas de tensão/ repouso ou as particu-
laridades dos seus sonhos/ frustrações são fontes imaginárias que
repassam e se tornam a matriz dos seus acordes. Não que haja nesta
relação de cumplicidade entre os músicos e a sua envolvência um deter-
minismo sonoro rígido. Mas há, sem dúvida, um espírito e uma cultura
compartilhados pela comunidade que neles se revêem e a partir dos
quais se criam sonoridades onde é possível muitas vezes identificar,
hélas, as particularidades dessa comunidade urbana. Pode não ser já à
maneira da antiga cidade de Esparta, cujas melodias marcadas pelas
flautas inspiravam os seus guerreiros quando se aproximavam do
campo de batalha. Mas, observando com atenção algumas comu-
nidades, é difícil não ver nas suas cenas musicais verdadeiras radi-
ografias dos estados de alma que atravessam.
É verdade que o sol e as praias que inspiram Los Angeles con-
trastam com a profundidade fria dos fiordes que envolvem Bergen ou
com a severidade que o deserto estende até Marraquexe. Mas as
grandes diferenças são sobretudo as interiores, o libertarismo crónico e
militante de San Francisco, o ambiente descontraído de Rio de Janeiro
ou a elegância hipnótica de Sheffield e a arte de Salvador da Bahia, que

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usou a música para interferir positivamente nas suas favelas.


Friedrich Hegel gostava de notar que “a propriedade é uma
extensão da personalidade”. E, em certo sentido, a música é igualmente
uma extensão – e um aprofundamento – da individualidade das cidades,
que lhe dão sopro e inspiração ao ponto que alguns estilos se tornam
seus verdadeiros ex-libris.
Mais que uma química, é decerto alguma alquimia o que se esta-
belece entre os sons e as metrópoles que lhes devolvem os ecos mod-
elados pelas suas vivências sociais e pelas pulsões derivadas da sua
economia, da cultura urbana ou da própria história.

Cidades, reservas da “biodiversidade” musical

Vivemos uma época marcada pela homogeneização cultural,


política, económica e linguística, a que, concerteza que com excessiva
precipitação, já se chamou o fim da História. Também as músicas mod-
ernas vivem a ameaça deste tudo se tornar demasiado igual numa espé-
cie de estado de entropia máxima, onde as fórmulas tudo reduzem e as
diferenças se aniquilam. São as cidades com carácter e espessura cul-
tural as verdadeiras reservas que garantem a sobrevivência do que
resta da diversidade das cadências melódicas nos tempos que correm.
São as músicas que vêm das suas ruas, que transpiram as realidades
que aí se cruzam no quotidiano. Mas há cada vez menos cidades a man-
ter esta identidade, a rever no espelho o narcisismo da sua diferença
musical. É a defesa desta verdadeira biodiversidade à escala musical
que os burgos ainda garantem. Como verdadeiros habitats da criação
cultural para apreciação dos melómanos.
Muitos estilos estão associados a zonas portuárias, verdadeiros
cadinhos de encontros e desencontros, choques culturais de mundos
tantas vezes opostos na condição social ou na geografia, lugares onde
se acumulam tensões e se condensam (literalmente) saudades, como

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são os casos de Buenos Aires, Liverpool, Nova Orleans ou a própria


Lisboa. Noutros casos são mudanças em massa de comunidades étni-
cas social e culturalmente identificadas, que, fixadas numa nova área
geográfica, procuram adaptar- se e nessa integração criam novos
géneros de ritmos na nova interacção com instrumentos que lhes eram
desconhecidos e a que emprestam novos fraseados, como foram os
casos do jazz e dos blues, do cajun da Louisiana ou do flamenco
andaluz. Outras vezes as sonoridades mimetizam os ruídos de fundo, os
comboios sempre cúmplices nos blues, as estradas ou a descolagem
dos aviões, como se procurassem esculpir e dar ordem e lirismo a
matérias sonoras improváveis. Noutras alturas são os logros da vida
que dão vida às cenas urbanas, tecendo a matriz para sons espectrais,
sombrios e paradoxalmente tão belos como os dos Joy Division e do
eixo urbano-depressivo Manchester/ Liverpool do final dos anos 70.

O espírito do local e as filosofias de vida

Em geral há uma filosofia de vida compartilhada nas cenas das


melomanias urbanas. São hippies, são rappers, são punks ou provos,
mods, freaks ou grungers. Em muitos casos as bandas desfazem-se e
refazem-se em ritmo elevado e os músicos apresentam grande rotativi-
dade, girando e flirtando de umas para as outras entre rupturas que
nunca o serão e reconciliações que também nunca o chegarão a ser ple-
namente, como foi o caso limite da cena de Canterbury que, como
noutros casos, teve a sua época de ouro, mas ainda hoje mantém algu-
ma actividade a que dificilmente se poderá chamar jurássica.
Há que reconhecer que alguns estilos foram obras de estúdios
servidos de produtores geniais, outros de etiquetas em fase de afir-
mação, outros ainda puras criações da comunicação social. Mas a maio-
ria saiu de movimentos cuja música reflectia o espírito dos locais e dos
tempos vividos. Épocas autênticas, seladas por intérpretes e bandas

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gravitando no centro ou nas órbitas de alguns city styles, que viveram


temporariamente dentro de verdadeiros tornados enquanto procuravam
os seus potes de ouro.
É desses lugares e dessas épocas, alguns dos quais menos
dados às luzes da ribalta, que o Blitz procurará dar conta numa
colecção de textos e fichas sobre algumas das músicas populares que
marcaram as últimas décadas e indiscutivelmente associadas às reali-
dades sociais, económicas e até históricas de algumas cidades do
Mundo.

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«Entender a relação entre a música e o cérebro é crucial para a compreensão


do homem»
OLIVER SACKS | NEUROLOGISTA

«A grande cidade é a primeira organização social um pouco análoga ao cére-


bro do homo sapiens – policêntrica, complexa e feita de inter-comunicações»

EDGAR MORIN | FILÓSOFO E SOCIÓLOGO


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ROCK PROGRESSIVO DE AMESTERDÃO


Na república dos provos e das bicicletas brancas da utopia

Cidade: Amesterdão (Holanda).

AMESTERDÃO
Período de notoriedade: A partir de 1965 e ao longo de toda a
década de 1970.

O estilo: Está marcado ora pela panóplia sinfónica e pela grandilo-


quência das derivas cósmicas ora pelas incursões de mellotron ou
improvisações controladas, mas recorre regularmente às tonalidades
acústicas, às flautas, aos madrigais e mesmo às referências medievais,
no que se afasta distintamente de muitas outras cenas do progressivo,
em grande afirmação na Europa dos anos 70. Amesterdão e o rock pro-
gressivo que se faz pela cidade são influenciados pelos blues, pelo jazz
e mesmo pela música clássica – mas é sobretudo o sopro dos provos,
jovens com afinidades com os hippies e que se auto-definem como
anarquistas, ecologistas e provocadores (donde resultou a abreviatura
pela qual ficariam conhecidos, que embala toda a comunidade).

Nomes de culto: Ekseption, Focus e Jan Akkerman.

Outros músicos e bandas de maior estatura: Ahora Mazda,


Album, Amsterdam, Ann Burbon, Anno Nu, Apron Srings, Bismarck,
Brainbox, Dutch, Gallery, Het, Groep 1850, Jaap de Wit, Jimmy Revon
and the Outsiders, Johnny Kendall and Heralds, Kaz Lux, Lobster,
Martin Dresden, The Maskers, Modesty Blase, Nits, The Outsiders,
Penny Wise, Pierre van der Linden, Pocomania, Rick van der Linden,
Robert Jan Stips, Temple, Thijs van der Linden, Thijs van Leer, Trace e
World.

Etiquetas: Philips e Emi Music.

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Uma das marcas ainda hoje mais evidentes para quem visita
Amesterdão e se insinua pela cidade dentro é o insólito império das bici-
cletas na paisagem urbana, facto quase pertencente à esfera do sagra-
AMESTERDÃO

do tal o evidente respeito (e prioridade) que a sua passagem inspira. À


distância de 40 anos do auge dos provos esta faceta podia já não ser
perceptível e talvez devesse ser tratada no capítulo dos resquícios
arqueológicos. Mas a verdade é que ninguém parece esquecer o
empenho e a luta dos provos no final dos anos 60. Esta tribo libertária,
um verdadeiro endemismo urbano de Amesterdão, que precedeu mesmo
os hippies antes de se arregimentarem atrás da flauta do encantamento
que os conduziria em cortejo até San Francisco, foi uma minoria activa
que deixou bem cunhada na cidade a sua presença e inspirou o impor-
tante movimento de rock progressivo de Amesterdão, um dos mais dis-
tintos de toda a cena progressiva dos anos 70.
Sendo a favor de soluções ecológicas eficazes e sustentadas já
na década de 60, os provos foram um dos primeiros grupos a afirmar a
contra-cultura e a insurgir-se contra muitas convenções sociais absur-
das. Uma delas era o incenso que a sociedade queimava em honra do
automóvel e das auto-estradas. Com alguma oposição das autoridades,
a verdade é que os provos conseguiram implantar uma rede de bicicle-
tas brancas em Amesterdão que poderiam ser utilizadas gratuitamente
por todos os cidadãos, sem qualquer inibição ou constrangimento no
uso ou no destino que quisessem seguir. Os polícias, contudo, apreen-
deram as bicicletas por alegadamente instigarem aos furtos e por não
aceitarem a noção de propriedade colectiva sobre as bicicletas, tal como
vinha a ser exercida. O certo, porém, é que se criou o hábito de andar
de bicicleta mesmo entre a população mais idosa e as bicicletas pas-
saram a gozar de um estatuto privilegiado na circulação dentro da
cidade – tudo porque nessa altura ganharam uma massa crítica sufi-
ciente, que as levou a imporem-se no caótico trânsito urbano.
Importante centro de lapidação de diamantes na junção dos rios
Amstel e Ij, Amesterdão beneficiou historicamente da destruição de

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Antuérpia e Gand pelos espanhóis, tendo-se transformado em porto de


abrigo para muitos refugiados flamengos e também judeus e de outras
religiões (para se resguardarem das perseguições dos católicos no

AMESTERDÃO
século XVII). Muitos artesãos tinham-se também já instalado em
Amesterdão e contribuído decisivamente para o seu proverbial ambiente
de tolerância. Esta sensibilidade para admitir e, mais do que isso,
respeitar o que é diferente (ou mesmo o que é exoticamente chocante),
parece igualmente ter ressonância no rock progressivo da cidade, que
recorre frequente a sonoridades exóticas – marcas que o distinguem do
progressivo europeu coetâneo, genericamente mais previsível e
estereotipado.
Situada abaixo do nível do mar, protegida com diques e recorta-
da por um curioso rendilhado de canais e pontes, onde qualquer espaço
é pretexto para aí dar nova vida a uma túlipa ou glicínia, a principal
cidade holandesa parece ser o local privilegiado para todos os ritos e
celebrações de tolerância, diálogo e solidariedade. O meio físico urbano
de Amesterdão encorajou múltiplas experiências entre a população e de
que os provos foram em certa medida catalisadores, tendo-se privilegia-
do a segurança, com os diques, e a intercomunicação, quer através dos
canais quer pelas mais de 400 pontes existentes na malha urbana.
Robert-Jasper Grootveld, inspirador dos provos e filho de um
anarquista holandês, esteve também na base de Amesterdão se ter tor-
nado particularmente liberal em relação ao consumo de haxixe e mesmo
em relação às práticas sexuais, tendo edificado um museu e demolido
muitos tabus relativos aos dois casos.
Grupo charneira de todo o movimento de rock progressivo na
capital holandesa, os Focus produziram álbuns essenciais e ombrearam
com os colossos britânicos do género. Jan Akkerman parecia acoplar na
sua invulgar técnica guitarrista todo o ambiente gerado pela contracul-
tura nas margens do Amstel. E o entrelaçado tecido pelas pontes e
pelos canais da cidade pareciam repercutidos magicamente na sua fi-
ligrana acústica, que não hesitava mesmo em socorrer-se de sonori-

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dades quase trovadorescas como se procurassem a velha cidade


medieval que se tornara refúgio de muitos burgueses e artesãos
perseguidos. Ouça-se a fabulosa faixa “House of the King” e a flauta
AMESTERDÃO

enfeitiçada de Thijs van Leer para melhor se avaliar a dimensão então


conseguida em toda a Europa pelos Focus. Os Ekseption foram outro
grupo bastante original gerado na metrópole holandesa, tendo con-
seguido conjugar sucessivos temas da música clássica – desde a fan-
tástica 5th de Beethoven às mais diversas sonatas, rapsódias e suites –
e adaptá-los ao léxico do seu original rock progressivo, onde pontifica-
va a trompete de Rein van der Broek e Rick van der Linden, um dos mais
talentosos e ecléticos teclistas europeus da cena progressiva.
A cena progressiva de Amesterdão, apesar de urdida na bitola
do movimento que dominou o rock na Europa do início da década de
1970, pareceu no entanto sempre algo dissonante em relação ao seu
padrão mais comum. Seja pela presença contínua de pontes, bicicletas
ou canais, o rock da cidade reflecte as nuances da contracultura e dos
vestígios deixados pela passagem do cometa dos provos. Adeptos da
ecologia e “editores de manifestos anti-autoritários tanto para charlatães
e sifilíticos, como para amoladores, anarquistas ou simples noctívagos”,
como fizeram constar no seu manifesto programático de 1965, onde já
mostravam não ter grandes ilusões quanto a mudanças na velha e prag-
mática Holanda, os provos deram, no entanto, um espírito especial à
capital holandesa. A ideia que prevalece é a da utopia: tudo pertence a
todos e nada é de ninguém, aproximando-se da máxima do filósofo
anarquista francês do século XIX Pierre- Joseph Proudhon, para quem
“a propriedade é um roubo”.

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Dez Álbuns:

The Outsiders Focus


Outsiders (1967) Mother Focus (1975)

AMESTERDÃO
Groep 1850 Amsterdam
Paradise Now (1969) Amsterdam Pink Elephant (1975)

Focus Rick van der Linden


Focus III (1972) G X 1 (1977)

Ekseption Brainbox
Ekseption 5 (1972) The Very Best Album Ever (2002)

Jan Akkerman Thijs van Leer


Tabernakel (1974) Introspection/ Introspection 2 (2003)

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LISBOA, GERAÇÃO ROCK RENDEZ-VOUS


Belos sons, “magníficos perdedores”

Cidade: Lisboa (Portugal).

LISBOA
Período dominante: Entre 1980 e 1990.

Características: O estilo foi abertamente catalisado pelos


responsáveis do Rock Rendez-Vous (RRV), a carismática sala de
espectáculos da rua da Beneficiência. Para além dos estímulos dados à
originalidade das bandas, induzindo mesmo à criação de algumas, cujos
elementos se agrupavam com o objectivo de participar nos seus
celebrados concursos de música moderna, o RRV patrocinou ainda a
concretização de alguns discos. Numa atmosfera envolvente e quase
familiar, o RRV deu palco, público e oportunidades únicas para grupos
de matriz pop-rock, a maioria da Grande Lisboa, se lançarem
posteriormente em carreiras mais ou menos convincentes ou
simplesmente sucumbirem logo a seguir à realização dos concursos.
Depois do ambiente das canções comprometidas e de mensagem
militante surgidas no período pós-Revolução dos Cravos de 1974, as
novas bandas surgem com propostas estéticas de ruptura com os
estereótipos musicais instalados em Portugal. Bebem influências da
estéticas urbano-depressivas de Manchester, dos T. Rex ou mesmo dos
Velvet Underground, mas algumas apresentam propostas de sons
verdadeiramente originais, prejudicadas por um amadorismo militante e
assumido que jamais as deixaria voar para lá da cena doméstica.

Bandas carismáticas: Mão Morta, Mler Ife Dada, Madredeus e Pop


Dell’Arte.

Outros nomes marcantes (inclui bandas que não sendo de


Lisboa conspiraram no chamado e reconhecido “espírito

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do local”): Adolfo Luxúria Canibal, Anabela Duarte, Anamar, Bye Bye


Lolita Girl, Croix Sainte, Delfins, Ena Pá 2000, Essa Entente, Ezra
Pound, Farinha Master, João Peste, GNR, Jovem Guarda, Heróis do
LISBOA

Mar, Linha Geral, Lobo Meigo, Luís San Payo, Melleril de Nembutal,
More República Masónica, Nuno Rebelo, Ocaso Épico, Pedro Ayres
Magalhães, Quinta do Bill, Radar Kadafi, Rádio Macau, Requiem Pelos
Vivos, Ritual Tejo, Rongwrong, Rui Reininho, Santa Maria Gasolina em
Teu Ventre, Sapo, Sétima Legião, Sitiados, THC, Xana e Xutos e
Pontapés.

Editoras afins: Dansa do Som, Ama Romanta, Polygram, EMI,


Polydor e Fundação Atlântica.

Capela Baptismal: Rock Rendez-Vous, na zona do Rego.

Em 1980, ano da abertura do Rock Rendez-Vous (RRV), os


jovens estudantes, artistas, boémios, jovens empregados e sem
emprego de Lisboa viviam simultaneamente o início da ressaca dos
ideais políticos descobertos ou reavivados em Abril de 1974 e a ilusão
de uma prosperidade grátis e praticamente automática por via da
adesão anunciada de Portugal à Comunidade Económica Europeia.
Mas, por razões inexplicáveis para os economistas – para quem todos
os aspectos que vão para lá do Produto Interno Bruto e dos índices de
rentabilidade per capita, além de transcendentes, são puro desperdício
– havia demasiadas incertezas e inquietudes no ar. A música
portuguesa na sua generalidade ou se tornara demasiado militante de
causas políticas, em que os jovens deixaram de acreditar, ou era tão
previsível como uma briga verbal colectiva num autocarro da Carris em
hora de ponta. E havia no ar influências tão diversas como as que
sopravam da cena pós-punk de Manchester, o electro-pop inspirado nos
Human League, o rock-glam, algumas sonoridades mais ou menos

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góticas e o rock alternativo e independente a começar desde logo pelos


The Smiths.
De alguns aspectos do espírito e da filosofia do RRV partilham

LISBOA
bandas que tiveram forte impacto e bastante popularidade, abraçando
carreiras profissionais e correspondendo a movimentos de música
moderna com abrangência europeia. Os Xutos e Pontapés adquiriram
um estatuto maior a nível nacional, tal como os fabulosos Rádio Macau,
os Heróis do Mar (navegando quase sempre acima das polémicas
semeadas), os Delfins, os urbano-depressivos Sétima Legião e, já
transbordando do espartilho da fronteira, os Madredeus. Mas foram os
nunca suficientemente reconhecidos Mão Morta, Mler Ife Dada e Pop
Dell’ Arte quem, na sua condição de “magníficos perdedores”, melhor
traduziram a cena lisboeta. Tiveram (e têm ainda) cultos a que não são
alheias as imagens carismáticas de Adolfo Luxúria Canibal, Nuno
Rebelo e João Peste. Mas o que melhor traduz o movimento foi a forma
como procuraram dar às suas músicas os mesmos traços de
modernidade que também ajudavam a dar de Lisboa uma imagem
europeia — e recuperando as tradições e a evocação dos feitos épicos
além-mar ou lançando-se na pura inovação sónica.
Lisboa era por este tempo uma cidade que se abria ao exterior e
Mário Guia, antigo elemento dessa lenda dos anos 60 que foi o grupo
Ekos, soube como ninguém captar o espírito do local e a alma do tempo
para criar uma sala de espectáculos que até 1990 foi o lugar geométrico
das realidades menos alinhadas e ortodoxas da capital.
O facto é que a geração de música alternativa de Lisboa só foi
possível por indução do próprio RRV, que funcionou não só como
catalisador mas também como estímulo que, com as suas várias
iniciativas, incluindo os concursos de música moderna e o apoio a
gravações e a apresentações públicas, permitiu e esteve na base da
formação de grupos, muitos deles de inegável qualidade.
Para Lisboa a década de 1980 foi um tempo de evidentes
mudanças no sentido da modernização e da abertura às ideias e aos

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investimentos provenientes da Europa. A fisionomia urbana da cidade


alterou-se, mas as maiores mudanças tiveram-nas as mentalidades.
Perdendo algumas das suas características mais provincianas (a
LISBOA

taberna, o bairro, o convívio de vizinhos nos pátios, o fado tradicional),


a cidade das sete colinas adquiriu uma dimensão cosmopolita e uma
imensidade de tribos urbanas que se identificavam com as imagens e os
estereótipos góticos, urbano-depressivos, punks tardios, avant ou retro
igualmente importados como canga da aproximação ao cosmopolitismo.
E o RRV era o refúgio e o ponto de encontros, fricções e sobretudo
música que atraía os jovens de Lisboa e da área urbana envolvente.
Por lá passaram bandas das mais diferentes linhagens, mas a
ideia que prevalece é a de que as que mais o marcaram foram os losers
desse tempo, grupos excepcionais que foram a imagem de marca do
RRV, uma sala ela própria devorada pela vertigem da modernidade e
que acabou por ao encerrar ser também um símbolo do “imolação” do
movimento. Particularmente inovadores na cena alternativa do RRV
foram os Mão Morta, a banda de origem bracarense liderada por Adolfo
Luxúria Canibal, a quem se devem momentos de invulgares e
contraditórias emoções naquela sala de espectáculos. Com uma
sonoridade que vai mais além que todas as influências musicais
somadas, os Mão Morta tornaram-se, no seu minimalismo estranho,
belo e avesso à cultura de massas, um grupo de culto. Não fosse essa
obstinação e corriam o sério risco de se tornarem num dos colectivos
mais importantes do rock cultivado da Europa. Igualmente com uma
liderança carismática, foi no RRV que os Pop Dell’ Arte desconcertavam
quem os ouviu por esses tempos com uma pop bela e descomplexada,
a que o seu razoável amadorismo só emprestava uma maior
autenticidade. Oportunidade também para recordar os utópicos Mler Ife
Dada e a pop tremendamente contagiosa dos Radar Kadafi uma das
bandas mais injustamente ignoradas no turbilhão de sonoridades que
irrompiam do Rendez-Vous.

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Dez Álbuns:

Rádio Macau Sétima Legião


Rádio Macau (1984) Mar d’Outubro (1987)

LISBOA
Pop Dell’ Arte Xutos e Pontapés
Free Pop (1987) Circo de Feras (1987)

Radar Khadafi Mão Morta


Prima Donna (1987) Mão Morta (1988)

Madredeus Linha Geral


Os Dias da Madredeus (1987) Linha Geral (1988)

Mler Ife Dada Mão Morta


Coisas Que Fascinam (1987) Mutantes S.21 (1992)

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SINES, CAPITAL DA WORLD MUSIC


Festival Músicas do Mundo sob o signo de Vasco da Gama e
dos Descobrimentos

SINES
Cidade: Sines (Portugal).

Realização do festival: A partir de 1999 e até à actualidade, habi-


tualmente no último fim-de-semana de Julho, mas com tendência a alon-
gar-se para os dias anteriores.

Locais de celebrações: Castelo de Sines, com as alternativas na


avenida da praia, para os espectáculos que possam tirar partido dos
espaços abertos, e no Centro de Artes da cidade e na povoação de
Porto Covo, para os nomes e bandas de formato mais intimista.

Critério de selecção de músicos e bandas: Apesar da presença


significativa de músicos portugueses e de países integrados no univer-
so da lusofonia, os responsáveis pela programação do Festival Músicas
do Mundo (FMM) garantem que o “programa transcende os limites de
qualquer legitimação histórica” sugerida pela epopeia dos
Descobrimentos. Assenta sobretudo “numa grande exigência de quali-
dade e diversidade, sem qualquer concessão á indústria discográfica ou
a pressões de qualquer tipo”, garante o director criativo Carlos Seixas.
A presença dos músicos pela primeira vez em Portugal é também um
critério utilizado, sendo possível igualmente esperar de futuro um
reforço da presença de músicos e estilos influenciados pela presença da
cultura musical e da língua portuguesa em regiões tão longínquas como
Goa, Timor ou o próprio Hawai. A organização do FMM está presente
todos os anos em feiras mundiais dedicadas à world music onde contac-
ta não só com os responsáveis de outros festivais como com os músi-
cos e agentes do circuito.

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Director criativo e mentor do FMM: Carlos Seixas.

Pilares organizativo e financeiro: Câmara Municipal de Sines e


SINES

Galp.

Nome de Referência: David Murray — independentemente de


actuar ou não, o notável saxofonista tenor norte-americano está todos
os anos presente no festival.

Outros músicos e bandas adoptivas que deixaram rasto na


cidade: Alamaailman Vasarat (Finlândia), Amadou & Miriam (Mali),
Buraka Som Sistema (Portugal), Carlos Nuñez Band (Espanha), Cristina
Branco (Portugal), Dazkarieh (Portugal), Femi Kuti (Nigéria), Francis
Hime (Brasil), Gaiteiros de Lisboa (Portugal), Ivo Papasov & His
Wedding Band (Bulgária), Kronos Quartet (EUA), Hedningarna (Suécia),
Hermeto Pascoal (Brasil), Mabulu (Moçambique), Marc Ribot (EUA),
Mayra Andrade (Cabo Verde), Mariem Hassan (Sahara Ocidental),
Samurai 4 (Japão), Simentera (Cabo Verde), Taraf de Haidouks
(Roménia), Toumani Diabaté (Mali), Trilok Gurtu (Índia), Vaguement la
Jungle (França), Ustad Mawash (Afeganistão), Värttinä (Finlândia) e
Yat-kha (Tuva- Federação Russa),

Sobe-se a longa escadaria de acesso ao castelo e contempla-se


a baía e o mar abrigado pelas muralhas da fortaleza e capaz de
enfrentar a imensa parcela do Atlântico que é dada ao olhar. Berço do
navegador Vasco da Gama, é difícil não encarar ainda hoje Sines como
um espaço de permuta com o mar. É quase instantâneo associar por
instinto a bela cidade marítima às lendas povoadas de heróis longín-
quos, à faina do mar ou aos povos que vivem para além do azul do
oceano e que os Descobrimentos, de que Vasco da Gama foi parte
maior, resgataram para o imaginário do Ocidente. É todo este espírito

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de aventura e descoberta que é transportado desde 1999 pelo Festival


Músicas do Mundo (FMM). Uma verdadeira atmosfera de comunhão
cósmica quase sem se sair do perímetro emblemático do castelo onde

SINES
terá nascido a “alma” do inspirador do caminho marítimo para a Índia.
Como se num refluxo histórico, as muralhas — em vez de rechaçar
guerreiros —, aco-lhessem agora as músicas dos “novos mundos” que
Gama ajudou um dia a conhecer melhor.
“O FMM foi criado em 1999 tendo como objectivo principal o de
valorizar o castelo, hipotético berço do navegador, através de um acon-
tecimento que tentaria evocar os contactos inter-culturais a que as via-
gens de Vasco da Gama abriram caminho”, sublinha Carlos Seixas. O
director criativo e de produção do festival, adianta ainda que a filosofia
e o conceito do festival foi apostar desde o início na world music, numa
festa singular que divulgasse a diversidade e o conhecimento de outras
culturas através de música de qualidade e capaz de criar novos públicos
disponíveis para serem o suporte principal dessa nova aventura”.
A verdade é que o FMM, considerado já por vários críticos musi-
cais como um dos três mais importantes que se realizam na Europa de-
dicados à world music, prolonga um pouco o espírito de Vasco da Gama.
Não é só uma revelação para quem o desconhece — é, como diz Carlos
Seixas, “um festival para espectadores/ descobridores”. “O público é
diferenciado, de origem social e idades distintas, e foi-se conquistando
ao longo dos anos, muitos foram passando a ‘mensagem’ aos seus ami-
gos e conhecidos, e o acolhimento caloroso quer aos músicos quer aos
visitantes são fundamentais. Mas, além disso, há o charme do local
único que é o castelo, o facto de ser praticamente mais um serviço
público que um festival com um intuito comercial e a maior exposição
mediática de que tem beneficiado de ano para ano levaram já a que dos
1500 espectadores diários do primeiro festival se tenha passado para a
média de 10 milhares que ocorreu em 2006”, esclarece o responsável
pela programação das várias edições do FMM.
A interacção da cidade com o mar tem potenciado desde sempre

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várias iniciativas de grande escala na cidade. Ainda em plena década de


1970, quando Marcelo Caetano, chefe do Governo de então, decide
instalar junto à costa do concelho um enorme complexo industrial e por-
SINES

tuário, a vida de Sines sofreu em enorme impacto, mas a comunidade


sempre esteve virada para o oceano, fonte de vida, da pesca à gas-
tronomia e aos trabalhos no porto, mas também de ameaças — e lá está
o castelo e a sua enorme peça de artilharia a testemunhá-lo. Ainda no
período de domínio romano é provável que um molusco, o “thais
haemastona” já fosse aproveitado para a extracção de púrpura, óptima
matéria- prima para a indústria de tinturaria. Igualmente unidades de
salga e fornos para a produção de ânforas para a recolha de produtos
salgados foram encontradas junto a Sines, que terá estabelecido tam-
bém ligações marítimas com alguns portos do Mar Mediterrâneo.
Para Carlos Seixas a relação entre Sines e o FMM é reciproca-
mente de pertença e de orgulho. A cidade está consciente do sucesso
nacional e internacional do festival e também já compreendeu que “o
evento é uma mais-valia para a economia da região”.
A realização dos concertos no castelo estabelece entre os músi-
cos no palco e o público presente uma invulgar sensação de empatia e
solidariedade a que as muralhas envolventes emprestam uma validação
não só histórica como psicológica---e que dão ao momento uma cu-
nhagem de autenticidade que tem conduzido a performances soberbas
de muitos grupos que aí se reencontram em estado de sobreactivação.

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Dez Álbuns:
(Bandas presentes no FMM)

SINES
Hermeto Pascoal Mabulu
Slaves Mass (1977) Soul Marrabenta (2001)

Ivo Papasov and His Wedding Band Taraf de Haidouks


Orpheus Ascending (1989) Band of Gypsies (2001)

Carlos Nuñez Gaiteiros de Lisboa


A Irmandade das Estrellas (1996) Macaréu (2002)

Simentera Mariem Hassan


Raiz (1996) Songs of the Saharan Woman (2003)

Alamaailman Vasarat Trilok Gurtu


Vasaraasia (2000) Broken Rhythms (2004)

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