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OPRESSÃO? LIBERDADE?
EVANILDO BECHARA
SÉRIE PRINCÍPIOS
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a escola e a chamada crise do idioma
A crise com que a escola se defronta tem raízes mais profundas do que uma simples verificação da
escassez de recurso e do desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente
e discente.
A nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises independentes, mas
estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação da escola. Recebendo o aluno já possuidor
de um saber lingüístico prévio limitado à oralidade, a escola não o leva a desenvolver esse potencial —
enriquecendo a sua expressão oral e permitindo-lhe criar, paralelamente, as condições necessárias para
uma tradução cabal, efetiva e eficiente, expressiva e coerente (falando ou escrevendo) de suas idéias,
pensamentos e emoções.
A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade, que, de uns tempos para cá, seguindo
as pegadas de uma tendência mundial do após-guerra, privilegiou o coloquial, o espontâneo e ‘o
expressivo, renovando, consideravelmente, a língua popular e o argot.
Este movimento, positivo em sua essência, trouxe, pela incompreensão e modismo de muitos, uma
conseqüência nefasta, à medida que o privilegiamento da oralidade estimulou o desprestígio da
tradição escrita culta, já que se defendeu — sem ser praticado afetivamente pelos escritores, pois
nunca deixaram de contemplar a sua obra como arte — que o verdadeiro bom estilo é aquele que se
aproxima da espontaneidade popular, ou, então, aquele que se despe da artificialidade do estilo
cultivado. A desinformação das pessoas e a crescente substituição da leitura pelos meios de
comunicação de massa não permitiram ver o quanto havia de erro na suposição de que os modernistas,
aceitando a decisiva influência popular, admitiram todas as alterações de linguagem, ainda aquelas que
destruíam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”, como dizia Machado de Assis. “Tudo é
válido na língua, desde que se logre comunicar-se.”
A tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal modo que, no português do
Brasil, a distância entre o nível popular e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir,
acabará chegando a se parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo,
-com a distância entre um dialeto e outro.
A expansão vitoriosa da crônica, especialmente da crônica do quotidiano vazada em língua também do
quotidiano, alargou a influência do coloquial dentro da escola, já que as antologias para fins didáticos
são praticamente constituídas de crônicas.
O coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um elaborado e consciente
artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal no dia-a-dia de sala de aula. O resultado é
que os alunos, não sendo alertados para o propósito estilístico que ins pira a opção lingüística,
limitando-se a essa leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, a
oportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático, especialmente no campo
da sintaxe e do léxico.
E assim perde a escola o apoio que lhe poderia dar a literatura no aperfeiçoamento da educação
lingüística dos alunos.
A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu constituir-se
definitivamente, desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem seu objeto, suas tarefas e suas
metodologias. Apresentadas ora paralela ora conflitivamente, a verdade é que as teorias lingüísticas
ainda não chegaram a consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional-
integral do saber elocucion do saber idiomático e do saber “expressivo”.
A terceira crise é na escola, na medida em que, não se fazendo as distinções necessárias entre
gramática geral, gramática descritiva e gramática normativa, a atenção do professor se volta para os
dois primeiros tipos de gramática, desprezando justamente a gramática normativa que deveria ser o
objeto central de sua preocupação e, em conseqüência, despreza toda uma série de atividades que
permitiriam levar o educando à educação lingüística necessária ao uso efetivo do seu potencial
idiomático.
2
Linguagem e educação lingüística
“Tradicionalismo” e mudança
O título educação lingüística não é novo nem cedo conseguiu impor-se tal como hoje se procura
entender. Começou por merecer certa preocupação entre os lingüistas, passando depois a ser
considerado, entre pedagogos e professores, ç um domínio puramente técnico-didático. Hoje se
constitui num promissor campo de pesquisa e de resultados para a lingüística e a educação, pondo
claro, como bem disse o professor italiano Raffaele Simõne’, que a linguagem não é apenas uma
“matéria” escolar entre as outras, mas um dos fatores decisivos ao desenvolvi mento integral do
indivíduo e, seguramente, do cidadão.
Lá fora, os resultados de estudos empreendidos por conhecidos representantes da pesquisa lingüística e
educacional já repercutiram nos programas e currículos das universidades e das escolas de ensino
médio.
Entre nós, onde tem sido tênue o fluxo de influência científica dessas pesquisas, explodiu uma reação
ao que se convencionou chamar pejorativamente tradicionalismo e a mudança — que se fazia
necessária em vários pontos — acabou por produzir resultados desastrosos.
Ë oportuno lembrar que, de todos os componentes do currículo das escolas de ensino médio, foram os
textos destinados ao ensino de língua portuguesa os que mais sofreram com a onda novidadeira,
introduzindo, além da doutrina discutível, figuras e desenhos coloridos tão extemporâneos e
desajustados, que aviltaram o tradicionalismo e insultaram a dignidade por que sempre se pautaram os
textos escolares entre nós. A comparação entre um livro para ensino da língua portuguesa e outro para
o ensino da matemática, da história ou da geografia, quase nos leva a retirar o primeiro da linha do que
se costuma chamar compêndio didático, para incluí-lo no rol dos antigos e coloridos almanaques
distribuídos ao início de cada ano, como os tornados célebres almanaques do Capivarol, esquecido
produto farmacêutico. Muito lucrariam os alunos se esses produtos de uma pretendida revolução
educacional guardassem a dignidade e a soma de boas informações que caracterizaram o Almanaque
Garnier, por exemplo.
Já que estamos fazendo uma crítica a certas inovações perturbadoras e pouco producentes que muitos
compêndios, à luz de uma didática formal ou informal, pretenderam introduzir no ensino da língua
portuguesa, na década de 60, cabe um comentário acerca do privilegiamento da língua oral,
espontânea, em relação à língua escrita.
Deveu-se o fenômeno, cremos nós, a duas ordens de fatores: uma de natureza lingüística, outra de
natureza política. As ciências da linguagem vieram patentear que as línguas históricas são fenômenos
eminentemente orais e que o código escrito outra coisa não é senão um equi valente visível do código
oral, que, de falado e ouvido, passa a ser escrito e lido. Assim sendo, a lingüística norte-americana,
especialmente ela, pôde desenvolver rígidos e precisos modelos de descrição de línguas indígenas que
jamais conheceram, de modo sistemático, a trans posição escrita do discurso falado.
Esta possibilidade de uma metodologia com rigor científico aplicada a línguas ágrafas parece que
estimulou em muitos estudiosos bloomfieldianos certa desatenção ao código escrito, considerando-o
até campo que extrapolava a investigação lingüística, Tal atitude chegou a provocar a crítica de
Gleason, autor de um dos melhores manuais de lingüística descritiva de orientação norte-americana.
Essa visão distorcida da realidade incentivou outro passo adiante dado por alguns lingüistas, também
em geral norte-americanos; a crítica à natureza normativa da gramática tradicional, com a defesa de
que se deve deixar a língua livre de qualquer imposição. Um desses lingüistas, Robert Hall, em 1950,
chegou a intitular ou a aceitar esse título pela editora a um livro seu de divulgação lingüística: Leave
your language alone [ a sua língua em paz], título que, a bem da verdade ou de alguma mudança de
orientação, foi alterado na 2. edição.
Portanto, vieram pela porta da própria lingüística e se instalaram nas salas de aula de língua portuguesa
esse privilegiamento do código oral eni relação ao escrito e certa desatenção a normas estabelecidas
pela tradição e conservadas ou recomendadas no uso do código escrito padrão.
Por isso, assistiu-se entre nós, na década de 60, a um insurgimento contra o ensino da gramática em
sala de aula; em vez de dotá-la de recursos e medidas que a tornassem um instrumento operativo e de
maior resistência às críticas que justamente lhe eram endereçadas desde há séculos, resolveram muitos
professores e até sistemas estaduais de ensino aboli-Ia, sem que trouxessem, à sala de aula, nenhum
outro sucedâneo que, apesar das falhas, pudesse sustentar-se pelo espaço curto de uma única geração.
A bem da verdade, cabe-nos dizer que já se assiste, a partir da década de 70, a uma reação a esse
estado de coisas, e os livros didáticos mais recentes voltam a insistir no padrão culto da linguagem,
quer nas recomendações da gramática normativa, quer através da inclusão e seleção de textos,
literários ou não, que refletem esse padrão.
Ainda insistindo nessa ordem de idéias, é interessante lembrar a indulgência e até certo elogio com que
Ferdinand de Saussure comenta a tarefa da gramática tradicional, de inspiração grega. Logo na
introdução do Cours de linguistique générale, ao referir-se à polissemia do termo gramática, diz que
essa gramática tradicional está “fundada na lógica e desprovida de toda a visão científica e
desinteressada da própria língua”, porquanto o que se pretende é “unicamente dar regras para
distinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito distante da observação
pura, o seu ponto de vista é necessariamente restrito” 2
A outra ordem de fatores procede da política, ou, para não desmerecer uma atividade nobre, de certas
teses populistas e demagógicas, especialmente no que concerne à educação lingüística de adultos,
segundo as quais de vem os “oprimidos” ficar com sua própria língua e não aceitar a da classe
dominante.
Ora, a educação lingüística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber lingüístico
prévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação social, mas também não lhe furta o
direito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimônio inicial. As normas da classe dita “opressora” e
“dominante” não serão nem melhores nem piores, ou as normas da língua literária não serão nem
melhores nem piores do que as usadas na língua coloquial. Como bem lembrou o professor Raffaele
Simone , “enquanto a posição populista perpetua a segregação lingüística das classes subalternas, a edu
cação lingüística deverá ajudar a sua liberação”.
A tese populista do ponto de vista democrático é tão falha quanto a tese que combate, pois ambas
insistem num velho erro da antiga educação lingüística, já que ambas são de natureza “monolíngüe”,
isto é, só privilegiam uma variedade do código verbal, ou a modalidade dita “culta” (da classe dita
“dominante” ou “opressora”), ou a modalidade coloquial (ou da classe dita “oprimida”).
Gramática e ensino
Quem lida com o ensino da gramática na escola sabe que uma língua histórica (como a portuguesa, a
inglesa, a alemã, a italiana etc.) é um conjunto de sistemas que apresentam entre si coincidências e
diferenças, tais como observamos na comparação de outros sistemas lingüísticos. De modo que
nenhum falante conhece toda uma língua histórica, mas sim usa uma variedade sintópica (um dialeto
regional), sinstrática (um nível social) e sinfásica (um estilo de língua). claro que esse mesmo falante
está à altura de entender mais de um sistema lingüístico de sua língua histórica, pois que está em
condições de reconhecer que existem outros falantes que utilizam a língua diferentemente dele. Chega
até t perceber uma diacronia, pois que reconhece em muitos usos o ar da arcaicidade ou de novidade
que assumem certos usos que pratica — para extrair deles recursos estilísticos — ou que ouve ou lê a
outrem.
Assim sendo, a rigor, cada modalidade da língua tomada homogênea e unitariamente, ou, em outros ter
mos, toda língua funcional — como a entende o lingüista Eugenio Coseriu — tem a sua gramática
como reflexo de uma técnica lingüística que o falante domina e que lhe serve de intercomunicação na
comunidade a que pertence ou em que se acha inserido.
Como bem lembra esse mestre, “constitui aspecto fundamental da linguagem o manifestar-se ela
sempre como língua: conquanto ‘criação’, isto é, produção contínua de elementos novos, e, portanto,
neste sentido, ‘liberdade’, por outro lado, a linguagem é, ao mesmo tempo, ‘historicidade’, técnica
histórica e tradição, vínculo com outros falantes presentes e passados: em suma, solidariedade com a
história atual e com a história anterior da comunidade dos falantes (. . .). Não se trata, entretanto, de
uma limitação da liberdade (como vez por outra se pensa), mas da dimensão histórica da linguagem,
que coincide com a própria historicidade do homem. Aliás, a liberdade humana não é arbítrio
individual, é liberdade histórica e, como quer que seja, a língua não se ‘impõe’ ao indivíduo (em bora
isso freqüentemente se costume dizer): o indivíduo ‘dispõe’ dela para manifestar sua liberdade de
expressão”.
Cada porção de falantes homogênea e unitária não se equivoca lingüisticamente ao usar a técnica
histórica específica para manifestar sua liberdade de expressão. Neste sentido, cada falante é um
poliglota na sua própria língua, à medida que dispõe da sua modalidade lingüística e está à altura de
descodificar mais algumas outras modalidades lingüísticas com as quais entra em contacto, quer aquela
utilizada pelas pessoas culturalmente inferiores a ele, como aquelas a serviço das pessoas
culturalmente superiores a ele.
Na escola antiga, o professor cometia o erro de entender como a língua aquela modalidade culta —
literária ou não — refletida no código escrito ou na prática oral que lhe seguia o modelo, de todo
repudiando aquele saber lingüístico aprendido em casa, intuitivamente, transmitido de pais a filhos.
Hoje, por um exagero de interpretação de “liberdade” e por um equívoco em supor que uma língua ou
uma modalidade é “imposta” ao homem, chega-se ao abuso inverso de repudiar qualquer outra língua
funcional, que não seja aquela coloquial, de uso espontâneo na comunicação cotidiana.
Em ambas as atitudes há realmente opressão, na medida em que não se dá ao falante a liberdade de
escolher, para cada ocasião do intercâmbio social, a modalidade que melhor sirva à—mensagem, ao
seu discurso.
No fundo, a grande missão do professor de língua materna — no ensino da língua estrangeira o
problema é outro — é transformar seu aluno num poliglota dentro de sua própria língua,
possibilitando-lhe escolher a língua funcional adequada a cada momento de criação e até, no texto em
que isso se exigir ou for possível, entremear vá rias línguas funcionais para distinguir, por exemplo, a
modalidade lingüística do narrador ou as modalidades praticadas por seus personagens.
Assim sendo, haverá opressão em “impor”, indistintamente, tanto a língua funcional da modalidade
culta a todas as situações de uso da linguagem, como a língua funcional da modalidade familiar ou
coloquial, nas mesmas circunstâncias, a todas as situações de uso da linguagem, pois que ambas as
atitudes não recobrem a complexa e rica visão da língua como fator de manifestação da liberdade de
expressão do homem.
Por outro lado, haverá “liberdade” quando se entender que uma língua histórica não é um sistema
homogêneo e unitário, mas um diassistema, que abarca diversas realidades diatópicas (isto é, a
diversidade de dialetos regionais), diastráticas (isto é, a diversidade de nível social) e &afásicas (isto é,
a diversidade de estilos de língua), e que cada porção da comunidade lingüística realmente possui de
direito sua língua funcional, que resulta de uma técnica histórica específica.
Cada valor lingüístico que a descrição científica depreende só se opõe realmente a cada outro valor
dentro de uma mesma língua funcional.
Comparar, na descrição, um valor lingüístico de determinada língua funcional com outra língua
funcional é cometer, na sincronia, o mesmo erro que antigamente se fazia ao se comparar determinado
fato em dois ou mais estádios históricos da língua.
Por exemplo, ao se ensinar o uso tripartido dos demonstrativos este/esse/aquele, não se dirá que esta é
a prática da língua portuguesa, mas de certas línguas funcionais do português, como, por exemplo, a
modalidade literária culta. Realmente, quem quiser utilizar-se, por algum estímulo cultural ou
conveniência estilística — mas sempre dentro de sua “liberdade” de opção na escolha da língua
funcional que melhor lhe sirva ao intuito de expressão — da língua funcional culta literária, terá de
observar essa sintaxe dos demonstrativos.
Já, por exemplo, essa norma é distinta da norma da língua familiar ou coloquial (ai. Umgangssprache),
em que a divisão se faz apenas entre este uma vez que se muda a óptica da distinção: na modalidade
culta literária a distinção se faz em consonância com as três pessoas do discurso, enquanto na
modalidade familiar ou coloquial, a distinção é entre os conceitos “perto”/”longe”. É claro que, dentro
da liberdade de criação de que goza cada língua funcional em se servir dos valores lingüísticos do
sistema que se sobrepõe a todas as línguas funcionais concretizadas no discurso, a modalidade
coloquial ou familiar pode retomar a distinção (aqui uma distinção sobre outra distinção, isto e,
“longe”/”perto” + “pessoa do discurso”) que leva em conta as pessoas do discurso e fazer uso de
expressões como:
1ª pessoa — perto esse aqui
2ª pessoa — perto esse aí
3ª pessoa — longe aquele ali, acolá
Em vista disto, não se pode, a rigor, fazer uma descrição lingüística de uma língua histórica em sua
plenitude; a descrição só pode abranger um corpus homogêneo e unitário, vale dizer, uma língua
funcional: sintópica, sinstrática e sinfásica.
As variedades lingüísticas que não apresentam oposição de valor são apenas fatos de arquitetura da
língua, ou de estrutura externa, de uma língua funcional.
As variedades que apresentam oposição de valor, constituem fatos de estrutura, ou de estrutura interna,
tomando-se aqui os termos arquitetura e estrutura nas acepções propostas por L. Flydal e retomadas
por Eugenio Coseriu.
A não-consideração desses fatos e de outros, que os modernos lingüistas vêm pondo em relevo, tem
permitido certa crítica injusta à gramática escolar, que é vista como a descrição da própria língua em
sua totalidade histórica, como a descrição do único uso possível da língua. O ensino dessa gramática
escolar, normativa, é vá lido, como o ensino de uma modalidade “adquirida”, que vem juntar-se (não
contrapor-se imperativamente!) a outra, “transmitida”, a modalidade coloquial ou familiar.
Como bem lembrou o inesquecível mestre Matoso Câmara, “a gramática normativa É em o seu lugar à
parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente
perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações
normativas”.
Acredito que o ensino da gramática normativa resulta da possibilidade de que dispõe o falante de optar,
no exercício da linguagem, pela língua funcional que mais lhe convém à expressão. Resulta, portanto,
da “liberdade” de escolha que oferece uma língua histórica considerada em sua plenitude.
É uma língua “adquirida” cuja técnica histórica lhe cabe ser “ensinada”.
Transformar essa língua funcional no modelo universal para todas as situações de expressão é um ato
de “opressão” tanto quanto privilegiar a modalidade coloquial e familiar sobre todas as demais línguas
funcionais à disposição dos falantes.
Problema diferente é acompanhar a descrição de cada língua funcional — a que serve de base à
gramática escolar normativa e aquela que reflete o conjunto de normas da modalidade familiar ou
coloquial — e as alterações por que passa. É claro que há necessidade constante de, em cada uma
delas, verificar se as normas depreendidas num determinado momento persistem noutro momento do
devenir histórico da linguagem humana.
Educação lingüística hoje
Trataremos agora de pôr em relevo em que aspectos técnicos e operativos a moderna concepção de
educação lingüística contrasta com a antiga e de que maneira dessas
diferenças resultam novas condições de funcionamento da linguagem, para cuja consecução serão
necessárias mu danças, às vezes profundas, na metodologia do ensino da língua portuguesa e no
preparo dos professores que a irão ensinar. Entretanto não se veja a educação lingüística que aqui se
propõe como uma superposição de dados lingüísticos, psicológicos, didáticos e sociolingüísticos,
deixando aos que nos acompanham a tarefa ingrata de fazer-lhes a síntese ou, quase sempre, o
embaralhamento. Conforme acentua Raffaele Simone, desta educação lingüística pro posta terão de
surgir conseqüências muito sérias. Entre es tas, a exigência de que toda a produção de materiais
didáticos para a escola seja profundamente renovada nas idéias, procedimentos e estratégias, à luz do
confronto entre a ação científica da universidade e a da experiência dos professores a quem está
confiada a tarefa operativa da educação lingüística.
Como observa ainda Raffaele Simone , o sistema de educação lingüística tradicional, contra o qual nos
batemos, é “a manifestação específica de um programa educacional global, cujo sinal instintivo era e é
ser discriminatório e seletivo, autoritário e injusto; . é, enfim, o rígido sis tema de processos
pragmáticos e organizacionais em que este complexo de teoria e ideologia pode transpor-se à atividade
educativa quotidiana: os currículos (com suas preferências, suas exclusões, suas ênfases), as atividades
didáticas (com os mecanismos que tendem a valorar a criança ou que, ao contrário, a ignoram), a
organização geral da atividade escolar (com seus horários, com sua seca separação entre as
“disciplinas”, com o português reduzido a disciplina entre as outras e como as outras), a formação dos
professores (com sua total, mas não casual, ignorância das propriedades do potencial lingüístico que
têm de ensinar) “.
O centramento na linguagem
O primeiro grande ponto que distingue a educação lingüística aqui proposta, da tradicional, é que ela
agora pretende deixar de ser uma educação centrada na língua para centrar-se na linguagem. Significa
isto que a educação lingüística anseia hoje sair do antigo glotocentrismo, para extrair todos os recursos
de uma organização pronta para “poder significar”, no dizer do lingüista inglês M. A.
K. Halliday, que amplia a expressão com que Saussure se refere à linguagem como organização pronta
“para falar” 6
Como a linguagem é uma pura faculdade, torna-se possível que o homem se expresse através de sinais
fônico
-acústicos (como nas “línguas” entendidas no seu sentido mais geral), ou de sinais pertencentes a
“línguas” (aqui entendidas em sentido restrito, como códigos de comunicação) não-verbais.
Centrado como era o aprendizado na língua verbal escrita e nas suas regras de estrutura e
combinações, punha-se de lado o complexo e rico papel da linguagem no ato de comunicação entre
pessoas que vivem em sociedade.
Está aqui, cremos, o ponto nevrálgico de uma antiga discussão, que, bem entendido, poderá oferecer
orientações mais seguras, mais estimulantes e mais produtivas entre “saber português” e “saber
gramática”, duas capacidades diferentes, posto que extremamente conexas.
As funções da linguagem
Outro campo fértil de pesquisa e de âmbito operativo é o que diz respeito às funções da linguagem, ou
seja, os diversos fins a que se destinam os enunciados lingüísticos. As funções da linguagem, já postas
em evidência por Bühler, mereceram desde cedo a preocupação dos integrantes do Círculo Lingüístico
de Praga que sobre elas, especialmente Roman Jakobson, escreveram páginas que se consideraram
definitivas até o final da década de 60. Como sabemos, levando em conta os cinco elementos
necessários a toda comunicação lingüística — emissor, receptor, contexto, código e contacto —
Jakobson distinguiu as seis seguintes funções: referencial (centrada a mensagem no contexto), emotiva
(no emissor), conativa (no receptor), fática (no contacto), metalingüística (no código) e poética (na
mensagem).
No início da década de 70, Halliday, em estreita ligação com o grupo de Basil Bernstein, retomou, em
ter mos radicalmente novos, a problemática das funções da linguagem e elaborou, sem pretender
esgotar, uma pro posta de sete funções: instrumental, reguladora, interativa ou interpessoal, pessoal,
heurística, imaginativa e representativa.
A primeira--função, a mais ligada aos modelos da linguagem da criança, é a instrumental, através da
qual se usa a linguagem para obter que determinadas coisas sejam feitas; é a função do Eu quero. A
segunda função, intimamente relacionada com a instrumental, é a reguladora, quando se usa a
linguagem para regular o comportamento de outrem, a ponto de determinar que se faça ou se deixe de
fazer algo desse modo, e não de outro: Você deixará a mamãe muito triste se não for dormir agora.
Muito próxima da função reguladora é a função interpessoal, que consiste no uso da linguagem para
estabelecer uma interação entre a pessoa e os outros, para incluir ou excluir esses outros do grupo a
que a pessoa pertence, para impor status ou para contestar um status imposto, enfim, para manifestar o
humor, o ridículo, a decepção e a persuasão.
A quarta função é a pessoal, que, muito próxima da anterior, usa a linguagem para manifestação de sua
própria individualidade. Como bem diz Halliday , não se está aqui falando simplesmente de uma
linguagem como expressão de desejos e atitudes, mas sim e também de um elemento pessoal na função
interativa da linguagem. A função heurística da linguagem consiste na indagação da realidade, no uso
da linguagem para agir como instrumento na solução de problemas, na aprendizagem ou no conheci
mento de como a linguagem torna essa pessoa capaz de explorar o ambiente em que se insere ou que
tem diante de si. A função imaginativa estabelece uma relação entre a pessoa e o seu ambiente, mas o
faz de modo diferente. Aqui a pessoa se serve da linguagem para criar seu próprio mundo,
eventualmente imaginário, mas como é desejado. Finalmente, a função representativa, através da qual
se faz uma comunicação sobre algo, se expressam pensa mentos.
Halliday chega a adiantar, com base numa conhecida tese de Bernstein, que, se é fato que o insucesso
escolar decorre principalmente de uma insuficiência lingüística, esta insuficiência deve ser entendida
como ignorância ou controle inadequado das funções da linguagem.
Por outro lado, lembra que há limitações no pro cesso de apresentação e aprendizagem, por parte da
criança, das funções da linguagem, devendo o professor estar atento à evolução psicocronológica do
aluno, bem como funções ou formas de funções mais complexas só lhe podem ser levadas mediante
procedimento educ centrado nesse objetivo. Ê dentro dessa prospectiva, segundo Raffaele Simone 8,
que é possível reinterpretar em termos mais inteligentes e atuais a conhecida oposição bernsteiniana
entre “código restrito” e “código elaborado”, que não se diferenciariam pela amplitude de vocabulário
e de sintaxes que compreendem, mas pelo insuficiente controle das funções ou pelo controle de uma
lista reduzida de funções.
Para R. Simone , sem entrar em pormenores, a pro posta de Halliday está mais próxima dos objetivos
da educação lingüística do que as funções apontadas por Jakobson, e acentua que desenvolver a
linguagem, em todas as suas funções, “significa não apenas dotar a criança de um cômodo instrumento
para superar as dificuldades técnicas impostas pela educação, mas, e sobretudo, permitir-lhe o acesso a
uma variedade de atmosferas que d’outra maneira lhe estariam vedadas ou só lhe seriam parcialmente
acessíveis: o conhecimento (ainda o científico, pelo menos nos níveis iniciais, consoante as
importantes indagações de Vygotskij), a socialização, a percepção de si mesma enquanto organismo
funcionante e enquanto membro de uma unidade cultural definida, a estabilização do próprio caráter, e
assim por diante. Por outro lado, desenvolver apenas algumas funções da linguagem é o mesmo que
limitar a formação da criança, reduzindo-a âmbitos a que lhe dá acesso a restrita lista de funções que
conheça. Saber fazer com a linguagem tudo o que é permitido fazer não significa tão-somente adquirir
capacidades lingüísticas, porém apropriar-se de uma gama de capacidades de outro gênero,
estreitamente vinculadas à evolução global da pessoa”.
Educação lingüística e sistema educacional
A educação lingüística orientada por um modelo teórico com base científica e com possibilidades de
ser operacionalizada a ponto de promover modificações e enriquecimentos na competência lingüística
de provocar, como natural conseqüência, uma reforma de currículo e de atividades didáticas.
O currículo tradicional que se põe em execução com vistas à educação lingüística se mostra, em geral,
na prática, antieconômico, banal, inatural e, por isso mesmo, improdutivo. Antieconômico por ensinar
aos alunos fatos da língua que eles, ao chegarem à escola, já dominam, graças ao saber lingüístico
prévio (como a função distintiva dos fonemas, a morfologia flexiva e a sintaxe elementar); banal,
porque o tipo de informações que são subministradas aos alunos nada ou pouco adiantam à capacidade
operativa do falante, limitando-se, quase sempre, a fornecer-lhes capacidade classificatória, e, como a
língua não é um rol de nomenclatura, a banalidade do aprendizado atinge as proporções de um novo
suplício de Tântalo; inatural, porque muitas vezes segue o caminho estruturalmente inverso à direção
do desenvolvimento lingüístico dos alunos, partindo dos componentes lingüísticos não dotados de
significação para os dotados dela; por exemplo, da fonética e fonologia para a morfologia e, depois, a
sintaxe e a semântica.
É nosso dever enfrentar esse problema, concorrendo para sua solução. Mas, para esta luta, não basta a
colaboração dos que militam na escola de todos os níveis; as autoridades federais e estaduais deverão
concorrer com os recursos, sempre parcos, de que dispuserem, e o grande concurso que não poderá
faltar é o da sociedade brasileira como um todo, pois o destino da educação se confunde com o próprio
destino dessa mesma sociedade.
O papel do professor de língua materna
A escola como um todo harmônico e cada matéria como um componente desta orquestra têm como
escopo e fim essencial a cultura integral dos educandos.
A tarefa do professor de língua materna no que tange à execução de uma política de educação
lingüística deve ampliar-se e enfileirar-se no rol dos componentes curriculares que permitam chegarem
os alunos a essa cultura integral de que falam muitos programas de ensino secundário.
Desde logo, convém ressaltar que não é só através da aula de língua portuguesa que o aluno chegará a
essa cultura integral; todas as matérias que lhe são ministradas concorrem para esse objetivo maior.
Mas acreditamos que é na aula de língua portuguesa que se abre maior espaço para tais oportunidades.
Ao entrar no mundo maravilhoso das informações que veiculam os textos literários e não-literários,
modernos e antigos, terá o professor de língua materna a ocasião propícia para abrir os limites de uma
educação especificamente lingüística. Compete-lhe primeiro ministrar aos seus alunos conteúdos
capazes de levá-los à compreensão do mundo que os cerca, nos mais variados campos do saber.
Também é certo que não desejamos ampliar a tarefa do professor portuguesa, já de si complexa e di
fícil, para transformá-lo num professor de cultura geral; mas queremos insistir no fato de que tal
professor, com base nas informações de um material que constante e amplamente utiliza em aula,
pode, ao lado da educação lingüística que lhe compete especificamente ministrar, oferecer a seus
alunos numerosos subsídios ou para diretamente enriquecer a sua cultura nas áreas do saber, ou os
estimulando a ler e consultar uma bibliografia especializada para que atinjam essa cultura integral.
É também evidente que o. primeiro mestre a se beneficiar desse enriquecimento cultural dos
educandos é o próprio professor de língua materna, porquanto, ampliando os seus conhecimentos
numa área de maior extensão, os alunos terão primeiro mais assunto para comunicar a seus
semelhantes, e depois estarão mais aptos a traduzi-los com maior eficiência e com maior precisão
idiomática.
Também desejamos enfatizar que esta nossa visão não simplesmente repete um conhecido
procedimento didático de correlação horizontal de matérias constantes dos cursos de 1.0 e 2.0 graus,
mas o enriquece com o aproveitamento de outras ciências que podem ser trazidas à sala de aula, sem
preocupação de rigorosa sistematização. São informações ministradas ao sabor da oportunidade, mas
veiculadas com o propósito certo de contribuir para a cultura integral do aluno.
A primeira área do saber a merecer a constante preocupação formativa do professor de língua materna
é a própria linguagem e a sua manifestação concreta através das línguas históricas (portuguesa,
inicialmente). Melhor do que nós, di-lo o genial lingüista italiano Antonino Pagliaro:
“Como em todas as ciências, o valor humano da gramática, antes de ser didático e normativo, é
formativo. Ele leva a mente a refletir sobre uma das criações mais importantes e humanamente mais
vinculativas, de cuja constituição, de outro modo, nos não preocuparíamos mais do que com o
mecanismo da circulação do sangue ou da respiração (pelo menos enquanto funcionam bem!). Com
tudo a palavra é uma atividade consciente, e a adesão a um sistema lingüístico diferente daquele a que
pode ríamos chamar natural, como a aquisição de uma língua comum, é, em substância, um fato de
ordem volitiva. A reflexão sobre a constituição e os valores desse sistema desenvolve e aperfeiçoa a
consciência lingüística que é também uma consciência estética; simultaneamente e por meio das
análises das correlações e das oposições que constituem o seu caráter funcional, habitua a mente a
descobrir no pensamento discursivo as formas que foram
elevadas a uma função cognoscitjva mais alta no pensa mento racional” 10
O contacto com uma língua nos permite observar numerosos fatos de ordem extralingüístjca que atuam
nas relações entre palavras e coisas, língua e pensamento, O primeiro deles é, sem dúvida, o que vários
lingüistas denominam “afetividade” e que vem a ser uma série de alterações e desvios causados na
língua pelos estados psíquicos emocionais em que está envolvido o falante. Estas transformações
afetam todo o material lingüístico, dos sons à estrutura das palavras, da seleção vocabular à construção
das frases. Nesta ordem de fatores, viram também alguns psicanalistas, com Freud à frente — e, às
vezes, com certo exagero —, a origem de muitos erros de fala e de escrita nos chamados pensamentos
marginais, que, existentes com repressão no subconsciente, reaparecem e influem no enunciado de
fosSos pensamentos, sem que disso, muitas vezes, nos demos conta.
As pesquisas da linguagem
Estes estados afetivos se traduzem por complexos mecanismos lingüísticos e extralingüísticos que os
falantes deflagram no seu potencial lingüístico e que têm merecido análises dos investigadores da
linguagem humana.
Não só a utilização artística dos fonemas, o trânsito do acento intelectual ao acento afetivo, a perda da
força expressiva de certos vocábulos que passam a elementos gramaticais banalizados, a colocação do
adjetivo com re percussões no sentido do sintagma, mas também o emprego de determinados
componentes lingüísticos servem para sugerir situações psicológicas ou até marcas de traços
emocionais de personagens. Ë interessante, por exemplo, o emprego que da interjeição hein faz José
Lins do Rego para caracterizar exclusivamente os estados de pressão psicológica nas situações
anormais que enfrenta o capitão Lula de Holanda no romance Fogo morto, como, por exemplo, nesta
passagem, onde o excesso de repetição parece querer pôr pelos olhos do leitor esta particularidade:
— Amizade — gritou Seu Lula — então o senhor me aparece para me ameaçar e ainda me fala em
amizade, hein?
— Pois é o que lhe digo, estou na paz.
— Não faço acordo nenhum, hein? não faço acordo nenhum, hein? Amélia, vem cá.
E quando Amélia chegou, o homem se levantou com respeito.
— Olha, Amélia, este homem está aí com a história de
(p. 178 da 10..a ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1970.)
O estudo dos elementos vivos da língua, especial mente da língua falada como investigou a disciplina
conhecida pelo nome de geografia lingüística — conforme a praticaram Gilliéron, Jaberg e Jud, entre
outros —, mostrou as conseqüências advindas da necessidade que sente o homem de exprimir-se com
clareza, evitando confusões ou ruídos na mensagem, provocados especialmente pela homonímia ou
homofonia. Por outro lado, estas pesquisas mostram a pouca eficácia expressiva dos vocábulos de
pequeno volume fonético, o que leva, quase sempre, a serem os monossílabos substituídos, no devenir
histórico, por concorrentes de maior extensão. Parece que se repete na vida da linguagem o mesmo
princípio de sobre vivência do mais forte em detrimento do mais fraco, t’aI como ocorre na vida e
seleção animal. Dentro deste princípio, ou muitos monossílabos não resistem à ação do desgaste
fonético através do tempo, ou o vocábulo afetado aumenta, com auxílio de elementos prepositivos ou
pospositivos, o seu volume fonético e garante a sua sobrevivência na língua, quando não opta por
buscar uma nova palavra, do próprio acervo doméstico ou de em préstimo a Outro idioma.
Outra lição que as pesquisas da vida da linguagem nos revelam é a íntima relação entre língua e
cultura, no pressuposto de que a história da língua significa, para os adeptos da chamada escola
idealista — com Vossier à frente —, história artística no sentido mais lato do termo, pois representa um
ramo da história da cultura. Mudado o eixo da causalidade lingüística para o campo da história
cultural, tenta-se buscar para as transformações ocorridas no idioma razões •diferentes das que
comumente a escola positivista prescreve. Assim, por exemplo, o incremento do chamado artigo
partitivo em francês passou a ser explicado, pelos idealistas, não mais pela criação nova com que
contou essa língua suprir o enfraquecimento e posterior ausência da pronúncia do -s final, por volta de
1300, p a oposição gramatical singular/ /plural, mas por uma nova atitude espiritual do povo francês
que, nessa época, se acostumou a tratar o todo com visão de comerciante, para quem tudo é objeto de
medida e tráfico, contável e divisível.
Ainda sem sair do campo das ciências lingüísticas, pode o professor ampliar o conhecimento reflexivo
do idioma nacional e do mundo objetivo que circunda o falante através do estudo e análise metódica
do vocabulário, importante e extensa zona da língua que, pelo me nos na concepção tradicional, escapa
à jurisdição da gramática. Estudando atentamente o vocabulário, estabelece o professor, perante seus
alunos, a estreita relação que existe entre as palavras e as coisas que, como já preceituava este sempre
atual Comênio na sua Didactica magna, em 1627, não devem ser estudadas separadamente, “uma vez
que as coisas separadas das palavras nem existem, nem se entendem; mas enquanto estão unidas,
existem aqui ou além e desempenham esta ou aquela função”
Infelizmente entre nós não surtiram os efeitos esperados as inteligentes propostas, no âmbito do
aprendizado do vocabulário, de Charles Bally, no famoso Traité de stylistique française; nem mesmo
os esforços do padre Carlos Spitzer no seu precioso Dicionário analógico da língua portuguesa, nem os
do Prof. Firmino Costa no seu Vocabulário analógico, nem os do Prof. Antenor Nascentes com o
precioso Tesouro da fraseologia brasileira, nem tampouco as pesquisas de João Ribeiro nas Frases
feitas e nas Curiosidades verbais representaram estímulos suficientemente fortes para que daí se
passasse a um es tudo sistemático do léxico português dentro do âmbito da educação lingüística em
nível de 1.0 e 2.° graus. Só modernamente contamos com tímidos ensaios cuja influência benfazeja
ainda não se fez sentir.
Em livro didático e nas excelentes e sempre atuais Instruções metodológicas para execução do
programa de português que redigiu em 1942 para o Ministério de Edu cação e Cultura, só conhecemos
a exceção do mestre Sousa da Silveira que, especialmente nos Trechos seletos, deu várias boas
amostras de como se pode interessar inteligentemente o aluno para, através do estudo do vocabulário,
alargar os seus horizontes de cultura, relacionar a língua portuguesa com outras áreas do saber humano
e despertar no educando o gosto do termo próprio ou a preocupação da busca da palavra mais
expressiva.
Enveredando pelo estudo do vocabulário colhido em textos literários, encontra o professor ensejo
suficiente para alargar os horizontes culturais de seus alunos. Uma passagem como aquela de Machado
de Assis, no famoso Apólogo da agulha e do novelo de linha, quando o escritor compara os dedos
ágeis da costureira, preparando o vestido da baronesa, com
“os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética”
permite ao mestre variadas informações: a primeira, de ordem lingüística, sobre o valor de galgo em
contraposição a cão, cachorro, ressaltando o aspecto literário do termo em relação a seus
correspondentes ou similares da mesma área semântica, mas nem por isso com eles combináveis nesta
e noutras situações contextuais; aí repousa o primeiro componente daquilo que Machado chamou, com
propriedade, “a cor poética”. O outro componente é a alusão à fonte, da Mitologia, pois que Diana era,
entre os romanos, a deusa da caça. Está aberto o caminho para o professor mostrar o quanto o texto
literário em língua portuguesa deve a esse recurso poético da Mitologia, de modo que o seu
conhecimento se torna imprescindível a quem desejar descodificar corretamente as freqüentes alusões
que prosadores e especialmente poetas fazem às divindades mitológicas greco-romanas.
Velhos costumes
As vezes, a língua é repositório de velhos costumes que se apagaram e por isso mesmo, sem a
interveniência da explicação do professor, a palavra ou expressão se mostra ao aluno totalmente
destituída de sua força significativa. Quem não conhece, por exemplo, o modo de dizer:
“Isso não lhe custou nem um copo d’água”?
Pois bem. A expressão é, como lembrou o nosso maior folclorista Luís da Câmara Cascudo, com base
em Alexandre Herculano, uma reminiscência de multas mínimas para o homicídio do magistrado em
conseqüência da de negação de justiça 12
Outro costume lembrado pelo referido folclorista é o puxão de orelha aos estudantes rebeldes à boa
disciplina ou ao bom ritmo de estudos. Para os romanos, as orelhas eram a sede da memória, pois
estavam consagradas à deusa Memória, Mnemosine. O puxão de orelha valia por um processo
mnemônico para que o faltoso não se esquecesse de suas obrigações. Daí o costume de puxar as
orelhas a alguém para que se lembre de alguma coisa, usança vigente nos tempos modernos. Por isso é
que na sátira Apokolokintosis, Sêneca faz que Hércules puxe a orelha de Diéspiter para lembrar-lhe
que deveria favorecer a Cláudio na seqüência dos elogios fúnebres dirigidos a esse imperador num
esforço a mais para a divinização.
Talvez até, por extensão semântica e valorização expressiva, esteja nessa relação entre orelha e
memória, para denotar aquilo que pelas suas qualidades é digno de ser lembrado, o estímulo iniciador
do tão antigo quanto enigmático gesto de pegar no lóbulo da orelha e exclamar complementariamente
É da pontinha, é da pontinha da orelha, ou, de maneira sintética, é daqui.
O gesto parece antiqüíssimo, e de Portugal chegou até nós. Os literatos portugueses registraram o gesto
e a expressão, e os vemos, por exemplo, em Eça de Queirós, quando, em A ilustre casa de Ramires, D.
Antônio Vila- lobos convida Gonçalo Mendes Ramires:
Ouve lá! Tu queres hoje cear no Gago, comigo e com o João Gouveia? Vai também o Videirinha e o
violão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manhã a uma mulher da
Costa por cinco tostões. Assado peio Gago!... Entendido, hein? O Gago abre pipa nova de vinho, do
Abade de Chandin. Conheço o vinho. É daqui, da ponta fina. E Titó, com dois dedos, delicadamente,
sacudiu a ponta mole da orelha 13
Na França, vinho de uma orelha é aquele de excelente qualidade e que se opõe ao de duas orei/ias;
segundo Câmara Cascudo, os “gestos franceses relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhas
era inclinar a cabeça para um lado ou movê-la várias vezes, duma para outra orelha,
desaprovativamente” (Op. cit., 155).
Um campo interdisciplinar
O trabalho do filólogo na manipulação, editoração e explicação do texto literário o leva a pedir
subsídios a várias disciplinas auxiliares. Entre outras e sem esgotar a lista, além daquelas
especificamente lingüísticas ou com elas muito relacionadas (a lingüística, a teoria da litera tura, a
teoria da comunicação, a ecdótica, a paleografia, por exemplo) filólogo haurir conhecimentos na esté
tica, no direito, na história, na geografia, na etnologia, na etnografia, na filosofia, na teologia, no
folclore, na história da cultura.
Trabalhando e explicitando o texto aos seus alunos, a tarefa do professor de língua materna é muito
menos complexa, embora isto não signifique que seja muito me nos ampla e muito mais fácil. Daí a
necessidade de ter esse mestre a seu dispor, em casa e no lugar onde exerce a sua atividade
profissional, uma bibliografia seleta onde seus conhecimentos, de toda sorte, possam ser amplia dos e
suas dúvidas possam ser elucidadas. Daí também a necessidade de uma renovação nos livros didáticos,
para que contenham, em doses homeopáticas e a nível do desenvolvimento psicológico e cultural dos
seus leitores, esse tipo de informação complementar à sua educação lingüística
Não menos importante será também o papel do professor universitário, quer o de língua portuguesa ou
filologia portuguesa — no Instituto de Letras —, quer o professor de didática de língua ou
glotodidática no mesmo institUtO ou na Faculdade de Educação —, no sentido de estimular o futuro
mestre a nutrir-se dessas informações e a conhecer uma bibliografia básica do que lhe será útil na
atividade dentro de sala de aula, incutindo neles que sua tarefa maior não é fazer de seus alunos um
futuro universitário, um futuro gramático, filólogo ou lingüista, um futuro literato, mas um cidadão útil
e operante na sociedade de que vai tomar parte ativa.
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O ensino da língua portuguesa