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A “EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ”: COMO RUPTURA NO

PROCESSO CÍCLICO DA HISTÓRIA

Vicente Juciê Sobreira Júnior1

Viver
Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
E voar...
Cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!2
(QUINTANA, M. Baú dos espantos, 2006, p. 87.)

No texto “Educação após Auschwitz”, Adorno, de forma aparentemente


esclarecedora, aborda uma reflexão baseada no comportamento “patológico” dos
causadores do poder de destruição contra o humanismo, realizado pela Alemanha
nazista. Ele tem como ponto de partida para sua reflexão o ocorrido em Auschwitz3,
sobre o qual apresenta questionamentos e propostas para a sua não repetição.
Observações que em primeiro momento para um leitor iniciante dar a aparência de ser
1
Graduado do curso de Filosofia/licenciatura plena na Universidade Estadual do Ceará.
Professor no ensino médio de Filosofia e Sociologia.
2
Essa poesia retrata bem o espírito angustiante dos pensadores após a tragédia da segunda
guerra mundial, não por que seja ele influenciado diretamente, mas o pensamento dessa época, e
isso, indiretamente prepondera sobre as idéias dos pensantes. Onde, a dor e felicidade
coexistem, e os paradoxos da humanidade cada vez são mais confusos, e à medida que surge o
progresso cresce a barbárie, e isso, fica bem “claro”, logo no início dessa poesia: “quem nunca
quis morrer não sabe o que é viver”, palavras de significados antagônicos com um mesmo fim:
A vida. O homem não consegue definir um caminho específico, mas tenta seguir uma linha
mesmo com toda a complexidade contemporânea, e nesse caso, o fundamental, é viver, ou
melhor, sobreviver.
3
O ocorrido de Auschwitz foi um dos fatos mais marcantes na história da humanidade. Theodor
W. Adorno aborda uma questão essencial para entender o passado cíclico-histórico referente ao
Holocausto na Alemanha Nazista. Em "Educação após Auschwitz", sugere que as condições
sociais objetivas que jogaram a humanidade à barbárie já são a barbárie. A "educação contra a
barbárie" exige, uma crítica radical dessas mediações objetivas e subjetivas pressupostas, que
segundo nossa compreensão, aponta para o caráter fetichista da sociedade da mercadoria
baseada no trabalho abstrato. Que é muito concreto.

1
simples - não no sentido de vulgar, mas sob o aspecto elucidativo - a sua compreensão.
Porém, em um segundo instante, ao debruçar-se sobre o texto é percebido a
complexidade de suas indagações.
No princípio de seu texto, Adorno em sua abordagem trata da educação
como resposta a problemática da barbárie em Auschwitz, deixando subtendido que vai
apresentar algum modelo pedagógico para o processo educativo. Mas não o faz. Adorno
apresenta suas considerações acerca da importância da educação para que se evite no
futuro o regresso da barbárie nazista, compreendendo tais acontecimentos em
Auschwitz como um processo cíclico da história que poderia ter sido evitado. Quando
falamos do Holocausto, não estamos limitando a visão aos acontecimentos apenas no
Campo de Concentração citado por Adorno, mas o tomamos como arquétipo de
barbárie, surgida no interior de uma civilização racional e culturalmente desenvolvida.
Eventos análogos, como a morte de um milhão de armênios pelos turcos, na Primeira
Guerra, estão incluídos na questão, entre outros. De acordo com o frankfurtiano4:

Já na primeira Guerra Mundial os turcos - o assim chamado


movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha
- mandaram assassinar mais de um milhão de armênios.
Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que
tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo restrito. O
genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo
agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século
XIX. (ADORNO, p.120)

Nesse momento, a sua teoria parece coadunar-se com a prática, visto que,
Adorno parte de uma questão empírica para a reflexiva e por meio desse movimento de
conscientização desenvolve sua teoria crítica social. Porém, surge outra problemática,
como retornar para a práxis no processo de educação de forma eficaz, na qual,
realmente o exemplo de destruição remeta ao intelecto o sentido de prevenção em quem
4
Refiro-me a Adorno dessa forma por ele fazer parte juntamente com grandes pensadores, como
Horkheimer, Marcuse, Benjamin e outros, da Escola de Frankfurt na Alemanha. Surgida na
década de 20, com a Fundação do Instituto de Pesquisa Social, em 03 de fevereiro de 1923, por
seu idealizador, o cientista político teuto-argentino Felix Weil (1898-1975). Em 1924 suas
instalações foram oficialmente inauguradas na cidade universitária de Frankfurt - Alemanha. A
influência do pensamento marxista nessa escola se vê desde sua fundação, visto que, de início
essa, deveria chamar-se Instituo para o Marxismo, com a idéia de institucionalizar um grupo de
pesquisa dedicado à teorização dos movimentos operários na Europa. Sob a direção de
Horkheimer, a orientação do Instituto mudou substancialmente, ultrapassando a investigação
documentarista de tradição marxista para abarcar uma análise crítica dos problemas decorrentes
do capitalismo moderno.

2
tentar apreender o aspecto ético-humanístico em cada indivíduo? Parece utópico. Mas
para Adorno talvez essa utopia seja necessária para se aproximar do necessário, mesmo
seu pensamento sendo caracteristicamente desesperançoso.
Inserido nesse contexto de ruptura com a tradição, Adorno cita a
educação como um meio fundamental para a reflexão e consciência de diversos pontos
latentes no sujeito, revelados de forma desordenada sob o âmbito da vida social
originando comportamentos violentos entre indivíduos de diversos segmentos da
sociedade. Para Adorno, a principal tarefa da educação é evitar Auschwitz. Porém,
Auschwitz é também o símbolo da modernidade e da civilização, em que predomina o
“mundo administrado”. Então, Auschwitz é barbárie sofisticada ou só civilização, e aí
está o drama, pois não se combate apenas um dos lados desta contradição dos dias de
hoje:
Se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se
opor a isso tem algo de desesperador (ADORNO, p. 120).

Nessa passagem, Adorno nos mostra claramente toda contradição


existente no modo de viver dentro do capitalismo, onde progresso e retrocesso são
progresso/retrocesso: coexistem de forma interdependente. Ora, o desenvolvimento das
técnicas na sociedade da mercadoria, somente será possível se essas sobrepuserem ao
homem. Ai surge a grande necessidade do repensar a educação, para rever nossos
valores.
Adorno concentra contundentemente suas observações sob a
essencialidade do repensar a educação enquanto razão objetiva capaz de impossibilitar o
prosseguimento do processo cíclico da barbárie no desenvolvimento histórico, evitando
que tragédias como Auschwitz e outras do mesmo gênero repitam-se, e essas sejam
exterminadas seus vestígios do ambiente civilizatório.
Para Adorno, enquanto insistirem na permanência das mesmas formas de
educação, voltadas para o racionalismo tecnicista, onde as emoções devem ser
submetidas a razão, e o indivíduo tem a obrigação de suportar a dor para se alcançar a
perfeição, e, portanto, apresentando as mesmas condições essenciais para o holocausto
em Auschwitz, a humanidade não conseguirá emancipar-se da constante e perigosa
barbárie. De acordo com o frankfurtiano:

É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas,


assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos... É necessário

3
reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer
tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca
desses mecanismos. (ADORNO, p.121)

Adorno ressalta a importância de ir além do processo sócio-educativo,


analisar o sujeito a partir de uma consciência de si, da reflexão do eu, direcionando a
educação para uma auto-reflexão crítica. Para ele:

É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é


preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a
respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como
educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. (ADORNO, p.121)

A educação que nos importa, portanto, é aquela que revela, é “a educação


que produz auto-reflexão crítica”. Crítica a ponto de perceber as armadilhas da
modernidade.
A questão está em livrar-se da opressão da totalidade dominante, e para
Adorno uma saída seria pela educação, dando origem a uma nova forma de criar uma
consciência sobre o horror nazista. Esta educação deveria nos preparar para sermos
críticos às autoridades, pois, essas, originadas na ausência da liberdade e da
autodeterminação gera autoritarismos.
Como vemos, Adorno aponta para vários pontos supostamente
originários do horror nazista, propondo a educação como responsável pelo processo
civilizatório. Entretanto, torna-se complexo o seu pensamento a esse respeito, pois, não
diz como fazer. Ele apresenta a idéia, a crítica, mas não nos mostra nenhuma proposta
metodológica ou pedagógica. Porém, talvez não pudesse, pois, se fizesse isso, tornaria
seu texto contraditório, visto que, Adorno faz a crítica justamente a toda racionalidade
burguesa herdada do iluminismo, e a educação emancipatória, não tem espaço nesse
contexto do capitalismo.
Mesmo com essa complexidade teórico-prático do pensamento
adorniano, surge um ponto de grande relevância, e na minha forma de pensar, talvez a
questão exigente de uma maior atenção do leitor, que é a educação enquanto um
processo de reflexão de si crítica do sujeito. No qual, fundado nos ensinamentos da
psicologia, cuja formação do caráter acontece na primeira infância5, é que Adorno

5
Referente à primeira infância apresentada por Freud que vai até os três anos de idade
aproximadamente, que corresponde à fase oral e anal.

4
enfatiza a importância desse estágio freudiano6. Adorno diz a respeito da relação entre
educação e infância no sentido de evitar o processo cíclico da história o seguinte:
A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma
auto-reflexão crítica. Contudo, na medida em que, conforme os
ensinamentos da psicologia profunda, todo o caráter, inclusive
daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira
infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se
concentrar na primeira infância. (ADORNO, p. 122)

Adorno entende a fase da infância como um estágio preponderante na


construção da personalidade, compreendendo esse momento, permeado por entrelaços
entre as potencialidades do agir segundo a própria determinação e da coação, da
faculdade de se governar por si mesmo e da heteronomia7, como um espaço de opções
possíveis socialmente, no qual:

...combina-se com a análise crítica da infantilização, da regressão


imposta por esquemas culturais dominantes, como ele [Adorno],
busca mostrar, por exemplo - em um outro texto - no caso da música
popular comercializada... Trata-se de captar dimensões da dialética da
infância/ maturidade. No intricado jogo entre a espontânea
disponibilidade infantil e as injunções do mundo adulto, por um lado,
e a maturidade adulta e a infantilização, pelo outro, desenha-se a teia
que une o progresso à regressão. 8 (ADORNO, Sociologia, 1994, p.
26)

Mesmo Adorno tendo apresentado uma questão intrínseca ao ser, a qual


seria necessária uma abordagem singular, envolvendo mais do que uma concepção
psicológica do “eu” buscando uma “regressão” à infância, deixa claro que não é apenas
sob esse aspecto que se dará a formação de um novo homem9, a questão não é somente
discutir a reflexão de si. Para ele, é também preciso uma transformação cultural do
indivíduo, o desenvolvimento de um clima intelectual que impossibilite a repetição de
Auschwitz. Sobre esse ponto, Adorno diz:

6
Freud afirmou que o comportamento humano é orientado pelo impulso sexual, que ele chamou
de libido, palavra latina, feminina, que significa prazer. Esse impulso já se manifesta no bebê
com beijos, carícias, olhares e etc. Para Freud, se as necessidades forem satisfeitas, a pessoa
crescerá de maneira psicologicamente saudável; se não o forem, seu ego será imperfeito.
Gerando assim os comportamentos agressivos, cheios de frustrações.
7
Condição da pessoa ou de grupo que receba de um elemento que lhe é exterior ou de um
princípio estranho à razão, a lei a que se deve submeter.
8
ADORNO, W. Theodor. Sociologia. Org. Gabriel Cohn. São Paulo, SP: Ática, 1994.
9
Não no sentido do novo homem marxista que surge no comunismo, mas na concepção do
indivíduo, através de lógica de vida livre da alienação e opressão, repensar sua realidade.

5
Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas
questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira
infância, e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima
intelectual, cultural e social que não permite tal repetição, portanto,
um clima em que motivos que conduziram ao horror tornem-se de
algum modo conscientes. (ADORNO. p. 123)

Adorno apresenta suas idéias nesse texto acerca da sociedade antes, na e


após a Segunda Guerra Mundial, penso, que partindo de uma tentativa de compreensão
fundada na filosofia das ciências contemporâneas10, voltadas para a compreensão do
homem enquanto consciência de si e consciência do outro, tentando dessa forma
encontrar um caminho [sem muita esperança para Adorno] de uma educação ética-
humanística do indivíduo visando a sua desbarbarização.
E, para isso, Adorno sugere algo em “Educação após Auschwitz”: a
introdução dos esportes nas escolas. Porém, alerta para as ambigüidades nesse método,
pois, mesmo sendo indubitável que o esporte proporciona o fair play, a consideração
para com o mais fraco, ele também incita dentro do espírito de emulação, a violência, a
crueldade e o sadismo, dependendo do esporte11. Então, para que funcione tal proposta,
seria necessário incentivar esportes que não visem à disputa, e sim aqueles que são
meramente para se divertir, e que sirvam para realizar uma sublimação da
agressividade. Mas quais são assim dentro da lógica competitiva do capitalismo? Por
esse motivo é que para colocar em prática tal teoria alternativa para desbarbarização, é
imprescindível que se faça uma análise mais aprofundada da forma como se possa usar
esse mecanismo esportivo no combate da barbárie. Poderá esse ser um dos caminhos?
Talvez. Mas somente um dos caminhos, pois, nem todos gostam de esportes.
Concluo esse trabalho compreendendo a educação como um mecanismo
fundamental para a transformação da humanidade, e que é imprescindível se fazer uma
análise crítica sobre o conceito e modelo atual seguido pelas instituições responsáveis,
sempre abrangendo discussões sobre o âmbito da emancipação de qualquer nível de
opressão social ou psicológica, para que de fato o princípio primordial da ética
humanística seja preservado: o valor a vida. No entanto, tendo por base o texto de
Adorno e a experiência vivida, é pertinente uma questão: Já que a emancipação é uma
exigência fundamental para tal processo de desbarbarização, qual a forma de educação

10
Refiro-me aqui aos conhecimentos da Psicologia enquanto reflexão do ser e o da Sociologia
relacionando a discussão das relações sociais na sua totalidade.
11
Esse caso está presente na maioria dos esportes que nós conhecemos que tem como objetivo
gerar um vencedor.

6
capaz de unir a teoria e a prática, sem nenhuma repressão psicológica ou social, que se
desenvolva no centro das relações entre pessoas as capacidades intelectual e física
livres de qualquer alienação dentro de uma sociedade capitalista, se o desenvolvimento
dessa, se dará justamente no progresso da fetichização12 das relações sociais? Ou
melhor, como desenvolver uma cultura humanística numa sociedade totalmente
reificada13?
Essas questões poderão em um trabalho a posteriore serem mais
desenvolvidas qualificadamente, investigando de maneira mais minuciosa as categorias
apresentadas pelo farnkfurtiano, suas outras obras e quais as influências para seu
pensamento. Por enquanto, finalizo esse inicial trabalho, com a certeza de que será
continuada essa investigação, pois, o contato com esse texto despertou-me sobre alguns
fatos já presentes em minha consciência de meu interesse filosófico-teórico-prático que
estavam somente adormecidos. E a compreensão de que, mesmo Adorno não
apresentando em nenhum momento uma metodologia pedagógica universal para o
sistema educacional, ele realça a idéia do repensar constante da educação sempre sob
um “véu humanístico”.

BIBLIOGRAFIA
ADORNO, W. Theodor. Sociologia. Org. Gabriel Conh. Tr. br. Flávio R. Kothe, Aldo
Onesti e Amélia Conh. 2ª edição. São Paulo, SP: Ática, 1994.
BRONNER, S. Eric. Da Teoria Crítica e seus teóricos. Tr. br. Thomás R. Bueno e
Cristina Meneguelo. Campinas, SP: Papirus, 1997.

12
Fetichização tem a sua origem na palavra fetichismo, que vem de fetiche, feitiço, que nas
práticas religiosas significa objeto a que se atribui um poder sobrenatural; em psicologia,
fetichismo é um perversão na qual a satisfação sexual depende da visão ou contato com um
objeto determinado. O paralelo entre esses dois sentidos e o do fetichismo da mercadoria [o
referido por Adorno, partindo de uma visão marxista] é que, nos três casos, os objetos inertes,
sem vida, são animados, “humanizados”.
13
Reificação: O sufixo rei é originado do latim res que significa coisa. Ficando então
coisificação, que significa reduzir o ser humano a valores exclusivamente materiais, é a
inversão da forma estrutural do real. Onde as coisas ganham vida e os homens tornam-se coisas.

7
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