You are on page 1of 134
*, yr q + 1eF f a re roANCE cyberharrs Milagres acontecem. Piritas Siderais foi, para mim, ‘um presente, totalmente inesperado, da Interna, a grande rede planetria de computadores Guilherme Kujawski descobriu meu enderego eletrénico e, com toda polidez do mundo, me enviou uma c6pia do seu livro. Comecet a ler a primeira pagina com enorme receio. Alinal, obras que aparecem assim ni solicitadas (mesmo através de midias tecnologicamente (An de ponta) ‘sio geralmente anincios de pesadelos esiéticos. ‘Mas o receio logo se transformou num entusiasm cada frase maior. Li todo o livro de um sé fBlego (desculpe-me o lugar-comum, mas eu me senti como que possuido por um best-seller) © a0 dobrar a tiltima pagina, de madrugada, nio resisti e acordei varios amigos 6 para compartilhar a alegria daquela descoberta Piritas Siderais passow. por varias mAquinas da Xerox ¢ ganhou o status de romance-cuit para quem bateu os olhos nas cépias que consegui fazer circular Oleitor de Pirttas Siderais fica arrebalado, inicialmente, pela originalidade do projeto li de peramas (a sigla pela qual seu autor & conhecido nos dominios da Internet). Nio existe nada semelhante no panorama da literatura brasileira ou internacional. Pode-se pensar nas eserituras, também muito particulares e desgarradas, de um José Agripino ou de um Fausio Fawcett. Pode-se estabelecer comparagies com as estrelas do cyberpunk, como William Gibson ow Bruce Sterling. Mas nenhum desses paralelos € exatamente esckirecedor (e, como fui saber depois, ghramos nunca leu Santa Clara Poltergeist e ficou decepcionado com Newromancer). Mats interessante é citar logo o cubano Lerama Lima Piritas Siderais pode muilo bem ser propagandeado como o primeiro exemplar —e enquadrado numa escola literdria —de cyberbarroco. Piritas Siderais &talvera experiéncia estlistica mais rigorosa e mais caudalosa — 4 qual j4 foi submetido 0 imagindrio da ficedo cientifica conlemporanea. Produto de mais de cinco anos de um trabalho bragal, cada uma de suas palavras foi escalhida a dedo, camo se fosse para testar os limites da etimologia passada e futura (f4 que qualquer raiz equivale a qualquer antena) da Ifngua portuguesa. E, sem ddvida nenhuma, um tratamento de choque, impossivel de ser encarado com indiferenca. E melhor: esse rigor aparece aliado a uma enorme Quéncia narrativa, uma criaglio de personagens e situagéies inesquecfveis, a um senso de humor afinadissimo. Dei muitas pargalhadas a0 ler Piritas Siderats. A consulta constante ao diciondrio s6 aumenta a comicidade (ou a seriedade, tanto faz) da empreitada Entio, que 0 leitor se prepare: este livro ¢ 0 caminho- mais divertido para o deslumbramento/ desnorteamento linglfstico/literdrio. Guilherme Kujawski nos guia por um Brasil, terra do pés-tudo, onde o futuro é a apoteose da palftica-candomblé ‘conjugada em regime de “hipertexio". Numa dnica pagina podemos nos deparar com Zapata e a Erva do Diabo, o Surfista Prateado e Ted Boy Marino, um CD- ROM ea juju music:O que mais pademos desejar? Ainda bem que inventaram a Internet, Hermano Vianna 0 Autor Guilherme Kujawski, descendente de poloneses e franceses, nasceu em 1964 na cidade de Sto Paulo. ‘Teve uma inflneia marcada por escolas experimentais ‘Comegou a escrever contos aos 10 anos de klade, influenciado por Edgar Allan Poe e o som do Pink Floyd ‘Trahalhou como fotocompositor e tradutor de his.rias em quadrinhos, Piritas Siderais é o-seu primeiro livro publicado, piritas siderals romance cyberbarroco sugestao editorial: carlos nader guilherme % kujawski APRESENTAGAO A fiegao cyberbarroca Uma rede eletrénica planetdria Um gigantesco esgoto piiblico de informagdes, uma genial caixa de correspondéncia planetaria, um imenso shopping center virtu- al, onde se pode comprar, consumir e trocar servicos, produtos, cultura, diversio e arte. Foi af, na Internet, um conglomerado de redes de computadores (bés) que nao cessam de se expandir e multiplicar pelo mundo inteiro, que Guilherme Kujawski, autor do primeiro romance cyberbarroco brasileiro, jogou sua mensagem eletronica de SOS procu- rando um leitor ideal para o seu ouro de fofo, suas preciosas Piritas Siderais, titulo de sua obra de estréia. No mar de mensagens das redes, agarrafa eletrinica com o apelo foi vista pelo antropélogo Hermano Vianna que, pelo bom e velho correio tradicional, recebeu os originals e espalhou a boa nova para incrédulos amigos: existe vida inteligente no mundo dos nerds adolescentes que infestam as bbs trocando joguinhos, programas e fotografias pornds. 0 livro de Kujawski é a prova. As Piritas (mineral de cor amarelada ¢ brilho metilico usado na fabricagao de dcido sulfirico) nao pararam de reluzir e foram levadas pelo videomaker Carlos Nader, outro usuario das bbs proprie- trio de um cérebro, para o poeta Waly Salomao, que prontamente si reconheceu 0 ouro sob o artificioso amarelo metilico da obra. Pondo pedra sobre pedra, Waly Salomio langa estas Piritas Siderais com pompa e circunstancia, como livro de esiréia da colegio Pedra de Toque, com a qual cia seu trabalho de editor na tradicional Francisco Alves. o préprio poeta © livro de Kujawski — paulista, 30 anos, trés faculdades interrompidas (letras, direito e histéria), ex-tradutor de histérias em quadrinho dos her dis Marvel, programador visual que vinha esculpindo as suas Piritas Siderais ba cinco longos anos —inventa uma linguagem e estilo originais. Combina termos vindos da informatica com estrangeirismos, arcaismos, classicismos, enciclopedismos, giria de rua, numa salada filolégica, etimoldgica ¢ lexicografica infernal. Arte combinatoria, barroca, que vem se configurando ao mesmo tempo em que produz uma ficgao cientifica do proprio presente, Ficgao literdria em que a linguagem — truncada, telegrafica, icénica, com barbarismos hediondos como uploadar (transferir), deletar (apagar), encriptar (usar criptografia) — é o personagem principal. A mutagio da linguagem est no ar (a dltima Time faz um perfil dos bardos da Internet). Renovac%o comemporanea da escrita que vem sendo potencializada pela inform /dtica ao criar toda uma linguagem visual combinando palavras grafadas e fcones, e consagrando 0 estilo telegrafico, tipo bilhete de porta de geladeira, como estilo, no mais puro laconismo Dalton Trevisan. O teérico francés Pierre Levy chama a nova linguagem de édeografia dindmica, uma escrita informitica, que ainda Nio existe, mas poderia aparecer como uma lingua Itidica, de ensino e formagio. Exemplo de ideografia: vocé clica um icone representando uma chama e, com a.ajuda do mouse, aproxima o ideograma da chama, representando um cubo de gelo; num instante, os dois ideogramas se b metamorfoseiam num terceiro com trés tragos ondulados representando a gua. Hai-kais ciberntticos? O fato € que, fora o laconismo nerd tipo bi, held, oi, oli, nunca se escreveu Lanto quanto nas redes de informacio sem fronteiras, como a Internet. Oeste eletrénico onde qualquer um pode entrar, via o 6bs mais préximo, para trocar mensagens, participar de f6runs, debates, encontrar pessoas, acessar bibliotecas inteiras e atéfrequentar grupo de estudos (no e-mail deleuze. request. std.com, pode-se discutir no momento o primeiro capitulo de Mille plateaux, de Deleuze ¢ Guatiari). Ao invés de desiruir a escrita, a informatica estaria criando um nova lingua que o livro de Kujawski inventa e da qual faz a parédia, 40 mesmo tempo. Nas suas “hipergazetas” ironiza o jornalismo do século 21, reduzido a manchetes oraculares e sonoras t rankenstein faz tomografia em auto-elétrico e costura corte em overloque” ou “Cloacade Callas crocita para busto de Pallas”, info hai-kais que condensam 0 maximo de informagao numa tnica linha, como fazem os “hipertextos”, a base da navepacio eletronica. 0 “hipertexto” € a possibilidade de se navegar num texto através de palavras previamente marcadas, leitura acentrada, com miltiplas entradas — palavras que podem nos enviar a ‘uma simples nota de rodapé ow a.um liveo inteiro, numa remissio infinita de um texto a outro. As Piritas sao um “hipertexto” sem notas de pé de pigina ou dicionario eletrénico, o leitor que “queime a mufa” ¢ saia cruzando as informagGes, que o sentido nio tarda. Usuarios da Internet tém um verdadeiro vocabulirio paralelo tipo IMO (ia my opinion), IMHO (én my bumble opinion), MOTOS (member of the opposite sex) que 0 livro parodia. A escrita de Kujawski, leitor de Guimaraes Rosa, James Joyce, 2 Tristan Tzara, Lezama Lima, é pura criptografia. Em informatica, a criptografia serve para tornar um texto temporariamente incompreensi- vel pelo uso de cifras especiais que formam um cédigo. O autor de Piritas Siderais mostra-se um excelente criptégrafo, fazedor de linguagem cifrada. Em informatica, com uma password, uma senha, vocé criptografa ou reverte o texto para a forma normal. Kujawski tem varias senhas de acesso: a cultura informética, a ficgao cientifica, o gosto pelos diciondrios e enciclopédias, a etimologia sio algumas delas. E um fervoroso usuirio do Gopher ¢ do Verdnica, poderosas ferramentas para a localizagio de arquivos por meio de palavras chaves, pelas quais se pode rastrear tudo sobre determinado assunto nas tecas, universidades, empresas e com usI conectados na rede. £ a melhor forma de transformar pirita em ouro, transformar a mais incrivel lata de lixo da cultura internacional, a Internet, na enciclopédia universal da era da multimidiae da informatica. Ficgio cientifica burlesca a se do pensamento e da imortalidade é a defi do de Guilherme Kujawski para seu livro. A atmosfera cyber, cruzando imagindrio dos contos de fadas (magos, guerreiros, deusas), com dilemas existenciais milenares, genética efisica quantica, acaba falando de coisas serifssimas. As novas tecnologias de informagao fascinam ¢ deslumbram pela possibilidade de simular 0 processo de pensamento humano: os caminhos da informag3o no cére- bro, as sinapses, as clipses, os cus ups, sinteses, metenimias, metdforas. Aqquestio crucial é como transferir ou simular 0 processo de pensamento no computador. Movimento de desencarnagio no qual o computador torna-se o mais sofisticado “cavalo” do homem. Numa macumba cyberbarroca, como na hilariante parddia de Piritas em quea meiafisica getdntica produz um genial comércio de corpos no qual qualquer ser vivo pode vicar “cavalo” de deuses, espiritos e pensamentos desencarnados. Eo que aconteceria se pudéssemos plugar todo nosso banco de dados humano, memoria, percepcao, sensagio, num computador, puro cérebro conectado 2 grande rede planetdria de informagbes? A questo atormenta filésofos, engenheiros, fisicos, leitores das revistas Wired e Mondo 2000 ¢ usuarios da Internet. Ainteligéncia das redes, a possibilidade de se criar coletiva- mente textos, obras, programas, de autoria coletiva, j4 esta em curso em. singelas histérias-e intrigas que rolam nas bbs. No Brasil, uma rede muito especial funciona hid dois anos e se chama Art Net. Organizada pelo escocés Charles Watson (acesso pelos telefones 551-1356, 552-0244), Art Net @um museuvirtual da arte contemporanea brasileira que podeser acessado do mundo inteiro. A equipe de Watson produz até outubro um (CD-ROM comas obras dos artistas plasticos brasileiros em que cabem de sele a oilo quilos de cartdes postais dos trabalhos de cada um. Watson quer faver da rede um {6rum de debates sobre estética, tecnologia, arte. O recente langamento de Snsaios sobre a contemporaneidade, de Arlindo Machado, primeiro livro brasileiro de teoria em CD-ROM (versio para testes), usa a prdpria tecnologia (irechos de filmes, videos, desenhos ¢ animagies) para discutir a esiética ¢ o pentsamento na era da informética A idéia de habitar a grande rede de informagoes ja animava um filme como Tron: wma odisséta eletrénica, la pelos anos 80, na pré- hist6ria da era da informatica, Mas navegar no espaco virtual das redes, no eyber space, pode ser perigoso. A revista Wired é forum de incriveis debates éiicos envolvendo backers, infomaniacos que usam os computa- dores de forma liidica e criativa, e crackers, os piratas que utilizam a informatica de forma antiética para invadir bancos de dados do Estado e privados. Até estupro virtual j4 foi discutido. Os xerifes do cyber space se digladiam na Eletronic Frontier Foundation, que quer regulamentar os limites de acesso aos bancos de dados ea livre navegacio. A questo dos direitos autorais em informdtica mo. Recentemente, Bruce Sterling, autor de € um problema ser FPiratas de dados e The Hacker Crackdown: law and disorder on the eleironic frontier (A repressio ao hacker: lei e desordem na frontetra eleirénica) jogou seu livro nas redes advertindo que seus leitores eletronicos poderiam copiar, imprimir, passar adiante 2 obra desde que nio ganhassem um centavo com isso, sob pena de serem massacrados pelos advogados da editora por violagao de direito autoral. © autor de Pirtfas Siderais ainda nao sabe se vai jogar seu romance na grande rede, mas ji comegou a rastrear mais informagoes. para o préximo livro. No momento, vasculha via Internet os arquiyos da Biblioteca da Universidade de Pisa, para obter informagoes sobre um obscura ministro de Napoleao. O préximo passo: combinar a estrutura dos RPGs, joguinhos interativos em que vocé inventa personagens ¢ dio rumo da histéria, com a saga dos bandeirantes paulistas. Ivana Bentes Texto publicado originalmente no Caderno Idéias/Livros do Jornal do Brasil em 2de julho de 1994 10 PREFACIO DO AUTOR Pequeno ensaio sobre as “hipergazetas” A linha narrativa de Piritas Siderais possui dois niveis de leitura; 0 nfvel do enredo principal ¢ o subnivel das “hipergazetas”. O enredo principal é rematado, ao final de cada capitulo, por blocos de frases avulsas que, aparentemente, foram compostas baseadas em uma teoria de criacao, pois ha indfcios de autoria (os criadores sio hackers autores de textos mutaveis por virus especiais. Estes criminosos preferi- ram a carreira de escritores 4 de consultores de sistemas). Os provaveis reflexos da hipdiese de que os meios de comunicagao podem alterar o modo de pensar de um povo e de uma €poca sao satirizados através das “hipergazetas” (referéncia aos livros interativos para serem lidos em um computador, feitos por programas do tipo foo! book). Atualmente, 0 que mais se aproxima disso é conhecido pelo jargio de “hipertexto”, isto 6, um texto informatizado que nao existe sem contexto em uma complexa rede de bancos de dados. Os enunciados inseridos no final de cada capitulo so uma sitira a esse avango da microinformética no campo da biblioteconomia, pois a literatura multidisciplinar passaria a sofrer um processo de “revolugo permanente". Nota-se que nao ha neologismos Nos textos das "hipergazetas", pois todas as palavras sio preexistentes ¢ i formam uma espécie de "invent4rio memorioso". Esta modalidade de expressio futurista incita a proposi¢ao de que, com a microinformatica, o armazenamento de conhecimento perde sua caracteristica determinan- te, pois, diferente do registro tipografico, osregistros computadorizados tém acesso irrestrito e podem ser manipulados ao bel-prazer dos usud- riosde bancos de dados. Isso levaria nassos descendentes.a desenvolve- Tem novos processos mneménicos para a manuten¢io do saber soci Com isso, podemos presumir que os leitores do futuro se utilizarao de duas técnicas para a reten¢ao do saber: a primeira consiste na concor- dancia de sons e associacionismo das palavras e a segunda, na compres- sido da mensagem escrita. Um des inimeros efeitos deste possivel retorno a valorizagio da palavra seria a alteragdo da maneira de articular a fala dos usuarios, pois a comunicago escrita veiculada por um meio participativo diminuiria a distancia entre a palavra grafada e a palavra falada. 0 feone do besouro que separa os enunciados e que, quando acionado pelo mouse da pregocira literato recombinae fraseado, remete outro jargio da informitica, o bug (isto é, um entrave desisiema). Neste caso, tal fcone é a propria imagem do virus. Além da dbvia citaglo a0 “hipertexto” (claro, em cadéneia linear tipogrdfica), ha uma revisio distanciada das técnicas poéticas de Tristan Tzara, com a ressalva de os enunciados das “hipergazetas” nio terem um cardter aleatério. Neste ‘sentido, o texto do dadaista denuncia mais o artificio do automatismo do que os enunciados das “hipergazetas”, que foram manufaturados com a exaustio requerida por um soneto. © que para os leitores atuais parece ser uma declamagio aloucada esem método, para os do futuro poderd ser um eficiente sistema de aprendizado. ie Piritas Siderais é ficgao cientilica “eyberpunk"? Nada mais justo que a novela tenha recebido a atribuicae de uma corrente renovadora da fic¢ao cientifica americana, que éconhecida Por “movimento cyberpunk”. Rudy Rucker, um dos arautos deste movi- mento literario, resume o estilo em dois itens: condensagao de informa- Gio e reflexées sobre a revolucao tecnolégica dos computadores. As “hipergazetas* podem representar, nao incondicionalmente, oprimeiroitem. 0 esteticismo exacerbado da conduta narrativa resvala tam- bém no primeiroitem, pois ha abundancia deestrangeirismos, classicismos e metéforas insélitas, supervalorizando o estilo em fungao do mote da histéria e transformando a linguagem em protagonista. Porém, estes elementos pendem mais para um culteranismo barroco revitalizado, pois anovela tem o esmero de um criptograma e nao de um tratado cientifico envolvendo redes de bancos de dados. Quanto ao segundo item, um dos argumentos secundiriosda novela funda-se no principio basico de mediacao de um meio de comuni- cago (neste caso, o computador). © computador, no decurso da narrativa, visto como um emulador de mensagens que, a0 mesmo tempo, credita ontologicamente um objeto através de sua.imagem. A correlacao proposta é feita pela justaposi¢io da intermedia¢ao maquinal (midia) e da intermedia- ¢4o humana (médium). Essa relagdo satiriza um tema caro @ literatura cyberpunk, que é a agregacao literal entre homem e maquina. Outro argumento secunddrio baseja-se na Hipétese de Gaia, desenvolvida por James Lovelock, que afirma ser a Terra (e, por extensio, qualquer planeta) um organismo vivo, com periodos de desenvolvimento de “membros" (movimentos da crosta), febres 13 (mudangas climaticas) eic, AHipétese de Gaia é nitidamente mais poética do que cientifica. Contudo a estratégia utilizada na confecgio da novela é disculir questGes supostamente elevadas dentro de um cen4rio futurista. © argumento principal refere-se 4 impossibilidade de desumanizagao do Homem, seja pela eterna inclinagZo da humanidade em submeter a crenga 4 ciéncia e, conseqiientemente, fazendo a ciéncia homologar a crenga, seja pela realizagio de que os atos humanos nao sao ditados por moralidades humanistas abstratas, mas por um simples ¢ acabado epicurismo egocéntrico. As peripécias envolvendo reencarnagoes, o tema do "fantas- ma ha maquina" (outro tema caro ao movimento cyberpunk), fabulas infantis travestidas, misticismo claustrof6bico, formam um conjunto que foi muito criticado por nosso ilustre Tobias Barreto, citado no tiltimo pardgrafo, ¢ que via no misticismo um retrocesso da Razdo. 0 eminente jurista jamaisse imaginaria, apds sua morte, orquestrando umahorda de espicitos com tendéncia a contadores de casos. Sdo Paulo, 6 de outubro de 1993 4 UTURO, A FRONTEIRA FINAL. A TERRA DE Vera Cruz acompanha capenga 0 progresso do mundo, principalmente sua maior conur- bacio, Sio Paulo de Orunmila. Entretanto, ne- nhum cidado ignora que o pais esid na lista negra do conglomerado koumei, com sua chusma de indoléncia insolivel nos rios onde os indios se banham ¢ com sua cor local dissolvida pela teoria das cores do ‘rust agucarciro. © século 21 diferencia-se do século nterior por sua extraordindria capacidadenano- tecnolégica. Os sectirios do Clube Couch Potatoes continuam cultuando as televisdes, 1B0- ra chamadas de micro-HDTY. Os herdis dos desenhos animados assemelham-se muito aos antigos —sendo esta antigiiidade inatingivel pela perseveranca de um Schliemann, com a 15 pir@jsid ressalva de serem um pouco mais complexos, proporcionando a0 videola um pretenso espeticulo pirotécnico. Um exemplo disto passou no canal 301 na filtima quinta-feira: o saudoso Namor, principe de Atlantida, arremessa um fogo-de-santelmo em um bivaque guardado por um perso- nagem que se au(o-intitula Jaspion de Ormuz. Este um século propicio paraa retomada da Filosofia das Luzes, pois o que mais alrai a aten¢ao das pessoas so as dicréicas de pésitrons. As donas-de-casa, hoje mais irasciveis que as ménades tricoteiras, lavam suas roupas sujas a céu aberto, para que os deuses possam ver um bate- boca na primeira fila. Em uma alameda da capital, um negro caminha a passos de gato. Os muros caiados ressaltam sua maneira de escrivao classico, de amanuense do sovina Ebenezer Scrooge. O colarinho branco cede espago para o cafeti damasceno, Para ele, as representagbes do mundo podem ser analisadas én silico, pois nao éabsolutamente necessario viajar até 0 Nepal para saber o que é um trés-em-um. A maga do cotidiano pode ser resolvida com entretenimentos mentais patrocinados por “hipertextos” abundantes em morfemas morfinados. Onegro aperia o passo ea barrigueira de seu plexo a0 passar por alguns terrenos baldios que foram transformados em quintas alentejanas, devido 4 pentiria geral e 4 desvalorizagao venal. As cercas que protegem esses terrenos estio distantes do que poderiaser chamado uma harmonia preestabelecida. Masa pressa leva o andarilho a pisar em um excremento humano, a pior matéria a que um pisante pode ficar exposto. Ele se apéia nas cercas para limpar a sola com um graveto e completa o servigo com algumas folhas de hera que estavam 4 mio. 0 fato asqueroso no quebra © ritmo de seu livre pensar, pois a linha melédica desses pensamentos 6 ib pir@sid permeada por estranhas sentengas que irrompem coma fiiria de maximas minimalistas. Os enunciados sio sem sentido 4 primeira vista, apenas revelando uma sonoridade paranomésica, mas uma anilise mais acurada mostra seu poder de epitome deste Zefigeis?. Mas qual a origem deles, qual a finalidade, a intengao? Por que disquetes contendo frases sem efeitos circulam como periédicos em época de guerra? Pois os disquetes beletristas se popularizaram ¢ se tornaram verdadeiras instituigdes; € porque 0 riso foi inventado por Aristételes. Os disquetes, contendo textos que se rearranjam pelo “virus do escarabeu", sio conhecidos por “hipergazetas” ¢ tm uma aceitacao popular sé compardvel aos antigos pulps americanos. Seus autores deixaram de ter 2 marca indelével de desconstrutivistas invasores de sistemas e hoje astentam sossegados seus galardées. Estes “artistas” freqtientam obscurasseitas agndsticas como a Testemunhas de IHOH e-citam Ripley nos langamentos de suas obras, Um deles, que em sua juventude divertia-se como um verdadeiro backer, declarou candidamente para um repdrt vezes tenho saudade do formato in offavo.” Aalameda serpenteia como um estudrio para uma avenida perio do Clube Hipico Flor-de-Lis, onde gigantescas espadéteas formam um corredor rumo a sede. Os sécios da Hipica nao precisam se esforgar muito para esconder suas origens aristocriticas, pois o estilo bas-fond sealastrou com o empobrecimento geral de todas as classes. Quando vao cagar raposas no campo, o vira-lata do guarda-caga é um foxbound, o macacao do guarda-caca € um redingote e a lingua-de-sogra é uma potente trombeta, mais reverberante e sibilosa que aquela que derrubou as muralhas de Jeric6. Outro fato digno de nota é que, quando soa asereia da fabrica ao lado da Hipiea para a hora do almogo, os playboys 1? pir@jsid desmontam de seus cavalos, tiram um sanduiche de mortadela do bolso e, encostados nos jarretes, comungam junto com os trabalhadores bragais. A aristocracia decadent io-vai mais 4 Sotheby's, mas feira de artesanato da praca da Repiblica, faz guerrinha de chop suey em restaurantes. chineses e vé em seus humildes jardins de inverno uma galeria de vitrais. ‘O negro que passa pelo portal da Hipica € de ascendéncia banto, mas sua tez mais parece uma casca de kiwi. Sua militancia pela impostura da negritude nao dirime uma leve tendéneia para o gris. A perspectiva da avenida é ampla, o que o faz distinguir entre o espelho universal da multidio de transeuntes uma certa mulher, mais negra que a noite dos bororés, que surge de um carogo de tucumi, um pedaco de negrume redivivo. Sua maior atitude é sua altitude, pois ela é sempre confundida com win titnite piv6 de basquete. Segundo os calculos do negro, aquela sequdia ésua ex-esposa. A constatacio dispara um aleria vermelho, pois the vem 4 memériaa metafora do pato selvagem que foge da pasmaceira invernal e imigra para o calor do colo tropical. A raiva de um elefante ferido nao se equipara a raiva de uma mulher trafda, ea traigdo do negro fez com que um coragio fosse vendado ¢ fuzilado sem direito ao dltimo pedido. Este coragao virou uma espCcie de masculo entr6pico, gerenciado por um insano signo passional. Nio é 4 toa que seus encontros sio sindnimo de tabefes. O negro automaticamente se esconde atrds da peanha de uma estatua do Conde D'Eu, o repugnante comedor de criancinhas, mas por certo um cura de excelsa caridade comparado Aquele tenente americano que banhou o rio Mekong de sangue. A mulher passa ao largo da tocaia percutindo sua cabeca como uma galinha garnisé embevecida, com suas corneas de palmito abrigadas pelos aguilhdes de enlormes eflios postigos. Suavistosa ttinica da Costa é um chamarizdeiga, 14

You might also like