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I
Todos os divórcios se dão por mútuo consentimento. Ainda assim, se
em relação a uma criança, por força das clivagens que a relação dos pais foi
clarificando, se torna muito doloroso assumir que, na procura de horizontes
de felicidade, os pais magoem os filhos, do ponto de vista delas, e até se con-
sumar uma separação ou um divórcio, podemos, em rigor, falar de diversas
experiências abandónicas, protagonizadas por ambos os pais. Experiências
que têm, inequivocamente, valores erosivos diferentes, consoante os recursos
relacionais que os pais terão propiciado a cada um dos filhos, até aí. Muitas
vezes, as omissões parentais tenderão, após um divórcio, a ser esbatidas, assim
os pais aproveitem uma separação ou um divórcio para diluírem, significati-
vamente, o stress cumulativo e traumático que todos terão vivido. Noutras
circunstâncias, é o próprio acordo judicial que regula o poder paternal, intro-
duzindo uma regra na relação de ambos os pais com os filhos, onde antes ela
não existiria. No entanto, se os pais não reunirem competências parentais
que os levem, apesar de tudo o que os afasta, a considerar, em sede judicial,
um acordo que dê a uma criança o máximo possível de ambos os pais, todos
os dias, então (seja qual for o estatuto social e o estrato económico onde se
incluam) deve essa sua dificuldade ser tomada como, potencialmente, indu-
tora de perigos para um filho, devendo a criança ser sinalizada junto de uma
comissão de protecção de crianças e de jovens em perigo, e a decisão judicial
(que venha a dar-se) condicionada por isso. Mesmo que um filho tenha mais
de 12 ou de 14 anos (já que representa uma violência grave, que uma criança
escolha as razões evocadas por um dos pais, contra o outro, quando ambos
possam ter sido incompetentes ao não decidirem por ela, depois de a escuta-
rem). Para mais, sempre que um magistrado suspende por uma hora o exercí-
cio do poder paternal (ouvindo uma criança), contra a vontade dos seus pais,
está a presumir a incompetência deles para decidir por ela, reconhecendo,
implicitamente, que, ao permanecer sob os cuidados dos pais, poderá estar a
criança em perigo.
Síndrome de alienação parental
II
Será compreensível que se considere que a mediação da parentalidade sig-
nificará uma assumpção implícita de falhas parentais? De certo modo, sim..
Será essa assumpção sinónimo de uma incompetência essencial para a parenta-
lidade, associável a uma qualquer presunção de limitações do poder paternal?
Não. Porquê? Porque o exercício sério da parentalidade não tem de ser um
exercício omnipotente, e pode ser associado a recomendações e auxílios que
potenciem os recursos que existam nos pais. Nesse sentido a mediação familiar
deve, inclusive, ser entendida, sempre que dela resultem consensos parentais
Prefácio
Síndrome de alienação parental
III
Uma decisão judicial deve condensar, a este propósito, os supremos inte-
resses de uma criança e os dos seus pais colocando-os, a todos, tendencial-
mente, em paridade. Sendo assim, deve, inevitavelmente, uma criança, por
mais pequena que seja, ser confiada, preferencialmente, à sua mãe? Não.
As competências relacionais do feto e do bebé obrigam-nos a reformular
muitos dos lugares-comuns que foram acompanhando a nossa formação. Daí
que se afirme que, desde o início da sua vida mental (algures, por defeito,
entre os quatro e os cinco meses de gestação), é a competência para assimilar
(e se transformar) com a alteridade dos laços, que cruza as rotinas da sua vida,
que faz da diversidade um factor, potencialmente, maturante para a vida
dum bebé. Como o é, também, a triangulação que a presença, mais ou menos
permanente, da mãe e do pai (nos cuidados que lhe prestam) que estruturam
a sua identidade.
A mãe deveria ser vista como uma protagonista exclusiva dos primeiros
cuidados em relação ao bebé, se a feminilidade fundasse a maternalidade. E se
esta, mais do que uma qualidade estritamente materna, não fosse, como é, uma
qualidade fundamental do Ser Humano, que se organiza como um precipitado
de experiências vinculativas que concretizam - na mulher como no homem - a
disponibilidade para a vinculação.
Quererá isto, então, dizer que um pai pode reunir os requisitos de mater-
nalidade essenciais ao desenvolvimento saudável de uma criança? Sem dúvida
que sim. Pode, uma tal afirmação, pressupor que, em muitas circunstâncias,
serão os requisitos maternantes do pai (se pretendermos preservar a noção tra-
dicional, associada aos cuidados parentais) a equilibrar ou a compensar falhas
ou omissões continuadas da mãe, em função das transformações que se possam
operar no seu psiquismo? Sim.
Todavia, os números globais acerca da confiança judicial do poder pater-
nal talvez nos indiciem uma outra perspectiva. Assim, no decurso de 2002,
ter-se-ão dado, em Portugal, 16 606 regulações do exercício do poder pater-
nal. Nelas terão estado envolvidas 24 670 crianças (9 701 das quais, com
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Prefácio
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Síndrome de alienação parental
para além do divórcio. Mas muitos outros também querem participar na vida
diária de uma criança. E recusam ser telepais (disfarçando a lonjura com um
telefonema de circunstância, todos os dias) ou pais em “suaves prestações”
quinzenais.
Se existir, por parte dos pais de uma criança, um clima de conflitualidade,
por mais que se desenrole de forma latente - seja a propósito das dissonâncias
exuberantes nos seus desempenhos parentais, seja, porventura, acerca do res-
peito obsessivo do acordo sobre o poder paternal (prejudicando rotinas que
sejam estruturantes para ela), ou da forma como possam sobrepor os ressen-
timentos que os separam à sua responsabilidade de pais - esses desempenhos
parentais poderão ser configurados como, potencialmente, maltrantes. Por
outras palavras: judicializar a educação é maltratar. Será, numa continuidade
dessas, que a judicialização da educação de uma criança será um mau trato
que, a banalizar-se, a transforma, por inerência, numa criança em perigo? Sem
dúvida que sim. Como o serão, também, todas as atitudes parentais que as
façam sentir que gostar do pai possa significar um acto de traição em relação
à mãe (ou vice versa). Ou aquelas que, repetidamente, empurrem as crianças
para atitudes parentificadas, como se se invertessem, sem reversibilidade, os
papéis de pai ou mãe e o de filho ou de filha. Como o são, ainda, os investimen-
tos claramente diferenciados que prejudiquem um dos filhos em benefício
doutro, que terão como sequela uma erosão, potencialmente irreparável, da
relação da fratria.
Em quaisquer destas circunstâncias, não provocando estes procedimentos
as lesões que são, habitualmente, associadas aos maus-tratos, e podendo não
ser essa a intenção dos pais, poderão configurar, no plano das sequelas que
acarretam, uma situação dessa natureza. Será, então, saudável, que - no con-
texto de um divórcio - e até que se organizem rotinas relacionais consistentes,
que cada uma das crianças de uma fratria, seja confiada a pais diferentes? Não.
E é natural que, pensada na singularidade das suas reacções, que reaja, a cada
um dos seus pais, de forma diferente? Sem dúvida. Poderá isso representar
níveis de tolerância à dor distintos, em cada uma delas? Porventura. Mas
também pressupõe que a exuberância da reacção emocional a uma experiência
traumática nem sempre representa um indício de preocupação acrescida. Por
exemplo, uma adequação excessiva, em relação a tudo o que de turbulento
possa existir, pode ser muito mais preocupante. Por isso, não deve ser a reac-
ção de cada uma das crianças, num dado momento, a pautar cada atitude dos
seus pais, já que o seu apelo, subjacente a uma imensa pluralidade de atitu-
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Prefácio
des, testa a qualidade empática dos seus pais e discrimina a sensatez dos seus
desempenhos parentais.
IV
Partindo daqui, e tomando em consideração os interesses de uma criança,
poderá ser relevante o tempo de cuidados que um dos pais possa levar “de avan-
ço” em relação ao outro? Não. Porque, nem sempre, mais cuidados significam
melhor parentalidade. Não, porque não poderão ser ignoradas as motivações
reparadoras que um dos pais possa ter em relação às omissões de cuidados que
tenha tido. Não, ainda, porque cabe aos técnicos, em quem um Tribunal se
apoie, despistar motivações fundadas para a parentalidade e conflitualidade
estéril, centrada nos cuidados que os pais reclamem para os menores.
Será, ainda, razoável que afirmemos que é a identidade de género que pauta
a construção da identidade? Não. Para que uma criança se sinta rapariga ou
rapaz interage o seu género sexual e, sobretudo, a forma como consegue com-
patibilizar, dentro de si, uma mãe e um pai que, para tanto, não precisam estar
juntos por fora. Aliás, muitas das perturbações da personalidade estruturam-
-se na convivência com dois pais que, apesar de juntos por fora, são sentidos
como, irreparavelmente, divorciados por dentro.
Sendo assim, mais importante do que a necessidade de nutrição, uma
família representa uma necessidade básica, porque é da alteridade dos gestos
da relação com a mãe e com o pai, da diversidade dos ritmos e da pluralidade
dos cuidados, que uma criança cria as bases que lhe permitem - ao ser “igual
à mãe e ao pai”, em simultâneo - mobilizar os recursos de saúde, para que,
partindo deles, passe a reconhecer-se em si própria. Por outras palavras: a
«guarda conjunta» terá colocado em “letra de Lei” os requisitos mais ade-
quados ao desenvolvimento integral duma criança. Mas a diversidade das
opiniões de um e de outro pais, em relação à qualidade dos cuidados a prestar
a uma criança, poderá provocar, no caso de um divórcio, uma turbulência
disruptiva para ela. Quer quando, entre os dois pais se registam clivagens
(ou, até, fracturas) em relação a regras ou a cuidados a ter, quer quando um
deles tenta deslocalizar uma criança. Em quaisquer circunstâncias, quando
os pais não se conseguem descentrar dos ressentimentos ou das clivagens
de uma relação, elegendo os legítimos interesses do menor como factor de
transformação das situações traumáticas a que tenha sido exposto, é legítimo
que ele seja sinalizável como criança em perigo, junto de uma comissão de
protecção de crianças e de jovens.
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Síndrome de alienação parental
V
Como nos deveremos colocar diante de um progenitor que, embora se
assuma como pai de diversas crianças, tome o acordo para uma delas, recusan-
do o contacto ou negligenciando, continuadamente, uma outra (ou outras)?
Assumindo o poder paternal, em quaisquer circunstâncias, como um exercício
de indivisibilidade da fratria, o que fará com que todas as tentativas, subtis ou
declaradas, para dividir os irmãos, entre famílias ou instituições, pelas seque-
las irreparáveis que (caso isso sucedesse) perdurariam pelo tempo, e que são
compagináveis com maus-tratos graves, devem merecer as adequadas medidas
de protecção das crianças, limitação ou inibição do poder paternal incluídas.
O mesmo deverá suceder quando a discrepância dos gestos de parentalidade,
sejam quais forem as atenuantes referidas, se dão entre irmãos de diferentes
relações dos seus pais.
E como nos deveremos colocar diante dos progenitores que, reclamando
sobre a sua legitimidade de assumirem o poder paternal, se declaram, para
efeitos de incumprimento das prestações mensais que seriam da sua respon-
sabilidade (no âmbito de um acordo), estudantes ou desempregados? Como
deverá entender-se o comportamento de algumas progenitoras (será a situação
mais banal) que, assumindo a sua maternidade em dedicação exclusiva, vivem
(por vezes, faustosamente) à custa da pensão mensal que negociaram num
acordo de divórcio?
Se os pais não assumem, em toda a sua amplitude, as responsabilidades que
decorrem da assumpção da sua parentalidade, manifestando - a par dos direitos
que reclamam - uma negligência continuada, não reunindo os recursos com
que façam face às necessidades de uma criança, devem - para efeitos do exercí-
cio do poder paternal, e considerando as sequelas psicológicas dos seus actos
que sobrevêem para os seus filhos - ser tomados como negligentes (devendo
decorrer daí as medidas judiciais de protecção de uma criança). Por outras
palavras, deve qualquer incumprimento das responsabilidades parentais ser
compaginável com uma situação de mau-trato, com a consequente limitação
do poder paternal? Sim.
Já no caso de um progenitor subsistir, de forma continuada, e seja qual
for o regime de guarda acordada, unicamente em função da compartici-
pação mensal para face fazer às necessidades de uma criança, deve merecer
uma medida do género da anterior. Por outras palavras, sempre que uma
pensão mensal corra o risco de se transformar num meio de subsistência
para um dos seus pais (não havendo limitações nem na saúde desse pro-
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Prefácio
VI
Será, neste contexto, legítimo que, num dado momento, um dos pais de
um menor o proteja do outro, sem o aval de um Tribunal? Se, em consciência,
teme que o outro exponha, de forma continuada, o filho de ambos a um peri-
go, é sensato que essa protecção se dê. Será razoável que, depois desse acto de
presumível protecção, o pai que promoveu a separação do menor, em relação
ao seu ambiente familiar, leve por diante esse acto sem que, entretanto, solici-
te uma medida de protecção judicial que o configure e o enquadre? Não. Se o
fizer, correrá o risco de sobrepor, de forma unilateral, uma avaliação individual
ao exercício da justiça sobre o menor, com tudo o que isso poderia ter de per-
nicioso, transformando um gesto que seria, inicialmente, de protecção, numa
consequência – potencialmente – maltratante.
Admitindo que, sejam quais tenham sido os motivos que evoque, o
pai que subtrai o menor tenha guiado o seu acto pela ânsia de o proteger
de algum mau-trato, a bondade desse gesto desmorona-se no momento
em que, de forma continuada, não só não terá procurado legitimar judi-
cialmente o seu acto, como foi privando, de forma ininterrupta, o pai de
ter acesso à menor. Ao fazê-lo, mais do que incorrer numa presumível sub-
tracção do menor, com as consequências que a Lei configura para o acto,
expõe-a - mesmo que baseada numa presunção de bondade – a maus-tratos
cumulativos. Porquê? Porque, de forma abrupta e encadeada, quebra as
ligações do menor com os seus vínculos significativos, com os seus espaços
de referência e com as suas rotinas, sendo essa cascata de acontecimentos,
potencialmente, associável a um estado de choque psicológico que só muito
tempo depois se expressará por diversos sintomas, exigindo (mais tarde)
muitas gestos securizantes e reparadores, por parte do pai a quem a menor
foi subtraída (que, apesar disso, continuará – pelo menos, em parte, e em
virtude da sua presumível omissão protectora neste processo – a ser sentido
como misteriosamente mau).
Numa circunstância como essa, será razoável que, depois de contornada
a presumível subtracção, o poder paternal seja reposto na forma que preva-
lecia antes de um acto como este se ter dado? Não! Quer os pais acordem,
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VII
Como pode, à luz destes pressupostos, compreender-se uma queixa de
abuso sobre um dos pais de uma criança, protagonizada pelo outro? Como uma
imputação de responsabilidades que, pela sua desmesurada gravidade, deve ser
sustentada em actos inequívocos. Sendo assim, a limitação do poder paternal
deve dar-se ao mesmo tempo que essa queixa é formalizada, como forma de
proteger, urgentemente, uma criança de um dos seus pais. E se, porventura,
dessa queixa se conclui a existência de má-fé do pai/mãe que denunciou, em
relação ao outro? Sejam quais forem os outros motivos que possam estar sub-
jacentes a uma denúncia como essa, ao correr o risco de instrumentalizar uma
criança, sujeitando-a a inúmeros exames periciais e ao fracturá-la entre os seus
pais, o pai/denunciante expõe uma criança a um perigo que, pela sua gravida-
de, deve desencadear uma medida imediata de protecção que poderá incluir a
inibição do poder paternal.
Será razoável que, depois de contornada a presumível fractura entre os
pais de um menor, o poder paternal seja reposto na forma que prevalecia
antes de um acto como este se ter dado? Não. Uma criança deve ser consi-
derada em perigo, devendo merecer o acompanhamento que essa situação
torna exigível.
VIII
A alienação filial é uma mau-trato grave que deve merecer medidas judi-
ciais de protecção das crianças, e a respectiva limitação do poder paternal, a
alienação parental representa um processo de uma enorme perversidade, pois
faz-se com dolo para um dos pais e a pretexto da vontade expressa ou sob o
consentimento tácito de uma criança. Tamanha instrumentalização - que faz
com que, sob os mais diversos argumentos, se evoquem (de forma populista,
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