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Era uma vez, há muito, muito tempo, no ponto mais distante do reino mais
distante, próximo ao cume da mais alta montanha daquele reino, uma grande
e antiga árvore que dava bons e abundantes frutos, os mais doces de todos
que se tem notícia.
Sob essa árvore, mesmo quando soprava o uivante e frio vento da montanha,
sentava-se, todas as quintas-feiras à tarde, o velho sábio de olhar sereno e
barba branca, guardião do conhecimento dos antigos, bastião moral dos
habitantes de sua aldeia. A ele, recepcionados antes por um jovem assistente,
acorria gente de todo o reino em busca de uma palavra que as iluminasse, um
conselho que indicasse um rumo para suas vidas atribuladas.
Certo dia, chega à aldeia, não numa quinta, mas numa sexta-feira, um jovem
socialista ateu de olhar distante e sem brilho. Trazia as vestes gastas,
praticamente trajava andrajos. Os pés, calçados em sandálias de couro
maltrapilhas e sujas de lama. No olhar perdido, deixava entrever a apatia dos
que se haviam desencantado de tudo e de todos.
A uma anciã que passava carregando um cesto de frutas, perguntou com voz
cansada onde poderia encontrar o velho sábio de olhar sereno e barba branca.
Surpresa, a velha fitou-o de alto abaixo e respondeu como se falasse o mais
óbvio dos lugares comuns:
- O velho sábio de olhar sereno e barba branca, hoje, como sempre faz às
sextas-feiras, recolhe-se à sua morada, afastada da vila, para meditar e
escrever.
- Mas eu precisava muito falar com ele – insistiu o um jovem socialista ateu
de olhar distante e sem brilho.
- Mas o velho sábio de olhar sereno e barba branca, como todos sabem, só
presta atendimento aos desencaminhados e desencantados às quintas, dia em
que o vento é mais calmo e menos derruba frutos da árvore dos mais doces
frutos no chão onde ele se senta em um banco de madeira com seus
consulentes.
O jovem socialista ateu de olhar distante e sem brilho ficou desapontado, mas
não se deixou abater por completo.
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em atalhos perigosos, na floresta, que muito me atrasaram, cruzei rios
caudalosos em canoas frágeis, exauri minhas forças e quase morri subindo
montanhas íngremes... tudo para falar com o velho sábio de olhar sereno e
barba branca.
Após aceitar o convite para uma refeição na casa da anciã do cesto de frutas,
o jovem socialista ateu de olhar distante e sem brilho foi finalmente levado à
árvore dos mais doces frutos. Aproximava-se o final da tarde. Lá chegando,
vislumbrou ao pé desta, sentado em um banco, as vestes iluminadas em tons
de dourado pelo sol que caía no horizonte, o velho sábio de olhar sereno e
barba branca.
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pode haver para um mundo assim? Que futuro pode haver para tais gentes,
que lidam umas com as outras todos os dias sem pensar no bem comum?
- Caro jovem socialista ateu de olhar distante e sem brilho, vou contar-lhe
uma história. Ela talvez ajude a iluminar a treva que encobre a luz do seu
caminho.
“Era uma vez um homem rico, muito rico. E esse homem de posses teve três
filhos aos quais amava mais do que tudo e sobre o futuro dos quais muito
meditava. O que seria deles quando ele se fosse? O que fariam de sua
fortuna? Seriam capazes de mantê-la? Ou talvez até aumentá-la? Ou será que
a dissipariam pouco depois que ele cruzasse as portas do reino do
desconhecido?”
“Muito pensava ele também sobre qual seria a forma mais adequada de
repartir entre os filhos o fruto de sua vida de muito suor e trabalho. E,
incapaz de escolher a melhor e mais justa forma de legar sua riqueza à prole,
o homem rico tomou uma decisão que à mãe de seus filhos e companheira de
toda a vida surpreendeu.
“Identificando no primeiro filho uma inabilidade para lidar com pessoas, mas
uma grande capacidade para lidar com os números e os mais complexos
cálculos, usou a parte que a este caberia como herança de sua fortuna para lhe
dar a melhor educação nas ciências matemáticas e nos ensinamentos da
contabilidade.
“Vendo no segundo filho uma mente inquieta, mas com pouca inclinação
para os estudos, compensada em parte pela facilidade para lidar com pessoas
e grande habilidade para conquistar novos amigos, treinou-o para administrar
negócios, encontrar novos clientes, formar equipes capazes de encontrar
soluções para problemas aparentemente insolúveis.
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“O primeiro filho, para alegria do pai, tornou-se exímio contador, trabalhando
tanto no auxílio das empresas do pai quanto nas finanças dos próprios irmãos
e de outros que contratavam seus serviços de indubitável qualidade,
matemática precisão e absoluta honestidade.
“O segundo filho, que sempre fazia o pai sorrir, tornou-se dono da maior
cadeia de lojas do reino e abriu também lojas em cidades importantes de
outros reinos, tornando o nome da família conhecido, oferecendo produtos e
promoções que atraiam cada vez mais compradores.
“Assim, meu jovem socialista ateu de olhar distante e sem brilho, os três
filhos partilharam a herança do pai. Mas o primeiro dela se beneficiou
desenvolvendo seus dotes intelectuais com o estudo. O segundo desfrutou-a
auferindo lucros dos negócios que abriu e fez crescer. E o terceiro dela fez
uso diretamente por herança do patrimônio expandido no mercado das
finanças.
“Qual dos filhos, depois de herdada sua herança, mostra-se ético e qual se
mostra antiético no modo como se sustenta? E qual desses modos é o mais
justo? Seria mais justo garantir o sustento desenvolvendo e usando um
talento intelectual com o qual já se nasceu? Ou o justo seria viver do lucro do
que se produz e comercializa? Ou justo ainda seria beneficiar-se de uma
herança aumentada sem esforço próprio, na especulação financeira?”
Pensava com seus botões o jovem socialista ateu de olhar distante e sem
brilho sobre que resposta que deveria dar ao velho sábio de olhar sereno e
barba branca. Imaginava por que afinal viera de tão longe e passara tantos
padecimentos para ter o privilégio de uma breve entrevista com o homem
muito entrado em anos que se sentava sob a árvore dos frutos mais doces,
próximo ao cume da montanha mais alta, da região mais distante do reino
mais longínquo, e ademais num dia da semana em que ele nem prestava
atendimentos, apenas para, em vez de respostas, receber inquirições para as
quais não tinha o que responder.
E eis que de repente, do alto da árvore sob cuja sombra descansavam, caiu-
lhe na cabeça um fruto. Apesar do susto e da dor que sentiu, o jovem
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socialista ateu de olhar distante e sem brilho achou ares para ecoar,
assumindo um olhar de fúria, o mais obsceno palavrão até então jamais
ouvido naquelas paragens do reino.
Algo contrariado, o jovem socialista ateu de olhar furioso, ainda sentindo dor
e passando a mão na cabeça, respondeu:
- Mas o que pode haver de ético ou antiético no simples incidente da queda
de um fruto, velho sábio de olhar sereno e barba branca? Não há que se falar
de ética ou de falta desta no desprender-se o fruto de seu galho e ser ao chão,
ou à cabeça de alguém, levado pela gravidade!
“Se minhas pernas não me permitissem andar, isto não tornaria imorais em
relação à minha condição as caminhadas que você faz por vales e montanhas.
E se nós dois podemos caminhar e você passasse um dia pela mesma estrada
que eu, só que antes de mim, e eu em seguida encontrasse à beira desta
estrada dez moedas de ouro, isto não tornaria o fato de eu as possuir, e você
não, uma injustiça.
A essa altura, o sol já se havia posto. Seus últimos raios não mais tocavam o
chão, atingiam apenas algumas nuvens de um céu que se preparava para
receber a noite e suas estrelas.