Professional Documents
Culture Documents
MEDICINA
O afastamento da Noção
de Vida e Natureza
ISBN 978-85-312-1017-8
Imago Editora
Tel: (21) 2242-0627 – Fax: (21) 2224-8359
Rua da Quitanda, 52 / 8º andar – Centro
20011-030 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: imago@imagoeditora.com.br
www.imagoeditora.com.br
Na verdade, ele está sempre lutando pela vida nele contida. Aos
médicos cabe desenvolver a consciência desse fato com
humildade, pois o organismo é mais sábio do que qualquer
medicina.
Apresentação 7
Capítulo I
O elo 13
A arte 17
Capítulo II
A matemática 27
O endereço (in)certo da doença 35
Diga “trinta e três” 39
Germe, que bicho é esse? 45
A tarja preta 57
O nó gordiano 69
Os sinais de trânsito de nosso organismo 75
Uma verdade sobre os hospitais 79
Capítulo III
O náufrago idiota preguiçoso 91
O médico e a fé 99
A célula é o alvo errado 113
De onde viemos 123
Alergia e matriz 131
Nós e a água 139
Nós e a Terra 147
O chimpanzé, o homem e a máquina 151
O obeso e a grávida 161
Quantum. O psíquico e os campos 173
O corpo energético 183
Envelhecimento. Doenças crônicas.
Processo degenerativo 211
A arte médica e a natureza 239
Apresentação
Pág 11
Capítulo I
A arte médica e a natureza na medicina,
história remota e contemporânea
Pág 13
O elo
Pág 14
do êxtase no acasalamento. Curiosamente, neste momento, homem
e mulher perdem a conexão com o mundo terreno, transcendem
para um lugar atemporal. Podemos chamar esse lugar de felicidade
plena, daí, talvez, a nossa procura pelo orgasmo. Ao encontrá-lo,
haveria a abdicação total ao trabalho e a perda do medo de cair
num abismo. Hora em que o poeta dentro de nós diz: “morrer um
para o outro”. Mas essa é outra história...
Outro momento de vida plena seria o acontecimento fantástico da
fecundação. No instante seguinte, já seríamos apenas uma onda se
formando e prestes a desabar.
Ambos os momentos são demasiadamente breves.
Fora desses lugares, a vida é um espaço maravilhoso de
oportunidades, enquanto o organismo humano fica sujeito a toda a
sorte de interação, interna e externa. Trabalhando sem parar,
suscetível, portanto, ao estresse e ao adoecimento que são
combatidos por um poderoso sistema integrado de defesa: o
sistema neuroimunoendócrino; “neuro” do sistema nervoso central;
“imuno” de imunidade; e “endócrino” de glandular. Sistema esse que
passa informações de pai para filho, desde o começo da vida
humana neste mundo. Conhecimentos acumulados e influenciados
por ressonâncias diversas e adversas.
Interpretar esse organismo incrivelmente complexo, dinâmico e
individualizado é o que se chamou de Ars, arte médica. Aqui,
poderíamos apontar a primeira hipótese do elo perdido da arte
médica ou melhor dizendo, um elo ideal que nunca existiu: o caso
do médico não ater-se somente aos doentes, até pelo contrário.
Desta forma, o bom médico, o bom artista da medicina, é aquele
que se encanta diante de cada
Pág 15
organismo humano, desse mistério que é a vida em franco
progresso. Mas, em determinado momento histórico de nossa
civilização, o médico perdeu contato com essa arte, rompeu o elo
principal, perdeu mesmo o interesse por ela, passou a dedicar-se
ou delegar seus poderes em detrimento dos seus dons, à ciência.
Coisa menor, ainda que fabulosa também.
Gostaríamos que essa idéia de arte envelopasse tudo o mais que
narraremos a partir de agora. Pois era assim no início.
Sempre que possível, daremos exemplos reais; revelaremos fatos
conhecidos da classe médica – mas aparentemente caídos no
esquecimento; conhecimentos do público em geral – mas,
negligenciados por um equivocado estilo de vida moderno – uma
falsa idéia de progresso; fatos sobre o empresariado, formadores de
opinião e tomadores de decisão nas esferas públicas e privadas e
até sobre educadores; fatos esses desprestigiados pela mídia, e
que, uma vez contemplados, o são fora de um contexto mais amplo,
no que diz respeito à saúde humana, à qualidade de vida – pois é
só isso que interessa ao homem. Ou não é?
Aceitemos. Não somos educados para representarmos a nós
mesmos. Por isso, desempenhamos muito mal nossos papéis. Até
mesmo na intimidade, diante do espelho, nunca levamos a sério a
frase encontrada por Sócrates na entrada do Santuário de Delfos:
“conhece-te a ti mesmo”.
Pág 17
A arte
Pág 18
do desconforto e dor, ao bombardeio de raios X, periodicamente,
sem questionar se há outro método de vigiar a saúde de suas
mamas. Ou, ainda, basta uma consulta médica, com ou sem
sintoma algum aparente, e crianças, jovens, adultos e idosos de
ambos os sexos são encaminhados cada vez mais para laboratórios
e clínicas de exames radiológicos e eletroeletrônicos que
demandam contrastes de substâncias químicas, algumas tóxicas,
circulando no nosso organismo. Sem falar do custo em dinheiro.
Porque o médico, como mediador entre a natureza e o organismo,
perdeu o lugar para a medicina como ordem médica. A medicina
perdeu para os equipamentos e laboratórios, estes, para a
tecnologia, e esta, para a indústria e o capital. Quão distantes da
natureza nos tornamos.
Não há dúvida, algo está errado neste cenário. Mas onde isso
tudo começou, onde foi que erramos? Quando perdemos esse elo
com a natureza? Perguntas sugestivas numa época (século XXI)
em que constatamos quão adoecido está o ambiente total, o
planeta.
* * *
Pág 19
Na tradição mais próxima de nós, a grega, sobretudo na tradição
da medicina hipocrática, que é dita matriz da medicina ocidental, a
noção de natureza é aprendida através do conceito de physis. Uma
noção grega em que se concebiam as coisas pelo movimento, pela
sua dinâmica, pela dinamis. Os gregos diziam que a “qualidade” das
coisas seria mais bem percebida no processo, na dinamis, no
movimento. Não prestavam atenção à matéria, mas sim aos
movimentos dela e em torno dela. O médico hipocrático, na sua
arte, deveria ser um especialista em identificar o que no
adoecimento era dinâmico da physis, dinâmica que levaria ao
estado de equilíbrio, o movimento próprio do organismo no sentido
da cura. Ou o que era a dinamis contra natural, ou dinamis pathos,
dinâmica da influência antinatural.
O médico buscava inibir os processos do movimento antinatural e
estimular os movimentos da physis curativa (natureza medicatrix).
Esse conceito ganha força na época da medicina galênica, do
mundo romano, em que se vai centrar quase todo o foco de
entendimento médico em torno da natureza medicatrix, ou seja, a
noção de dinamis, o movimento de cura, ou de regulação própria do
organismo.
Esse deveria ser o grande foco de atuação do médico, fortalecer,
respeitar, entender, monitorar a dinamis da natureza medicatrix,
também conhecida como vis medicatrix naturae.
E essa noção de medicina foi tão forte que determinou a
nomenclatura do praticante da arte médica. Em inglês o médico é o
physician, seguidor da physis. De outra maneira, em latim, médico
vem de mediar, medicare (trazer para o meio, para o equilíbrio). Em
ambas o médico era o artista, o portador
Pág 20
da arte de intermediação entre a natureza e o indivíduo, o ser vivo
adoecido.
Sempre uma noção de um agente de intermediação, de
interlocução, de mediação. Essa noção domina por cerca de 20
séculos a chamada medicina ocidental, que nasce com Hipócrates1
e segue com os 17 séculos de galenismo2.
________________________
Pág 21
É claro que esse caminho nunca foi retilíneo. Ele oscilava de
acordo com as influências sociais, da cultura e os avanços no
conhecimento. O que é bem nítido é uma oscilação entre a vertente
racionalista e uma tendência empírica, que valorizava a observação
e experiências médicas.
Mas era claramente hegemônica a noção vinculada à tradição
hipocrática e galênica. A exploração médica do campo da physis ou
da natureza era fortemente marcada pelo saber de base empírica,
pela experiência, pelos sentidos, pela percepção. Isso dava à
medicina um caráter de arte, ars médica. Fruto do acúmulo de
conhecimento, da observação, do uso da sensibilidade, de definição
de indícios, do processo do adoecimento.
Por outro lado, o pensamento racionalista tendia a minimizar a
observação individual, seguia a máxima de Galileu, individuum est
inefabile, sobre o indivíduo não se pode falar, isto é, a ciência se
baseia na repetição para estabelecer as suas leis. Isso realçou a
falha do observador, as falhas das avaliações de caráter empírico.
Crescia a preferência pelas teses apriorísticas e quase sempre
reducionistas.
Façamos o mesmo jogo, isto é, observemos as falhas desta nova
medicina sem elos com a natureza que começou a surgir: não é um
incrível e perigoso atalho a ingestão de uma droga sintética de
supressão de um pseudo-sintoma de adoecimento, de uma dor, de
um mal-estar? A submissão a exames por máquinas não é, no
mínimo, uma ação tempestiva que fazemos em nosso organismo?
colocaremos isso em uma perspectiva nítida mais adiante.
* * *
Pág 22
Na Renascença, houve o grande movimento de resgate da
tradição hipocrática, a volta à natureza. Era um movimento de
valorização da vertente observacional. Da vertente focada na
experiência, na observação da dinamis do organismo.
Hoje em dia, destaca-se Paracelso3, um médico criativo que
rompeu radicalmente com as teorias médicas de então. Ele pode
ser considerado o principal precursor da medicina energética, das
forças sutis do organismo, na concepção da tendência vitalista, cujo
principal expoente foi Hahnemann4. Mas devido à sua forte crítica
contra o establishment médico foi perseguido, odiado, e tido como
irresponsável e sofreu toda forma de depreciação do seu trabalho
visionário. A partir do século XX, vem sendo recuperado através de
diversas obras. Vários médicos de hoje são admiradores e
seguidores de Paracelso. Várias clínicas da Europa, de medicina
natural, integral e biológica recebem o nome de Paracelsus Clinic,
na Alemanha, Áustria, Suíça, de tal forma que Paracelso hoje está
completamente reabilitado.
___________________________
Pág 23
A propósito, com relação à Renascença e à lembrança histórico-
cultural, a medicina não era considerada uma área das ciências, e
muitas das suas maiores descobertas não foram feitas por médicos,
mas por artistas, tais como Leonardo da Vinci e Michelangelo.
Cabe aos médicos desatarem o nó gordiano em que estamos
amarrados, desastrosamente longe da natureza em todos os
sentidos. Mas é preciso ter coragem e amor à arte.
Pág 25
Capítulo II
Pág 27
A matemática
Pág 28
Nas suas várias vertentes, o vitalismo dominou 20 séculos da
medicina ocidental. O vitalismo só começa a entrar em xeque com a
incorporação das ciências clássicas pela medicina, no século XVIII.
Esse século marcou a manifestação, no campo médico, da
revolução das ciências clássicas, sobretudo da física mecanicista
de Galileu e, mais adiante, de Newton. Mas também, concepções
filosóficas, especialmente o positivismo comtiano5, tiveram grande
impacto na nova medicina delineada a partir do século XVIII.
__________________________
5 O Positivismo é uma corrente filosófica cujo iniciador principal foi Augusto
Comte (1798-1857). Propõe à existência humana valores completamente
humanos, afastando radicalmente teologia ou metafísica. Assim, o Positivismo
– em sua versão comtiana, pelo menos, pois há teorias em outras áreas do
conhecimento humano que utilizam a palavra “positivismo” – associa uma
interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética
humana. O Positivismo fez grande sucesso na segunda metade do século XIX,
mas, a partir da ação de grupos contrários (marxistas, comunistas, fascistas,
reacionários, católicos, místicos), perdeu influência no século XX. Ao elaborar
sua filosofia positiva, Comte classificou as ciências que já haviam alcançado a
positividade: a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química, a Biologia e a
Sociologia (esta última estava sendo formulada pelo próprio Comte).
A noção da física newtoniana focada no conhecimento da matéria,
chamada de tendência solidista, da equação mecanicista e
cartesiana em que o todo é a soma das partes, norteia a pesquisa e
o desenvolvimento do pensamento das ciências clássicas, e da
medicina por extensão. Surge o conceito de matéria corporal.
Pág 29
Embora a noção, o conhecimento e a idenficação da presença
das células no organismo, ou dos elementos micorcópicos, sejam
descobertas do século XVII, trouxeram pouco impacto para a
medicina. Porque a medicina não trabalhava com uma teoria
médica que se beneficiasse dessa descoberta. Ela ainda buscava
compreender o organismo através de sua dinâmica vital, dos
humores. Não buscava compreender o organismo decompondo sua
matéria corporal em pequenas partes.
A teoria celular só será utilizada pela medicina em outro ambiente
de conhecimento, em outra época, em outro paradigma, que não o
vitalista. Isso se dá, poranto, no século XVIII, sob a influência de
Descartes e Newton.
Pág 30
nada que aprender com o morto, cessava a vida, acabava a
curiosidade médica.
__________________________
6 O estudo anatômico-clínico do cadáver tem registro a 330 a.C., mas como
meio mais seguro de estudar as alterações provocadas pela doença, foi
introduzido por Giovan Battista Morgani no século XIX, quando surgiu a
anatomia patológica.
PÁG 31
Michel Foucault estudou isso com genialidade. Ele identificou que
a medicina pré-teoria anatomoclínica fazia um “olhar classificatório
de superfície”. Isto é, o médico listava os sintomas por semelhanças
e agrupava as doenças pelas manifestações semelhantes dos
sintomas. De modo que, se um sujeito tivesse febre com icterícia,
esta era chamada de febre ictérica. Mas sabemos hoje que várias
doenças podem produzir febre e icterícia.7
___________________________
7 Icterícia, palavra que deriva do grego Ikteros nome dado ao verdelhão, um
pássaro de plumagem verde-amarela. É percebida pelas fezes, mas é vista
também na cor amarela da esclerótica dos olhos, das mucosas e da pele. É
conseqüência do aumento da bilirrubina no sangue e nos tecidos acima dos
valores normais. Os nossos glóbulos vermelhos são destruídos 120 dias depois
de nascerem na medula óssea. Todos os dias nascem e são destruídos
glóbulos vermelhos no nosso organismo. Um dos produtos da destruição dos
glóbulos vermelhos é a bilirrubina que é captada pelas células do fígado,
eliminada pelas vias biliares até ao duodeno, e contribuem com a coloração
das fezes. Se a destruição dos glóbulos vermelhos é muito grande, ou se há
um obstáculo no fígado ou nas vias biliares que dificulte a passagem da
bilirrubina para o duodeno, ela aumenta no sangue e dá a cor amarela às
mucosas e depois à pele.
Pág 32
organismo, a profundidade do organismo. um grande avanço, se
não fosse também um grande desvio conjugado com outros fatores.
Mais um elo perdido da arte médica. Veremos.
Os franceses chamaram isso de medicina clínica, ou de medicina
dos hospitais de Paris. Porque nasceu nos hospitais de Paris. Até
então os hospitais não eram um espaço médico, eram espaços de
depósitos de pessoas marginalizadas, dos excluídos socialmente,
dos leprosos; o espaço da caridade onde ficavam as ordens
religiosas, e os médicos não tinham nada o que fazer ali. Aquilo era
um espaço insalubre, um espaço de doença.
A medicina de entãoi era chamada de medicina de beira do leito.
O espaço de prática médica era à beira do leito na casa do
paciente. Os hospitais não atraíam os médicos.
Quando surgiu a teoria anatomoclínica, na qual para haver a
produção de conhecimento médico há a necessidade do acesso ao
cadáver, a medicina passou a dar um grande destaque ao espaço
hospitalar. Começou a ocorrer a medicação dos hospitais. O espaço
de excluídos, nojento e perigoso para a saúde, começou a se
transformar na Meca de produção de conhecimento da nova
medicina. A teoria anatomoclínica começou a definir todo o
horizonte do conhecimento médico.
Ao afirmar que a doença é o aparecimento de uma lesão, do
tecido, da matéria corporal, geralmente no interior do organismo, a
medicina dirá que a lesão, essa alteração da estrutura do tecido, do
órgão inteiro, é a sede, o local e a causa da doença. A lesão, é ao
mesmo tempo, o local, a sede e a própria doença. A redundância é
proposital, porque passou a ser um circulo vicioso de raciocínio.
Pág 33
Então, quando se fala de doença, na visão anatomoclínica, está
se falando em uma alteração estrutural do organismo, com alguma
sorte, no interior do organismo.
SE NÃO FOSSE IRONICAMENTE INGÊNUO, SERIA DE UMA
CRUELDADE ABOMINÁVEL, ENTREGAR O CUIDADO DA SAÚDE
HUMANA À ARITMÉTICA TÃO SIMPLÓRIA. TEM SIDO A NOSSA
REALIDADE, CONTUDO.
E quem disse que o ser humano pode adoecer por partes? Como
pode um sistema tão complexo e dinâmico como o organismo
humano adoecer apenas em uma parte e o seu todo (corpo-mente)
não interagir nesse processo de adoecimento, ou movimento de
cura? Podemos afirmar também, ora, Deus não esgotou toda a sua
criação em Newton e Descartes, e muito menos na equação nem
sempre verdadeira em que dois mais dois são quatro.
* * *
Pág 35
O endereço
(in)certo da doença
A doença passa a ter uma sede, um endereço completo. E
o médico passa a especializar-se cada vez mais em áreas
geográficas cada vez menores do corpo humano. Por essa
linha de aceitação, quando tivermos uma febre, basta que
nos consultemos com milhares de médicos que produzirão
em conjunto um diagnóstico e uma terapêutica. Mas
passamos a enfrentar um problema mais difícil ainda de
ser superado: para os hospitais começaram a ser enviados
os doentes mais graves, surgiram as CTIs e UTIs onde os
doentes terminais, ou com pouca chance de sobrevivência
ou com grande risco de perda de vida são colocados sob a
vigilância de especialistas na sua doença. Um agravante a
mais: as mulheres grávidas também foram levadas para
parir nos mesmos hospitais. Só que aqui, do lado de fora,
enquanto doentes amenos, com suas dores de barriga, de
cabeça, lombares, diarréias repentinas, tonturas,
dormências, enjôos da gestação e coisas do gênero,
passaram a ser tratados por médicos formados com o
pensamento, digamos assim, hospitalar.
Pág 36
que fazer uma filtragem, uma valoração daquilo que interessa ao
raciocínio clínico que leve à identificação de onde está a doença, a
lesão, em que local está esse adoecimento. Claramente um
pensamento localista.
Uma vez eliminada a lesão, estará resolvido o adoecimento. É
clara a noção também de que o organismo adoece por partes, que
é possível adoecer uma parte do organismo. um equívoco
insustentável.
Pág 37
pênis, rosto, passariam a ser artigos de prateleira. Há quem diga
que cirurgiões iniciantes são ávidos por praticar e não perdem
tempo em abrir o corpo dos seus pacientes. Mas achamos essas
afirmações de uma maldade sem tamanho. Não cremos que aquele
encanto diante da máquina fantástica que é o organismo humano
tenha sido apagado pelo fascínio de tocar com as mãos no interior
da obra de arte, que nem lhe pertence.
Pág 38
o mesmo comprimento, embora o acesso à comida tenha ficado
mais fácil e o apelo ao paladar tenha se tornado uma peça de
manobra de mercado, indiferente à qualidade de vida, à saúde
humana. Enfim, nossa casa tem estado bem desarrumada,
devassada até, e adquirimos o péssimo hábito de manter apenas a
sala de visitas aparentemente bem asseada. Aliás, a noção de sujo
e limpo, gordo e magro, feio e bonito, é um capítulo importante
nessa história.
Pág 39
__________________________
8 Segundo os dicionários, processo mental de percepção, memória, juízo.
Apropriamos o conceito ao sistema de comunicação do médico com o
organismo humano.
Pág 40
órgão. Sobre esse terreno, de extensão da física newtoniana à
medicina, agrega-se a noção cartesiana res extensa e res cogitans,
à matéria. O cogitus não era objeto das ciências pelo alto grau de
subjetividade. Tal conhecimento deveria ficar no plano da ética.
Essa influência da medicina irá promover a decotomia mente-
corpo.9
______________________
9 Segundo Emmanuel Kant (1724-1804) Crítica da Razão Pura, o tempo e o
espaço também não se encontram no mundo físico e empiricamente observado.
São, ambos, oriundos de nossa intuição pura sensível. Kant apresenta a
distinção entre os seguintes conceitos: a priori e a posteriori, juízo sintérico e
juízo analítico, número e fenômeno. Expõe sobre a possibilidade de
conhecermos algo genuinamente. Kant chama de a “revolução copernicana em
Filosofia”, na qual Copérnico troca o sistema geocêntrico anteriormente aceito,
desde Aristóteles e Ptolomeu (a Terra seria o centro do Universo e tudo o mais
giraria em seu redor). Hoje sabemos que o sistema solar é apenas uma parte do
universo. A ciência expandiu o conhecimento do mundo exterior, mas
avançamos quase nada no conhecimento das potencialidades da mente
humana.
Pág 41
E como é que ela fará isso? Através das manifestações
sintomáticas, da presença dos sintomas e dos sinais do paciente
que apresenta padrões semelhantes de adoecimento. Com isso a
medicina vai criar as CATEGORIAS NOSOLÓGICAS.
O diagnóstico nosológico ou de doença é um diagnóstico que
mostra uma regularidade de apresentação de sinais e sintomas
semelhantes. Todo o quadro nosológico é um quadro ESTATÍSTICO.
Quando falamos de alguma doença, por exemplo, uma
tuberculose pulmonar, vamos dizer tantos por cento tem tosse com
catarro, outros têm emagrecimento, falta de ar, outros têm suor
noturno, isso encadeado, listado em termos percentuais. Mas tem
gente que tem tuberculose, mas não tem tosse, não emagrece, não
tem sudorese noturna; tem tosse, mas não tem escarro com a
presença do BACILO TUBERCULOSO; de modo que você acaba
fazendo um desenho da doença, um traçado, ou uma espécie de
tipo médio dos sintomas.
O médico localista, estruturalista, lesional, cartesiano faz o
encaixe do indivíduo nessa GRADE NOSOLÓGICA.
Portanto, o diagnóstico da doença é um diagnóstico de
generalidade, quer dizer, de algo que expressa uma repetição. Só
assim as ciências filiadas às ciências físico-matemáticas
consideram que é científico.
Pág 42
__________________________
10 Numa das mais belas passagens do romance Por Quem os sinos dobram,
de Ernest Hemingway, a personagem Pilar, uma cigana, descreve o cheiro da
morte dias antes de um toureiro ser atacado mortalmente por um touro. A ciência
não admite essa faculdade, que muitas vezes é quase palpável.
Pág 43
existe base científica para se afirmar isso. O fato é o indivíduo
doente. Há uma grande diferença nisso.
Claro que existem semelhança entre esses indivíduos doentes e –
como nós médicos somos pequenos diante do organismo humano –
a medicina busca construir a sua ciência em cima das semelhaças ,
mas também existem muitas dessemelhanças.
Isso não é nada... Poucos ditados populares são tão injustos quando o
“pobre, mas limpinho”, como se em tese (um silogismo) todo rico fosse
limpo por natureza. É verdade que os produtos de limpeza
industrializados mais eficientes são acessíveis somente aos mais
abastados. É verdade também que lavar as mãos, escovar os dentes, e
tomar banho com regularidade contribui para a saúde, ajuda a evitar o
adoecimento. No Brasil, da primeira metade do século XX, o Jeca Tatu,
personagem de Monteiro Lobato, contribuiu para disseminar entre as
classes mais baixas na pirâmide social a necessidade de cuidados com a
higiene, os problemas do bicho-de-pé, dos germes. Mas a atitude
imediatista do homem moderno – fortemente influenciado pelo
pensamento localista e reducionista – tratou de perpetuar a concepção
equivocada com relação ao que é sujo e limpo, em termos de saúde.
podemos afirmar que as residências mais limpas das classes sociais mais
altas são mais poluídas e prejudiciais à saúde de seus habitantes do que
todo o ambiente externo, ou do que uma modesta casinha de beira de
estrada.
__________________________________
11 Louis Pasteur (1822-1895) cientista francês cujas descobertas tiveram
enorme importância na história da química e da medicina. A ele se deve a
técnica conhecida como pasteurização. A pedido dos vinicultores e cervejeiros
da região começou a investigar a razão pela qual os vinhos e a cerveja
azedavam. Utilizando um microscópio, conseguiu identificar a levedura
responsável pelo processo. Propôs eliminar o problema aquecendo a bebida
lentamente até alcançar 48ºC, matando, deste modo, as leveduras, e encerrando
o líquido posteriormente em cubas hermeticamente seladas para evitar uma
nova contaminação. Demonstrou, dessa forma, que todo processo de
fermentação e decomposição orgânica ocorre devido à ação de organismos
vivos. Expôs a “teoria germinal das enfermidades infecciosas”, segundo a qual
toda enfermidade infecciosa tem sua causa (etiologia) num micróbio com
capacidade de propagar-se entre as pessoas. Deve-se buscar o micróbio
responsável por cada enfermidade para se determinar um modo de combatê-lo.
Pasteur passou a investigar os microscópicos agentes patogênicos, terminando
por descobrir vacinas, em especial a anti-rábica.
O conhecimento de que existe o germe é antigo na medicina.
Existe deste a Renascença, com Fracastoro, um médico italiano,
que identificou pequenos animaizinhos no catarro de um paciente
com problemas pulmonar. Ele revelou isso na época, mas suas
revelações não provocaram nenhum impacto na medicina. Porque a
medicina daquele tempo, de base vitalista, humoralista, pensava no
adoecimento como algo que vinha da dinâmica vital ou de alteração
dos humores, do processo do próprio organismo. ela não pensava
em algo que pudesse vir de fora e acometer o organismo.
* * *
Pág 47
Passa-se a Renascença até o século XVIII, quando a teoria
anatomoclínica – a doença é a presença da lesão – ainda não dizia
por que esta aparecia. Então, a possibilidade de que a lesão fosse
provocada por um germe vai seduzir a medicina que vai buscar a
participação do germe, do microorganismo, na gênese da lesão.
Mas o que faz a medicina dar esse passo em direção ao germe?
Isso é fundamental para a compreensão da medicina moderna, e,
sobretudo, da sua terapêutica.
Pasteur era um químico, muito demandado na sua época para
estudar problemas na produção rural francesa, como a produção do
bicho-da-seda, e a fermentação dos vinhos. Pasteur identifica a
presença dos microorganismos na fermentação dos alimentos,
propõe o método da pasteurização – que é o aquecimento para
eliminação dos germes – contrapondo a chamada teoria da geração
espontânea. Depois ele avança no estudo de algumas doenças,
como a raiva animal, e começa as pesquisas do soro antidoença –
soro tidado dos animais, e depois usado no homem – a chamada
soroterapia anti-infecciosa. Desenvolve a técnica da atenuação
através de passagem do germe por meios sucessivos de cultura,
que é a base da produção das vacinas.
E, por tudo isso, Pasteur ficou famoso para o resto da história da
civilização, com grandes méritos. Mas há uma pesquisa de Pasteur
que foi emblemática para a aceitação médica da participação do
germe na produção da doença, e que guarda pistas decisivas para
se encontrar o elo perdido da arte médica.
Pasteur, uma vez estudando a fermentação de uma solução de
tartarato e de paratarato de cálcio, viu que um fungo
Pág 48
fermentava uma solução levógira e não fermentava uma solução
destrógira. O que é isso?
É a mesma solução química de tartarato, mas com a organização
molecular diferenciada. Examinando essas soluções com o auxílio
da aplicação de luz polarizada, verificou que a levógira desvia o
feixe de luz para a esquerda, e a destrógira desvia-a para a direita.
Mas ambas as soluções têm a mesma substância, são
quimicamente idênticas, e o fungo consegue fermentar uma e não
consegue fermentar a outra. A partir dessa constatação, Pasteur
emite a grande tese que sustenta a teoria do germe, a chamada
tese da especificidade. O germe é tão específico no seu trabalho
que consegue diferenciar uma solução quimicamente idêntica, mas
que se diferencia estereotaxicamente12.
__________________________________
12 Estereotaxia é o estudo do arranjo molecular de uma solução.
-------------------------------------------
“O Elo Perdido da Medicina”O Afastamento da Noção de Vida e
Natureza, Dr. Eduardo Almeida & Luís Peazê, 250 páginas, Rio de
Janeiro, Imago, 2007.
“Fique mais jovem a cada ano” Chege aos 80 anos com a saúde,
o vigor e a forma física de um cinqüentão; Chris Croeley e Henry S.
Lodge, M.D. – Editora Sextante, 2007.
-------------------------------