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Por uma noite sem fim, em uma cidade boêmia e festiva, jovens adultos e outras criaturas crepusculares buscam os seus caminhos. Alguns desejam apenas voltar para casa, outros preferem fugir de si mesmos em apetites carnais e prazeres mundanos. As jornadas de Clarissa e Marcelo se cruzam em um ponto de ônibus vazio. Juntos eles navegam até à beira da aurora. Diante da verdade sobre a própria existência e o mundo no qual habitam, suas vidas mudam inexoravelmente.
Gêmeas
Capítulo 1
Imagens de um mundo esquecido
Atrás de Clarissa está um portão de ferro e pedras, grande e intimidador. Alcança vários metros de altura. Uma construção antiga e sólida. O mundo ao redor é sombrio e difícil de discernir além da estrutura, mas é possível ver os vultos de dois homens perto do portão. Ela caminha para longe destes homens. Sem confiança e com um pouco de medo, mas sem jamais olhar para trás. O mundo clareia subitamente.
No leito hospitalar, sozinha no quarto, a jovem medita em silêncio sobre este sonho recorrente. Sua cabeça enfaixada, sua aparência pálida e convalescente. Ela parece frágil e quebradiça. O quarto está em penumbra. Ainda é madrugada.
Não me lembro de seus rostos, nem porque caminho para longe deles, imersos na bruma.
– pensa Clarissa. A moça deita na cama. Permanece quieta, olhar perdido no vazio do quarto em penumbra. Seus olhos inchados com o cansaço. É o mesmo sonho que se repete desde que despertei aqui, nesta cama de hospital. É um sonho que não cristalizou. Permanece como um fragmento me perturbando.
A jovem é empurrada em uma cadeira de rodas. Ainda muito frágil e pálida, trajando suas roupas de rua, protegida por um chapéu. Ela é levada para fora do movimentado hospital. É meio-dia e a sala de triagem já está cheia e conturbada. A moça não olha o mundo ao seu redor. Permanece cabisbaixa intimidada pelo retorno à realidade. Conforme a cadeira avança pelo ambiente externo, empurrada por um enfermeiro, uma ambulância passa em baixa velocidade indo para a rampa de emergências.
Clarissa nota a sua mãe por perto. Ela provém confiança nesta breve jornada para o mundo exterior. Mesmo com o chapéu protegendo a sua cabeça ferida, o sol a incomoda. Seus olhos demoram a se adaptar a claridade do dia.
Um mês e meio no hospital. Pouco me lembro do que se passou. Todos os dias foram iguais: as horas se arrastando. Um inferno. Do pouco que me lembro, gostaria de simplesmente esquecer.
Dia e noite alternando-se no círculo celestial enquanto a moça permanece sentada na cama do hospital, remexendo silenciosamente na faixa que cobre o ferimento na cabeça.
As horas se arrastam quando se está sentado em uma cama sem nada para fazer a não ser contemplar e meditar sobre a tinta que descasca nas paredes. Em minha mente, um dia todo havia se passado quando na verdade menos de uma hora havia sido completa no relógio.
Clarissa suspira melancólica, olhar perdido no pouco que se pode ver da janela.
Havia ainda dezenas de outras horas para completar o dia, então recomeçar tudo novamente. Tudo neste ambiente é repetição. Os mesmos sonhos, as mesmas longas horas na mesma rotina. Um longo nada entre as horas dos remédios e dos exames. A única coisa que ajudou a passar o tempo foi a infecção que tomou conta de meu ferimento na cabeça.
O mundo é escuridão neste momento. Um ponto de luz é tudo o que a jovem consegue enxergar. Aos poucos, o som de um monitor cardíaco mesclado ao som do respirador mecânico. O som de vozes, conversando em tom respeitosamente baixo. Falam sua língua particular, repleta de jargões médicos, em meio à descontração de uma equipe cirúrgica bem coordenada pela convivência.
As primeiras semanas neste lugar foram as melhores. Estava entre a vida e a morte. Fui operada mais de uma vez para a drenagem de líquidos que se acumulavam em meu cérebro inchado.
Os sons da sala de cirurgia cedem aos baixos ruídos do quarto onde a moça ficou internada. Conversas esparsas e o som da brisa soprando. Alguém ri. Lampejos de normalidade. Uma ambulância que se afasta.
Quando não estava sobre a mesa cirúrgica, permanecia inconsciente em uma cama na UTI. Meu corpo sendo bombeado com antibióticos e outros remédios. Fui mantida em um tipo de estase para proteger o meu cérebro ferido. Continuava entre a vida e a morte. Graças a Deus. Se estivesse acordada, morreria de tédio.
Pela janela do táxi, indo para casa após receber alta, Clarissa contempla o mundo. O veículo desloca-se por uma larga avenida. A paisagem urbana parece igual sob o intenso sol de primavera ao meio-dia.
Saí com os meus amigos naquela noite para aproveitar o último fim de semana das férias de inverno. Desde então foram dois meses. Agora é o começo da primavera. Perdi o retorno das aulas. Perdi dois dos meus amigos mais chegados. E o único amigo que me restou daquele passeio sequer perguntou se estou viva ou morta.
A moça suspira, continua em silêncio contemplando a paisagem pela janela do táxi. Apenas prédios, asfalto e carros para onde quer que se olhe.
Uma saída inocente para aproveitar uma noite tranquila. A Lua azul, quase cheia, naquela sexta-feira. A cidade agora está em florescer sob o auspício da primavera. O Sol quente. Muito mais do que eu gostaria. E estas lembranças que já não parecem me pertencer. Aquela noite agora é apenas um borrão...
.
O apartamento à meia luz, cheio de vida e feliz. Jovens adultos e adolescentes entre os convidados. Fumam e bebem. Conversam, riem por qualquer motivo. Clarissa entre eles. Cabelos longos, claros. Seu corpo saudável e forte. A moça se afasta da fumaça dos cigarros.
Lembro-me da música tocando. Lembro-me da fumaça dos cigarros. Nunca gostei de cigarros. Lembro-me dos risos, mas tal como a música, não tenho recordação específica. Lembro-me da bebida. De beber com gosto. Sempre estava a me entorpecer, fugir de mim mesma.
Alguém diz a moça. Ela ri. Entorna o copo na boca. O ambiente é animado, mas ao mesmo tempo, há algo sombrio pelos cantos.
Tudo era ingenuidade e risos, mas agora é parte de um mundo que não existe mais. São imagens de um mundo esquecido.
As imagens de alegria e juventude se apagam. Os amigos somem e o ambiente cessa até que reste Clarissa só sob um foco de luz. Ela segura o copo de bebida. Ri como se ainda ouvisse a piada que se perdeu com as lembranças daquela noite. Aos poucos, ela também se apaga como o resto daquele mundo. Resta apenas um ponto de luz. Pela escuridão, conversas esparsas. O som de líquido sendo despejado. Gemidos no vazio. O sofrimento expresso em grunhidos baixos puramente instintivos.
Clarissa está nua sobre uma maca. O seu corpo arrepiado de frio. Seus longos cabelos sujos, enroscados com peças e detritos do que sobrou do automóvel acidentado. Vidros e plásticos misturados ao sangue. O forte cheiro de gasolina. Ela bate os dentes. Seu corpo é lavado de modo brusco por uma auxiliar de enfermagem. Uma mulher corpulenta, protegida por seu uniforme branco e máscara de contaminação. Não perde tempo em sua tarefa.
O cheiro da bebida, da fumaça dos cigarros e do doce perfume de todos naquele apartamento festivo cedia espaço ao cheiro do sangue coagulando. O cheiro da gasolina e da borracha. Os risos e a alegria tornaram-se o frio silêncio daquela maca. Meu corpo estava gelado. É tudo o que consigo me lembrar daquela madrugada.
Diante de um espelho, semanas após o acidente, a moça se observa. Ainda no hospital, ainda convalescendo. Olha para a sua cabeça. Seus cabelos se foram. Agora há apenas uma faixa cobrindo o seu grave ferimento.
Somente semanas depois de quase ter morrido é que notei que o meu cabelo havia sido raspado, durante o período de inconsciência. Olhava-me diante daquele espelho, no banheiro daquele quarto que se tornara minha residência provisória. Minha mãe havia me preparado para o que veria...
.
Clarissa baixa a cabeça.
Não sentia nada. Olhava nos olhos de uma estranha no reflexo do espelho. Não era eu.
No táxi, a jovem contempla a paisagem familiar de seu bairro. Seus cabelos crescem novamente. Ainda estão muito curtos. Ao dobrar a esquina e entrar na rua de casa, a moça coloca o chapéu e se prepara para descer. Seu coração palpita. O veículo para diante da residência. A mãe da jovem paga o taxista e desce do veículo. Descarrega parte dos pertences que levou para o hospital. Clarissa ajuda carregando a outra parte. São sacolas e bolsas. A moça fica em silêncio diante do portão de casa enquanto a sua mãe o destranca. O táxi vai embora.
Dentro de casa, a moça se sente pouco à vontade. Segue a sua mãe. Para na sala de estar. Tudo escuro, desabitado e silencioso. Todos trabalhando, cuidando de suas vidas. A moça se sentia como uma visitante pisando na casa de um estranho. Sua mãe nota. Afaga o ombro da filha.
Vá descansar um pouco. Vou preparar o almoço.
– diz a mulher, de modo agradável.
Clarissa segue por sua casa lentamente. Seus passos ainda inseguros, seu corpo ainda tão frágil. A moça sobe as escadas e abre a porta do quarto. Deixa uma sacola de pertences no chão. Silenciosamente, contempla o espaço. É quase reverente. Como se aquele fosse o santuário de outra pessoa, alguém já falecido. A moça contempla fotos em mural. Vê a si mesma em uma viagem com o namorado. Fotos de festas com os amigos. Uma vida social agitada. Ela de cabelos longos, olhar vivo e corpo forte.
O tempo parou em vinte e seis de julho de mil novecentos e noventa e seis naquele quarto. Sentia-me invadindo a intimidade de outra pessoa.
A moça se afasta das fotos com o coração cheio de tristeza. Senta na cama. Acomoda-se devagar como se acostumasse novamente com a vida que deixou. Chuta os sapatos. Deita devagar. Ela quer apenas dormir. Longe dos ruídos do hospital. Longe das luzes de mercúrio, dos gritos distantes da emergência e do frenesi das ambulâncias e viaturas policiais manobrando sob a janela do quarto.
A jovem fecha os olhos. Pela janela é possível ver a rua arborizada e tranquila. O vento sopra e as árvores farfalham em uma melodia reconfortante. O mundo segue incólume como se nada importasse.
Capítulo 2
Naquele estranho sonho
A água do chuveiro escorre pelo corpo frágil de Clarissa. Sua cabeça está protegida por uma touca. Ainda é preciso evitar molhar a área do ferimento para evitar contaminações. A água escorre pelo ralo. Após o banho, a moça limpa o vapor acumulado no espelho. Contempla-se em silêncio. Seus cabelos ainda muito curtos. Seu crânio imperfeito. Feio pela cicatriz que resta como lembrança do que se passou.
Era quase outubro. Os cabelos começavam a tomar conta dos resquícios de meu acidente. Meu corpo estava se recuperando.
Termina de se vestir. Cobre a cabeça com uma boina, sai do banheiro apagando a luz atrás de si.
Norberto leva Clarissa para a escola. É noite. A moça olha em silêncio pela janela enquanto seu namorado conduz o carro devagar. O rapaz demonstra certo desconforto pelo silêncio ensurdecedor de sua namorada. Puxa conversa, tenta romper a quietude.
A gente não percebe que é feliz até quase perder tudo.
– diz o rapaz. Clarissa apenas ouve. Continua perdida em seus pensamentos enquanto contempla a paisagem noturna de São Bernardo do Campo.
Perguntava-me o tempo inteiro se faríamos isso novamente: eu te levar para a escola. Desejar uma boa noite. Tinha isso por garantido na vida.
Clarissa continua em silêncio. Norberto segue em sua verborragia.
Não faz ideia da angustia que foi assistir você entre a vida e a morte, sem saber como tudo acabaria. Nunca vou me esquecer da impotência diante de tudo.
– diz o rapaz, abrindo-se honestamente.
Eu lamento por fazer você passar por isso.
– responde Clarissa, cheia de culpa.
Os olhos de Norberto ficam marejados. Ele sente um aperto no coração. Quer chorar, mas se contém.
Você não tem culpa de nada. As coisas simplesmente acontecem.
– diz o rapaz.
A jovem se volta para a janela novamente, em silêncio. Passa o dedo no acabamento da porta do automóvel. Desenha mentalmente sem necessariamente criar uma forma. Norberto observa. Olha com carinho para a sua amiga. Quer consolá-la de alguma maneira.
Como poderia saber o que aconteceria, Clarissa? Hm? As coisas acontecem.
– diz ele, de modo carinhoso.
A moça permanece em silêncio, imersa em sua culpa. Não quer pensar no acidente. Não quer pensar naquela noite da qual pouco se lembra.
Seja como for, não faz ideia do alívio que sinto em meu coração. De como estou feliz por poder te levar à escola mais uma vez. Por você estar aqui ao meu lado, viva e respirando.
– diz Norberto, com os olhos marejados. Quando começamos a namorar, fazíamos o mesmo. Levava você à escola, conversávamos sobre o nosso dia. Éramos tão inocentes naquela época.
– completa o rapaz.
Éramos outras pessoas. Literalmente.
– sussurra Clarissa, distante e distraída em seus pensamentos.
O que disse, meu amor?
– pergunta Norberto, fingindo não ter ouvido claramente.
Ela hesita brevemente. Nada. Não importa.
– responde a moça.
A verdade é que ela não conseguia se lembrar da razão de gostar de Norberto. Do por que de ter se apaixonou por ele. O que viu naquele rapaz que não viu em mais ninguém.
Eu queria me lembrar, mas tudo o que restou foi esse frio dentro do meu peito. Queria apenas ir para casa.
– pensa Clarissa.
O automóvel segue adiante pela noite. A cidade de São Bernardo do Campo iluminada pelo amarelo alaranjado das luzes de vapor de sódio.
Clarissa caminha sem confiança pelo pátio escolar. Carrega os livros contra o corpo. Uma amiga a acompanha na breve jornada para a sala de aula. Logo uma roda de amigos se forma. Abraçam a moça. Ela é centro das atenções. Há alegria pelo seu retorno. De alguma forma a moça tenta corresponder. Finge sorrir. Finge alegria. Mas não gosta da proximidade excessiva.
Enquanto todos celebravam o meu retorno, a única coisa que incomodava de verdade naquela noite era o que diriam do meu cabelo. Da minha aparência convalescente. Pensando hoje, é uma estupidez, mas naquele momento me deixava aflita. Sentia-me horrível.
Entre todos, amigos e curiosos, Clarissa se sente interrogada.
Não queria responder a pergunta alguma. Queria apenas ir embora. Mas eles insistiam em sua curiosidade mórbida por detalhes. Perguntavam-me como havia sido o acidente. Haviam ouvido que o veículo estava destroçado.
Sorri, acena com a cabeça e tenta ser gentil.
Eu não me lembro da nada. Honestamente. Num momento estava lá, no carro. Noutro momento não estava mais. Acordei no hospital, depois de deixar a UTI.
– diz Clarissa aos curiosos.
Caramba. E só você se machucou?
– pergunta um dos curiosos. Ela faz que não.
Dois amigos do meu amigo morreram. Mas ele mesmo não se machucou muito. Ficou com um galo na cabeça e um olho roxo.
– diz Clarissa, tentando satisfazer a curiosidade alheia.
Neste instante, quando menciona os dois amigos de Cris, Clarissa compreende algo que até então olhava com certa distância: dois de seus amigos estavam mortos. Dois amigos com quem conviveu boa parte de sua adolescência entre as duas escolas pelas quais passou desde 1994. Seus olhos ficam marejados. O som ao redor torna-se um zunido de baixa frequência. As perguntas são respondidas de modo automático.
Sarah e Samuel estavam mortos há dois meses... como foi que não notei isso antes?
– pergunta-se a moça, mentalmente.
Ela sorri apática para os amigos enquanto responde maquinalmente. Sente o ar faltar, um nó na garganta. Quer gritar, quer chorar. Quando a ficha caiu naquele momento, quase perdi o equilíbrio: eu deveria estar morta também.
– conclui.
Naquele estranho sonho, os dois homens de costas. Ambos diante de um portão de ferro e pedra. Eles conversam tranquilamente. Riem entre enquanto fumam. Clarissa observa de longe, em paz. Não se podem ver os rostos dos homens.
De volta ao pátio da escola, a jovem respira profundamente. Olha além de seus amigos curiosos. Nota um rapaz encostado na parede conversando com outro rapaz diante dele. Aguardam para entrar na sala de aula. Isso faz a moça se recordar de parte do sonho que teima em se repetir.
O rapaz em pé se chama Guilherme. O outro encostado na parede, ela jamais havia visto. É um aluno novo.
A moça respira profundamente mais uma vez. Sente o mal-estar se aproximando. Alguém pergunta se está tudo bem. Ela faz que sim. Finge um sorriso. Não é nada. Seguem para a sala de aula quando toca o sinal.
Capítulo 3
Abismo
Meses antes, durante a festa no apartamento, os amigos de Clarissa estão juntos, entre mortos e vivos. Nus, eles se beijam e se tocam de modo íntimo. É ao mesmo tempo excitante e assustador. A música parece mais clara neste momento: Ride Sally Ride do Lou Reed. O impacto das notas reverbera pelos corpos.
Outra Clarissa, ainda convalescente, está sentada em uma cadeira. Observa em silêncio sem questionar ou julgar até que se nota em meio aos outros. Seu corpo forte, cabelos longos. Nua. Sexy. Seus olhares se cruzam. Observam-se em silêncio. Sentada na cadeira, a moça vira o rosto em vergonha. Fecha os olhos bem apertados. Ela desperta em sua cama. Olha na direção da janela, o céu tingido de vermelho pelo amanhecer. Em silêncio, a moça tenta se recordar do sonho que teve. Nada parece restar se não a angustia anterior ao despertar.
Em um restaurante movimentado, no horário do almoço, a jovem serve mesas e anota pedidos. Seus cabelos estão apresentáveis, não curtos demais, mas ainda muito distante do que foi um dia. Mesmo assim, a boina se tornou dispensável. O tempo passou rápido, foram-se dois meses desde a alta hospitalar. É novembro de 1996 e Clarissa retomava a sua rotina. O emprego era novo. Seu trabalho antigo, similar ao atual, perdeu-se durante a sua hospitalização.
A fragilidade em seu corpo começa a ceder. Exceto pela cicatriz em sua cabeça, agora sendo coberta por uma curta camada de cabelos, pouco restou do acidente. A moça experimenta o retorno da normalidade. A rotina era pouco diferente em sua essência, mas bem mais intensa em sua execução. Entra no trabalho às onze da manhã, pega o rush do horário do almoço. Larga às cinco e meia da tarde. Tempo suficiente apenas para correr para a escola. Não é ruim. Ter uma rotina, novamente, acalmava suas ansiedades.
No banheiro dos funcionários, a moça troca rapidamente as suas roupas. Coloca algo casual e parte para a escola. Pega o metrô. Sempre cheio entre as cinco e meia e seis da tarde. O maior conforto que se pode ter é se encostar a uma porta e esperar pelo fim breve da viagem. Quase noite e o trem passa pelo vão livre entre a estação São Judas e Conceição: os automóveis rastejam pela via congestionada. A cidade quase sempre parada.
Ao som do primeiro sinal, Clarissa corre pela calçada. Seu corpo já está forte o suficiente para este tipo de abuso. A moça entra na escola, passando por um portão de ferro quase sem distinções. Apenas uma portinhola na altura dos olhos. A jovem desce um corredor claustrofóbico, baixo e estreito que leva ao pátio. Do pátio segue para a classe. É a última a entrar.
Ao fim da aula, ela sai da escola com o fluxo de alunos. Todos adultos ou jovens adultos. Fumaça de cigarro e imaturidade pairam no ar. A moça atravessa a rua, Norberto aguarda em seu automóvel. Ela entra no veículo. Seu namorado a beija no rosto enquanto partem para casa. O rapaz pergunta como foi o dia.
Foi tranquilo.
– responde Clarissa.
Que bom.
– completa Norberto, de modo distante.
A moça se queda a contemplar a vista pela janela. Mesmo não se lembrando do por que um dia tê-lo amado, seu namorado voltou a ser mais do que apenas um rosto entre tantos outros.
Ainda há este abismo entre o que fui um dia e o que sou agora. Aquela noite, a inocência de antes e o cinismo silencioso de agora. Uma fronteira tão clara.
– pensa a moça.
Norberto olha para a sua namorada. Sorri discretamente. Acostumou-se com o silêncio. Dá tempo para que pense em seus problemas e preocupações.
Fico feliz de ver que você está melhorando.
– diz Norberto.
Clarissa sorri como resposta.
Fico orgulhoso de ver você voltando à atividade tão rapidamente depois de tudo o que te aconteceu.
– completa o rapaz.
A moça se volta para a janela. Não sabe o que responder. Norberto já se acostumou com o silêncio por resposta. Já não o incomoda como nos primeiros dias. Tudo flui naturalmente nesta nova ordem.
Você quer uma carona para o almoço de noivado da sua irmã?
– pergunta Norberto.
Não sei se vou.
Não?
– pergunta Norberto.
Não sei. Estou cansada. Trabalhar e estudar cansa demais.
Norberto faz que sim.
Seja como for, se quiser uma carona, é só me avisar.
– completa o rapaz.
Clarissa faz que sim, sorri em agradecimento silencioso. O automóvel segue adiante pela noite tranquila.
Capítulo 4
Pickin’ Cotton
Com o corpo voluptuoso generosamente à mostra, Patrícia, a irmã de Clarissa, faz pole dance em um palco ao som de Pickin’ Cotton de Grady Tate. Na plateia deste melancólico recinto escuro e esfumaçado, há apenas homens maduros. Silenciosamente contemplam a mulher se expondo. Bebem impassíveis em seus copos quase vazios. Ao lado de um homem trajando roupas pretas está Clarissa. Ela assiste sua irmã no palco.
Da mesma maneira impassível, ao lado de Norberto, a jovem assiste seu futuro cunhado declamando poesias. Estão em uma mesa cercada pelos convidados da pequena celebração pelo noivado com Patrícia, em uma churrascaria familiar. É sábado à tarde tranquilo. Todos têm estampada a felicidade em seus rostos. Faz frio. Clarissa olha o céu pelas grandes portas na entrada. Nuvens cobrem quase inteiramente a extensão do que se pode ver.
Há algo de errado no amor e na vida quando não se partilha o espírito e a carne. Meu amor e eu descobrimos que não há vida quando não se partilha. E, meus queridos, hoje somos uno e trino com o nosso filho vindouro. Luz e brilho, onde outrora, porquanto me lembro, tudo era escuridão e perversão.
– diz o futuro cunhado de Clarissa.
Qual era mesmo o seu nome?
– pergunta-se a moça, mentalmente.
Todos assistem de olhos arregalados, impressionados com a poesia de bêbado declamada à mesa. A jovem está um tanto entediada com tudo. Em um flash, ela se lembra de sua irmã dançando no palco. À mesa, Patrícia, com um enorme sorriso em seu rosto, assiste ao seu noivo declamando o verso seguinte de sua obra particular.
Meu amor, hoje, faz de mim um homem. Não porque partilhamos da carne e dos doces sonhos, mas porque o amor aquece o meu coração até outrora morto para a vida. Meu amor abre os meus olhos, preenche a minha existência com o seu carinho. Meu amor me salvou, e eu vos digo, meus amigos, estava perdido na longa noite de minha existência. Porquanto me lembro, tudo era escuridão e perversão.
– segue o rapaz cabeludo, feliz da vida.
Clarissa boceja. Volta-se para fora do restaurante. Contempla os carros passando pela Avenida Demarchi em São Bernardo do Campo. O estacionamento pouco ocupado. As árvores farfalhando com a brisa fria soprando ocasionalmente. Faz uma tarde bonita.
Não há vida quando não permitimos o espólio de nosso amor. Não há mundo quando nos encerramos no egoísmo do prazer desenfreado. Não há nada, se o meu amor não está comigo. Porquanto me lembro, tudo era escuridão e perversão.
– continua o rapaz cabeludo.
A moça se volta para a mesa. Seu futuro cunhado segue com a sua poesia de bêbado. Ele é um rapaz barbudo e cabeludo com aparência entre um hippie clássico e Jesus Cristo.
Porquanto me lembro, tudo era escuridão e perversão, mas agora sou agraciado com a luz. Meu amor me salvou: de minha inadequação, dos meus sonhos sombrios e de tudo o que considerava irremediavelmente ser parte de mim. Minha alma turva, permissiva e distante da realidade. A realidade, meus amigos, vos digo: é amar. O amor é Deus, o Sol e a Terra, e todas as pequenas criaturas que nele habitam. Somos simples. Somos vida.
– completa o rapaz, encerrando o seu poema.
Todos aplaudem. Clarissa o faz por educação. Patrícia e o seu noivo sentam juntinhos. Dão um beijinho discreto. Sorriem enquanto são celebrados por seus amigos e parentes.
Este momento de efusiva alegria dispara uma faísca nas memórias de Clarissa. Por um breve instante, ela relembra Patrícia vestida com roupas reveladoras. Um grande decote mostrando generosamente o seu corpo.
Patrícia carrega uma bolsa a tiracolo. Está no meio de uma conversa com sua irmã.
A vida é mais do que um amontoado de células! Não somos simples amálgamas, somos mais do que isso. Somos mais do que apenas o nascimento, existimos desde a concepção...
– diz Clarissa.
Eram células! Eram células! Não antropomorfize carne quando esta não contempla vontades!
– interrompe Patrícia, aos berros.
Anjos e homens! Como pôde?!
– retruca Clarissa.
Como pôde você?! Não viajamos sozinhos nesta vida! Nenhuma ilha, nenhuma vida!
– responde Patrícia.
Eram vidas! Eram almas! A vida não começa apenas no nascimento! A concepção...
– interrompe Clarissa.
Nem mesmo podemos nos masturbar ou ter uma menstruação, por que, ora vejam! Lá se vai outra vida!
– responde Patrícia, ainda aos berros.
Louca...
– retruca Clarissa enquanto sua irmã se afasta bruscamente.
A moça volta a si no restaurante durante o brinde dos noivos. Amigos e parentes erguem seus copos. Celebram a união do casal.
Precisa colocar um anel no dedo dela. Vai fazer de minha enteada uma mulher decente.
– diz o padrasto de Patrícia, em tom de brincadeira.
Anéis, forquilhas, tudo isso indica posse. Não possuo nada. Meu amor e eu somos parceiros nesta vida, não apenas donos um do outro.
– diz o rapaz, para alegria de Patrícia.
Você e essa retórica poética... não sei se é esperto ou malandro demais.
– diz o homem, ainda em tom animado. Patrícia ri.
Viemos aqui para celebrar e não para discutir contratos sociais. Vamos beber e comer, porque hoje é por minha conta.
– diz a mulher. Seu padrasto ergue o copo em saudação. Todos bebem felizes.
Clarissa contempla de seu lado da mesa.
Mas o que diabos foi isso?
– pergunta-se mentalmente.
Norberto está bebendo e rindo junto com os outros. Nota a sua namorada agindo de modo estranho. A moça larga tudo discretamente e sai do restaurante aparentando mal-estar. O rapaz pede licença e a segue. Ele sai do restaurante e olha para o vasto estacionamento.
Logo mais adiante, ao lado de seu veículo, Clarissa está encostada recuperando o fôlego. A moça baixa a cabeça, parece recuperar-se de um quase desmaio. O rapaz se aproxima.
Está tudo bem, Clara?
– pergunta ele, preocupado.
Ela ergue a cabeça e se apoia no veículo. Faz que sim enquanto respira profundamente. Acalma-se. Volta-se para a avenida. Contempla o movimento enquanto seu corpo se acalma. Norberto para ao lado dela.
O que houve?
– pergunta assustado.
Estou bem. Estou melhor agora.
– diz Clarissa, enquanto se recompõe.
Norberto permanece ao lado da moça. Ela parece estar melhor e mais calma. Ficam em silêncio durante alguns momentos. Resta apenas o som dos veículos indo e vindo, da brisa agitando as árvores. A jovem olha o céu. O sol vaza por entre algumas rachaduras na camada de nuvens cinza.
Seu futuro cunhado é mesmo uma figura.
– diz Norberto.
A moça continua em silêncio, perturbada pelas imagens que viu em sua cabeça durante o brinde.
Não dá para acusá-lo de falta de originalidade.
– diz Norberto, rindo discretamente. Olha para o céu. Um pássaro cruza o seu campo de visão. Sua irmã tem mesmo um gosto engraçado para homens.
– continua ele.
Clarissa permanece quieta. Isso preocupa o rapaz. Ele quer dizer alguma coisa, mas as palavras lhe faltam. Não sabe o que fazer.
Tudo parece tão falso...
– dispara a moça, de súbito.
O que foi, meu amor? O que te parece falso?
– pergunta Norberto, confuso.
Cada palavra que ele disse, cada sorriso de cada um à mesa. Cada vez que eu respiro. Tudo parece falso. Não consigo sentir nada. Não consigo sentir que eu estou viva de verdade.
Norberto fica um pouco mais próximo. Tenta tocar Clarissa. Ela não permite. Afasta-se. Respira profundamente, ainda se recompondo do mal-estar.
Não me lembro de nada. Do dia anterior ao acidente. Menos ainda do momento do acidente. E após... tenho esses fragmentos de imagens, coisas que não parecem me pertencer. Não tenho certeza de quem sou eu.
– prossegue a jovem.
Norberto fica bem perto da moça sem tentar tocá-la. Respeita os limites impostos por ela.
Eu me lembro de tudo, meu amor. Da Clarissa por quem me apaixonei. Da Clarissa que conseguia me deixar irritado pela maneira teimosa e bruta de ser. Mas sempre a mesma Clarissa, a mesma que amei e ainda amo.
– diz Norberto, com carinho.
Para com esse papo furado de amor. Isso é tão barato! Qualquer um abre a boca e diz ‘eu te amo’. Fácil assim. Eu quero verdades. Honestidade. Quem é você afinal?
– diz a moça, bruscamente.
O rapaz fica confuso com o que ouve.
Não se lembra de mim?
– pergunta ele.
É claro que me lembro de você. Não estou amnésica. Só não consigo me lembrar do porque de estarmos juntos. Lembro-me do ódio entre nós antes do acidente.
– desabafa Clarissa.
Não odiava você, meu amor...
– responde Norberto, de modo meigo.
Clarissa olha diretamente para ele.
O que houve naqueles dias? Ajude-me a preencher este vazio. Por favor. Isso está me matando.
O rapaz respira profundamente, parece oscilar entre desconcertado e triste. Faz uma longa pausa. Apenas o som dos automóveis pela via. Nem mesmo a brisa para confortar com o farfalhar das árvores.
Nós brigamos.
– relata Norberto, secamente. Nós estávamos sempre brigando. Não havia mais harmonia entre nós. O que tivemos como casal já havia passado. Naquele dia, em especial, havia proibido você de sair com os seus amigos.
Por quê?
Por Cris. Achava que vocês estavam tendo um caso. Aquilo me enlouquecia. Odiava vê-los juntos. Não era amizade. Ele a cortejava bem diante de mim. Desejava que ele se afastasse de você, que algo acontecesse para que deixassem de serem amigos.
– responde Norberto.
Neste instante, o rapaz parece completamente humano diante dos olhos de Clarissa. Finalmente sem máscaras, nu e frágil em sua honestidade.
E aconteceu. Você quase morreu. Dois dos seus amigos partiram desta vida e Cris finalmente sumiu do mapa. Aconteceu mesmo...
.
Norberto baixa a cabeça. Está cheio de culpa e vergonha.
Meus desejos deram frutos. Mas foi tão assustador e tão dramático que eu preferia ter visto você nos braços dele se soubesse que seria assim. Eu lamento, Clara. Lamento mesmo.
O casal permanece quieto. A angustia de antes cede espaço ao conforto e a intimidade. A moça se aproxima de Norberto, bem menos arredia e muito receptiva.
Os únicos culpados pelo acidente foram Cris e eu. Irresponsáveis como éramos, ele deveria estar bêbado demais para dirigir e eu displicente demais para dar atenção a isto.
– diz Clarissa, confortando seu namorado.
Norberto beija os lábios da moça. Ela permite. Ficam próximos, íntimos como não estiveram durante nenhum outro momento após o acidente.
Eu rezei por você. Nunca pensei que faria isso... ajoelhar-me e rezar por alguém. Mas fiz por você, meu amor.
– conclui o rapaz. O casal retoma o beijo. Abraçam-se intimamente. Enroscam-se em silêncio. Resta apenas o som dos automóveis passando pela larga avenida.
Capítulo 5
Everybody’s Talkin’
Os corpos de Clarissa e Norberto se entrelaçam ao som de Isaac Hayes cantando Walk on By
. Lábios, mãos e pele. Não se sabe onde começa um e termina o outro na longa cópula. Ao fim, exauridos de desejo e repletos pelo conforto físico, Clarissa deita a cabeça no peito de seu namorado. Ouve o coração de seu amante batendo. O calor de seus corpos, a respiração e o ar trocado entre eles. Já nem mesmo recorda de quando se sentiu dessa maneira. Suas pálpebras pesam. A moça adormece.
Clarissa está à beira de uma calçada sombria. Veste-se com as roupas que trajava na noite do acidente: blusa e saia com um casaco para se proteger do frio da madrugada. Seus cabelos longos e reluzentes como outrora. Parece uma pessoa completamente diferente. Sob a luz alaranjada do poste que ilumina este ponto de ônibus sombrio, a moça contempla em silêncio uma cena logo adiante.
Do outro lado da rua, Norberto olha de volta para ela. Olhar triste e angustiado. Permanece com as mãos enfiadas em um sobretudo preto que cobre seus trajes formais. Faz frio. A moça continua a contemplá-lo no mesmo silêncio tenso.
Ele me olha, e eu olho de volta. Ele me olha novamente. Olho de volta. Respondo o seu silêncio angustiado com o meu silêncio confuso. Ele me olha, e eu olho. Olhamo-nos em silêncio até que eu não saiba mais o porquê de nos olharmos. Por que nos olhamos, afinal?
Um pouco mais atrás, perto dela, está um rapaz gordo, branco e alto. Cabelos bem lisos, penteados para trás. Exala masculinidade enquanto fuma o seu cigarro. Clarissa e ele trocam um breve olhar.
Quem é o sujeito?
– pergunta o rapaz.
A moça dá de ombros. Não faz ideia de quem seja.
Não sabe quem é ele?
– pergunta o rapaz.
Não
– responde ela.
O rapaz solta a fumaça do cigarro com toda a calma do mundo enquanto fala.
Bom, mas certamente ele parece saber quem é você.
O sujeito joga o cigarro no chão após o longo trago. Pisa na bituca apagando. Fica em silêncio enquanto, contra a brisa, solta pela boca o restante da fumaça ainda em seus pulmões. Clarissa desperta na cama do hospital. Sua cabeça ainda enfaixada, seu corpo frágil. Olha ao redor, assusta-se.
Em um sobressalto, a moça desperta nua e sozinha sob os lençóis da cama de Norberto. O rapaz está por perto. A jovem cai em si. Recompõe-se ao perceber onde está.
Mais de uma vez eu acordei sobressaltada. Sempre pensando estar ainda deitada na cama do hospital. Foi assim por meses após receber alta.
Norberto toca a sua namorada. Ela vai se acalmando e se recompondo, enrola-se no lençol. Esconde a própria nudez. O rapaz senta ao lado de Clarissa. Envolve-a e a protege contra o seu corpo. A moça não sente essa necessidade de ser protegida, mas permite que assim seja.
Debatia-se como se estivesse tendo um sonho terrível. Sobre o que era?
– pergunta o rapaz.
Não sei. Nunca consigo me lembrar.
– responde a moça, em meio a um bocejo discreto.
Norberto acaricia sua namorada com carinho. Permanecem em silêncio apreciando a presença um do outro.
Senti tanta falta desta conexão física. Éramos tão bons juntos quando começamos. Lembra-se?
– pergunta o rapaz.
Clarissa se permite continuar protegida. Não diz nada. Em seu silêncio, em breves flashes, as lembranças estranhas destes dois homens sem nome em um mundo coberto pela bruma e pela quietude. Ela fecha os olhos bem apertados, tentando forçar as imagens para longe de sua mente.
Lembra-se do carnaval de 1995? Quando fomos para a represa?
– pergunta Norberto.
A moça faz que sim.
Foi tão bom. Aquela casinha à beira do lago, nosso lugarzinho secreto. Fomos tão felizes ali, não fomos?
Clarissa sorri, faz que sim. Não diz nada. Norberto está um pouco incomodado por falar sozinho. Mas continua.
Poderíamos repetir aquela fuga. O que me diz?
– pergunta ele.
A moça faz que sim sem dizer nada. O rapaz estranha o silêncio.
Está tudo bem?
São estes sonhos... tão incômodos.
– diz Clarissa.
Que sonhos?
Não sei. Já disse que não me lembro. Só me lembro da cama no hospital. De acordar lá.
– diz ela.
Norberto afaga a moça.
Mas você está aqui agora. Tudo vai ficar bem.
– diz o rapaz, confortando a sua namorada.
A mente de Clarissa se desliga brevemente enquanto no rádio toca Everybody’s Talkin’
de Harry Nilsson. Ela se lembra de algo: Por ruas sombrias, mas cheias de vida, a moça se vê caminhando ao lado do mesmo rapaz corpulento do ponto de ônibus. De braços dados, riem de algo. Seguem felizes pelos caminhos úmidos. É possível ver sparklers acesos nas mãos de algumas pessoas alegres. São vultos perdidos pela noite tranquila. Clarissa sente alegria e esperança.
Capítulo 6
Casinha na represa
O automóvel de Norberto desloca-se rapidamente pela rodovia SP-230, indo para Juquitiba. Passam por uma torre de rádio sobre uma colina. Uma placa com seta para a direita indica Distr. Barnabés / Retorno.
. Outras placas passam pelo horizonte sem
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