Cenas da vida
By Rubem Alves
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Cenas da vida - Rubem Alves
Cenas da vida
Rubem Alves
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Sumário
APRESENTAÇÃO
CENAS INFANTIS
Sobre poetas e crianças
Sobre a alma e a música
Uma casa dentro do vulcão
O rosto de menino
A seriema
Escrevo o que não sou
Sopa de fubá, pão e vinho
CENAS DA ALMA
Tranquilize-se
O que quero é fome
O quarto dos horrores
O fim da banda
Maria-fumaça
O que amo na Igreja
O Betinho morreu...
Sobre a inveja
Onde solidão se vai...
O fim do mundo está próximo!
CENAS DA ESCOLA
Ela não aprendeu a lição
Sobre a vida amorosa das estrelas-do-mar
Sobre nabos crus e professores
Sobre a ciência e a sapientia
É brincando que se aprende...
A maquineta de roubar pitangas
SOBRE O AUTOR
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CRÉDITOS
Apresentação
Nietzche revelou, numa carta, que um dos seus maiores prazeres era ouvir a música de Robert Schumann. A razão para isso, eu acho, estava no fato de que ambos, o filósofo e o compositor, tinham algo em comum: ambos se deleitavam em brincar com miniaturas. Assim falou Zaratustra é uma séria de tais miniaturas, curtíssimas, cada uma delas independente das outras e completa em si mesma. Schumann fazia o mesmo com o piano. As miniaturas lhe brotavam fáceis e leves. Cada uma delas é um quadro pintado com sons: igualmente independente das outras e completa em si mesma. Suas Cenas infantis, por exemplo, são treze fotografias do mundo das crianças. É entre elas que se encontra a Träumerei
, dentre todas a mais conhecida e amada. Já no Carnaval ele pinta máscaras e fantasias, em número de vinte. E há também as Cenas da floresta, com seus pássaros, flores e caçadores.
Nietzsche desejou muito ser um compositor. Não foi bem-sucedido. Transpôs o seu amor pela música para a literatura. Muitos dos seus escritos são música pura. Nietzsche fez com as palavras o que Schumann fazia com os sons.
Também eu quis ser músico. Mas os deuses não me deram a graça de brincar com os sons. Sei mesmo é brincar com as palavras – que também são sons. Pensei então que eu poderia organizar minhas miniaturas de palavras como Schumann organizou as dele. Daí o título de Cenas da vida que dei a este livrinho. É a minha maneira de fazer música.
Sobre poetas e crianças
Alguns se assustam com as coisas que escrevo. Os mais generosos, sabedores da minha vocação de bufão, concluem que estou representando uma cena cômica, para provocar riso. Outros, mais sinistros, me levam a sério e concluem que não devo estar bem – sofro de uma perturbação de ideias, com certeza provocada por um destempero hormonal previsível na menopausa masculina; se não fosse assim, eu não escreveria as coisas absurdas que escrevo. Tal foi a conclusão de uma respeitável senhora que não conheço, depois de ler a minha crônica em celebração à ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, crônica que terminei com uma série de sugestões práticas (não tão absurdas quanto a ressurreição) e endereçadas especialmente aos velhos: sugeri que levassem a mulher ao motel, que comprassem uma cueca colorida, uma calcinha sexy de rendas, que cancelassem a romaria a Aparecida e fossem mergulhar em Bonito. Claro que eu devia estar doido, porque todo mundo sabe o que deve ser feito para se comemorar a Páscoa: primeiro a gente vai à igreja; depois se dão presentes de ovos de chocolate; no almoço come-se peixe; de tarde vê-se o Sílvio Santos ou o Domingão do Faustão; de noite é o Fantástico. Ah! Que vida mais excitante! Para isso Deus criou o universo! Para isso Nosso Senhor Jesus Cristo morreu, desceu aos infernos e foi ressuscitado! Que alegria saber-se assim tão normal, tão do jeito como todo mundo é. (Cá entre nós: você sabe a razão por que se come peixe na Semana Santa? Por favor, não vá repetir a besteira que é para não comer a carne do Filho de Deus. Pois isso, precisamente, é o que ele mais deseja. Tanto que transformou pão e vinho na sua carne e no seu sangue: para que nós o comêssemos. Você come bacalhau sem saber por que, e ainda se julga bem de cabeça?)
Tive uma paciente que pensou que estava ficando louca porque ela, que sempre soubera o que todo mundo sabe, o que todo mundo faz, isto é, que cebolas são entidades para ser comidas, o seu lugar é a boca, o seu caminho é o trato digestivo, o seu destino é o destino de tudo o que entra pela boca, ela, que pensava assim, tão normal, tão como todo mundo, tão racional, ela, de repente, começou a achar bonitas as cebolas. As cebolas mudaram de lugar: da boca passaram para os olhos, bonitas especialmente quando cortadas na horizontal, vitrais de vidro branco quando as fatias são colocadas contra a luz. Se cortadas na vertical, os vitrais se transformam numa chama – e para que a chama brilhe basta que se ponha uma pitada de pó de urucum no ponto central. Faça você mesmo a experiência. Eu a fiz – e qualquer pessoa que chegasse na cozinha e me visse debruçado sobre a pia, colorindo a cebola com pó de urucum, sem a menor intenção de comê-la, e depois olhando-a contra a luz e sorrindo de felicidade, concluiria, com razão, que alguma coisa não está certa na minha cabeça. Eu não devo estar bem. Preciso de terapia. Resolvi, com uma curta frase, o surto de loucura da minha paciente: Você não está louca. Você virou poeta
. E logo lhe mostrei a Ode à cebola
, maravilhosa, do Neruda. Uma mulher que tivesse lido a tal ode ficaria feliz se o namorado lhe oferecesse um buquê de cebolas. Haverá coisa mais normal, mais banal, mais igual a todo mundo, mais previsível, que oferecer um buquê de rosas? Com um buquê de rosas estou dizendo: Você é igual a todas as outras. Para todas as outras ofereci buquê de rosas. E todas elas disseram e fizeram o que você fez agora. Disseram: ‘Que lindas!’ E fizeram: cheiraram as rosas
. Mas se eu desse um buquê de cebolas – que ela receberia com uma risada, sem cheirar –, ela saberia que eu lhe estava dizendo: Você não é igual às outras. Você leu Pablo Neruda!
. Claro que o pai dela ficaria furioso e tentaria me expulsar da casa, por aquele gesto ofensivo, grosseiro. Cebolas são entidades malcheirosas, culinárias, eu estava chamando sua filhinha de cozinheira. Coitado. Normal. Literal. Via do jeito como todo mundo via. Estava de posse da sua razão. Não lia Pablo Neruda. Só lia os jornais, via o Jornal Nacional, usava cueca branca, pijama de bolinha, no restaurante sempre pedia o mesmo prato, não levava a mulher ao motel e fazia romaria a Aparecida. Comia tédio com gosto. Todo mundo come. É o normal. E se todo mundo come deve ser bom. Deve ser o jeito certo de viver. Vai também morrer do jeito certo, sem nunca ter sentido o terror do vento frio batendo no rosto quando se sobe nas alturas dos montes solitários. Idiota.
Meu diagnóstico já foi feito. Minha doença se chama poesia. Não sei que poesia é só para recitar. Eu acredito. Acho que poesia é para viver. E os poetas são todos doidos. Poesia é uma forma de loucura. Veja só: o Fernando Pessoa diz: Tudo, menos ter razão!
. Se ele fosse normal, diria o contrário: Tudo, menos não ter razão!
. É por isso que os normais brigam uns com os outros, especialmente marido e mulher: cada um quer provar que está com a razão. Razão é o que todo mundo pensa e faz. Qualquer idiotice que seja feita por todos passa a ser considerada sabedoria. Disse-o o poeta T.S. Eliot: Numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo
. Andar sozinho na direção oposta à de todos só pode ser coisa de doido. Veja a Adélia Prado, doidona. É sabido por todos que os tapetes são para ser vistos pelo direito. Mas ela diz que o seu gosto é ver as coisas pelo avesso. Já imaginaram a cena? A Adélia vai visitar uma casa e desanda a olhar atrás das coisas? Isso é, no mínimo, falta de educação.
A psicanálise é uma falta de educação. Pois ela é o