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Previdência Social: plano de vôo

02/07/2007

Ao longo dos últimos anos, tenho participado do debate sobre a Reforma


da Previdência. Ao contrário dos temas geralmente tratados pelos
economistas, que tendem a soar algo abstratos para o grande público, a
Previdência é algo que afeta a vida de todos. É natural, então, que a
carga de emoção associada ao assunto seja vários tons acima do que a
que comporta, normalmente, o tratamento de outros assuntos. Ao mesmo
tempo, como costuma ocorrer nos países que discutem a questão da
Previdência, o debate é influenciado pela presença de um agente inerente
à democracia: a mídia sensacionalista. Tratar com sensacionalismo algo
que afeta o bolso de todos leva logo à procura de um "culpado". Quando
o dito cujo é economista, técnico, visto como neoliberal e - ainda por
cima - tem sotaque de argentino, ele reúne todos os ingredientes para ser
o "carrasco" perfeito. Na minha caixa de e-mails, há de tudo. Desde
jornalistas insinuando que eu quero "matar os velhinhos de fome", até
outros que propuseram fechar o Ipea por conta dos meus modestos
artigos, passando por uma vasta coleção de impropérios dirigidos contra
os meus antepassados.

A prática do diálogo, porém, costuma ser positiva e o contato com o


público é estimulante. Há algumas experiências gratificantes, como a de
pessoas que começam escrevendo com uma forte carga de agressividade
e, recebendo e-mails educados em resposta, acabam se tornando quase
amigas. E, como já dizia Guimarães Rosa na sua sentença de que "mestre
não é aquele que ensina, mas aquele que, de repente, aprende", sempre
podemos aprender mais coisas. Um dos retornos interessantes que tive
recentemente foi o de um leitor que me fez a gentileza de me oferecer
uma cópia de uma edição antiga do jornal "O Globo", que é uma
verdadeira jóia. Com o título "Brasília também assalta a Previdência",
nela se dizia que "como era de esperar, começam a surgir os protestos
contra a decisão de aplicar recursos dos institutos da previdência social
na construção de Brasília (...) Não se pode negar que um dos erros
maiores na direção da Previdência Social tem sido o desfalque
continuado de recursos para os empreendimentos oficiais". O artigo é de
1957! Já naquela época, os cuidados que seria preciso tomar com a saúde
do sistema previdenciário a longo prazo eram mais ou menos óbvios.
Apesar disso, sábios conselhos como os do editorial do jornal foram
ignorados, o que nos remete à frase de Câmara Cascudo de que "o Brasil
não tem problemas, mas apenas soluções adiadas".
O meu desconforto com a agressividade de alguns 'blogs' no tratamento
das idéias que defendo, além da confiança nas virtudes da boa
argumentação e da persuasão, levam-me a compartilhar com os leitores
uma nova tentativa de contribuir para o debate previdenciário, através de
um conjunto de artigos, iniciados hoje com este nosso encontro mensal.

É difícil convencer o cidadão comum, que paga impostos e é honesto,


de que ele também pode ser responsável pelos problemas fiscais do
país

Uma das maiores dificuldades que tenho encontrado nas discussões


sobre o tema é a tendência de identificar a figura do "vilão" no
tratamento dos temas. Não é difícil de entender. Vivemos em um país
onde a leitura diária dos jornais faz jorrar vilões aos borbotões. Como a
impunidade de todos eles vai se caracterizando como o denominador
comum dos diversos governos, uma vez que nenhum dos grandes
responsáveis pelo assalto aos cofres públicos fica na cadeia mais do que
48 horas, o leitor tende a reagir diante de propostas de Reforma da
Previdência com uma postura que pode ser traduzida na seguinte
exclamação indignada: "Com tanto escândalo sem resolver, vão querer
implicar logo com a minha aposentadoria?".

Entendo que isso é natural. É difícil que o cidadão comum, que paga
seus impostos em dia e que tenta ensinar aos seus filhos a ética do
trabalho e o valor da honestidade, se convença que ele pode ser, também,
em parte, responsável pelos problemas fiscais do país. Entretanto, é disso
que se trata. O gasto primário do governo central, excluindo as
transferências, passou de 11,1 % do PIB em 1991, para uma estimativa
de 17,8 % do PIB em 2007. Estamos falando de uma variação de mais
0,4 % do PIB de gasto, em média, a cada ano, durante 16 anos. Desse
"delta" de quase 7 % do PIB de gasto a mais, 3,9 % terão sido de maiores
despesas do INSS; 1,3 % do PIB de incremento do gasto com
aposentadorias dos servidores federais; 0,6 % do PIB de LOAS; e 0,5 %
do PIB com Bolsa Família. Sempre tivemos problemas com corrupção
no Brasil e é obviamente correto imaginar que, se tivéssemos instituições
eficientes para punir, disporíamos de mais recursos para atividades
essenciais. Não foi a corrupção, porém, que gerou esse boom de gasto
público no Brasil nos últimos 15 anos. Todos temos direito à indignação
pelo desvio de recursos públicos no Brasil e que, entra governo, sai
governo, continua se sucedendo no que está se tornando tristemente o
país da impunidade. No entanto, daí a considerar que nisso reside a causa
do aumento do gasto público no país, há uma longa distância.

Programei para os próximos meses, um conjunto de artigos, como uma


modesta tentativa de colaborar para o debate sobre a Reforma da
Previdência. Teremos um encontro daqui a algumas semanas para tratar
dos mitos sobre o sistema previdenciário, como a idéia de que "bastaria o
INSS cobrar as dívidas de quem deve", ou a tese de que "não precisamos
de reforma, porque não há déficit". Depois disso, iniciaremos um
percurso de dez artigos para tratar de um "decálogo previdenciário", com
a apresentação e defesa de propostas cuja aprovação entendo que seria
importante e que constituiriam, em conjunto, uma reforma
previdenciáriar abrangente.

Ao leitor indignado com as nossas mazelas, confesso minha impotência


com os descaminhos do país: como punir os corruptos, é algo que foge à
minha competência. Depois de 15 anos de dedicação ao tema
previdenciário, porém, tenho algumas idéias acerca de como o país pode
gastar menos com aposentadorias e pensões, liberando recursos para
outras atividades. Convido o leitor a me acompanhar, nos próximos
artigos.

Fabio Giambiagi, economista, co-organizador do livro "Economia Brasileira


Contemporânea: 1945/2004" (Editora Campus), escreve mensalmente às segundas-
feiras.

04/07/2007

Os mitos
sobre a
Previdênc
ia Social

Conforme prometido, iniciaremos um conjunto de artigos que


comporão um "decálogo" com dez propostas para a
Previdência. Antes de começar a série, é importante evitar
ficarmos presos a mitos ainda enraizados no debate sobre o
tema. É difícil tratar de todos os detalhes, mas podemos tentar
resumir os principais pontos. São quatro os maiores mitos do
debate:

a) "A solução é cobrar a dívida ativa"; b) "A Previdência não


tem déficit"; c) "O problema é assistencial, não da
Previdência"; e d) "A piora da crise previdenciária deve-se aos
inativos do setor público".
Vejamos as questões de perto. O Ministério da Previdência
divulga regularmente o valor da dívida ativa do INSS. Ela
atinge o montante de R$ 130 bilhões. Alguém poderia supor
que basta receber essa dívida para resolver o problema
previdenciário. A ilusão se desvanece quando se analisa a lista
dos devedores. Entre os 5 maiores devedores do INSS, estão a
velha Varig, a VASP, a Transbrasil e a Encol. Trata-se de
pessoas jurídicas com problemas diversos, envolvendo vários
credores e em relação aos quais, na Justiça, há vários deles
com prioridade antes do governo. Quem tiver alguma idéia de
como receber os R$ 5 bilhões que essas empresas devem em
conjunto, favor entrar em contato com o Ministério da
Previdência. Além disso, a lista contém: 1) empresas sadias,
que contestam os números do INSS e brigarão na Justiça
alegando que a dívida simplesmente não existe; 2) diversos
órgãos de governo, o que significa que se os recursos entrarem
por um lado, estarão saindo por outro, tornando o efeito líquido
sobre o setor público nulo; e 3) uma multiplicidade de casos de
empresas em relação às quais as chances de cobrança são
estritamente nulas. Observe-se no gráfico que as (n-200)
maiores empresas devedoras do INSS respondem por 77 % do
total da dívida ativa. Imagine-se, por exemplo, que um dono de
locadora de vídeo atrase o pagamento do INSS. Um ano
depois, a empresa vai à falência e após mais dois anos, o dono
morre. A empresa continuará na lista do INSS, com a dívida
crescendo todo mês, mas o INSS não será ressarcido nunca. É
por isso que entre aquilo que consta da dívida ativa e o que é
realisticamente possível recuperar a cada ano há dois zeros de
diferença.

O segundo mito é a tese de que "a Previdência não tem


déficit". Ao debater esse tema, sinto-me como se estivesse
dialogando com aqueles personagens que ficam defendendo a
tese de que o homem não foi à Lua e que tudo não passa de
uma invenção, de tão surrealista que é a conversa. Repare o
leitor: a despesa do INSS era de 2,5 % do PIB em 1988 e de
mais de 7,5 % do PIB hoje. Esse é um fato. A proporção de
idosos vai dobrar nos próximos 25 anos. Esse é outro fato. E
quem se aposenta por tempo de contribuição no Brasil o faz
com uma idade média de 55 anos, o que é um terceiro fato.
Diante desses números, discutir se a Previdência tem déficit ou
não, é irrelevante. Estamos lidando com um problema real: o
Brasil tem regras generosas de aposentadoria e há cada vez
mais gente que recebe recursos do Estado, com idades
precoces ou tendo feito contribuições escassas. Saber se a
receita do imposto X deve ser do INSS ou do Tesouro não tem
importância nenhuma para efeitos do que estamos tratando. O
problema é real não contábil!

O terceiro mito leva o surrealismo ao paroxismo. É a idéia de


que a despesa do INSS embute um componente assistencial.
Ressalve-se que na essência há um fundo de verdade no
argumento, mas, da mesma forma que no caso anterior, isso é
irrelevante. Aplicada a uma empresa, seria uma receita certa
de falência. Imagine-se que uma empresa tenha uma
proporção x do seu faturamento comprometida com a despesa
com funcionários, e que aplique y % em atividades
filantrópicas. Um belo dia, o chefe da contabilidade da
empresa, constatando que a folha de pessoal está crescendo
muito acima que o faturamento, tem a solução mágica: "vamos
carimbar a despesa com os funcionários que ganham um
salário mínimo como uma despesa filantrópica". Do ponto de
vista teórico, ter muitos empregados nessa faixa pode ajudar a
melhorar o nível de emprego e fazer jus ao conceito. Na
prática, é um bom caminho para a concordata. O argumento
de que "não precisamos nos preocupar, porque a despesa é
assistencial e não previdenciária" pode ser bom no palanque,
mas o Tesouro - que direta ou indiretamente é sempre quem
paga - tem que se preocupar, sim, uma vez que o que
interessa a ele é o tamanho da conta como um todo.

Por último, tem-se a idéia de que "a piora do gasto


previdenciário se deve aos inativos do setor público". Todas as
vezes que um cidadão honesto fica sabendo que no país da
impunidade, um parlamentar renunciou ao mandato para não
ser cassado e passou a receber uma polpuda aposentadoria ou
que alguém acusado de vender sentenças preferiu sair do foco
e irá ter uma aposentadoria de R$ 20 mil ou R$ 22 mil, o
cidadão tem, compreensivelmente, a sensação de que "aí é
que mora o problema". Infelizmente, porém, a questão
previdenciária não se resume a tentar evitar que servidores
públicos de moral duvidosa e com altos salários continuem a
receber do Estado ao se aposentar. A tabela mostra que entre
1995 e 2006 o total da despesa com servidores inativos (a
enorme maioria dos quais, honestos, é bom lembrar) caiu 0,3
% do PIB, enquanto que o gasto do INSS cresceu 2,5 % do PIB.

Desfeitos os mitos, o que fazer? Esse será o tema dos próximos


10 artigos

Propos
tas
para a
Previd
ência
(I):
idade
mínim
a

Começamos hoje uma série de dez artigos com propostas do que pode
ser encarado como uma espécie de "decálogo previdenciário" no debate
sobre a reforma da Previdência Social. Os dez pontos são: idade mínima;
aumento progressivo da idade mínima; redução da diferença homens-
mulheres; aumento da idade de quem se aposenta por idade; extensão do
período contributivo; transformação dos benefícios rurais em
assistenciais; fim da pensão integral; extinção do regime especial dos
professores; indexação de todas as aposentadorias ao INPC; e aumento
da idade de elegibilidade para o LOAS.
O tema de hoje é a idade mínima. Peço ao leitor que avalie exatamente o
que está sendo proposto, para evitar erros de interpretação. Eu tomo
todos os dias o ônibus para ir ao trabalho, no Rio de Janeiro. Ao passar
por Copacabana, de manhã, constato que no calçadão há muitas pessoas
de meia idade, em torno dos 55 anos, provavelmente aposentadas, com
uma disposição invejável - e louvável - para usufruir a vida. Deduzo que
se trata de aposentados porque a essa hora as ruas estão cheias daqueles
que vão trabalhar. Faço um outro pedido ao leitor: lembre que não há
nada de pessoal nos comentários. Passei os melhores anos da minha
juventude em Copacabana, tenho ótimas lembranças daquela época e, se
as regras não mudarem, eu serei um desses idosos, pois vou poder me
aposentar aos 57 anos. O problema é que no Brasil as pessoas nessa
idade têm uma expectativa de vida próxima à dos países desenvolvidos,
mas se aposentam 8 ou 10 anos antes em relação às pessoas dessa faixa
etária naqueles países.

Alega-se que a razão para as pessoas poderem se aposentar cedo é a


dificuldade de conseguir emprego acima de certa idade. De fato, esse é
um drama social. Trata-se, porém, de um problema universal. Nos
Estados Unidos, também é difícil conseguir emprego aos 55 anos, mas se
alguém bate às portas do Tesouro pedindo aposentadoria a essa idade,
encontrará a porta fechada, assim como na Suécia, no Peru ou na
Argentina. Por que o Brasil deve ser diferente? É preciso, também,
reconhecer que, embora o argumento referente àqueles que não
conseguem emprego se aplique a diversos indivíduos, a grande maioria
dos casos de pessoas que obtém a aposentadoria por tempo de
contribuição se verifica em situações em que elas estão empregadas.

A aposentadoria precoce é um direito usufruído basicamente pela classe


média. A idade em que os indivíduos se aposentam no Brasil por tempo
de contribuição no INSS é, na média, de 52 anos para as mulheres e 57
anos para os homens. A pergunta que cabe fazer é: será que é justo
preservar intacto esse direito a aposentadorias particularmente precoces,
sem levar em conta as mudanças demográficas, considerando a
possibilidade de uso alternativo para os recursos que poderiam ser
poupados, caso tais aposentadorias sejam adiadas alguns anos?

O que deve ser feito? A resposta é: idade mínima. Devemos estabelecer


no INSS um sistema de condicionalidades cruzadas. Hoje, quem se
aposenta por idade tem que respeitar certo período de contribuição, mas
quem se aposenta por tempo de contribuição, não está sujeito a uma
idade mínima. No futuro, quem se aposentar por tempo de contribuição
deveria respeitar uma idade mínima. A proposta é que ela seja de 60 anos
para os homens e 55 ou 56 anos para as mulheres. Há 5 justificativas:

Alega-se que as pessoas têm dificuldade de conseguir emprego acima


de certa idade. Trata-se, porém, de um problema universal

1) O bom senso. É uma proposta que o presidente tem condições de


defender olhando nos olhos do eleitor. Quem procurar argumentos para
alegar que é um absurdo fazer com que um indivíduo só possa se
aposentar com 60 anos se for homem e 55/56 se for mulher, tropeçará
com um conjunto vazio.

2) O contexto mundial. É uma regra que, comparativamente à maioria


dos países do mundo, ainda é benevolente.

3) O contraste com quem se aposenta por idade e que tem de ter 65


(homens) ou 60 anos (mulheres), o que torna a regra proposta bastante
branda.

4) O paralelo com os servidores. A reforma de 2003 já aprovou o


princípio para os servidores, foi aceita pela sociedade e julgada pelo
STF. Todos irão compreender que há uma base conceitual clara para a
isonomia proposta.

5) A carência. A medida passaria a vigorar 5 anos depois de aprovada, o


que significa que não modificaria em nada a situação de quem estiver a
poucos anos da aposentadoria.

Minha experiência pessoal indica que, quando se sugere a uma pessoa de


meia idade que ela, em vez de se aposentar com 58 anos, por exemplo,
terá de trabalhar até os 60, há resistências. Já quando se faz a mesma
proposta a quem tem 30 anos, ninguém se importa muito. É uma
distinção que o governo deveria aproveitar para poder "vender" a idéia.
Quando um governo é claro e tem credibilidade, a população acredita em
sua proposta.
Resta o argumento de que a medida penalizaria o trabalhador pobre que
começou a trabalhar aos 15 anos, ganha salário mínimo e seria
prejudicado pela proposta em relação aos privilegiados, como eu, que
tiveram a sorte de poder estudar até os 22 anos sem ter que trabalhar. O
argumento, porém, é incorreto. Primeiro, porque a aposentadoria por
tempo de contribuição é tipicamente de classe média. E, segundo, porque
aos 60 anos o trabalhador que tiver começado a trabalhar aos 15 anos irá
multiplicar o seu salário médio de contribuição por um fator
previdenciário de 1,17 e quem tiver começado a trabalhar aos 22 anos
por um fator de apenas 0,97 (ver tabela).

Propostas para a Previdência (II): aumento da idade mínima

No artigo anterior, defendi a adoção de uma idade mínima


para aqueles que se aposentam por tempo de contribuição
pelo INSS, entre outras razões por analogia com aquilo que já
vale para os funcionários públicos desde 2003. A segunda
proposta do "decálogo" previdenciário deveria ser a elevação
progressiva dessa idade mínima, a partir da idade inicial
proposta, de 60 anos para os homens e 55 ou 56 anos para as
mulheres, a vigorar 5 anos depois da aprovação da proposta.

Alguém poderia alegar que a idade mínima proposta seria


razoável e que a sua aprovação geraria um desgaste político
ao governo, que inibiria adotar providências adicionais. O
raciocínio é válido quando se pensa no Brasil dos próximos 10
anos, mas não para o Brasil em que vão viver os nossos filhos.
Ou seja, uma idade mínima como a sugerida faz sentido para o
Brasil atual, mas não para o Brasil de 2030. E uma das funções
dos governantes é ter a capacidade de pensar o longo prazo. O
país estará sendo irresponsável se esperar 20 anos para
decidir as regras de aposentadoria que vão vigorar daqui a
duas ou três décadas.

Na década de 70, no Brasil, a esperança de sobrevida de um


homem que chegasse vivo aos 60 anos era de viver mais 16
anos e a de uma mulher, 17 anos. Hoje, no Brasil, aos 60 anos,
em média, pelas indicações da tábua de mortalidade do IBGE,
um homem espera viver mais 19 anos e uma mulher mais 22
(a esperança de vida das mulheres aumentou mais pela
melhora dos mecanismos de identificação de tipos de câncer
tipicamente femininos nos estágios iniciais da doença). Tudo
indica que essa tendência irá se manter nos próximos 20 a 30
anos.
O Brasil estará sendo irresponsável se esperar 20 anos
para decidir as regras de aposentadoria que vão vigorar
daqui a duas ou três décadas

Quando se analisam os casos melhor sucedidos de reformas


previdenciárias em outros países, observa-se que as situações
que causaram menor transtorno foram justamente aquelas em
que as mudanças foram planejadas e ocorreram suavemente
ao longo do tempo. Previdência Social está ligada ao longo
prazo e, portanto, não há razões para que as mudanças sejam
abruptas. A maior longevidade da população é um processo
lento, sendo então razoável que as modificações da legislação
também ocorram de forma gradual.

Na definição de uma estratégia que vise lidar com a economia


política da reforma previdenciária, temos que dividir a
sociedade em três grupos. O primeiro é o daqueles que já
estão aposentados. Curiosamente, embora estes sejam os que
têm a reação mais visceral contra qualquer reforma, trata-se
de indivíduos que não seriam atingidos por ela, o que deveria
ser a primeira mensagem que o governo deveria transmitir na
tentativa de "vender" a reforma a ser proposta. Direitos
adquiridos devem ser respeitados e quem está aposentado
continuará na mesma situação de hoje, sem qualquer
mudança.

O segundo grupo é o dos chamados "novos entrantes", ou seja,


os jovens e os futuros nascidos. Este grupo não é um fator de
pressão no debate sobre a reforma. Um, porque muitos dos
afetados ainda não nasceram. Dois, porque os que nasceram,
ainda não votam. E três, porque aos 15 ou 20 anos, o ser
humano se julga imortal e acha que conversar sobre
aposentadoria " é coisa de velho " (falo como pai de um
adolescente), razão pela qual, apresentado à opção de se
aposentar aos 65 ou aos 70 anos, qualquer jovem irá encarar o
interlocutor com um indisfarçável ar de tédio. Portanto, para os
novos entrantes pode-se adotar uma regra rígida, por exemplo
uma idade mínima de 65 anos, sem maiores problemas. Os
benefícios fiscais disso só afetarão as contas daqui a algumas
décadas, mas pode ser conveniente já ir pensando nisso.

O terceiro grupo é o mais complicado do ponto de vista político


e social e é composto por aqueles que não se aposentaram
ainda, mas já estão no mercado de trabalho. É um grupo que
vai, "grosso modo", dos 20 aos 55/60 anos. E aqui o segredo
consiste em tratar desigualmente as situações desiguais. Não
se pode adotar para quem tem 50 anos e já vê a aposentadoria
no horizonte, a mesma regra adotada para um jovem de 20
cheio de gás e com disposição para trabalhar por muito tempo.
Por isso, a sugestão é que se adote a idade mínima de 60 anos
para os homens e 55 ou 56 anos para as mulheres, para
aqueles que se aposentam por tempo de contribuição, daqui a
5 anos e que a partir disso o parâmetro seja elevado em 1 ano
a cada 3 ou 4 anos, até, sugere-se, 64 anos para os homens.
Nesse caso, se o período for de 3 anos, a idade mínima seria
de 60 anos em 2012; 61 em 2015; e assim sucessivamente. A
transição até a idade mínima de 64 anos se completaria em
2024 ou em 2028, dependendo do intervalo adotado para as
mudanças futuras.

Um homem que hoje tenha 33 anos de contribuição e 54 anos,


por exemplo, não seria afetado pela mudança, pois seria
favorecido pela carência de 5 anos. Já um homem com 50 anos
e 29 de contribuição, teria que esperar até os 61 anos para se
aposentar, uma vez que em 2017, quando fizer 60 anos, a
idade mínima já teria sido elevada em 1 ano. Os muitos jovens,
por sua vez, saberiam que só poderiam se aposentar aos 64
anos. Isso, porém, ocorreria perto de 2025 ou 2030, quando os
brasileiros estarão vivendo mais do que hoje. As regras
adotadas no resto do mundo dão pleno amparo a esta proposta
(ver tabela).
Propostas para a Previdência (III): a regra das mulheres

O nosso encontro de hoje é para tratar da terceira medida de


um "decálogo" de reformas envolvendo mudanças nas regras
de aposentadoria. Trata-se da diferença de requisito para a
aposentadoria feminina, comparativamente à regra adotada
para o sexo masculino.

Sou consciente de que este é um tema sensível e, por isso,


esclareço que além de eu ser esposo e pai, minha mãe teve
três filhos, portanto conheço a lógica da diferenciação de
regras de aposentadoria, baseada na existência do que
nenhuma sociedade até agora conseguiu resolver
adequadamente: a dupla jornada de trabalho das mulheres.
Creio, porém, honestamente, que homens e mulheres do Brasil
devem repensar em reduzir a diferença entre as regras de
aposentadoria de ambos os sexos. E isso por uma razão
simples: as mulheres se aposentam cinco anos antes - mas
vivem mais.

Muitos países que tinham regras diferenciadas estão


migrando para a igualdade entre sexos em matéria de
aposentadoria, como os da UE
Uma olhada na tabela ajuda a entender a questão. No Brasil,
uma mulher de 60 anos de idade tem uma expectativa de viver
até os 82 anos, enquanto que na mesma época da vida, um
homem espera viver, na média, até os 79 anos. A diferença
entre um caso e outro é de três anos. Isto é, se homens e
mulheres se aposentassem à mesma idade, a mulher receberia
a aposentadoria por um número maior de anos. Como, além
disso, a mulher se aposenta antes, ela é beneficiada de forma
tríplice em termos atuariais, já que a alíquota que paga é a
mesma que a dos homens. Primeiro, na contagem do tempo de
contribuição ganha um adicional de cinco anos: se contribuiu
por 30 anos, tem o seu fator previdenciário contabilizado como
se tivesse contribuído por 35. Segundo, se aposenta antes que
o homem. E terceiro, vive mais. As regras deveriam se tornar
um pouco mais restritivas, minimizando esse conjunto de
vantagens. Estamos falando de um favor fiscal, que tem um
custo: continuar a permitir que as mulheres se aposentem por
tempo de contribuição, conforme indicam as estatísticas, na
média, aos 52 anos, implica ter menos recursos disponíveis
para atividades importantes que estarão sendo negativamente
afetadas pela proporção crescente do Orçamento consumida
pela Previdência. A falta de recursos para investimentos é
parte desse enredo.

Estamos lidando com um fenômeno moderno. As sociedades


vão se modificando e, com isso, surgem novas questões.
Debatendo sobre temas interdisciplinares, há um par de anos,
um médico me fazia notar que na medicina feminina, as
questões ligadas à menopausa não mereciam importância até
a primeira metade do século passado, pelo fato de que a
maioria das mulheres não vivia até a idade em que essa
transformação se verifica. Analogamente, na época dos nossos
pais, a aposentadoria das mulheres não era um problema
fiscal, porque quase não havia mulheres aposentadas. Com o
passar das décadas, contudo, a participação feminina no
mercado de trabalho foi se ampliando e as mulheres foram
conquistando seu espaço. Como a trajetória da taxa de
participação feminina no mercado de trabalho acaba refletida,
30 anos depois, na curva de evolução das aposentadorias
femininas, aquela tendência do mercado de trabalho tem se
reproduzido na composição das despesas do INSS. Para que o
leitor tenha uma idéia da magnitude desse fenômeno, basta
citar um dado: no começo do Plano Real, em 1994, o número
de mulheres aposentadas recebendo aposentadoria por tempo
de contribuição era da ordem de 300 mil pessoas e hoje é de
mais de 900 mil pessoas. Sistemas de seguridade social podem
ser generosos sem que isso afete o conjunto, quando se trata
de beneficiar pequenos contingentes populacionais. Se há
países que adotam uma legislação favorável aos indivíduos
com aids, por exemplo, a sociedade aceita de bom grado
conceder essa ajuda, não só pela solidariedade em si, como
também porque, como apenas uma pequena parte da
população sofre da doença, o custo para o sistema é modesto.
Quando os favorecidos representam metade da população,
porém, o custo da generosidade é muito maior.

Alguém pode alegar que regras diferenciadas em favor das


mulheres existem em outras legislações nacionais. É verdade.
Porém, é preciso considerar duas coisas. Primeiro, que muitos
países que tinham regras diferenciadas estão migrando para a
igualdade entre os sexos em matéria de aposentadoria, como é
o caso dos países da União Européia. E, segundo, que embora
de fato ainda existam muitos países com regras mais
favoráveis para as mulheres, isso ocorre em relação a um
parâmetro em que as regras de aposentadoria para os homens
são bastante rígidas. O caso típico é o de ter uma norma
conforme a qual os homens se aposentam aos 65 anos e as
mulheres aos 60. O que confere singularidade ao caso
brasileiro é que aqui as mulheres podem se aposentar por
tempo de contribuição cinco anos antes em relação aos
homens que, por sua vez, também se aposentam, por esse
regime, muito cedo. O resultado é que, enquanto em diversos
países as mulheres se aposentam antes dos homens, mas aos
60 anos, no Brasil podem se aposentar aos 50 ou 51 anos, o
que é um exagero.

Qual é a solução? Adotar uma regra pela qual a diferença entre


os requisitos para as aposentadorias masculina e feminina
diminua dos atuais cinco anos para dois anos, na base de uma
redução de um ano a cada cinco anos. Assim, cinco anos
depois de uma certa data, a diferença cairia para quatro anos e
em dez anos para três, até completar a transição em 15 anos,
quando a diferença entre os sexos cairia para dois anos. Trata-
se de uma regra razoável, gradual e que afetaria apenas
moderadamente as mulheres de meia idade que hoje estão no
mercado de trabalho, incidindo mais severamente sobre as
jovens - que creio que aceitariam a medida com naturalidade.
O país deveria pensar seriamente em uma regra como essa.

Propostas para a Previdência (IV): idade de aposentaria

22/10/2007

O nosso quarto artigo desta série com propostas de reforma da


Previdência Social refere-se ao dispositivo que regula a
aposentadoria por idade. Cabe lembrar que o Brasil tem
basicamente dois tipos de aposentadoria programável. A
primeira é por tempo de contribuição, aos 35 anos no caso dos
homens e 30 anos no das mulheres. Nesses casos, para os
servidores públicos há uma idade mínima de 60 anos para os
homens e 55 anos para as mulheres, que neste espaço já
defendi que seja estendida para o INSS, onde essa idade
mínima não vigora.

A segunda modalidade de aposentadoria é por idade, em cujo


caso a regra segue o padrão de muitos países e é de 65 anos
para os homens e 60 anos para as mulheres. Neste caso, há
um período contributivo mínimo para fazer jus ao benefício,
período esse atualmente em processo de elevação, até o
parâmetro final de 15 anos de contribuição, a partir de 2011.

A idade de aposentadoria é apropriada para o Brasil de hoje e


não há razões para que seja modificada imediatamente.
Entretanto, da mesma forma que no caso de outros
parâmetros, é importante que comecemos a nos preparar para
o que se espera que seja o perfil demográfico do país daqui a
20 ou 30 anos. É exatamente em função disso que alguns
países já iniciaram um processo de adaptação, ainda que de
longo prazo, o que é também uma forma politicamente sábia
de minorar as resistências às mudanças que este tipo de
iniciativas costuma suscitar. Os EUA, por exemplo, aprovaram
há anos uma regra por meio da qual a idade de aposentadoria
será lentamente elevada para ambos os sexos, até ser de 67
anos em 2027, ou seja, daqui a 20 anos. Essa idade de 67 anos
já vigora atualmente, também para ambos os sexos, em alguns
países como Dinamarca, Islândia e Noruega.
É importante que o país se prepare para o que deve ser
o perfil demográfico daqui a 20 ou 30 anos com ações
graduais que podem ser bem aceitas

Como parte de uma reforma previdenciária abrangente, o


Brasil deveria adotar um conjunto de providências baseadas
em quatro princípios: a) ausência de qualquer mudança para
os que já estiverem aposentados; b) aprovação de mudanças
com uma carência de cinco anos, de modo a não prejudicar a
situação de quem estiver a pouco tempo de se aposentar; c)
adoção de uma regra extremamente rígida para os novos
entrantes, não só pela razão óbvia de que politicamente não
são um grupo de pressão relevante, como também pela razão
técnica de que se trata de pessoas que irão se aposentar daqui
a várias décadas, quando se espera que os indivíduos vivam
muito mais do que hoje; e d) respeito ao gradualismo, no caso
das modificações legais que valerem para aqueles que já estão
no mercado de trabalho.

Cabe lembrar que a nova regra deveria ser associada à que já


foi aqui proposta para as mulheres, que é a de que a diferença
entre elas e os homens seja alterada de cinco para dois anos
ao longo de um lento processo de transição que duraria 15
anos, na base de redução desse diferencial em um ano a cada
cinco anos (ver tabela).

Para os novos entrantes, a regra sugerida é que todos aqueles


que tiverem nascido, por exemplo, a partir de 1990 (inclusive),
e que portanto em 2007 têm menos de 18 anos, só poderiam
se aposentar a partir dos 68 anos, regra essa a ser aplicada
tanto aos homens como às mulheres. Pode-se objetar que essa
regra é mais rígida que a que vigorará para os EUA, mas cabe
lembrar que tais aposentadorias iriam se efetivar a partir de
2058, enquanto que a regra dos EUA irá valer a partir de 2027,
sendo válido admitir que possivelmente entre 2027 e 2058
aquele país passará por uma nova mudança das condições de
aposentadoria. Além disso, o que está sendo proposto aqui é
apenas uma base para discussão. Daí a que a proposta seja
encampada pelo governo, haverá um longo trecho a percorrer,
e daí a que uma eventual proposta do Executivo seja validada
pelo Congresso, haverá um espaço maior ainda. Isso significa
que não ignoro que entre as propostas aqui feitas, e aquilo que
vier a ser definido em um processo de negociação política,
pode haver um espaço considerável. Do ponto de vista
estritamente técnico e considerando o perfil demográfico do
país nas próximas décadas, entretanto, entendo que é uma
proposta razoável para discussão.

O cidadão, com o conjunto de parâmetros definidos neste


artigo e nos anteriores teria então diante de si uma espécie de
"cardápio" de alternativas, baseado no que eu denomino de
"condicionalidades cruzadas". Aqueles que já estão no
mercado de trabalho, poderiam se aposentar por tempo de
contribuição com 35 anos de serviço (no caso dos homens)
mas condicionados a uma idade mínima de (inicialmente) 60
anos (também no caso dos homens). Já no caso dos homens
que vierem a se aposentar não por tempo de contribuição e
sim por idade, a concessão do benefício estaria sujeita a um
número mínimo de anos de contribuição, assim como ocorre
atualmente, mas com um requisito contributivo maior; e a
idade exigida seria aumentada ligeiramente, dos atuais 65
anos para os homens, até 67 anos em 2027, ou seja, daqui a
20 anos.

Observe-se que uma pessoa do sexo masculino que tenha, por


exemplo, 61 anos atualmente, não teria a regra da sua
aposentadoria modificada, uma vez que faria 65 anos no
período de vigência da carência de cinco anos até a entrada
em vigor da nova regra. Já outra que tenha 57 anos, daqui a
oito anos, ao fazer 65 anos, em 2015, pela tabela, teria que
esperar mais 6 meses para se aposentar, enquanto que um
indivíduo que tenha, por exemplo, 52 anos teria que esperar
mais um ano para se aposentar, com 66 anos ao invés de 65.
São medidas graduais, que se bem explicadas, com tempo
para a adaptação, poderiam ser aceitas pela população.
Propostas para a Previdência (V): o período contributivo

19/11/2007
Este nosso quinto encontro sobre as propostas de reforma da
Previdência é sobre outro parâmetro que deveria ser
modificado: o período de contribuição para se aposentar pelo
INSS. Soa antipático tratar da uma situação que na maioria dos
casos individuais envolve valores modestos dos benefícios. O
problema é que, no conjunto, o gasto do INSS é a maior fonte
de despesas do setor público e, na raiz do problema, estão
regras que, em relação ao resto do mundo, são extremamente
benevolentes.
Nos meus tempos de economista do BID, no início da década
de 90, eu trabalhava com a Venezuela e estávamos lidando
com uma consultoria técnica para a adoção do Imposto sobre o
Valor Adicionado (IVA) em momentos em que o preço do
petróleo se encontrava em patamares muito baixos e o país -
tradicionalmente petróleo-dependente - passava por
dificuldades fiscais. Um episódio curioso que vivi naqueles
anos foi quando a missão tomou um táxi e os membros dela
conversavam sobre as idiossincrasias locais e a dificuldade de
conseguir que um país acostumado a viver da receita do
petróleo admitisse a idéia - prosaica no resto do mundo - de
que as pessoas deveriam ser taxadas. Simplesmente, o
motorista de táxi se virou para nós, furioso e começou a
trovejar impropérios contra "os técnicos estrangeiros que
querem impor ao país modelos que podem fazer sentido nos
seus países, mas que não de adaptam à nossa realidade". E
isso porque se tentava colocar em prática um imposto que o
Brasil tinha implementado 30 anos antes!

A dificuldade que o cidadão comum tem de aceitar o que no


resto do mundo é algo normal, evidente na Venezuela no caso
dos impostos, se observa no Brasil nas aposentadorias.
Quando digo nas minhas palestras que o Brasil tem um dos
sistemas previdenciários mais generosos do mundo, observo
olhares de espanto na platéia, como se estivesse falando de
outro país. E, entretanto, é disso que se trata. As pessoas têm
uma enorme dificuldade para absorver a idéia de que no
relacionamento entre o INSS e o cidadão, muitas vezes a
vítima é o INSS e não o cidadão. Há duas explicações. A
primeira é o historicamente péssimo nível dos serviços
prestados pelo INSS no atendimento ao público, atendimento
que tradicionalmente foi abaixo da crítica, razão pela qual
quem passa horas numa fila do instituto tem todo o direito de
se indignar. E a segunda é a atitude generalizada dos
governos, da mídia e de muitos formadores de opinião de
tratar o cidadão comum como alguém indefeso diante da
insensibilidade alheia, e não como aquilo que quase todos os
contribuintes do INSS são: beneficiários de um sistema de
regras que faz com que o valor presente das aposentadorias
recebidas ou a receber seja muito maior do que o valor
presente das contribuições feitas.

As pessoas têm uma enorme dificuldade para absorver


a idéia de que na relação entre o INSS e o cidadão,
muitas vezes a vítima é o INSS

O viés nacional a considerar que o governo é sempre o "vilão",


e o cidadão a vítima, impede a maioria de perceber que, se
alguém contribui para a aposentadoria com 1/3 do seu salário
por 13 anos, e se aposenta para receber aposentadoria integral
por um período de 20 anos, do ponto de vista econômico quem
perde é o governo e não o cidadão comum. É essa "psicologia
do coitado" que faz com que se conservem regras de
aposentadoria que, na grande maioria dos interlocutores
especializados em Previdência que visitam o Brasil, geram a
mesma perplexidade que os membros da missão do BID
sentiram na Venezuela vendo como as ruas reagiam diante
daquilo que no resto do mundo pertencia ao terreno da
obviedade.

O INSS admite duas formas de aposentadoria: por idade ou por


tempo de contribuição. Quem solicita o benefício pelo critério
da idade deve obedecer a requisitos que não são exigidos de
quem se aposenta por tempo de contribuição: 65 anos os
homens e 60 as mulheres. O problema é que o período
contributivo exigido é muito pequeno. Para que se tenha uma
idéia de quão aberrante era a legislação, em 1991 o tempo era
de apenas 5 anos. Isto é, no limite uma mulher podia ficar sem
contribuir até os 55 anos, contribuir dos 55 aos 60 e após isso
ficar com a aposentadoria por 20 anos, até falecer. Não é
preciso ser nenhum gênio em ciências atuariais para perceber
que um sistema montado nessas bases só poderia gerar um
enorme problema, com o passar dos anos. Desde então, a
legislação estabeleceu uma regra por meio da qual o período
de contribuição exigido para quem se aposenta por idade seria
aumentado em 6 meses a cada 12 meses, acrescentando
assim mais 10 anos aos 5 originais no final de uma transição
que se completará em 2011. Atualmente, em 2007, a exigência
contributiva é de 13 anos.

Por outro lado, da mesma forma que no caso de diversas


modificações propostas neste mesmo espaço, é política e
socialmente crucial que qualquer transformação a ser adotada
seja gradual, de modo a não mudar radicalmente a vida das
pessoas da noite para o dia, o que inviabilizaria a aprovação de
qualquer mudança.

Como conciliar as coisas? Como fazer com que a regra


contributiva, que continua sendo benevolente, se aproxime das
regras vigentes nos demais países, de forma politicamente
palatável e sem gerar resistências insuperáveis? A solução
natural é manter o critério atual de elevação do tempo de
contribuição em 6 meses a cada 12 meses, depois do limite
hoje previsto para 2011, quando estará em 15 anos. Entre
outras vantagens, trata-se de uma modificação que poderia ser
feita por aprovação de um projeto de lei, sem exigir o quorum
constitucional.

O que se propõe é que a regra de transição seja estendida até


25 anos, transição essa a ser completada em 2031. Assim, em
2011, quem se aposentasse por idade deverá ter pelo menos
15 anos de contribuição, exigência essa ampliada para 20 anos
em 2021 e 25 anos em 2031. Creio que dificilmente a proposta
poderia ser acusada de draconiana e combinaria o
embasamento técnico com a viabilidade política. O governo
deveria pensar com apreço nessa matéria.

Propostas para a Previdência (VI): os benefícios rurais

17/12/2007

O sexto item que deveria fazer parte de uma agenda de


reformas da Previdência diz respeito às regras de
aposentadoria rural. O tema tem a ver com o pacto que foi
feito no âmbito da Constituinte de 1987 e cristalizado na
"Constituição cidadã" de 1988.

O que aconteceu na época com os benefícios rurais? Eles


foram multiplicados por um fator 2, uma vez que o piso da
aposentadoria (que corresponde ao valor do benefício para a
imensa maioria dos aposentados rurais) passou de ½ para um
salário mínimo (SM). Na esteira dessa modificação, como
resultado da maior atratividade, em três anos o número de
benefícios rurais por idade dobrou. Adicionalmente, desde o
Plano Real o poder aquisitivo do salário mínimo teve um
aumento de mais de 100 %. O resultado da multiplicação inicial
do piso por um fator 2, combinado com a duplicação do
número de beneficiados e com o aumento para o dobro do
valor real do salário mínimo é que a despesa previdenciária
com os beneficiados do meio rural se multiplicou por oito.
Certa vez, em um debate, fizeram-me a acusação de que com
minhas propostas eu ignorava que a Constituição representava
uma espécie de pacto social. Nada mais longe da verdade: eu
cresci na Argentina efervescente dos anos 70 e sei
perfeitamente o significado da política na vida de um país. A
Constituição é, de fato, a expressão política e jurídica de um
pacto social e a última coisa que eu pretendo é ignorar o seu
sentido. O que penso, sim, é que chegou a hora de repactuar
os termos desse acordo social. Por que? Porque a Constituinte
expressou os anseios da sociedade dos anos 80, onde a
pobreza era ainda tipicamente idosa e rural e hoje, em pleno
século XXI, os maiores problemas sociais do país são ligados à
juventude, e são urbanos e metropolitanos. De agora em
diante, a nossa prioridade não deveria ser tanto aumentar a
remuneração dos futuros idosos rurais e sim dar conta do
desafio maiúsculo que é dar um sentido para a vida de milhões
de crianças e jovens metropolitanos sem conceito de família,
sem educação, sem emprego e sem esperança. E isso custa
dinheiro.

Como realizar essa transição? Como em todos os casos que


estou propondo nesta série, três princípios devem ser
sagrados. O primeiro é não mexer com direitos adquiridos. O
segundo, respeitar uma carência, para não mudar a situação
de quem estiver prestes a se aposentar. E o terceiro,
implementar as mudanças gradualmente. Qual seria a base
conceitual? Dar aos futuros benefícios do meio rural - uma vez
que para os atuais não haveria qualquer mudança - tratamento
similar ao concedido aos que recebem o benefício da Lei
Orgânica da Assistência Social (Loas). Isso significa reconhecer
o direito a um benefício isento do requisito prévio do
pagamento de contribuições mas, ao mesmo tempo, conceder
os futuros benefícios a uma idade mais avançada do que a
atual - 55 anos para as mulheres e 60 para os homens.

José e Andrei Cechin, em artigo publicado em livro publicado


pelo Ipea e organizado por meu colega Paulo Tafner e por mim,
estimaram que no meio rural, se computado o valor presente
das contribuições, comparado com o valor presente dos
benefícios recebidos, a proporção do primeiro em relação ao
segundo era, em média, da ordem de 30 %, para o conjunto de
ambos os sexos, com diferenças importantes resultantes do
fato de que as mulheres se aposentam antes (ver gráfico).
Trata-se, portanto, de um benefício praticamente assistencial,
no sentido de que o valor da contribuição, em média, não
chega a cobrir 1/3 do valor presente que o indivíduo recebe
após se aposentar. O objetivo da proposta é tornar o benefício
inteiramente assistencial, mas dar a ele tratamento similar ao
do Loas, concedendo o mesmo a uma idade maior que a de 55
anos para as mulheres e 60 anos para os homens, como é feito
hoje. Adicionalmente - e isto requer mudar a Constituição -
futuros benefícios teriam valores, em termos reais, inferiores
aos do piso previdenciário (assumindo que este continue
aumentando em relação ao seu valor de R$ 380), uma vez que
não me parece correto que o piso previdenciário e o piso
assistencial tenham o mesmo valor.

Ao se tornar plenamente assistencial, o benefício deixaria de


estar vinculado a uma contribuição prévia, o que significa que
o INSS abriria mão de uma receita, que, em 2006, foi de 0,2 %
do PIB. Por outro lado, ao postergar os benefícios futuros, a
despesa com essa rubrica diminuiria em relação aos quase 1,5
% do PIB de 2006 (ver tabela). Por uma questão conceitual
ligada à nova natureza do benefício, este deveria ser assumido
pelo Tesouro - como ocorre com o Loas - e não mais pelo INSS.

Ao ser implementada a mudança, ter-se-ia então um


mecanismo transparente de aferição do custo do
assistencialismo, isolando este das contas estritamente
previdenciárias. Atualmente, a sociedade brasileira, através do
INSS, recolhe contribuições ínfimas e paga benefícios rurais no
valor de um piso previdenciário a um contingente expressivo
de pessoas, por um grande número de anos, já que a
aposentadoria é precoce. No futuro, a proposta é não recolher
mais contribuições, mas em compensação conceder um
benefício menor que o piso previdenciário, alguns anos mais
tarde. Parece-me uma alternativa razoavelmente justa.

Propostas para a Previdência (VII): a mudança das


pensões
19/12/2007

O artigo de hoje do "decálogo" de reformas previdenciárias é


sobre a mudança no valor das futuras pensões - que
correspondem a quase 30 % dos benefícios previdenciários.
Como é sempre incômodo opinar sobre os outros, vou me
referir ao caso da minha própria família. Meu pai faleceu há
vários anos e minha mãe é pensionista do INSS. Com a morte
do meu pai, as despesas do núcleo familiar que meus pais
formavam - os filhos somos todos adultos e saímos da casa
paterna há muitos anos - diminuíram bastante. A redução não
é de 50%, uma vez que há despesas que continuam sendo as
mesmas: o valor de contas como luz ou gás é parecido; a
despesa com empregada doméstica é a mesma etc. Por outro
lado, em itens como alimentação, saúde, transporte, lazer, etc.
a família - agora de uma pessoa apenas - representada por
minha mãe tem uma despesa muito menor - nesses casos,
sim, em torno de 50 % - em relação à que tinha quando meu
pai ainda vivia. Em tais situações, com o falecimento de uma
das partes do casal, quando o pensionista (geralmente, a
mulher) herda a pensão integral, a renda média e - em alguns
casos - a poupança da família aumentam. Há algo de estranho
nisso.
A pensão é um benefício justo e forma parte do cardápio de
qualquer sistema de previdência social razoavelmente
estruturado. Há duas justificativas para isso. Uma é
econômica: embora o nosso regime seja de repartição - pelo
qual cada geração de aposentados, na prática, é sustentada
pelas contribuições da geração ativa - ele incorpora certos
princípios atuariais implícitos, e pode-se defender a idéia de
que, na contribuição do segurado, encontra-se o direito a que
o fluxo de recebimentos se estenda por alguns anos após o
falecimento do titular. Embora a efetividade desse lastro
financeiro dependa de cada situação, em muitos casos pode-se
alegar que o recebimento representaria um direito pelo qual a
pessoa terá efetivamente pago.
A segunda justificativa é de tipo social. Imagine-se o que seria
do país se todas as viúvas ficassem sem a renda da pensão. A
dramaticidade dessa situação leva naturalmente a que se
aceite o princípio de que esta figura tem que continuar a ser
um dos pilares básicos do nosso sistema de Previdência, com
ou sem reforma.
O fato de reconhecer a necessidade de permanência das
pensões, porém, não significa que as regras sob as quais elas
são concedidas não possam mudar. Hás dois tipos de mudança
que deveriam ser introduzidas e que estão associadas a razões
diferentes.
A primeira modificação é o fim das aberrações. A legislação
brasileira é tão permissiva na matéria, tão paternalista e tão
absurda, que permite casos como o que se passa a relatar. Um
idoso de 85 anos, parcialmente abandonado pelos filhos, no
crepúsculo da vida, casa no papel com uma enfermeira de 25
anos. Um mês depois, morre e a viúva herda a pensão integral,
que provavelmente irá manter por quase 60 anos, se gozar de
boa saúde. Sejamos francos: trata-se de um disparate -
rigorosamente permitido pela legislação, porém. Nesses casos,
o benefício simplesmente não deveria existir. É preciso pensar
em algumas regras restritivas que impeçam a existência
desses casos, seguindo o que fazem outros países - por
exemplo, exigindo um período mínimo de anos de vida em
comum para o recebimento da pensão; ou limitando-a a
poucos anos nos casos em que o(a) beneficiário(a) é muito
jovem. De fato, nesse caso específico, se a enfermeira de fato
cuidava do idoso, ao falecer este, a pessoa poderia ficar sem
renda, acarretando uma situação indesejável. Não há razão
alguma, contudo, nesse caso, para que a pessoa não possa
recompor a sua vida algum tempo depois. O Estado não pode
virar um grande benfeitor nesse tipo de situações anômalas.
Não haverá obstáculos maiores a tornar a legislação mais
restritiva neste ponto, pois 99,9 % da população concordará
com a reforma.
A segunda mudança é mais delicada e diz respeito à situação
dos companheiros(as) que acompanharam a mulher ou o
esposo durante anos, pessoas essas que até hoje fazem jus a
receber 100% do benefício original do titular. É preciso deixar
bem claro que ninguém está pensando em mudar a pensão de
quem já recebe o benefício. Quem é pensionista continuará a
receber o mesmo valor que recebe atualmente, uma vez que
ganhou um direito adquirido e este deve ser considerado
sagrado por qualquer reforma, sem o que, se ela passar pelo
Congresso, será derribada pelo Supremo Tribunal federal (STF).
O que se discute é qual será a regra para a concessão das
pensões futuras.
O que defendi nos últimos anos - conjuntamente com alguns
técnicos do IPEA, com destaque para os trabalhos feitos por
Paulo Tafner - é que uma reforma da Previdência adote, neste
particular, três princípios: i) o valor da pensão deve ser, em
geral, inferior ao do benefício original; ii) a proporção em
relação ao benefício original deve estar associada ao número
de filhos menores; e iii) deve haver uma regra diferenciada
para as pessoas de menor renda.
Uma regra para pensar, seria definir uma pensão igual a 60%
do benefício original, respeitados os seguintes condicionantes:
a) o valor da pensão não poderia ser inferior a um piso
previdenciário; e b) haveria um adicional de 20% por filho
menor, até o máximo de dois filhos, quando o benefício
corresponderia a 100% do benefício original.
A viúva de uma pessoa que tivesse uma aposentadoria de R$
2 mil receberia então uma pensão de R$ 1.200, que poderia
chegar a ser de até R$ 2 mil se ela tiver dois filhos menores ou
mais. Já uma viúva sem filhos de uma pessoa que tivesse uma
aposentadoria de R$ 600, teria que receber, pela regra dos
60%, uma pensão de R$ 360, mas como esse valor seria
inferior ao piso ela acabaria recebendo R$ 380 (ou R$ 600 se
tiver dois filhos menores ou mais). É possível pensar em
variantes em torno destes números, mas os princípios
expostos parecem um bom roteiro a ser seguido.
Propostas para a Previdência (VIII): o regime dos
professores
14/01/2008

O artigo de hoje com as propostas para um "decálogo" de


reformas da Previdência envolve a regra de aposentadoria dos
professores, que podem se aposentar por tempo de
contribuição cinco anos antes que o resto das pessoas. Cabe
um esclarecimento essencial: considero que se trata de uma
das profissões mais nobres que se pode escolher, uma vez
que há poucas coisas tão importantes para o país, como a boa
educação dos nossos filhos. Não obstante isso, temos que
reconhecer que a existência, na Constituição, de um benefício
específico para os professores, não parece se justificar no
mundo para o qual a gente se encaminha.
Estando há muitos anos na arena dos debates sobre o tema e
fiel, como professor que sou, ao princípio de Guimarães Rosa,
que dizia que "mestre não é aquele que ensina, mas aquele
que, de repente, aprende", aprendi com os anos a ouvir mais
os argumentos alheios (tem que existir alguma vantagem em
perder os cabelos). Nas conversas após as diversas
intervenções públicas que fiz sobre o assunto ao longo dos
anos, dois diálogos foram marcantes sobre este tema.
O primeiro deles foi com um perito profissional, da área
médica. Contrariamente ao que eu tinha exposto na minha
apresentação, ele apontou para mim que na origem havia de
fato uma base clínica para a existência da diferenciação de
regras em favor dos professores, uma vez que - segundo ele -
o pó do giz conteria elementos químicos que afetariam a
saúde, o que seria cientificamente comprovado.
Naturalmente, eu não tinha elementos técnicos para debater
sobre esse ponto. Prosseguindo, porém, ele continuou
afirmando que "exatamente por isso, a diferenciação tende a
não se justificar mais, uma vez que as condições em que o
professor dá aulas hoje e em que ele dará aula nas próximas
décadas, com a difusão cada vez maior de novos métodos de
ensino, guardam pouca relação com o panorama da sala de
aula da época em que nós éramos crianças".
O segundo diálogo foi por email, com uma professora de 50
anos, a propósito de uma entrevista que eu tinha dado por
rádio sobre a questão. Ela conseguiu meu endereço eletrônico
e mandou uma mensagem muito agressiva, reclamando do
meu posicionamento. Quando, após a minha resposta,
estabeleceram-se condições de diálogo, ela - que ensinava
numa escola da periferia de uma capital de Estado - me disse,
mais ou menos, o seguinte: "dou aula há mais de 20 anos. Na
minha escola, convivo com a violência todos os dias e várias
vezes sofri ameaças de morte por parte dos alunos. Eu penso
todos os dias na aposentadoria, porque ela vai ser a forma de
fugir do inferno em que vivo". É impossível não ficar comovido
diante de um depoimento tão dramático - e certamente
verdadeiro, considerando o país em que vivemos. Por outro
lado, uma avaliação menos apaixonada leva fatalmente à
conclusão de que um erro não pode levar a compensar uma
falha com outra.
Se a falência do Estado no Brasil faz com que se verifiquem
aberrações como essa de uma professora - que, em qualquer
lugar do mundo, é a representação da autoridade em uma
sala de aula - ter medo dos alunos, é não apenas, mas
também, entre outras coisas, pela ausência de maiores
recursos para combater eficazmente a criminalidade. E se o
Estado carece desses recursos é, novamente, não apenas,
mas também, porque o Estado gasta uma quantia
significativa de recursos com aposentadorias de pessoas que,
em outros países, teriam que trabalhar ainda vários anos para
fazer jus a esse direito.
A existência de regras mais favoráveis de aposentadoria se
justifica em função da evidência de dois critérios muito claros
e consagrados na literatura: I) dano comprovado à saúde; e II)
escassa relevância relativa da categoria beneficiária. Tome-se
como exemplo o grupo dos mineiros de carvão. É evidente
que quem passa horas a fio, anos e anos, em uma mina
ingerindo todo tipo de material nocivo à saúde, terá uma
expectativa de vida inferior à do resto das pessoas. Nada
mais justo, portanto, que esses indivíduos passem a receber a
aposentadoria mais cedo.
Por outro lado, pensemos em uma situação específica. Se a
Argentina decide outorgar uma aposentadoria aos antigos
combatentes das Malvinas, para compensá-los pela tragédia
que lhes coube viver em 1982, o fato será irrelevante para as
finanças públicas do país, uma vez que a remuneração
equivale a uma gota no oceano em um país de 40 milhões de
habitantes.
Nada disso se aplica aos professores. Eles não padecem os
danos que têm, por exemplo, os mineiros de carvão e estão
longe de representar uma categoria social numericamente
inexpressiva. Daí por que é questionável que recebam a
aposentadoria antes do resto das pessoas. Diga-se de
passagem, isto vale para quase todas as regras especiais
remanescentes na legislação, como, por exemplo, alguns
parâmetros diferenciados que ainda existem para os militares.
O Brasil deveria caminhar no sentido de ter regras gerais para
todos, com poucas exceções, muito bem detalhadas e
justificadas.
Nas diversas palestras que dei ao longo dos últimos 15 anos,
tenho recebido três tipos de críticas acerca destas questões. A
primeira, é que mudar as regras revelaria desprezo pela
educação, crítica tão primária que dispensa comentários. A
segunda, de que a profissão é sacrificada e os professores
merecem por isso se aposentar antes. Não ignoro o estresse
da profissão, mas muito mais estressante é o cotidiano dos
médicos que atendem em hospitais, convivem com a morte e
nem por isso têm regras diferenciadas de aposentadoria. A
terceira, de que os professores de mais idade têm menos
vigor físico e, portanto, são menos eficientes para lidar com a
juventude. Ocorre que, se a perda de eficiência for argumento
para a aposentadoria precoce, quase todos deveríamos ter
direito à aposentadoria depois dos 45 ou 50 anos. Além disso,
os professores suíços ou bolivianos se aposentam à mesma
idade que o resto das pessoas. "Regras gerais" deve ser o
nome do jogo.
Propostas para a Previdência (IX): a indexação das aposentadorias
28/02/2008

O filósofo já dizia que "o que é verdade num tempo, é erro no


outro". Algo assim se aplica às regras que regulam o reajuste
da aposentadoria no Brasil. Em um passado já distante,
quando havia uma pressão política significativa para
aumentar fortemente o valor do salário mínimo (SM) e na
época, por extensão, a todas as aposentadorias, eu mesmo
defendi que, sendo o aumento real do SM inevitável por uma
série de razões, o governo deveria limitar a concessão dele
ao piso previdenciário, passando a aumentar as demais
aposentadorias de acordo com a inflação. Foi essa a política
que passou a ser seguida no Brasil a partir da segunda
metade dos anos 90, até agora. Penso, porém, que a
caminho do final da década, quando estaremos completando
15 anos dessa política inaugurada na década dos 90, está na
hora de o país rever os seus conceitos.
Qual era a justificativa para essa dualidade, naquelas
circunstâncias? Havia três premissas: I) o valor real do SM
era muito baixo; II) fazia parte do acordo social implícito
existente no Brasil elevar o valor dessa remuneração; e III) a
elevada relação entre o teto de aposentadoria e o piso dava
certa legitimidade à idéia de que o piso poderia aumentar
mais do que o teto.
Hoje, as circunstâncias são bastante diferentes. O fato de
uma proposta ter base técnica não significa que na sua
proposição se ignore a primazia da política. Isto posto,
porém, insisto no ponto que tenho defendido com insistência
neste espaço: está na hora de reformar o pacto social
brasileiro.
Nos últimos 15 anos, adotamos no país uma política
fortemente assistencialista, baseada na idéia de que o
Estado-Pai tinha uma dívida social expressiva, que precisava
ser saldada através de políticas que aumentavam os
recursos colocados na mão das pessoas, por iniciativa
"benfeitora" do governo. Esse conceito precisa mudar, em
favor de um tipo de intervenção que priorize mais o combate
à desigualdade de oportunidades e menos o combate à
desigualdade de renda. Um cidadão deve ter o direito a uma
renda X e uma aposentadoria Y por conta da benevolência
oficial? Confesso que tenho dúvidas. Porém, não tenho
dúvida alguma de que um cidadão deve ter pleno direito,
sim, a ter duas coisas: I) um atendimento de saúde decente;
e II) uma educação razoável para seus filhos. E, não nos
enganemos: quanto mais aumentarmos o valor real das
aposentadorias, menos recursos sobrarão no futuro para
atingir esses dois objetivos.
Ao longo do debate sobre o tema, nos últimos anos, tem sido
recorrente a idéia de que esse tipo de proposições implicaria
"retirar direitos das pessoas", "deixar os indivíduos sem
proteção" e outras coisas do gênero. Isso me lembra a piada
- que como descendente de portenhos me sinto à vontade
para repetir - acerca do que haveria de comum entre um
argentino humilde e o Superman. A resposta é: "Nada: é que
ambas são criaturas mitológicas, que não existem no mundo
real". Assim como o argentino modesto, o neoliberal ávido
para diminuir a remuneração dos aposentados não passa de
uma criatura que só existe no mundo da fantasia.
Proponho um exercício de conciliação. Há três perguntas
relevantes. Podemos estar de acordo e estabelecer um
consenso de que é razoável que:
a) o valor da aposentadoria seja uma função do que cada
indivíduo contribui ao longo da vida?
b) os aposentados tenham as suas remunerações reajustadas
em função da inflação, como acontece na grande maioria dos
países?; e
c) o coeficiente entre o que ganha aquele que recebe o teto
do INSS e aquele que recebe o piso seja um múltiplo
moderado, não de dez vezes, mas também não muito baixo,
como seria se fosse de apenas duas ou três vezes?
Esta última pergunta é chave e envolve considerações
filosóficas importantes, daí por que vou me alongar um
pouco mais na questão. Creio, honestamente, que a maioria
dos brasileiros não deseja viver em um país comunista, onde
todos tenham a mesma remuneração. A idéia de que o Brasil
é um país capitalista, onde alguma desigualdade é natural,
por expressar diferenças que de fato existem entre os
atributos individuais, é, se eu não estiver errado nas minhas
percepções, claramente majoritária no país. Ao mesmo
tempo, não há dúvidas de que a desigualdade excessiva é
vista como negativa pela grande maioria da população, que
preferiria viver em um país menos desigual. Que tal, então,
pensar no sistema de aposentadoria como uma esfera em
que, no "terceiro tempo" das nossas vidas, iremos viver em
um Brasil mais igualitário, onde a distância entre quem
ganha mais e quem ganha menos continuará existindo, mas
será limitada a um múltiplo razoável? Quando a gente lê
referências à Europa como uma sociedade mais justa, não
somos informados que "no país X, o dono da empresa ganha
apenas sete ou oito vezes o que ganha o faxineiro da
empresa"? Pois então, por que não propor um teto do INSS
de seis vezes o piso previdenciário? Em 2007, o piso foi R$
380 e o teto de R$ 2894 (7,6 vezes o piso). Ora, supondo um
aumento real de 3,8 % em 2008, de 5,4 % em 2009 e dois
aumentos de 4,5 % até 2011 (em função da regra já definida
de reajuste pelo crescimento do PIB defasado de dois anos),
a relação teto/piso cairá para 6,4 em 2011. Por que não
propor depois um reajuste modesto do SM diluído ao longo
de 4 anos para que em 2015 a relação teto/piso seja de seis?
A partir daí, o SM seria desvinculado do piso, novos
aumentos reais da variável deixariam de afetar a Previdência
e todas as aposentadorias aumentariam em função da
inflação do ano anterior, como acontece em quase todos os
países. Ressalte-se que, a preços de 2008, a aposentadoria
básica, que em 2011 será da ordem de R$ 475, alcançaria
nesse caso pouco mais de R$ 500 em 2015. É uma boa regra
para se pensar.

Propostas para a Previdência (X): a idade do Loas

11/02/2008

Encerramos, com este artigo, a série de dez sugestões de


reforma feitas sob o rótulo de "Propostas para a Previdência". O
tema de hoje diz respeito, mais especificamente, à assistência
social. Entretanto, por se tratar de uma questão estreitamente
ligada ao tema previdenciário, é incluída como parte do
"cardápio" reformista. Como ocorre com muitos dos casos
citados ao longo dos últimos meses nesta série, é
simplesmente um tema exposto ao debate, com vistas a
medidas que podem ser tomadas na próxima década, uma vez
que, realisticamente, as chances de aprovação de algo do
gênero no atual governo são próximas de zero. Nada impede,
porém, que se comece a discutir acerca de qual modelo de
país desejamos para 2020, com medidas que poderiam ser
adotadas em 2011.

O ponto de partida é o artigo da Constituição que diz que "a


assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem
por objetivos (...) a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que
comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção
ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei"
(Artigo 203).

Repare o leitor que a Constituição estabelece que o piso


assistencial será de um salário mínimo (SM). Sabiamente,
porém, ela remete o tema da idade de elegibilidade à
legislação ordinária, talvez por entender que se trata de um
parâmetro que deveria obedecer a critérios demográficos.
Curiosamente, a Constituição não deu o mesmo tratamento à
Previdência Social, para a qual os parâmetros etários foram
fixados por ela própria, o que vai obrigar, mais cedo ou mais
tarde, a modificá-los. No que tange à assistência social, porém,
como foi dito, a idade de elegibilidade do indivíduo é matéria
infra-constitucional.

O que fizeram os parlamentares, então, a partir da


Constituição de 1988? Em 1993, criaram a Lei Orgânica da
Assistência Social (Loas), determinando que o benefício
assistencial seria concedido "com 70 anos ou mais" (Artigo 20
da Lei 8742 de 1993). Era uma Lei correta. O problema é que
depois a idade de elegibilidade foi diminuída para 67 anos
(Artigo 38 da Lei 9720/1998) e finalmente, novamente
reduzida para 65 anos (Artigo 34 da Lei 10741/2003). Esta
última Lei chegou ao cúmulo de, face à definição de
insuficiência de renda como estando associada a um valor "per
capita" de menos de ¼ do salário mínimo (SM), estabelecer
que "o benefício já concedido a qualquer membro da família
nos termos do caput não será computado para os fins do
cálculo da renda familiar 'per capita' a que se refere o Loas".
Como exemplo de quão aberrante é a nossa legislação,
chegamos assim ao paroxismo do absurdo: a dona de casa
casada com um cidadão que durante 35 anos tiver contribuído
para a sua aposentadoria sobre um SM, não terá direito ao
Loas, por não ser considerada "excluída", já que a renda "per
capita" da família será de ½ SM. Já a dona de casa vizinha,
casada com alguém que nunca contribuiu para o INSS, terá um
marido ganhando o Loas e ela também terá direito ao seu, uma
vez que o benefício do marido não será computado como
renda para efeitos do cálculo da renda familiar "per capita".
Confesso que não consegui identificar onde está a justiça
social de uma legislação tão esdrúxula.

A tabela abaixo mostra a idade de elegibilidade para receber o


benefício assistencial em um conjunto selecionado de Nações.
Observe-se que o Brasil não está sozinho entre os países onde
a idade de elegibilidade é de 65 anos. Porém, há dois detalhes
fundamentais: I) países onde esse parâmetro é de 60 ou 65
anos têm uma elevada população jovem e neles uma fração
menor da população chega a idades mais avançadas; e II) o
benefício assistencial nesses países é de US$ 20 ou US$ 30. Já
em sociedades que se assemelham mais com o Brasil em
termos de estrutura etária, a idade de elegibilidade é de 70
anos. A tabela, é verdade, inclui informações que em alguns
casos são de 2004 e variações da taxa de câmbio real podem
afetar a dimensão relativa das variáveis. Salta aos olhos, de
qualquer forma, que o benefício assistencial brasileiro é,
disparado, o maior de todos, sendo inclusive maior que o
dobro, em termos reais, que o do Uruguai, embora este país
tenha uma renda nacional "per capita" maior do que a nossa.

A pergunta chave que cabe fazer é: por que um cidadão que


ganha um ou dois SM vai contribuir para o INSS por anos a fio,
se ele tem a garantia de que, independentemente de
contribuir, o Estado lhe garante a mesma remuneração, no
mesmo valor e à mesma idade, que para quem se aposenta
por idade aos 65 anos?

O benefício assistencial deve ser mantido, por ser uma


expressão de uma sociedade solidária. "Cabe ao Estado zelar
pelos desamparados" é um mandamento de qualquer manual
de finanças públicas. Daí a pagar o mesmo valor e à mesma
idade para quem contribuiu 15 ou 20 anos que para quem
nunca contribuiu, há, porém, uma longa distância.

Por isso, o Brasil deveria pensar em elevar a idade de


elegibilidade do Loas. Uma possibilidade seria aumentá-la para
66 anos em 2011 e elevar o parâmetro em um ano a cada três
anos até 70 anos em 2023. A proposta implicaria restabelecer
em 2023 a idade de elegibilidade de 70 anos do Loas de 1993!
Detalhe: a expectativa de vida de quem tinha 60 anos em
1993 era de viver até os 79 anos e em 2023 será de 83 anos.
Não há nada de draconiano na proposta, mas apenas um
pouco de bom senso.

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