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A MADEIRA NA HISTORIA DE

PORTUGAL E DO ATLÂNTICO

ALBERTO VIEIRA

“...O conjunto dos arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores: escalas


obrigatórias em todo esse sistema mundial, uma vez que o globo se tornou em
periferia desse centro dinâmico, empreendedor e avassalador, que é a Europa
ocidental dos séculos XVI-XVIII.(...) A Madeira situa-se no centro deste sistema de
duplo sentido, e por isso de certo modo comanda todo este espaço, porque vive
sobretudo da riquíssima produção própria.” V. M. Godinho, Mito e mercadoria,
utopia e prática de navegar. séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990.

Algumas das grandes questões, com grande actualidade, definem este novo e real rumo
que é a investigação insular. Em primeiro lugar podemos citar o enquadramento da
Madeira, no contexto dos descobrimentos europeus, donde ressalta, para além do
protagonismo sócio-económico, a posição charneira nos rumos da política expansionista.
As funções de escala e modelo projectam-na nessa realidade e conduzem a que seja parte
disso e não um mundo à parte. Por outro lado, a expansão europeia foi propícia à
definição das teias de subordinação e complementaridade que levaram à modelação de
um mercado insular aberto e vinculado, de acordo com uma lógica de
complementaridade. É isso, em certa medida, o que define o Mediterrâneo Atlântico nos
séculos XV a XVII.

A favor de tudo isto está a tese que vingou no seio da Historiografia americana, que
define o Atlântico como uma unidade de análise. Deste modo o período que decorre entre
os inícios de expansão europeia, a partir do século XV, e a plena abolição da escravatura,
em 1888, delimitam cronologicamente esta realidade1. A dimensão assumida pela
Madeira no contexto da expansão quatrocentista, quer como terra de navegadores, quer
como principal centro que modelou a realidade sócio-económico deste novo espaço
atlântico, é a evidência desta imprescindível dimensão atlântica da ilha.

A par disso torna-se necessário dize-lo que é chegado o momento de repensar a forma
como se faz História entre nós. É chegado o momento de rever os últimos vinte anos de
actividade para que seja possível a definição de novos rumos adequados ao protagonismo

1
. Cf. Alan L. Kanas e J. R. Manell, Atlantic american societies-from Columbus through abolition 1492-1886, London, 1992; Alfred
W. Crosby, the Columbian exchange, biological and cultural consequences of 1492, Westport, 1972; S. Mintz, Sweetness and power,
N. York, 1985. Michael Meyerr, "The price of the new transnational history", the American Historical Review, 96, nº 4, 1991, 1056-
1072; D.W. Meinig, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980: Lan Stelle, The english atlantic, 1675-1740 - An exploration &
communication and community, N. Y. 1986.
e posicionamento que assumimos na História. É isso que propomos aqui e agora com
algumas incursões sobre a historiografia e História madeirense.

1.A SITUAÇÃO

Antes de tudo importa ver aquilo que se entende hoje pela História insular e madeirense,
quer através dos manuais escolares, quer da historiografia local e nacional.

A HISTORIOGRAFIA, OS HISTORIADORES E AS NOVAS REALIDADES.

A História das ilhas atlânticas tem merecido, na presente centúria, um tratamento


preferencial no âmbito da História do Atlântico. Primeiro foram os investigadores
europeus como F. Braudel (1949), Pierre Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro (1960) e
Charles Verlinden (1960) a destacar a importância do espaço insular no contexto da
expansão europeia. E só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a
equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular. Neste caso são pioneiros os trabalhos de
Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino de Magalhães Godinho (1963).

Tal ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas e


contribuiu para a necessária abertura às novas teorias e orientações do conhecimento
histórico. Neste contexto as décadas de setenta e oitenta demarcam-se como momentos
importantes no progresso da investigação e saber históricos, contribuindo para tal a
definição de estruturas institucionais e de iniciativas afins.

Note-se que a produção historiográfica insular é desigual, dependendo o seu número da


existência de literatos e de instituições capazes de incentivarem a elaboração e divulgação
de estudos nos diversos domínios. Ainda, a similitude do processo vivencial aliada à sua
permeabilidade às perspectivas históricas peninsulares definiram uma certa unidade na
forma e conteúdo da historiografia insulana. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI,
com as Saudades da Terra, define e sintetiza essa unidade insular, aproximando os
arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias. Esta ímpar situação na historiografia, só
será retomada na década de quarenta do nosso século pela historiografia europeia e no
presente pela nova geração de historiadores insulares. Essa consciência histórica da
unidade desta múltipla realidade arquipelágica será definida de modo preciso na
expressão braudeliana de Mediterrâneo Atlântico2.

A historiografia insulana, permeável às suas origens europeias, surge, na alvorada da


revolução do conhecimento cosmológico, como a expressão pioneira desta novidade e, ao
mesmo tempo, como uma necessidade institucional de justificação da intervenção e
soberania peninsular. Deste modo o período que medeia os séculos XV e XVI é marcado
por uma produção historiográfica mais europeia que local, próxima da crónica e da

2
. Foi esse o objectivo dos nossos estudos: Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira, Açores e Canárias, Funchal, 1987;
Portugal y las islas del Atlántico, Madrid, 1992.
literatura de viagens, onde esses ideais se espraiam. Os factos históricos e as impressões
das viagens atlânticas, perpetuados nas crónicas e relatos de diversa índole terão uma
utilização posterior de acordo com as exigências da época. A prosa histórica é
impregnada do ideal romântico servindo-se de perspectivas e formas positivistas de
justificação e fundamentação de certos meteoritos políticos que a sociedade insular
contemporânea é portadora3.

No culminar deste processo as exigências académicas, com a expansão do saber


universitário, as solicitações do novo conhecimento histórico condicionaram tal avanço
qualitativo da historiografia, a partir da década de quarenta. Assim, nas Canárias a
tradição e vivência universitária propiciaram o forte arranque, enquanto nos Açores o
academismo cultural e, depois, a universidade lançaram este arquipélago para uma
posição similar. A Madeira, prenhe em documentos manteve-se num segundo plano,
mercê da falta de suporte institucional e académico. Todavia, as condições emanentes da
dinâmica autonômica com o aparecimento de suportes institucionais definiram um futuro
promissor.

Na actualidade depara-se perante nós um momento de grande valorização da História no


nosso quotidiano. Dispomos de tudo o necessário para isso: publicações periódicas,
colóquios e conferências e um desusado interesse do publico pela temática. Falta,
todavia, um adequado ajustamento arquivístico a esta nova realidade. Mas será que isso
tem favorecido, em simultâneo, a afirmação da investigação e consequente avanço do
conhecimento do nosso passado histórico com a consequente atribuição do lugar que
temos direito nos anais da História ?

2. QUAL A POSIÇÃO DA MADEIRA NA HISTÓRIA DE PORTUGAL E DO


ATLÂNTICO ?

Para podermos situar melhor esta questão temos que partir da problematização das
seguintes situações.
1. OS FACTOS mais destacados dos anais da História da ilha fazem-na projectar
no conjunto mais vasto, primeiro pela razão de ter sido a primeira área de
reconhecimento e ocupação europeia no Atlântico, que por isso mesmo serviu de modelo
para aquilo que se sucedeu. Exemplo disso poderá encontrar-se nas chamadas capitanias,
forma institucional que regeu o governo inicial.
2..OS TEMAS que fazem o devir histórico através da dimensão económica local e
atlântica e também da história da navegação e da ciência.
3.OS HOMENS, que como quem diz, os madeirenses que deixaram o seu nome
lavrado em letras douradas nos anais da História de Portugal e do mundo, como
navegadores, descobridores e aventureiros, guerreiros da defesa dos nossos interesses no
Norte de África e Brasil.

3
Confronte-se Guia para a História das ilhas Atlânticas, Funchal, 1997
2.1. OS FACTOS
Os acontecimentos, a partir dos quais se recompõe o esqueleto da história merecem a
primeira referencia. É, na verdade, a partir deles que as evidencias clamam por um
desusado protagonismo que merece ser divulgado, referenciado e assumido.

OS MADEIRENSES NOS ANAIS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL E DO MUNDO

“...porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e
meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê...”João de Melo
da Câmara, 1532.

Foi o arquipélago o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro e mais


proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores que se conjugaram para este
protagonismo. A inexistência de população, em consonância com a extrema necessidade
de valorização para o avanço das navegações ao longo da costa africana, favoreceram a
rápida ocupação e crescimento económico da Madeira. Por isso, a afirmação do
arquipélago madeirense, nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de
escala ou apoio para as precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o oceano;
importante área económica, fornecedora de cereais, vinho e açúcar; modelo económico,
social e político para as demais intervenções portuguesas no Atlântico.

A Madeira foi no século XV uma peça primordial no processo de expansão. A ilha,


considerada a primeira pedra da gesta descobridora dos portugueses no Atlântico, é o
marco referencial mais importante desta acção no século XV. Ela, de inicial área de
ocupação, passou a um entreposto imprescindível às viagens ao longo da costa africana e,
depois, foi modelo para todo o processo de ocupação atlântica, Por tudo isto a Madeira
firmou o seu nome com letras douradas na História da expansão europeia no Atlântico.

O Funchal foi, por muito tempo, o principal ancoradouro do Atlântico que abriu as portas
do mar oceano e traçou caminho para as terras do Sul. Aí a abundância do cereal e vinho
propiciavam ao navegante o abastecimento seguro para a demorada viagem. Por isso o
madeirense não foi apenas o cabouqueiro que transformou o rochedo e fez dele uma
magnífica horta, também se afirmou como o marinheiro, descobridor e comerciante.
Deste modo algumas das principais famílias da Madeira, enriquecidas com a cultura do
açúcar, gastaram quase toda a sua fortuna na gesta descobridora, ao serviço do infante D.
Henrique, ao longo da costa africana ou, de iniciativa particular, na direcção do Ocidente,
correspondendo ao repto lançado pelos textos e lendas medievais.

A juntar a tudo isso temos que o rápido progresso social, resultado do porvir económico,
condicionou o aparecimento de uma aristocracia terratenente que, imbuída do ideal
cavalheiresco e do espírito de aventura, se embrenhou na defesa das praças marroquinas,
na disputa pela posse das Canárias e viagens de exploração e comércio ao longo da costa
africana e, até mesmo, para Ocidente.

A valorização da Madeira no contexto da expansão europeia tem sido diversa. A


historiografia nacional considera-a um simples episódio de todo o processo e, em face da
posição geográfica, hesita no seu enquadramento, sendo levada, por vezes ao
esquecimento. A historiografia europeia, ao invés, não duvida em realçar a singularidade
do seu processo neste contexto.

A Madeira, arquipélago e Ilha, afirma-se no processo da expansão europeia pela


singularidade do seu processo. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de
abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das
peças chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi
uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. Além
disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da
História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de tudo isto está
patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes.

À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol”


Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos
séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a
seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas,
propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra condições contribuíram
para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um
permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.

A elevada mobilidade social é uma característica da sociedade insular. O fenómeno da


ocupação atlântica lançou as bases da sociedade e a emigração ramificou-a e projectou-a
além Atlântico. As ilhas foram assim, num primeiro momento, pólos de atracção,
passando depois a actuar como áreas centrifugas. A novidade aliada à forma como se
processou o povoamento, activaram o primeiro movimento. A desilusão, as escassas e
limitadas possibilidades económicas e a cobiça por novas e prometedoras terras, o
segundo surto.

Primeiro foi a Madeira, depois as ilhas próximas dos Açores e das Canárias e, finalmente,
os novos continentes ou ilhas. Desiludido com a ilha o madeirense procurou melhor
fortuna nos Açores ou nas Canárias, e depositou, depois, na costa africana as
prometedoras esperanças comerciais. Neste grupo incluem-se principalmente os filhos
segundos desapossados da terra pelo sistema sucessório. é disso exemplo Rui Gonçalves
da Câmara, filho do capitão do donatário no Funchal, que preferiu ser capitão da ilha
distante de S. Miguel a manter-se como mais um mero proprietário na Ponta do Sol. Com
ele surgiram outros que deram o arranque decisivo ao povoamento desta ilha. Deste modo
a Madeira evidencia-se também no século quinze como um centro de divergência de
gentes no novo mundo.

A elevada mobilidade do ilhéu levou os monarcas a definirem uma política de restrições


no movimento emigratório em favor da fixação do colono à terra, como forma de se
evitar o despovoamento das áreas já ocupadas. Mas o apelo das riquezas fáceis, do
resgate africano ou da agricultura americana eram mais convincentes, tendo a seu favor a
disponibilidade dos veleiros que escalavam com assiduidade os portos insulares. A
emigração era inevitável.

A Madeira desfrutava no século XV, a exemplo das Canárias, de uma posição


privilegiada perante a costa e ilhas africanas. Deste modo ela afirmou-se por muito tempo
como um importante centro emigratório para os arquipélagos vizinhos ou longínquos
continentes. Para isso contribuiu o facto de estar associada ao madeirense uma cultura
que foi a principal aposta das arroteias do Atlântico, isto é, a cana sacarina.

Os madeirenses aparecem nas Canárias, Açores, S. Tomé e Brasil a dar o seu contributo
para que no solo virgem brotem os canaviais, apareçam os canais de rega ou de serviço
aos engenhos, a que também foram seus obreiros nos avanços tecnológicos. A crise da
produção açucareira madeirense, gerada pela concorrência do açúcar das áreas que os
seus habitantes contribuíram para criar, empurrou-nos para destinos distantes.

Nesta diáspora atlântica, iniciada na Madeira, é de referenciar o caso da emigração inter


insular dos arquipélagos do Mediterrâneo Atlântico. As ilhas, pela proximidade e forma
similar de vida, aliadas às necessidades crescentes de contactos comerciais, exerceram
também uma forte atracção entre si. Madeirenses, açorianos e canários não ignoravam a
condição de insulares e, por isso mesmo, sentiram necessidade do estreitamento destes
contactos.

A Madeira, mais uma vez, pela posição charneira entre os açores e as Canárias e da
anterioridade no povoamento, foi, desde meados do século XV, um importante viveiro
fornecedor de colonos para estes arquipélagos e elo de ligação entre eles. A ilha
funcionou mais como pólo de emigração para as ilhas do que como área receptora de imi-
grantes. Se exceptuarmos o caso dos escravos guanches e a inicial vinda de alguns dos
conquistadores de Lanzarote, podemos afirmar que o fenómeno é quase nulo, não
obstante no século dezasseis os açorianos surgirem com alguma evidência no Funchal.
Note-se, ainda, a presença de uma comunidade de açorianos nas ilhas Canárias,
principalmente nas ilhas de Gran Canária, Tenerife e Lanzarote, dedicados à cultura dos
cereais, vinha, cana sacarina e pastel. Mas açorianos e canarianos, bem posicionados no
traçado das rotas oceânicas, voltaram a sua atenção para o promissor novo mundo.

A Madeira foi terra descoberta , mas também de descobridores. Na verdade, a Madeira,


arquipélago e Ilha, afirma-se no processo da expansão europeia pela singularidade da sua
intervenção. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do
mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças chave
para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo.

TERRA DE DESCOBRIDORES
O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em
expansão. além disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal
para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de
tudo isto está patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes.

Á função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol”


Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos
séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a
seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas,
propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra condições contribuíram
para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um
permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.

Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações
e descobrimentos no Atlântico. O rápido desenvolvimento da economia de mercado, em
uníssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar continuidade à gesta de
reconhecimento do Atlântico, reforçaram a posição da Ilha e fizeram avolumar os
serviços prestados pelos madeirenses. Aqui surgiu uma nova aristocracia dos
descobrimentos, cumulada de títulos e benesses pelos serviços prestados no
reconhecimento da costa africana, defesa das praças marroquinas, ou nas campanhas
brasileiras e Indicas4.A proximidade da Madeira ao vizinho arquipélago das Canárias, em
conjugação com o rápido surto do povoamento e valorização sócio-económica do solo,
orientaram as atenções do madeirense para as ilhas. Assim, decorridos apenas vinte e seis
anos sob a ocupação, os moradores da Madeira empenharam-se na disputa pela posse das
Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Em 1446 João Gonçalves Zarco, foi enviado
a Lanzarote, como plenipotenciário para afirmar o contrato de compra da ilha.
Acompanham-no as caravelas de Tristão Vaz, capitão do donatário em Machico e de
Garcia Homem de Sousa, genro de Zarco5. Mais tarde em 1451, o infante enviou nova
armada, em que participaram gentes de Lagos, Lisboa e Madeira, sendo de salientar, no
último caso, Rui Gonçalves filho do capitão do donatário do Funchal.

Para a aristocracia madeirense o empenhamento nas acções marítimas e bélicas é, ao


mesmo tempo, uma forma de homenagem ao senhor (monarca, donatário) e de aquisição
de benesses e comendas. Zurara na «Crónica da Guiné» confirma isso, referindo que a
participação madeirense ia ao encontro dos princípios e tradições da cavalaria do reino. O
que não invalida a sua presença com outros objectivos, como sucede a partir de meados
do século XV.

Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa


do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, com participação
activa nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças

4
Confronte-se João José Abreu de SOUSA, "Emigração madeirense nos séculos XV a XVII", in Atlântico, nª.1,
Funchal, 1985, pp. 46-52.

5
José PEREZ VIDAL, «Aportación portuguesa a la población de Canarias. Datos», in Anuario de Estudios Atlânticos, nº 14, 1968; A.
SARMENTO, «Madeira & Canárias», in Fasquias e Ripas da Madeira, Funchal, 1931, 13-14.
africanas do norte, nos séculos XV e XVI. Esta presença de gentes da Madeira continuará
por todo o século XV em três frentes: Marrocos, litoral africano além do Bojador e terras
ocidentais. Na primeira e última a presença dos madeirenses foi fundamental.

O APELO DO MAR E DO OCIDENTE

A tradição refere que o primeiro homem a lançar-se à aventura do descobrimento das


terras ocidentais foi Diogo de Teive, que em 1451 terá saído do Faial à procura da ilha
das Sete Cidades, mas que no regresso apenas descobriu as de Flores e Corvo. Seguiram
o seu exemplo outros madeirenses que gastaram muito de sua fazenda para abrir o
caminho, mais tarde, trilhado por Colombo.

A ilha estava em condições de propiciar ao navegador as informações consideradas


imprescindíveis para o descobrimento das terras ocidentais. Note-se que este apelo do
Ocidente é uma consequência lógica do reconhecimento dos Açores, ocorrido a partir de
1427, todavia as ilhas mais ocidentais (Flores e Corvo) só em 1452 foram pisadas por
marinheiros portugueses. A sua entrada no domínio lusíada deu-se por mãos de Pedro
Vasquez de la Frontera e Diogo de Teive em 1452, no regresso de uma das viagens para o
Ocidente à procura das ilhas míticas.

As ilhas açorianas, por serem as mais ocidental sob domínio europeu até à viagem de
Colombo, era o paradeiro ideal para os aventureiros interessados em embrenhar-se na
gesta descobridora dos mares ocidentais. Desde meados do século XV, madeirenses e
açorianos saem, com assídua frequência, à busca de novas terras assegurando,
antecipadamente, a posse do que descobrissem por carta régia6. É de notar que este
interesse dos insulares pela descoberta das terras ocidentais é muito anterior a Colombo e
persistiu após 1492. A primeira carta conhecida é de 19 de Fevereiro de 1462, sendo a
posse das novas ilhas Lovo e Capraria e outras que iria descobrir, dadas ao João Vogado.
Ainda antes de 1492 temos outras concessões a Rui Gonçalves da Camara(21 de Junho de
1473), Fernão Teles(28 de Janeiro de 1474), Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito(24
de Julho de 1486). Após a primeira viagem de Colombo não esmoreceu o interesse dos
insulares por tais viagens. A atestá-lo estão as cartas concedidas a Gaspar Corte Real(12
de Maio de 1500), João Martins(27 de Janeiro de 1501) e Miguel Corte Real(15 de
Janeiro de 1502).

O Ocidente exerceu sobre os ilhéus, madeirenses e açorianos, um fascínio especial,


acalentado, ademais, pelas lendas recuperadas da tradição medieval. Por isso mesmo,
desde meados do século XV, eles entusiasmaram-se com a revelação das ilhas ocidentais
- Antília, S. Brandão, Brasil. No extenso rol de aventureiros anónimos que deram a vida
por esta descoberta, permitam-nos que referencie os madeirenses Diogo de Teive, João
Afonso do Estreito, Afonso e Fernão Domingues do Arco. A. Ballesteros7 identifica este

6.Manuel Monteiro Velho ARRUDA(Colecção de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos Açores, Ponta Delgada,
1977) refere as cartas atribuídas a João Vogado(19 de Fevereiro de 1462), Gonçalo Fernandes(29 de Outubro de 1462),Rui Gonçalves
da Camara(21 de Janeiro de 1473), Fernão Teles(28 de Junho de 1474 e 10 de Novembro de 1475), Fernão Dulmo e João Afonso do
Estreito(24 de Julho e 4 de Agosto de 1486).
7.Cristóbal Colón y el descubrimiento de América, 2 vols, Barcelona, 1945.
último como o piloto anónimo que em 1484 veio a Lisboa pedir ao rei uma caravela para,
segundo Fernando Colombo, "ir a esta tierra que via."

A estas iniciativas isoladas acresce toda uma tradição literária e os dados materiais
visíveis nas plagas insulares. A literatura fantástica, a cartografia mítica o aparecimento
de destroços de madeira e troncos de árvores nas costas das ilhas açorianas acalentavam a
esperança da existência de terras a ocidente. Nas costas das ilhas açorianas do Faial e
Graciosa encalhavam alguns pinheiros, enquanto nas Flores davam à costa dois cadáveres
com feições diferentes das dos cristãos e dos negros. Tudo isto levantava o fervor dos
aventureiros que com assiduidade viam-se perante ilhas que nunca existiram. A "décima
ilha", por exemplo, nunca passou de uma miragem.

A curta permanência de Colombo no Porto Santo e, depois, na Madeira possibilitou-lhe


um conhecimento das técnicas de navegação usada pelos portugueses e abriu-lhe as
portas aos segredos, guardados na memória dos marinheiros, sobre a existência de terra a
Ocidente. Bartolomé de Las Casas e Fernando Colombo falam que o mesmo teria
recebido das mãos da sogra "escritos e cartas de marear"8. Ambos os cronistas fazem do
sogro um destacado navegador quatrocentista. Tudo isto não passa de criação para
enfatizar a ligação de ambas as famílias. Na verdade Bartolomeu Perestrelo, ao contrario
de muitos genoveses ou seus descendentes, não é referenciado nas crónicas portuguesas
como navegador9. Ele apenas é referenciado como capitão do donatário da ilha do Porto
Santo, por carta de doação de um de Novembro de 1446, e na condição de povoador da
ilha acompanhou João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz em 1419 . Mesmo assim em sua
casa podia ser possível a presença de tais documentos. Mais importantes foram os
elementos que lhe terá fornecido o seu cunhado Pedro Correia, capitão da ilha Graciosa
(Açores). Daí ele dava conta de outras notícias das terras açoreanas, sem esquecer os
estranhos despojos que aportavam com assiduidade às praias da ilha do Porto Santo.

Aí, na Madeira e Porto Santo, ouviu histórias e relatos dos aventureiros do mar, teve
acesso a provas evidentes da existência de terras ocidentais legadas pelas correntes
marítimas nas praias. Um destes vestígios foi a castanha do mar, mais popularmente
conhecida como "fava de Colombo". Por tudo isto é legítimo de afirmar que o navegador
saiu do arquipélago, em data que desconhecemos, com a firme certeza de que algo de
novo poderia encontrar a Ocidente, capaz de justificar o seu empenho e da coroa.

A ilha ficou-lhe no coração e nunca mais a esqueceu no seu afã descobridor. Bastaram
alguns anos de convívio com os marinheiros madeirenses, esporádicas viagens ao golfo
da Guiné, para ganhar o alento, a sabedoria e os meios técnicos necessários para definir o
plano de traçar o caminho de encontro às terras índicas pelo Ocidente: Cipango (=Japão)
era o seu objectivo.

Durante os cerca de dez anos que permaneceu em Portugal Cristóvão Colombo

8.História de Las ïndias, vol.I, México, 1986; Vida Del Almirante Don Cristóbal Colón, escrita por su hijo, México, 1984
9.Esta situação foi já realçada por Henry HARRISSE, Cristophe Colomb devant l'histoire, Paris, 1892; Henry VIGNAUD,Histoire
critique de la grande entreprise de Cristophe Colomb, 2 vols, Paris, 1911; Gaetano FERRO, As navegações portuguesas no Atrlântico
e no Indico, Lisboa, pp.181-183.
acompanhou de perto as expedições portuguesas ao longo da costa africana. O fascínio do
navegador pelo mar, conquistado no Mediterrâneo como corsário ou comerciante,
despertou-lhe o apetite para as navegações atlânticas portuguesas. No momento em que
se fixou em Lisboa toda a atenção e azáfama estava orientada para o desbravamento da
extensa costa africana além do Bojador, conhecida como costa da Guiné. Nesta época era
já conhecida e navegável toda a área costeira até ao Cabo de Santa Catarina, alcançado
em 1474, no período do contrato de Fernão Gomes.

Não obstante este espaço ser vedado à navegação de embarcações que não fossem
portuguesas, os estrangeiros poderiam faze-lo a bordo e ao serviço de embarcações
nacionais. Assim havia sucedido na década de cinquenta com Cadamosto e Usodimare.
Tal como o fez o seu patrício Usodimare, Colombo embarcou em caravelas portuguesas
que demandavam as costas da Guiné. Facto normal para um experimentado marinheiro
genovês, que na praia do Porto Santo ou na Madeira, acompanhava o vai e vem das
nossas caravelas.

É de salientar que por muito tempo a Madeira foi escala obrigatória das embarcações
portuguesas que se dirigiam à costa africana. Tal facto derivou de o Funchal ser o único
porto seguro, avançado no Atlântico, dispondo de excedentes de cereais e vinho,
necessários à dieta de bordo dos marinheiros. A par disso os madeirenses acalentavam,
desde a década de quarenta, a aventura das navegações africanas, tendo-se empenhado
nisso as principais famílias da ilha.

Por tudo isto é inevitável associar a viagem de Colombo à sua curta estadia nas ilhas da
Madeira e Porto Santo, onde contactou com a realidade atlântica, adquiriu as necessárias
técnicas para se embrenhar na aventura de busca das terras ocidentais. O retorno do
navegador à ilha, em 1498, no decurso da terceira viagem, pode e deve ser entendido
como o seu reconhecimento aos madeirenses. Aqui teve oportunidade de relatar, aos que
com ele acalentaram a ideia da existência de terras a Ocidente, o que encontrara de novo.

O convívio com as gentes do Porto Santo havia sido prolongado e cordial pois em Junho
de 1498, aquando da terceira viagem, não resistiu à tentação de escalar a vila. A sua
aproximação foi considerada mau presságio pois os portossantenses pensavam estar
perante mais uma armada de corsários. Desfeito o equívoco foi recebido pelos naturais da
terra, seguindo depois para a Madeira.

A 10 de junho de 1498 a chegada do navegador ao Funchal foi saudada apoteoticamente,


como nos refere frei Bartolomé de Las Casas, o que provoca mais uma vez, a
familiaridade com esta gentes e a esperança que elas depositavam em tal empresa. O
cronista remata da seguinte forma o ambiente de festa que o envolveu: "le fué hecho mui
buen recibimiento y mucha fiesta por ser alli muy conocido, que fué vecino de ella en
algún tiempo"10.

DE NAVEGANTES A AVENTUREIROS E EMIGRANTES

10.Fray Bartolomé de LAS CASAS,História de las Indias, vol.I,México, 1986, 497.


A intervenção madeirense derrama-se por todo o espaço litoral atlântico, mas com
especial incidência para a costa brasileira. Concluída a missão de valorização das ilhas,
através da implementação das culturas com alto rendimento económico, como a vinha e a
cana sacarina, o ilhéu vira-se para as promissoras plagas brasileiras empurrado pelo
empenho da coroa e seus representantes em fazer aí um importante espaço canavieiro.

A partir do século dezasseis o Brasil assume um especial fascínio para os madeirenses


que continuarão apostar neste destino até ao nosso século. A presença madeirense liga-se
aos primórdios da ocupação portuguesa e à expansão e afirmação da cultura cana de
açúcar11, bem como à defesa dos interesses lusíadas nestas paragens. Sucedeu assim no
século XVII com a ocupação holandesa do nordeste brasileiro. Aqui a figura em destaque
é o enigmático e controverso João Fernandes Vieira12. Foi ele o principal responsável da
libertação de Pernambuco do jugo holandês, sendo por isso mesmo governador da
Paraíba(1655-1658) e de Angola(1658-1661). A ele se deve o incremento do surto
emigratório madeirense para o Brasil nesta segunda metade do século XVII. Passado um
século novo fenómeno emigratório madeirense sob os auspícios da coroa. Os conflitos a
sua com a demarcação das fronteiras obrigam a esta emigração orientada de ocupação e
de afirmação da soberania nacional, como se verá mais adiante13.

O fascínio madeirense não se resumiu apenas ao Atlântico, pois que estes também
acompanharsm a gesta portuguesa até ao Índico. E desde o início é notório o seu
comprometimento. É o caso de Lopo Mendes de Vasconcelos, que capitaneou um dos
navios da segunda viagem de Vasco da Gama. O seu filho Manuel de Vasconcelos. Ficou
conhecido como o de Diu, pelos muitos serviços que aí fez, enqunto a sua mulher, Isabel
da Veiga, foi apelidada da "matrona de Diu", pelo empenho na defesa desta fortaleza ao
lado do seu marido. A estes associam-se algumas das mais nobres famílias madeirenses:
Freitas, Catanho, Moniz, Lomelino, Ornelas14. Gaspar Frutuoso faz eco de um outro herói
madeirenses das plagas índicas15. É ele Tristão Vaz da Veiga. Todavia este ficou mais
conhecido pela sua traição na entrega da fortaleza de S. Julião da Barra, aquando da
invasão castelhana, que lhe valeu a posse da capitania de Machico(1582) e o título de
Governador Geral(1585).

A MADEIRA- MODELO DA EXPANSÃO.

A par disso a Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de
ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto
foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O

11
David Fereira GOUVEIA, "A manufactura açucareira madeirense(1420-1550", in Atlântico, nº.10, 1987, 115-131
12
José António Gonsalves de MELLO, João Fernandes Vieira- Mestre de Campo do Terço de infantaria de Pernambuco, 2 vols,
Recife, 1956.
13
Arquivo Histórico da Madeira, vol.V, 49-54, vol. VII, 237-239; Virgínia Rau, Dados sobre a imigração madeirense para o Brasil
no século XVIII, Coimbra, 1965; Maria de Lourdes F. FERRAZ, Dinamismo sócio-económico do funchal na segunda metade do
século XVIII, Lisboa, 1994, 85-116; Walter PIAZZA, "Madeirenses no povoamento de Santa Catarina(Brasil) século XVIII", in Actas
do I colóquio Internacional de História da Madeira, II,1990, 355-364.
14
. confronte-se Henrique Henriques de NORONHA, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Com,posição da História da Diocese
do Funchal na ilha da Madeira, Funchal, 1996, Tít. XII, cap.IX- X
15
Livro segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, caps. XXI-XXIX.
arquipélago foi, assim, o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e
economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e
regiões costeiras onde os portugueses aportaram.

O sistema institucional madeirense apresentava uma estrutura peculiar, definido pelas


capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova
estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daqui ficou
definido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atlântico insular
e brasileiro.

Sem dúvida que o facto mais significativo desta estrutura institucional deriva de a
Madeira ter servido de modelo referencial para o seu delineamento no espaço atlântico. O
monarca insiste, nas cartas de doação de capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema
traçado para a Madeira. Assim o comprovam idênticas cartas concedidas aos novos
capitães das ilhas dos Açores e Cabo Verde. O mesmo sucede com a demais estrutura
institucional que chegou também a S. Tomé e Brasil.

Também os castelhanos vieram á ilha receber alguns ensinamentos para a sua acção
institucional no Atlântico, como se depreende do desejo manifestado em 1518 pelas
autoridades antilhanas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçau, Aruba e La
Margarita com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Isto prova, mais uma
vez, a presença modelar da ilha no contexto da expansão europeia e demonstra o interesse
que ela assumiu para a Europa.

João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, resumia em 153216 de


uma forma perspicaz o protagonismo madeirense no espaço atlântico, pois a sua família
era portadora de uma longa e vasta experiência. Isso dava-lhe o alento necessário e abri-
lhe perspectivas para uma sua iniciativa no Brasil. Ele reclamava a iniciativa do seu
ancestral Rui Gonçalves da Câmara que em 1474 comprara a ilha de S. Miguel, dando
início ao seu verdadeiro povoamento. A mesma percepção surge em Gilberto Freire que
em 1952 não hesita em afirmar o seguinte:” A irmã mais velha do Brasil é o que foi
verdadeiramente a Madeira. E irmã que se estremou em termos de mãe para com a terra
bárbara que as artes dos seus homens,... concorreram para transformar rápida e
solidamente em nova Lusitânia”17.

Outra componente importante de afirmação da ilha como modelo de referência tem a ver
com a organização da sociedade no espaço atlântico e da importância aí assumida pelo
escravo. Mais uma vez a Madeira é o ponto de partida para esta transformação social. De
acordo com S. Greenfield18 ela serviu de trampolim entre o “Mediterranean Sugar
Production” e a “Plantation Slavery” americana. O autor não faz mais do que retomar os

16
História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol. III, p.90; cf Vera Jane GILBERT, "Os primeiros engenhos de açúcar"in
Sacharum, nº.3, São Paulo, 1978, pp. 5-12.
17 Aventura e Rotina, 2ªed., pp 440-446, 448-449

18
"Madeira and the beginings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study in constitution building", in Vera
RUBIN e Artur TUNDEN(eds.), Comparative perspectives on slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977.
argumentos aduzidos por Charles Verlinden19 desde a década de sessenta. Note-se que
esta argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos20.
Na verdade tudo o concretizado em termos do mundo atlântico português teve por matriz
o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social, político e económico, o ponto de
partida para o “mundo que o português criou...” nos trópicos. Neste contexto é
sumamente importante o conhecimento do sucedido na Madeira quando pretendemos
estudar e compreender as outras situações.

DA ILHA AO ATLÂNTICO E AO NOVO MUNDO.

“Constroem-se em definitivo, a partir da Madeira, as linhas e redes de comércio


atlânticos atraindo de modo decisivo as áreas e mercados europeus mais nevrálgicos
e mais importantes e criando nas áreas ribeirinhas metropolitanas,
insulares(Canárias, Açores, Cabo Verde) e continentais(Costa de Marfim-Magreb-
Arguim-Fez) fortes relações de dependência e de solidariedade”. Aurélio de Oliveira,
“A Madeira nas linhas de comércio do Atlântico. séculos XV- XVII”, III CIHM, Funchal,
1993, 923.

A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e
económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições
internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos
perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. No conjunto estávamos perante ilhas
com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com
diferenças marcantes ao nível climático. Os Açores apresentavam-se como uma zona
temperada, a Madeira como uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos
meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica, que estabelecia um
clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização
económica e social. As condições morfológicas estabelecem as especificidades de cada
ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a sua forma de aproveitamento
económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A possibilidade de acesso
ao exterior através de bons ancoradouros era um factor importante. É a partir daqui que se
torna compreensível a situação da Madeira definida pela excessiva importância da
vertente sul em detrimento da norte.

De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de ocupação


humana e agrícola das ilhas. Isto conduziu a uma variedade de funções económicas, por
vezes complementares. Deste modo nos arquipélagos constituídos por maior número de
ilhas a articulação dos vectores da subsistência com os da economia de mercado foi mais

19
"Précédents et paralèlles europeéns de l'esclavage colonial", in Instituto, vol.113, Coimbra, 1949; "Les origines coloniales de la
civilization atlantique. antécédents et types de structure", in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; Précédents médiévaux de la
colonie emn Amérique, México, 1954; Les origines de la civilization atlantique, Nêuchatel, 1966.
20
Confronte-se Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, nº.47, Lisboa, 1989, pp.165-166; Alberto
VIEIRA, Os escravos no arquipélago da Madeira. séculos XV a XVII, Funchal, 1991.
harmoniosa e não causou grandes dificuldades. Os Açores apresentam-se como a
expressão mais perfeita da realidade, enquanto a Madeira é o reverso da medalha.

O processo de povoamento das ilhas definiu-lhes uma vocação de áreas económicas


sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que sucedeu nos séculos XV e
XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como ponto de referência as ilhas.

A mudança de centros de influência foi responsável porque os arquipélagos atlânticos


assumissem uma função importante. A tudo isso poderá juntar-se a constante presença de
gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o
necessário suporte financeiro. A constante premência do Mediterrâneo nos primórdios da
expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas
experiências de arroteamento aqui lançadas.

Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o


processo atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais
dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares
foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de
mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou deste
transplante material e humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. Este
processo foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova
economia de mercado. A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos
vectores externos com as condições internas dos multifacetado mundo insular. A sua
concretização não foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios organizativos
pelo facto de a mesma resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus.
Por outro lado a economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm
directamente na produção e comércio.

Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um


lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da
conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram
reservados para a cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o
pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os
mais pobres como pasto e área de apoio aos dois primeiros.

A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade
insular, estava em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a
abertura de novas arroteias e ao lançamento de novas culturas nas ilhas e terras vizinhas.
Assim terá sucedido com o transplante da cana- de- açúcar para Santa Maria, S. Miguel,
Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil.

A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários


obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da política económica e à
definição da complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou ilhas. Nestas
circunstâncias as ilhas conseguiram criar no seu seio os meios necessários para solucionar
os problemas quotidianos - assentes quase sempre no assegurar os componentes da dieta
alimentar -, à afirmação nos mercados europeu e atlântico. Assim sucedeu com os cereais
que, produzidos apenas nalgumas ilhas, foram suficientes, em condições normais, para
satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente para suprir as
carências do reino.

Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de


acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e
depois as praças africanas e feitorias da costa da Guiné. A última situação era definida
por aquilo a que ficou conhecida como o “saco de Guiné”. Entretanto os interesses em
torno da cultura açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. Esta mudança
só se tornou possível quando se encontrou um mercado substitutivo. Assim sucedeu com
os Açores que, a partir da segunda metade do século dezasseis, passaram a assumir o
lugar da Madeira .

O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos espaços insulares, o
mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo
afrontamento e uma crítica desarticulação dos mecanismos económicos. A par disso
todos os produtos foram o suporte, mais que evidente, do poderoso domínio europeu na
economia insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção
devastadora no equilíbrio latente na economia das ilhas.

A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação, quase que


exclusiva destes produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Este para além
de ser o consumidor exclusivo destas culturas, surge como o principal fornecedor dos
produtos ou artefactos de que os insulares carecem. Perante isto qualquer eventualidade
que pusesse em causa o sector produtivo era o prelúdio da estagnação do comércio e o
prenúncio evidente de dificuldades, que desembocavam quase sempre na fome.

A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto, podendo
definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e de
troca comercial (pastel, açúcar). Em consonância com a actividade agrícola verificou-se a
valorização dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta alimentar
(pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras).

OS ANAIS DA HISTÓRIA POLÍTICA E DIPLOMÁTICA A PARTIR DA MADEIRA

Alguns dos momentos mais destacados da História Política e Diplomática da coroa


portuguesa passam obrigatoriamente pela Madeira, tal como o evidenciam as seguintes
situações dos séculos XV e XVI.

Ligado à conjura política nos reinos peninsulares está a questão da sucessão dinástica,
que tem reflexos evidentes na Madeira. No Arco da Calheta teve assentamento D.
Gonçalo Fernandes que casou com D. Isabel Fernandes de Andrade, tendo falecido em
1539. Este é identificado como D. Gonçalo Afonso de Avis Trastâmara Fernandez com o
epíteto de "o Máscara de Ferro português", filho de D. Afonso V e D. Joana de Castela,
mais conhecida como a Beltraneja21.

A morte em 1474 de Henrique II de Castela ficou vago o trono, sendo D. Joana a


pretendente com ausência de D. Afonso V que a pretendia desposar. Mas os seus intentos
são gorados na Batalha de Toro e D. Joana acolhe-se a um Convento onde vem a falecer
em 1530. Deste enlace não consumado terá nascido um filho que, mantido em maior
segredo, foi desterrado para a Madeira e seria Gonçalo Fernandes, vizinho do Arco da
Calheta22. .E também de referenciar que com ele fica reconhecido a Portugal os direitos
de posse das ilhas da Madeira e Açores. Esta indicação poderá estar relacionada com os
interesses de Aragão e Castela a reivindicar o domínio religioso da Madeira, através dos
franciscanos23.

Em 1529 com o Tratado de saragoça foi encontrada uma solução provisória e que a curto
prazo parece agradar a ambas as partes24. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000
ducados para assegurar a posse das Molucas que afinal se encontravam dentro da área de
influência de Portugal.

Mais uma vez é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns,
o madeirense António de Abreu25 o seu primeiro explorador. A dúvida todavia subiste em
face de vários homónimos contemporâneos. E deste modo a opinião mais abalizada anota
que esse António de Abreu que abordou as Molucas e terá estado na Austrália não é o
madeirense, filho de João Fernandes do Arco, mas sim o do fidalgo Garcia de Abreu, de
Avis.

Por outro lado os madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o
pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a
contribuição madeirense. João Rodrigues Castelhano é referenciado também como
recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado da sua fazenda 300.000 réis26. A
este juntam-se Fernão Teixeira27 com 150.000 réis e Gonçalo Fernandez28 com 200.000

21
.Paulo Drumond BRAGA, "A "Excelente Senhora", D. Joana, em Portugal(1479-1530). Dados para um estudo", in Revista de
Ciências Históricas. vol. IV, Porto, 1989, pp.247-254.

22
. Luiz Peter CLODE, Descendência de D. Gonçalo Afonso Avis Tristão Câmara Fernandes o Máscara de Ferro português, Funchal,
1983.

23
. Confronte-se Monumenta Henricina, vol. III, 1961, pp.14-17, 49-56

24
. Diferente foi a atitude de alguns portugueses que foram contrários a esta decisão da coroa. Veja-se, de novo, o testemunho de
Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., pp.215-216.

25
.Não existe consenso sobre a verdadeira origem e identidade deste António Abreu, uma vez que na época são referenciados alguns
homónimos, mesmo no Funchal. Confronte-se: Cabral do NASCIMENTO, "António de Abreu, descobridor das ilhas de Maluco, não
é António Abreu, natural da Madeira e capitão duma nau das Índias em 1523", in AHM, I, 1931, 21-28(reeditado no vol. IV, 117-121);

26
. Veja-se José Pereira da COSTA, "A família Mondragão na Sociedade Madeirense do Século XVI", in Actas do I Colóquio
Internacional de História da Madeira(1986), vol. II, Funchal, 1990, 1143-1149.

27
.ANTT, CC, II, 158, nº.102 e 106, mandado de 22 de Setembro de 1529 para o pagamento do referido valor.

28
. J. Pereira da COSTA, ibidem, pp.1148-1149.
réis. O seu pagamento fez-se nos anos de 1530-31 à custa dos dinheiros resultantes dos
direitos da coroa sobre o açúcar

Desde finais do século XVII os problemas com a demarcação do meridiano de


Tordesilhas passam para o Atlântico. Em jogo estão as fronteiras do Brasil. Se de ambos
os lados as fronteiras haviam sido alargadas para além das 370 léguas estabelecidas.
Bandeirantes e jesuítas estão no início da discórdia que se prolongará até 1777. A
cartografia jogou aqui um papel relevante29

O principal motivo de discórdia prende-se com a criação da colónia do Sacramento


(1679) na foz do Rio da Prata30. A indefinição da linha divisória de Tordesilhas levou a
que se mantivesse aceso o conflito. Foi, a partir do século XVII, com a aposta portuguesa
na ocupação do solo brasileiro que se colocou de novo a necessidade de rever o tratado
quatrocentista.

Aqui reconhece-se inviabilidade da opção de Tordesilhas, resultante da dificuldade de


traçar no terreno a linha divisória, tal como se afirma no Tratado de Madrid de 13 de
Janeiro de 1750. Este e o de 1777 são o corolário de aceso debate31. Assim, concluiu-se
com os conflitos de fronteiras gerados pela divisão do mundo e delimitação das
fronteiras.

A solução para o traçado da linha de fronteira não é definida pelas negociações dos
emissários régios, mas sim pelas condições orográficas e a ocupação efectiva. Foi, aliás,
de acordo com esta condição que os portugueses viram-se na necessidade de penetrar no
sertão e de criar assentamentos. É de acordo com isto que se deverá entender o grande
movimento imigratório para o Brasil, a partir de meados do século XVIII. Neste caso é de
destacar a presença de madeirenses e açoreanos, desde 1745 em Santa Catarina e Rio
Grande do Sul32. A coroa promoveu a ida de casais insulares para estas terras do sul afim
de conseguir-se uma ocupação de facto desta região, o que depois seria um factor de
ponderação nas negociações das fronteiras que levaram à assinatura dos tratados de 1750
e 1777.

29
. Sobre estas questões veja-se: Estudios (nuevos y viejos) sobre la frontera, Madrid, 1991; Max Justo GUEDES, "Os limites
territoriais do Brasil a noroeste e a norte" in Portugal no Mundo, V, 1989, 202-228. A. Pinheiro MARQUES "O papel dos
bandeirantes na consolidação da área de Ocupação portuguesa do Brasil" in Ibidem, 158-170; IDEM, "O papel dos cartógrafos e dos
engenheiros militares na fixação dos limites do Brasil" Ibidem, 180-190.

30
. Luís F. de ALMEIDA, "O Problema de fronteiras no Sul do Brasil: o caso de Colónia do Sacramento", Portugal no Mundo, 5, 191-
201.

31
. Demetrio RAMOS PEREZ, Los criterios contrarios al Tratado de Tordesilhas en el siglo XVIII, determinante de le necessidad de
su anulacion, Coimbra, 1974.

32
. V. RAU e outros, "Dados sobre a emigração madeirense para o Brasil no séc. XVIII", in Colóquio Internacional de Estudos Luso
Brasileiros, Vol. V, Coimbra, 1965, 495-505; Maria Lourdes de F. FERRAZ, "Emigração madeirense para o Brasil no séc. XVIII",
Islenha, nº 2, 1986, 88-101; W. PIAZZA, "Madeirenses no povoamento de Santa Catarina (Brasil) Século XVIII", in Actas do I
C.I.H.M., 1990, Vol. II, 1268-1286.
Acresce, ainda, o facto de este afrontamento ter de novo repercussões com o corso na
Madeira. Esta segunda metade do século dezoito é um momento importante dessa
actividade, com particular incidência na Madeira e açores33.

De uma vez por todas encerrava-se o ciclo de conflitos gerados pela partilha do Mundo
entre Portugal e Castela. Uma divisão a dois que nunca foi conseguida e que acabou por
ser partilhada por outros interessados. E, deste modo, dava-se juz ao rei de França quando
pediu que lhe fosse dado conhecimento da parte do testamento de Adão onde se teria o
fundamento para esta partilha a dois.

2.. OS TEMAS
O enquadramento do devir histórico de acordo com determinados domínios temáticos
evidencia de novo essa omnipresença da Madeira em situações que marcaram de forma
evidente o panorama económico e social do espaço atlântico. A ilha assume de novo a
posição dianteira e projecta-se nas demais iniciativas, para além de se afirmar, por si só,
pela riqueza que propiciou aos colonos europeus. Aqui o esforço e investimento saíram
compensados.

PARADIGMAS DA EXPANSÃO COLONIAL- O AÇÚCAR.

A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no mercado europeu-mediterrânico, foi um


dos primeiros e principais produtos que a Europa legou e definiu para as novas áreas de
ocupação no Atlântico.

O percurso iniciou-se na Madeira, alargando-se depois às restantes ilhas e continente


americano. Nesta primeira experiência além-Europa a cana sacarina evidenciou as
possibilidades de desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Tal evidência catalisou
os interesses do capital nacional e estrangeiro, que apostou no crescimento da cultura e
comércio. Se nos primeiros anos de vida no solo insular a cana sacarina se apresentava
como subsidiária, a partir de meados do século XV já aparecia como o produto
dominante, situação que perdurou na primeira metade do século seguinte.

As socas de cana madeirense foram levadas para os Açores pelos primitivos


cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel, Terceira e Faial.
Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos desejados. As condições
geofísicas aliadas à inexistência ou reduzida dimensão dos capitais estrangeiros travaram
o seu desenvolvimento.

33
. Tenha-se em conta o que já dissemos em "Funchal no contexto das mudanças político-ideológicas do Século XVIII. O corso e a
guerra de represália como arma", in As Sociedades Insulares no contexto das interinfluências culturais do Século XVIII, Funchal,
1994, pp.93-113.
Diferente foi o que sucedeu em S. Tomé onde a abundância de águas e lenhas associada
às condições do solo foram de molde a propiciar os meios indispensáveis ao cultivo da
cana. O açúcar aí produzido, tornou-se, por isso mesmo, concorrencial do madeirense,
embora sem nunca atingir a sua qualidade. Um dos factos que contribuiu para que ele se
tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada produtividade. Segundo Jerónimo
Munzer34 ela seria três vezes superior à madeirense. No começo só se produzia melaço,
que depois era levado a Lisboa para ser refinado, mas a partir de 1506 a ilha passou
também a fazer açúcar branco, tendo-se para o efeito construído o primeiro engenho35.

Se nos preocuparmos em comparar o ciclo evolutivo da cultura da cana nos diversos


espaços do Atlântico onde foi cultivada concluiremos pela existência de afinidades entre
a sua afirmação numa área e a decadência noutras. Assim sucedeu na Madeira com
S.Tomé e desta para com o Brasil. O cultivo dos canaviais surge em S. Tomé em finais
do século XV, isto é no momento de apogeu da produção madeirense, que atinge em
1510 o valor mais elevado, entrando depois num movimento descendente. Esta fase
depressionária, que se acentua a partir de 1525, coincide com o momento de afirmação do
açúcar sãotomense. É precisamente nas décadas decorrentes até meados do século que se
atingem os valores mais elevados.

A partir do último quartel do século dezasseis foi a concorrência desenfreada do açúcar


brasileiro que definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A esta
conjuntura deverá juntar-se a revolta dos escravos (1595), agravada pela destruição dos
engenhos provocada pelo saque holandês. Na verdade este momento coincide com a
plena afirmação do açúcar brasileiro, cuja colheita continuava a subir em flecha, nas
décadas posteriores.

O domínio holandês de Recife, ao contrário do que habitualmente se pensa, não provocou


uma quebra deste ritmo mas apenas quebras pontuais, que se reflectiram nos valores dos
anos de 1618 e 1645. Este período, de menor oferta do açúcar brasileiro nos portos
peninsulares, não deverá ser entendido como uma quebra da produção mas apenas um
desvio dos circuitos comerciais. Esta conjuntura coincide com o retorno da cultura na
Madeira e em S. Tomé, atingindo-se na última, entre 1641-1645 as cem mil arrobas. Tal
ritmo de reabilitação da economia açucareira insular teve que enfrentar as dificuldades
levantadas pelos holandeses, interessados em manter o exclusivo do açúcar
pernambucano.

OS ESCRAVOS COM E SEM AÇÚCAR.

34 . Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20.

35
. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 128.
Insiste-se no facto de que as Canárias e os Açores foram os principais protagonistas do
comércio com o Novo Mundo, deslocando-se a Madeira para uma posição excêntrica.
Todavia o confronto dos dados disponíveis na documentação revelam o contrario,
contribuindo para isso o facto de a Madeira ter servido de modelo para todas as tentativas
de valorização económica do Novo Mundo. Esta última situação favoreceu uma pronta
emigração de madeirenses, especializados nas diversas tarefas, e propiciou a manutenção
do relacionamento, ainda que por vezes sentimentais. Além disso esta situação saiu
reforçada com a oferta madeirense de produtos demandados por estes novos mercados. E,
finalmente, deverá juntar-se a activa participação dos mercadores da ilha nesses circuitos
comerciais, então traçados para o fornecimento de mão-de-obra escrava ou escoamento
do açúcar.

O mercado negreiro da costa ocidental africana foi alvo da atenção dos madeirenses, que
cedo se intrometeram neste trafico com destino à ilha, ao velho continente e, mais tarde,
ao novo mundo americano. Os madeirenses participaram activamente no processo de
reconhecimento das terras do Sul. Aliás, desde 1470 o Funchal funcionou como um
importante entreposto para o comércio africano.

Este relacionamento progrediu mercê de uma conjuntura favorável aos contactos com
estas paragens: em 1483 D. Manuel recomendou as maiores facilidades no porto do
Funchal para os navios de Cabo Verde, depois, a partir de 1507, foi a isenção do
pagamento de direitos nos produtos exportados de Cabo Verde para as ilhas e reino. Tudo
isto facilitou o acesso do madeirense ao mercado de escravos. Deste modo a ilha foi um
dos primeiros destino dos escravos resultantes das primevas razias na costa ocidental
africana.

Nos entrepostos do trafico negreiro em Santiago, S. Tomé ou Angola, a presença de


madeirenses era frequente. Eles gozavam mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na
captura de escravos para as suas fazendas ou venda aos seus compatrícios que as
possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contrabando, alargando os seus
negócios até ao Brasil ou Antilhas.

Muitos, fascinados pela aventura destas paragens, decidiram-se por uma intervenção
directa, fixando-se em Santiago ou na Costa da Guiné. Note-se que a situação de vizinho
era condição obrigatória para participar neste trafico negreiro36. Eles privavam-se da
família e da vida amena da Madeira e sujeitam-se a uma aventura de solidão e de
dificuldades, motivadas pelas condições climáticas da zona.

A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de


reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada, tinha as portas abertas a este
vantajoso comércio. Deste modo a ilha e os madeirenses demarcaram-se nas iniciais
centúrias pelo empenho na aquisição e comércio desta pujante e promissora mercadoria

36 .Confronte-se António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, pp.29-53.


do espaço atlântico. À ilha chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e
africanos, que contribuíram para o arranque económico do arquipélago.

O comércio entre a ilha e os principais mercados fornecedores existiu, desde o começo da


ocupação do arquipélago, e foi em alguns momentos fulgurante. Impossível é estabelecer
com exactidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente disponibilidade
documental, para os séculos XV a XVII, não o permite. Carecemos dos registos de
entrada da alfândega do Funchal e dos contratos exarados nas actas notariais.

Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de origem


africana, sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras proveniências, como o
Brasil, América Central e Índia. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou das
dificuldades no trafico e, por outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição,
como sucedeu no Brasil e Índia. Apenas o mercado africano, dominado pela extensa
costa ocidental, em poder dos portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí as
únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como sucedeu com os contratos e
arrendamentos.

O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro, pelas Canárias e Marrocos


e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. E aí a
Madeira foi buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios e, depois, plantar os
canaviais. Primeiro foram os escravos brancos das Canárias e Marrocos. Depois os
negros das partes da Guiné e Angola.

As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram aí uma


forma peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes
das múltiplas pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para os madeirenses,
que defenderam com valentia a soberania portuguesa nestas paragens, os escravos
mouros surgem ao mesmo tempo como prémio e testemunho dos seus feitos bélicos.
Eram poucos os que podiam ostentar os seus triunfos de guerra. Outra forma de aquisição
era o corso marítimo e costeiros, prática de represália comum a ambas as partes. Idêntica
situação ocorreu na Índia onde os madeirenses também se evidenciaram nas diversas
batalhas aí travadas, como sucedeu com Tristão Vaz da Veiga. Na Costa Africana, além
do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros: primeiro tivemos os
assaltos e razias, depois o trato pacífico com as populações indígenas. Tudo isto
implicava uma dinâmica diferente para os circuitos de comércio e transporte. Aqui os
cavaleiros e corsários são substituídos pelos mercadores.

A CONTEXTUALIDADE ATLÂNTICA.

“A ilha da Madeira... que Deus pôs no mar ocidental para escala, refúgio, colheita e
remédio dos navegantes, que de Portugal e de outros regnos vão, e de outros portos
e navegações vêm para diversas partes, além dos que para ela somente navegam,
levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito dinheiro para se aproveitar do
retorno que dela levam para suas terras...”.(Gaspar Frutuoso, Livro segundo das
Saudades da Terra, P.Delgada, 1979, pp.99-100)

A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu a um intrincado liame de


rotas de navegação e de comércio que ligavam o Velho Continente ao litoral atlântico.
Esta multiplicidade de rotas resultou das complementaridades económicas e de formas de
exploração adoptadas. Se é certo que esses vectores geraram as referidas rotas, não é
menos certo que as condições mesológicas deste oceano, dominadas pelas correntes,
ventos e tempestades, delinearam o seu rumo. As mais importantes e duradouras de todas
as traçadas neste mar foram sem dúvida a da Índia e a das Índias, que galvanizaram as
atenções dos monarcas, da população europeia e insular, dos piratas e corsários.

No traçado de ambas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com uma actuação primordial


na manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e das Canárias surgem
nos séculos XV e XVI como entreposto para o comércio no litoral africano, americano e
asiático. Os portos principais da ilha da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro,
Tenerife e Lanzarote animam-se de forma diversa com o apoio a essa navegação e
comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira,
e S. Miguel, surgem como a escala necessária e fundamental da rota de retorno.

Segundo Pierre Chaunu a rota das Índias de Castela assentou em quatro vértices
fundamentais: Sevilha, Canárias, Antilhas, Açores37. Neste traçado, portanto, a Madeira
mantinha-se numa posição excêntrica, pois apenas servia as rotas portuguesas do Brasil e
da costa africana.

A participação madeirense na carreira das Índias foi esporádica, justificando-se esta


ausência pela posição marginal em relação à sua rota. Todavia a Madeira representa um
porto de escala muito importante para as navegações portuguesas para o Brasil, Golfo da
Guiné e Índia. Desde o século XV que ficou demarcada essa posição da escala
madeirense para as explorações geográficas e comerciais dos portugueses na costa
ocidental madeirense para as explorações geográficas e comerciais dos portugueses na
costa ocidental africana. Esta opção pela Madeira adveio dos conflitos latentes com
Castela pela posse das Canárias. A expansão comercial de finais do século XV, com a
abertura da rota do Cabo, veio valorizar mais uma vez esta escala aquém equador,
surgindo inúmeras referências, em roteiros e relatos de viagens, à escala madeirense. Os
mesmos ingleses que utilizaram as Canárias tocavam com assiduidade a Madeira, onde se
proviam de vinho para a viagem.

A Madeira, como as Canárias muito raramente foi escolhida como escala de retorno -
uma vez que essa missão estava, por condicionalismos geográficos, reservada aos Açores.
Todavia verificou-se ocasionalmente a escala das embarcações vindas da Mina Índias e
Índias na Madeira.

37
. Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, 43-48.
A posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comercio e na navegação atlântica
fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e
controle do trato comercial. As ilhas eram os bastiões avançados, suportes e símbolos da
hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento neste oceano
será feita na área definida por elas, pois para aí incidiam piratas e corsários ingleses,
franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação nas rotas americanas e índicas.
Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares terá sido a defesa das
embarcações que sulcavam o Atlântico em relação às investidas dos corsários europeus.
A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores era o principal foco de
intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao
velho continente.

UMA NOVA REALIDADE. A DIMENSÃO INSULAR E ATLÂNTICA DA


ECONOMIA.

A historiografia vem defendendo única e exclusivamente a vinculação da ilha ao Velho


Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Neste
sentido os séculos XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos deste
relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o
Novo Mundo, em que o vinho assume o papel de principal protagonista e responsável
destas trocas comerciais.

Os estudos por nós realizados vieram a confirmar que a situação do relacionamento


exterior da ilha não se resumia apenas a estas situações38. À margem destas importante
vias e mercados subsistem outras que activaram também a economia madeirense, desde o
séc. XV. Neste contexto as conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias)
ou afastados (Cabo Verde, S.Tomé e Príncipe) foram já motivo de uma aprofundada
explanação, que propiciou a sua necessária valorização na estrutura comercial madeirense
39
. Aqui ficou demonstrada a importância assumida por estes contactos humanos e
comerciais, que no primeiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e,
no segundo, das possibilidades de intervenção no trafico negreiro, mercê da sua
vinculação às áreas africanas da Costa da Guiné, Mina e Angola.

Para além deste privilegiado relacionamento com o mundo insular, a praça comercial
madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano ou americano e rosário
de ilhas da América Central. No primeiro rumo ressalta a costa marroquina, onde os
portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelas gentes da ilha40.

38
. "O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII", in Os Açores e o Atlântico(séculos XIV-XVII), A. Heroismo,
1984; "O comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos XVI e XVII", in VI Colóquio de História Canario Americana,
Las Palmas, 1984; "Madeira e Lanzarote. comércio de escravos e cereais no século XVII", in IV Jornadas de História de Lanzarote e
Fuerteventura, Arrecife de Lanzarote, 1989.

39
.O comércio inter-insular(Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987.

40
.A.A.SARMENTO, A Madeira e as praças de África. dum caderno de apontamentos, Funchal, 1932: Robert RICARD, "Les places
luso-marocaines et les Iles portugaises de l'Atlantique", in Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol.II, 1949; António
No século XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular,
depara-se à ilha um novo destino e mercado, que pautará o seu relacionamento externo
nas centúrias posteriores. Este novo mundo e mercado foi para muitos uma esperança de
enriquecimento ou a forma de assegurar a posse de bens fundiários.

Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende, primeiro, da presença


de uma comunidade madeirense que pretende manter o contacto com a terra mãe e depois
das possibilidades de uma troca favorável. Neste contexto a oferta de vinho por parte do
madeirense e a sua procura pelos agentes do trafico negreiro, para de forma enganadora
oferecerem aos sobas africanos, ou do outro lado do Atlântico saciar a sede do europeu a
troco do açúcar, foi o principal motor deste relacionamento. Esta situação influenciou
decisivamente a estrutura comercial da ilha, a partir da segunda metade do século XVI.
Desde então as conexões comerciais adquiriram uma maior complexidade, fazendo com
que a Madeira, através do seu vinho, se transformasse num ponto importante do circuito
de triangulação, que passou a dominar os contactos entre os portos da costa ocidental
africana a americana e as Antilhas. Neste contexto foi exemplar e decisiva a acção de
dois madeirenses-Diogo Fernandes Branco e Francisco Dias- que aqui e agora
pretendemos revelar. A eles associam-se dois ingleses- Bartolome Cuello e William
Bolton- que matizaram de forma diversa esse relacionamento externo da ilha.

HISTÓRIA DA NAVEGAÇÃO E DA CIÊNCIA:

As ilhas assumem na centúria oitocentista uma nova função para os Europeus. De


primeiras terras descobertas passam a campos de experimentação e a escalas
retemperadoras da navegação na rota de ida e regresso. Finalmente, no século XVIII
desvendou-se uma nova vocação: as ilhas como campo de ensaio das técnicas de
experimentação e observação directa, que comandam a ciência das "luzes", e escala das
constantes expedições científicas dos europeus. O enciclopedismo, as classificações de
Linneo(1735) têm nas ilhas um bom campo de experimentação.

O homem do século dezoito perdeu o medo ao mundo circundante e passou a olhá-lo com
maior curiosidade, deste modo como dono da criação estava-lhe atribuída a missão de
perscrutar os seus segredos. É esse impulso que justifica todo o afã cientifico que explode
nesta centúria. A insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a
Europa, mas foram os ingleses aqueles que entre nós marcaram um forte presença, sendo
menor a de franceses e alemãs.

Aqui são protagonistas as Canárias e a Madeira. Este protagonismo resulta da função das
mesmas como escala à navegação e comércio no Atlântico e para fora deste. Foi também
aqui que a Inglaterra estabeleceu a sua base para a guerra de corso no Atlântico. Se as
embarcações de comércio, as expedições militares cá tinham escala obrigatória, mais
razões assistem às científicas para essa paragem obrigatória. As ilhas pelo seu
endemismo, própria história geo-botânica, levavam obrigatoriamente a esse primeiro

Dias FARINHA, "A Madeira e o Norte de África nos séculos XV e XVI", in Actas do I Colóquio Internacional de História da
Madeira.1986, vol.I, Funchal, 1989, pp.360-375.
ensaio das técnicas de pesquisa a seguir noutras longínquas paragens. Também as ilhas
foram um meio revelador dessa incessante busca do conhecimento da geologia e
botânica. Instituições seculares, como o British Museum, Linean Society, e Kew Gardens,
chegam a enviar especialistas a proceder à recolha das espécies. Importantes estudos no
domínio da geologia, botânica e flora são resultado deste presença fortuita ou intencional
dos cientistas europeus.

Esta foi uma moda, no decurso do século XVIII, que levou a que algumas instituições
científicas europeias ficassem depositários de algumas dessas Colecções: o Museu
Britânico, a Universidade de Kiel, Universidade de Cambridge, Museu de História
Natural de Paris. E, por cá, passaram destacados especialistas da época, sendo de
destacar John Byron, James Cook, Humbolt, John Forster. A lista é infindável, contando-
se, entre 1751 e 1900, quase uma centena de cientista. Está aqui uma riqueza historial que
ainda não foi devidamente explorada.

James Cook escalou a Madeira por duas vezes(1768 e 2772), numa réplica da viagem de
circum-navegação, mas desta feita apenas com interesse científico. Os cientistas que o
acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à busca das raridades botânicas para a
sua classificação e depois revelação à comunidade científica.

A tudo isto é de referenciar a função de hospital para a cura da tísica pulmonar ou de


quarentena na passagem do calor tórrido das colónias para os dias frios e nebulosos da
vetusta cidade de Londres. Esta função catapultou a ilha para um evidente protagonismo.
O debate das potencialidades terapêuticas da climatologia propiciou um numeroso grupo
de estudos e criou uma escala de estudiosos, dentro e fora da ilha. Mais do que estes é de
salientar os demais que correspondem, ao seu apelo. Intermináveis filas de aristocratas,
escritores, cientistas desembarca no calhau e vão encosta fora à procura do ar benfazejo
da ilha. Vem daqui muito do espólio hoje disponível na Casa Museu Frederico de
Freitas e Biblioteca Municipal.

É esta quase esquecida dimensão da ilha como motivo despertador da ciência e cultura
europeia desde o século XVIII que importa realçar. Ela partiu de campo experimental dos
descobrimentos a sua afirmação, com a filosofia das luzes, como novo campo
experimental de nova ciência que desabrocha, mercê da sua nova função de escala das
expedições científicas. Mais uma vez fica demonstrado o activo protagonismo da
Madeira no devir histórico ocidental. A sua acção não se resume apenas aos planos
político-económico e social, pois alarga-se ao científico, como acabamos de constatar.

A HISTÓRIA DO MEIO NATURAL.

Nos últimos anos a História tem sido enriquecida de novos conteúdos. A Historiografia
americana tem permitido esse arejamento temático e metodológico. A história oral, que já
aqui referimos, é exemplo disso. A par disso temos ainda outra recente aportação que
tanto tem entusiasmado a Historiografia inglesa e norte-americana. Isto é, a História do
Meio-ambiente. A partir daqui o meio natural deixa de ser o palco para se assumir
também actor da História

O primeiro estudo que apela ao tema surge em 1847. Com o livro "Man and Nature" de
George Perkins Marsh, que é considerado um dos percursores da defesa do meio-
ambiente. O tema começou a ganhar interesse nos anos cinquenta, mas a actual
premência actual dos problemas do meio ambiente cativou a historiografia que fez deste
um dos novos domínios de ponta do conhecimento e investigação histórica. A publicação
do livro "The historical roots of our ecologic crises "(1960) de Lynn White Jr., um dos
clássicos estudos sobre a História do meio ambiente ou ecológica, marca o início de uma
nova era para a atenção da historiografia norte-americana, que nos últimos anos entrou
definitivamente nos curriculos académicos e planos editoriais. Acrescem também as
revistas especializadas. Destas salienta-se Forest & Conservation History(1957), hoje
Environmental History Review , que se firmou como porta-voz dos historiadores em
defesa do meio natural.

A par disso a ilha assume nos últimos tempos um lugar de relevo nos novos domínios da
História, que ganharam expressão nos meios universitários americanos a partir de 1960.
A História do Meio Ambiente e Ecológica veio a fazer apelo de novo ao pioneirismo da
Madeira, naquilo que o devir mostra a gesta europeia destruidora do meio envolvente. O
processo de expansão europeia não se afirma apenas pela novidade de descoberta de
novos mundos, mas também pelos efeitos destrutivos da presença do europeu sobre a
fauna e flora dos novos espaços. Tudo isto foi conseguido por exigências das leis do
mercado de então que definiu uma estrutura de monoculturas e exploração intensiva do
solo, através de culturas com elevado rendimento económico, como foi o caso da cana de
açúcar.

Da leitura dos clássicos e da produção recente releva-se uma situação particular que toca
de novo o arquipélago da Madeira. A Madeira não se posiciona apenas nos anais da
História universal como a primeira área de ocupação atlântica, pioneira na cultura e
divulgação do açúcar ao Novo Mundo, mas também como o primeiro exemplo dos
efeitos nefastos de uma exploração intensiva41.

A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas


também marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio. O
europeu carrega consigo a fauna e flora do seu convívio e com valor económico, que irão
provocar profundas mudanças nos novos eco-sistemas. Com isto acontece que o espaço
vivido e natureza se universalizam. Nos séculos XV e XVI foram as viagens de
descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e descoberta da
natureza, comandadas por ingleses e franceses.

A Madeira foi o viveiro de aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a


transmigração da fauna e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as

41
, Madeira. Pearl of Atlantic, London, 1959 Veja-se Richard GROVE, Green Imperialism, N York, 1995, pp. 5-29; idem, Ecology,
climate and empire, Cambridge, 1997, p. 45; John PERLIN, A forest journey, N. York, 1989.
plantas do Novo Mundo que tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza
botânica do Funchal resulta disso.

O processo de imposição da chamada biota portátil europeia, no dizer de Alfred


Crosby42, foi responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas
ecológicos . Quem não se lembra da praga dos coelhos do Porto Santo? Que dizer do
incêndio que lavrou na ilha durante sete anos ?

Estas situações são assiduamente referenciadas pela actual historiografia norte americana
que se dedica ao estudo da História do meio ambiente, sendo o seu ponto de partida e
alento para esta incursão temática inovadora.

Outro facto também insistentemente referido é o da própria ilha da Madeira. O nome foi
o atributo para referenciar a abundância e aspecto luxuriante do seu bosque. Mas em
pouco tempo, as queimadas para abrir clareiras de cultura e habitação, o debaste para
fruição das lenhas e madeiras, fizeram-na desmerecer tal epíteto. Da Madeira quase só
ficou o nome…!

A tradição refere que os navegadores portugueses atearam um incêndio à densa floresta


para poder penetrar, mas este ganhou tais proporções que os atemorizou. Foram sete anos
de chama acesa, diz a tradição. Todavia, hoje ninguém acredita nesta versão divulgada
por Francisco Alcoforado e repetida em Cadamosto e outros autores da época. Hoje
ninguém acredita nesta História, que a ser verdade teria reduzido a ilha a carvão…

Esta situação expressa uma realidade que pautará a expansão europeia e que só nos
últimos anos tem cativado a atenção do historiador. Tudo isto tem origem num produto
devorador que conquista a economia de mercado e que pautou a evolução da economia
atlântica a partir do século XV. O carrasco é o açúcar. A sua disponibilidade só é possível
com esse processo de degradação do meio que viu nascer os canaviais.

A Europa parte no século XV à procura do Eden bíblico ou descrito na literatura clássica


greco-romana. Foi este um dos motivos do empenho de Colombo, mas também dos
navegadores portugueses. O seu reencontro era encarado como uma conciliação com
Deus, o apagar do pecado original de Adão e Eva. Esta imagem persegue quase todos os
navegadores quinhentistas e deverá estar por detrás do empenho daquelas que aportaram
à Madeira . Tenha-se em conta que as duas primeiras crianças nascidas na ilha, filhas de
Gonçalo Aires Ferreira tiveram nomes bíblicos de Adão e Eva. Era o retorno ao Eden,
que aos poucos foi sendo perdido, tal como sucedera aos primogénitos Adão e Eva. A
recuperação desta imagem acontecerá mais tarde no século XVIII em que a ilha é de
novo o paraíso redescoberto para o viajante ou tísico ingleses, recuperado e revelado ao
cientista, seja ele inglês, alemão ou francês, através das recolhas ou da recriação através
dos jardins botânicos.

A cana de açúcar poderá ser considerada como a cultura agrícola mais importante da
História da Humanidade, pois provocou o maior fenómeno em termos de mobilidade

42
humana, económica, comercial e ecológica. A sua afirmação como cultura agrícola é
milenar e abrange vários quadrantes do planeta. É de todas as plantas domesticadas pelo
Homem aquela que acarreta maiores exigências. Ela quase que escraviza o homem,
esgota o solo, devora a floresta e dessedenta os cursos de água.

A sua exploração intensiva desde o século XV gerou grandes exigências em termos de


mão-de-obra, sendo responsável pela maior fenómeno migratório à escala mundial que
teve por palco o Atlântico: a escravatura de milhões de africanos. Ligado a tudo isso está
também um conjunto variado de manifestações culturais que vão desde a literatura à
musica e à dança.

Foi o Oriente descobriu a doçura, tendo a Papua Nova Guiné como Berço. Os árabes
fizeram-no chegar ao ocidente e foram os principais arautos da sua expansão. Genoveses
e venezianos encarregaram-se do seu comércio e Europa. Mas é nas ilhas que ela
encontrou um dos principais viveiros da sua afirmação e divulgação no Ocidente: Creta e
Sicília no Mediterrâneo, Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde e S. Tomé no Atlântico
Oriental Puerto Rico, Cuba, Jamaica, Demerara(…) nas Antilhas.

A realidade sócio-económica que serve de suporte ao açúcar diferencia-se no seu


percurso do Pacífico/Índico para o Mediterrâneo/Atlântico. Assim, no primeiro caso não
assume a posição dominante na economia, primando pelo carácter secundário, enquanto
no segundo é patente o seu efeito dominador na economia e sociedade/associação ao
escravo, que começa no Mediterrâneo e se reforça no Atlântico. As ilhas, pela limitação
do seu espaço, são as primeiras a ressentir-se desta realidade.

A consciência ecológica do homem hodierno serve de apelo a esta viragem regressiva à


História da Humanidade. O presente actua assim com expressão mediática para a
descoberta desse passado que pode ter algum efeito pragmático nas actuais políticas de
defesa do meio-ambiente, para que se atinja o limiar do século XIX com a melhor
ambiente, preservando aquilo que os nossos antepassados nos legaram.

CONCLUSÃO

Por tudo isto é forçoso afirmar que a ilha não se reduz apenas à sua dimensão geográfica.
À sua volta palpita um mundo que gera múltiplas conexões e que não pode ser descurado
sob pena de estarmos a atraiçoar o próprio devir histórico. Há que rasgar o casulo da ilha
e postar-se nas torres avista-navios donde se vislumbra o imenso firmamento que nos
conduz a outras ilhas e novos continentes. Todavia, isto só será possível quando
ultrapassarmos a fase do egocentrismo que nos amarra e mergulharmos na profundeza do
Atlântico à busca da atlanticidade.

Se tomarmos alguns dos temas comuns da nossa história- o vinho, o açúcar e a


escravatura- seremos forçados a concluir que foram eles. em boa parte, os responsáveis
por esta opção atlântica da Madeira e que nos obrigam sempre e em qualquer momento a
dar atenção ao meio envolvente. As rotas comerciais, os mercados europeu e colonial, e,
acima de tudo, o oceano funcionam como um mar aberto.

A História insular carece de uma revolução temática, o chamado território do historiador


precisa de ser alargado além dos “solos” ricos e tradicionais. Outros domínios surgiram
nas últimas décadas que apelam a uma maior atenção. A par disso o ofício de historiador
precisa de ser dignificado a partir da perícia no manejo dos seus instrumentos de trabalho.

Por outro lado a História Insular e, acima de tudo, madeirense por tudo aquilo que deu ao
devir histórico europeu e português precisa de ser reconhecida e figurar com o destaque
que merece. As ausências das histórias gerais e dos manuais não podem hoje ser
justificadas por falta de matéria. As ilhas fizeram nos últimos anos um desusado esforço

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