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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

15
abril
2009
ano II

ficina

Prometeu
e o mito da criação
da Mulher
SAMIZDAT 15
abril de 2009

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral Mês passado, nós, da Revista SAMIZDAT adotamos uma


Joaquim Bispo estratégia de divulgação mais agressiva, o que nos fez atingir
um público mais amplo e nos forneceu, pela primeira vez,
alguns depoimentos para a Seção do Leitor.
Assessoria de Imprensa
Como é sempre feito tendo em vista este nosso leitor, este
Mariana Valle
esforço é recompensado com a certeza de que, aos poucos,
o temos cativado ao apresentarmos que há de melhor na
Autores Literatura, em língua portuguesa e estrangeira, e também o
Carlos Alberto Barros excelente trabalho desta nova geração de escritores que aci-
dentalmente se encontrou na internet.
Dênis Moura
Esta estratégia de divulgação continuará em vigor, man-
Giselle Natsu Sato
tendo o verdadeiro espírito das samizdats, que é circular de
Guilherme Rodrigues mãos em mãos, propagando aquilo que merece, ou precisa,
Henry Alfred Bugalho ser lido.
Joaquim Bispo E também é com grande satisfação que anunciamos a par-
José Espírito Santo ticipação fixa da escritora carioca Mariana Valle, que chegou
cheia de energia e já assumiu a assessoria de imprensa da
Léo Borges
Revista SAMIZDAT.
Marcia Szajnbok
Maria de Fátima Santos Henry Alfred Bugalho
Mariana Valle
Maristela Scheuer Deves
Volmar Camargo Junior

Autores Convidados
Tulio Rodrigues

Textos de: Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada


a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Henriqueta Lisboa
Hesíodo
Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
free ou sob licença Creative Commons.
Machado de Assis
Os textos publicados são de domínio público, com consenso
ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-
Imagem da capa: mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de
http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/ Copryright dos EUA (§107-112).
baburen/prometheus/prometheus.jpg As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
autores.
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Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

Seção do Leitor 8

COMUNICADO
SAMIZDAT Especial - Humor 10

ENTREVISTA
Marcos Fernando Kirst 12

MICROCONTOS
Marcia Szajnbok 18
Henry Alfred Bugalho 18
Carlos Alberto Barros 20
Volmar Camargo Junior 20
Joaquim Bispo 21

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Milorad Pávitch, o engenhoso 22
Henry Alfred Bugalho

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


Frei Simão 24
Machado de Assis

Henriqueta Lisboa: o modernismo


remodelado pela timidez 32

CONTOS
Duas Mulheres, Duas Estradas 36
Carlos Alberto Barros

A como está o carapau 40


Maria de Fátima Santos
Chave de ouro 42
Volmar Camargo Junior

O Atraso da Primavera 44
Joaquim Bispo
A Busca 48
Henry Alfred Bugalho
Piso 23 50
José Espírito Santo
O Anômalo 54
Léo Borges
O Amor segundo o Ódio 57
Léo Borges
Tentativas de Existência 57
Léo Borges
Jogo da Memória 58
Marcia Szajnbok
O Admirador - Parte 1: as coroas 60
Maristela Deves

Autor Convidado
Sonetos 62
Tulio Rodrigues

TRADUÇÃO
Hesíodo e a vida do homem comum 64
Henry Alfred Bugalho
O Mito de Prometeu - Teogonia 66
Hesíodo

TEORIA LITERÁRIA
A Arte de Trair 70
Henry Alfred Bugalho

CRÔNICA
Nós, mulheres, as eternas insatisfeitas 74
Maristela Scheuer Deves
As incongruências do “né?” 76
Léo Borges
Monumento ao vandalismo 78
Joaquim Bispo

Livin’ in America: Obama, o 44º Presidente


Branco 80
Henry Alfred Bugalho

No Confessionário 83
Mariana Valle

Gauderiadas I 85
Volmar Camargo Junior

Solidão a dois em tempos de crise 86


Giselle Natsu Sato

POESIA
Laboratório Poético: A Narração na Poesia 88
Volmar Camargo Junior
Meu Amor 90
Guilherme Augusto Rodrigues
Palavras Inúteis 91
Mariana Valle
Poemas 92
José Espírito Santo
Eterníndia 94
Dênis Moura
saudade 95
Maria de Fátima Santos

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 96


Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiram,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

www.revistaamizdat.com 7
Seção do Leitor

SEÇÃO DO LEITOR
O leitor da Revista SAMIZDAT também pode colaborar com a elabora-
ção da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da
revista: Resenha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa,
Tradução e Autor Convidado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@gmail.com

8 SAMIZDAT abril de 2009


8
Dei uma folheada na Samizdat, número 14 que você enviou por e-
mail e achei muito legal. Como não ainda não li nenhum artigo, posso
falar do visual, que gostei bastante.
A propaganda da oficina, que evoca uma oficina de trabalho
­manual ficou muito boa, na minha opinião.
As imagens são sempre muito boas e a entrevista com o Marcelo
Duarte do Guia dos Curiosos é uma prova de que vocês tem o "dom".
Principalmente, vocês têm o "dom" de fazer uma coisa linda com
"dinheiro zero".
É impressionante!
Naldo Gomes

Queria somente dar os meus parabéns pela revista. Independente-


mente do ­conteúdo (também ele extremamente interessante), o concei-
to é espantoso e essencial, revelando um aproveitamento profícuo da
internet e de todas as suas potencialidades. A tarefa fundamental do
escritor é chegar aos potenciais leitores. É útil, enquanto postura de
divulgação, mas é, acima de tudo, ético: o chegar aos leitores tem que
estar acima de quaisquer considerações financeiras.

Os parabéns de um novo leitor português


Luis Tereso

Muito obrigado pela informaçäo sobre a revista Samizdat.


http://www.flickr.com/photos/adrianclarkmbbs/3041954566/sizes/l/

Meu português é precário, mas eu estou interessado em praticar.


Tambem sempre quis conhecer mais sobre literatura brasileira contem-
porânea. Estou pendente com novas atualizações.
Héctor Torres / Editor
FICCIÓN BREVE VENEZOLANA
www.ficcionbreve.org

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Comunicado

SAMIZDAT Especial

Humor
10 SAMIZDAT abril de 2009
10
O lugar onde

Estamos preparan- tos mais extensos do que a boa Literatura


do a quarta edição do umas 2500 palavras.
­SAMIZDAT Especial, é fabricada
contemplando o gênero 5 - Por se tratar duma
­Humor. obra de divulgação, não
serão pagos direitos
1 - Todos os colabora- autorais. A publicação e
dores fixos do E-Zine po- a distribuição do E-Zine
dem participar e sugerir não acarretará, tampouco,
autores colaboradores; em custos para os autores
participantes.
2 - Também serão
aceitos textos enviado vo- 6 - A SAMIZDAT
luntariamente por autores ­ special - Humor será
E
externos, para as seguin- publicada durante o mês
tes seções do E-Zine: de maio no blog, e na
edição em .PDF em 1 de
a - Resenha de Livros; junho. Por isto, solicita-se
aos autores interessados

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
b - Teoria Literária ou que entrem em contato
do Humor; até o final de abril, atra-
vés do e-mail
c - Autor convidado
(prosa ou poesia); revistasamizdat@hotmail.com

d - Traduções; Indicando, no assunto


do e-mail, SAMIZDAT
e - Crônicas; Especial 4, e em qual se-
ção o texto se enquadra
f - caricaturas ou char-
(ver item 2).
ges.

3 - Serão seleciona-
dos, ao todo, entre 3 e Abraços a todos,
http://www.flickr.com/photos/billselak/1043526089/sizes/l/

5 textos para cada uma


das seções acima, mas a Equipe da SAMIZDAT
edição do E-Zine possui o
direito de selecionar mais www.revistasamizdat.com
ou menos obras.

4 - Não há limites
de palavras, mas como
se trata duma publica-
ção voltada para o meio
digital, solicita-se que ficina
não sejam enviados tex-
www.oficinaeditora.org

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Entrevista

Marcos Fernando Kirst


Marcos Fernando Kirst
Nascido em Ijuí (RS), Marcos
Fernando Kirst cursou Jornalismo
na Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) e trabalhou em
vários jornais, entre eles A Ra-
zão, em Santa Maria, e Pioneiro,
em Caxias do Sul. Atualmente
colabora com a revista Acontece e
o jornal Informante (Farroupilha).
Também desenvolve trabalhos edi-
toriais para a editora Belas-Letras,
de Caxias do Sul.
Em outubro de 2008, lançou na
Feira do Livro de Caxias do Sul
o livro infantil O Gato Que Não
Sabia de Nada, que trata de um
gato com crise de identidade: não
sabe se é gato, se é cachorro ou se
faz parte de uma pilha de livros.
A aventura, narrada pelo gatinho
Bioy, é a estréia de Kirst em livro
de ficção. A obra ficou entre as
mais vendidas da feira. Na seqüên-
cia, o autor integrou a programa-
ção de eventos relativos às Feiras
de Livros (lançamento, sessões de
autógrafos e bate-papos literários) Samizdat: Qual é o segredo nenhum a par-
nas cidades gaúchas de Farroupi- maior desafio ao escre- tir do momento em que
lha, Ijuí e Porto Alegre. ver para crianças? você se propõe a fazer
Marcos Fernando Kirst: isto de uma forma hones-
Antes desse livro, Kirst participou
O maior desafio é en- ta, de espírito aberto, e
de antologias, venceu concursos
contrar o tom certo. É curtindo narrar da mes-
literários e publicou o livro A
conseguir escrever sem ma forma como imagina
História nas Estantes – 60 Anos da
ser professoral – o que te que os jovens leitores vão
Biblioteca Pública Municipal Dr.
Demetrio Niederauer. distancia do público-alvo curtir ao ler o que você
– e sem escorregar para escreveu. Acho que a sin-
um tom infantilizado – o tonia acaba acontecendo
que te faz parecer tolo é aí, na curtição.
aos olhos deste mesmo
público-alvo. Escrever Samizdat: O nome do
para crianças, na verdade, narrador do livro O
acaba não escondendo Gato que não sabia de

12 SAMIZDAT abril de 2009


12
nada é uma homena- induz a pensar que to-
gem ao escritor argen- dos são iguais e reagem
tino Bioy Casares, ou é da mesma maneira aos
mera coincidência? mesmos estímulos. Já tive
Marcos Fernando Kirst: muitos gatos na vida, e
É deliberado. Adolfo Bioy sei que cada um foi (e é)
Casares é um de meus único. Bioy não foi o pri-
ícones literários, apre- meiro gato de estimação
cio muito os contos e a me inspirar em minhas
romances escritos por criações literárias. Quan-
ele, assim como também do adolescente e ainda
aprecio muito a obra do morador na minha Ijuí
grande amigo dele, Jorge natal, tinha um gato cha-
Luis Borges. Borges pos- mado Fips, que se instala-
suía um gato chamado va no parapeito da janela
Beppo. Quando ganha- de meu quarto durante
mos um gato lá em casa, as tardes quentes e ficava
falei para minha esposa me observando desenhar
que gostaria de chamá- e criar histórias em qua- meu hábito de consumir
lo de Bioy, pois, uma vez drinhos, que eu produzia leitura desde que me
que não escrevo com a ajoelhado ao lado da conheço por gente. Des-
genialidade de Borges, cama, sobre a qual dis- de criança, lia histórias
pelo menos poderia pas- punha folhas em branco em quadrinhos e depois
sar a ter um amigo com e desenhava com canetas criava minhas próprias
o mesmo nome do que o hidrocor. O Bioy do livro histórias, com meus
dele. No final das contas, é basicamente inspirado próprios personagens,
o gato Bioy de verdade no Bioy que reina lá em meus próprios enredos.
inspirou o gato Bioy do casa, amalgamado com Fui crescendo, vieram os
livro. Consegui me asse- características de alguns livros e comecei a produ-
melhar a Borges por vias outros gatos que tive. zir narrativas ficcionais.
indiretas: assim como ele, Mas acho ele uma cria- Entre os 14 e os 16 anos,
também tenho um amigo ção única, e vejo que ele escrevi três livros infan-
chamado Bioy que me se sente, guardadas as to-juvenis, um a cada
inspira na literatura. devidas proporções, hu- ano. Todos devidamente
milde mas confortável no engavetados, pois eram
mundo felino da ficção treinamentos para o que
Samizdat: Gatos são ao lado de Tom, Gar- estava por vir. Chegou a
animais imprevisíveis, field, Félix, Manda-Chuva, juventude e comecei a
destruidores e apaixo- Ronrom (o gato do Pato escrever contos, com os
nantes. Além de seu Donald, lembram?), Mati- quais, ao longo dos anos,
próprio gato, há algum nhos (o gato das Aristo- fui ganhando vários prê-
“gato de ficção” que o gatas) e tantos outros. mios literários, em Santa
inspirou para criar o Maria e em Caxias do
Bioy? Sul. Escrever ficção, por-
Samizdat: Ainda sobre
Marcos Fernando Kirst: inspiração: como você tanto, faz parte de minha
O universo felino é mui- escreve ficção? Há uma essência pessoal. Escrevo
to rico, criativo e sutil. programação? muito e engaveto muito.
Gatos têm personalidade Acredito que agora, com
própria, não concordo Marcos Fernando Kirst: a maturidade, começa
com o conceito de “to- O ato de produzir fic- a chegar o momento
dos os gatos: o gato”, que ção está casado com de trazer à luz algumas

www.revistasamizdat.com 13
destas coisas, algumas e não fazem nenhuma
delas após submetidas ao exigência de “moral no
óbvio e necessário pro- final”. Quem exige isto
cesso de reescrita. Tenho são os adultos (alguns),
dois romances inéditos e acabam impondo esta
escritos há poucos anos condição para as artes
esperando a hora de voltadas às crianças. É a
nascerem oficialmente. mesma coisa que, no uni-
Estou desenvolvendo dois verso adulto, exigir po-
livros de crônicas temá- sicionamento e reflexão
ticas, ambos quase finali- política nas obras de arte.
zados, e outro juvenil de Arte é arte, e não “tem
aventuras também quase que” nada. Arte precisa,
pronto. E muitos projetos sim, causar prazer estéti-
literários já delineados co, e ponto final. Música,
para irem sendo traba- escultura, teatro, cinema,
lhados ao longo dos anos. dança, literatura e to-
Produzo ficção sempre das as artes têm uma só
que acontece o que cha- obrigação: tocar a alma,
mo de “conjunção astral encantar. Se um autor de-
literária favorável”, que se sejar usar alguma espécie
concretiza no momento de arte para passar deter- acha delas?
em que estou com von- minada mensagem espe-
Marcos Fernando Kirst:
tade de escrever, tenho o cífica, ótimo, vá em fren-
Conheço as obras e as-
tempo necessário e surge te, é um formato válido.
sisti aos filmes derivados
um tema instigante. São Mas não é uma exigência
delas, sei do que tratam
conjunções raras e, quan- intrínseca ao ato de fazer
e de como seus autores
do acontecem, procuro arte. As artes não têm a
escrevem. O velho cli-
aproveitá-las ao máximo. obrigação de serem enga-
chê maniqueísta do bem
jadas a nada. Independen-
contra o mal permeia a
temente da faixa etária
Samizdat: Com a honro- literatura (o cinema e a
a que se destinam. Da
sa exceção do Menino televisão também) desde
mesma forma, a literatura
Maluquinho, a maioria sempre, e não vai mu-
dita infantil tem uma só
dos livros para crianças dar, pois é uma fórmula
obrigação: encantar seus
ainda segue a ideologia de sucesso fácil. Nós,
leitores. Se conseguir fa-
das fábulas, com uma seres humanos, somos
zer isto, estará já fazendo
“moral da história” e maniqueístas, basta ver
muito, pois estará tocan-
tal... Será que dá pra que julgamos o mundo
do almas, abrindo olhos,
escrever para crianças a partir de nossa pró-
revelando universos.
sem cair nessa panfle- pria visão pessoal dele,
tagem moral? Será que na qual, invariavelmente,
criança curte literatura Samizdat: Pensando nós estamos certos (so-
pela literatura? num público mais juve- mos o bem) e os outros
nil, o sucesso das séries e o mundo estão sempre
Marcos Fernando Kirst:
Harry Potter e Desven- errados (representam o
Tenho certeza absoluta
turas em Série parece mal). Por isto, histórias
de que criança – talvez
colar no bom e velho em que o Bem (os moci-
até mais do que adultos
bem contra o mal e no nhos) e o Mal (os vilões)
– curte literatura pela
desafio de ler sempre o são claramente identi-
literatura. Na verdade,
próximo volume. Você ficáveis fazem, sempre
crianças curtem histórias,
leu essas obras? O que fizeram e sempre farão

14 SAMIZDAT abril de 2009


14
muito sucesso (talvez de um fôlego só, sabem a infanto-juvenil avalia-
resida neste aspecto uma história de cor, conhecem do pela editora caxien-
das explicações para o os personagens, e, o mais se Belas-Letras e obtido
sucesso de programas te- interessante, querem que um parecer favorável,
levisivos como o Big Bro- as aventuras do gatinho que motivou a editora
ther: as pessoas assistem prossigam em mais li- a apostar em mim e na
para tentar classificar os vros. obra. Mas é um fato raro
bons e os maus da casa). dentro do amplo espec-
De qualquer forma, estas tro do mercado editorial
obras acabam repassando Samizdat: Faço a mesma brasileiro.
valores éticos, o que, no pergunta que você fez
final das contas, é louvá- ao professor Donaldo
vel. O fato de serem es- Schüller: “Como o se- Samizdat: Procurando
critas de forma a induzir nhor caracteriza o atual por seu nome no Goo-
à continuidade da leitura momento do mercado gle, um dos primeiros
nos próximos volumes editorial brasileiro?” links é uma crônica/
tem o lado positivo de Marcos Fernando Kirst: conto intitulado Uma
ajudar a formar o hábito Tenho de fazer esta aná- rapidinha no Caminho
da leitura, o que é muito lise sob dois aspectos. de Santiago, para a zine
bom, quando atingido o Primeiro, na condição de O Caixote (http://www.
propósito. Não vejo pro- leitor, o mercado editorial ocaixote.com.br/caixo-
blemas. brasileiro jamais viveu te09/cx09_cronicas_
período tão fértil. Temos kirst.html). Esse Marcos
à disposição, nas livrarias, Kirst é você ou é outro?
Samizdat: Dizem que o livros de todos os tipos, Marcos Fernando Kirst:
público infantil é bas- para todos os gostos, É outro, é um homônimo.
tante honesto em rela- traduzidos de todas as Mora em São Paulo, é
ção aos seus gostos: ou partes do mundo. Te- mais velho do que eu e,
uma criança gosta ou mos à disposição o que inclusive, é parente (pri-
não gosta. Como você há de novo e moderno mo de meu pai). O nome
percebe a receptividade sendo feito lá fora, assim dele, aliás, é Erlon Marcos
das crianças, seu públi- como os clássicos, muitas Kirst, mas ele está usando
co-alvo, ao seu livro? vezes com novas tradu- só o segundo nome e o
Marcos Fernando Kirst: ções e edições revistas e sobrenome. Por isso mes-
São honestíssimas quanto ampliadas. Não dá para mo é que faço questão de
a isto. Tenho tido a enri- se queixar. Já enquanto usar sempre meu nome
quecedora experiência de autor, a dificuldade é a de completo: Marcos Fernan-
realizar bate-papos com sempre: conseguir colo- do Kirst, para diferenciar.
crianças em salas de aula car um livro inédito de
em função do livro, e elas sua autoria no mercado é
são incrivelmente críti- uma dificuldade hercúlea. Samizdat: Que impor-
cas, questionadoras. Na As editoras não apos- tância têm os concur-
maioria das vezes, leram tam em desconhecidos, sos na carreira de um
o livro e têm reflexões a apesar do discurso feito novel escritor? Dão-lhe
compartilhar a respeito “pró-mídia” de que estão visibilidade, traquejo
da obra, perguntas a fazer constantemente à procura de escrita, domínio do
que muitas vezes me de novos talentos. Balela. stress, hábitos de rigor,
deixam divertidamente Salvo, é claro, as exceções ou o quê?
“acuado”. Mas a recepti- de praxe. No meu caso, Marcos Fernando Kirst:
vidade tem sido ótima. tive a sorte de ter tido Os concursos servem
As crianças lêem o livro o original do meu livro principalmente para dar

www.revistasamizdat.com 15
um norte mais oficial que não sabia de nada, repercussão muito maior,
para a pretensa carreira como você avalia a re- imprevisível, imensurável
de um pretenso escritor. percussão de obras de e indomável, justamente
Ao ser premiado, teu ficção e não-ficção no por ser absolutamente
texto passa, incógnito, público leitor? universal. Identificam-se
pelo crivo de um júri (a Marcos Fernando Kirst: com o livro pessoas de
princípio) gabaritado, que Falo a partir de minha todas as idades, não ape-
o analisou e o classificou (ainda singela) experiên- nas crianças, além de dia-
tanto por seus méritos cia em termos de pu- logar também com qual-
literários em si quanto blicação de obras (duas, quer pessoa que goste de
em relação aos demais exatamente as que citaste) animais de estimação. O
concorrentes. É a prova nestas duas áreas. O pri- segredo, no entanto, para
de que, afinal, aquilo que meiro livro, lançado em ambas as obras, tanto as
você escreve tem algum 2007, dirigia-se a um pú- de ficção quanto para as
valor capaz de atingir a blico específico, interessa- de não-ficção, é, além de
leitores que não te conhe- do em conhecer a histó- encontrar um tema ab-
cem. Mostra que você, ria da Biblioteca Pública sorvente, conseguir de-
mal ou bem, iniciante ou Municipal de Caxias do senvolver uma narrativa
não, tem uma voz literá- Sul. Apesar de que, ao que prenda a atenção do
ria, que fala e consegue redigir o texto, procurei leitor. Acho que consegui
ser ouvida por outros. não produzir uma obra alcançar o objetivo nas
Confere segurança, in- enfadonha e cronológica, duas obras.
centiva uma pretensão. pelo contrário: escrevi
Mas infelizmente, os de forma a transformar
concursos, atualmente, a própria biblioteca em
muitas vezes, morrem personagem, na qual con-
neles mesmos. A impren- vivem e coabitam outros
sa, via de regra, ignora o personagens interessan-
trabalho dos vencedores tes, ou seja, os livros, os
e raramente as obras pre- leitores e os funcionários.
miadas chegam ao públi- Apesar de partir das
co de forma mais ampla. características específicas
Noticia-se os vencedores da biblioteca caxiense,
anuais dos concursos fiz um livro com o qual
com notinhas de rodapé pode se identificar qual-
e pronto, cumpre-se com quer frequentador de Coordenação da entrevista:
a obrigação. A estrada do qualquer biblioteca do Maristela S. Deves
pretenso futuro escritor, país e do mundo. Até por
mesmo com os concur- causa do título, a obra
sos, continuará sendo pe- ficou mais limitada e, Perguntas feitas por:
dregosa. E talvez até seja mesmo assim, cumpriu
positivo que seja assim, seu papel, o de marcar Henry Alfred Bugalho
afinal, nada cai do céu. um momento histórico, Marcia Szajnbok
alcançando a repercus- Volmar Camargo Junior
Samizdat: Fazendo uma são que tinha possibi-
comparação entre seus lidades de obter dentro Joaquim Bispo
livros A História nas da limitação de tema e Carlos Barros
Estantes – 60 Anos da momento a que se sub-
Biblioteca Pública Mu- metia. Já o livro ficcional
nicipal Dr. Demetrio sobre o gato, lançado em
Niederauer e O gato 2008, tem alcançado uma

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16
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.revistasamizdat.com 17

www.oficinaeditora.org
Microcontos

Filho de peixe,
Peixinho é
Reprise

http://www.flickr.com/photos/yeenoghu/204251889/sizes/o/
Marcia Szajnbok
Cresceu apanhando. Todo santo dia o pai chegava bêba-
do, fedendo a cigarro e a perfume barato de puta, tirava a
cinta e lascava todo mundo, começando pela mãe e termi-
nando sempre nele, o caçula. Nas poucas vezes que tentou
se defender, veio logo o tapa na cara e o grito:-
Cala a boca! Você é o último que fala e o primeiro que
apanha!
Anos a fio o ódio fermentando no cadinho do coração,
crescendo, crescendo...Um dia arrumou uma moça, resol-
veu casar. Na festa de casamento, encheu a cara. Quando
foi se deitar com ela, a noiva fez cara de nojo diante do
cheiro de cerveja e cigarro. Não teve dúvida: tirou a cinta,
e começou a bater ali mesmo, em plena lua-de-mel.

Um gênio da música
http://www.flickr.com/photos/blmurch/428349468/sizes/l/

Henry Alfred Bugalho


Ele queria ter sido músico.
Aulas de piano quando criança, tocava guitarra com
uma bandinha de garagem na adolescência, mas ele cres-
ceu e o sonho cedeu espaço à realidade: ele nem era tão
bom assim...
Mas o filho tinha talento, ao seis anos já ganhava um
concurso de música. Um pouco já maiorzinho, trouxe
para o pai os cadernos repletos de composições, coisas de
gênio.
Cheio de inveja, o pai disse:
— Ih, filho, tudo porcaria. Se eu fosse você, largava isto
de querer ser músico.
O filho obedeceu. Chateado, mas acreditou no sábio
parecer.
Hoje, é mecânico na oficina do pai. Suas composições
abarrotam gavetas e baús, porcarias escondidas dum gê-
nio.

http://www.flickr.com/photos/15302763@N04/3157820748/

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Negócio de família
Henry Alfred Bugalho

http://www.flickr.com/photos/pierofix/1353521365/
Pai e filho sentados à mesa de jantar.
— Você vai ser médico, assim como eu, seu avô, seu bisavô, assim
como seus tios e irmãos.

Dia seguinte, na construção abandonada no final da rua, o filho diz


para as três colegas da escola:
— Vão tirando a roupa!
— Por quê? — elas retrucam.
Risinho safado do garoto.
— Primeira aula de Anatomia.

Uma carreira de
sucesso
Henry Alfred Bugalho
O filho era uma bicha. Ator e bicha. Destino pior não
existia.
Tinha vergonha dele na rua: o que seus amigos iriam
dizer do filho bichola afetada quebrando o pulso e rebo-
lando?
Expulsou-o de casa aos dezesseis anos e não teve mais
notícias.
Então, surgiram os rumores e, por fim, a confirmação: o
filho seria o protagonista da próxima novela das oito.
Toda família se reuniu para assistir ao primeiro capítu-
lo.
Assim que o filho apareceu na tela da TV, o pai, enxu-
gando as lágrimas:

— Que orgulho do meu filhão!

Beleza genética
Henry Alfred Bugalho
A mãe, Miss Universo em 1988.
A filha, campeã de boquete universitário em 2009.

http://www.flickr.com/photos/15302763@N04/3157820748/

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Benjamin Button e
seu filho
Carlos Alberto Barros

- Papai, quando crescer, serei como o senhor!


- E eu, como você, meu filho...

Mais famosos e seus


filhos
Volmar Camargo Junior

Hannibal Lecter e seu filho


- Papai, quando crescer, serei como o senhor!
- E eu como você, meu filho...

Michael Jackson e seu filho


- Papai, quando crescer, serei como o senhor!
- E eu como você, meu filho...

Assunto encerrado
Volmar Camargo Junior

- Mãe, quem é esse homem que acabou de sair pela janela?


- É o mesmo que estava no seu quarto ontem à noite.
- M-mãe... n-não tinha ninguém no meu quarto ontem à
noite.
- Exatamente, filhinha. Assunto encerrado.

http://www.flickr.com/photos/tragicendingtoabeautifulstory/2679869007/sizes/l/

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Alvorada
Joaquim Bispo

O mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-


se crispados, sobranceiros à aridez dum mar de dunas. As
areias estendiam-se, cálidas e mortíferas até ao horizonte. O
céu, ofuscante de branco, não concedia qualquer matiz, em
toda a abóbada exposta. Só o Sol ardente, a pique, presidia
sobre as coisas inanimadas.

Então, nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha


ínfima, por uma singularidade improvável, formou-se uma
nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a
sua essência e formou um pensamento.
E um manto verde cobriu a terra inteira.

Crepúsculo

http://www.flickr.com/photos/suvcougar/913593933/sizes/o/
Joaquim Bispo

– As informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu


variações dramáticas nos últimos ciclos. As grandes quantidades de poeiras,
fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a atmosfera, foram
imperceptivelmente criando uma capa que, deixando penetrar muita radia-
ção, constituía um obstáculo à sua libertação para o espaço. Isso provocou
um aquecimento progressivo que fez derreter as calotes polares, aumentou
exponencialmente a evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios
que devastaram as florestas das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto vapor
de água na atmosfera começou a impedir a luz solar visual de chegar ao
solo, mas que continuava a deixar penetrar a radiação infra-vermelha. Sem
luz solar, a fotossíntese deixou de se fazer. As plantas morreram e os que
delas se alimentavam. O calor tornou a vida impossível à maior parte das
espécies, até às latitudes polares. Os organismos ficaram literalmente estufa-
dos. Neste mundo escuro e escaldante, medram fungos de todas as espécies,
que dispõem de muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da
espécie dominante – os 50 milhões que restam – retiraram-se para junto dos
pólos. Chamam Novo Mundo ao continente situado no pólo sul. Creio que
estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.

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Recomendações de Leitura

http://www.khazars.com/galerija/pavic-mihajlovic015.jpg
Henry Alfred Bugalho

Milorad Pávitch,
o engenhoso
O termo literatura er- Exemplos de obras er-
gódica foi cunhado, ini- gódicas há vários, desde o
cialmente, pelo teórico da livro oracular “I-Ching” até
literatura (apesar de que “Fogo Pálido” de Nabokov,
“ludologista” classificaria mesmo que para, Aarseth,
melhor sua área de pesqui- os melhores exemplos do
sa) Espen Aarseth. Em linha gênero se desenvolveram
gerais, literatura ergódica e predominam no mundo
remete-se àquela forma digital, como os jogos de
narrativa que exige do computadores, que através
leitor um esforço não-con- de várias linhas narrativas,
Dictionary of the Khazars vencional, ou seja, diferente possuem o desempenho
Autor: Milorad Pavić do processo trivial de ler definido pelas escolhas dos
página após página. usuários.
Editora: Alfred A. Knopf

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Na verdade, a literatura dia, comparando verbetes
sempre namorou com esta cruzados, como no caso de
ruptura, a despeito de todas Kazares, ou Ateh.
Um detetive...
as dificuldades que tal es- Uma loira gostosa...
O estilo de Pávitch é bas-
forço não-trivial implica.
tante alegórico e, por vezes,
Um assassinato...
O autor sérvio Milo- surrealista. Há profundas
rad Pávitch é um dos que referências ao mundo dos
tomou para si a missão de sonhos e ao universo sim-
criar obras não-convencio- bólico, por vezes recaindo E o pau comendo entre
nais. Praticamente todos em metáforas de difícil as máfias italiana e
seus textos optam por ino- apreensão. chinesa.
­
vações técnicas de modo a
Este autor desenvolveu
tornar o leitor mais do que
outras obras ergódicas,
mero receptor, mas uma es-
como “Paisagem Pintada
pécie de co-autor, ao decidir
com Chá” composta em for-
quais caminhos prosseguir
na leitura.
ma de palavra-cruzada, “O O Covil
Lado de Dentro do Vento”
O primeiro dos roman-
ces de Pávitch, “O Dicioná-
que pode ser lido tanto do
começo ao fim quanto de
dos
rio dos Kazares” não esca-
pa desta proposta. Neste
trás para a frente, “Último
Amor em Constantinopla” Inocentes
romance, Pávitch narra a que possui capítulos nu-
história dos Kazares, um merados de acordo com as www.covildosinocentes.blogspot.com
povo que teria vivido entre cartas de tarô e sugere ao
os séculos oitavo e décimo leitor que jogue as cartas
na região do Cáucaso, e da para saber qual capítulo ler.
mítica conversão deles a Mesmo os contos do autor
uma das três grandes religi- disponíveis online seguem
ões basilares: o cristianismo, esta orientação, cabendo
o islamismo, ou o judaísmo. ao leitor escolher os ru-
mos da história através de
Apesar de não haver um hiperlinks (forma conhecida
enredo definível, o livro é como hiperficção).
composto de três grandes
partes, nas quais os Kazares A grande contribuição
são investigados, através de de Milorad Pávitch reside
verbetes como os de uma justamente neste ímpe-
enciclopédia, à luz destas to em renovar e explorar
grandes religiões, e em cada os limites da literatura,
uma destas partes temos e encontrar alternativas
a defesa da conversão às criativas para compôr algo
respetivas religiões. interessante, não apenas
em conteúdo, mas também do
Deste modo, o leitor w
formalmente.
gr nl
pode transitar entre as três át
oa
versões desta enciclopé- is d

www.revistasamizdat.com 23
Autor em Língua Portuguesa

Frei Simão
Machado de Assis

http://www.flickr.com/photos/cactusbones/76928028/sizes/o/

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Publicado originalmente urso, que lhe ficou, mas o travesseiro e passou à
em Jornal das Famílias, só entre os noviços, bem eternidade.
em 1864, integra a obra entendido. Os frades
Depois de feitas ao
“Contos Fluminenses” professos, esses, apesar
irmão finado as honras
do desgosto que o gênio
I que se lhe deviam, a co-
solitário de frei Simão
munidade perguntou ao
Frei Simão era um lhes inspirava, sentiam
seu chefe que palavras
frade da ordem dos Be- por ele certo respeito e
ouvira tão sinistras que
neditinos. Tinha, quando veneração.
o assustaram. O abade
morreu, cinqüenta anos
Um dia anuncia-se referiu-as, persignando-
em aparência, mas na
que frei Simão adoecera se. Mas os frades não
realidade trinta e oito.
gravemente. Chamaram- viram nessas palavras
A causa desta velhice
se os socorros e presta- senão um segredo do
prematura derivava da
ram ao enfermo todos passado, sem dúvida
que o levou ao claustro
os cuidados necessários. importante, mas não tal
na idade de trinta anos,
A moléstia era mortal; que pudesse lançar o ter-
e, tanto quanto se pode
depois de cinco dias frei ror no espírito do abade.
saber por uns fragmen-
Simão expirou. Este explicou-lhes a idéia
tos de memórias que ele
que tivera quando ouviu
deixou, a causa era justa. Durante estes cin-
as palavras de frei Simão,
co dias de moléstia, a
Era frei Simão de no tom em que foram
cela de frei Simão este-
caráter taciturno e des- ditas, e acompanha-
ve cheia de frades. Frei
confiado. Passava dias das do olhar com que
Simão não disse uma
inteiros na sua cela, de o fulminou: acreditara
palavra durante esses
onde apenas saía na hora que frei Simão estivesse
cinco dias; só no último,
do refeitório e dos ofí- doido; mais ainda, que
quando se aproximava o
cios divinos. Não conta- tivesse entrado já doido
minuto fatal, sentou-se
va amizade alguma no para a ordem. Os hábi-
no leito, fez chamar para
convento, porque não tos da solidão e tacitur-
mais perto o abade, e
era possível entreter com nidade a que se votara o
disse-lhe ao ouvido com
ele os preliminares que frade pareciam sintomas
voz sufocada e em tom
fundam e consolidam as de uma alienação mental
estranho:
afeições. de caráter brando e pa-
— Morro odiando a cífico; mas durante oito
Em um convento, onde anos parecia impossível
humanidade!
a comunhão das almas aos frades que frei Simão
deve ser mais pronta O abade recuou até não tivesse um dia reve-
e mais profunda, frei a parede ao ouvir estas lado de modo positivo a
Simão parecia fugir à palavras, e no tom em sua loucura; objetaram
regra geral. Um dos no- que foram ditas. Quanto isso ao abade; mas este
viços pôs-lhe alcunha de a frei Simão, caiu sobre persistia na sua crença.

www.revistasamizdat.com 25
Entretanto procedeu- II vam ambos o casamento,
se ao inventário dos coisa que parece mais
As notas de frei Simão
objetos que pertenciam natural do mundo para
nada dizem do lugar do
ao finado, e entre eles corações amantes.
seu nascimento nem do
achou-se um rolo de
nome de seus pais. O Não tardou muito que
papéis convenientemen-
que se pôde saber dos os pais de Simão desco-
te enlaçados, com este
seus princípios é que, brissem o amor dos dois.
rótulo: Memórias que há
tendo concluído os es- Ora é preciso dizer, ape-
de escrever frei Simão
tudos preparatórios, não sar de não haver decla-
de Santa Águeda, frade
pôde seguir a carreira ração formal disto nos
beneditino.
das letras, como desejava,apontamentos do frade, é
Este rolo de papéis foi e foi obrigado a entrar preciso dizer que os re-
um grande achado para como guarda-livros na feridos pais eram de um
a comunidade curiosa. casa comercial de seu egoísmo descomunal.
Iam finalmente penetrar pai. Davam de boa vontade
alguma coisa no véu o pão da subsistência a
Morava então em casa
misterioso que envolvia Helena; mas lá casar o
de seu pai uma prima de
o passado de frei Simão, filho com a pobre órfã é
Simão, órfã de pai e mãe,
e talvez confirmar as que não podiam consen-
que haviam por morte
suspeitas do abade. O tir. Tinham posto a mira
deixado ao pai de Simão
rolo foi aberto e lido em uma herdeira rica, e
o cuidado de a educa-
para todos. dispunham de si para si
rem e manterem. Parece
que o rapaz se casaria
Eram, pela maior que os cabedais deste de-
com ela.
parte, fragmentos in- ram para isto. Quanto ao
completos, apontamentos pai da prima órfã, tendo Uma tarde, como esti-
truncados e notas insu- sido rico, perdera tudo vesse o rapaz a adiantar
ficientes; mas de tudo ao jogo e nos azares do a escrituração do livro-
junto pôde-se colher que comércio, ficando redu- mestre, entrou no escri-
realmente frei Simão zido à última miséria. tório o pai com ar grave
estivera louco durante e risonho ao mesmo
A órfã chamava-se
certo tempo. tempo, e disse ao filho
Helena; era bela, meiga
que largasse o trabalho e
O autor desta nar- e extremamente boa.
o ouvisse. O rapaz obe-
rativa despreza aquela Simão, que se educara
deceu. O pai falou assim:
parte das Memórias que com ela, e juntamente
não tiver absolutamente vivia debaixo do mesmo — Vais partir para a
importância; mas procu- teto, não pôde resistir província de ***. Preci-
ra aproveitar a que for às elevadas qualidades e so mandar umas cartas
menos inútil ou menos à beleza de sua prima. ao meu correspondente
obscura. Amaram-se. Em seus Amaral, e como sejam
sonhos de futuro conta- elas de grande importân-

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cia, não quero confiá-las pai de Simão conver- va os olhos secos e ar-
ao nosso desleixado cor- sou sobre a viagem do dentes. Era refratário às
reio. Queres ir no va- rapaz, que devia ser de lágrimas; por isso mes-
por ou preferes o nosso poucos dias. Isto reani- mo padecia mais.
brigue? mou as esperanças dos
O brigue partiu. Si-
dois amantes. O resto da
Esta pergunta era feita mão, enquanto pôde ver
noite passou-se em con-
com grande tino. terra, não se retirou de
selhos da parte do velho
cima; quando finalmente
Obrigado a responder- ao filho sobre a maneira
se fecharam de todo as
lhe, o velho comerciante de portar-se na casa do
paredes do cárcere que
não dera lugar a que seu correspondente. Às dez
anda, na frase pitoresca
filho apresentasse obje- horas, como de costume,
de Ribeyrolles, Simão
ções. todos se recolheram aos
desceu ao seu camarote,
aposentos.
O rapaz enfiou, abai- triste e com o coração
xou os olhos e respon- Os dias passaram-se apertado. Havia como
deu: depressa. Finalmente um pressentimento que
raiou aquele em que de- lhe dizia interiormente
— Vou onde meu pai via partir o brigue. He- ser impossível tornar a
quiser. lena saiu de seu quarto ver sua prima. Parecia
O pai agradeceu men- com os olhos vermelhos que ia para um degredo.
talmente a submissão do de chorar. Interrogada
Chegando ao lugar do
filho, que lhe poupava o bruscamente pela tia,
seu destino, procurou
dinheiro da passagem no disse que era uma infla-
Simão o correspondente
vapor, e foi muito con- mação adquirida pelo
de seu pai e entregou-
tente dar parte à mulher muito que lera na noite
lhe a carta. O sr. Amaral
de que o rapaz não fize- anterior. A tia prescre-
leu a carta, fitou o rapaz
ra objeção alguma. veu-lhe abstenção da
e, depois de algum silên-
leitura e banhos de água
Nessa noite os dois cio, disse-lhe, volvendo a
de malvas.
amantes tiveram ocasião carta:
de encontrar-se sós na Quanto ao tio, ten-
— Bem, agora é preci-
sala de jantar. do chamado Simão,
so esperar que eu cum-
entregou-lhe uma carta
Simão contou a Helena para o correspondente, e pra esta ordem de seu
o que se passara. Cho- pai. Entretanto venha
abraçou-o. A mala e um
raram ambos algumas morar para a minha
criado estavam prontos.
lágrimas furtivas, e fica- casa.
A despedida foi triste.
ram na esperança de que Os dois pais sempre — Quando poderei
a viagem fosse de um choraram alguma coisa, voltar? perguntou Simão.
mês, quando muito. a rapariga muito.
— Em poucos dias, sal-
À mesa do chá, o Quanto a Simão, leva- vo se as coisas se com-

www.revistasamizdat.com 27
plicarem. Entretanto, como o as cartas de Simão iam
espírito dos amantes não parar às mãos do velho,
Este salvo, posto na
é menos engenhoso que que, depois de apreciar
boca de Amaral como
o dos romancistas, Simão o estilo amoroso de seu
incidente, era a oração
e Helena acharam meio filho, fazia queimar as
principal. A carta do pai
de se escreverem, e deste ardentes epístolas.
de Simão versava assim:
modo podiam consolar-
Passaram-se dias e
Meu caro Amaral, se da ausência, com
meses. Carta de Helena,
presença das letras e do
Motivos ponde- nenhuma. O correspon-
papel. Bem diz Heloísa
rosos me obrigam a dente ia esgotando a veia
que a arte de escrever foi
mandar meu filho desta inventadora, e já não
inventada por alguma
cidade. Retenha-o por lá sabia como reter final-
amante separada do seu
como puder. O pretexto mente o rapaz.
amante. Nestas cartas
da viagem é ter eu ne- juravam-se os dois sua Chega uma carta a
cessidade de ultimar al- eterna fidelidade. Simão. Era letra do pai.
guns negócios com você,
Só diferençava das ou-
o que dirá ao pequeno, No fim de dois meses
tras que recebia do velho
fazendo-lhe sempre crer de espera baldada e de
em ser esta mais longa,
que a demora é pouca ativa correspondência,
muito mais longa. O
ou nenhuma. Você, que a tia de Helena surpre-
rapaz abriu a carta, e leu
teve na sua adolescência endeu uma carta de
trêmulo e pálido. Conta-
a triste idéia de engen- Simão. Era a vigésima,
va nesta carta o honrado
drar romances, vá inven- creio eu. Houve grande
comerciante que a He-
tando circunstâncias e temporal em casa. O tio,
lena, a boa rapariga que
ocorrências imprevistas, que estava no escritório,
ele destinava a ser sua
de modo que o rapaz saiu precipitadamente e
filha casando-se com Si-
não me torne cá antes tomou conhecimento do
mão, a boa Helena tinha
de segunda ordem. Sou, negócio. O resultado foi
morrido. O velho copia-
como sempre, etc. proscrever de casa tinta,
ra algum dos últimos
penas e papel, e instituir
necrológios que vira nos
vigilância rigorosa sobre
jornais, e ajuntara algu-
III a infeliz rapariga.
mas consolações de casa.
Passaram-se dias e Começaram pois a es- A última consolação foi
dias, e nada de chegar cassear as cartas ao po- dizer-lhe que embarcasse
o momento de voltar à bre deportado. Inquiriu e fosse ter com ele.
casa paterna. O ex-ro- a causa disto em cartas
O período final da
mancista era na verdade choradas e compridas;
carta dizia:
fértil, e não se cansava mas como o rigor fiscal
de inventar pretextos da casa de seu pai adqui- Assim como assim,
que deixavam convenci- ria proporções descomu- não se realizam os meus
do o rapaz. nais, acontecia que todas negócios; não te pude

28 SAMIZDAT abril de 2009


28
casar com Helena, visto pai que agradecia a filha resolução que tomou.
que Deus a levou. Mas do conselheiro, mas que Tinham vendido a casa
volta, filho, vem; poderás daquele dia em diante comercial e viviam de
consolar-te casando com pertencia ao serviço de suas rendas.
outra, a filha do con- Deus.
Receberam o filho
selheiro ***. Está moça
O pai ficou maravi- com alvoroço e verda-
feita e é um bom par-
lhado. Nunca suspeitou deiro amor. Depois das
tido. Não te desalentes;
que o filho pudesse vir lágrimas e das consola-
lembra-te de mim.
a ter semelhante resolu- ções, vieram ao fim da
O pai de Simão não ção. Escreveu às pressas viagem de Simão.
conhecia bem o amor para ver se o desviava
— A que vens tu, meu
do filho, nem era gran- da idéia; mas não pôde
filho?
de águia para avaliá-lo, conseguir.
ainda que o conhecesse. — Venho cumprir
Quanto ao correspon-
Dores tais não se conso- uma missão do sacerdó-
dente, para quem tudo
lam com uma carta nem cio que abracei. Venho
se embrulhava cada vez
com um casamento. Era pregar, para que o reba-
mais, deixou o rapaz
melhor mandá-lo cha- nho do Senhor não se
seguir para o claustro,
mar, e depois preparar- arrede nunca do bom
disposto a não figurar
lhe a notícia; mas dada caminho.
em um negócio do qual
assim friamente em uma
nada realmente sabia. — Aqui na capital?
carta, era expor o rapaz
a uma morte certa. IV — Não, no interior.
Ficou Simão vivo em Começo pela vila de ***.
Frei Simão de Santa
corpo e morto moral- Águeda foi obrigado a Os dois velhos estre-
mente, tão morto que ir à província natal em meceram; mas Simão
por sua própria idéia foi missão religiosa, tempos nada viu. No dia seguin-
dali procurar uma se- depois dos fatos que aca- te partiu Simão, não sem
pultura. Era melhor dar bo de narrar. algumas instâncias de
aqui alguns dos papéis seus pais para que ficas-
escritos por Simão rela- Preparou-se e embar-
se. Notaram eles que seu
tivamente ao que sofreu cou.
filho nem de leve tocara
depois da carta; mas há A missão não era na em Helena. Também eles
muitas falhas, e eu não capital, mas no interior. não quiseram magoá-lo
quero corrigir a exposi- Entrando na capital, pa- falando em tal assunto.
ção ingênua e sincera do receu-lhe dever ir visitar
frade. Daí a dias, na vila de
seus pais. Estavam muda-
que falara frei Simão, era
A sepultura que Si- dos física e moralmente.
um alvoroço para ouvir
mão escolheu foi um Era com certeza a dor
as prédicas do missioná-
convento. Respondeu ao e o remorso de terem
rio.
precipitado seu filho à

www.revistasamizdat.com 29
A velha igreja do lu- para a recém-chegada, samento de Helena fora
gar estava atopetada de que acabava de desmaiar. obrigado pelos tios.
povo. Frei Simão teve de parar
A pobre senhora não
o seu discurso, enquan-
À hora anunciada, frei resistiu à comoção. Dois
to se punha termo ao
Simão subiu ao púlpito meses depois morreu,
incidente. Mas, por uma
e começou o discurso deixando inconsolável
aberta que a turba deixa-
religioso. Metade do o marido, que a amava
va, pôde ele ver o rosto
povo saiu aborrecido no com veras.
da desmaiada.
meio do sermão. A razão
Frei Simão, recolhido
era simples. Avezado à Era Helena.
ao convento, tornou-se
pintura viva dos caldei-
No manuscrito do mais solitário e tacitur-
rões de Pedro Botelho
frade há uma série de no. Restava-lhe ainda
e outros pedacinhos de
reticências dispostas em um pouco da alienação.
ouro da maioria dos
oito linhas. Ele próprio
pregadores, o povo não Já conhecemos o acon-
não sabe o que se pas-
podia ouvir com prazer tecimento de sua morte
sou. Mas o que se passou
a linguagem simples, e a impressão que ela
foi que, mal conhecera
branda, persuasiva, a que causara ao abade.
Helena, continuou o
serviam de modelo as
frade o discurso. Era en- A cela de frei Simão
conferências do funda-
tão outra coisa: era um de Santa Águeda esteve
dor da nossa religião.
discurso sem nexo, sem muito tempo religio-
O pregador estava a assunto, um verdadeiro samente fechada. Só
terminar, quando en- delírio. A consternação se abriu, algum tempo
trou apressadamente na foi geral. depois, para dar entrada
igreja um par, marido e a um velho secular, que
V
mulher: ele, honrado la- por esmola alcançou
vrador, meio remediado O delírio de frei Si- do abade acabar os seus
com o sítio que possuía mão durou alguns dias. dias na convivência dos
e a boa vontade de tra- Graças aos cuidados, médicos da alma. Era
balhar; ela, senhora esti- pôde melhorar, e pareceu o pai de Simão. A mãe
mada por suas virtudes, a todos que estava bom, tinha morrido.
mas de uma melancolia menos ao médico, que
invencível. Foi crença, nos últi-
queria continuar a cura.
mos anos de vida deste
Mas o frade disse positi-
Depois de tomarem velho, que ele não estava
vamente que se retirava
água-benta, colocaram-se menos doido que frei
ao convento, e não houve
ambos em lugar de onde Simão de Santa Águeda.
forças humanas que o
pudessem ver facilmente
detivessem. FIM de Frei Simão
o pregador.
O leitor compreende Fonte: http://www2.uol.
Ouviu-se então um
naturalmente que o ca- com.br/machadodeassis/
grito, e todos correram

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Joaquim Maria Machado de Assis “Iaiá Garcia” (1878). Essas obras
nasceu pobre e epilético. Era filho ainda estão ligadas à literatura
de Francisco José Machado de romântica e formam a chamada
Assis e de Leopoldina Machado primeira fase de Machado de
de Assis, neto de escravos alfor- Assis.
riados. Foi criado no morro do Em 1873, o escritor foi nomeado
Livramento, no Rio de Janeiro. primeiro oficial da secretaria de
Ajudava a família como podia, Estado do Ministério da Agricul-
não tendo freqüentado regular- tura, Comércio e Obras públicas.
mente a escola. A sua carreira burocrática teve
Sua instrução veio por conta uma ascensão muito rápida, uma
própria, devido ao interesse que vez que, em 1892, já era diretor
tinha em todos os tipos de leitu- geral do Ministério da Viação. O
ra. Graças a seu talento e a uma emprego público garantiu a esta-
enorme força de vontade, superou bilidade financeira, uma vez que
todas essas dificuldades e tornou- viver de literatura naquela época
se em um dos maiores escritores era quase impossível, mesmo para
brasileiros de todos os tempos. os bons escritores.
isolamento. São dessa época seus

http://fellipefernandes.files.wordpress.com/2008/07/machado-de-assis.jpg
Entre os 6 e os 14 anos, Machado Na década de 1880, a obra de últimos romances “Esaú e Jacó”
perdeu sua única irmã, a mãe e Machado de Assis sofreu uma ver- (1904) e “Memorial de Aires”
o pai. Aos 16 anos empregou-se dadeira revolução, em termos de (1908), que fecham o ciclo realista
como aprendiz numa tipografia e estilo e de conteúdo, inaugurando iniciado com “Brás Cubas”
publicou os primeiros versos no o Realismo na literatura brasi-
jornal “A Marmota”. Em 1860, foi leira. Os romances “Memórias
convidado por Quintino Bocaiúva póstumas de Brás Cubas” (1881); Machado de Assis morreu em sua
para colaborar no “Diário do Rio “Quincas Borba” (1891); “Dom casa situada na rua Cosme Velho.
de Janeiro”. Datam dessa década Casmurro” (1899) e os contos Foi decretado luto oficial no Rio
quase todas as suas comédias te- “Papéis avulsos” (1882); “His- de Janeiro e seu enterro, acompa-
atrais e o livro de poemas “Crisá- tórias sem data” (1884), “Várias nhado por uma multidão, atesta a
lidas”. histórias” (1896) e “Páginas fama alcançada pelo autor.
Em 12 de novembro de 1869 recolhidas” (1899), entre outros,
casou-se com Carolina Augusta revelam o autor em sua plenitude.
O espírito crítico, a grande ironia, O fato de ter escrito em português,
Xavier de Novais. Esse casamen- uma língua de poucos leitores, tor-
to ocorreu contra a vontade da o pessimismo e uma profunda re-
flexão sobre a sociedade brasileira nou difícil o reconhecimento inter-
família da moça, uma vez que nacional do autor. A partir do final
Machado tinha mais problemas do são as suas marcas mais caracte-
rísticas. do século 20, porém, suas obras
que fama. Essa união durou cerca têm sido traduzidas para o inglês,
de 35 anos e o casal não teve Em 1897, Machado fundou a o francês, o espanhol e o alemão,
filhos. Carolina contribuiu para Academia Brasileira de Letras, despertando interesse mundial. De
o amadurecimento intelectual de da qual foi o primeiro presidente, fato, trata-se de um dos grandes
Machado, revelando-lhe os clás- pelo que a instituição também nomes do Realismo, que pode se
sicos portugueses e vários autores ficou conhecida como casa de Ma- colocar lado a lado ao francês
de língua inglesa. chado de Assis. Ocupou a Cadeira Flaubert ou ao russo Dostoievski,
Na década de 1870, Machado N.º 23, de cujo patrono, José de apenas para citar dois dos maio-
publicou os poemas “Falenas” e Alencar, foi amigo e admirador. res autores do mesmo período na
“Americanas”; além dos “Contos Em 1904, a morte de sua mulher literatura universal.
Fluminenses” e “Histórias da foi um duro golpe para o escritor.
meia-noite”. O público e a crítica Depois disso, raramente ele saía
consagraram seus méritos de de casa e sua saúde foi piorando Fonte: http://educacao.uol.com.br/
escritor. Publicou os romances: por causa da epilepsia. Os proble- biografias/ult1789u180.jhtm
“Ressurreição” (1872); “A Mão e mas nervosos e uma gagueira con-
a Luva” (1874); “Helena” (1876); tribuíram ainda mais para o seu

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Autor em Língua Portuguesa

Henriqueta Lisboa:
o modernismo remodelado pela timidez

“Não haverá, em nosso acervo poético, ins-


tantes mais altos do que os atingidos por este
tímido e esquivo poeta.”
Carlos Drummond de Andrade

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Noturno

Meu pensamento em febre


é uma lâmpada acesa
a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,


à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas


em redor do fogo.

In: Prisioneira da Noite (1941)


Esse despojamento

Esse despojamento
esse amargo esplendor.
Beleza em sombras
Sacrifício incruento.

A mão sem jóias


descarnada
na pureza das veias.
A voz por um fio
desnuda na palavra sem gesto.

O escuro em torno
e a lucidez

http://www.flickr.com/photos/iainalexander/179318796/sizes/o/
violenta lucidez terrível
batida de encontro ao rosto
como uma ofensa física.

Na imensidade sem pouso,


olhos duros
de pássaro.

In: A Face Lívida (1945)

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http://www.flickr.com/photos/iainalexander/179318796/sizes/o/
Horizonte Calendário

Alma em suspiro Calada floração


pelo encontro fictícia
do que fica caindo da árvore
sempre mais longe dos dias

In: Reverberações (1976)

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Henriqueta Lisboa

Poetisa mineira considerada


pela crítica um dos grandes
nomes da lírica modernista,
Henriqueta Lisboa nasceu
em Lambari, MG, em 1903 e
morreu em Belo Horizonte em
1985. Dedicou-se à poesia,
ensaios e traduções. Surgin-
do no decênio da Semana de
Arte Moderna, Henriqueta
marcou o seu lugar, em nossas
letras. Com Enternecimento,
publicado em 1929, de forte
caráter simbolista, recebeu o
Prêmio Olavo Bilac de Poesia
da Academia Brasileira de Le-
tras. Aderiu ao Modernismo
por volta de 1945, fortemente
influenciada pela amizade
com Mário de Andrade, com
quem trocou rica correspon-
dência entre os anos de 1940 ra, Cecília Meireles. Apesar
Fonte dos dados biográficos:
e 1945. Foi a primeira mu- disso, era uma figura solitá-
http://www.letras.ufmg.br/
lher eleita para a Academia ria. Sua poesia busca tangen-
henriquetalisboa/
Mineira de Letras em 1963. ciar o indizível, ultrapassar os
Em 1984, recebeu o Prêmio limites da palavra e penetrar http://pt.shvoong.com/books/
Machado de Assis da Acade- a essência da poesia. Por biography/1659839-henrique-
mia Brasileira de Letras pelo isso nos comove tanto, sem ta-lisboa-vida-obra/
conjunto de sua obra. recorrer a qualquer artifício
sentimental. As palavras vêm
Henriqueta manteve-se sem- para ela como se fossem as
pre atuante no diálogo com os próprias coisas, os próprios
escritores e intelectuais de sua sentimentos, as próprias
geração e angariou muitos sensações. Por essas caracte-
leitores ilustres durante sua rísticas, Henriqueta Lisboa é
vida, dentre eles Mário de considerada um dos grandes
Andrade, Carlos Drummond nomes da poesia em língua
de Andrade, Manuel Bandei- portuguesa.

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Contos

Duas Mulheres,
Duas Estradas
Carlos Alberto Barros

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Dizia-me haver meses versar. Ficamos sentadas reflexiva. – Mas, sempre
desde que abandonara à beira da estrada, e ela há o que se fazer. Sempre
seu passado: casa, família, começou a contar-me do há uma nova estrada para
emprego, tudo. Seu único porquê de estar naquela se seguir.
desejo era que a estrada vida errante, do abandono – E esta aqui é a minha!
continuasse eterna à sua do passado, da busca por – disse, e então, se levan-
frente. Quando a en- estradas sem fim. tou.
contrei, naquela rodovia – A vida finge ser gentil
interestadual, ela trazia – Mas, toda estrada, um
conosco – dizia-me –, finge dia, se acaba.
apenas uma mochila às nos fazer felizes, até acre-
costas. Eu no carro, ela a ditarmos que o mundo – Se esta se acabar, terão
pé: duas mulheres em bus- está sempre sorrindo para outras. E o que me resta
ca de qualquer coisa que nós. de vida será pouco para
não tínhamos. Diminuí a percorrer todas estradas
velocidade do automóvel e – E não é assim que deste mundo.
a acompanhei. Tentei ser acontece? – perguntei.
Ajeitou a mochila às
gentil: – A vida é uma farsa! costas, como quem se pre-
– Segue para onde, co- Quando achar que ela está para para recomeçar uma
lega? rindo para você, cuidado, árdua trilha. Eu queria
pois ela pode estar rindo continuar a conversa.
– Sigo. Simplesmente, de você. E, normalmente,
sigo. é isso o que acontece. Foi – Será que não há nada
– Esta estrada é bem desse jeito comigo. por que valha a pena vol-
longa... Quer carona? tar? – perguntei, ao mesmo
– Também me sinto tempo questionando a ela
– Quanto mais longa, assim às vezes. Por isso e a mim mesma.
melhor – fez uma pausa e estou na estrada de novo.
contemplou a paisagem. – Mas, pretendo voltar à – Se quiser voltar para
Obrigada, mas, continuo a minha vida. Abandonar sua vida debochada, volte.
pé. Quero sentir melhor os tudo... Isso não é fácil... É Eu sigo por aqui, que meu
ares destas bandas. quase loucura. mundo, agora, é o cami-
nho por onde piso.
– Certeza? A mochila – Loucura é descobrir
não está pesada? que esse tudo de que Eu estava curiosa. Arris-
você fala não passa de quei perguntar:
– Não tenho muita
coisa aqui. Só trouxe o que um castelo de ilusões, um – Mas, o que, afinal, te
realmente me faria falta da teatro de máscaras, uma aconteceu?
antiga vida. E ainda sobrou comédia grega. E o pior é Ela baixou a cabeça e
http://www.flickr.com/photos/mrhayata/295323435/sizes/o/

bastante espaço – disse, quando você descobre que ficou contemplando os


enquanto sacudia a bolsa. é o palhaço da vez. Riem! próprios pés por alguns
Riem da sua cara sem pie- instantes. Como demora-
Insisti no diálogo, até dade, sem se darem conta
que se tornou uma con- va a se mover, resolvi me
de estarem te matando, te aproximar. Quando toquei
versa agradável. Em certo fazendo menos que lixo!
ponto, ela parou de andar seu ombro, ela desabou.
Isso é a realidade, queri- Em reflexo, recuei, assus-
e eu desci do carro. Acho da! Esse é o meu tudo que
que ela não confiava em tada, enquanto que ela
abandonei. abraçava a mochila sobre
mim, mas, como eu não
era um homem, pelo me- – É... a vida nem sempre o peito e chorava compul-
nos não teve medo de con- é como queremos – falei, sivamente.

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Fiquei sem saber o que – Ah, você não sabia Eu já estava na porta do
fazer. Pedi que se acal- deste detalhe? Assim como carro quando ela enfiou a
masse, disse-lhe que esta- todos que riram de mim, mão novamente na mo-
va tudo bem, que eu não você também não sabia chila. Tirou um revólver e
mais a incomodaria. De que eu levava ele no meu apontou em minha dire-
repente, gritou: colo. O meu bebê, meu ção. Sem saber ao certo
– Cala a boca! Você não filho! como, já me encontrava
sabe de nada! Vi aquilo e senti nojo. abaixada atrás do volante
Um corpo minúsculo, tentando ligar o carro.
Levantou-se, e seu choro
se misturou a uma explo- enrugado, a pele escura, – Isso mesmo, vá em-
são de ódio. Comecei a como que cheia de he- bora! – ela gritava. – Volte
ficar com medo. matomas, os pequeninos para sua vidinha! Hoje,
membros retorcidos. Se riem de mim, amanhã,
– Sabe por que riram de o que eu via já fora um será de você!
mim? – inquiriu-me, sem bebê, naquele momento
deixar que eu respondes- Assim que o carro fun-
não passava de um feto cionou, acelerei sem olhar
se. – Um tombo! Tropecei mal formado em decom-
no meu próprio pé e caí, o que havia pelo caminho.
posição, talvez um bicho Imaginando que a mulher
como uma criancinha morto já apodrecendo.
atrapalhada aprendendo a estava bem para trás, arris-
andar. – Foi um acidente! – co- quei levantar a cabeça. O
meçou a se explicar, en- carro já quase ia fora da
Diante da confissão, não quanto ninava o que dizia estrada. Trouxe-o de volta
consegui deixar de imagi- ser seu filho. – Eu caí por e continuei acelerando.
nar a cena. E o engraçado cima do pobrezinho. Tão Quando olhei pelo retrovi-
não era nem tanto o tom- frágil... Tão pequeno... Eu sor, ouvi o disparo.
bo em si, mas o fato de o matei! – gritou. – Mas,
ela ter abandonado tudo A mulher caiu com seu
agora, eu cuido bem de filho ao colo. Dessa vez,
por isso. Fugir por conta você, não é, meu anji-
de um tombo? Comecei a teve cuidado para não cair
nho – falava com carinho, sobre ele. E, dessa vez, nin-
achar que estava lidando olhando-o.
com uma louca. Dei um guém riu.
sorriso torto, elevando – Meu Deus! Você é lou- Não tive coragem para
apenas um dos cantos da ca... Louca... – eu falava, me voltar. Só fui parar quando
boca, quase como uma enroscando nas palavras e o primeiro posto policial
careta de estranhamento recuando em direção ao apareceu. Contei a histó-
– muito mais pela perple- carro. ria enquanto o choro me
xidade em que me encon- – Você é só mais uma dominava. Depois de tudo,
trava do que pela graça da que ri de mim, sua va- desisti de viajar em bus-
situação. gabunda! Você e o resto ca do que eu não tinha.
– Isso! Seja mais um a do mundo! Nem aqui, no Naquele momento, meu
rir de mim! E que tal rir meio do nada, eu me livro único conforto era saber
disto aqui? – gritou e abriu da hipocrisia de vocês. que havia um lar ao qual
sua mochila. O que tirou Mas, eu estou cansada eu podia retornar.
de lá me deixou ainda disso! Cansada! – berrou
mais confusa e assustada. com tanta força que pude
ver saliva saltando de sua
– Meu Deus! – exclamei. boca.
– O que é isso?

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38
Ele tinha diante de si
a mais difícil das missões:
cumprir a vontade de Deus ficina
www.oficinaeditora.org

Henry Alfred Bugalho


http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg

O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 39
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Contos

Maria de Fátima Santos

A como está o carapau

http://www.flickr.com/photos/m_orellana/2115887309/sizes/o/
Ela perguntou apontando do meu carapau? - Minha puta sem ver-
o peixe e sentindo que era E ela seguindo, que sem- gonha a desfazer no meu
a primeira vez que falava pre a deliciara ouvi-las peixe. Badalhoca…
desde há horas. Perguntou naquele afã de fazer pela Maria do Carmo ri-se à
distraída: vida. E a mulher do cara- socapa e apreça duas pos-
- A como está o carapau? pau fresquinho arrematava tas. Ela que nem sabe se
- Dois mil réis, madama. impropérios na direcção dormiu ou simplesmente
- respondeu a peixeira e já da camisola muito branca rebolou ainda uma e outra
ela ia andando que Maria do Carmo vestira vez debaixo dele, por cima
ainda há pouco. dele, ao lado dele na cama
Ela andando e a ven- e no soalho e nem sabe
dedeira com as palavras Maria do Carmo a olhar
noutra banca uma chaputa mais senão que havia um
dependuradas do grito, mais bidé com suporte de ferro
censura que rogo: de olho arregalado apesar
de muito morta. E a ven- por detrás de um cortinado
- Venha cá minha cari- dedeira de carapau ainda a soprado pela brisa fria que
nha de anjo…. Não gosta chama: vinha de uma greta da jane-

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40
la empenada. Ela compran- tremor esquecido que era - Às sete?
do peixe para fazer tempo. sentir o desejo a percorrer- Foi o que ele perguntou,
Tempo de dizer em casa, lhe o corpo. E ele num meio deitado sob o lençol
simplesmente: sussurro, percebendo: de flanela com flores: azul
- Bom dia! Não consegui - Poderemos jantar esta desbotado. A tatuagem, mil
telefonar. Fiquei por lá. noite? - assim. Sem mais novecentos e setenta e dois,
Um costume de anos: nem menos. sobrando do lençol . E ela
dormir num hotel se demo- E a saia dela, uma saia rememorando o que tinha
rava mais com uma con- comprida com duas pregas lido: Amor de mãe. Escrito
sulta ou estava mau tempo fundas, acusando interio- por baixo. Não respondeu.
para se fazer à estrada. res muito esquecidos. E ele Pegou na carteira e saiu
sorrindo a esperar um sinal do quarto. Nem sequer até
Nem se incomodaria a mais ou tem um bom dia.
dizer ao marido onde dor- positivo:
Percebeu isso, quando descia
mira. Nem Xavier lho per- - Aqui às sete. Está bem a escada forrada com um
guntaria. Mas para isso era para si? linóleo às flores. E sorriu-se.
preciso que chegasse à hora Ela deve ter-lhe acenado
de outros dias semelhantes. um sim antes de voltarem
Ao Xavier nem sequer lhe todos à sala de julgamentos. - Bom dia, Maria do Car-
cheirariam os húmus des- mo. Ficaste por lá?
sa noite. Talvez sentisse o Às sete estava lá. Esfu-
siante. O marido saía de casa
cheiro a peixe. Ou talvez atrasado para uma reunião.
nem ficasse perto dela o Não foi decerto ela quem Acenou-lhe a sair da gara-
suficiente. disse que aquele hotel era gem. Cruzaram-se os dois
Maria do Carmo com- um local discreto. Ela sim- carros, lado a lado.
prou duas postas de cha- plesmente terá acedido,
puta e recebeu uma nota toldada a capacidade de de-
húmida que esfregou na cidir o que quer que fosse. O duche limpa-lhe res-
mão como se fosse outra a Era como estaria ela: numa tos de saliva e cordões de
humidade que sentia. Sor- bebedeira. Toda embrulha- esperma. Maria do Carmo
riu-se dela mesma e meteu da no desejo. Um desejo sabe-os onde. Cobre com
a nota na carteira. Olhou de desmesurado, intenso. Um as mãos os locais da noi-
longe a peixeira que agora desejo de sexo. Simplesmen- te. Deixa escorrer a água
apregoava carapau vivinho, te. Assim. Sem mais nem e lava-os com sabonete de
minhas meninas. A mulher menos. algas.
a chamar-lhe badalhoca Colocou o saco com o Sob o duche morno
e ela que nem lavada dos peixe no interior da pasta. permanece, amaciado mas
humores daquela noite … Os papéis daquele processo desperto, o desejo.
Sorriu de novo. ficariam a feder a chaputa O duche não lhe limpa
Tinha sido um acaso. fresca. Sorriu. Olhou o reló- tudo.
Fora tomar café na salinha gio. Sete e quarenta. Podia
ao lado da sala de audiên- ir andando. Parara a fazer
cias. A sala muito cheia. tempo na periferia. Em dez Maria do Carmo grita
Ela cheirou-lhe a alfazema. minutos estaria no seu bair- por cima do soar da água.
Voltou-se em busca des- ro. Por baixo do casaco de - Às sete.
se odor e ele sorriu-lhe fazenda castanha, a camiso-
la branca impecável. Apesar E ri-se alto enrolando o
do meio da fragrância de cabelo molhado na toalha a
perfume barato e passou-lhe da noite: ela nuazinha numa
cama de um hotel de tercei- fazer um turbante.
um pacote de açúcar. E ela
ficou adoçando o café num ra. Uma noite inteira até ser
madrugada.

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Contos

Chave de ouro
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

http://www.flickr.com/photos/moriza/486919884/sizes/o/

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Alessandra foi a última Aquele poema falava disso E, quando lhe perguntaram
a subir no ônibus aquela de ser uma constelação, e depois na primeira entrevis-
quinta-feira. Eram onze da havia anos que tentava a ta, disse que foi assim: foi
noite, e do campus até sua poetisa para ser concluído. como uma milagrosa força
casa, mais uma hora e meia Faltava-lhe uma Chave de da natureza, dançando com
de estrada. Tudo o que Ouro – pois é assim que a música que move o Cos-
queria era poder sentar- devem terminar os sonetos. mos. Repleta dessa melodia,
se na poltrona do fundo e Pilar habituou-se a desistir toda a sua existência então,
esperar o veículo entrar em dele. Outros sonetos, meno- resumiu-se às dez sílabas
movimento. De segunda a res, aglomeravam-se como poéticas que a levaram ao
sexta, durante esses cinco pequenos sistemas solares, êxtase, e enfim, a completu-
mil e quatrocentos segun- todos nascidos de um poe- de do soneto surgiu a partir
dos entre a faculdade e sua ma perfeito e inacabado. O do nada. No furor de ale-
casa, Alessandra da Silva era sono veio. Pilar acomodou- gria da criação, Juan chegou
Pilar Ortega. se ao corpo de Juan. Não do futebol. Pilar jogou-se
*** queria acordá-lo. Exausta, nos braços de seu homem
Pilar acordou-se. A escu- dormiu. como fazia ainda no tempo
ridão do quarto era a mes- *** de seus primeiros momen-
ma, o ar pastoso do verão O ônibus dos estudantes tos de intimidade. Já era
e o mosquiteiro, imóveis aproximava-se do final da sábado, e aos criadores é
como à hora em que se dei- linha. Alessandra despertou, reservado o sétimo dia para
tara. Buscando outra vez re- desceu despedindo-se do o merecido descanso.
laxar, virou-se de lado. Juan motorista e foi para casa, ***
estava dormindo de olhos imaginar, sozinha, coisas da A estudante acordou
abertos. Sabendo que o sono intimidade de Juan e Pilar. num sobressalto. O veículo
não regressaria de pronto, A noite seguinte era pareceu-lhe estar rápido de-
levantou-se e foi escrever. sexta-feira. Alessandra as mais, e os gritos vindos das
Pilar escrevia poemas. detestava, porque os colegas poltronas da frente foram
A hora feliz de seu dia vinham mais falantes que o suficientes para alarmá-la.
era quando Juan estava apa- habitual. Era-lhe mais peno- Tudo foi muito rápido: a
gado e satisfeito, o cão dor- so para, no fundo do ôni- derrapagem, o guard rail, o
mia e a rua mergulhava no bus, relaxar e ser a outra. barranco, os trezentos me-
silêncio saboroso que só as Mesmo assim, depois de tros capotando ribanceira
ruas provincianas possuem alguns minutos, adormeceu. abaixo.
na madrugada. Era como Abriu os olhos como Pilar. ***
se o mundo caísse num *** Alessandra da Silva, vinte
precipício e apenas a mesa, Nas noites de sexta, Juan e dois anos, estudante de
o abajur, a xícara de leite, jogava futebol society no letras e escritora amadora,
as folhas de papel, a caneta clube com os colegas da faleceu sem ter concluído
de tinta preta, a cadeira e empresa – e com esse acor- a faculdade, e sem escrever
ela, Pilar, permanecessem, do conseguiram manter- uma única linha do roman-
suspensos no espaço como se felizes. Pilar cochilou ce que planejou por anos.
uma constelação desco- até a meia-noite. Sem que Pilar Ortega, trinta anos,
nhecida, jamais vista por pudesse recordar depois poetisa, jamais existiu por-
ninguém na face da Terra. como aconteceu, sentiu o que o romance em que era
E todas as noites, os treze sopro divino que poria em a protagonista nunca foi
versos de um soneto incom- movimento novamente a escrito.
pleto vinham-lhe à mente. constelação de sua poesia.

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Contos

O atraso da
Primavera Joaquim Bispo

http://www.flickr.com/photos/vaitu/3075851092/sizes/l/

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Há muito, muito tem- Andaram, andaram por estais habituados a estes
po, quando o Homem vi- campos vazios e silencio- frios.
via ao ritmo das estações, sos e prados de plantas
– Não te preocupes
houve um ano em que a cinzentas e murchas. O
connosco, que estamos
Primavera se atrasou para vento assobiava gélido e
protegidos – a voz pos-
além do habitual. Passou selvagem. A progressão
sante e clara do Verão
Março, Abril ia adiantado ia-se tornando mais pe-
encheu a caverna. – O
e nem sinais dela. nosa, por serras escalva-
que nos preocupa é que
das e desfiladeiros atu-
O Verão, lá dos poma- já estamos a chegar a
lhados de neve. Ao fim
res que habitava, olhava, Maio e ainda não vimos
de uns dias, chegaram
olhava e os campos que a Primavera.
finalmente à caverna do
vislumbrava mantinham-
Inverno. O Inverno imobilizou
se desolados, gelados,
o fole e aproximou-se
batidos pelo vento. Te- Entraram. O frio pare-
dos visitantes.
mendo pela eclosão das cia mais intenso, o escuro
sementes e preocupado era medonho. Ao fundo – Não te abespinhes,
com o que pudesse ter de uma galeria, encontra- Verão! Sei que és jovem e
acontecido à Primavera, ram o Inverno agitando sanguíneo mas a hospi-
resolveu procurar o Ou- as suas asas de morcego talidade é um dos meus
tono para lhe comunicar sobre o seu manto de princípios. Sim, já a vi. A
o que estava a acontecer nuvens negras, atarefado pobrezinha está lá dentro,
e decidirem o que fazer. com o funcionamento do deitada. Mas, descansai
Muniu-se duma coroa de enorme fole que soprava um pouco. Sentai-vos.
raios solares e pôs-se a os ventos agrestes por so-
caminho. Em breve atin- bre os montes e os vales. – Que lhe fizeste, velho
giu as florestas onde o perverso? Abusaste dela?
– Inverno! – bradou o – a coroa do Verão fais-
Outono vivia. Este, ficou
Outono, que era quem cava.
muito preocupado com
tinha mais contactos com
o que o Verão lhe con- O Inverno olhou-o
ele. – Já viste a Primavera
tou e sugeriu que fossem com indulgência. Juntou
este ano?
falar com o Inverno, que uns cavacos e acendeu
vivia numa gruta rochosa O visado virou-se uma fogueira.
numa montanha a norte. lentamente e, de cabeça
Talvez ele soubesse al- baixa, mirou os visitantes – Esqueces-te que é
guma coisa ou pudesse por baixo das sobrance- minha filha? – murmu-
ajudá-los a procurar a lhas nevadas. rou. – Está um pouco
desaparecida. Pôs pelos atrasada, só isso. A juven-
ombros uma ampla capa – Ó entes tresloucados, tude não tem o sentido
de folhagem castanha, o que fazeis por estas das responsabilidades! – a
vermelha e amarela e paragens? Abrigai-vos aí sua voz parecia denotar
puseram-se a caminho. nessa côncava, que não algum desapontamento,

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enquanto lhes servia um é espantoso? elas tocavam começaram
ponche quente. a lançar rebentos que se
– Claro! Eu acho que
abriam em folhas e flo-
O Outono, mais cor- isto não pode continuar!
res. Cheiros adocicados
dato, sorveu um trago e Ou bem que se assumem
flutuavam ao sabor da
indagou: compromissos ou não!
brisa suave. Nuvens de
– Mas diz-nos, Inver- Pouco depois, entrava abelhas, besouros e gafa-
no, que se passa com a jovem, deslumbrante nhotos cruzavam os ares
ela para deixar assim as num vestido de pétalas em azáfamas surpreen-
plantas e os animais em de amendoeira e uma dentes. Passarada de to-
completa desorientação? tiara de flores amarelas dos os tamanhos e cores
de giesta que acentuavam revoluteava a alimentar-
– Ela esteve no outro se, a acasalar, a construir
o azul celeste dos olhos.
hemisfério, como faz ninhos. Os seus inúmeros
todos os anos, mas desta – Oh, que queridos! chilreios misturavam-se
vez parece que conheceu Preocupados por minha com as cegarregas de gri-
lá alguém interessante – causa! – beijou ambos, ao los e cigarras e o coaxar
um tal a quem chamam mesmo tempo que lhes das rãs.
El Niño – e só voltou fazia uma festinha no
há meia dúzia de dias. rosto. – Estava cansadíssi- A temperatura era ago-
Vinha exausta e toda ma. Foram umas férias e ra fresca mas amena, os
alvoroçada, de modo que tanto! Fiz falta? campos fervilhavam de
eu achei melhor ela des- cores e vida e os homens
cansar uns dias antes de estavam felizes. Atrasa-
reiniciar as suas tarefas. Posta a conversa em da mas fulgurante, tinha
Esperai que eu vou cha- dia, a Primavera des- chegado a Primavera.
má-la! pediu-se. Com as suas
asas brancas elevou-se
Enquanto se afastava
nos ares, sob o olhar
para a zona mais escura
embevecido do trio. As
da caverna, o Verão mos- [Conto publicado, em
nuvens negras rasgaram-
trava-se inquieto: Maio de 2007, na revista
se e dissiparam-se, o
CAIS – revista vendida
– Acreditas nele? céu azul apareceu e o
na rua pelos sem-abrigo
Sol beijou os prados, os
– Não sei. Vamos espe- portugueses, de cuja venda
pomares e os bosques.
rar. Mas, se for verdade, guardam 70% e que cons-
Do alto, começaram a
acho incrível que a meni- titui o seu modo de subsis-
cair pétalas de todas as
na tenha ficado no bem- tência temporário]
cores que esvoaçavam e
bom, para lá da licença, e
pousavam delicadamente
que, chegada aqui, o papá
sobre todas as plantas. Os
ainda ache que a filhinha
talos esqueléticos onde
precisa de descansar. Não

46 SAMIZDAT abril de 2009


46
O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.org

http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

www.revistasamizdat.com 47
Contos

A Busca
Henry Alfred Bugalho
henrybugalho@gmail.com

Sir Morton de Buckin- conhecida, que ocuparia to- ele descobriu a origem da

http://www.flickr.com/photos/germeister/2865405626/sizes/l/
ghamshire não era um dos os espaços do Universo, palavra, remontada aos gre-
homem das Ciências, mas o desde a vastidão do espaço gos, filósofos naturais, que
último fascículo de Proce- sideral até o vazio entre a recorreram a este conceito
edings of the Royal Acade- matéria física. O éter era o para fundar a existência do
my of London, deixado — medium por onde as ondas mundo físico.
acidentalmente? — em sua eletromagnéticas e lumi- Surgiu-lhe a idéia de
escrivaninha por um amigo, nosas se propagavam, do escrever um romance:
o havia intrigado. mesmo modo que o som se
O artigo principal dis- propaga no ar.
sertava sobre o éter e suas Mas não eram as pro- Um filósofo sarraceno
propriedades. A questão priedades físicas do éter obtém, pelas mãos de pe-
básica, aparentemente, era que interessavam Sir Mor- regrinos do Ocidente, uma
entender como a luz se pro- ton, e sim este misterioso cópia da META TA FUSIKA
pagava no espaço. Segundo caráter de permear todas as de Aristóteles. Deslumbrado
a compreensão de Sir Mor- coisas, de estar por detrás com os horizontes apre-
ton, o éter era uma subs- do mundo visível. sentados pelo sábio grego,
tância, a quinta substância este filósofo mouro inicia
Numa rápida pesquisa,

48 SAMIZDAT abril de 2009


48
a redação duma obra em Eles consumam seu amor. Atolado em dívidas, ele
defesa do conceito de éter Todas as noites, ele desce dilapidou seu patrimônio;
(a quintessência), adequado a íngreme montanha e se desfez-se de suas terras, de
aos valores islâmicos. Con- esgueira para dentro do seus imóveis, dispensou a
tudo, quando o califa desco- palácio do governador. A criadagem, vendeu o coche,
bre o conteúdo do trabalho ocidental e o oriental se penhorou as jóias da famí-
do filósofo, que, em muitos confundem sob os lençóis, a lia. Por fim, até dos livros
aspectos, distorce a teologia perfeita união do yin e do teve de se desfazer.
do Corão, ele bane de suas yang. Com seus últimos tostões
terras o erudito. A tutora ensina inglês e no bolso, Sir Morton em-
Condenado a vagar pelo latim ao monge. Supre-o barcou num navio e viajou
mundo, o filósofo passa com livros, para que ele até Cingapura.
a reconhecer nas várias possa praticar os novos Haviam cruzado a costa
culturas a necessidade desta idiomas enquanto estiverem do Sri Lanka quando uma
essência primeva do mun- distantes, ela na vila, ele no devastadora tormenta os
do. Torna-se alquimista e, mosteiro. Um destes livros, apanhou em alto-mar e o
moldando a quintessência, que a tutora nem sabia que navio naufragou.
obtém a elevação espiritual. estava entre suas coisas, é a
história dum filósofo sar- Sir Morton se agarrou
No entanto, logo no pri- aos destroços e, após boiar
meiro parágrafo, Sir Morton raceno obcecado pela obra
de Aristóteles. O filósofo é por dois dias, acabou des-
se deparou com severas pertando numa praia deser-
dificuldades. Ele pouco co- expulso de suas terras pelo
Califa e se torna alquimista. ta.
nhecia da cultura islâmica
para se arriscar a escrever O monge se vê espelha- Primeiro, desesperou-se.
uma obra longa verossímil; do na história: obcecado Sozinho num mundo desco-
as críticas a seu último li- pelo Tao, expulso de sua nhecido e virgem, tal qual
vro, ambientado na Turquia, paz pelo amor duma mu- Robinson Crusoé, que havia
haviam sido inclementes, lher, encontra na comunhão lido na infância.
e ele não queria repetir o espiritual e física com ela Aos poucos, foi encon-
mesmo erro. sua libertação. trando nas margens desta
Por isto, ele mudou al- No entanto, este enre- ilha — ou continente, não o
guns elementos da trama. do parecia ser conhecido. sabia — despojos do naufrá-
Sir Morton não conseguia gio. Entre eles, uma caixa de
se recordar de onde havia livros. Sua única distração
O filósofo sarraceno foi surgido a inspiração. Vas- num mundo sem cultura.
substituído por um monge culhou sua interminável E qual não foi sua sur-
taoísta, recolhido nas mon- biblioteca à procura deste presa ao descobrir, entre os
tanhas Huangshan, absorto único livro que lhe teria livros umedecidos, aquele
pela missão de compreen- inculcado tão peculiar que o havia inspirado na
der o Tao, a relação entre enredo. redação de sua última obra.
os cinco elementos — metal, Era a história dum roman-
madeira, fogo, água e terra Abandonou a redação
de seu romance, obcecado cista inglês que encontra
— e a grande dualidade do sobre sua escrivaninha um
mundo, yin e yang. pela busca desta obra singu-
lar. Meses se passaram, seu periódico científico abor-
Por algum grande acaso, editor pressionando-o para dando o conceito de éter,
numa das circunstâncias de que ele lhe entregasse um e que decide escrever uma
descer à vila para adquirir manuscrito, senão o con- obra sobre isto.
víveres para o mosteiro, trato seria revogado. Mas Sozinho, numa ilha de-
o monge conhece uma nada mais importava a Sir serta, livro aberto nas mãos,
britânica, tutora do filho Morton, nada o acalmaria a Sir Morton gargalhou. Ele
do governador local, e se não ser achar sua fonte de era Sir Morton, um roman-
apaixona. A eterna mutação inspiração. Dias, semanas, cista inglês, mas também
que ele havia aprendido meses, perdido entre mon- um filósofo sarraceno, um
no I-Ching se tornava fato: tanhas de livros, tirou das monge taoísta, e Sir Morton,
dum dia para o outro, o estantes todas as obras e o náufrago que descobre a
monge era diferente, todo folheou-as uma a uma. si mesmo.
seu mundo havia mudado.

www.revistasamizdat.com 49
Contos

Piso 23 José Espírito Santo

50 SAMIZDAT abril de 2009


50
A DESCOBERTA nova, uns abotoadinhos nocturno de Chopin ir-
O dia estava chuvoso emproados que entram rompeu do Nokia, inter-
quando Américo Nunes com pressa, sempre a rompendo repentinamen-
imobilizou o pequeno olhar a direito não se te o silêncio. Atendeu.
Prius um pouco à frente dignando a dar um cum- “Sim? Ah, és tu, Ro-
do rectângulo traçado primento”. drigues. Então já vão a
no asfalto. Antes de sair, Após subir os vinte e descer? Bem, hoje não vos
ligou o dispositivo mó- dois pisos, chegou fi- faço companhia. É o meu
vel de forma a consultar nalmente ao escritório dia de vegetariano, desin-
a agenda diária e, acto e abriu a porta. O seu toxicação…”
involuntário, fez uma espaço de quinze metros Após mais uns minu-
careta – para além das quadrados tinha uma tos, olhou para o reló-
tarefas de rotina e do re- decoração moderna, a gio digital que marcava
latório do projecto, tinha secretária vazia e impe- “quarto para a uma”,
uma daquelas reuniões cavelmente arrumada, vestiu de novo a gabardi-
difíceis com o Silva. “Bem, o ecrã de LCD apagado, ne, armou-se do guarda-
não serve de muito ficar o “laptop” morto a um chuva e saiu. Chegado
a matutar nisso. Depois canto, por debaixo. Sen- ao hall, chamou o eleva-
logo se vê o que é que ele tou-se e correu as cor- dor para levá-lo até ao
quer desta vez” pensou, tinas; parou um pouco, piso térreo. Após uns
ao sair porta fora para a observando a paisagem. segundos, a luz acendeu
rua fria. Podia ver o manto azul marcando a chegada da
Do outro lado, espe- do enorme estuário, os cabine. Porta “D”. Depois
rava-o um edifício “Foz” bandos de gaivotas em de entrar, olhos postos
imponente nos seus oi- voo rasante, a superfície no painel de comandos,
tenta metros de altura, os sendo sulcada por caci- preparava-se para car-
vários pisos apoiando-se lheiros e pelos “hover- regar no zero quando o
como pilha de paralelipí- crafts” que fazem ligação espírito analítico e “olho
pedos rodando ao longo com o Barreiro. Á direita, clínico” se aperceberam
de estrutura helicoidal filas de automóveis pre- que algo estava errado.
invisível. De mala na enchiam o tabuleiro da
ponte outrora chamada “Hei... isto não estava
mão esquerda, segurou o ali. Vinte e três? Como
guarda-chuva e percor- de “Salazar” e que o pós-
revolução renomeou para é possível?”A atenção
reu rapidamente os me- fixava-se agora no círculo
tros que o separavam da “25 de Abril”. A mesma
ponte que o povo sempre com os algarismos embu-
passadeira. Esperou pelo tidos.
verde e atravessou. conheceu simplesmente
como a “Ponte sobre o “Como vinte e três se
“Bom dia António” dis- Tejo”. o prédio só tem vinte
se quase sem olhar, en- e dois andares?” Ele sa-
quanto cruzava o espaço Ligou o computador e
bia. Após cinco anos de
Foto: Henry Alfred Bugalho

que o separava do “hall”. ficou por ali mergulha-


do em trabalho a manhã trabalho diário naquele
O porteiro sorriu e es- toda. Tão absorto que local, conhecia o edifício
boçou um aceno. “Sempre nem deu pelo passar do razoavelmente bem.
gentil, o engenheiro. Não tempo e só desviou os Chegou ao átrio ainda
é como essa geração mais olhos da tela quando um intrigado, murmurando

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para si mesmo: “ Vinte e mesmos quadros com cerca de trinta minutos,
três? Piso vinte e três?” “marketing” de empresa, o desvaneciam-se os deta-
O “Ponto V” era um mesmo tapete turco e, ao lhes, todas as imagens.
espaço acolhedor com balcão, uma alma gémea Ficava a sós com as vá-
uma estátua gorda de de Sara, a secretária de rias divisões de paredes
Buda à entrada e as qua- cabelo loiro curto, corta- brancas e nuas e a porta
tro paredes decoradas do “à escovinha”, a teclar do elevador que haveria
de cores vivas. Sempre rapidamente. Consultava de o trazer de volta. Mas
vestido de grupos de algo e o telefone fora do nada disso o impediu de
pessoas jovens e bonitas bocal era indício de que, passar a fazer as visitas
a misturar conversas em algures, um cliente espe- rotineiramente. Tornara-
voz baixa, educada, par- rava por resposta. se um vício.
tilhando o espaço sonoro Estranho. Como podia As coisas na empresa
com a música de fundo estar ela ali se a tinha pioraram. Primeiro foi o
instrumental, raramente acabado de avistar no relatório de projecto que
asiática e quase sempre piso de baixo? Sem saber o Silva “chumbou” e que
Jazz. Desfrutou o sabor bem o que fazer, atirou o mesmo “Silva” mandou
do bife de seitan chaman- um “Olá Sara.” que ela que fosse alterado. Que
do mentalmente parvos não ouviu. Indiferente enviaram então ao cliente
a todos aqueles que con- à sua presença, desviou e que o cliente não acei-
fundem vegetariano com os olhos da tela e a mão tou. Seguiram-se outros
coisa descolorida e fraco direita voltou a pegar no desastres. Sempre que
sabor. Depois, terminou a bocal. o chefe metia a colher,
refeição com a sobremesa Aproximou-se mais e a coisa descambava. As
deliciosa: uma bavaroise foi então que reparou na reuniões tornaram-se in-
de amoras recheada com data: Quinze de Janeiro suportáveis. Estava já para
molho de iogurte. de 2009. Amanhã. enviar o currículo para
De volta à cabine do outras empresas quando
elevador, estava já para lhe surgiu a ideia. Porque
sair e retornar ao escri- O PLANO É ELABORA- não tinha pensado nisso
tório quando decidiu - ia DO antes? Se tinha aquela
esclarecer a coisa de uma O insólito só o é quan- viagem para o “amanhã”,
vez por todas. Premiu o do ainda não totalmente apesar de ser um mero
botão sentindo imediata- absorvido pelas malhas observador, poderia fazer
mente um leve trepidar, da rotina. Embora não hoje que o amanhã in-
sinal de que o dispositi- obtivesse qualquer expli- cluísse algo digno de ser
vo se tinha colocado em cação racional, habituou- visto. O plano que nasceu
movimento. Após uns se a ter por certa aquela nesse preciso momento
breves segundos, o trans- viagem ao futuro. As era muito simples: Sa-
porte imobilizou-se e as possibilidades eram limi- bendo que o sorteio do
portas abriram. tadas – não era visto nem Euromilhões é efectuado
podia interagir, era mero ao fim da tarde de sexta-
Em frente, o “hall”. feira, Sábado bem cedo
Similar, demasiado igual espectador. Além disso,
o tempo de que dispu- voltaria ao escritório e
ao que tinha no seu piso. obteria os números cer-
O mesmo candeeiro, os nha em cada visita era
igualmente escasso. Após tos. Depois, bastava dei-

52 SAMIZDAT abril de 2009


52
O lugar onde
xar sobre a secretária o de “Post It”. Desanimado a boa Literatura
pequeno “Post It” com a e sem entender o que se
chave mágica. Se fizesse tinha passado, decidiu-se é fabricada
isso, sabia que teria então pelo almoço.
o tempo necessário para Atravessou a estrada
fazer a viagem na sexta ainda intrigado “Que raio,
e descobrir os números o que se terá passado?
certos antes de jogar. Bem, mas ainda estou a
tempo, ainda há tempo.
O PLANO É COLOCA- É só entrar de novo no
DO EM PRÁTICA servidor para retirar a
coisa. Ninguém descobri-
rá e para a semana volto
No dia do sorteio, a tentar…”
efectuou alguns prepara- Mais intrigado ficou o
tivos, o mais ousado dos condutor de TÁXI com a
quais foi materializado visão: o maluco atravessa-
pela apresentação de va no vermelho, alheio a
“Powerpoint” com mon-

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
tudo, mesmo em frente à
tagens do Silva actuando grelha do seu automóvel.
com outros espécimes A colisão foi inevitável.
do mesmo sexo e expe-
rimentando as posições Três horas e quatro
menos decorosas. Alo- costelas partidas depois,
jou-a no servidor e pro- ei-lo que acorda e per-
videnciou para que fosse gunta aos seres de bata
enviada para os postos branca e máscara:
de trabalho da empresa “Onde estou? Que me
no fim do processamento aconteceu? Que dia é
“batch” de Domingo. hoje?”
Passou o resto da ma- A resposta veio, calma
nhã a fingir que estava e segura.
trabalhando. Um pouco “Sabe… Teve muita
antes da hora de almoço, sorte. Muitos foram desta
sentiu que estava chegado para melhor por muito
o momento e dirigiu-se menos. Que raio lhe deu
então para o elevador. para atravessar no ver-
Tudo estava certo, o melho e nem reparar no
botão vinte e três, aquele trânsito? Teve realmente
que apenas ele via, espe- muita sorte. Se tudo cor-
rava-o e, mal tocado, fez rer bem, terá alta já na
o mecanismo obedecer às terça-feira. Da parte da
suas ordens. No entanto,

ficina
tarde.”
ao chegar ao seu escritó-
rio, esperava-o uma se-
cretária vazia – nem sinal
www.oficinaeditora.org

53
Contos

Léo Borges

O anômalo
Uma aula de antro- que queriam tomar seus ao contrário, mantidas e
pologia nunca me saiu empregos. Preconceito? propagadas. As conseqü-
da cabeça. Foi quando Que nada. Estavam apenas ências dos atos advindos
a professora comentou exercendo um ato sobe- de uma cultura precon- http://www.flickr.com/photos/cjohnson/4933589/sizes/o/
sobre como o preconceito rano, digno de defesa da ceituosa são normalmente
procura brechas no fa- pátria. discriminatórias e violen-
migerado “politicamente tas, mas tanto o precon-
correto” para se perpetuar. O respaldo em ques- ceito quanto a influência
Ela citara o exemplo de tão é necessário para que retórica que o suporta são
jovens alemães que espan- não haja uma conduta amplos e sutis, delicados
cavam tunisianos, turcos e violenta sem fundamento. como a própria hipocrisia
marroquinos com a ideo- Assim, tudo é justificado humana.
logia de que estavam sen- convenientemente e as
do cívicos, isto é, inibindo raízes do preconceito não Nessa mesma aula a
a presença de estrangeiros são abordadas e muito professora ainda comen-
menos discutidas, mas tou sobre um suposto

54 SAMIZDAT abril de 2009


54
episódio ocorrido entre De acordo com a ro sentimento de dó em
neonazistas tupiniquins e Anti-Defamation League relação ao cara (primeiro
europeus. A polícia havia (organização americana conceito concebido sem
descoberto uma conexão que combate ações pre- esclarecimento). Mas logo
entre eles em que os tais conceituosas) até os seis se viu que ele não tinha
novos nazistas brasileiros anos de idade praticamen- TV porque não queria ter
solicitavam aos congê- te metade das crianças TV, e não por não ter di-
neres da Europa verbas já proferiu algum termo nheiro para comprar. De
para que pudessem dar pejorativo em detrimento pena, o sentimento passou
continuidade ao combate de alguém que não pos- a ser de perplexidade em
contra os negros, índios e suísse traços semelhantes rota migratória para o
homossexuais no Brasil. aos seus. Sem cerimônia, inconformismo (segundo
O bando europeu achou algumas delas apontam conceito concebido sem
a idéia bastante interes- diferenças e, não raro, base fática). Como al-
sante e apoiou o trabalho. achincalham parentes guém poderia não querer
Entretanto, não liberou o obesos ou pessoas que te- ter um aparelho de TV
dinheiro por um entrave nham algum detalhe que hoje em dia?
burocrático sinistro: na não lhes pareça comum.
lista de execrados dos Diante disso, são admoes- Segundo uma sentença
nazis do Velho Continen- tadas por seus pais, que, proferida recentemente
te apareciam também os por sua vez, na luta para pelo 2º Juizado Especial
latino-americanos. melhor se ajustarem a Cível de Campos, no
uma digna conduta so- Norte do Estado do Rio
A biologia evolutiva es- cial, compartilham um de Janeiro, é, realmente,
pecula que o ser humano sentimento que forja uma impensável alguém ficar
é um animal naturalmen- noção de justiça – frágil sem este tipo de aparelho
te preconceituoso. Nesse ante sua essência –, que em casa. Não é um ele-
sentido, a experiência visa, com alguma nobreza, trodoméstico supérfluo,
cultural apenas encobre conter a sanha racista da como bem deixou claro
tal característica que, de qual somos portadores. o juiz na sentença do
acordo com essa tese, foi caso de um homem que
essencial para a nossa Mas foi conversando reclamou da longa espera
sobrevivência e evolução. com conhecidos num bar pelo conserto de sua TV.
O ranço discriminatório é que tirei algumas con- O magistrado disse que
impossível de ser extirpa- clusões sobre a profundi- “o aparelho é conside-
do, mas a maneira como dade da coisa. Começou rado essencial aos lares
lidamos com ele poderia quando alguém comentou brasileiros”, e citou ainda,
ser abordada de outra sobre o capítulo de uma como referência, o fato de
forma, já que o modo novela. Um dos presentes, o pobre indivíduo ficar
superficial com que é ao ser inquirido, simples- sem poder assistir “jogos
tratado – principalmente mente disse que não as- do Flamengo e o ’Big Bro-
em campanhas e projetos sistira porque não possuía ther Brasil’” (Processo nº:
governamentais –, além de televisão em casa. Bom, o 2008.014.010008-2). Ou
não eliminar o problema, espanto (meu inclusive) seja, o nosso camarada
o deixa latente, acuado foi geral, pois em prin- que desprezava o singelo
em algum ponto da sub- cípio pensamos que ele eletrodoméstico contra-
consciência esperando não tinha recursos para riou, ainda por cima, uma
uma chance para emergir. isso e houve um efême- decisão jurídica.

www.revistasamizdat.com 55
Ele argumentava que ção de uma grade televi- chons” a preço de banana
não tinha o aparelho por siva. Um outro freqüen- no canal de compras da
não gostar de ver televi- tador da roda comentou, TV por assinatura. Mas,
são, de não gostar do que posteriormente, que acre- o que mais me intrigou
a TV exibe. E não queria ditava que esse “Sem-TV” nisso tudo não foi o fato
gastar dinheiro para ver era algum tipo de “metido de termos entre nós um
a barbárie nos telejornais a intelectual”, que queria indivíduo que resistia em
ou as assépticas tramas passar a imagem de “alter- comprar um aparelho de
novelísticas. Não queria nativo”, mas que no fundo televisão, mas como aqui-
ver seriados, programas era, sim, “um anômalo”. lo, discretamente, transtor-
de auditório e talk shows. Ele usou essa palavra com nou o comportamento dos
Sua alegação era a de que uma sinceridade aterra- demais. As pessoas nitida-
filmes ele via no cinema; dora. Seria anomalia uma mente, nos encontros em
esportes ele ia ao estádio. pessoa não querer gastar que ele estava presente,
Notícias? Lia jornal ou uma grana num aparelho não abordavam mais as-
acessava a internet (cujo de TV? A máquina de suntos que pudessem criar
computador ficava em ou- consumo não iria gostar algum possível embara-
tro cômodo que não o seu se muitas pessoas agissem ço (terceiro preconceito
quarto, conforme frisava). como ele, pois algumas enraizado). Outros, que
O sujeito começou, então, lojas e indústrias teriam faziam a vez de defenso-
a ser visto como um ere- de enxugar seus quadros res do Homem Sem-TV
mita e muitos passaram, e demitir. O Poder Judi- (como se ele precisasse de
a partir daí, a boicotá-lo ciário também iria ter de advogados), diziam que
nas conversas, mesmo rever suas decisões. Tudo ele estava certo mesmo,
com provas irrefutáveis por causa de um anôma- que a programação da TV
de que ele possuía plena lo irresponsável que não apenas cria na cabeça do
condição de debater qual- quis comprar um televi- espectador necessidades
quer assunto. E esse era o sor, aparelho este que já supérfluas, que proliferam
seu diferencial: gostava de existe, inclusive, em mo- injustiças e “idiotizam a
viajar, de ler, de interagir, delos ultrafinos, de plas- massa”. O cidadão em
se recusando a participar ma ou LCD, podendo ser questão não desenvolvia o
como pólo passivo - sen- adquiridos em módicas assunto quando estava no
tado, mudo e sonolento prestações. centro do debate. Ficava
– diante de um ruidoso sem jeito, pois não queria
aparelho de TV. É. O tal sujeito que ser um “anômalo”, um bi-
relutava em ter um apa- cho de circo dos horrores
Uma senhora comentou relho de TV talvez fosse por não ter uma simples
entusiasmada que achava mesmo um anômalo, pe- televisão. Queria apenas
“muito bacana” a atitude dante, subversivo, indolen- conversar. Desde que
dele, mas que não tinha te, desrespeitador, um ele- não fosse sobre o último
“coragem de fazer o mes- mento altamente nocivo capítulo de alguma nove-
mo”. Aqui podemos obser- à engrenagem capitalista, la, pois sobre isso ele não
var como é interessante essa mesma que seduz teria a mais vaga idéia.
o termo “coragem” em- as crianças com o Papai
pregado por ela. É como Noel de gorro vermelho,
se ficar sem TV fosse todo encasacado no verão
um vertiginoso salto em de 42 graus brasileiro,
queda-livre sem a prote- exibindo os “pleistei-

56 SAMIZDAT abril de 2009


56
Contos

O Amor segundo o Ódio


Léo Borges

Acima de tudo, falso. Utiliza-se de ardil para a conquista;


sob outro meandro, para o sexo. Não existe em forma pura,
sendo que, mesmo o de mãe, dito incondicional, subordina-
se ao fator sanguíneo. Conheço sua postura mesquinha, mas
o tolero por vivermos em interseção. Quem acredita que o
sente, carrega-me na alma. Quem promove a guerra, ama.
Esta, sim, a verdadeira demonstração de afeto, de importância
ao outro, onde se corrige o diferente, mostrando seu erro e
servindo-lhe com a verdade. Certo está que seu antônimo
não sou eu; somos da mesma fonte. O contrário do Amor,
como ele se recusa a admitir, é a Indiferença.

Tentativas de
http://www.flickr.com/photos/abhi_ryan/2252867966/sizes/m/

existência
Léo Borges

Maria das Dores relutava em viver tantos anos com o


mesmo nome. Cada revés na vida era merecedor de uma
nova graça para apagar as cicatrizes.
Quando terminasse de receber os castigos de seus pais,
seria Cândida; após descobrir que fora traída pelo amor de
sua vida, seria Ângela; depois de ser demitida do emprego de
secretária, seria Virgínia.
E já programara que seu último nome refletiria a cor clara
das águas, o azul de um céu límpido e pacífico, redenção aos
80 anos de uma mulher sofrida. Mas seu filho Antenor, que
prometera que quando virasse José a ajudaria, voltou atrás
ainda Jônatas.
Tampouco a auxiliou o neto, Luiz, outrora Caio. O ocaso
chegou sem maiores alardes e, então, a solidão companhei-
ra deixou que a anciã pulasse do oitavo andar, impedindo,
assim, o nascimento de Celeste.

http://www.flickr.com/photos/paulvaarkamp/1172499910/sizes/m/

www.revistasamizdat.com 57
Contos

Marcia Szajnbok

Jogo da Memória
Como dois vetores que Ele: Quantos anos faz É uma área difícil, sabe?
se anulam, iam pela rua, que terminamos a escola? O mercado... blá-blá-blá...
mesma direção, sentido Uns vinte? (Não acredi- (Meu deus! Quem é?).
http://www.flickr.com/photos/indrasensi/1774025759/sizes/l/
contrário. O encontro to... Ela não se lembra de
dos olhares não durou mim?!). Ele: Pois é... Coisas do
mais que a metade de um nosso país... Veja você, eu
instante. Ela: Por aí... (Meu deus! sou engenheiro... blá-blá-
Quem é?). blá... (Não tem aliança no
Ele: Puxa, há quanto dedo, mas esse pessoal das
tempo! (Nossa! Ela conti- Ele: Me conta, você faz humanas é meio diferen-
nua linda...). o quê da vida? (Me diga te...).
que está solteira... ou se-
Ela, sorrindo um pou- parada...). Ela: blá-blá-blá... (Essa
co sem graça: É mesmo... cara não é estranha…
(Meu deus! Quem é?). Ela: Fiz jornalismo, mas da escola… raio de
não trabalho com isso... memória que me deixa

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sempre de saia justa!). Travolta! pisei mesmo na bola, eu
sei... Mas, olha... A gente
Ele: blá-blá-blá... (Ela Ela: Nos Embalos de Sá- tinha o quê? Dezesseis,
me dizia tanta coisa… bado à Noite... (Há quanto dezessete anos? Cabeça
Como pode ter esqueci- tempo não me lembrava de vento, quanta bobagem
do?). disso? Eram bons mesmo se faz quando se pensa
aqueles bailes...). que é gente grande e não
...
Ele: Muito namoro co- se passa de um menino
Ele, depois de um breve meçou naquela garagem, metido a besta... Deve ter
silêncio: E... você se casou? ao som dos Bee Gees... sido algum anjo que pôs
(Diga que não...). (Xeque mate!). você bem aqui no meu
caminho hoje... Porque
Ela: Não… (Melhor Ela, sem ter tempo de acordei pensando que não
omitir os detalhes…) E pensar, cantarolou: “Nobo- vou viver muito, sabe?
você? dy gets too much heaven Mas não queria morrer
Ele: Casei, descasei, no no more...” sem te dizer isso: aquele
momento estou de volta namoro não passou de
Ele pôs as mãos nos umas semanas, mas... fa-
ao mundo dos solteiros... ombros dela, puxou-a lando sério... nunca amei
Ela sorri. para perto, beijou-lhe de ninguém do jeito que
leve o rosto, depois os amei você, Silvia.
Ele continua: (A-ha... lábios.
got you, baby!) Você ainda Ela arqueou as sobran-
tem contato com alguém ... celhas de modo que seu
daquela época? Ele: Olha, eu preci- rosto ganhou um ar de
so mesmo te dizer uma interrogação: Silvia???
Ela: Não... mudei tan-
to de casa que ninguém coisa, sabe? É que quando ...
mais deve ter me achado... vi você se aproximando,
parece até que voltei no Do rubor à palidez
Ele: (Eu percebi...) Outro tempo... Tudo bem, lá foram segundos. Muito
dia encontrei o Edu, lem- se foram vinte anos, ou constrangido, ele enco-
bra dele? Aqueles baili- mais... Tudo bem, éramos lheu os ombros, baixou os
nhos de garagem, com luz quase crianças, mas nun- olhos e foi-se embora, tão
negra e som de vitrola... ca esqueci daquele beijo rápido que ela nem pode
A mãe dele sempre pu- que você me deu, naquele ouvir seu pedido de des-
nha um monte de gelo na bailinho na casa do Edu... culpas pelo equívoco.
cuba-libre, assim ninguém Nossa! E pensar que você
ficava bêbado! (Não é pos- ainda se lembra da músi- Ela ficou acompanhan-
sível que ela tenha esque- ca... “Too Much Heaven”, do com o olhar o vulto
cido aquele bailinho...). era isso mesmo.... Nesse masculino que se afastava.
tempo todo, tanta gente (Que pena... Um moço tão
Ela, rindo: Era mesmo passou pela minha vida, bonito... Que grande im-
uma delícia... (Edu, Edu... mas você sempre esteve becil deve ser essa Silvia!).
acho que tinha mesmo na minha cabeça... Te
um Edu na minha clas- Segundos depois, esta-
procurei muito, sabe? Mas vam ambos diluídos na
se...) . ninguém tinha sua pista, multidão que caminhava
Ele: Nossa! Todo mundo parecia até que tinha eva- desordenada.
queria dançar igual ao porado... Eu não era santo,

www.revistasamizdat.com 59
Contos

O Admirador
Parte 1: As coroas
Maristela Scheuer Deves

http://www.flickr.com/photos/viamoi/2524148977/sizes/o/

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Os relâmpagos rasga- semi-obscuridade do cheiro delas. Não apenas
vam o céu e iluminavam quarto, lançou um olhar daquelas rosas, mas de
o quarto, apesar das jane- para o fone fora do gan- todas as outras que vie-
las e dos olhos fechados. cho. O celular, ao lado, ram depois. E, também,
Os trovões, ecoando ao também estava desliga- das coroas – as coroas
longe, pareciam chegar do havia dias.Se a mãe fúnebres que passaram a
cada vez mais perto, en- tentara contatá-la, devia chegar ao mesmo tempo
quanto a chuva desabava estar preocupada, pensou, que as ligações em que
com força sobre o telha- fazendo uma anotação ninguém dizia nada. Ar-
do. Encolhida sob as co- mental para ligar-lhe no repiou-se só de lembrar o
bertas, pensou em quan- dia seguinte. telefone tocando de ma-
do costumava, em noites drugada, e ficando mudo
Diria que os telefones
assim, arrastar o colchão quando atendia. Quando
estavam com defeito, mas
para o quarto dos pais. O aquelas macabras coroas
era mentira. A verdade,
pai fazia troça, mas ela se começaram a ser entre-
nua e crua, é que seus
sentia protegida. Agora gues, uma após a outra,
nervos não agüentavam
os pais estavam a cen- dia após dia, com o seu
mais.Três meses! Ou
tenas de quilômetros de nome gravado, achou que
seriam quatro, já? Não
distância, e ela, sozinha iria enlouquecer. Quem,
podia entender, agora,
no apartamento enorme. em nome de Deus, esta-
como de início achara
E com medo, mais uma ria fazendo aquilo? E por
graça naquilo. Repassou
vez. quê?
em pensamento a primei-
O estrondo de um ra vez que a campainha A princípio, tentara
novo trovão sobressal- tocara, o entregador com considerar tudo como
tou-a e a fez pensar nos uma braçada de rosas uma brincadeira de mau
ramos bentos que a mãe vermelhas. No cartão, no gosto, mas não dava mais.
queimava para acalmar lugar da esperada as- Contara 47 coroas entre-
tempestades. Chegou a sinatura do namorado, gues em seu apartamen-
afastar as cobertas para apenas um “você ainda to nos últimos meses. E,
o lado na intenção de vai ser minha” rabiscado fazia duas semanas, elas
procurar aquele maço de em letras maiúsculas. passaram a ser entregues
galhos de oliveira, mas, Divertida com a idéia de também no seu local de
suspirando, abandonou um admirador secreto, trabalho.
a idéia. Seu medo atual, colocara as flores em um
ela se forçou a admitir, vaso, na sala.
não era causado pelas (continua no mês que
Ainda podia sentir o
forças da natureza. Na vem...)

www.revistasamizdat.com 61
Autor Convidado

Sonetos
Tulio Rodrigues

O amigo e o poeta
Ao meu querido amigo Adriano Andrade!!!!

Olhe o céu não derrama mais amor


quanto nossas palavras e sorrisos!
Pela poesia nós dois fomos ungidos
e abençoados por Deus Nosso Senhor!

Amigo, fomos feitos paraísos;


distante e semelhante à rara flor
de um mundo mais bonito e multicor
como o sonho de todos os meninos.

Pra nós, poesia é muito mais que abrigo;


ela é a prisão em liberdade! Mais felizes
E sempre que tenhamos mais vontade A Adriana Gonçalves,

Musa inspiradora destes versos.

de versar novamente um verso antigo


seremos para sempre com saudade: Oh, musa de meu verso, encanto mais bonito,
Eu o Poeta e Você o meu Amigo!!!!! Trazes no teu olhar o mais puro desejo!
Quantas saudades tenho amor, deste teu beijo!
Nestes versos que faço, eu prontamente dito

Tudo que há de raro e que em meus olhos vejo!


Não sei o que acontece amor quando te fito
Que enlouqueço, me perco e tudo o mais redito
Pois quem sabe assim, mostro o quanto a quero, almejo!...

Oh, musa de meu verso, enlevo de meu canto,


Trazes contigo o gosto amargo do pecado,
Trazes contigo alívio, a cura pro meu pranto!

Agora só me importa as coisas que tu dizes,


Pois te olhando me sinto um homem mais amado
E nos amando amor, seremos mais felizes!

62 SAMIZDAT abril de 2009 http://www.flickr.com/photos/43052603@N00/2889570998/sizes/o/


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Antigo Adeus
Relembro sentimentos mais antigos
Dos tempos de menino..., nós crianças...
Tempos bonitos..., vidas em mudanças...
Brigados... Não fomos nem mais amigos!...

Crescemos..., nada temos..., só lembranças


Dos momentos que fomos mais que abrigos!...
E assim..., vazios..., sentimo-nos mendigos Tulio Rodrigues da Costa
Perdidos nessa vida e nas andanças... – ou simplesmente Tulio Rodri-
gues, como prefere assinar seus
trabalhos literários, tem 24 anos,
Lânguidos, temos várias cicatrizes,
mora em São Gonçalo, município
Pois os seus lindos filhos não são meus! do Rio de Janeiro. Filho de José
Juntos, além do amor, não temos raízes Henrique Souza da Costa e Nata-
lina Rodrigues da Costa. Tem na
poesia a sua grande paixão. Uma
Que faça de meus sonhos também teus! paixão que começou cedo, mas só
- E no baú que fomos tão felizes aos dezoitos anos começou a ser
levada a sério. Tem hoje preferên-
Eu encontrei o teu antigo adeus! cia pela poesia clássica, principal-
mente os sonetos. Tem participado
de diversas coletâneas e antolo-
gias, entre elas estão: Razão Para
Bem Viver, Coletânea Eldorado
– Volume XI e XII, Antologia Amor
e Paixão IV, Iambus e etc... A sua
poesia é rica de grande lirismo e
sensualidade. Entre seus temas, o
preferido é o amor.

O lugar onde http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/

a boa Literatura
é fabricada

ficina
www.revistasamizdat.com 63
www.oficinaeditora.org
Tradução

Henry Alfred Bugalho

Hesíodo e a vida do
homem comum
64 SAMIZDAT abril de 2009
64
O poeta grego Homero tor, do artesão, do escravo e
dispensa apresentações — au- da mulher.
tor de obras clássicas como As duas grandes obras de
“Ilíada” e “Odisséia” —, é Hesíodo são a “Teogonia” e
considerado um dos pais da “Os Trabalhos e os Dias”. Na
poesia épica e deu a forma primeira delas, é narrado o
definitiva de histórias mito- nascimento dos deuses e a
lógicas como a da Guerra de criação do mundo, de acordo
Tróia, da rivalidade entre o com a crença popular e com
rei Agamênon e Aquiles, ou a religião corrente à época,
da viagem cheia de peripé- na segunda, Hesíodo pres-
cias do herói Odisseu. Teóri- creve normas de condutas e
cos debatem a existência de preceitos para o bom viver,
tal personagem, defendendo quais as melhores épocas
que, na verdade, os poemas para se plantar, para se viajar,
atribuídos a Homero nada e como sobreviver à dura
mais passam do que uma vida campesina. Ambas as
compilação de tradições obras estão intimamente rela-
orais do povo grego primiti- cionadas, pois, enquanto que
vo, utilizadas para fins peda- o homem de Homero se põe,
gógicos. às vezes, em pé de igualdade
Werner Jaeger, no livro com as divindades — são fi-
“Paidéia”, apresenta esta fun- lhos e filhas de deuses, semi-
ção educacional de Homero deuses, e desafiam os deuses
de modo muito explícito: a olímpicos, como o caso de
nobreza (areté) dos heróis Diomedes que ataca Afrodite
homéricos deveria servir de durante a batalha — o ho-
referencial de nobreza para a mem de Hesíodo se encolhe
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4f/Athena_Herakles_Staatliche_Antikensammlungen_2648.jpg

aristocracia grega. diante da vontade dos deuses,


A cosmovisão de Home- e é forçado a obedecê-los,
ro representaria, portanto, a temê-los e reverenciá-los.
perspectiva dos altos estratos Muitas das fábulas de
da sociedade helênica, um Hesíodo, como a da criação
ideal de governo e comporta- da mulher, representam as
mento nobres. opiniões e crenças daquele
É neste ponto que Hesíodo tempo, retratando uma socie-
surge como a contraparte. dade patriarcal, agrária, pro-
fundamente religiosa (duma
Hesíodo é considerado, religiosidade cotidiana, na
por muitos, como o segundo qual os deuses estão presen-
mais importante poeta da tes o tempo todo na vida das
Antiguidade Clássica, às ve- pessoas, inclusive favorecen-
zes, até equiparado a Homero do-as ou prejudicando-as de
em grandeza. No entanto, o acordo com seus caprichos) e
mundo de Hesíodo é bastan- pragmática.
te diferente do de Homero.
Hesíodo traz uma outra
Enquanto que em Home- perspectiva sobre a sociedade
ro nós assistimos às lutas grega primitiva, mostrando-
e anseios de reis, rainhas nos o homem comum, sem o
e heróis, em Hesíodo nós resplendor dos grandes feitos, Topo: Hesíodo (mosaico)
acompanhamos o labor do mas com a dignidade do Acima: Hesíodo e a Musa, por
homem comum, do agricul- trabalho cotidiano. Gustave Moreau

www.revistasamizdat.com 65
Tradução

O Mito de Prometeu
Hesíodo (Ἡσίοδος)
tradução: Henry Alfred Bugalho

Prometeu sendo acorrentado por


Vulcano, por Dirck van Baburen

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Filhos de Japeto e Clímene
(507) Japeto à virgem Oceânide de belos tornozelos (507) κούρην δ' Ἰαπετὸς καλλίσφυρον Ὠκεανίνην
Clímene, desposou, e se deitaram no mesmo leito. ἠγάγετο Κλυμένην καὶ ὁμὸν λέχος εἰσανέβαινεν.
Esta gerou um filho, Atlas de vontade violenta, ἡ δέ οἱ Ἄτλαντα κρατερόφρονα γείνατο παῖδα,
Pariu o muito ilustre Menécio, Prometeu, τίκτε δ' ὑπερκύδαντα Μενοίτιον ἠδὲ Προμηθέα,
Artificioso e astuto, e o estúpido Epimeteu, ποικίλον αἰολόμητιν, ἁμαρτίνοόν τ' Ἐπιμηθέα·
Que, desde o começo, trouxe males aos homens que se alimentam ὃς κακὸν ἐξ ἀρχῆς γένετ' ἀνδράσιν ἀλφηστῇσι·
de pão.
Pois ele foi o primeiro a receber, modelada por Zeus, a mulher πρῶτος γάρ ῥα Διὸς πλαστὴν ὑπέδεκτο γυναῖκα

Virgem. Ao orgulhoso Menécio Zeus de vasta visão παρθένον. ὑβριστὴν δὲ Μενοίτιον εὐρύοπα Ζεὺς

Precipitou do Érebo, atirando-lhe raio fumegante, εἰς ἔρεβος κατέπεμψε βαλὼν ψολόεντι κεραυνῷ

Por sua presunção e virilidade arrogante. εἵνεκ' ἀτασθαλίης τε καὶ ἠνορέης ὑπερόπλου.

Atlas sustém o vasto céu sob violenta tortura, Ἄτλας δ' οὐρανὸν εὐρὺν ἔχει κρατερῆς ὑπ' ἀνάγκης,

Nos confins da terra, diante das Hespérides de voz harmoniosa, πείρασιν ἐν γαίης πρόπαρ' Ἑσπερίδων λιγυφώνων

Apoiando-o em sua cabeça e nos braços incansáveis; ἑστηώς, κεφαλῇ τε καὶ ἀκαμάτῃσι χέρεσσι·

Pois este destino lhe designou o prudente Zeus. ταύτην γάρ οἱ μοῖραν ἐδάσσατο μητίετα Ζεύς.

Atou com inquebrantáveis amarras Prometeu pleno de idéias, δῆσε δ' ἀλυκτοπέδῃσι Προμηθέα ποικιλόβουλον,

Grilhões dolorosos passados em meio a uma coluna, δεσμοῖς ἀργαλέοισι, μέσον διὰ κίον' ἐλάσσας·

E sobre ele instigou uma águia de largas asas. Esta o fígado καί οἱ ἐπ' αἰετὸν ὦρσε τανύπτερον· αὐτὰρ ὅ γ' ἧπαρ

Imortal comia, regenerando-se nas mesmas proporções, ἤσθιεν ἀθάνατον, τὸ δ' ἀέξετο ἶσον ἁπάντῃ

Durante a noite, o comido de dia pela ave de largas asas. νυκτός, ὅσον πρόπαν ἦμαρ ἔδοι τανυσίπτερος ὄρνις.

O forte filho de Alcmena de belos tornozelos, τὸν μὲν ἄρ' Ἀλκμήνης καλλισφύρου ἄλκιμος υἱὸς

Heracles, a matou e repeliu o horrível sofrimento Ἡρακλέης ἔκτεινε, κακὴν δ' ἀπὸ νοῦσον ἄλαλκεν

Do Japetônida, libertando-o de seu tormento, Ἰαπετιονίδῃ καὶ ἐλύσατο δυσφροσυνάων,

Não sem o consentimento do soberano Zeus Olímpico, οὐκ ἀέκητι Ζηνὸς Ὀλυμπίου ὕψι μέδοντος,

Para que a fama de Heracles Tebano fosse ὄφρ' Ἡρακλῆος Θηβαγενέος κλέος εἴη

Maior do que antes sobre a fecunda terra. πλεῖον ἔτ' ἢ τὸ πάροιθεν ἐπὶ χθόνα πουλυβότειραν.

Com estes cuidados honrou seu notável filho e, ταῦτ' ἄρα ἁζόμενος τίμα ἀριδείκετον υἱόν·

Ainda que estivesse irritado, mitigou-lhe a cólera que possuía καί περ χωόμενος παύθη χόλου, ὃν πρὶν ἔχεσκεν,

Contra aquele que desafiou a vontade do muito poderoso Crônida. οὕνεκ' ἐρίζετο βουλὰς ὑπερμενέι Κρονίωνι.

Mito de Prometeu. Criação da mulher


(535) Enquanto os deuses e homens mortais litigavam (535) Καὶ γὰρ ὅτ᾽ ἐκρίνοντο θεοὶ θνητοί τ᾽ ἄνθρωποι

Em Mecona, com ânimo resoluto, um enorme boi ele Μηκώνῃ, τότ᾽ ἔπειτα μέγαν βοῦν πρόφρονι θυμῷ

Ofertou dividindo, tentando enganar a inteligência de Zeus. δασσάμενος προέθηκε, Διὸς νόον ἐξαπαφίσκων.

Pois à carne e às gordas vísceras com banha Τοῖς μὲν γὰρ σάρκας τε καὶ ἔγκατα πίονα δημῷ

Sob a pele guardou, ocultas no ventre do boi, ἐν ῥινῷ κατέθηκε καλύψας γαστρὶ βοείῃ,

E, aos brancos ossos do boi, com astúcia enganadora, τῷ δ᾽ αὖτ᾽ ὀστέα λευκὰ βοὸς δολίῃ ἐπὶ τέχνῃ

Ordenou, cobrindo-os, ocultos, com brilhante gordura. εὐθετίσας κατέθηκε καλύψας ἀργέτι δημῷ.

Então se dirigiu a ele o pai dos homens e deuses: Δὴ τότε μιν προσέειπε πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε·

“Japetônida, notável entre todos os soberanos, Ἰαπετιονίδη, πάντων ἀριδείκετ᾽ ἀνάκτων,

Ó amável, com que parcimônia dividiste as partes de cada um!” ὦ πέπον, ὡς ἑτεροζήλως διεδάσσαο μοίρας.

Assim falou, zombando, Zeus conhecedor dos desígnios imortais. Ὥς φάτο κερτομέων Ζεὺς ἄφθιτα μήδεα εἰδώς.

E respondeu-lhe Prometeu de curvo pensar, Τὸν δ᾽ αὖτε προσέειπε Προμηθεὺς ἀγκυλομήτης

www.revistasamizdat.com 67
Sorrindo de leve, não se esquecendo de sua astúcia enganadora: ἦκ᾽ ἐπιμειδήσας, δολίης δ᾽ οὐ λήθετο τέχνης·
“Zeus, o mais ilustre e poderoso dos deuses sempiternos, Ζεῦ κύδιστε μέγιστε θεῶν αἰειγενετάων,
Pega dentre os dois aquele que, em seu âmago, dita a vontade.” τῶν δ᾽ ἕλε᾽, ὁπποτέρην σε ἐνὶ φρεσὶ θυμὸς ἀνώγει.
Falou, pois, com pensamentos enganadores. Zeus, conhecedor dos Φῆ ῥα δολοφρονέων· Ζεὺς δ᾽ ἄφθιτα μήδεα εἰδὼς
desígnios imortais,
Soube e não ignorava o engano; mas antevia em seu espírito males γνῶ ῥ᾽ οὐδ᾽ ἠγνοίησε δόλον· κακὰ δ᾽ ὄσσετο θυμῷ
Aos homens mortais, aos quais deveriam se realizar. θνητοῖς ἀνθρώποισι, τὰ καὶ τελέεσθαι ἔμελλεν.
Com ambas as mãos apanhou a branca gordura. Χερσὶ δ᾽ ὅ γ᾽ ἀμφοτέρῃσιν ἀνείλετο λευκὸν ἄλειφαρ.
Irritou-se em seu íntimo, a cólera alcançou-lhe o espírito, Χώσατο δὲ φρένας ἀμφί, χόλος δέ μιν ἵκετο θυμόν,
Quando viu os alvos ossos do boi sob astúcia enganadora. ὡς ἴδεν ὀστέα λευκὰ βοὸς δολίῃ ἐπὶ τέχνῃ.
Desde então, a estirpe dos homens sobre a terra aos imortais Ἐκ τοῦ δ᾽ ἀθανάτοισιν ἐπὶ χθονὶ φῦλ᾽ ἀνθρώπων
Queima brancos ossos nos olorosos altares. καίουσ᾽ ὀστέα λευκὰ θυηέντων ἐπὶ βωμῶν.
E àquele disse Zeus cumulador de nuvens, grandemente indignado: Τὸν δὲ μέγ᾽ ὀχθήσας προσέφη νεφεληγερέτα Ζεύς·
“Japetônida, de tudo conhecedor dos desígnios, Ἰαπετιονίδη, πάντων πέρι μήδεα εἰδώς,
Ó amável, não esqueceste de tua astúcia enganadora!” ὦ πέπον, οὐκ ἄρα πω δολίης ἐπιλήθεο τέχνης.
Assim encolerizado disse Zeus, conhecedor dos desígnios imortais. Ὥς φάτο χωόμενος Ζεὺς ἄφθιτα μήδεα εἰδώς·
Desde então, lembrou-se sempre deste engano ἐκ τούτου δὴ ἔπειτα δόλου μεμνημένος αἰεὶ
E não deu o ardor infatigável do fogo nos freixos οὐκ ἐδίδου μελίῃσι πυρὸς μένος ἀκαμάτοιο
Para os homens mortais que habitam sobre a terra. θνητοῖς ἀνθρώποις, οἳ ἐπὶ χθονὶ ναιετάουσιν.
Mas o enganou o bom filho de Japeto, Ἀλλά μιν ἐξαπάτησεν ἐὺς πάις Ἰαπετοῖο
Escondendo o brilho que se vê de longe do fogo infatigável κλέψας ἀκαμάτοιο πυρὸς τηλέσκοπον αὐγὴν
Em um bastão oco. Então, feriu profundamente o espírito ἐν κοΐλῳ νάρθηκι· δάκεν δέ ἑ νειόθι θυμόν,
De Zeus tonitruante e irritou-se em seu coração Ζῆν᾽ ὑψιβρεμέτην, ἐχόλωσε δέ μιν φίλον ἦτορ,
Quando avistou entre os homens o brilho que se vê de longe do fogo. ὡς ἴδ᾽ ἐν ἀνθρώποισι πυρὸς τηλέσκοπον αὐγήν.
E, em troca do fogo, preparou um mal para os homens: Αὐτίκα δ᾽ ἀντὶ πυρὸς τεῦξεν κακὸν ἀνθρώποισιν·
Modelou a terra o ilustre Coxo γαίης γὰρ σύμπλασσε περικλυτὸς Ἀμφιγυήεις
Semelhante a pudica donzela, por vontade do Crônida. παρθένῳ αἰδοίῃ ἴκελον Κρονίδεω διὰ βουλάς.
A deusa Atena de olhos glaucos cingiu-a e a adornou Ζῶσε δὲ καὶ κόσμησε θεὰ γλαυκῶπις Ἀθήνη
Com um vestido de resplandecente brancura; cobriu-a desde a cabeça ἀργυφέη ἐσθῆτι· κατὰ κρῆθεν δὲ καλύπτρην
Com um véu bordado por suas próprias mãos, maravilha de se ver; δαιδαλέην χείρεσσι κατέσχεθε, θαῦμα ἰδέσθαι·
E com coroas de erva fresca trançada com flores, [ἀμφὶ δέ οἱ στεφάνους, νεοθηλέος ἄνθεα ποίης,
Atraentes, rodeou Palas Atena suas têmporas. ἱμερτοὺς περίθηκε καρήατι Παλλὰς Ἀθήνη. ]
Em sua cabeça colocou uma coroa de ouro ἀμφὶ δέ οἱ στεφάνην χρυσέην κεφαλῆφιν ἔθηκε,
Que o próprio ilustre Coxo cinzelou, τὴν αὐτὸς ποίησε περικλυτὸς Ἀμφιγυήεις
Trabalhando manualmente, agradando ao pai Zeus. ἀσκήσας παλάμῃσι, χαριζόμενος Διὶ πατρί.
Nela gravou muitos ornamentos, maravilhas de se ver, Τῇ δ᾽ ἐνὶ δαίδαλα πολλὰ τετεύχατο, θαῦμα ἰδέσθαι,
Monstros terríveis que o continente e o mar nutrem; κνώδαλ᾽, ὅσ᾽ ἤπειρος πολλὰ τρέφει ἠδὲ θάλασσα·
Muitos deles pôs — em todos se manifestava a beleza —, τῶν ὅ γε πόλλ᾽ ἐνέθηκε,—χάρις δ᾽ ἀπελάμπετο πολλή,—
Maravilhosos, quais seres vivos dotados de voz. θαυμάσια, ζῴοισιν ἐοικότα φωνήεσσιν.
Após preparar com beleza o mal, em troca de um bem, Αὐτὰρ ἐπεὶ δὴ τεῦξε καλὸν κακὸν ἀντ᾽ ἀγαθοῖο,
Conduziu-a onde estavam os demais deuses e os homens, ἐξάγαγ᾽, ἔνθα περ ἄλλοι ἔσαν θεοὶ ἠδ᾽ ἄνθρωποι,
Enfeitada com adorno pela deusa de olhos glaucos de pai poderoso. κόσμῳ ἀγαλλομένην γλαυκώπιδος ὀβριμοπάτρης.
E um estupor se apoderou dos deuses imortais e dos homens mortais θαῦμα δ᾽ ἔχ᾽ ἀθανάτους τε θεοὺς θνητούς τ᾽ ἀνθρώπους,
Quando viram o escarpado engano, irresistível para os homens. ὡς ἔιδον δόλον αἰπύν, ἀμήχανον ἀνθρώποισιν.

68 SAMIZDAT abril de 2009


68
Dela descende a estirpe de mulheres femininas; [ἐκ τῆς γὰρ γένος ἐστὶ γυναικῶν θηλυτεράων,]
Dela descende a funesta estirpe e gênero das mulheres; τῆς γὰρ ὀλώιόν ἐστι γένος καὶ φῦλα γυναικῶν,
Grande desgraça que habita entre os homens mortais, πῆμα μέγ᾽ αἳ θνητοῖσι μετ᾽ ἀνδράσι ναιετάουσιν
Não afeitas à funesta pobreza, mas à saciedade. οὐλομένης πενίης οὐ σύμφοροι, ἀλλὰ κόροιο.
Assim como quando nas colméias abobadadas, as abelhas Ὡς δ᾽ ὁπότ᾽ ἐν σμήνεσσι κατηρεφέεσσι μέλισσαι
Alimentam os zangões, agregados a más obras; κηφῆνας βόσκωσι, κακῶν ξυνήονας ἔργων·
Aquelas, durante todo o dia, até o sol se pôr, αἳ μέν τε πρόπαν ἦμαρ ἐς ἠέλιον καταδύντα
Diurnas, trabalham e produzem os brancos favos de mel, ἠμάτιαι σπεύδουσι τιθεῖσί τε κηρία λευκά,
Enquanto aqueles aguardam dentro, sob abrigo da colméia, οἳ δ᾽ ἔντοσθε μένοντες ἐπηρεφέας κατὰ σίμβλους
E recolhem em seu ventre o esforço alheio; ἀλλότριον κάματον σφετέρην ἐς γαστέρ᾽ ἀμῶνται·
Assim, como mal para os homens mortais, as mulheres ὣς δ᾽ αὔτως ἄνδρεσσι κακὸν θνητοῖσι γυναῖκας
Fez Zeus tonitruante, agregadas a obras Ζεὺς ὑψιβρεμέτης θῆκεν, ξυνήονας ἔργων
Terríveis. Outro mal lhes concebeu em troca de um bem: ἀργαλέων· ἕτερον δὲ πόρεν κακὸν ἀντ᾽ ἀγαθοῖο·
Aquele que, fugindo do matrimônio e das inquietantes obras das ὅς κε γάμον φεύγων καὶ μέρμερα ἔργα γυναικῶν
mulheres,
Não desejar se casar, alcança a funesta velhice μὴ γῆμαι ἐθέλῃ, ὀλοὸν δ᾽ ἐπὶ γῆρας ἵκοιτο
Carente de auxílio, este com alimento insuficiente não χήτεϊ γηροκόμοιο· ὅ γ᾽ οὐ βιότου ἐπιδευὴς
Viverá, mas, ao morrer, repartirão suas posses ζώει, ἀποφθιμένου δὲ διὰ κτῆσιν δατέονται
Parentes afastados. Àquele que o fado do matrimônio alcança χηρωσταί· ᾧ δ᾽ αὖτε γάμου μετὰ μοῖρα γένηται,
E consegue ter uma esposa sensata e adornada de sabedoria, κεδνὴν δ᾽ ἔσχεν ἄκοιτιν ἀρηρυῖαν πραπίδεσσι,
Este, durante toda a vida, o mal se equivale ao bem τῷ δέ τ᾽ ἀπ᾽ αἰῶνος κακὸν ἐσθλῷ ἀντιφερίζει
Constantemente. A quem sobrevier uma de funesta raça, ἐμμενές· ὃς δέ κε τέτμῃ ἀταρτηροῖο γενέθλης,
Vive incessante aflição no peito, ζώει ἐνὶ στήθεσσιν ἔχων ἀλίαστον ἀνίην
No espírito e no coração; e seu mal é incurável. θυμῷ καὶ κραδίῃ, καὶ ἀνήκεστον κακόν ἐστιν.
Assim, não é possível enganar nem evitar a vontade de Zeus; Ὥς οὐκ ἔστι Διὸς κλέψαι νόον οὐδὲ παρελθεῖν.
Pois nem o Japetônida, o benevolente Prometeu, Οὐδὲ γὰρ Ἰαπετιονίδης ἀκάκητα Προμηθεὺς
Livrou-se de sua poderosa cólera, mas, sob tortura, τοῖό γ᾽ ὑπεξήλυξε βαρὺν χόλον, ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἀνάγκης
Apesar de astuto, enorme grilhão o detém. καὶ πολύιδριν ἐόντα μέγας κατὰ δεσμὸς ἐρύκει.
Extraído de "Teogonia" Θεογονία

O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
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www.oficinaeditora.org
Teoria Literária

A Arte de Trair
Breves reflexões sobre o ofício da tradução

Henry Alfred Bugalho


henrybugalho@gmail.com

70 SAMIZDAT abril de 2009


70
Eu devo ser um dos história, sua trajetória, país, qual não é o esforço
piores tradutores do seu contexto social e geo- requerido para se pôr no
mundo. gráfico. Se toda língua se registro dum povo tão
desenvolvesse de maneira distante culturalmente
Não digo isto por al- semelhante, não haveria quanto a China? Como
guma razão qualquer, seja diferença alguma entre o traduzir com proprieda-
porque não domino a lín- português de Portugal, do de frases, expressões e
gua de origem ou de des- Brasil, de Angola ou Mo- ideias que só fazem senti-
tino do texto a ser tradu- çambique, por exemplo. do no interior dum con-
zido, ou porque não me Estas quatro variantes do texto histórico e social
esforço por tentar recriar português são a mesma que não nos pertence?
o sentido de uma palavra, língua, mas todas pos-
sentença, ou ideia. suem expressões, palavras A resposta parece ser
e sentidos compreensíveis simples: para um tra-
Digo-o apenas porque dutor, não basta apenas
simplesmente não acredi- apenas no interior de
suas comunidades lin- conhecer a língua de ori-
to no que faço. gem, mas um bocado da
guísticas. Histórias dife-
Para mim, não existe rentes e povos diferentes História do país falante
tradução. conduzem a variações e desta língua, entender sua
desvios nas línguas. cultura, suas especificida-
des, sua singularidade.
Primeiro, pensamos
Desde o nível mais
apenas no português, mas
fundamental, ou seja, do
imaginemos as diferen- Então, daremos um
pensamento à comuni-
ças que existem entre o passo atrás.
cação deste pensamento,
russo, o chinês, o tcheco
até o último grau nesta Pensemos no traba-
e o português. Não es-
escala, isto é, a tradução lho individual e solitário
tamos falando apenas
dum texto de um idioma do autor, que através da
de Histórias nacionais
para outro, a passagem é escrita transmite seus
diferentes, falamos agora
sempre problemática. pensamentos, preocupa-
dum contexto linguístico,
Comecemos pelo fim social e cultural total- ções, anseios, medos e
desta cadeia. mente diferente do nosso. devaneios.
As variações não residem
Temos um texto literá- Qualquer um que já se
mais em apenas palavras,
rio num idioma que não deteve diante duma folha
expressões ou sentidos,
nos pertence. Por uma em branco reconhece
mas sim em toda uma
razão qualquer, queremos a grande barreira que
construção sintática,
vertê-lo para nossa língua existe entre pensamento
morfológica, filológica e,
nativa. e escrita. Muitas vezes,
às vezes, alfabética.
http://www.florin.ms/cupboard.jpg

em momentos de refle-
É neste salto entre a Se para um brasilei- xão, surgem-nos no livro
origem e o destino que ro compreender uma da mente frases perfeitas,
encontramos o primeiro expressão de Portugal é sentenças irretocáveis e
abismo. necessário, por vezes, um parágrafos ou páginas
esforço para se pôr no inteiras dignas de um
Toda língua possui sua
registro cultural daquele mestre.

www.revistasamizdat.com 71
No entanto, assim que cionava com a cultura de Portanto, entre a reali-
elas são transportadas sua época. dade e nossos pensamen-
para a folha de papel, tos também existe um
muitas destas ideias se abismo, e este é realmen-
revelam imperfeitas, ou Que nós retrocedamos te intransponível.
tolas, ou ridículas. Não um passo, então.
é a toa que boa parte do Não estamos falando
trabalho de um escri- Todo pensamento de algo como uma coisa
tor é na hora de revisar, deriva duma impressão em-si, ou a essência das
de cortar, de remendar sensorial. Cotidianamen- coisas, estamos falando
sua obra. Basta acompa- te, vemos, ouvimos, senti- de algo mais simples e
nharmos a biografia de mos, degustamos, somos bem distante de toda
qualquer grande escritor afetados por inúmeras e qualquer metafísica:
e veremos que quase sensações. nosso conhecimento é
todos duelavam com suas fragmentado, temos ape-
Não creio que devamos nas acesso a parcelas da
obras, refazendo-as, rees-
empreender uma inves- realidade.
crevendo-as, às vezes até
tigação profunda sobre o
renegando-as.
processo cognitivo do ser
A criação da obra humano, se nossa mente Acompanhe então todo
literária não é uma via- é uma tabula rasa, vazia o processo feito por nós:
gem por mares tranqui- de conteúdos e que vai
los, mas sim um embate sendo construída com o a - da tradução ao tex-
constante e interminável, tempo, ou se nós possu- to de origem;
que chega até a perdurar ímos várias faculdades
que vão sendo alimenta- b - do texto de origem
após a publicação das
das com nossas vivências, ao autor deste texto;
mesmas.
mas o que importa é que c - do autor do tex-
Qualquer autor sabe a maior parte do nosso to aos pensamentos do
que, entre os pensamen- conhecimento surge atra- autor;
tos e a escrita, há tam- vés dos sentidos.
bém um abismo. d - dos pensamentos
No entanto, nosso co- do autor às vivências des-
Como suprir esta nhecimento do mundo é te autor;
lacuna, nós nos pergunta- parcial. Nossos olhos, ou-
mos? Como traduzir com vidos, mãos, palato, nariz e - das vivências do
propriedade este conflito nos mostram facetas da autor à realidade.
que surge com o primei- realidade. Se vemos o sol
ro pensamento do autor Cinco etapas que nos
nascente, por exemplo,
e se manifesta na palavra afastam do sentido, cinco
percebemos sua cor e as
escrita? decisões totalmente arbi-
tonalidades do céu, sen-
trárias, comprometidas e
Também neste caso, a timos seu calor, mas não
duvidosas. Quatro destas
resposta parece ser sim- temos um conhecimento
etapas ocorrem através
ples: basta conhecermos a da totalidade do que é o
do autor e do processo
biografia do autor; basta sol. Acercamo-nos deste
de escrita, a última se dá
lermos o conjunto de sua objeto dentro de nossas
pelas mãos do tradutor,
obra e como ele se rela- limitações sensoriais.
completamente distante

72 SAMIZDAT abril de 2009


72
e alheio à gênese da obra obstáculos desta tarefa. mos todas as traduções
literária. Além disto, ao comparar existentes dum único
a tradução para o russo poema em todos os idio-
Podemos aceitar que com o original em inglês, mas, não conseguiríamos
um autor diga: “era isto ele começou a identificar esgotar as possibilidades
que eu pretendia mos- os defeitos e imprecisões de tradução e de inter-
trar”; contudo, é muito do texto original. pretação deste poema
mais complicado aceitar- original. Vou até mais
mos um tradutor asse- No conto “Pierre Me- longe nesta direção:
verando: “era isto que o nard, o autor de Quixote”, mesmo que reuníssemos
autor pretendia mostrar”. Jorge Luis Borges conce- todas as traduções dum
be um evento insólito: texto literário qualquer,
Pierre Menard, um poeta não esgotaríamos as pos-
A verdadeira e úni- francês, decide escrever o sibilidades de tradução,
ca tradução só poderia livro “Dom Quixote”. Mas tampouco eliminaríamos
ocorrer se o tradutor Menard não pretende as fissuras entre o origi-
pudesse sentir e receber escrever uma versão de nal e a tradução.
as mesmas impressões Dom Quixote, uma relei-
do autor, conceber os tura, ou uma atualização,
mesmos pensamentos e Menard deseja escrever o
“Dom Quixote”. Para tan- Mas também não se
transportá-los para sua iluda, acreditando que
língua nativa. to, ele começa a pesqui-
sar o período histórico defendo uma relativiza-
É justamente por isto no qual viveu Cervantes ção absoluta e que toda
que traduções próprias e o castelhano daquela tradução seja igualmente
dos autores, ou colabo- época, ou melhor, tornar- malfadada.
rativas, costumam ser se Miguel de Cervantes. Existem sim traduções
mais fidedignas, mas, melhores ou piores, mas
para tanto, o autor pre- O ofício do tradutor
não é diferente, só que, todas, sem exceção, ta-
cisa ter um domínio teiam em meio à escuri-
razoável tanto da língua ao invés de escrever a
mesma obra, o tradutor é dão dos significados, das
de destino quanto da de falhas interpretativas, mas
origem. Samuel Beckett aquele que deveria escre-
ver aquela obra em outro alguns tradutores já se
escreveu seus roman- habituaram às trevas e se
ces em francês, mas ele idioma.
movimentam melhor, ou-
possuía competência e A verdadeira tradução tros ainda estão perdidos
autoridade para assistir só seria possível se ela em meio ao breu.
à tradução de, ou ele fosse como um decalque
próprio traduzir, suas do texto, uma correspon- As boas traduções são
obras para o inglês, sua dência perfeita, palavra aquelas que melhor dis-
língua nativa. Nabokov por palavra, sentido por farçam a traição à ori-
concebeu sua obra-prima, sentido, intenção por in- gem, as que conseguem
“Lolita”, em inglês, mas se tenção, só que na língua simular ser o que não
encarregou de traduzi-la de destino. são.
para o russo, sua língua
materna e, neste proces- Henri Bergson afirma
so, descobriu os grandes que mesmo se reunísse-

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Crônica

http://www.flickr.com/photos/mcsimon/2762383402/sizes/l/
Maristela Scheuer Deves

Nós, mulheres,
as eternas insatisfeitas
Está ali, no espelho: esse salão de beleza para deixá-
cabelo não toma jeito, mes- los cheios de cachinhos -
mo! Quem dera ele fosse isso de vez em quando, pois
igual ao daquela colega, ou já que a natureza não quis
ao daquela outra amiga... assim, meu bolso se recusa
Duvido que haja mulher a acompanhar o preço das
que não tenha ainda vivido manobras necessárias para
essa cena. Eu, pelo menos, driblar a genética. A cor,
ainda não entendi por que claro, também precisa ser
Deus me fez nascer de ca- mudada de vez em quando.
belos lisos, quando sempre Ora, onde já se viu, quem
adorei vê-los ondulados. E escolheu esse castanho sem
vai baby liss, rolos, horas no sal para colorir minhas

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madeixas? filhos poderiam, também,
Henry Alfred Bugalho
ser loiros, já que a mãe de- A
Por essas e outras, fico
GUI
Nova York
pasma quando amigas les não é... Quanto à altura,
me contam das escovas e meus 30 (e poucos) anos
chapinhas que fazem para não me permitem mais so-
domar os rebeldes cabelos nhar em ultrapassar os 1,63 para Mãos-de-VAca
crespos. Fico com vontade m. Assim, a solução são os
de perguntar se querem sapatos de salto alto (acos-
O Guia do Viajante Inteligente
trocar seus crespos pelo tumei tanto que nem consi-
go mais andar sem eles). www.maosdevaca.com
meu escorrido... Aliás, não
é só o cabelo que tenho Pelo menos, adoro as
vontade de “intercambiar”, minhas unhas, longas, em
às vezes, com outras eter- vez daquelas quadradas que
nas insatisfeitas como eu. acho tão horrorosas - viu?
Agora que cheguei no meu Nem todo mundo é um de-
peso ideal (até passei um feito completo! A vantagem
pouquinho, confesso), desis- é que estou mais satisfeita e
ti de querer uns quilinhos menos complexada do que
emprestados de quem sofre há alguns anos, pois conse-
para perdê-los, mas conti- gui vencer o estigma de ser
nuaria aceitando doações, muito magra. Já imaginou,
se fosse possível, daquelas cabelos lisos, castanhos,
que reclamam dos seios olhos castanhos, baixinha,
volumosos demais. E eu, e ainda por cima magérri-
que sonho em um dia ter ma? Sim, eu sei, não passar
verba suficiente para botar dos 50 quilos é o sonho de
silicone! muitas candidatas a modelo,
E meus tão desejados mas euzinha sou uma sim-
olhos verdes? Minha mãe ples jornalista que sempre
tem olhos verdes, minha quis ter formas arredonda-
irmã também, e idem os das. Só tenho de me cuidar,
meus dois sobrinhos Por agora, para não entrar no
que a maldita genética me time das gordinhas. Aliás
deu olhos castanhos? Já (suspiros), a minha cintura
que nunca conseguiria usar já não tem mais 60 centí-
lentes, torço agora para que metros...
um dia a minha prole her-
de o verde-esmeralda que
eu não herdei. Ah, meus

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Crônica

http://www.flickr.com/photos/87765855@N00/3105128025/sizes/l/
Léo Borges

As incongruências do “né?”
Um grande temor que estão ali apenas para tentar um pouco familiarizado.
percebo no mundo de hoje dividir a culpa? Bom, é aí As duas letrinhas e a inde-
é o medo por algo que não que entra em ação o tão fectível interrogação vêm
deu certo ou pelo que pode decantado “né?”. sempre no final da frase
vir a não dar. Se fechou Essa corruptela de “não e buscam a redenção da
bem, ótimo, a coisa funcio- é?” é uma das engenhosi- mesma.
nou, foi adiante, cumpriu dades do ser humano para - Todo mundo estudou
seu papel. Mas e se existir a fazer com que o receptor pra essa prova, né? – per-
possibilidade de dar errado? da mensagem se veja encur- gunta um dos alunos que
Ou se ainda restam dúvi- ralado. Ele deverá assumir não estudou nada e que
das, muitas vezes frágeis, uma situação já fracassada, quer saber se vai poder
que admitem um trágico próxima do desastre ou encontrar alguém que lhe
fim da operação e que com a qual não está nem forneça a cola. A pergunta,

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em princípio, aparenta que não admitindo um “né?” vemos por aí em spray ver-
ele também estudou, mas o gaiato. Ou “Antes tarde do melho coisas do tipo “Não
“né” desarticula completa- que nunca, né?”. Nem pen- jogue lixo aqui, né?” ou “Eu
mente essa impressão. sar. Aí o “né” daria margem amo a Simone, né?”. Todos
O “né”, em sua essência, é para o evento nunca ser perceberiam a frouxidão da
cínico, medroso, falso, des- realizado. coisa e largariam entulhos
pudorado, sarcástico, persu- Imaginem as grandes ti- sob o rabisco e zombariam
asivo, ameaçador e irritan- radas da Humanidade com da infeliz que, como estaria
te. De tanto ser utilizado o “né” incutido nelas. “Inde- bem claro, era mentirosa-
por quem precisa de uma pendência ou morte, né?”. mente amada.
escapatória, de um alicerce Né?! Que isso! Bom, ainda De modo semelhante te-
opinativo, de uma salvação bem que Dom Pedro não mos o “you know” na língua
argumentativa, ele vira ca- titubeou nessa. E já imagi- inglesa. É o chantagista e
coete. E essa, a meu ver, é a naram os milicos com “Bra- coercitivo “você sabe” ma-
sua forma mais pobre: sil: ame-o ou deixei-o, né?”. roto - que também polui o
- Então, tá, né? Com certeza não seria coisa final das frases - colocando
de militar essa frase pusilâ- na parede o coitado do
Se “tá”, por que o “né”?
nime. Os sisudos astronau- interlocutor. Como o sujeito
Está feito, garantido, re-
tas da NASA vacilando com vai saber de alguma coisa
solvido. Mas a pessoa não
“Houston, nós temos um se ainda pouco ou nada foi
consegue ser forte e parar
problema, né?” trocaria o dito? É da mesma linhagem.
ali. Precisa do seu cão-de-
drama pela comicidade. A Eu sempre me patrulho
guarda “né” por perto. Pior
base responderia de pronto: para não largar um “né”
que isso é o “é, né?”. Ou
“Apollo XIII, vocês têm ou nos finais das minhas falas.
seja, a pessoa concorda para
não têm um problema, ca- Acho um recurso feio es-
logo imediatamente colocar
cete?”. Ou ainda o ridículo teticamente que não acres-
em dúvida o que acabou de
que seria o lobo-mau res- centa nada ao discurso, a
concordar. Para essa pessoa
pondendo à Chapeuzinho não ser a tal passada de
o fato “é”, mas, inconseqüen-
Vermelho sobre o tamanho responsabilidade. Se o outro
temente e com grande irres-
de seus olhos: “são para te responder ao “né” com “é” é
ponsabilidade, “deixou de
enxergar melhor, né?”. A porque ele assumiu a coisa
ser” e passou a ser dúvida,
menina perceberia na hora e vai ter de se virar com
reenviada para a confirma-
a artimanha fake do bicho isso.
ção do emissor.
e veria que aquela vovó era
O povo é sábio e os Então, vamos combinar
um blefe, um engodo, uma
ditados populares não caem que esse negócio de “né” pra
farsa.
nessa esparrela. “Cavalo cá, “né” pra lá não está com
As pichações de muros, nada, né? Ou melhor... Você
dado não se olha os dentes,
que muitos acham que é só não concorda?
né?”. Ninguém confere a
molecagem, são quase sem-
“cárie” do presente recebido.
pre sérias quando abordam
É de graça, então a firmeza
esse detalhe técnico. Não
é a alma dessa afirmativa,

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Crônica

Monumento ao
vandalismo
Joaquim Bispo

(no Parque Eduardo VII, Que mente doentia, que desde o momento em que ela
em Lisboa) espírito atormentado, que foi entregue ao público e se
Alguém vislumbrou, men- alma putrefacta é que ence- tornou bem cultural colecti-
talmente, esta forma imersa ta a actividade de mutilar e vo, nem mesmo o artista que
na pedra amorfa e executou desfigurar uma escultura em a concebeu.
este trabalho grandioso; obra pedra, tão simples e majesto- (E quanto alguns querem
difícil de conceber, dolorosa sa como esta? alterar a sua obra! É paradig-
de parir. Concedamos, esta escultu- mática a história dum pintor
ra não é das melhores obras francês que, tendo uma obra
que a Humanidade já pro- sua num museu importan-
Outro alguém optou por
duziu mas, ainda que fosse te, mas estando descontente
executar a tarefa fácil, mes-
a mais aberrante, ninguém com um determinado matiz
quinha de a desagregar e
tem o direito de alterá-la, e, que tinha usado, conseguiu
devolver ao informe.

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a colaboração de um ami- muito mais da sua história por esculturas em bronze e
go para entreter o vigilante, como escultura e da mentali- aço. A ver se resistem aos ac-
enquanto pincelava rapida- dade desta sociedade. tivos interventores de espaço
mente a zona em causa com Significa isto que se pode público que por aí obram.
um matiz que achava mais desculpar quem vandaliza Como esta, de Teixeira Lopes,
adequado.) esculturas no espaço públi- que fazia conjunto com um
Esta escultura foi adul- co? Nem um bocadinho! E é busto de Eça de Queirós
terada e é curioso que essa condenável alguma cultura com a legenda «Sob o manto
alteração lhe acrescentou sig- da novidade, alguma postura diáfano da fantasia, a nudez
nificados. Já não representa de repúdio pelo que vem de forte da verdade», retirada
só uma deusa ou uma vir- trás, pela cultura dos pais de «A Relíquia» do citado
tude, representa agora, tam- e dos avós, só porque tem romancista.
bém, a maneira como esta umas dezenas de anos; pelo Acho bem que se substitu-
sociedade lida com as suas património, só porque apre- am. É que, além do mais, não
obras de arte expostas e o senta alguma pátina que o é necessário mais do que 1
que isso significa de divórcio tempo dá. monumento ao vandalismo
em relação à arte da tradi- na mesma cidade!

Foto: Joaquim Bispo


ção cultural e de desrespeito (Fotos pelo autor do texto)
É sintomático que se este-
pelo espaço público e pelo
jam a substituir as esculturas
outro. Ou, o que era uma
em pedra no espaço público
entidade majestosa e pode-
rosa se ter transformado em
vítima impotente. Ou outros
sentimentos que nos acodem
Foto: Joaquim Bispo

ao ver esta figura mutilada. É


toda uma outra obra de arte
que temos perante nós. Que
algum artista plástico podia
ter concebido, assim mesmo,
mutilada. Como no século
XIX se construíam ruínas de
raiz.
Neste sentido, pode-se
questionar se se deve devol-
ver a estátua à sua forma
original. Tenho a certeza que,
se houvesse discussão públi-
ca sobre este assunto, haveria
quem defendesse a manuten-
ção do estado actual da obra.
Assim, como está, transmite

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Crônica

Henry Alfred Bugalho

Livin’ in America

Obama, o 44º
presidente branco
80 SAMIZDAT abril de 2009
80
Sei que é um pouco tade branco, o Obama é meu segundo carro.
tarde para falar da elei- o cachorro bege.
Lula era temido porque
ção à presidência de
E o segundo evento foi trazia à tiracolo o estig-
Barack Obama, principal-
quando, en passant, escu- ma do comunismo. No
mente porque os votos
tei, com o rabo de ouvi- entanto, bastou ele mudar
já foram contados e ele
do, a conversa entre uma a imagem, vestir terno e
até já tomou posse, mas
mulher e um homem, gravata, reduzir o tom de
há algo que me inquieta,
brancos, sobre a eleição. voz e falar pausamente,
desde que todo este furor
A mulher, aparentemente que a classe média foi
começou e Obama des-
defendendo seu ponto de conquistada.
pontou como o favorito à
vista e justificando seu
Casa Branca. Lula foi eleito, e reelei-
voto em Obama, disse:
to.
Dois eventos em parti-
- Sabe o que é estra-
cular despertaram mi- Vejo um grande para-
nho? Eu não vejo Obama
nha desconfiança sobre lelo, neste sentido, entre
como um negro, mas
esta eleição; dois eventos Lula e Obama. Ambos
apenas como um homem.
frívolos, corriqueiros, mas disseminavam uma men-
que me revelaram uma Estas duas histórias sagem de esperança, am-
nova perspectiva sobre imediatamente me fize- bos representavam uma
como os americanos ram recordar do nosso mudança significativa no
brancos viam Obama. presidente Lula. Toda a cenário político - o pri-
imagem que havia sido meiro, um torneiro me-
Havia três cachorros
criada durante a carreira cânico, sem muita educa-
na rua: um preto, um
política dele era a do sin- ção, tornado presidente;
marronzinho (quase
dicalista, camiseta verme- o segundo, um negro,
bege-claro) e um branco.
lha, barba desgrenhada num país extremamente
Alguns mendigos passa-
e gritos de ordem sobre preconceituoso, tornado
ram e apontaram para os
um palanque improvisa- presidente. Ambos de-
cachorros e começaram a
do. pendiam da classe média
nomeá-los. O branco era
para se elegerem.
a Hillary Clinton, o preto Mas esta imagem de
http://gossiponthis.com/wp-content/uploads/2009/01/barack-obama.jpg

era Colin Powell e o bege político revolucionário- Apesar do apoio dos


era, para minha surpresa, comunista não ganha latinos e dos negros,
Obama. eleições. Era mais ou me- Obama jamais venceria
nos na época da primeira as eleições se não fosse
Minha esposa imedia-
vez que Lula se candida- a adesão da classe média
tamente retrucou:
tou que eu ouvia muito branca norte-americana.
- Não, o Obama é o as pessoas comentando: Mas a classe média
preto. branca norte-americana
- Eu não vou votar
jamais aceitaria um presi-
Mas os mendigos não no Lula, porque senão
dente negro, se a imagem
aceitaram. vou ter que dividir meu
que Obama nos passasse
apartamento com outras
- Não, o Obama é me- fosse a mesma que boa
pessoas e eles vão tomar

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parte dos negros america- Obama se esforçou para
nos possui, as calças lar- se afastar do pastor Jere-
gas mostrando a cueca, o miah Wright, cujo culto
jaquetão de couro, o boné ele frequentou por vários
de aba reta virado pro anos, e dos discursos
lado, o inglês de gueto e antipatriotas dele, mesmo
os ameaçadores gestos de que este pastor houvesse
cantor de rap. dito muitas verdades.

Com uma imagem des- Obama se enbranqui-


tas, Obama jamais ascen- çou para conquistar os
deria na carreira política, americanos, mesmo que
pois esta é uma imagem para os negros ele con-
associada ao ódio racial e tinuasse sendo o reflexo
ao medo. duma grande conquista
social.
Para se eleger, Obama
precisou acolher e ex-
pressar valores brancos
Em 1963, Martin Lu-
norte-americanos, o terno,
ther King Jr. projetou
a boa educação superior,
para a América o seu
a fala articulada e, princi-
sonho de igualdade, de
palmente, o foco na recu-
que os filhos dele vives-
peração da economia.
sem “numa nação na qual
Reúna uma combina- eles não fossem julgados
ção de fatores - a catas- pela cor de suas peles,
trófica administração mas pelo conteúdo de seu
Bush, a crise imobiliária caráter”.
e financeira, um adver-
Em 2008, Barack Hus-
sário prenunciando uma
sein Obama empacotou,
continuidade nos erros
promoveu e vendeu este
da gestão anterior, e um
sonho; talvez ele não
clima de esperança e mu-
tenha conseguido evitar
dança - e é fácil compre-
que os americanos o jul-
endermos como o branco
gassem pela cor da pele,
americano lançou para os
mas pelo menos ele teve
porões do inconsciente
êxito em fazê-los fingir
seu preconceito e se re-
que não julgam.
cusou a dar importância
à cor do candidato. Para
os americanos brancos,
Obama é um deles. (Publicado originalmente
em Nova York para Mãos-de-
E não é à toa que Vaca)

82 SAMIZDAT abril de 2009


82
Crônica

No confessionário
Mariana Valle

http://www.flickr.com/photos/keepwaddling1/3256953391/sizes/l/
Chiquinho estava agitado. ouvir relatos de luxúria. Deus.
Misturados ao seu alívio e Aquela divisória de madeira - Mas, então? Estaria o
àquela preguicinha boa que entre ele e o penitente era fiel cometendo o pecado do
dá logo após uma relação se- perfeita para esconder sua adultério?
xual, havia no ar uma agonia, inevitável excitação. Ainda - Tô e num tô, excelência.
um desespero. Sabe quando mais quando o pecado da - Não compreendi. Expli-
um claustrofóbico fica con- carne era confessado por que-se, por obséquio.
finado com várias pessoas uma voz masculina. Geraldo - É que está tudo em fa-
num elevador minúsculo? tinha que fazer um esforço mília, não sabe? Na verdade,
A sensação era exatamente infernal para não demonstrar acho até que fiz um bem à
essa. Era a tradicional angús- seu desejo se avolumando. minha esposa.
tia que lhe tomava o corpo E a culpa por trás daquelas - O senhor está querendo
sempre depois do prazer. O palavras em especial era um afirmar que trair sua esposa
que não o impedia de ter a verdadeiro bálsamo para é uma atitude generosa?
próxima relação. Pelo con- seus ouvidos. Geraldo en- - Vou lhe contar como
trário: só aumentava a von- fim sentia-se compreendido. tudo começou, pro senhor
tade de entrar em ação. Era Como ele queria derrubar me entender. Quando casei
como se, para compensar a aquela parede! com a Josefa, ela tinha uma
angústia, ele tivesse que em- filhinha linda, branquinha
barcar nas delícias do sexo Por isso, Geraldo não se como a neve, com os cabelos
novamente. Aliás, parecia até aguentou de curiosidade e assim cheios de voltinhas.
que Chico ansiava por essa inquiriu o penitente: Parecia um anjinho. Só que
inquietude. Estranho. Por - Mas por que praticar o ela tinha um problema,
isso, José Francisco da Silva amor tanto lhe angustia, meu sabe? Problema de cabeça. O
resolveu se confessar. jovem? Acaso não é casado? disgramado do pai só sirviu
- Sou sim, seu padre. pra fazer essa menina com
Dom Geraldo adorava Muito bem casado, graças a defeito e depois meteu o pé.

www.revistasamizdat.com 83
- Meteu o pé na filha? bichinha nem falar, fala! quinha, dava umas risadinhas
- Não, seu padre. Meteu o - E o que você fez, filho? lindas. Depois, ela começou a
pé, fugiu, foi embora. - Ah, padre... Foi a primei- chorar. Não sei o que deu na
- Ah, sim... Continue, meu ra de muitas noites maravi- menina.
filho, continue... lhosas. Mas eu fui carinhoso - Não sabe...
- Então a garota – ela se com a menina, não sabe? - Não sei, padre. Com ela
chama Jéssica – foi crescendo Acho até que ela sorriu. eu sou ainda mais carinhoso
cada vez mais bonita e cada Coitada, tem uma vida tão do que com a mais velha.
vez mais maluca. Era um so- disgramada com aquela sem- Essa sabe falar e não é malu-
frimento pra minha mulher, graça da Josefa o tempo todo ca, né?
coitada. E pra menina tam- do lado dela, que eu acho - Mas e a patroa, meu fi-
bém. Ela não pode ser feliz que quando ela está sozinha lho, não sabe o que você faz?
assim com esse problema, comigo tem os momentos - Que nada! Ela pensa que
não é seu padre? mais felizes de sua vida. eu tenho outras, porque eu
- Deus sabe o que faz, meu - Josefa é a sua esposa, a não procuro mais ela, sabe?
filho. Mas e o que aconteceu mãe da Jéssica? Mal sabe que as outras dor-
com a Jéssica? - É, seu padre. A velha. mem no quarto ao lado!
- O que aconteceu foi que A Jéssica não. É nova, linda, - Então o senhor está aqui
eu comecei a sentir umas branquinha. O problema é por que se arrependeu dos
coisas estranhas. Toda vez que ela não para de crescer e seus pecados e quer uma
que estava lá no “bem bom” eu já to começando a achar penitência?
com a minha nega, só con- que a menina vai ficar igual - Não é por isso não,
seguia pensar na Jéssica. Um à minha patroa. padre. É porque a pequena
dia quase troquei o nome da - Mas o que sua patroa ficou grávida, os médicos
mãe pelo da filha. tem a ver com essa história? descobriram e está todo
- Sim. E o que mais? - Não, seu padre. Minha mundo querendo acabar com
- Então um dia a Jéssica patroa é modo de falar. Mi- a vida da minha filha que
tinha ido numa festa à fan- nha patroa é minha mulher. nem nasceu ainda. E eu não
tasia no colégio. Josefa vestiu - Ah, tá... acho isso certo.
a menina de princesa. E ela - Pois é, seu padre. A - É, filho. Não é certo
estava mesmo uma princesa. menina tá crescendo, mas mesmo. O que você fez é
Parecia ter saído daqueles isso não é nada, porque tem errado, mas o que eles estão
desenhos animados da televi- também a irmã menor dela. fazendo é mais errado ainda.
são, sabe? Ela estava com sete Eu te falei da Janete? É um pecado literalmente
anos na época. - Não, não falou não. mortal. Ainda bem que você
- Sei. A princesa... - A Jéssica tá agora com me avisou.
- É, seu padre. Você preci- quatorze anos e a Janete, com - Por que, seu padre? Vai
sava ver que coisa mais linda! nove. me ajudar?
Era muita tentação. Tanto é - Mas a Janete também - Vou, meu filho, mas
que Deus me ajudou. tem problema mental? primeiro eu preciso que você
- Como Deus lhe ajudou? - Que nada, homem! Ela me dê o nome desses assas-
- A jararaca da minha so- é normalzinha da silva. E sinos que estão querendo
gra ligou lá pra casa porque também é uma princesa. abortar o seu filho.
tava passando mal e a minha Ainda mais bonita do que a - Tá bom, padre. Mas e
mulher foi correndo pra casa Jéssica, porque é mais nova e eu, fiz mesmo alguma coisa
dela. E foi assim que eu fi- inteligente. errada?
quei sozinho com a princesa. - Então, com essa você não - Fez, filho, fez.
– Você quis dizer: a Jéssi- faz nada, né? - Mas eu quero conser-
ca. - Que isso? Aí é que eu tar isso. Vou cuidar bem da
- Seu padre, ela lá, ma- faço mesmo. É muito melhor. minha filha. Já pensou se ela
luquinha, toda lindinha de Porque primeiro, quando nasce tão linda como a Jéssi-
princesa, eu podia fazer qual- eu comecei com ela, fui aos ca e a Janete?
quer coisa que ninguém nun- poucos e ela foi gostando,
ca ia saber, não é mesmo? A sabe? Dizia que sentia cos-

84 SAMIZDAT abril de 2009


84
Crônica

Gauderiadas I
Volmar Camargo Junior

http://www.flickr.com/photos/robvini/2831755722/sizes/l/
Entre as coisas que eu Além disso, muitos estrangei- pode fazer o mesmo que
mais gosto no nosso jeito de ros pensam que o "que tri!" tenho feito pelos resultados
falar são as gauderiadas que é de uso comum entre os dos últimos grenais: lamenta-
se usam mesmo entre os gaúchos, o que não é verda- se. Mas no íntimo, e quando
citadinos. Não é exatamente de. Esse sim é um dizer bem se descuidam, esses filhos
uma expressão cultural, por- mais urbano, mais portoale- ingratos deixam escapar, não
que não se ensina e não se grense, néah. Mas sobre isso raro, um bah! e ainda menos
aprende: parece que gaúcho eu falo outra hora. raramente, um tchê.
já nasce gaudério... Talvez o nosso tchê seja Não só de sintaxe, se-
Uma dessas coisas é o equivalente ao sô do caipira, mântica e pragmática, esses
"tchê". Fora o professor e já que na sintaxe, exercem a termos fazem parte do nosso
escritor Luís Augusto Fischer, mesma função: modo de ver as coisas. Nem
um ou outro dicionarista - Buenos dia, tchê. todo gaúcho gosta de músi-
teve o trabalho de dizer o ca tradicionalista, nem anda
que ele significa. Mesmo vertendo para o outro pilchado, e há ainda os que
assim, é o pronome de tra- idioma - o caipira nem gostam de chimarrão
tamento mais comum por - Bão dia, sô. (eu mesmo, só comecei a to-
aqui. A verdade é que o tchê mar mate depois de adulto).
Na verdade, não precisa
é uma das coisas que nos Mas essa coisa meio abarba-
nem nascer no Rio Grande
identifica junto aos "estran- rada que nos faz dizer "bah!"
do Sul; é genético. Filho de
geiros" que moram do lado pra qualquer situação, boa ou
gaúcho - até neto, ouvi dizer
errado do Rio Uruguai. O ruim, ou dizer "E aí, tchê!" na
- pode nascer no Acre, que se
problema é que, para eles, maior, sem vergonha nenhu-
considera gaúcho. Por outro
nós usamos essa gauderiada ma, nos identifica muito mais
lado, tem gente que repudia
linguística - e outras - as do que imaginamos.
sua origem. E desses, só se
vinte e quatro horas do dia.

www.revistasamizdat.com 85
Crônica

Solidão a dois
em tempos de crise
Giselle Sato

http://www.flickr.com/photos/pfv/2870266088/sizes/o/

86 SAMIZDAT abril de 2009


86
A crise financeira vem mente as mulheres esperam Lentamente e com cuida-
influenciando vários aspec- demonstrações de carinho do porque magoar é fácil
tos do cotidiano. Se antes como forma de incentivo. demais neste momento.
pensávamos em lingerie e Muitas vezes não encon- Sexo. Vai existir um
jantar a luz de velas, hoje tram mais que o silêncio instante propício em que a
damos trato à bola tentando que tomam como acusação cumplicidade e o carinho
driblar cobranças e pen- ou descaso. Pares perfeitos vencerão a resistência. Não
dências. Até que ponto a que há bem pouco tempo há libido que supere as
relação é forte o suficiente viviam em perfeita harmo- preocupações com o de-
para superar tantas crises? nia, hoje em dia andam as semprego, sobrevivência e
Começa com as contas atra- turras com a falta de di- expectativas. Nunca houve
sadas, discussões na hora de nheiro. Não há como fingir tantos semblantes preocu-
checar o cartão de crédito, que a vida segue cor de pados e tristes caminhando
quem gastou mais e as in- rosa, é preciso lutar para aos pares. Cada vez que
termináveis justificativas. preservar o ‘’bom do amor’’. me deparo com um deles,
O dia se arrasta e a O que nos trouxe até o recordo o desabafo das
comida desce com tem- convívio sob o mesmo teto amigas da velha firma que
pero de ressentimentos. não tem prestações atrasa- todos julgavam inquebrável.
Finalmente chega a hora das nem juros. Talvez esteja Pouquíssimas conseguiram
de dormir, dividir a cama perdido em alguma gaveta manter o casamento. Casais
pode transformar-se em um e com certeza fazia parte do que pareciam existir um
grande pesadelo. O casal plano inicial. para o outro, tornaram-se
não consegue desligar o Carinho não paga mer- inimigos por conta da par-
mecanismo da preocupação cado nem traz alívio ao tilha de louças. São tantas
e o peso das dívidas. O cli- coração. Mas como a alma histórias, contadas de ângu-
ma romântico não suporta agradece! Um abraço aper- los diversos... A única cer-
a pressão e o afastamento tado vale muito quando teza é que querendo encon-
é natural. Cada qual mon- estamos nos sentindo fra- trar soluções sozinhas ou
ta um mosaico de pesos e cassados. Partilhar a falta resguardar o companheiro
medidas. Existe o medo de de palavras custa apenas excluímos ajuda. Em ambas
iniciar um diálogo e co- sentar ao lado e se muito, as situações, estaremos lu-
meçar uma briga, o receio dar as mãos. Abandonar tando sem qualquer apoio.
de expor sentimentos e ser velhos hábitos como sair O velho chavão: ‘’A união
rechaçado. Muitas mulheres com amigos, fazer compras faz a força’’ ainda vale.
afirmam que problemas fi- e jantar em bons restauran- Solidão a dois: Momento
nanceiros terminaram com tes não é fácil. Pode parecer em que não há mais nada
a vida sexual. Esta solidão fútil para alguns, no entanto a dizer nem sonhos a com-
que chega de mansinho e não vamos julgar os valores partilhar. A total ausência
se apossa de vez é cada vez alheios. No mínimo ouvir de esperança, afeto, respeito
maior. Não serão receitas sem dar palpite já ajuda e amizade. A certeza de
de sedução que trarão o muito quem reclama. Não dias sombrios em tempos
parceiro de volta. adianta começar a falar em conturbados. E o medo de
Dividir preocupações e pensamento positivo e que não saber quando o pesade-
tentar encontrar soluções melhores dias virão para lo irá terminar.
juntos é delicado e requer uma pessoa com o especial
jogo de cintura. Por sua estourado. É hora de cada
natureza emotiva, normal- um no seu quadrado e aos
pouquinhos juntar as peças.

www.revistasamizdat.com 87
Poesia

Laboratório Poético:

a narração na poesia
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

O que brota da terra tornam a se enfiar na terra


escondem-se daquelas linhas invisíveis
dois besouros desses que brotam da terra
e de uns olhos curiosos
um casal ou
pai e filho ou
se sob a silenciosa inércia da terra
rivais por uma oportunidade rara
lutaram até a morte ou
de permanência no mundo
permaneceram separados ou
entre tantos insetos
tornaram a se encontrar
- e unidos permitiram
giram no ar
a permanência no mundo
uma dança ou
entre tantos insetos –
enlace ou
eu nunca soube, nunca
alguma forma de comunicação
voltei a ver besouros sobre a superfície

sem ruído
o desenho e as linhas traçadas
unidos no ar
ficaram plantados nalgum canteiro da me-
contornam as linhas mória
de um desenho irreproduzível e por mais atenção que lhes dedique
deles jamais brotou sequer um rascunho
uma vez separados

88 SAMIZDAT abril de 2009


88
ironia
iv.
i.
eram ovos, uns tantos ovinhos
que esperar de um mundo
de casca lisa, dura e seca
de casca lisa, dura e seca
e miolo quente e macio
e miolo quente e macio

que ironia, se essa ave choca


senão a ironia besta
e assim do ovo nasce um bicho
de vê-lo como um ovo cozido
e o bicho abre o bico e grita
oval forma de planeta

v.
ii.
as cascas do ovo virariam comida
na secura lisa da casca
o ninho da ave viraria comida
encontrei um oco escondido
o oco da pedra viraria comida
em velha pedra esquecida

pátrias, homens, livros


a tal que o operário erudito
a própria mãe do passarinho
ignorou por ser um esteta
e eu mesmo, se não sair correndo
e o mais que aqui não repito

vi.
iii.
e se ele devorar a si próprio
o oco da pedra era o ninho
que ironia, meu Deus, que ironia
duma ave cuja exótica dieta
mesmo o nada seria devorado
era de pátrias, homens e livros

melhor continuar com a ironia besta


o que achei até hoje me espanta
pensar o mundo como um ovo cozido
e hoje ainda me assombro sozinho
ainda que ridícula, oval forma de planeta
um arrepio de medo ainda agora

http://www.flickr.com/photos/monster/157959391/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 89
Poesia

Meu Amor Guilherme Augusto Rodrigues

Um amor muito maior que o dos anjos


e mais alto que todas as estrelas,
intenso como o brilho delas,
sacro como celestiais arranjos.

Transcende a existência dos seres,


seus sentimentos, coisas deste mundo,
sonhos, saber que existe, eu me inundo...
E basta, é tudo, os meus viveres.

http://www.flickr.com/photos/_belial/521278577/sizes/o/
Num segundo, minuto, hora, dia
é você em meu coração feliz
que ameniza esta nossa ascendência.

Se vê nas flores, folhas, água, ar...


E jamais haverá de se apagar.
Ah! “Eu te amo!” é assim que se diz.

90 SAMIZDAT abril de 2009


90
Poesia

Palavras inúteis
Mariana Valle

Estou rouca
de tanto gritar.
A luz é pouca,
me falta o ar.

Minha cabeça
explode em dor.
Muita conversa,
pouco amor. http://www.flickr.com/photos/paperdollimages/97353996/sizes/o/

Se ando na linha,
me vêm as palmas,
mas sou sozinha
com a minha alma.

Então por que


perco meu tempo
jogando palavras
tão ao relento?

www.revistasamizdat.com 91
Poesia

Poemas José Espírito Santo

Pac-man

Com forte empenho, perícia e muita arte


Corro, recuo, avanço fazendo meu trajecto
E fujo outras vezes e me escondo redondo
Em meu circunscrito discreto concreto

Sou hábil, muito hábil, quase inatingível


Em toda essa minha perícia e cheganço
Sou o corredor de meio fundo do mundo
Todos ficam bem para trás de meu avanço

E esse velho jogo jogado eu já conheço


Comer e mais comer e ganhar pontos
Fintar logo se possível todos esses tontos
No contínuo de esforço onde enriqueço

Pela etapa seguinte e novo subir de nível


Concretizar de outro projecto possível
Que isso é sempre o que mais importa
O abrir a porta, da porta, da porta.

92 SAMIZDAT abril de 2009


92
Bichinho de conta

De feitos defeitos nicho bem apertado e fechado


De leite deleite por tantos portantos por conta
És diz que diz não diz, léxico, disléxico controlado
O mais são ignorados direitos, vida de outra ponta

Cor, de cor, acção, decoração de coração!

És entrada e saída de lixo e não te interessas


Desaire, de Zaire, transmitido, exclusivo directo
Falta demorada de tecto, de morada, detecto
Sempre de ti partes e a ti enroscado regressas
Infinito menos um
Cor, de cor, acção, decoração de coração!
Um para o infinito... é o grito

Bichinho de conta, em mundo “faz de conta” falcão


Da refeita e desfeita palavra,
Nessa com posição decomposição de composição
em dor e amor de ser comum.
Jogando tudo e o todo e os outros todos pro vento
Quando mais conta na conta teu gordo provento.
Caminho e ir, círculo fechado,
cuidar guardando de guardado.

Um para o infinito... é o grito

Da pressa que nos regressa,


ser tantos e tão mais nenhum

http://www.flickr.com/photos/torley/2957409762/sizes/o/
Pele em fio de caneta, pincel,
pirueta, flor de vida inacabada

Um para o infinito, menos um


ou talvez zero, já não quero

Entre tantos, nenhum, aflito


Um para o infinito... é o grito

www.revistasamizdat.com 93
Poesia

Eterníndia Dênis Moura

Aborígine desta terra de Alencar,


Deusa de Martin,
Acaricio tua linda pele ainda morna do ocaso.
A areia escorre entre meus dedos
Como a vida que se vai...

Os grânulos voltam à praia.


Aguardam outra mão que os afague,
Amores que nele rolem,
Qualquer coisa...

Encanto-me em pensar que mal vivi duas décadas


E estas bilenares areias já há muito aqui estão.
Foram cenários de digladiares tupi,
Cataclismos... Fenômenos mil que os meus olhos não creriam.
Viram cenas de ódio e de paixões,
Ouviram sussurros, cantos, vida... Vida...

Um dia não mais poderei acariciar-te, Iracema. http://www.flickr.com/photos/bug_jo/582932564/sizes/o/

Presentearei este cetro à posteridade.


Verás outros dedos te tocarem,
Outras vidas a te verem... Te irem...

Testemunharás o futuro desta terra.


Ouvirás o que nunca sonhei.
Assistirás ao resto deste conto universal como nunca cogitei.
Outros cantarão tuas belezas.
Mas talvez me ausente apenas parte de uma eternidade
E, quem sabe, ti vivo novamente...

94 SAMIZDAT abril de 2009


94
Poesia

saudade Maria de Fátima Santos

Se eu escrevesse hoje
Escreveria com o estilete macio de uma flor
Uma palavra
Uma só palavra que dissesse tudo

Se eu escrevesse
E eu não o faço, hoje
Repetiria a palavra
Uma, mil e muitas vezes http://www.flickr.com/photos/78993837@N00/2968063343/sizes/o/

Escreveria sobre o vento que a levasse


Longe

Uma só palavra em letras do meu sangue

Se eu escrevesse hoje
Escreveria saudade
(e por baixo o teu nome)

www.revistasamizdat.com 95
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em História da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

96 SAMIZDAT abril de 2009


96
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Assessoria de imprensa

Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com

Coordenação de Entrevista

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu a
ler. Escreve principalmente contos nos gêneros misté-
rio, suspense e terror, além de crônicas.

www.revistasamizdat.com 97
Colaboração
Volmar Camargo Junior
Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.

marciasz@hotmail.com

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

98 SAMIZDAT abril de 2009


98
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Carlos Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com

Dênis Moura
Paulistano de pia, cearence de mar e poeta de
amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-
paço, mais com bits de imaginação que com telescó-
pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e
a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na
outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social,
com a democracia participativa eletrônica, onde o
povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias
sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-
ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É
feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize,
o clique, o blogue e o leia!

Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

www.revistasamizdat.com 99
Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre gran-

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
de paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas
a que se dedica cada vez mais.

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós graduação na
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,
trabalha há largos anos em formação e consultoria,
sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de
Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”.
A paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no
ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e
“Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a fa-
mília em Alverca, uma pequena cidade um pouco a
norte de Lisboa, Portugal.

Maria de Fátima Santos


Nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde
viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licen-
ciada em Física tem sido professora de Física e Quí-
mica. Com poemas em vários livros, em co-autoria,
é às pequenas histórias, que lhe voam no teclado,
que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.
intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e
motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo
gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida.
Escreve pelo gozo.

100 SAMIZDAT abril de 2009


100
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.revistasamizdat.com 101

www.oficinaeditora.org
Também nesta edição,
textos de

Carlos Alberto Barros Léo Borges

Dênis Moura Marcia Szajnbok

Giselle Natsu Sato Maria de Fátima Santos

Guilherme Rodrigues Mariana Valle

Henry Alfred Bugalho Maristela Scheuer Deves

Joaquim Bispo Volmar Camargo Junior

José Espírito Santo

102 SAMIZDAT abril de 2009


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