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OTTO MARIA CARPEAUX

HISTÓRIA DA
LITERATURA
OCIDENTAL

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y <^ ^ EDIÇÕES O CRUZEIRO

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ÊSTE LIVRO r O l COMPOSTO E IMPRESSO NAS OFICINAS
DA EMPRESA G R Á F I C A O CRUZEIRO S. A . , IÍH
MARÇO Dlí 1 9 5 9 , PARA AS E D I Ç Õ E S O C R U Z E I R O ,
RUA DO LIVRAMENTO, 189/203, Rio DE JANEIRO.

Capa de
A M Í r C A B DE CASTRO

SUMÂHIO
INTUI H)lr(.,M(
(História e Método úa Historiografia Literária)

iai^inBr£sr.it£iuuK& PAUTE I

1
1
A HERANÇA

^^JU ^fh Dl Capítulo 1


A LITERATURA GREGA
Capítulo H '
• mktOTKCA o MUNDO fiÓMANO
Capitulo III
Universidade Estadual de Maringá HISTÓRIA D O H U M A N I S M O E DAS RIÍNASCENÇ AS
Sistema de Bibliotecas - BCE Capitulo IV
o CÍIISTIANISMO H O MIIINIK)
(Os Padres da ÍUTcjti i: n Liturgia)

)>AUTi; I I

O MIJINDÜ CRISTÃO

\^y'' Capitulo I
^ ^ A FIJINDAÇÃO DA EUROPA
( L i t e r a t u r a Aiiplo-saxôíiico. A Literatura Edda. Epopéias e "Matières"
^ . ' \ > % ^ . . Literatura Monacalí
\ Capítulo II
o UNIVERSALISMO CRISTÃO
•^
OV^" (Literatura Latina Medieval)
o CRUZEIRO
Capítulo III
Diretor A LITERATURA DOS CASTKLOS E DAS ALDEIAS
M^' x^^ Av^- HERBERTO SALES (Canções e Baladas P o p u l a r e s . P o e s i a s das Cortes.
O Mundo d o s " K o m a n c e s " ^
DIREITOS ADQUIRIDOS PELA SEÇSO D E LIVROS DA Capítulo IV
EMPRÍSA GRÁFICA O C R U Z E I R O S . A . , Q U E SE OPOSIÇÃO, BURGUESA E ECLESlÁSTJCA
RESERVA A P R O P R I E D A D E LITERÁRIA DESTA EDIÇÃO. ( L t t e r a t u r o S a t í r i c a . Os P r a i i c i s c a n o s )
Capítulo V
PAnTE I I I MISTICISMO E MORAMSMO
A TRANSIÇÃO (Místicos Espanhóis e Franceses. Classicismo Francês)

Capitulo I Capítulo V I
o "THECEÍVTO" ANTMiAUUOCO
(Dante, Petrarca, Boccaccio) (Literatura Oposicionista na E^vanha e Tia F r a n ç a ; de
Ccrvantcs até Molière)
Capítulo II
REALISMO E MISTrfilSMO PARTI.; V I
("Rovian de Ia Rose". Chaucer. Crônicas. Místicos,
O Teatro Medieval) ILUSTRAÇÃít Ti TUÍVOI.llÇÃO
Capitulo III Capitulo I
O OUTONO DA IDADK M Ê D I A ORICIIINS l\i:ill!ARri(>(;AS
{Literatura "Flamboyant"} (A Arcàdia e a Poesia Anacre^ntica. Teatro tia Rcí^tnnraçfín. A <ypera,
Libertlnismo Literário. Livres-Pensadorcs e Haciimalismii)
PARTE I V
Capítulo II
RENASCENÇA K RKFORMA CLASSICISMO RACIONAIJ.STA
Capítulo I (Época Augustiana. O Século de foUaire)
o "Q^MTTn<H:I•:^T,)" Capítulo n i
(Os Hu^iajústas lUíUanos) O 1 RÉ-ROMANTISMO
Capítulo II (Nova Poesia Pastoril. Poesia da Noite e dos Tiimulns. Mctoííismo.
Romance Epistolar e ^'Gótico". Ossian. SentiniejiUdisttin e
o "CINQDHC.IÍNTO"
Anti-sentinLentalismo. Os Enclclopedi.stas, Rousseau)
(A Literatura Italiana do Século XVI)
Capítulo IV
Capítulo III O ÍILTIMO C1.AKSI<:iSMO
RENASCENÇA INTERNACIONAL
{Renascença na França, Espanha, Inglaterra e Outros Países) (Classicismo Alemão. AlSlerl, Chínier. Jwne Ausien)

Capítulo IV
rARTH V I i
HENASCENÇA CRISTÃ
' í> ROMANTISMO
(Erasmo e os H u m a n i s t a s Cristãos. A Reforma. Literatura
Protestante e Anglicana) Capitulo I

j>Ain'n V ílRICKNS DO JtOMA\Tl'!\IO


(Primeiro Roniantisrrw Alemão. Chateaubriand. Os Poetas
HARROCC) !•; CLASSICISMO Ingleses dos "Lagos". Lamartíne)
Capítulo I Capítulo II
O [>IIORI,I':ivlA TIA I.ITIÍHAIUHA BAHRÔCA ROMANTISMO DE EVASÃO
Capitulo II (Scott e o Romance Histórico. Medievalismo e Folclore.
Poesia "Pura", Romantismo Nórdico e Russo)
«•(lUíilA IC TEATRO DA CONTRA-REFORMA
Capitulo m
(Marinismo e Gongorisvio. Os Jesuítas. Teatro Espanhol)
ROMANTISMO EM OPOSIÇÃO
Capítulo III
(Biíronismo. Radicais e EJtopisías. T r a n s c e n d e n t a l i s m o Americano.
PASTORAIS, EPÍH-ÉIAS, El>OF'f;iA HERÓl-CÔMIOA E ROMANCE PICARESCO O Século de Hugo. A Época de Dickens)
C a p i t u l o IV Capítulo IV
o nARROCO PROTESTANTE O FIH n o ROMANTISMO
(Teatro Elisabetano é Jaenbeii. Barroco Luterano. Poesia (O Movimento de Oxford. Os Radicais Franceses. Heine.
Metafísica, Literatura Puritana) Os Começos do Marxism-o)
PAUTE V I U

A ÉPOCA DA CLASSE MEDIA


Capitulo I
LITEHATUHA BUKOUESA
(Balzac e o Romance Burguês. Literatura Vietoriana. Os Parnasianos)
Capitulo II
O ÍVATURAIJSMO
(A Época de Zola. Darwinismn e FataUsn}o. Baudelaíre e a
Poesia do Desespero) /
Capítulo III
A C.ONVEUSÃO no NATURATJSMO
(Teatro Escandinavo e Romance Russo. Movimento Misticísta.
Romance Psicológico)
TARTE IX

"FIIN DK . S I È C L E " r: DKPOIS


Capítulo I
o .SIMItOI.ISMO
(Esteticismo. Poesia Simbolisia. Motterniamo Espanhol. Nietzsche)
CapHuU) n
A ííi-ocA DO líQuii.íiüuo r:ij]Un'Ku
(Epigonismo Literário entre 1900 e 1914)
AURÉLIO BUARQUE DE HOLLANDA
PAHTB \

LITEHATUBA E REALIDADE
Capítulo I
AS ItríVOLTAS MüüEKrVLSTAS
(Boímia Internacional. Cubismo e Modernismo Francês. Imagismo.
Futurismo. E.rpressioniSTno Alem.ão. A I Guerra Mundial.
Freud, Joi/ce, Proust e 0'iVeííl. O "Waste Land".
RadicaLií;m.o Espanhol. Dadais^no c Surrealismo)
Capitulo II
THM.)f:rMCIAS (:<)MTI0MI'OUÂ>iWAK
(Renascença rio Bomance Histórico. O Movimento Católico. Poesia Puro.
E^islcncialísmo. Literatura Proletária. Os Rus.'í0S Soviéticos.
A II Guerra Mundial e Suas Con.icqüências) r '
PREFACIO

/I OBRA da qual este volume é o primeiro, foi escrita


il em 1944 e 1945. Várias dificuldades impediram, na-
quele tempo, a publicação dela. Agora, o texto inteiro foi re-
visto, refundido e remodelado. As modificações di/.em res-
peito à evolução da ciência literária nos últimos drz unoí
€ ã "revisão dos valores" em certas literaturas e de certas
épocas. Os dois capítulos sobre a literatura contemporâ-
nea, que integrarão o último volume, foram totahufntc
reescritos.
O título — História da Literatura Ocidenta] — não
significa a exclusão completa das literaturas orient.iis,
cujas relações com as do Ocidente nunca foram, aliás, con-
tínuas, Influências decisivas do Oriente foram devida-
mente consideradas: no capítulo relativo h Reforma en-
contra-se uma digressão sobre a liíblia.
Estudaram-se tôdns as literaturas românticas e ger-
mânicas da Europa c seus ramos na América do Nor*e e
do Sul; as eslavas e outras da Europa oriental; e, natu-
ralmente, as literaturas grega c neogrega. As letra.^ gre-
gas e romanas da Antigüidade são tratadas à maneira de
introdução, seguida de um capítulo sabre as sucessivas
"Renascenças". Depois, as literaturas européias (e ameri-
canas) não foram estudadas separadamente, assim como
não se fêz separação alguma entre a poesia e a prosa e os
chamados gêneros literários. Cada um dos capítulos re-
fere-se a todas as manifestações de determinado estilo em
todas aquelas literaturas. Em vez de uma coleção de his-
tórias de literaturas, pretendeu-se esboçar a história dos
14 OTTO M A B I A CARPEAUX

estilos literários, como expressões dos íatôres sociais, mo-


dificáveis, e das qualidades humanas permanentes. Os cri-
térios da exposição historiográfica são, portanto, estilís-
ticos e sociológicos. Nos trechos dedicados ao estudo dos
autores, individualmente, prevaleceu o intuito de infor-
mar o leitor sobre as mais importantes teses da critica li-
terária a respeito de cada autor.
O critério da importância histórica determinou ;» se- I N T R O D U Ç Ã O
leção dos autores estudados; nos dois últimos capítulos,
dedicados aos contemporâneos, o critério de seleção foi
" T T I S T Ó R I A da Literatura" c um conceito moderno.
mais liberal. Foram estudados, em suma, mais de 8.000
-•--'- Os antigos, embora interessados na colequo e in-
autores. Mas a obra não tem pretensão nenhuma de set um
terpretação dos fatos literários, nunca pensaram em orga-
dicionário biobibliográfico completo.
nizar panoramas históricos das suas literaturas, A nenhum
As notas ao pé das páginas fazem parte integral do
escritor grego ou romano ocorreu jamais a idéia de referir
texto, que aliviam e documentam. Pormenores biográfi-
os acontecimentos literários de tempos idos; e só na época
cos, enquanto necessários para a compreensão e interpreta-
da decadência das letras e da civilização surgiu o interesse
ção, foram incluídos no próprio texto. Nas notas, sempre,
só se relacionaram as obras principais do autor estu- puramente pragmático, da parte de professores ()e Retórica
dado; as mais das vezes essa relação é deliberadamente ou de bibliófilos, de organizar relações dos livros mais
seletiva. Também é seletiva a bibliografia sobre os auto- úteis para o ensino, para melhorar o gosto decaído, ou en-
res: só menciona os estudos mais importantes ou aqueles tão, compor dicionários de citações e florilcgíos de resu-
que refletem o estado atual da crítica literária com res- mos, para salvar da destruição pelos bárbaros os tesouros
peito ao autor. literários do passado.
O índice onomástico virá no fim do último volume Marcus Fabius Quintilianus (c. 35 - 95 da era cristã)
desta obra, que dedico, com a maior gratidão, ao amigo não foi professor de Literatura, e sim de Língua e Retó-
dela e do autor: a Aurélio Buarque de HoUanda. rica, conservador como todos os professores, mas dum con-
servantismo diferente, doloroso. Romano austero de es-
tirpe espanhola, Quintiliano observou com tristeza no
OTTO MARIA CARPEAUX coração a decadência estilística e moral entre os profissio-
nais da sua a r t e ; talvez fosse êle o primeiro da ilustre
série de grandes espanhóis, at'é a geração de 1898, obsedia-
dos, todos eles, pelo espectro da decadência. Na época de
Nero e Domiciano, já não existia eloqüência política; a
eloqüência judiciária estava aviltada, a eloqüência literá-
ria (nós outros, hoje, diríamos, "conferências") reduzida a
exercícios escolares. Quando muito, era possível conser-
var a dignidade profissional de um mestre-escola, selecio-
nando os melhores entre os alunos e preparando-lhes os
16 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 17

caminhos de uma sólida formação. Para esse fim, escre- áurea das letras romanas, Valerius Maximus tinha reunido
veu Quintiliano a Institutio oratória; e no décimo livro os Facta et dieta nicmoraôilia, vasto e confuso repositório
dessa obra inseriu uma apreciação sumária dos principais de anedotas e citações. No segundo século, Aulus Gellius
autores gregos e latinos, menos como resumo bibliográfico é o cronista enciclopédico das Noctes Atticae, nas quais se
do que como esboço de uma espécie de "biblioteca mí- conversa sobre todas as coisas entre o céu e a terra da Lite-
nima" do aluno de Retórica. Organizando essa relação de ratura, Por volta do ano 400 da nossa era, o pagão im-
livros-modêlo, de Homero através de Píndaro, Esquilo, Só- penitente Theodosius Macrobius também trata, nos Satur-
focles, Eurípides, Aristófanes, Heródoto, Tucídides, De- naUa, da Literatura, ao lado da Mitologia, História, Física
móstenes, Platão, Xenofonte, até Aristóteles, e de Lucré- e Ciências Naturais. Pode-se imnfi,inar o desprezo com que
cio através de Virgílio, Horácio, Salústio e Tito Lívio, até os poetas e oradores contemporâneos olham aqueles po-
Cícero e Sêneca, o grande mestre-escola romano não sus- bres colecionadores de fichas; não tardará inuilo, porém,
peitou, certamente, as conseqüências da sua escolha. Pa- que as literaturas grega e romana inteiras fiquem reduzi-
rece que até a conservação ou não conservação de certos das à condição de fragmentos e fichas. Boa parte da lite-
autores e obras, na época das grandes perdas e destruições, ratura antiga só chegou a sobreviver graças ao zelo pouco
dependia em parte das indicações quintilianas; os monges inteligente daqueles subliteratos. No século V, o bizan-
de São Bento, na primeira Idade Média, escolheram entre tino Johannes Stobaios, organizando um Florilegion, já
as preferências de Quintiliano os livros didáticos para a está consciente dessa situação; sabe que os seus trechos
mocidade dos conventos; os humanistas discutiram, segun- seletos sobreviverão aos livros nos quais foram escolhidos.
do Quintiliano, a importância maior ou menor de Homero
No século IX, Photios o erudito patriarca de Bizâncio,
ou Virgílio, Demóstenes ou Cícero; na época da "Querelle
reuniu no MyiobibUon resumos de 280 obras, das quais, se
des Anciens et Modernes", no tempo de Luís XIV, os
não fosse êle, não saberíamos nada. Enfim, Suidas acumu-
argumentos de Quintiliano em favor dos gregos serviram
la tudo o que no seu tempo ainda existe, num fichário de
aos idolatras dos modelos clássicos, e os argumentos do
nomes, títulos e datas, adotando a ordem alfabética; é o
mesmo Quintiliano em favor dos romanos aos defensores
primeiro dicionário bibliográfico, em vez de uma história
da poesia moderna. Até hoje, os programas de letras clás-
da Literatura.
sicas para as nossas escolas secundárias organizam-se con-
forme os conselhos daquele professor romano; e nós ou- Nesses autores de segunda e terceira categoria a Idade
tros, falando da trindade "Esquilo, Sófocles e Eurípides", Média sorverá os seus conhecimentos clássicos; e lhes se-
ou do binômio "Virgílio e Horácio", mal nos lembramos guirá o exemplo. As numerosíssimas notícias literárias que
que a bibliografia de Quintiliano nos rege como ura có- se encontram no Speculum Maius,' enciclopédia enorme do
digo milenar e imutável. Afinal, Quintiliano tinha esta- dominicano Vincentius de BeauvaJs (f 1264), lembrara os
belecido uma tábua de valores; mas não tinha escrito uma florilégios da decadência romana e bizantina. O Skárdatal,
história da Literatura. composto na Islândia por volta de 1260, já dá os nomes
dos principais poetas escaldos em ordem cronológica. E o
Há só um Quintiliano. Mas são de todos os tempos trovador provençal Feire d*Auvergne aprecia, em um sir-
os espíritos r^enores que organizam fichários. Já na época ventês, o valor dOs seus diversos confrades na poesia, como
de Tibério, que mais tarde podia passar por uma idade que um Quintiliano da Provença; é quase uma história
18 OTTO MAUIA fjAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDETMTAL 19

literária do "gai saber" mediterrâneo — mas ainda "it's a dade de inúmeras lendas gregas e romanas, com alusões
long way to Tipperary". maliciosas à precária credibilidade das lendas cristãs. Ti-
A enorme acumulação de conhecimentos clássicos na nha nascido a crítica histórica.
época do humanismo produziu bibliografias sistemáticas, No dicionário de Bayle preponderam ainda os autores
das quais a Bibliotheca Universalis (1545/1555), de Conra- gregos e romanos. Mas a nova arma critica não poderia

i
dus Gesner, talvez seja o primeiro exemplo. O interesse deixar de dirigir-se contra a idolatria da Antigüidade.
enciclopédico prevalece, embora mais restrito, no Diction- Quase ao mesmo tempo, a "Qiierelle des Anciens et des
narium Historicum, Geographicum et Poeticum (1553), de Modernes" põe em dúvida a supeiioridadc das letras anti-
Carolus Stephanus. Os polígrafos chegam a compor dicio- gas em relação às modernas; pouco mais tarde. Viço reco-
nários biobibliográficos de autores de determinadas na- nhecerá os valores característicos das diferentes épocas
ções: do De iUustribus Angliae scriptoribus (1619), do históricas; e Montesquieu deduzirá da história rom.nna cer-
inglês John Pits (Pitseus), até a Biblioteca Lusitana, His- tas leis gerais da evolução das nações. A noção "Tempo"
tórica.. Crítica e Cronológica na qual se compreende a no- adquire novo sentido histórico: significara "passado"; e
tícia dos autores portugueses e das obras que compuseram agora significa "evolução que continua". As nações mo-
desde o tempo da promulgação da lei de graça até o tempo dernas substituem-se, na erudição, às nações mortas, c o
presente (1741/1759), do português Diogo Barbosa Ma- conhecimento das suas literaturas quebra o monoj>ólio da
chado. Transformando-se a apresentação bibliográfica em
filologia elástica. Começam-se a compor histórias das lite-
tiarração conforme a ordem cronológica, teria nascido a
raturas modernas; mas são ainda "histórias" no sentido da
história literária. O caminho histórico da evolução foi,
erudição barroca, coleções imensas, enciclopédicas, obras
porém, diferente.
de verdadeiro fanatismo de reunir datau e fatos.
Os eruditos do Barroco preferiram aos dicionários bio- A Histoirc littérnire de Ia Frainr. começada cm 1733
bibliográficos as "enciclopédias críticas", nas quais as bio- pelos beneditinos da congreíjação de St. Maur, estava ain-
grafias de eruditos célebres de todos os tempos serviam da noB primeiros volumes, quando os jacobinos puseram
de pretexto para se lhes discutirem as opiniões filosóficas fim violento ;IOH religiosos; no século XIX, a Académie
e religiosas, sempre com o empenho de exibir um máximo des Inscriptions assmniu o compromisso de continuar a
de erudição enciclopédica e sempre com um olhar para as obra, que está subordinada, porém, a um plano tão vasto
polêmicas filosóficas e religiosas da própria época. De que provavelmente nunca será concluída. Os franciscanos
Carolus Stephanus ainda depende o Dictionnaire Théolo- espanhóis Rafael Rodriguez Mohedano e Pedro Rodríguez
gique, poétique, cosmographique et chronologique (1644), Mohedano começaram em 1766 uma Historia Literária de
de Broissinière, substituído depois pelo Grand Dictionnai- Espana, tão grande que no décimo volume, publicado em
re Historique ou Le Mélange Curieux de VHistoire Saciée 1791, os autores ainda não tinham acabado a introdução.
et Profane (1674), de Louis Moréri. Mas esta última obra, Outro religioso espanhol, o jesuíta Juan Andrés, expulso
eruditíssima e enorme, excedera as forças de um trabalha- para a Itália, lá publicou a imensa obra DelVOrigine, dei
dor s ó ; estava cheia de erros; e o famoso Pierre Bayle em- ' Progressi e dello Stato Attuale d'ogni Letteratura (1782/
preendeu retificá-los no seu Dictionnaire Historique et 1799), primeira tentativa de uma história da literatura uni-
Critique (1697): mero pretexto para destruir a credibili- versal. Enfim, o jesuíta itrliano Girolarao Tiraboschí com-
20 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITEBATUBA OCIDENTAL 21

pilou entre 1772 e 1782 os 9 volumes da sua Storía delia política. O fundador da história literária autônoma £
Letteratura Italiana, indispensável até hoje como o maior Herder.
repositório de fatos da história literária italiana. Tira- Johann Gottfried Herder não deixou, entre os seus
boschi dá t u d o ; mas não diz nada. Limita-se ao trabalho muitos escritos, uma só obra definitiva; mas é o maior
de biobibliógrafo. Ainda não é, isso, história literária no dos precursores. Convergem em Herder todas as correntes
sentido em que entendemos hoje o termo. espirituais da segunda metade do século X V I I I — a crí-
O que falta em Tiraboschi é, além do senso crítico, a tica, o individualismo estético, o senso histórico, o gosto
capacidade de narrar assim como um historiador narra os das expressões populares; aprofundam-se, entram em no-
destinos políticos de uma nação. A nova crítica histórica vas combinações, e irradiam pelos tempos futuros. Dotado
ensinara o valor das literaturas modernas, independente de extraordinária capacidade de análise intuitiva, Herder
dos modelos clássicos, enquanto os classicistas continua- deu os primeiros exemplos de crítica criadora: cria ima-
vam presos à rotina dos seus dogmas estéticos. Poder-se-ia gens permanentes de poetas, cria o seu Shakespeare, por
supor que a introdução da crítica apreciativa na história exemplo; e depois de Herder será impossível contentar-se
literária tenha sido feita pelos "reacionários", providos alguém com meras indicações biobibliográficas. O regis-
de cânones certos, enquanto os representantes da nova tro dos livros é substituído pela história das obras e das
ciência histórica teriam escolhido o caminho da narra(.ão. idéias. Mas Herder não cria apenas indivíduos; também
Na realidade, deu-se o contrário. O primeiro grande cri- cria, por assim dizer, indivíduos coletivos. Com o mesmo
tico dos tempos modernos, Samuel Johnson, talvez o maior poder de intuição apanha os traços característicos das lite-
de todos os críticos judicativos, preferiu a forma biográ- raturas nacionais, da inglesa, da espanhola, da grega, da
fica (TAe Lives of the Poets, 1781). E os últimos repre- hebraica, cria o conceito "literatura nacional" como a ex-
sentantes franceses do dogma classicista foram os primei- pressão mais completa dn evolução cspiiitual de uma na-
ros que apresentaram a história literária como narração ção. Todo o iKicioiinlismo do século XFX se inspirará em
contínua: Jean-François de La Harpe, no Lycée ou Cours Herder, que c nté o ;)VÜ, L-nibora involuntário, do pan-esla-
de Littérature Ancienne et Moderno (1799), dá um exem- vismo e do rat isiito .-ilein.To. Contudo, é um homem do sé-
plo que não será mais abandonado; e ainda Désiré Nisard culo X V I l l : o st:u ideal supremo é a Humanidade, e todas
(Histoire de Ia Littérature Française, 1844-1861), contem- aquelas literatursa nacionais lhe aparecem como vozes mal
porâneo de Sainte-Beuve, é historiador e classicista im- isoladas, consonanào na grande sinfonia Literatura Uni-
penitente ao mesmo tempo. versal : conceito que também se d_eve a Herder,
A ligação entre história e crítica veio do pré-roman- As Idéias para a Filosofia da História da Humanidade
tismo, com o seu forte interesse pelas tradições históricas
(1784/1791), de Herder, não são uma história literária; mas
das nações modernas e pela apreciação crítica de épocas
uma obra cheia de sugestões, duas das quais particular-
meio esquecidas, como a Idade Média. O precursor é Tho-
mente importantes: a de que existe uma relação íntima
mas W a r t o n : a sua History of English Poetry from the
entre a estrutura das línguas e a índole das literaturas; e
Close of the Eleventh to the Commencement of the Eigh-
outra, segundo a qual o mesmo princípio filosófico enforma
teenth Century (1774/1781) é a primeira obra na qual a
a história política, religiosa, econômica e literária.
história literária é assina tratada como se trata a história
22 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 23

A primeira sugestão foi desenvolvida por Wilhelm von Saverio Bettinelli. O romantismo derrubou essas bastilhas
Humboldt, o criador da lingüística comparativa. Com êle do dogmatismo estético e da miopia nacional. A França
começa o estudo filológico das literaturas modernas. devia a Chateaubriand contatos novos com a literatura
A outra sugestão inspirou a Friedrich Schlegel a idéia inglesa, e a Madame de Stael a descoberta da literatura
do paralelismo histórico na evolução de todas as artes, e alemã. A Histoire des Littératures du Midi de VEurõpe
da existência de uma lei de evolução espiritual, lei secreta (1813/1819), de Simonde de Sismondi, chamou a atenção
que nos aparece através do tecido das datas cronológicas. para os trovadores provençais, para Petrarca e Ariosto,
Na História da Literatura Antiga e Moderna (1815), de Cervantes e Camões. Sainte-Beuve, no Tabíeau Historique
Friedrich Schlegel, o "Tempo", como veículo da história, et Critique de Ia Poésie Française et du Thcâtre Français
é o próprio fator determinante dos acontecimentos lite- au XVI^ Siècle (1828), reabilitou a honra de Ronsard. O
rários. Esta noção de "Tempo" está intimamente ligada professor alemão Friedrich Bouterwek (Geschichte der
ao chamado "passadismo" dos pensadores românticos: nada neueren Poesie und Beredsamkeit, 1801/1819) deu notí-
do que o tempo criou perde jamais o valor; continua a cia exata de todas as literaturas ao alcance da sua vasta
agir em nós, de modo que o fio cronológico dos fatos é, ao erudição lingüística.
mesmo tempo, a árvore genealógica das obras do Espirito. O princípio cronológico — a outra descoberta do ro-
Nada se perde, não importa quando e onde tenha nascido: mantismo — é puramente formal; não tem conteúdo onto-
as literaturas de todas as épocas e de todas as nações nos lógico; e por isso transformou-se em rotina. É certo que
pertencem. Neste sentido é que se pode dizer: foi o ro- a mesma época viu nascer a dialética de Hcgel, bem capaz
mantismo que criou a "história da literatura" conforme o de conferir ao formalismo cronológico um sentido real.
critério cronológico, como nós a conhecemos, e foi o roman- Os historiadores da Literatura, porém, perdidos num mar
tismo que criou a noção da "história da literatura uni- de fatos sem interdependência manifesta, não ousaram ado-
versal". tar o esquema dialético; o Manual dr História Universal da
O resultado da historiografia romântica foi o alarga- Poesia (1832), do he^ifliano ortodoxo Karl Rosenkranz,
mento notável dos horizontes. Até então, a história da li- permaneceu como exceçno, aliás netii grande importância.
teratura compreendia apenas os clássicos da Antigüidade Era a desgraça da nova cicncia "História <la Literatura" —
e os clássicos franceses, eventualmente os imitadores des- que só um hegolianismo falsificado a tivesse peneirado. A
tes últimos em outros países; a Idade Média e o Barroco idéia hegeliana do "líspírito objetivo" ou "líspirito da épo-
estavam banidos, a ponto de as palavras "gótico" e "bar- ca", que enforma todas as expressões de <leterminada época,
roco" se usarem como expressões pejorativas. Até a Plêiade prestava-se a adaptações pouco bc^elianas; sobretudo os
francesa estava esquecida na própria França, porque se historiadores liberais reconheceram ctn todos os movimen-
condenava tudo antes do "Enfin Malherbe vint". Johnson tos do passado as preocupações do momento atual, Gott-
tinha de defender Shakespeare; Lope de Vega e Cal- fried Gervinus, grande historiador e mau critico, escreveu
derón sofreram os ataques maciços do liberalismo espa- a História da Literatura Nacional Poética dos Alemães
nhol; e as literaturas medievais passaram por "superstições (1835/1842) como história das reivindicações nacionais,
superadas". Até no país do imparcialíssimo Tiraboschi, como se os alemães de todos os tempos tivessem sido li-
Dante fora atacado, pouco antes, pelo jesuíta voltairiano berais de 1840, exigindo a unificação política do território
24 OTTO M A R I A CARPEAUX HisTÓHiA DA LITERATURA OCIDENTAL 25

alemão e uma constituição parlamentar. Inspirado no ideal de, Mas De Sanctis era um crítico de gênio; as suas in-
humanitário do século X V I I I , Hermann Hettner viu a terpretações transformaram as obras máximas da litera-
História Literária do Século XVIII (1855/1864) como luta tura italiana em ilustrações da história moral da nação, que
do liberalismo cosmopolita contra as forças da reação, não se exprime com a maior perfeição pela voz daqueles mes-
sem aludir com hostilidade aos restos do romantismo. Nes- tres. Contra essa "simplificação profunda" revoltou-se o
te último sentido, Hettner já pertence ao positivismo. Os grande poeta Giosuè Carduccí: pontífice da crítica his-
dias do hegelianismo, ao qual se censuraram os anacronis- tórica na Universidade de Bolonha, campeão do trabalho
mos evidentes em favor de esquemas preconcebidos, tam- exato e positivo, contra as "arbitrariedades de-sanctisia-
bém estavam contados. O fim era a renúncia completa a nas". Nada de síntese genial: edições de textos, monogra-
todos os métodos transcendentais de interpretação, dando- fias biográficas e bibliográficas, eis o que os inúmeros dis-
se preferência à coleção conscienciosa dos fatos verificá- cípulos de Carduccí fizeram, e com que conquistaram as
veis. Desde 1859, Karl Goedeke publicou os 11 volumes do cátedras de Literatura em todas as universidades italianas.
Grundriss zur Geschichte der deutschen Dichtung ('Com- A luta entre De Sanctis e Carduccí parece-nos, hoje,
pêndio de História da Poesia Alemã'), obra enorme e exa- um tanto inútil. A pesquisa exata confirmava quase sem-
tíssima, sem uma linha de interpretação crítica e sem ves- pre as intuições geniais de De Sanctis; por outro lado, o
tígio de compreensão {ilosófica. Os tempos da biobiblio- próprio Carduccí não evitou de todo a síntese, publicando
grafia pareciam voltar. as aulas Dello Svolgimento delia Letteratuia Nazionale. É
Esboçoii-se a evolução na Alemanha, como exemplo. verdade, porém, que a síntese de Carduccí não tem nada
Mas esse caminho era fatal, como revela o exemplo italiano em comum com romantismo ou hegelianismo suspeitos; é
pelo paralelismo perfeito. uma síntese positivista, determinista, que explica a evo-
Também na Itália, Luigi Settembrini (Lezioni di lução da literatura italiana pela cooperação de dois fato-
IctíeratUTU italiana, 1866/1872) atualizou o assunto de ma- res causais: o espírito romano, pagão, e o espírito cristão.
neira anacrônica: toda a história da literatura italiana lhe Sem dúvida, era possível uma síntese dos conceitos de
parecia uma luta entre as forças do clericalismo e as forças De Sanctis c Carduccí. Encontra-se algo disso em Mar-
do liberalismo. Pelo menos, Settembrini encontrou um su- celino Menéndez y Pclayo; o espanhol eruditíssimo era
cessor como nem a Alemanha nem qualquer outra nação historiador e crítico; e as suas monografias especializadas
européia encontraram: Francesco De Sanctis. Liberal e sobre Horacio en Espana (1877), Historia de Ias Ideas Es-
nacionalista, êle também, sabia no entanto excluir o ana- téticas en Espana (1880/1882), Orígenes de Ia Novela
cronismo e transformar a "história dos movimentos" em (1905/1910), são vastas sínteses, -inspiradas em convicções
história das idéias. Renunciou deliberadamente ao porme- não de todo alheias ao romantismo. A vitória, porém, foi
nor histórico, excluindo até as figuras secundárias; escre- dos "positivistas".
veu a Storia delia letterauira italiana (1789) só em torno É preciso uma análise atenta para se reconhecer o
de Dante, Petrarca, Boccaccio, Poliziano, Ariosto, Fo- mesmo caminho de evolução na historiografia literária
lengo, Maquiavel, Aretino, Tasso, com pequenos excursos francesa. Abel-François Villemain, no Cours de Littéra-
sobre Lourenço, o Magnífico, Pulei, Bruno, Campanella e ture Française (1828/1829), distingue-se dos dogmáticos do
Viço. Estes só; parece pouco para uma literatura tão gran- classicismo pela atenção às influências estrangeiras na li-
26 OTTO M A R I A CAHPEAUX HiSTÓniA DA LITERATURA OCIDENTAL 27

teratura francesa e pela tentativa de compreender a lite- péia será brandesiana, quer dizer, positivista. O discípulo
ratura como resultado das mesmas forças históricas que alemão de Taine é Wilhelm Scherer (História da Literatura
também determinaram as expressões políticas e artísticas Alemã, 1883) : como Taine, Scherer nota as influências do
da nação; Villemain, comparatista e "historiador da civi- meio político e social, compreendidas como fatores causais.
lização" num campo especializado, é herderiano. Sainte- Scherer é até mais positivista do que Taine: na ânsia de do-
Beuve, em comparação com Villemain, é uma figura mais cumentar o mais sòlidamente possível os seus estudos, a
genuinamente francesa. A sua Histoire de Port-Royal documentação devora-lhe as conclusões. Afinal, Scherer é
(1840/1848), embora obra dum grande historiador, é, no também discípulo do bibliógrafo Goedeke. Dá a maior im-
fundo, um trabalho de crítica psicológica, desta criação portância à verificação exata de datas de publicação ou de
tipicamente francesa dos "moralistes" do século X V I I , In- pormenores biográficos, até dos mais insignificantes; or-
troduzindo-a na história literária, Sainte-Beuve criou a ganiza verdadeiras turmas de estudiosos para conseguir
"crítica universitária" ou "crítica dos professores", tão típi- edições críticas; estuda minuciosamente as influências
ca da literatura francesa do século passado. reais ou possíveis em todo verso, em toda expressão do
O fio da "evolução alemã" é retomado, na França, por poeta que se encontra, dir-se-ia, na mesa de operação filo-
Hippolyte Taine, imbuído de influencias herderianas e he- lógica. Os discípulos de Scherer registraram os dias nos
gelianas. Mas Taine é positivista: o conceito da indepen- quais Goethe estava resfriado; e explicaram a escolha de
dência das forças espirituais lhe é alheio. Entende Her- um assunto dramático verificando a existência de um livro
der e Hegel como se fossem biólogos do Espirito; e subs- que o autor do drama nunca tinha visto. Scherer criou um
tituí a evolução autônoma e dialética do Espírito pela novo tipo de história literária e o tipo do professor alemão.
cooperação de fatores reais, as três famosas determinantes: A posição que Scherer ocupava na Alemanha, na França
"race", "milieu", "moment historique". Na Histoire de Ia ocupava-a outro grande professor positivista: Ferdinand
Littérature Anglaise (1864/1869), Taine transforma a dia- Brunetière. Mas o es])irito sistemático dos franceses im-
lética hegeliana em jogo de causalismos positivos, entre pediu a acumulação schereriana de pormenores insignifi-
os quais o "Tempo" não tem lugar; porque o Tempo nada cantes. A Histoire de Ia Littérature Française (1904/1907),
determina. E' verdade que a consideração dada ao "mo- de Brunetière, combina a explicação claríssima com a elo-
ment historique" resguarda os direitos da cronologia; mas qüência de um grande orador universitário. Até o tom pro-
a cronologia, na obra de Taine, já não é o fator real que fessoral do Manuel de VHistoire de Ia Littérature Fran-
fora nos românticos. É mero esquema de exposição. Pouco çaise (1898) é compensado pela capacidade de exposição
a pouco, a cronologia degenerará em instrumento didá- sistemática. Contudo, os três fatores materiais de Taine
tico, útil para a apresentação ordenada dos fatos literários. não podiam satisfazer ao credo espiritualista de Brunetière.
Taine é o Herder do século X I X : todos descendem Numa tentativa de salvar a autonomia da criação literária,
dele. O seu discípulo dinamarquês Georg Brandes (Ho- inventou a famosa "evolução dos gêneros": nascimento,
vedstToemninger i det 19 Aarhandredes Litteratur, isto é, vida e morte da tragédia, da poesia, do romance, segundo
'As Correntes Principais da Literatura do Século XIX', uma lei quase biológica. O próprio Brunetière não podia
1872/1890) introduz o método de Taine no estudo da lite- deixar de admitir a natureza metafórica de todas as "leis"
ratura contemporânea; depois, toda a crítica literária euro- históricas, tomadas de empréstimo às ciências naturais;
28 OTTO M A B I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 29
das leis de Taine como das suas próprias. Mas o positi- Esse tipo de exposição foi adotado por todos os livros di-
vismo estava ainda m u i t o forte. dáticos de história literária, quer para o ensino secundá-
Como os outros grandes professores franceses de sua rio, quer para o ensino superior. É o tipo de História da
época, como os Faguet, Deschamps, Brisson, também Bru- Literatura que todos nós conhecemos.
netière era ensaísta e crítico, A história literária revelou
A história sinuosa do conceito "História da Literatu-
a tendência de se decompor em ensaios monográficos, ten-
ra" deu como resultado uma síntese de narração cronoló-
dência bem positivista, da qual o inglês George Saintsbur7
gica, evolução dos gêneros e ensaio monográfico; o "Lan-
e o alemão Albert Soergel são outros representantes.
son". A cronologia garante a ordem da exposição; a classi-
"Enfin Lanson vint". Gustave Lanson reuniu a cri-
ficação dos escritores menores conforme os gêneros asse-
tica pessoal dos Sainte-Beuve e Faguet ao cientificismo dos
gura exposição completa; o tratamento monográfico apre-
Taine e Brunetière; e o resultado foi a sua admirável His-
senta a compreensão critica — e por tudo isso o "Lanson"
toire de Ia Littérature Française (1894): tomou do positi-
é admirável. Mas nos seus numerosos sucessores c imita-
vismo a disposição cronológica; de Brunetière, o estudo
dores, sejam autores de livros didáticos ou de grandes sín-
separado dos gêneros dentro das épocas sumariamente de-
teses, aquelas qualidades foram gradualmente desaparecen-
lineadas; da c í r i c a professoral, a composição dos capítulos
d o ; em compensação, revelaram-se graves inconvenientes.
como pequenos ensaios monoj;rá[icos sobre os escritores
As grandes sínteses não se podem basear cm pesquisas ori-
mais importantes; ensaios, aliás, justapostos, sem ten-
ginais; são feitas "de segunda mão", aproveitando do-
tativa de ligá-los por ura fio explicativo. A época era da
cumentação iá utilizada. Fatalmente cai-se na rotina. Ro-
monografia.
tina, quer dizer, confiança absoluta na opinião dos autores
Enfim, a organização de grandes histórias sintéticas utilizados. Na história literária, a rotina prejudica parti-
das literaturas nacionais, compostas de monografias por- cularmente o lado crítico dos tialinliios. Ninguém pode
menorizadas, excede as forças de um só escritor. Apare- ter lido tudo; e até com rcspeilo às obras muito conhecidas
cem as obras coletivas: os 8 volumes da Histoire de Ia Lan- os autores de histórias literárias preferem, as mais das
gue et de Ia Littérature Française, des origines à 1900 vezes, repetir as opiniões conuagraclas. línqiianto a crítica
(1896/1900), sob a direção de Petit de JuUeville; a Storia literária se ocupa continuamente do revalorizações, des-
Letteraria d'Italia scritta da una società di professori (des- truindo os ídolos da convenção e revivi ficando autores ou
de 1898); a Cambrídge History of English Literature épocas inteiras injustamente esquecidas ou desprezadas,
(1907^916), dirigida por A. W . Ward e A. R. Waller; as os professores de História Literária repetem sem can-
Epochen dei deutschen Literatur, que M. J. Zeitier, desde saço os mesmos clichês, O próprio Lanson não conseguiu
1912, editou, Todas essas obras coletivas se parecem: deli- jamais vencer a aversão a Baudelaire, que o seu mestre Bru-
mitam as épocas segundo um esquema cronológico, mais netière lhe havia inculcado; até hoje aqueles professores
ou menos arbitrário; e, dentro das épocas, ensaios monográ- se conservam na hostilidade à poesia barroca, que toda a
ficos sobre os escritores importantes alternam com capítu- .• gente admira. Pouco a pouco, nasce nos livros didáticos
los sobre "poetas menores", "outros dramaturgos", e t c , con- de história literária um novo academicismo, comparável ao
forme os gêneros. Os ensaios e capítulos, as épocas e as classicismo dogmático de La H a r p e . Continuando-se assim
eras se sucedera sem tentativa de ligá-los uns às outras. a separação absoluta entre a história literária e a crítica
30 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 31

literária, aquela acabaria na oposição hostil à literatura "Os poetas menores do romantismo"; "Os classicistas atra-
viva; e os leitores e estudantes tirara desse desprezo à sados"; e "As poetisas". Também no conhecido livro de
literatura viva pelos especialistas do passado a conclusão André Billy sobre La Littérature Française Contemporaine,
do desprezo pela literatura do passado. A História Lite- no qual os poetas são classificados ein simbolístas, neocla-
rária, que parecia, na época do romantismo, a ciência mais sicistas, intimistas, e t c , aparecem, enfim, "les poétesses",
viva, pondo o homem em comunicação com as almas hu- constituindo ura apêndice como que fora do tempo e do
manas de todos os tempos e países, acabará como mausoléu espaço.
de falsas celebridades, como a mais inútil de todas as dis- A impossibilidade de reconciliar a cronologia com os
ciplinas didáticas. fatores reais de Taine levou os historiadores da literatura
Este resultado é a conseqüência fatal das perdas que a uma separação dos conceitos: o capíudo sobre determi-
o conceito " T e m p o " sofreu durante o século passado. Para nada época abre com descrição sucinta dns transforniinções
os românticos, o Tempo significava uma categoria histó- políticas e sociais — "milieu" e "moment historiquc" —
rica; para os positivistas, era apenas o toque de relógio, para serem abandonados esses conceitos e se confiar só na
indicando a hora exata do acontecimento, O Tempo dos cronologia; os fatores reais de Taine sobrevivem apenas
românticos, que criaram a história literária, era a força como uma espécie de pórtico decorativo. Mas isso também
viva do passado, agindo no presente; o Tempo dos positi- não adianta muito. Não é possível escrever a história li-
vistas era um esquema artificial, útil para a classificação terária em forma de anais; os acontecimenlos mais diver-
cronológica dos fatos verificados. Por isso o Tempo dos sos se misturariam da maneira mais confusa. Por isso, clas-
positivistas não exerce influência determinante sobre a evo- sificara-se os acontecimentos literários dentro de determi-
lução histórica; é substituído, nessa função, pelos fatores nada época, conforme os gêneros, abrindo se exceção uni-
reais, de Taine, ou pela evolução autônoma dos gêneros, camente para os escritores mais importaiilcs, que síio estu-
de Brunetière. Acontece, porém, que a origem diferente dados em pequenos ensaios monográficos. A conseqüência
de todos esses conceitos não permite a síntese pacífica -que é a ruína completa da cronologia, daquela mesma cronolo-
os manuais da história literária pretendem apresentar. gia que serve de pretexto para conservar os esquemas da
Dois dos fatores reais — a raça e o ambiente — estão rotina.
em oposição irredutível ao fluxo cronológico dos aconte- Já em Lanson, os mistérios medievais aparecem depois
cimentos literários: são fatores constantes; produzem con- de Villon e Commynes, e Garnier depois de Malherbe,
tinuamente obras e fatos que a evolução histórica já ultra- porque o gênero "teatro" foi estudado separadamente. No
passou ou ainda não deixa prever. Daí os muitos "precur- mesmo Lanson, a separação dos gêneros é responsável pelo
sores" e "atrasados", que transformam a história literária fato de Renan aparecer depois de Bourget. Numa das his-
em verdadeira corrida de cavalos. Por outro lado, os fato- tórias literárias mais divulgadas, o manual Notie littéra-
res móveis — o momento histórico — não exercem influên- ture étudiée dans les textes (10.* edição em 1937), de Mar-
cia alguma sobre as raízes constantes da produção literária eei Braunschvig, a separação rigorosa dos gêneros e o es-
em determinados setores, p. ex., sobre o caráter feminino; tudo monográfico dos escritores mais importantes têm con-
daí observar-se num livro muito divulgado a seguinte clas- seqüências cronológicas das mais estranhas: no primeiro
sificação da matéria: "Os poetas românticos importantes"; volume da obra de Braunschvig, os cavaleiros medievais
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 33
32 OTTO M A R I A CABPEAUX
"Renascença", "Classicismo" e "Literatura moderna", e
Villehardouin e Joinville aparecem depois de Villon, Des-
classifica, dentro dessas grandes épocas, os autores, confor-
cartes depois de La Bruyère, Corneille depois de Bossuet;
me os gêneros. Quer dizer que Van Tieghem renuncia a
no segundo volume, Diderot precede a Lesage, e Rousseau
todas as relações ideológicas e estilísticas, com o resultado
precede a Marivaux.
cronológico seguinte: aparecem Montaigne depois de Cer-
A origem contraditória dessas curiosidades cronoló-
vantes, Lutero depois de Milton, Pascal depois de Beau-
gicas revela-se, com evidência, na Cambridge History oi marchais, Chateaubriand depois de Ileinc, Walter Scott
English Literature. Os editores adotaram a distribuição depois de Nictzschc; torna-se impossível qualquer com-
convencional da matéria segundo épocas (Idade Média, Re- preensão dos fatos históricos; e o próprio fim didático não
nascença, e t c , até um "Século XIX, 1.^ parte" e "Século é realizado.
XIX, 2.* p a r t e " ) ; dentro dessas épocas separam-se os gê-
Compreende-se o resultado dessas confusões. Os es-
neros, e dentro de cada gênero aparecem os poetas e es-
pecialistas da pesquisa monográfica e os críticos liicrários
critores em ordem rigorosamente cronológica, conforme os
já não se ocupam muito com uma forma de exposiçrio que
anos de nascimento. Era conseqüência, aparece Donne an-
parece antiquada. A ciência "História Literária" fica re-
tes de Shaktispeare (porque a poesia precede ao teatro),
servada aos professores do curso secundário, para fins es-
Wordsworth antes de Burns, Swinburne antes de Dickens,
tritamente didáticos. No resto, domina o cepticismo.
o naturalista Gissing antes de Kuskin e Pater, O capricho
Benedetto Croce é o representante máximo desse cep-
dos anos de nascimento é responsável pelo fato de Thacke-
ticismo; não é historiador de literatura, nem o quer ser.
ray (nasc. cm 1811), autor de Vanity Fair (1847) e Henry
É filósofo e crítico; e a sua crítica literária c aplicação dos
Esmond (1852), aparecer antes de Dickens (nasc. em 1812),
princípios da sua estética. Os conceitos fundamentais da
autor do Pickwlck Club (1836), Oliver Twist (1838), Old
estética de Croce são a "expressão" e a "intuição": a obra
Curiosity Sbop (1841) e Christmas Carol (1843).
de arte é o meio de expressão do artista; o prazer estético
Seria possível imaginar uma justificação de todos na obra de arte e a sua análise crítica são resultados de in-
esses pecados contra a cronologia. Com efeito, muito mais tuições. Quer dizer, o único objeto do estudo literário é a
importantes que o fio cronológico dos acontecimentos li- obra de a r t e ; devemos estudá-la abstraindo dos acessórios
terários são as relações estilísticas e ideológicas entre au- históricos e psicológicos que acompanharam o processo
tores e obras. Seria justo conservar a ordem cronológica poético e dos quais se encontram ainda vestígios na obra.
só de maneira muito geral e distribuir a matéria conforme Esse conceito estético tem notáveis conseqüências negati-
os grandes movimentos estilísticos e ideológicos da histó- vas. O conceito "influência", tãp caro aos positivistas à
ria espiritual européia. Mas a definição exata desses movi- maneira de Scherer e Lanson, perde toda a importância,
mentos é obra da sociologia, da história da filosofia e da porque precisamente só aquilo que não é "influência" jus-
religião, da critica literária. A história literária ignorava, tifica o estudo da obra de arte. Intencionalmente, aliás,
até há pouco, esses resultados; continuava a contentar-se fala-se em "obra de arte", em vez de "obra literária". Na
com as definições mais convencionais da "Renascença" e do estética expressionista de Croce, qualquer forma de ex-
"Romantismo", e a adorar os ídolos "cronologia" e "gêne- pressão artística t e m a mesma origem e o mesmo valor;
ro". O excelente comparatista Paul Van Tieghem, por desaparecem as fronteiras entre a literatura, a música e as
exemplo, distribui a matéria, da maneira mais sumária, era
34 OTTO M A R I A CARPEAUX HiSTÓRiA DA LITERATURA OCIDENTAL 35

artes plásticas, e extinguem-se as fronteiras entre os g ê ricas. Não é por acaso que todos eles — Windelband,
neros literários, cuja separação se devia a condições hia- Rickert, Croce — são hegelianos. A sua crítica negativa
tóricas, contingentes, sem importância estética. Croce é lembrou as bases herderiano-hegelianas da história literá-
historiador de profissão; mas como crítico literário não ria, que o positivismo tinha abandonado. O começo do sé-
admite a importância dos fatores históricos. Na estética culo XX viu uma verdadeira renascença de Hegel, da qual
de Croce as obras de arte são monumentos isolados; e o Croce e Dilthey foram oa protagonistas.
trabalho do crítico consiste justamente na eliminação da Na Alemanha de 1910 a separação entre a história li-
"non-poesía", dos elementos acessórios, determinados por terária e a critica literária ora a inais rigorosa possível.
fatores psicológicos ou históricos. Croce nega peremptò- Todas as cátedras universitárias estavam regidas pelos
riamente a importância de qualquer relação histórica ou discípulos de Wilhelm Schercr, ocupados com a edição
psicológica entre as obras de arte; o estudo dessas rela- de textos críticos e a verificação dos porincnorcs mais in-
ções não tem sentido; e a "História da Literatura" acaba. significantes da biografia de Goethc. A crítica literária
Com efeito, Croce admite histórias literárias só como alemã, por sua vez, era puramente jornalística, era a pior
manuais didáticos ou como obras de consulta, de índole da Europa, desdenhando, com incompetência, mas com cer-
bibliográfica. Quando pretendeu estudar La Letteratura ta razão, a indústria escolar dos universitários, chamados
delia Nuova Itália (1915/1939), escreveu uma série de 137 na Alemanha de então "os mais estúpidos dos homens".
ensaios; e o seu panorama da literatura barroca faz parte Wilhelm Dilthey era um universitário difercnlc. O
da Storia dcJícíü barroca in Itália (1929). Segundo Croce, último dos hegelianos e o primeiro dos iieo liej^elianos —
só como estudo monográfico ou como parte da "hi&tória morreu em 1917, com 83 anos de idade — rcsiabeleceu a
da civilização", em todas as suas expressões, a história lite- independência das ciências hislórÍLns, criando utna nova
rária é possível. psicologia, a "psicologia compreensiva"; i'in voz de ana-
Decorridos muitos anos, a influência exercida por Cro- lisar as exprcssücH psicológiciM aló chcj^nr aos elementos
ce parece, principalmente, negativa, como que de uma tem- mais ])tiinil ivos, !i]H<iv«'ilava se da <locuinon1.ação literária,
pestade purifícadora. Depois de Croce e apesar de Croce relijMosa, filosófica, p.n a coiistiuir tipos, representantes
podia Attilio Momigliano escrever sua fina Storia delia da <'s(ruluia |isicoló;Mca totai de determinada época, O ti-
Letteratura Italiana (1936). Até Francesco Flora, crociano tulo da sua obra c;>|)ítal — Wcltanscbanung und Analyse
dos mais ortodoxos, escreveu uma Storia delia letteratura dcs Mcnschrn scit Rcnniíisance und Reformaíion ('Conceito
italiana (1940/41), muito compreensiva. O cepticismo é, do Mundo e Análise do Homem desde a Renascença e a Re-
portanto, infundado. Contudo, continua de pé o seguinte forma', 1914) — quase basta para -ilustrar a tendência dos
resultado: Croce acabou com a pretensão dos positivistas seus estudos, Dilthey analisou com certa preferência os
de introduzir os métodos exatos das ciências naturais nas sistem.as filosóficos e a documentação religiosa. Mas, no
chamadas "ciências do espírito", sobretudo na historiogra- seu próprio dizer, "os poetas são os nossos órgãos para com-
fia. Neste ponto, a sua atuação coincide com a dos filóso- preender o mundo"; e na sua obra Das Erlebnis und die
fos alemães Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert, que, Üichtung ('A Experiência e a Poesia', 1905) pretendeu jus-
quase ao mesmo tempo, chamaram a atenção para a dife- tificar aquele axioma pela exploração do fundo ideológico
rença essencial entre as ciências naturais e as ciências histó- em certos escritorf ? — Lessing, Goethe, Hoelderlin e No-
36 ()i IO M \ni \ ( '.\HI'I:AIIX
HISTORIA DA LITKRATURA OCIDENTAL 37
valis. Dilthey ciitiilivlicoii mna relação entre a experiên-
cia vital e a CNIU f.s.io [xútica; Saiiite-Beuve já tinha pro- civilização grega por Werner Jaeger (Paideia, 1933). Em
curado o mesHKj [iin, porém com os instrumentos de uma obras como estas realizou-se uma idéia da predileção de
psicologia naiui.ilista. No fundo, Dilthey não se acha tão Dilthey: a construção de "tipos históricos", representantes
longe do posiiívismo como parece: o seu intuito secreto das épocas. A conseqüência é a imobilidade desses pano-
é o restabelecimento do sentido hcgeliano nos conceitos ramas estáticos: a história decompõe-se em períodos típi-
naturalistas áv, Taine. Diltliey e sobretudo os seus discí- cos, sem possibilidade de se construírem as transições en-
pulos falam, como Taine, da raça, do meio, do memento tre eles. As tentativas de construir essas transições reve-
histórico; mas esses "fatores" não significam para eles rea- laram o lado positivo da filosofia de Dillhcy: b:5searam-se
lidades biológicas ou sociais, e sim meios de expressão, mo- nos "fatores reais", geração, raça, ambiente social, pare-
dalidades do "Espírito da época", do "Espírito objetivo" cidos às categorias de Taine.
hegcliano. Os discípulos ortodoxos de Diltliey continuaram o seu
As relações de Dilthey com o hegelianismo e, doutro trabalho de análise de estruturas psicológicas c dt- cons-
lado, com o positivismo, constituem iira dos mais impor- trução de tipos. Eitemplo significativo é a História d.t Au-
tantes problemas da história da filosofia contemporânea. tobiografia (1907), de Georg Misch. Os estudos dessa or-
Dilthey foi um dos últimos descendentes do grande perío- dem revelaram a existência de certos "tipos ideais" por
do goethiano-hegelíano da civilização alemã, da "era hal- trás de todas as manifestações espirituais do uma determi-
cyonica" da Universidade de Berlim; ocupava a própria nada época: o "asceta" e o seu complemento, o "clérij'.o va-
cátedra de Hegel, mas numa época do domínio das ciências gabundo", na Idade Média; o "viitnoso" d;i Keiiíiscença, o
matemático-físicas e biológicas, do positivismo. Como he- "honnêtc homme" do classicismo franct-s e o "gontloman"
geliano, Dilthey reconstruiu o conceito do "Espírito obje- do classicismo inglTs, o "ííibildelet" do sri nUi XIX ale-
tivo" ou "Espírito da época": concebeu todas as expressões mão. M?s cr:i p r c i s o e^;)lii'n- ;ts toodi ric;';rit"-; do tipo
religiosas, filosóficas, científicas, literárias, artísticas, de ideal, do época ]íar:i i'|M)<a; v. com isso, i-ii rfidii/irain-sc no
uma determinada época, como partes integrantes de uma pensanirnU) ditlii;'v;iii<i coMccití,:. de outrn provenicncia.
estrutura espiritual, em cuja composição orgânica o nosso A ()h:''iv;i<,;."ío de ({uv o novo 1'MO aparece, quase de re-
espírito de historiadores historicistas entra por meio da pente, rni tiirtn-ís inteir;;;-,, lembrou aos estudiosos alemães
"psicologia compreensiva". Desta maneira construíram-se uir,;i idria do posiüvista francês Cournot acerca do apare-
panoramas históricos de perspectiva e profundidade inédi- cimento, com regularidade matemática, das novas gerações.
tas, verdadeiros "cortes transversais" através de épocas. Pinder e Alfred Lorenz aproveitaram-se do teorema na
Burckhardt, em A Civilização da Renascença na Itália lüstórir! das artes plásticas c da música; Eduard Wechssler
(1860), já tentara coisa parecida. As obras exemplares do ííitrcduziu-o na história da literatura (A Geração como
método diltheyano são o estudo da civilização borgonhesa Turma de Mocidade e a Sua Luta pela Forma de Pensar,
no século XV por Jan Huizinga (O Outono da Idade Mé- 1930) ; Albert Thibaudet boseoii no mesmo princípio a sua
dia, 1919), o estudo do período crítico da inteligência euro- ílistoire de Ia Litterature Française de 1789 à nos jours
péia entre 1680 e 171S por Paul liazard {La crise de Ia (1936). O teorema das gerações trouxe uma vantagem mui-
conscience européenne, 1935), e o estudo panorâmico da t o grande: substituiu as divisões cronológicas, sempre ar-
bitrárias e controversas, por uma espécie de lei. Mas foi
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 39
:\n Oint MAIUA <"AHI'I:ALIX

umn Ifli l>i<)l('»i-.ii (t, o (|uc íiiiicaçava, de novo, a independên- acerca da relação entre a história social e a história reli-
cia diiK miiiiilciiiín^ijcs espirituais. A tentativa de Pinder giosa; começava-se a falar em estilo calvinista e literatura
de npoiai o (foicma das gerações em séries puramente ma- do pietismo. O lado social da equação foi acentuado pelos
tcni/ilicas dos anos de nascimento não foi bem sucedida; marxistas; Sakulin, na sua história da literatura russa,
trüiislortnou a história das belas-artes quase em astrologia. classificou os escritores conforme a proveniência social:
A ])orta estava aberta para a introdução de outros "fatores literatura dos latifundiários, dos burocratas, dos pequenos-
reais". burgueses, dos proletários. "Quantas classes sociais, tan-
O método de Dilthey permitiu perfeitamente a intro- tos estilos": este princípio substituiu os "estilos das ge-
dução de fatures sociológicos. O famoso trabalho de Max rações".
Weber sobre a relação entre a ética calvinista e o nasci- O "ambiente" de Taine, que reconhecemos sem dificul-
mento do espírito burguês (A Ética Protestante e o Espí- dade neste conceito, não era, porém, tão simpático aos es-
rito do Capitalismo, 1904/1905) não é outra coisa senão a tudiosos burgueses como a "raça". Evidentemente, não se
introdução dos fatores sociais num "corte transversal" his- tratava da simples raça biológica, e sim duma cooperação
tórico; o próprio Weber adotou o método diltheyano de
quase mística de heranças raciais e influências da paisa-
construir "tipos ideais". Um discípulo de Dilthey, Ber-
gem, na História Literária das Tribos c Paisagens Alemãs
nhard Groethuysen, aplicou as categorias weberianas ao
(1912/1928), de Joseph Nadler. Obra de fundo místico, com
estudo das relações entre o jansenismo e a mentalidade da
alusões políticas bastante antipáticas, mas que teve o mé-
nova burguesia francesa (Origines de Fesprit bourgeois
rito de renovar certas idéias de Herder e chamar a aten-
en France, 1927). Esses estudos, combinados de historio-
grafia "cultural" e historiografia econômica, não ficaram ção para a diferença de evolução entre os alemães oci-
indiscutidos. Censurou-se-lhes a indecisão com respeito à dentais e meridionais, inclinados para o classicismo, e os
questão de causa e efeito: é a mentalidade religiosa que alemães orientais, místicos e criadores do romantismo;
modifica as estruturas sociais, ou é a estrutura social que também tirou proveito disso a história literária dos eslavos.
modifica a mentalidade religiosa? Alegaram-se contra W e - Todas essas tentativas, por mais diferentes que sejam,
ber a permanência de estruturas sociais através de modi- concordam em um ponto; substituem as épocas convencio-
ficações espirituais e a permanência de estruturas espiri- nais da história literária por grupos estilísticos, melhor de-
tuais através de modificações sociais, de modo que vários finidos. Essas definições constituem a contribuição mais
"tipos" podem coexistir e coexistem na mesma época. valiosa da nova "escola alemã" para a renovação da história
literária. "Renascença" e "Romantismo" perderam o sabor
Não é possivel explicar todas as manifestações duma
época partindo de um tipo só; sempre existe pelo menos de termos didáticos, revelando-complicações inesperadas.
um "tipo de oposição". Neste sentido modificou Karl Surgiu novo termo, até então só conhecido na história das
Mannheim ("O Problema das Gerações", i n : Koelner Vier- artes plásticas: o Barroco. Notabilizaram-se os estudos de
teljahrshefte fuer Soziologie, V I I , 1928, fase. 2/3) o teo- W a r b u r g sobre as "Proto-Renascenças" medievais, de Her-
rema das gerações: a nova geração sofre o impacto de uma bert Cysarz sobre o Barroco, de Emil Ermatinger sobre
nova situação social e separa-se em grupos que reagem de Barroco e Rococó, de Hermann Korff e Franz Schultz so-
maneiras diferentes. Vieram ao encontro desse conceito bre o Classicismo, de Fritz Strich e Julius Petersen sobre
sociológico os estudos de Max Weber e dos seus discípulos o Romantismo. Então, os "períodos" e "fases" convencio-
40 OTTO MARIA CARPEAUX HiSTÓRiA DA LITEBATURA OCIDENTAL 41

nais da história literária já estavam abolidos, Thode e Toluntária das intenções secretas do autor pelo vocabulário,
Burdach já tinham chamado a atenção para as proto-re- a sintaxe, o metro. Na Alemanha destacaram-se os traba-
nascenças medievais, antes da "grande" Renascença italia- lhos importantíssimos de Karl Vossler, sobre Dante (Die
na do século XV. J á não era possível interpretar o Barroco Goettliche Komocdie, 1913, 1925), La Fontaine (1919), Ra-
como "decadência" da Renascença. Alois Riegl, talvez o cine (1925), e as análises sutis dos estilos de Péguy e
maior dos historiadores das artes plásticas, já afirmara que Proust por Leo Spitzer (Stilaprnchon, 1928). Foi profunda
não existem "épocas de decadência" nem "épocas primiti- a influência que essa nova filologia alemã exerceu sobre
vas", que são meros preconceitos do gosto acadêmico. Os os filólogos espanhóis: Dámaso Alonso, esi)ccialista incom-
artistas de tcdos os tempos sabem exprimir bem o que parável dos estudos gongóricos, José Maria de Cossío, Pe-
pretendem exprimir, e o que parece aos classícístas inca- dro Salinas e tantos outros. Na Inglaterra, I A . Richards,
pacidade formal não é senão o instrumento adequado de o autor dos Principies of Litcrary Criticism (^\92A) c Pra-
uma diferente visão do mundo. Uma vez mais, depois do ticai Criticism (1929), revivificou esquecidos conceitos do
romantismo, aboliram-se as fronteiras do "bom gosto" e grande poeta e maior crítico inglês, Coleridge: encontrou
alargou-se imensamente o campo das pesquisas. na própria ambigüidade da língua, meio emocional, meio
racional, a raiz da diferença entre poesia e prosa, o motivo
No terreno das artes plásticas, reabilitaram-se princi-
profundo da expressão literária. Os críticos ameritanos,
palmente as épocas denominadas "primitivas" ou de chama-
V. T. Ransom, Allen Tate, Cl. Broolcs, R. P. Blackmur,
da "decadência", desprezadas durante o domínio do gosto
Cleanth Brooks, Robert Penn Warren, K(-iinetli Burkc —
classicista: a Idade Média, o Barroco. No campo dos estu-
todos êles são, bon gré, mal grv, discípulot; du Richards,
dos literários, também se revalorizou o Barroco — Donne,
especialistas da análise estilislica, cnKinniido a lor os tex-
os "metaphysical poets" e os dramsturgos jacobianos na
tos literários como nunca antes foram lidos. lístabeleceu-se
Inglaterra, Góngora e os gongoristas na Espanha, Gryphius
a ligação mais íntima entre a crilica litcr.iria e a filologia
na Alemanha; depois, a poesia barroca avant Ia lettre,
universitária.
com Sccve c a escola de Lião, e & poesia barroca depuis
Ia lettre com IToelderlin; depois, os místicos de todas as Só a hifitoriogr.nfin da literatura ainda não entrou nes-
épocas, o "romantismo místico" de Novalis e o "romantis- sa combinação feliz. São raríssimas as obras — como a ex-
mo barroco" de Nerval ou Beddoes; enfim, toda literatura celente Historia de Ia Literatura Espaâoía (1937), de A.
de um fundo ideológico diferente da ideologia positivista Valbuena P i a t — que se abrem às análises estilísticas e
do século XIX, e«sa base da historiografia literária roti- ideológicas e aos resultados da crítica nova. A grande
neira. Sobretudo as diferenças dificilmente explicáveis en- maioria dos autores de manuais, sobretudo dos manuais
tre o romantismo alemão, conservador, e o romantismo fran- destinados ao ensino secundário e superior, e das sínteses
cês, revolucionário, produziram bibliografia imensa, Como de divulgação, continuam na rotina: desprezam, ou nem
instrumento exato para o estudo das relações entre a ideo- mencionam, Scève e Garnier, Donne e Tourneur; conside-
logia e a expressão literária ofereceu-se a análise estilís- ram Hoelderlin e Nerval como "poetas menores", igno-
tica, entendendo-se por "estilo" não já a correção grama- ram deliberadamente tudo o que se tem feito para reno-
tical nem o enfeite retórico, e sim a expressão total da var o sentido do termo "romantismo", e teimam em em-
personalidade pela linguagem, a revelação até às vezes in- p r e g a r "gongórico" em sentido pejorativo. A sentença
42 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 43

mais suave que se possa pronunciar com respeito a essas indivíduos, os autores. Mas o que não deu bem certo na
obras será: são irremediavelmente antiquadas. É preciso história das artes plásticas daria muito menos certo na
realizar nova síntese. história da literatura. Além daquele "fator individual",
O fim da síntese tentada é a apresentação da história que não é possível desprezar nem será desprezado, agem as
literária como interpretação histórica. Os manuais, os pe- influências "racionais" — política, situação social, corren-
quenos e os grandes, não satisfazem essa exigência; as tes filosóficas e científicas — impondo a análise ideológi-
mais das vezes, a história de determinada literatura com- ca. Do lado da análise ideológica, o ideal seria uma histó-
põe-se de uma coleção de pequenos ensaios a respeito dos ria do "Espírito objetivo" — interpretado como espírito
escritores mais importantes, reunindo-se os outros em ca- autônomo ou como superestrutura da estrutura cconómico-
pítulos-cajxas de "poetas menores". Dentro do tamanho social, não importa — estudando-se as obras literárias como
fatalmente reduzido de uma história literária, esses ensaios repercussões cristalizadas da evolução das idéias ou como
só podem ser esboços insuficientes, tanto mais insuficien- repercussões das transições sociais. O perigo, nisso, será a
tes quanto maior o terreno que o trabalho abrange; e a con- perda dos critérios propriamente literários. Numa obra de
seqüência inelutável desse sistema é a incoerência, a justa- tanta influência como Main Currents in American Thought
posição incoerente de capítulos e parágrafos isolados e as (1927/1930), de V . L . Parrington, reinterpretação da his-
transições artificiais como "Outro grande poeta desse tem- tória literária americana do ponto de vista da evolução so-
po foi Fulano", "Menos importante é Beltrano". Esse cial do país, podia censurar-se a incompreensão de todas as
método "individualizante" ignora ou escurece as relações obras que não servem para ilustrar aquela evolução; e em
históricas, ao ponto de tornar impossível a interpretação obras de críticos marxistas como V. F. Calverton {The Li-
histórica. Contudo, a existência de capítulos isolados so- beration of American Litcraturc, 1932) e Bcrn. Smith {For-
bre Cervantes, Quevedo, Lope de Vega, Calderón, numa ces in American Criticism, 1939), a história literária trans-
obra como a de Valbuena Prat, lembra-nos a origem indi- forma-se de todo em sociologia aplicada. No pólo oposto,
vidual, pessoal, de toda a literatura; como expressão total u m A. O. Lovejoy, o editor do Journal of the History oi
da natureza humana é que a literatura aparece no mundo, Ideas, estuda as obras literárias como se fossem teses filo-
e nessa função é que não pode ser substituída por coisa sóficas; os elementos propriamente literários tornar-se-iam
alguma. Mas cumpre distinguir a origem individual das enfeite supérfluo, senão incômodos obstáculos à interpre-
obras, e por outro lado a relação histórica, supra-indivi- tação ideológica, disfarces das idéias puras.
dual, entre as obras. Aquela é o objeto da crítica literá-
Á Uma síntese admirável dos métodos modernos encon-
ria; esta é o objeto da história da literatura e só se pode
basear em critérios estilísticos ou sociológicos. tra-se em English Pastoral Poetry (1935), de William
Empson, discípulo inglês de I . A . Richards. É, como o tí-
Do lado da análise estilística, o ideal seria uma his- t u l o o indica, uma monografia especializada, historiando
tória da literatura sem nomes de autores — o que já foi u m gênero. Mas o "gênero" pastoral é estudado em todas
tentado na história das artes plásticas: uma história exclu- •i a s suas expressões, na poesia narrativa, lírica, dramática,
sivamente das qualidades e elementos estilísticos das obras novelística, sem se considerar a antiquada separação dos
literárias, culminando numa história dos estilos, sem con- gêneros, já abolida por Croce; e "historiar" não significa
sideração das contingências individuais, até sem estudar os estudar conforme o fio cronológico, e sim acompanhar a
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 45
44 OTTO M A R I A CARPEAUX
des valores; depois, dos ramos americanos de algumas lite-
evolução de um meio de expressão de ideologias diferentes: raturas européias: a norte-americana, a hispano-americana
a poesia pastoral, expressão do evasionismo aristocrático e a brasileira. Quem não If.nora o assunto não discutirá
durante a Renascença e o Barroco, revela, no século X V I I I , a necessidade de estudar também as literaturas tcheca e
tendências rebeldes, opondo-se às injustiças produzidas húngara. Enfim, não se compreende uma história da lite-
pela revolução industrial. Mas aquelas poesias, comédias, ratura do Ocidente da qual fòssc excluída a maior das li-
novelas, não são panfletos políticos nem tratados socioló- teraturas niedievait;, a latina, ou na qual não ccorressem
gicos; são expressões do estado emocional dos autores, e os nomes do romeno Emiucscit, tio finlandês Kivi, e da
revelam o sentido ideológico só através da análise dos ele- galega Rosalía de Castro. Para ixsolvcv o jtroblctna dessa
mentos literários, da análise estilistica; e foi só o valor multiplicidade, as obras de sintesc cjlclivas jiisi apõem sim-
estético, o "lirismo", desses elementos, que decidiu da sorte plesmente uma história separada da literatura ilnli.nna, uma
das obras, do esquecimento de algumas e da permanência da literatura francesa, uma da literatura i!igli:;;a, etc., e t c ;
de outras. Enfim, Erich Auerbach deu um corte transver- evidentemente, isso não é síntese, e sim cokt^ão iiu:ocrente.
sal pela história literária ocidental inteira (Mimcsis, 1946), Daí não pode resultar jamais uma "história uuivers.ir' da
já não para caracterizar um gênero ou em estilo, mas um literatura universal. Nem basta distribuir assim as Hlfra-
princípio estilístico: o realismo. turas dentro dos grandes períodos históricos. É necessário
Trabalhos como os de Empson e de Auerbach consti- abolir as fronteiras nacionais para realizar a história da li-
tuirão os materiais da futura história literária. Por enquan- teratura européia (e americana).
to, e nesta obra, só foi possível fazer uma revisão geral dos
A história dessa literatura "internacional" compõe-se
valores, substituindo, em todos os pontos particulares, as
de grandes períodos, cujos nomes o uso consagrou: Idade
"fables convenues" da rotina pelos resultados da análise
Média, Renascença, Barroco, Ilustração, Kouiantismo, Rea-
estilistica e da análise ideológica, No resto, não foi pos-
lismo, Naturalismo, Simbolistno, etc. /':sscs nomes já não
sível aplicar o método monográfico de Empson numa obra
são, como há 40 anos, apelidos de "escolas", clichês sem
de síntese; ou, antes, foi preciso elaborar outro método,
significação precisa; j;ia(,as à análise estilistica e ideoló-
semelhante, mas adequado às exigências diferentes do
gica, já têm sentido. Pois icnovou-se, através de muitas
tema,
discussões, a periodização da história literária, Um repo-
O primeiro problema foi o da multiplicidade do assun- sitório dessas discussões é a publicação dos debates do
to. Uma história da literatura viniversal — o Ocidente euro- Segundo Congresso Internacional da História Literária em
americano constitui praticamente o nosso Universo espiri- Amsterdã, 1935 (publicados no ^ulletin of the Internatio-
tual — não pode limitar-se às chamadas "grandes" litera- nal Committee of the Histórica] Sciences, IX, 1937). Os
turas : grega, romana, italiana, espanhola, francesa, inglesa, resultados foram condensados e as conclusões tiradas por
alemã, russa. Entende-se, sem discussão, a inclusão das li- H. P. H. Teesing (Das Problem der Perioden in der Lite-
teraturas escandinavas, de tanta importância nos séculos ratargeschichtc, Groningen, 1949) e E. Auerbach (Doctrine
XIX e X X ; depois, de mais três literaturas, tão tradicio- générale des époques litteraiies, Frankfurt, 1949). Dis-
nais como aquelas: a portuguesa, a holandesa e a polonesa; cutir esses períodos e acompanhar-lhes a manifestação nas
depois, das literaturas provençal e catalã, importantíssimas obras individuais é o segundo problema da síntese e a pró-
na Idade Média, e hoje novamente representadas por gran-
46 OTTO M A R I A CARPEAUX HisTóniA DA LITERATURA OCIDENTAL 47
pria tarefa da historiografia literária. Deste modo, a his- e ao mesmo tempo como reflexo das situações sociais.
tória literária das nações e autores é substituída pela histó- Nada será mais justo do que a objeção: isso não é síntese,
ria literária dos estilos e obras, como expressões da estru- e sim ecletismo, sem capacidade ou sem vontade de se
tura espiritual e social das épocas. A cronologia perde o decidir. A resposta só pode ser tão relativista como o é
dominio absoluto; as faltas contra ela se justificam sempre a própria sociologia do saber: para sair daquela antino-
que a discussão e a evolução dos estilos as impõem. Mas só mia, seria necessária uma decisão de ordem metafísica, já
nesse caso. Não teria sentido violar arbitrariamente a cro- fora do alcance da sociologia do saber, já fora das possi-
nologia. A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no bilidades que a nossa situação espiritual-social, nesta nossa
Tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialé- civilização, oferece. Só quando esta civilização, com a sua
tico. A literatura não deixará de refletir esse ritmo — literatura e a sua sociologia do saber, houver acabado, será
refletir, mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distin- possível julgã-la definitivamente, e nesse jiil^',;tnicnlo será
ção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a lite- implicada aquela "decisão metafísica". É uma resposta "ima-
ratura em mero documento das situações e transições so- nentista", do ponto de vista "dentro" da nossa civilização,
ciais. A repercussão imediata dos acontecimentos polí- da nossa literatura, sem possibilidade de jidgá-Ia de fora,
ticos na literatura não vai muito além da superfície, e segundo critérios absolutos; só se pode tratar de compreen-
quanto aos efeitos da situação social dos escritores sobre der, nessa literatura, as relações, os valores relativos — os
a sua atividade literária será preciso distinguir nitidamente partidários do método sociológico lembrar-se-üo do relati-
entre as classes da sociedade e as correspondentes "classes vismo da sua epistemologia, e os adeptos do i'Si)iriluaUsmo
literárias". A relação entre literatura e sociedade — eis o das palavras do apóstolo, de que é fragmeiUo tcido o saber
terceiro problema — não é mera dependência; é uma re- humano.
lação complicada, de dependência recíproca e interdepen-
Assim, o método estilístico-sociológico ttin de provar,
dência dos fatores espirituais (ideológicos e estilísticos)
pela sua aplicação à literatura, a capacidade do explicar as
e dos fatôrss materiais (estrutura social e econômica).
relações entre os fatos literários, ííiibsUuiindo-sc a enume-
Essa interdependência constitui o objeto da "sociologia do
ração biobibliográfica dos fatos pela interpretação histó-
saber", disciplina sociológica, cujos fundamentos foram
rica. Seria apenas mais irina prova em favor do método se
lançados pelos trabalhos de Max Weber, Scheler e Mann-
se verificasse a impossibilidade de aplicá-lo a literaturas
heim. Os conceitos da "sociologia do saber" permitem
de outro tipo, fora do ciclo da nossa civilização. Estão
estudar os reflexos da situação social na literatura sem
neste caso as literaturas da Antigüidade greco-romana.
abandonar o conceito da evolução autônoma da literatura.
Neste campo de estudos não existem, por enqvianto, solu- Serão discutidos os obstáculos invencíveis que se
ções definitivas (nem as haverá, provavelmente) ; e justa- opõem à interpretação estilístico-sociológica das literatu-
mente por isso os conceitos da sociologia do saber servem ras antigas. Apesar das recentes análises sutis das leis de
para estabelecer a síntese, procurada como base da história composição da poesia, tragédia e prosa gregas, e apesar do
literária. Todas as sínteses são provisórias. muito que sabemos hoje da história social da Antigüidade,
falta-nos a encheiresis, a "ligação espiritual" entre os
A literatura é, pois, estudada nas páginas seguintes fenômenos de ordem diferente, para interpretar-lhes a his-
como expressão estilística do Espírito objetivo, autônomo. tória. E mesmo se possuíssemos todos os elementos, pro-
48 OTTO M A R I A CARPEAUX

vàvelmente só se revelaria o nosso afastamento definitivo


da Antigüidade, o caráter "exótico" do mundo greco-ro-
mano. Contribui para isso o estado irremediavelmente frag-
mentário do nosso conhecimento do assunto: conservou-se
muito pouco da poesia lírica grega, menos da décima parte
da literatura dramática, pobres fragmentos da imensa bi-
bliografia em prosa. Restam-nos obras e figuras isoladas,
tiradas da conexão histórica — e a história das literaturas
antigas ficará sempre reduzida à condição de análises fi-
lológicas e criticas. A verdadeira importância daquelas
figuras isoladas — a sua importância para nós outros —
só se revela através dos reflexos que deixaram nas letras
modernas, durante as renascenças sucessivas que compõem
a história literária do Ocidente "moderno", quer dizer, pós-
antigo.
Neste ensaio de interpretação histórica da literatura PAIMK I
do Ocidente, a história da literatura greco-romana só pode
figurar a título de introdução; depois, a discussão daqueles
reflexos, do "humanismo europeu", constitui a transição A IIKHAINCA
para o verdadeiro começo: a fundação da Europa.
CAPÍTULO I

A LITERATURA GREGA

L I T E R A T U R A grega ( ' ) , tão variada com respeito


A aos metros da versificação, estilos de expressão, gê-
neros e temperamentos, parece um pouco monótona quanto
aos assuntos. Muitas vezes voltam nas peças teatrais os
mesmos enredos, a poesia celebra sempre os mesmos ideais,
os prosadores sempre se apoiam nas mesmas citações. A
base da literatura grega continua, durante os séculos, sem-
pre a mesma, e essa base é um ciclo de poesias épicas que
constituem um cânon tradicional e invariável. A maior
parte dessas epopéias e poemas estava lif^ada, de qualquer
maneira, ao nome de um poeta lendário; nonic que se en-
contra até hoje nas folhas de rosto das nossas edições da
lUada e da Odisséia: o nome de Homero (-).

1> H. N. l'ow]ci': Tlir llishtrii o/ Anvicnt Grcck Lileralurc. 2." ed.


New York, lyiO.
G. Morriiy: The Hislory of Ancient Greek Literature. New York,
1912.
A. et M. Croisct: HiiLoire ãe Ia Littérature Grecque. 2." ed. Pa-
ris, 1920.
W. Chri.st: Gcschichte der Griechischen Literatur. 6." ed. 3 vols.
Muenciien, 1920.
H. J. ROKC: A Hanãbook of Greek LiteraUíre. 3.'* ed. London,
1948.
2) A primeira edição impressa das epopéias homéricas é a de Chal-
kondylos, Florença, 1483. Seguiram-se a Aldina, de 1504, a de
.Stephanus, de 1566, e inúmeras outra.s, até a edição crítica de
Immanuel Beklcer, 1858. A mellior edição moderna c a de Allen,
5 vol,s., Oxíord, 1902/1312. As obras principais sobre Homero,
além das citadas na discussão da "queytão homérica", são as
seguintes;
52 OTTO M A R I A CAHPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 53
Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão in-
a Igreja Romana emprega a palavra, como norma de inter-
discutida. O nome de Homero tornou-se sinônimo de poeta.
pretação da doutrina e da vida.
Essa glória é, em grande parte, o resultado de inúmeros
Mas essa doutrina e essa vida não têm nada com a nossa
esforços malogrados de imitá-lo. Será difícil enumerar as
vida e as nossas tradições, Homero é, podia ser a bíblia
epopéias que se escreveram para rivalizar com Homero; e
dum mundo alheio. O famoso "realismo objetivo" de Ho-
o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu a
mero, que o tornou norma da vida grega, afasta-o justa-
unanimidade de opinião: Homero é o maior dos poetas.
mente da nossa vida, cuja re.Tlidade exigiria outras nor-
Os gregos antigos consentiram, mas por outros motivos;
mas objetivas, diferentes. Para nós oulros, Homero não
porque nunca — senão nas últimas fases da decadência li-
pode ser outra coisa senão símbolo de uma grande obra li-
terária — um poeta grego pensou era imitar Homero. As
terária, puramente literária e capaz de ser discutida. Por
epopéias homéricas eram consideradas como cânon fixo,
isso, a autenticidade das epopéias homéricas — a famosa
ao qual não era lícito acrescentar outras epopéias, de ori-
"questão homérica" — teria tido a maior import.nncia para
gem mais moderna. A Hkida e a Odisséia erjm usadas, nas
os gregos antigos, a mesma que tinham nos séculos X V I I I
escolas gregas, como livros didáticos; nào d.'i maneira como
e XIX as discussões entre os teólogos sobre a autentici-
nós outros fazemos ler aos meninos a)í',Lin;ns grandes obras
dade dos livros bíblicos. Para nós, a questão homérica,
de poesia para edncar-llics o gosto ]ÍIÍM,'I:ÍO ; mas sim da
que tanto apaixona os filólogos e arqueólogos, é de impor-
maneira como se aprende de cor iitn catccisnso. Para os an-
tância bem menor. Antes, tratar-se-ia de saber se a Iltada
tigos, Homero não era luna obra literária, leitura obrigató-
e a Odisséia são monumentos vencraveis rin iôrças vivas,
ria dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os
Mas não pede haver díividas: embora imensamente remo-
homens de letras. Na Antigüidade também, assim corno nos
tos de nós, os dois poemas contimiarain sinônimos de
tempos modernos, Flomero era indiscutido: mas não como
Poesia.
epopéia, e sim como Bíblia. Era um Código. Versos de
Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filo- Mnllhrw Arnolil. no seu ens.iio só!;re a arte de tra-
sóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, mo- duzir Homero (•••). deu ao "re;ili-;mo hotnérico" uma defi-
ções políticas. Versos de Homero citaram-se noa discursos nição oslilíslicn: rj c-sli?o de UdiTT.Mo seria "rápido, direto,
dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis. simples c nobre". As tn/s 5>r:mcirns qualidades definem o
"Homero": isto significava a "tradição", no sentido em que realiümo; pela quarta, distingue-se Homero de todos os
outros realistas. Homero fala de tudo o que é humano;
inclui na vida humana os deuses, que têm feição inteira-
I. A. Symonds: Stuãies of the Greek Poets, Second Series, Lon- mente nossa, mas também o lado infra-humano e até animal
don, 1876. da nossa vida. As fadigas físicas, a comida, o amor nas suas
K. Bréal: Pour mieux connaltre Homère. 2.'* ed. Paris, 1911.
K. Roth: Die Oãyssee ais Dichtung. Paderborn, 1914. expressões físicas, tudo entra em Homero, e as palavras
T. T. Sheppard: The Rise oj the Greek Epic. Oxford, 1924. mais grandiloqüentes sobre deuses e heróis dariam só um
E, Turolla: Saggio sulla Poesia di Omero. Bari, 1930. contraste desagradável com a realidade da vida descrita,
W. I. Woodliouae; The Composition of Homefs Oãyssey. Ox-
ford, 1930.
F. Robert: Homère. Paris, 1950.
E. M. Bowra; Heroic Poetry. Oxford, 1952. 3> M. AnioW: "On Tran.slating Homer", 1361, (In: Essaijs Literary
and Criticai, 1855.)
54 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITEBATUBA OCIDENTAL 55

se não fosse aquela quarta qualidade do estilo homérico: planos gregos, e Príamo, que sabe, no entanto, condenada
tudo aparece dignificado, nobre, e não pela escolha de eu- a sua cidade. O mesmo, porém, sabemos desde o começo e
femismos, mas pelo emprego de adjetivos e comparações através de todas as lutas episódicas: Tróia está perdida.
estereotipados. A monotonia aparente dessas repetições A Iliada é um poema grego; a maior parte dos acontecimen-
parece dizer-iios: vejam, a vida humana é sempre assim, é tos narrados passa-se entre os gregos, e o ponto de vista do
eternamente assim; e esse aspecto das coisas sub specie poeta parece o grego, contra os troianos assediados. Nas
aetcrnitatis dignifica tudo, sem desfigurar jamais a ver- versões latinas da Iliada que se fizeram no fim da Antigüi-
dade. Homero — ou como quer que se tenha chamado o dade e que passam sob os nomes do Diclys e Dares, o ponto
poeta, não importa — consegue o milagre de dar vida ver- de vista mudou: os autores tumam partido pelo lado troia-
dadeira em fórmulas fixas, em clichês. Não importa se isso n o ; e a Idade Média, que só conheceu essas versões la-
é resultado das capacidades inatas de um povo genial ou do tinas, acompanhou-os. Desde o tempo dos humanistas, pa-
trabalho de um gênio poético. Revela a presença de uma rece-nos isto uma deturpação do sentido da epopéia; mas
grande capacidade de estilização, da mesma que se mostra teremos de admitir o senso de justiça na interpretação me-
na composição das duas epopéias. dieval. Homero é grego; mas não toma partido, mantém-se
objetivo. Quase ao contrário, o seu sentimento humano in-
A Iliada está cheia de riiido de batalhas e lutas pes-
clina-se mais para os troianos; é aos gregos que êlc lembra,
soais. À primeira vista, é difícil distinguir os pormenores:
em versos memoráveis, o destino de todas as j;eraçõcs que
tudo e todos parecem iguais, como nos quadros dos pinto-
"caem como as folhas das árvores"; c o único e|>tsódio em
res florentinos do século XV, nos quais todas as figuras
que se revela certo scntimentalisino é a cen;< do despedida
têm a mesma altura. A análise do enredo patenteia logo
entre Heitor e Andrômaca. Ktii toda a cpiipéia, sente-se
uma multiplicidade de episódios em torno dos personagens
vagamente, e dolorosamente, o futuro tiiu da cidade asse-
principais: ira, abstenção e luta final de Aquiles, as em-
diada; a tragédia de Tróia é o desiguio poético (juc imifica
presas bélicas individuais de Ájax, Diomedes e Menelau,
os episódios dispeisos da lli.iihi i-iu torno da "Aquileis",
as intervenções de Agamémnon e Ulisses, aquele nobre,
que termina com o j',ol[)e decisivo contra Tróln : .'i rnorlc de
este prudente, a sabedoria episódica de Nestor e a ma-
Heitor.
ledicência episódica de Tersites, e mais os episódios troia-
nos: a fraqueza de Paris, a bravura estóica de Heitor, o Idêntica imidade de composição se revela na Odisséia.
sentimento sentimental de Andrômaca o sentimento trá- Na aparência, não há ligação entre o "Nostos", a vi;igcm de
gico de Príamo. O fim de Tróia não é absolutamente o Ulisses pelo Mediterrâneo em busca da pátria, e o "Ro-
assunto do poema. No começo, é indicado como assunto mance de ítaca", a expulsão dos pretendentes da fiel Pe-
a ira de Aquiles. Mrs esta "Aquileis" ocupa só parte do nélope. O "Nostos" é um grande conto de fadas: as aven-
poema; outras partes, nas quais a luta por Tróia é o assun- turas de um capitão fantástico, entre lotófagos, ciclopes,
to, quebram a unidade, e a "Aquileis" termina no trájico sereias, phaiacos, nas ilhas da Calipso e da Circe, entre
canto X X I I I , sem que cheguemos a assistir à queda de os rochedos de Cila e Caríbdis; é, ao mesmo tempo, pe-
Tróia. Mas a Iliada tem um canto mais: o XXIV. O fim sadelo e sonho de felicidade de marinheiros gregos. O
da epopéia é o encontro entre Aquiles e Priamo: entre "Romance de ítaca" não é conto de fadas: ê um quadro do-
Aquiles, cuja atitude pessoal impediu a realização dos méstico, quase burguês, descrito com o realismo de um
56 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 57

comediógrafo parisiense do século XIX, com intervenções unidade das epopéias, que seriam composições do gênio co-
de realismo popular, desde a figura do pastor até ao cão letivo dos gregos. A paixão do Romantismo pela poesia
de Ulisses, que reconhece o dono e morre. Exatamente popular e pela "inspiração" sem colaboração da "Razão"
no meio, entre as duas partes, no canto XI, há a "Nekyia", dos classicistas aprovou a tese wolfiana. Karl Lachmann
a descida de Ulisses ao Hades, onde encontra os mortos (Betrachtungen über die Ilias des Homer, 1837) conside-
da guerra troiana lamentando a vida perdida. Com esse rava a Ilíada como coleção de 16 poemas independentes,
episódio as aventuras acabam. A partir desse momento o depois unificados por um "redator". G. Hermann (De in~
poeta dos heróis canta a realidade prosaica: a casa, a famí- terpolationibiis Homeri, 1832) admitiu a autoria de Ho-
lia, os criados e o cão. No reino da Morte, Ulisses en- mero — o nome não importa — para dois poetnas de ta-
contra o caminho da vida. A "Nekyia", entre as aventuras manho curto: "A Ira de Aquiles" e "O Retorno de Ulis-
fantásticas e o caminho de casa, serve para comemorar o ses"; seriam os núcleos cm torno dos quais as cpoi;cias
fim sombrio de Tróia e o destino trágico dos gregos, dos se teriam desenvolvido por meio de interpelações c suple-
quais só Ulisses encontrará a paz final na vida de um mentos anônimos, atribuídos depois ao próprio Homero.
aristocrata grego com os seus fillios, criados e animais do- A análise cada vez mais acurada da linguagem, do estilo
mésticos. Com êssc "realismo nobre", confirma-se a uni- e da composição convenceu a maioria dos filólogos; a gran-
dade íntima entre a llhida e a Ocli.^^scia. de autoridade de Ulrich von Wilamowitz-Moellcndorff é
A dúvida que se levanta sobre a unidade dos dois poe- principalmente responsável pela vitória provisóii.T da teo-
mas nasce, porém, dessa mesma unidade. O equilíbrio entre ria coletivista (*).
o Olimpo e a tragédia, na Ilíada, entre as aventuras fantás- Contra as dissecções filológicns rcvohnrrtin se, porém,
ticas e o idílio crepuscular, na Odisséia, é tão perfeito, a os críticos que não perderam de visln ns qualidades literá-
objetividade dos poemas é tão grande, que o leitor se esque- rias dos poemas: o agrupanu-nlo simrlrico dos discursos,
ce de que lê poesia. O enredo das duas epopéias é como a a antítese intencional entre Acpiiks e ]'.iris, o julgamento
própria vida humana: não foi inventado; tudo devia ter ético dos personagens, a rcsposUi e.\plii-ila da Odisséia às
acontecido assim. Não é preciso e.--:plicHr nem interpretar dúvidas que a leitura d;» llí:td;i deix.i subsistir. Contradi-
nada. O poeta desaparece atrás do poema. E por isso foi ções encontr;!ni-s(' l;inil)('-Mi CTII ulirns :ii'.tcnlicas de autores
possível duvidar da sua existência histórica; depois, da individuais, antigos e modei^iios, e -TS contradições homé-
identidade dos autores das duas epopéias; enfim, da au- ricas perderam cada vez mnis n importância que lhes foi
toria individual dos poemas.
As dúvidas já eram antigas, mas o grande advogado
4) R. C, Jebb: Ilamcr. C;iml)ii(l'c, i:.:;7,
do diabo foi Friedrich August Wolf. Nos seus Prolego- W. Leaí: A Companíon Io Ihr Iluid. Lontíon, 1892.
mena ad Homcrum (1795) apontou as contradições e dife- U. von Wilamo\vit;í-Motl]c)iif()i 11": ÍIii:;ic?isch e üníersuchiingen.
renças estilísticas entre a Ilíada e a Odisséia, e dentro das Berlin, 1884.
U. von Wilamowit/.-Mocllondorll: Dic Ilias unã Homer. Berlin,
próprias epopéias; baseando-se nas experiências do século 1920.
X V I I I , que tinha descoberto a poesia popular anônima e U. von Wilamowitz-MoclIciidorlT: Dic Heimkehr ães Oãysseiit.
acreditava possuir nas canções do lendário Ossian um Eerlin, 1927. •
P. C.iiier; Grunãfragen der Homerkrüik. 3.^ ed. 2 vols. Leipaii;;,
pendant nórdico dos poemas homéricos, Wolf negou a 1S21/1S23.
58 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL

a n t i g a m e n t e a t r i b u í d a , em face d a u n i d a d e d e c o n c e p ç ã o e a c a p a c i d a d e dos h o m e n s d e s u p e r á - l a . N a Odisséia, os


c o m p o s i ç ã o das d u a s e p o p é i a s . A idéia r o m â n t i c a d e p o e - d e u s e s a g e m como i n s t r u m e n t o s da J u s t i ç a n o m u n d o ; dai
sia p o p u l a r e c o l e t i v a revela-se c o m o p r e c o n c e i t o , e o " u n i - o happy end, a s u b s t i t u i ç ã o d o d e s f e c h o t r á g i c o p e l o
t a r i s m o " g a n h a cada vez m a i s t e r r e n o (^'). idílio. Esses "exemplos" aplicam-se — e H o m e r o acentua
O e s t u d o d a e s t r u t u r a d o s p o e m a s , em v e z d a a n á l i s e isso — aos t e m p e r a m e n t o s m a i s d i v e r s o s e aos h o m e n s d e
d e s t r u t i v a , r e v e l a - l h e s a u n i d a d e dos d e s í g n i o s . P a r e c e ha- t o d a s as c o n d i ç õ e s s c c i a i s . O s g r e g o s d e t o d o s os t e m p o s
v e r c o n t r a d i ç ã o e n t r e a é t i c a h e r ó i c a d e g u e r r e i r o s , n a Ilía- e n c o n t r a r a m em H o m e r o r e s p o s t a s q u a n t o à c o n d u t a d a
da, e a é t i c a f a m i l i a r d e a r i s t o c r a t a s l a t i f u n d i á r i o s da Odis- v i d a ; o c o n t e ú d o e até a a r t e p e r d e r a m a i m p o r t â n c i a p r i n -
séia. M a s a q u e l a é t i c a bélica é a g l o r i f i c a ç ã o da kaioita- cipal, c o n s i d e r a n d o - s e a força s u p e r i o r da t r a d i ç ã o ética.
gathia, d o ideal da p e r f e i ç ã o física e e s p i r i t u a l , o m e s m o " H o m e r o " é o p r ó p r i o m u n d o g r e g o . N a s c e u com a
q u e i n f o r m a a i n t r o d u ç ã o da Odisséia, a chamada "Tele- civi]iz.?,ção g r e g a : a l í n g u a e o m e t r o , o h e x à m e t r o , n a s -
m a q u i a " , n a qual se d e s c o b r i r a m os i n t u i t o s p e d a g ó g i c o s cem ao m e s m o t e m p o . P e r t e n c e n d o a uiTia época q u e é,
q u e F é n e l o n t i n h a a d i v i n h a d o (''). O s d e s í g n i o s p e d a g ó - d o p o n t o d e v i s t a h i s t ó r i c o , u m a é p o c a p r i m i t i v a , as epo-
g i c o s d e I l o m e r o foram, (lc])ois d e l í d n a r d S c h w a r t z , es- péias homéricas revelam simultaneamente a existência de
t u d a d o s p o r J a e g c r (^), ficando e s c l a r e c i d a a função d o s uma literatura perfeitamente amadurecida. Não é pos-
p o e m a s h o m c r i c o s na A n l i g i i i d a d c . O p.ithos h e r ó i c o da sível d e t e r m i n a r c o m e x a t i d ã o a época cm q u e as e p o p é i a s
Uiada c a ética a r i s l o c r á l í c a da Odissóin são i m a g e n s i d e a i s homéricas foram redigidas. Quando Schlieniann desco-
da vida, q u e e x e r c e m i n f h i t i i c i a d u r a d o u r a sobre a r e a l i - b r i u , n a Ásia M e n o r , as r u í n a s da ciiiade de T r ó i a , c se
d a d e g r e g a . N a " T e l e m a q u i a " e na " e d u c a ç ã o " d e A q u i l e s , r e v e l o u , em M i c c n a s e C r c t a , a e x i s l t i i c i a de uma civiliza-
essa i n t e n ç ã o é a t é m a n i f e s t a . O i n s t r u m e n t o da i n t e n - ção p r c - h e l r n i c n , e s p c i a v a - s e a s o l u ç ã o d i i i i i i l i v a do p r o -
ção p e d a g ó g i c a é a c r i a ç ã o d e e x e m p l o s ideais, t i r a d o s do blema hoTiiciico. Nfio fie ci)nse(Miiii, |iniéin, e s l a b c l e c e r u m
m i t o . A t r a d i ç ã o só o f e r e c e u u m a s é r i e d e l u t a s ; H o m e r o acõr(h) p e i r c i l o e n d e as an,•'^li^;es I ilolúj.icas e as d c s c o b e r -
i n t e r p r e t o u - a s c o m o v i t ó r i a s e x e m p l a r e s d e h o m e n s su- t;if; ;II(|IICO1Ó;MI íis. A IIÍ:HI:> d e s c r e v e f i e l m e n t e a é p o c a
periores, e a maior dessas vitórias é a de Aquiles. Por ItiiHíii <i.i r m - t i a C ), e o <unteiído da Odisséia está em r e -
isso, a lUada n ã o vai a l é m d e s t a ú l t i m a v i t ó r i a , q u e é essen- lação iiiiima (iMii a é p o c a lonícia d a c i v i l i z a ç ã o m e d i t e r -
c i a l m e n t e u m a v i t ó r i a d o h e r ó i s o b r e si mesmo. A p r e - i,'i,uTi (•'). M.is n.'iü é ijossível d i s t i n g u i r e n t r e a r e a l i d a d e
sença dos d e u s e s h o m é r i c o s , q u e são, p o r d e f i n i ç ã o , i d e a i s liislórica e o p.iiKjj-ama p o é t i c o . A é p o c a m a i s p r o v á v e l das
h u m a n o s , r e v e l a não só a c o n d i ç ã o h u m a n a , m a s t a m b é m origens lionicticas situa-se entre o século I X e o século
V I I a n t e s da n o s s a era. N a s e p o p é i a s , a r e l i g i ã o " p r é -
h o r n é r i c a " e — e m p a r t e — a c i v i l i z a ç ã o m í c ê n i c a estão já
5)I. Van Leeuwen; Ccmmentationes HovierUac. Lcyúen, l.Qll.
E. Bothe; Homer. Diclitung imã Sage. 3 vols. Leipzig, 1914/1927. e s q u e c i d a s . A r a c i o n a l i z a ç ã o a c h a - s e tão a d i a n t a d a q u e os
E. Drerup: Homerische Post.iJc. Wuerzburg, 1921. g r e g o s d e t o d o s o s t e m p o s p o d i a m ler H o m e r o s e m d e p a r a r
C. ,M. Bowra: Traãition and Design in the Iliaã. Oxford, J930.
P. Von der Muehü: Der Dichtcr der Oãyssee. Leipzig, 1940.
E. Howaid: Der Dichtcr der lhas. Zurlch, 1946. 0) A. Lans: The Worlã of Ilomcr. London, 1910.
61 E. Schwartií: Die Oãyssee. Mucnchen, 1924. W. Schadfwaldt: Von Homers Welt und W erk. 2.» ed. Stut-
7) W. Jaeger: Faiãeia. Die Bildung ães griechischen Menschen. tLTart, 1951.
Eerlin, 1933. 9) V. Bírard: Introduclion à 1'Odyssée. 2," ed. 2 vols. Paris, 1933.
HisTÓniA DA LITERATURA OCIDENTAL ()1
60 OTTO M A R I A CARPEAUX

simples, laboriosa, sem esperanças de melhorar as suas con-


com primitivismos incompatíveis com os seus dias. Pouco
dições de vida. Os Trabalhos e os Dias, a outra obra de
depois, já era possível a Batracoiniomaquia ('*•), a pri-
Hesíodo, é uma espécie de poema didático, que estabelece
meira epopéia herói-cômica, descrição da guerra "homé-
normas de agricultura, de educação dos filhos, de práticas
rica" das rãs e ratinhos, parodiando a Híaüa, sem ofender
supersticiosas na vida cotidiana. É uma poesia cinzenta,
a majestade de Homero. Homero compreende t u d o : sol
prosaica. Não tem nada com Homero. Não se trata de guer-
e noite, tragédia e humor, o universo grego inteiro, do
ras, e sim de trabalho, não de reis, e sim de camponeses;
qual é a bíblia e o cânone ideal. Cânone estético e religioso,
camponeses que se queixam da miséria e da opressão, e cujo
pedagógico e político; uma realidade completa, mas não o
ideal é a honestidade, cuja esperança é a justiça. Hesíodo
reflexo imediato de uma realidade. Se Homero só fosse
lembra os almanaques populares: é um Franklín sem hu-
este reflexo, teria perdido toda a importância com a queda
mor, um Gotthelf sem cristianismo. Parece representar o
da civilização grega. Mas era já, para os gregos, uma ima-
pessimismo popular em tempos de decadência do feiida-
gem ideal; e não desapareceu nunca. O equilíbrio entre
lismo. muito depois de Homero. Contudo, os antií;os ci-
realismo e idealidade é o que confere aos poemas homé-
taram sempre Hesíodo como contemporâneo de Homero,
ricos a vida eterna: a bíblia estética, rolij-^iosa e política
e a análise da sua língua permite realmente situá-lo no sé-
dos gregos podia transformar-Hc em bíblia literária da ci-
culo V I I . Hesíodo não é um produto da decadência; é o
vilização ocidental inteira.
Homero dos proletários, é o reverso da medalha.
Homero parece situado fora do tempo. Km compara-
Já isso revela que nem todos os a;-,pcctos da vida "^reí^a
ção, JHesíodo ( " ) já é poeta de uma época histórica, se bem
- ^ se refletem na epopéia. Outro "capítulo (pio Homero es-
que primitiva. A Tcogonia revela crenças religiosas pré-
queceu", que tinha de esquecer para conservar o equilíbrio
homéricas: a narração das cinco idades da Humanidade, da
da objetividade, manifesta-se na ]t(>csin lírica dos gre-
idade áurea até a idade de ferro, está imbuída de um pessi-
gos ('=).
mismo pouco homérico, e os mitos do caos, da luta dos
Os nossos conhecir.nritrvi <l.'i [loesia lírica grega são
deuses, dos gigantes, de Prometeu e Pandora, cheiram ao
precários. Com excoçTu) d:i (.>!)ra de iPindaro,) possuímos
terror cósmico, próprio dos povos primitivos. Ao leitor de
só fraj;mcnl(s, que não pcrtnitein reconhecer a personali-
Hesíodo, vem-lhe à mente a tenacidade com que as camadas
dade dt)s poclüs, r c m sequer nos dão idéia bastante exata
incultas da população guardam as tradições religiosas, já
do que foi aquela ;?oesia; nenhum critico literário ousa-
esquecidas pelos "intelectuais". O pessimismo é o da gente
ria jamais intíirpretar e julgar um poeta moderno do qual
só conhecesse tão poucos versos como existem dos líricos
10) A BatracoTniotnaquia foi atribuída ao poeta lendário Pi;,'ref:. gregos. Além disso, a poesia íírica grega estava intíma-
É provavelmente do século V antes da nossa era, embora a liii-
guasem seja da época alexandrina (talvez versão postcriortnsnta
retocada). Eüição por A. Ludwicti, Leipzig, 1S9S. 12) Edições:
J. 'Wackernagel: Sprachüciie Untersuchungen sn IJovier. Goet- Th. Bergk: Poetae Lyrici Graeci. 3 vols. 4." ed. Leipzig,
tingen, 1915. 1278/1882.
E. Diehl: Anthnloçjia tyrica Graeca. 1 vols. Leipzig, 1925.
11( Edições críticas por A. Rzacli, Leipzig, 1902, e por P. Mason, Pa-
H. Flach: Geschichte ãer griechischen Lyrik. 2 vols.
ris, 1928.
Tuebingen, 1883/1884.
R. Waltz: Hésioãe et son poème moral. Paris, 190G.
G. Fracearoli: / Lirici greci. 2 vols. Torino, 1904/1912.
F. Jftcoby: Introdução à edição crítica da Teogonia. Betlin, 1930.
62 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 63

mente ligada à música; e da música grega não podemos com melancolia amarga — pessimismo como o de Hesíodo,
formar idéia. Os autores gregos nos fornecem nomes e mas da parte de um grande senhor vencido.
classificações: palavras que são, as mais das vezes, des- O caso de Teógnis revela a compatibilidade, segundo
pidas de significação para nós outros. a opinião dos gregos, de efusões líricas e intuitos satíri-
Distinguem os nossos informadores três espécies de cos; ao leitor moderno ocorrerá, vagamente, o nome de
poesia lírica: a poesia de coro, a elegia e a poesia lírica T . S. Elíot. A veia satírica também distingue aquele que
propriamente dita. A clasrificação baseia-se nas diferenças os gregos consideravam o maior dos poetas líricos pro-
do acompanhamento musical, que não podemos julgar, e priamente ditos: Arquíloco ('"*"*). Os poucos fragmentos
em diferenças dos "efeitos" sobre os temperamentos, es- conservados não permitem julgar um poeta cuja força de
tados de alma e paixões dos ouvintes: coisas que não seria expressão na ínvectiva teria causado, segundo a tradição,
possível distinguir e classificar em toda a nossa poesia. o suicídio dos seus adversários; na obra do grande poeta,
essas invectivas constituíram, por assim dizer, os Châti-
A poesia de coro tinha acompanhamento de liras e
ments de um Victor Hugo grego.
•j- flautas. Citam-se os nomes de Terpandro, Alcmano, Arion,
A expressão de paixões violentas parecia aos antigos
Estesícoro, Ibico, Simônides — os nomes e poucos versos
a verdadeira tarefa da poesia lírica. Por isso celebraram
isolados — e Baquílidcs, do qual possuímos fragmentos
o nome de Alceu Q''), aristocrata belicoso e poeta re-
mais extensos, parecidos com a poesia de Píndaro; e, fi-
quintado. E para explicar o poder de expressão da maior
nalmente, o próprio Píndaro, o único poeta lírico giego
das poetisas, Safo ('""*), inventaram uma coroa de len-
cuja obra se conservou; por este e outros motivos convém
d a s : Safo como centro de um círculo de mulheres da-
estudá-lo separadamente.
das ao amor lésbico, ou Safo que se suicida por amor
Quanto à elegia, fala-se de Tirteu ( ' ' ) , cujo nome a uma jovem que não compreendeu a pnixão da poetisa
se tornou proverbial como poeta de canções bélicas, mas envelhecida. Os versos que os j;r;imálicos conservaram —
que, ao que parece, compôs elegias políticas, dedicadas ao para o fim exclusivo de ihu L'XCIII|>!OS do dialeto eólico —
espírito espartano. O sentido moderno do termo "elegia" não confiriiiítin nada tom ic'S])eilo àquelas lendas; mas
só deverá ser aplicado aos fragmentos do pessimista me-
lancólico Mimnermos ('•'-'!^) e, de maneira algo diferente,
à poesia de Teógnis ( " ) , aristocrata que perdeu a si- 14A) A. IliuuTtl.c: í/íi poii.c iimirn du Vlle siècle: Arguiloque, sa
tuação na vida política pela vitória da democracia na sua vir vi SIS pori:ic.s. Paris, 1905.
cidade, Mégara, e respondeu a essas modificações sociais N. Kontoleon: Ephemeris archeologike. Atenas, 1953.
15) EdiçúiO dos fragmentos por Th. Reinach e A. Puech, Paris,
19^7.
G. Fraccaroli: I lirici greci. Vol. II. Torino, 1912.
13) E. Schwartz: "Tyrtaios". (In; Hermes, XXXIV, 1899.) 15A) Edições por E. Lobel, Oxford, 1925, e por Th. Reinach e A.
E. M. Bowra: Early Greek Elegists. Oxford, 1938. Puech, Paris, 1937.
13A) P. Ercole: "Mimnermos". (In: Kivista ãi filologia clássica, 1D39.) U. von Wilamowitz-Moellendorff: Sappho unã Simoniães. Berlin,
E. M. Bowra: obra citada. 1912.
14) Edição por T. Hudson-Williams, London, 1910. .1. M. Robinson: Sappho and her Jnfluence. New York, 1924.
T. W. Allen: "Theognis". (In: Proceediiigs of the British Aca- M. Meunier: Sappho. Paris, 1932.
ãemy, 1936.) G. Perrotta: Saífo e Pinãaro. Bari, 1935.
J. Carrière: Theognis ãe Mégare. Paris, 1948. W. Schadewaldt: Sappho, Welt unã Dichtung_. Potsdam, 1952.
64 OTTO MAHIA CAnPEATJX
H I S T Ó R I A DA L I T E B A T U R A OCIDENTAL 65
b a s t a m p a r a r e v e l a r u m g r a n d e p o e t a . A famosa ode a
" A f r o d i t e no T r o n o " talvez pareça algo convenciona!, A m e s m a falta d e high seriousness, no sentido de
a s s i m como a p o e s i a d e P e t r a r c a p a r e c e c o n v e n c i o n a l d e - M a t t h e w A r n o l d , não c o m p r o m e t e , p o r é m , o valor d o ú l -
p o i s d e t a n t o s s é c u l o s d e i m i t a ç ã o a s s í d u a das s u a s m e t á - t i m o p r o d u t o d a l í r i c a g r e g a , a p o e s i a e p i g r a m á t i c a da
foras. M a s , d e p o i s d e Safo, s e r á p r e c i s o e s p e r a r v i n t e e Anthologia Graeca (^'^), cuja c o n s e r v a ç ã o se d e v e ao z e l o
dois s é c u l o s até s e e n c o n t r a r o u t r a vez, em L o u i s e L a b é , pouco inteligente de colecionadores bizantinos, como
a psicofisiologia erótica de um verso como " E r o s soltando Constantinus Cephalas e Maximus Planudes, e à boa sorte
os m e m b r o s — ó t o r m e n t o a m a r g o e d o l c e ! " ; e os elogios d o f i l ó l o g o S a l m a s i u s , q u e a d e s c o b r i u em 1616 n a B i b l i o -
exuberantes de S w i n b u r n e compreendem-se diante de um t e c a P a l a t i n a : t r a t a - s e d e e p i g r a m a s e r ó t i c o s , s a t í r i c o s , fu-
quadro como n e r á r i o s , d e e l e g â n c i a r o c o c ó , de p e r f e i ç ã o p a r n a s i a n a .
P o d e - n o s p a r e c e r q u e u m " m o d e r n o " c o m o L a n d o r os com-
" A lua se pós, e as P l ê í a d e s ; p ô s com m a i s e n g e n h o , e q u e u m " m o d e r n i s t a " a m e r i c a n o
j á é m e i a - n o i t e , a h o r a pas^;otl, e eu estou d e i t a d a , como M a s t e r s c o m p r e e n d e u m e l h o r as p o s s i b i l i d a d e s d o
sozinha. ,.", e p i g r a m a f u n e r á r i o , r e s u m o d e u m a vida. M a s os e p i g r a -
m a s da Anthologia Graeca s e m p r e t r a n s m i t i r ã o a l g o como
— u m í-.onlio de n o i t e d e verão, HÍILÍ ilhas d o m a r j ô n i o , há u m ú l t i m o v e s t í g i o d o p e r f u m e da v i d a g r e g a . São como os
dois m i l t n i o s .
o b j e t o s p e q u e n o s , n a s v i t r i n a s dos m u s e u s , p e l o s q u a i s
Ma:-i não foi p r i n c i p a l m e n t e esta a poesia g r e g a q u e passa, s e m l h e s p r e s t a r a t e n ç ã o , u m t u r i s t a a p r e s s a d o , m a s
c h e g o u à p o s t e r i d a d e , i n s p i r a n d o - a . A prójvria A n t i g ü i - q u e ao c o n h e c e d o r r e v e l a m os s e g r e d o s d e m u n d o s desa-
d a d e , na época a l e x a n d r i n a , j á p r e f e r i u a p o e s i a a n a c r e ô n - parecidos.
t i c a : coIeí,30 d e 50 ou 60 p o e s i a s , a t r i b u í d a s ao p o e t a A n a -
É, pois, u m a r e a l i d a d e a a f i r m a ç ã o d e q u e só n o s c h e -
c r e o n t e ("•), d o s é c u l o V I a n t e s da n o s s a e r a ; n a v e r d a d e ,
gou, da p o e s i a l í r i c a g r e g a , com e x c e ç ã o da d e P í n d a r o ,
t r a t a - s e d e p o e s i a da " d e c a d ê n c i a g r e g a " , d e falsa i n g e n u i -
a p a r t e m e n o s i m p o r t a n t e ; c do r e s t o , só p o b r e s f r a g m e n -
d a d e e r ó t i c a , poesia d e v e l h o s bon-vivants, cantando o
t o s . P a r e c e q u e j á a pró]iria A n t i g u i d a d e se e s q u e c e r a
v i n h o e p r o s t i t u t a s d e n o m e s m i t o l ó g i c o s , com e u f e m i s -
d a q u e l a s e x p r e s s õ e s p o é t i c a s , i n c o m p a t í v e i s com os i d e a i s
m o s q u e e x c l u e m a i n d e c ê n c i a . E foi e s t a falsa p o e s i a ana-
p e d a g ó g i c o s da lileraLura g r e g a .
c r e ô n t i c a que, d e s c o b e r t a e p u b l i c a d a p e l o f i l ó l o g o H e n -
O d e s a p a r e c i m e n t o da p o e s i a l í r i c a g r e g a é u m f a t o
r i c u s S t e p h a n n s em 1554, e m p o l g o u a l i t e r a t u r a u n i v e r s a l ,
histórico de importância capital: contribuiu para criar,
p r o d u z i n d o i n ú m e r a s i m i t a ç õ e s , t a i s c o m o a p o e s i a ana-
creôntica dos italianos, franceses, espanhóis, portugueses,
17) Anthologia Graeca. Edições por F. Duebner, 2 vols.. Paris, 1871/
ingleses, alemães, suecos dos séculos X V I I e X V I I I , poe-
inSS, e por H. Stadtmuellcr, 3 vols., Leipzig, 1894/1906.
sia b o n i t a , sem d ú v i d a , m a s s e m s i g n i f i c a ç ã o h u m a n a . F. Wolters: De Epigrammatuvi Graecoromanis Anthologns. Hal-
lo, 18S3.
K. Reitzenstein: Epigramm und Skolion. Gie.s.-ícn, 1893.
16) Edições nas anto!o;íiafi de Bergk e Diehl (v. nota 12). Sôbi-c a imitação intensa da poesia epigramática sroga nas li-
O. Cru.sius: "Anakreon". (In: Pauly-Wi.ssov/a: Real-Enzyklopae- toraturas modernas:
die tíes kla&sUchen Alteriums. Vol. I.) J. ílütton: The Greek Anthology in Ilaly to the year ISOO.
Ij. A. Michelangeli: Anacreonte e Ia sua jortima nei secoli. Bo- IHiaca, 1935,
logna, 1922. J. líutton: TÂe Greek Anthology in France and in the Latin
Wriíera o} the Netherlanãs to the year ISOO. Ithaca, 1946.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL
67
66 OTTO M A B I A CARPEAUX

sicistas do fim do século X V I I I , de Meléndez Valdés até


no futuro, a imagem convencional da Antigüidade, o pre-
Hoelderlin — um cortejo ilustre de equívocos ou fracas-
tenso equilibrio "olímpico". A poesia lírica grega era, ao
sos. O segredo de Pindaro reside na mistura inimitável
que parece, mais uma explosão violenta, "dionisíaca", do
de nobreza e religiosidade; este poeta parece mais perto
que mera expressão emocional. Por isso, os filósofos e
dos deuses que dos homens, separando-se do vulgo pelo
políticos da Aatiguidade preocuparam-se com os efeitos
estilo arcaico e obscuro, que na imitação moderna se torna
perigosos do individualismo literário; o acompanhamento
musical era tentativa para atenuar a poesia, discipliná-la,
"apolinizá-la", conferir-lhe significação ética. Esse obje-
i artifício insuportável. E por isso um céptico como Vol-
taire falou, a propósito de Píndaro, como de um poeta
que possuiu o talento — "de parlcr beaucoup sans rien
tivo só foi realizado com Píndaro; e é ele o único poeta lí-
dire", autor de "vers que personne n'entend / Et qu'il faut
rico grego do qual se conservou obra extensa.
toujours qu'on admire."
A maior parte das poesias de Pindaro ('**) chamam-se
Pindaro é o mais difícil dos autores gregos. Os seus
"Epínikioi": canções de vitórias, quer dizer, de vitórias em
hinos costumam referir-se à cidade na qual o vencedor
jogos esportivos; são epinícios olímpicos, píticos, ne-
nasceu ou à família à qual pertence, e os mitos particula-
meus, ístmicos, assim denominados conforme os lugares
res da cidade ou familia constituem o conteúdo do poema,
nos quais as festas esportivas se celebraram. A primeira
Não existe, porém, relação inteligível entre o mito e o
impressão da poesia pindárica é: aristocracia. Não há, no
feito esportivo, de modo que o poema se transforma cm
mundo, poesia mais solene, mais nobre; daí a atração irre-
rapsódia incoerente; pelo menos para nós. O estilo não
sistível que Pindaro exerceu etn todos os séculos aristo-
ajuda a compreensão. A linguagem de Píndaro é densa,
cráticos: Ronsard e os outros poetas da Pléiade tentaram
rica em comparações estranhas, d i / tudo por metáforas
odes pindáricas; depois, Malherbe e a sua escola, Chia-
singulares, complica as f.ascs pelr» ordem arbitrária das
brera na Itália, Cowley na Inglaterra, os poetas ingleses
palavras. A admiração convencional nunca admitiu defei-
da idade augustana como Gray e William Collins, os clas-
tos em P i n d a r o ; i esi)<)iis;il)i!i/on pelas dificuldades da lei-
tura os ]iró]iri(is leilorcs, (jiie seriam incapazes de acompa-
18) Pindaros, 513-446 a. C. nhar a elevnçiio do poeta inspirado; Pindaro tornou-se pa-
Existem 14 "epiniltios" (canções de vitória) olímpicos, 12 epinlkios radigma da i-.apiração divina na poesia, quase exemplo de
píticos, 11 epinlkios nemeus e 8 epinikios ístmios. Em papiros de
Oxyrynclios foram encontrados 12 "paeans" (cançõe.s de triunfo), profeta-poeta. Mas quando o progresso da filologia per-
algumas "parthenias" (canções de virgem) e o fragmento de um mitiu compreensão mais exata, as grandes frases inspi-
ditirainbo. Edijão •princp.ps é a Aldina de 1513; o texto foi critica-
mente emendado por Heyne, 1773, e Bocckh, 1811/1821, radas se revelaram como lugar?s-comuns brilhantes, e, às
Edições modernas por A, Pucch, 4 vols., Paris, 1923 e por C. M. vezes, nem brilhantes: o famoso começo da primeira
Bowra, Oxford, 1935. — A. Croiset: La Poésie de Pinãare et les Olímpica — "hydor men ariston" — quer apenas dizer que
Lois du Lyrisme Grec. Pari,s, 1880. — F. Dornseiff: Pindars Stü.
Berlin, 1921. — U. von Wilamowitz-Moeilendorff: Findar. Berlin, a água é uma bebida saudável, e essa idéia não é das mais
1922. profundas.
W- Schadewaldt: Der Aufbau ães Pindarischen Epinikion. 2.*
ed. Haile, 1928. É preciso, no entanto, reabilitar Píndaro. O conceito
G. Coppola; Introãusione a Pindaro. Roma, 1932. da inspiração já não serve. Com efeito, Píndaro foi um
G. Norwood: Findar. Cambridge, IBie. artista consciente, e os seus hinos não são efusões descon-
M, Untersteiner: La formazione poética ãi Pindaro. Messina, 1951.
68 OTTO M A H I A CABPBAUX HISTÓRIA DA LITEUATURA OCIDENTAL 69

troladas, mas poemas bem construídos, exemplos magní- teatro moderno criou-se com esses modelos antigos. Os
ficos de rigorosa organização de uma abundância inédita enredos fazem parte da cultura geral de todos nós. Orestes
de imagens luminosas. Certos críticos modernos, anali- e Prometeu, Édipo e Antígone, Ifigênia e Medéia são per-
sando esse aspecto da poesia pindariana, preferem defini- sonagens do nosso próprio teatro; e quando no século
la como expressão de uma experiência principalmente es-
XIX se fizeram as primeiras tentativas de representar tra-
tética. Mas assim a norma das construções poéticas per-
gédias gregas no palco moderno, o sucesso foi completo.
maneceria obscura para nós: ela reside justamente naque-
las digressões mitológicas. Píndaro canta o mito para esta- A Antígone, de Sófocles, rcprescnta-se até hoje com a mú-
belecer uma ligação entre os feitos dos deuses e dos he- sica que Felix Mendelssohn-Bartholdy escreveu para a
róis de outrora e o feito esportivo do dia: para demonstrar representação em Berlim, em 1842. Depois, apareceram
que os homens são capazes de grandes coisas, mas que o no palco a Oréstia e Os Persas, de Esquilo; o Prometeu
deus é sempre superior à mais elevada condição humana. Agrilhoado foi representado em Hamburgo, em 1923, pelos
É poesia de aristocratas que se educam para merecer a sua "coros de movimento" de Rudolf Laban. De Sófocles, além
posição; mas o poeta lhes observa que a sua ética depen- da Antígone e da Electra, é o Rei Édipo uma das peças
de da sanção divina. Eis a religião aristocrática ou o aris-
mais representadas do teatro moderno, desde a primeira
tocratismo religioso de Píndaro. O homem é aristocrata
tentativa em Paris, em 1858, e as representações com Mou-
quando consegue o equilíbrio — um equilíbrio homérico
— entre as iaculdades físicas e as faculdades espirituais, net-SuUy em 1881 e 1888, até as mises-rn-scònc de Rcin-
como os jogos gregos o revelam; por isso, a poesia é capaz hardt em Berlim, em 1910. Pelas traduções de Gilbert
de celebrar a vitória do corpo. E a poesia evoca o mito, Murray, Eurípides tornou-se um "clássico" vivo do teatro
para demonstrar que o homem vitorioso é filho digno dos inglês contemporâneo. As representações de tragédias
deuses. Píndaro não canta o deus, canta sempre o homem; gregas nos teatros antigos ain();i cxislcntcs, em Atenas,
a sua religião é antropocêntrica. Mas esse homem depen- Olímpia, SiracUHa, Taormina, Orange, causaram impressão
de, por sua vez, dos deuses; sem eles, seria corpo sem es- profunda; e a descoberta do fundo eternamente humano
pírito. Píndaro é realmente profeta: profeta duma espé-
no mito grego, pela psicanálise, forneceu explicação sa-
cie de monismo grego. A poesia moderna, à qual esse mo-
tisfatória do efeito permanente do teatro da Antigüidade.
nismo é inteiramente alheio, não pode imitar P í n d a r o ;
enquanto não existir religião semelhante no mundo, a poe- Sobretudo Sófocles e Eurípides são hoje forças das mais
sia pindárica parecerá sempre um artificio estranho. Aos vivas do teatro moderno, influências permanentes.
gregos, porém, essa poesia revelou a grandeza possível do Contudo, trata-se, pelo menos em parte, de uma ilusão.
homem; dizia-lhes cora a força duma revelação divina as
O que emociona o espectador moderno, assistindo a uma
palavras que um poeta moderno (Rilke) colocou na boca
representação da Oréstia ou do Édipo, difere essencial-
duma estátua grega ao dirigir-se ao espectador: "Precisas
modificar a tua vida".
í mente do que comoveu o espectador grego. O teatro gre-
go, com as suas máscaras impessoais e o coro, tem pouco
Píndaro parece-nos estranho; em comparação, Esquilo, era comum com o nosso teatro, de conflitos de caracteres
Sófocles e Eurípides são, para nós, figuras familiares. O individuais. E há outras diferenças importantes.
HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 71
70 OTTO MARIA CARPEAUX

f o r n e c i d o pela t r a d i ç ã o ; os e n r e d o s i n v e n t a d o s p e l a ima-
O t e a t r o g r e g o (^®) é d e o r i g e m r e l i g i o s a ; n u n c a h o u v e
g i n a ç ã o do d r a m a t u r g o , q u e e n c h e m os n o s s o s r e p e r t ó -
dúvida.s a esse r e s p e i t o . A s t r a g é d i a s — e, em c e r t o s e n -
rios, e s t a v a m e x c l u í d o s . T r a t a v a - s e de i n t e r p r e t a ç õ e s e
tido, também as comédias — foram representadas assim
reinterpretações dramáticas de enredos dados. Mas não
como se realizam festas litúrgicas. Mas quanto à litur-
é e s t a a únicíi p a r t i c u l a r i d a d e do t e a t r o g r e g o , e m c o m p a -
gia q u e t e r i a s i d o a b a s e h i s t ó r i c a d o t e a t r o g r e g o , a i n d a
r a ç ã o com o n o s s o : a d i f e r e n ç a e s t i l í s t i c a n ã o é m e n o s
não se chegou a teses definitivamente estabelecidas. A s
p e s q u i s a s d a escola a n t r o p o l ó g i c a d e C a m b r i d g e p a r e c e m importante. O teatro grego é mais retórico e mais lírico
t e r c o n f i r m a d o , e m b o r a p r e c i s a n d o - o , o q u e s e m p r e se sou- d o q u e o m o d e r n o . O s d i s c u r s o s e x t e n s o s , q u e os g r e g o s
b e ; a t r a g é d i a g r e g a n a s c e u d e a t o s l i t ú r g i c o s do c u l t o n ã o se c a n s a v a m d e o u v i r , scri.im i n s u p o r t á v e i s p a r a o es-
de Dioniso. O u t r o s estudiosos ingleses procuram, porém, pectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e vi-
a f o n t e d a i n s p i r a ç ã o t r á g i c a em r i t o s f ú n e b r e s , r e a l i z a d o s v e r a ação. O g r e g o , ao q u e p a r e c e , f r e q ü e n t a v a o t e a t r o
em t o r n o d o s t ú m u l o s d e h e r ó i s . A d i s c u s s ã o c o n t i n u a p a r a se d e i x a r c o n v e n c e r d a j u s t e z a d e u m a cansa, como
(!"-*). É da m a i o r i m p o r t â n c i a p a r a a h i s t ó r i a da civili- s e e s t i v e s s e a s s i s t i n d o à a u d i ê n c i a do t r i b u n a l ou à sessão
zação e d a r e l i g i ã o g r e g a s . M a s é d e i m p o r t â n c i a m u i t o d a A s s e m b l é i a . E os r e q u i n t e s da r e t ó r i c a , s u p e r i o r e s cm
menor para a história literária. Podemos continuar ado- m u i t o aos p o b r e s r e c u r s o s d a e l o q ü ê n c i a m o d e r n a , não b a s -
tando a genial intuição de N i e t z s c h c : a tragédia grega t a r a m p a r a esse f i m : a c r e s c e n t a r a m - s e , p o r isso, aos a r g u -
é a t r a n s f o r m a ç ã o a p o l í n e a d e r i t o s d i o n i s í a c o s . P o r isso, m e n t o s do raciocínio as emoções da poesia lírica, acom-
o ú n i c o c o n t e ú d o p o s s í v e l da t r a g é d i a g r e g a era o m i t o , panhada, como sempre, de música, de modo que a repre-
s e n t a ç ã o d e u m a t r a g é d i a g r e g a se a s s e m e l h o u , p o r a s s i m
d i z e r , às n o s s a s g r a n d e s ó p e r a s . M a s n ó p e r a m o d e r n a é
19) H. I. G. Patin: Êtuães sur les tragiques greos. !.'• eà. Paris, 1894, g ê n e r o p r i v a t i v o das a l t a s classes da s;)cicdadc, e n q u a n t o
G. Norwood: Greek Tragcãy. London, 1920. a t r a g é d i a g r e g a era i n s t i t u i ç ã o d o E s t a d o d e m o c r á t i c o , e
T. D. Goodell: Athenian Trageãy. New Haven, 1920.
a p a r t i c i p a ç ã o n e l a era ilo c e r t o m o d o u m d i r e i t o e u m
R. C. nickinger: The Greek Theatrc and ifs Drama. 2.'- ed. Chi-
cago, 1922. d e v e r c o n s t i i u c i o n a i s . A s s i m , a t r a g é d i a g r e g a era u m a
M. Pohlenz: Die griechische Tragoedie. 2 vols. Leipfiig, 1930. d i s c u s s ã o pai l a m e n t a r n a q u a l se d e b a t i a , l a n ç a n d o - s e m ã o
E. Howaid: Die griechische Tragoedie. Muenchen, 1930.
d e t o d o s os r e c u r s o s p a r a i n f l u e n c i a r o p ú b l i c o , u m m i t o
A. M. G. Llttle: Myth and Society ire Attic Drama. New York,
1942. d a r e l i g i ã o d o E s t a d o . C o n s i d e r a n d o - s e i s t o , as c o n c o r -
J. Duchemin: UAgon ãans Ia tragéãie grecgiie. Paris, 1945. r ê n c i a s d o s p o e t a s , q u e a p r e s e n t a r a m p e ç a s , p e r d e m o ca-
G. Nebel; WcUangst wul Goctfmorn. Einc Deulung der grie- r á t e r d e c o m p e t i ç ã o e s p o r t i v a : a v i t ó r i a n ã o cabia a o m a i o r
chischen Tragoedie. Stuttiííirl, 1951.
19A) W. Ridgeway: The Oritiin o/ Tragedy, with Spccial Reference poeta ou à melhor poesia dramática, mas à peça que im-
to the Greek Tragcdianx, CumbridRc, 1910. pressionava mais p r o f u n d a m e n t e ; quer dizer, à peça na
M. Nilsson: "Der Ur;ipniiiií der Tratroodic". (In: Neue qual o m i t o estava r e i n t e r p r e t a d o de tal maneira que o
JahrhucchcT jucr klassischc Philologic, 1911.)
J. E. Hani.son: Thcmis. Cambridge, 1912. público se convencia dessa interpretação e — podemos
J. E. Harrison: Ancicnt Art Ritual. New York, 1913. a c r e s c e n t a r — p o r isso o E s t a d o a a c e i t a v a . T r a t a v a - s e d e
A, W. Pickard-Carnbridge; Dithyramb, Trageãy and Comedy. u m a c o n t e c i m e n t o r e l i g i o s o - p o l i t i c o , q u e o c o r r i a u m a só
Oxford, 1927.
A. W. Pickard-Carnbridge: The Theatre of Dixmysus. Oxford, vez, O t e a t r o g r e g o n ã o c o n h e c e u r e p r e s e n t a ç õ e s e m s é r i e .
1946.
72 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LIIBRATURA OCIDENTAL 73

Com a representação solene, a causa estava julgada, a lei tos dessa equação ainda têm feição arcaica. O Estado, em
votada. O verdadeiro fim do teatro grego — assim reza a Esquilo, é uma federação de famílias da mesma raça, liga-
tese sociológica — era a sanção duma modificação da or- das pelo culto dos mesmos deuses. São conceitos primiti-
dem social por meio de uma reinterpretação do mito. vos, de aristocracia homérica, governando a Polis, a Ci-
Esta interpretação do teatro grego não pode ser, evi- dade. Mas e3sa Cidade de Atenas está-se democratizando,
dentemente, de aplicação geral. Não se aplica, pelo menos e com o advento de novas classes sociais modificam-se os
em parte, ao teatro de Eurípides; só neste sentido esse conceitos de culto e de direito. A época homérica, "ilu-
grande poeta representa a decadência do teatro grego. Mas minada pelo sol sobre o mar Jõnio", parece agora um pas-
já quanto a Sófocles há dúvidas das mais sérias: o sentido sado noturno, desumano. O homem de Píndaro está no
do seu teatro não é, evidentemente, social, mas religioso: palco, consciente do seu valor e desafiando a força in'-
duma religião antropocêntrica. Talvez seja mesmo impos- miga de " A t e " pérfida e demoníaca, do Fado, que r jeu
sível dar uma interpretação geral do teatro grego, por- valor humano, apoiado pelos deuses olímpicos, ..em de
que não o conhecemos suficientemente. Só conhecemos o vencer. Na época de Esquilo, as leis primitivas da fa-
teatro ateniense, e deste apenas poucas ])eças, de três mília, do clã, chocam-se com a consciência humana; daí
dramaturgos. Mas entre êles está o maior de todos, aquele a força trágica de Qs^Sete contra Tebas, talvez a peça mais
que criou o verdadeiro teatro grefjo e já representa o seu trágica do teatro grego: Etéocles e Polinice acreditavam-se
apogeu. O sentido profundo do teatro grego revela-se em envolvidos na luta das tribos, não sabendo que serviam de
Esquilo. instrumentos à guerra santa contra a lei antiquada e bár-
Esquilo (-'*') é poeta duma época na qual religião e po- bara da raça. O teatro de Esquilo trata, deste modo, de
lítica, Estado e família se confundem, porque os elemen- destinos coletivos, não de indivíduos. Por isso, é capaz
de representar os grandes conflitos na Cidade e decidi-los
20) Aií!C]iylos (lat. Aeschylus), 525-456 a. C. por reinterpretacoes do mito, Porque o mito continua
De cerca de 90 peças que a tradição ]he atribui, existem 7, entre como símbolo supremo da ligação entre o mundo divino
elas a única trilogia completa que se salvou; Hiketiães, Prometeu e o mundo humano. Nada se modifica no mundo humano
Agrühoaão (representado em 478), Os Persas (representada em
472), Os Sete contra Tebas (representada em 4G7), e a trilogia sem modificação correspondente no mundo divino; o Es-
Oréstia, compondo-se de Agamemnon, Choephoras e Eumêniãat tado precisa da sanção mitológica dos seus atos, e é o
(representada em 458). Entre as peças perdidas, mencionam-se:
Myrmidones, Nereidas, Memnon, Ifigênia, Psyehagogoi, Penélo- teatro que lhe permite o uso dinâmico dos mitos para
pe, AlTcmene, HeracUdes. Niobe, Atalanta, Ixion, etc. E. Breccia
descobriu em 1932 num papiro de Oxyrynclios 21 versos dum la-
mento da Niobe, e fragmentos da peça de .sátiros Os Pescadores, H. W. Smyth; Aeschylean Tragedy. Berkeley, 1924,
que pertenceu, talvez, à trilogia Danao, Edição princeps é a Al- M. Croiset: Eschyle. Etudes sur Vinvention ãramatiqne ãans son
dina de 1518, seguida pelas edições de Turnebus 1552, Stcphanua théãtre. Paris, 1928.
1557, e Canter (Antuérpia), 1580. Edições criticas de W. Paley B. Snell: "Aeschylos und das Handeln im Drama". (In: Philolo-
1846 e G. Hermaim, 1859, Edições modernas por U, von Wila- gus, Suppl. XX, 1928).
mowitz-Moellendorff, Berlin, 1914, e por G. Murray, Oxford, 1937. G. Murray: Ae&chylus, the Creator of Trageãy. Oxford, 1940.
U. von Wiiamovíitz-Mocllendorff: Aeschylos-Intrepretatkmen. G. Thomson: Aeschylus and Athens. A Study in the Social Ori-
Berlin, 1914. gins oi Dram^. 2." ed. London, 1947,
W. Kranz: "Gott und Mensch im Drama des Aeschylos". (In: P. R. Earp: The Style of Aeschylus. Cambridge, 1948.
Sokrateí, 1920.) [Intei-pretação religiosa.] E. J. Owen: The fíarmony of Aeschj/luí. Toronto. 1952.
74 OTTO MAIIIA CARPEAUX lIlSlólMA ll.\ LlTIÍUATUKA OciDIíNTAL "5

sancionar a nova ordem social. A Oréstia é simultanea- sim céus e infernos, raças e eras. É como se falassem mon-
mente tragédia familiar, política e religiosa: na família de tanhas e continentes. As propostas comparações com Mar-
Agamêmnon e Clitemnestra, a lei bárbara da vingança leva lowe ou Ilugo não acertam; nem sequer Dante possui esta
ao assassinio e à loucura; mas no julgamento de Orestes força de falar como porta-voz do gênero humano inteiro.
pelo Areópago, o tribunal do Estado, vencem os novos É uma linguagem inconfundível, pessoal, que nenhum
deuses da Cidade sobre as divindades noturnas. As "fú- outro poeta grego soube imitar. Esquilo fala por todos;
rias" se transformam em "eumênides", e esse eufemismo mas é indivíduo, o primeiro grande indivíduo da literatura
religioso é a sanção religiosa do novo direito. A Oréstia universal. Por isso, soube dar os acentos de simpatia mais
é a maior tragédia política de todos os tempos. Mas não pessoais ao revoltado Prometeu Agrilhoaão; por força de
é só isso. sua religião. Esquilo devia condenar o rebelde contra a
No mundo de Esquilo, a vida humana e o mito estão ordem divina, mas por força da sua poesia sentiu e com-
numa ligação íntima; os deuses participam, até pessoal- preendeu a dor do vencido, transformando-o em símbolo
mente, dos atos políticos e forenses. Mas a religião de eterno da condição humana.
Esquilo, baseada em tradições meio políticas, meio lite- A cronologia dos grandes trágicos gregos é um tai-. to
rárias, apresenta-se sem dogma; a religião grega nunca confusa. Desde a Antigüidade foram sempre estudados
conheceu dogma. Dai o vago da sua "filosofia". Fica numa ordem que sugere fatalmente a idéia de três f.e-
obscura a relação entre a atuação demoníaca do Fado, por rações: Sofccles, sucessor de Esquilo, e Euripides, por
um lado, e, por outro, a ordem cósmica do inundo, garan- sua vez, sucessor de Sófocles. Mas Esquilo (52S-45G),
tindo a vitói-ia do justo sobre o bárbaro, como na vitória Sófocles (496-406) e Eurípides (480-406) são quase con-
de Atenas sobre o Oriente, em Os Persas. Tampouco se temporâneos. Quando Aristófancs, contemporâneo dos dois
esclarece até que ponto a revolta do homem contra o Fado últimos, se revolta contra as novas idcins dramáticas e fi-
é orgulho diabólico, hvbris, que merece o sofrimento trá- losóficas de Eurípides, não é a dramaturgia de Sófocles
gico, ou se é consciência da substância divina do homem que ele recomenda como roíiiédio, e sim a de Esquilo. Para
pindárico, companheiro dos deuses na luta contra o Fado todos três — Sófocles, Aristófancs e Eurípides — Esquilo
hostil. A filosofia religiosa de Esquilo é vaga, oscilando não é um poeta arcaico, e sim o poeta da geração pre-
entre terror cósmico e consciência ética. Por isso tam- cedente. Realmente, Eurípides tem pouco em comum com
bém — eis o problema mais difícil da interpretação es- Sófocles; e está mais perto de Esquilo do que o reacionário
quilíana — não se conseguiu até hoje esclarecer a atitude Aristófancs pensava. É preciso derrubar a ordem que a
de Esquilo com respeito ao supremo dos seus deuses: rotina pretende impor.
Zeus é, em Esquilo, às vezes um tirano, outras vezes uma Eurípides (-') não pertence ao "partido" religioso-po-
antecipação do Deus da Justiça e da Graça. lítico de Esquilo; Aristófancs viu isso bem. Na tragédia
Essa ambigüidade contribui, talvez, para a força poé-
tica de Esquilo, que é, por isso, força lírica. A linguagem A 21) Eurípides, 480-406.
de Esquilo exprime com poder igual os horrores do abismo Das suas 80 ou 90 peças, existem 17: Hiketiãas, Alcestis (438),
noturno do caos e a ordem severa das colunas dóricas. Andromaque (431), Meãea, (431), Hippolytus (428?), Troades
(415), Phoenissae (413?), Blectra (413?), Helena (412), Hécuba,
Não falam indivíduos pela boca dos seus personagens, e lon, Orestes (408), Heracliães, Ifigênia em Aulis (406?), Ifigênia
76 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 77

esquiliana, os heróis representam coletividades; na tragé- influenciou também profundamente o teatro de Shakes-
dia euripidiana, são indivíduos. Já não se trata do resta- peare e o teatro de Calderón. Os próprios gregos não se
belecimento de ordens antigas, ou do estabelecimento de conformaram com o ódio de Aristófanes; Aristóteles cha-
novas ordens, mas da oposição sistemática do indivíduo ma a Eurípides tragikotatos, "o poeta mais trágico de to-
contra as ordens estabelecidas. Por isso, Aristófanes con- dos", superlativo que nos parece caber a Esquilo. Na ver-
siderava Eurípides como espírito subversivo, como corrup- dade, Eurípides é o Esquilo duma época incerta, de tran-
tor do teatro grego e o fim da tragédia ateniense. Entre sição, como a nossa. Eurípides quase se nos afigura nosso
os modernos, só a partir do romantismo se popularizou contemporâneo.
essa opinião; o "senso histórico" exigiu a "evolução do A base da tragédia euripidiana, como a da esquiliana,
gênero" e encontrou em Eurípides, gênio essencialmente é a família. Mas há uma diferença essencial. ICtn Esquilo,
anti-romântico, o culpado do fim. Os séculos precedentes as relações familiares constituem a lei bárbara do passado,
não pensavam assim. Esquilo nunca foi uma força viva na substituída pela ordem social duma nova religião, a reli-
evolução do teatro moderno, e Sófocles inspirou imitações gião da Cidade. Em Eurípides, o Estado é utna íórça ex-
quase sempre infelizes. Mas sem Eurípides o teatro mo- terior, alheia; o indivíduo encontra-se exposto às compli-
derno não seria o que é; Kacine e Goethe são discípulos de cações da vida familiar, das paixões e desgraças particula-
Eurípides, que, através do seu discípulo romano, Sêneca, res, Eurípides foi considerado como último membro duma
série de três gerações de dramaturgos, e parecia separado
de Esquilo por um mundo de transformações sociais e espi-
cjri Tmiris, Bacchae (405), c a peça de Kátiros O cícíopo. Entre rituais; Esquilo parecia ser representante do conservan-
as peças perdidas, havia Oeãvpiis, Antigone, Anãronieda, Erech-
theuít, Mclanippe, Phüoctetes, Phaetcn, Antiope, etc. Da Antíope, tismo religioso, e Eurípides, representante do individualis-
Petrie encontrou um fragmento nmn papiro de Fayum, em 1891, mo filosófico. É este o ponto de vista de Aristófanes, e
Também em papiros egípcios, foram encontrados fragmentos de isso vem provar que Atenas se estava democratizando com
Hypsipile.
Edições princeps de Laskaris, 1486; seguem-se a Aldina de 1503, rapidez vertiginosa. Mas Ksquilo c lüirípides são quase
a-s edições de Cantor, 1571, c Barnes, 1694. Primeira edição crítica contemporâneos. Só o ponto de vista de cada um deles é
de 4 peças, por Richard Porson, 1797/1801. Edição moderna por
G. Murray, 3 vols., Oxiord, lDOl/1913. diferente: Esquilo é colctivista; Eurípides, individualista.
U. von Wilamowitz-Moellendorlf; Analecta Euripiãea. BerUn, Mas o tema dos dois dramaturgos é o mesmo: a família.
1875. Esquilo e Eurípides são, ambos, inimigos da família: Es-
P. Decharme: Euripiáe et Vesprit ãe son theãtre. Paris, 1893.
E. Nestle: Eurípides, der Dichter der griechischen Anfklaerung. quilo, porque ela se opõe ao Estado; Eurípides, porque ela
Stuttgart, 1901. violenta a liberdade do indivíduo. Por isso. Esquilo, na
A. W. Verrall: EssayF. on Four Play» oj Eurípides. Cambridge, Oréstla, transforma o coro das Fúrias em coro de Eumê-
1905.
H. Steiger: Euripiães. Lelpzig, 1912 . n í d e s ; Eurípides já não está interessado no coro, porque
P. Masqueray; Euripiãe et .tes iãées. Paris, 1908. encontra em cada lar um indivíduo revoltado e identifi-
G. Mm-ray: Eurípides and His Age. 2^ ed. Oxford, 1922. ca-se com êle, assim como Esquilo se identificara com as
W. N. Bates: Eurípides, A Student of Human Nature. Philadel-
phia, 1930. coletividades revoltadas contra o Fado. Pela atitude, Eu-
O. Grube; The Drama of Euripiães. London, 1941. rípides está mais perto de Esquilo que de Sófocles, dra-
A Rivier: Essai sus le tragique d'Euripide. Lausanne, 1944. maturgo do "partido" dos moderados.
T. Martinazzolí: Euripide, Roma, 1946.
78 OTTO M A R I A CARPUAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 79

Eurípides sente com os seus indivíduos trágicos. O no palco; Hipólito é a primeira tragédia de amor na lite-
Fado não lhe parece inimigo demoníaco nem ordem do ratura universal.
mundo, e sim necessidade inelutável; Eurípides é fatalista. fia exposição dos conflitos psicológicos entre a vonta-
A dor do homem vencido não significa, para êle, conse- de sentimental do indivíduo e as leis fatais da convivên-
qüência da condição humana, e sim sofrimento que não cia social e familiar, Eurípides usa a retórica, como o seu
merecemos; Eurípides é sentimental. O mito, porém, não grande precedecessor; mas cm lísquilo falam montanhas,
é fatalista nem sentimental; para construir as suas "fá- e em Eurípides, almas. Almas qtic pretendem justificar
bulas" dramáticas, tem de modificar o mito, introduzindo as suas paixões, inspirar compaixão c terror; a definição
os motivos da psicologia humana. Os séculos, acompanhan- dos efeitos da tragédia por Aristólclcs n deduzida das peças
do as acusações de Aristófanes, interpretaram essas modi- de Eurípides — por isso, Aristóteles lhe chamou "o poeta
ficações euripidianas do mito como sintomas de impiedade. mais trágico". Concordamos com esta maneira do ver.
Eurípides já foi, muitas vezes, considerado como drama- Eurípides comove. É poeta lírico como aqueles ]ioctas
turgo crítico, espécie de Ibsen grego. Contudo, Eurípides, líricos gregos cujas obras se perderam — o seu individua-
modificando o mito, exerceu apenas um direito esquiliano, lismo suspeito reside na sua poesia. Sabe manifestar o
direito e dever dos trágicos gregos. E se a intolerância seu pathos trágico como uma força lírica que o aproxima
religiosa, pela qual a democracia ateniense se distinguia,
mais de Petrarca do que de Ibsen. Eurípides é o i)riniciro
pretendeu privá-lo desse direito, Eurípides pôde então
poeta que exprime a alma do homem, sozinho no mundo,
responder: não fui eu quem derrubou os valores tradicio-
além de todas as ligações religiosas, familiares c políticjs,
nais, e sim o vosso Estado. A moral tradicional já estava
sozinho com a sua razão crítica e o seu sentimento pessi-
ameaçada pela democracia totalitária. Eurípides não foi
mista, com a sua paixão e o seu desespero. í: "o mais trá-
porta-voz da nova democracia, como Aristófanes acredi-
gico dos poetas".
tava; Eurípides representa o indivíduo trágico, perdido
Um individualista como Einijiides encontraria fatal-
numa época de coletivismo, diferente do coletivísmo an-
mente oposições cm todas as épocas. Mas nenhuma época
tigo, e talvez mais duro. Eurípides é pessimista, tragiko-
tatos; é o Esquilo dos modernos. lhe teria respondido como a Atenas do seu tempo — pela
comédia de Aristófanes.
' Comparou-se Eurípides a Ibsen e Shaw. O que é co- Píndaro é estranho. Aristófanes (^^) é mais estranho
mum a êle e a esses dramaturgos modernos é a resistência ainda, a ponto de não encontrar nenhum eco em nossas lite-
individualista contra os preconceitos da massa e a justifi-
cação dessa resistência pela análise dos motivos psicoló-
22) Aristophanes, c. 446-3C5 a. C.
gicos e sociais que substituem as normas éticas, já obso- Existem 11 comédias: Acharnoi (425), Os cavaleiros (424), As
letas. Na tragédia de Eurípides aparecem personagens que nuvens (423), As ves-pas (422), A pas (421), Os pássaros (414),
a tragédia anterior não conhecera: o mendigo que se quei- Lysistrata (411), As Thesmophoriasusas (411), As rãs (404), As
Ekklesiasusas (392), Plutos (388). Edição princeps é a Aldinn de
xa da sua condição social, e sobretudo a mulher, envolvida 149S. A crítica do texto renovou-se por Thlersch, 1830. Edições
em conflitos sexuais. As^gersonagens femininas são as modernas por F. W. Hall e W. M. Geldart, 2 vols., Oxford, 1917;
maiores criações de Eurípides: Fedra, Ifigênia, Electra, e por V. Coulon, 5 vols., Paris, 1923/1930.
A. Couat: Aristòphane et Vancienne comédie antique. Paris, 1889.
Alceste; Medéia é a primeira grande personagem de mãe E. Deschanel: Êtudcs sur Aristòphane. 3.=^ ed. Paris, 1892.
80 OTTO M A R I A GARPEAUX HiSTÓKiA DA LITERATURA OCIDENTAL 81

raturas. Não há termo de comparação. Até em época de individualista Euripides. Se eles vencessem, a tirania da
liberdade completa de imprensa e do teatro, não se conhe- Cidade, nas mãos desses homens desequilibrados, seria pior
ceu entre nós a alta comédia política; o que prova que não ainda. O homem decente, o conservador que gosta das
é a opressão a responsável pela ausência de comédia aris- letras, da boa vida e da ordem tradicional, já não sabe
tofânica nas literaturas modernas. Por outro lado, a po-
como salvar-se; porque a "cidade nas nuvens", sonho dos
lítica é o tema de Aristófanes, mas não a essência da sua
demagogos, não existe. Aristófanes sente-se exilado na
arte.
sua pátria; o espirito expulso torna-se esprit, malícia,
Todas as comédias de Aristófanes têm assunto político. Tersites em luta contra os usurpadores. Contudo, Aris-
Nos AchaTnes, Dikaiopolis, adversário da política guerrei-
tófanes tem menos motivos de queixa do que parece: na
ra, faz a sua paz em separado com o inimigo para celebrar
sua Atenas, democracia totalitária, mas democracia, goza,
as festas de Dioniso. Em Os Cavaleiros, o demagogo Cleon
pelo menos, de uma absoluta "liberdade da imprensa".
oprime o Demos, personificação do povo maltratado. E m
Pode dizer tudo. E na pequena cidade onde todos se co-
A Paz, Cirene, a personificação da paz, é entronizada como
nhecem pessoalmente, Aristófanes aproveita-se dessa li-
hetera alegre, e os oradores belicosos c os fornecedores de
armamentos são expulsos. Em Atenas, o partido conser- berdade para atacar diretamente os adversários: cita-lhes,
vador era pacifista; tcmtni a afntação social. E Aristófa- nas peças, os nomes, desvendando-lhes os escândalos da
nes zombou, cin Os P.í.ssuros. dot, projetos utopistas dos atuação política e da vida particular, com espírito insolen-
dcmajíOf;os; Eutlpides e Peithetairos fazem uma viagem tíssimo e crueldade incrível. É a sátira mais pessoal, mais
maravilhosn para Nephelococcygia, a "cidade nas nuvens". direta que existe.
De todos os assuntos, Aristófanes vê só o lado político: Aristófanes não é profundo. Não t o u ideologia bem
Euripides aparecendo, em As Rãs, pessoalmente, no palco, definida. O seu conservantisiuo c um tanto sentimento,
é o corruptor daquela venerável instituição política que era elogiando os "bons velhos tenip(js" v. denimciando o "mo-
o teatro, e Sócrates, em As Nuvens, é o corruptor de outra dernismo" peri;;oKo dos "iiitclcctunis" e dos "socialistas".
instituição do Estado totalitário ateniense, da educação.
No fundo, não ataca nem Sócrates nem o dramaturgo Eu-
Aristófanes é conservador: o seu ideal é a identificação
ripides, mas personificações, abstraídas de todos os sofis-
de Estado e Religião, como em Esquilo; de corpo e espí-
tas e poetastros, dando-lhes nomes célebres ou notórios.
rito, como em Píndaro. Odeia o espiritualista Sócrates e o
Os verdadeiros adversários de Aristófanes não são nem
"intelectuais" nem "socialistas"; -são sujeitos poderosos,
E. Romapnoli: "Ori;Tiiic od rlr-mcnU tlclla commedia di Aristo- mas que não valem nada. São malandros, que usurpam
íano". (In: Sludi ilallani di lUologia clasxica. XIII, 1905.)
M. Croisüt: Aristophane et Ics partis politiquei à Athcnes. Pa- nome e ideologia dos partidos. Contra eles, Aristófanes
ris, ]Bü7. não defende uma ideologia, e sim o sentimento moral,
A. vati úvr T,C(!uweii: Prolcgomena aã Aristophanem. Leyde, 1903.
h. E. Lord: Arialophancs. New York, 1923. ofendido, de um burguês decente, embora de expressão
G. Murray: Ariíilovhanos. A Study. Oxford, 1933. indecentíssima. P^is também nunca se ouviu poeta tão
V. EhrcüterL'; Ths People of Aristophanes. A Sociology of Old francamente obsceno, chamando todas as coisas pelos no-
Attic Comeãy. Oxford, 1943.
K. Lever: The Art ti/ Greeíc Comeãy. London, 1956. mes certos.
82 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 83

Aristófanes tem um ideal ético. Isso lhe dá o direito Sófocles (^^) representa a tentativa de mediar entre
de referir-se ao mito. A tragédia desistiu do seu direito os extremos; e quando a mediação se revelou impossível,
de reinterpretar o mito, de modo que a relação entre o mito o grande poeta trágico cantou uma elegia suave e dolorosa,
e a vida, base do Estado ateniense, começa a desaparecer. irresistível, que pareceu à posteridade síntese perfeita.
Então, a comédia assume a função abandonada. A comé- Por isso, Sófocles foi sempre o poeta preferido dos parti-
dia de Aristófanes é, do mesmo modo que a tragédia de dários do equilíbrio puramente estético: dos classicistas.
Esquilo, teatro religioso. É arte dionisíaca: daí os cos- É grandíssimo artista. Artista da palavra, dono de ex-
tumes fálicos, as máscaras de animais. Apenas, Aristófa- traordinário lirismo musical, sobretudo nos coros. Mas foi
nes usa sua "liberdade da imprensa" até contra os deuses, também artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mes-
escarnecendo implacavelmente as pobres divindades que tre incomparavel da arquitetura dramática, da exposição
não sabem defender a ordem dos "bons velhos tempos" analítica do enredo. E n t r e o pathos coletivista de Esquilo
contra demagogos e dramaturgos. Os deuses de Aristó- e o pathos individualista de Euripides, a tragédia semi-
fanes são politiqueiros, demagogos e prostitutas, assim política, semi-sentimental de Édipo revela força superior
como os seus rc|)rcKcnlantos na torra. Pura farsa cósmica. de emoção; conflito coletivo e conflito individual estão
Nunca mais o nunuJo viu uma coisa dessas, ligados de maneira tão íntima que o efeito se torna in-
A comédia aristofãnica, com o seu Olim])o de opereta, dependente de todas as circunstâncias exteriores, efeito
é farsa; fars» política, complemento indispensável da tra- permanente. O espectador moderno reconhece-se nos per-
gédia. O cosmo inteiro, homens e deuses, está sujeito ao
pathos trágico; e igualmente ao riso cômico, do qual não
2:1) Ho|>ll(il-|cs, •1!í(i''in() II. o .
existe nas línguas modernas nem um termo definidor. O Dii;; iiiii.!;: im iiicni).'; \'M |ir(;;i.:t igiir 11. I.niiliviio n.iií,l|'.!i nK>n(;íona,
próprio Aristófanes não define; exprime. É, à sua ma- i'Xl:.l.i'rii 7: Afiir Itiitim, AtiHíimir (ir|ii'i-,ciil.;iil;i fin 44'J!), Ordi-
tniy llff (-r.üh, /l.-i 'ftiuitliiiiiDiiiy,. Klri-liil. HK)''!, Dníorlctcs
neira, poeta tão grande como Esquilo, dominando todas as CIOU). Orillini.i CÍH Culoiiivi (ir|ircM'nl,;ui:( :;(> em 40!). l>(;i-dcr.im-
modulações, desde a música celeste até a graça obscena. M lliiirinii i-iii /1H'/.V, J.f/iiiijiJii, N(íii.;iriia Niobv., Daiííic. Bcllcro-
pliíiii, Hiiiiíii!'*:,. fliürdiiK i't,c.
O seu lirismo já foi comparado ao de Shelley. Mas o poeta
l';(iii.;ni inniíi-iis V li Aldiiiii úf: ir>OL', seguida das de Turnebus,
inglês não conheceu esse riso universal divino. Nunca III:Í:I. ;;ii-|ili:i.iiii^. vjn\. V.MÚW (Ant,uórpia), 1579, Brunck, 1786.
mais o mundo ouviu coisa semelhante, l':dii.-ri(i inodcnia iior A. C. Pearson, Oxford, 1923.
1''. AlU'íu'«: Sophocle. Lyon, 1905.
Aristófanes já é, no seu tempo, reacionário condena- IJ. vun WilamowHn-Moellendorff:-Díe ãramaiische Technik des
do; apesar das suas gargalhadas enormes, a tragédia es- SopJiuklcs. Berliii, 1917.
T. T. SheiJpard: Aeschylus and Sophocles. New york, 1927.
quiliana não voltou. Os que não se conformaram com Eu- H. Weinstock.; Sophocles. Leipzig, 1931.
rípides, tiveram de contentar-se com um compromisso qua- E. Turolla: La poesia ãi Sofocle. Bari, 1933.
K. Reinhardt: Sophokles. Frankfurt, 1933.
se tímido, com um meio-termo entre tragédia religiosa e G. Perrota: Sofocle. Bari, 1935.
drama individualista, com a elegia do indivíduo que aceita C. M. Bowra: Sophoclean Trageãy. Oxíord, 1945.
o inevitável. O elegíaco era, desta vez, um grande poeta: F. R. Earp: The Style of Sophocles. Cambridge, 1945.
A. I. A. Waldocli: Sophocles Dramatist. CambridEe, 1951.
Sófocles. N. Ehrenberg: Sophocles and Perieles. Oxford, 1954.
84 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 85

sonagens de Sófocles, primeiro grande mestre da dramatur- modo se torna Édipo o símbolo permanente dos erros trá-
gia de caracteres, O fim, porém, é sempre a emoção lírica: gicos da humanidade: através das complicações dum en-
a arquitetura dramática serve para arrancar aos persona- redo quase diabólico, os erros se dissipam e Édipo se trans-
gens o lamento elegíaco. A elegia é a arma estética do forma de homem infeliz em homem trágico, aceitando o
homem contra o destino; inteiramente só, sucumbe Ájax, o que a vida lhe impôs. No fim das tragédias sofoclianas,
apaixonado, incapaz de cantar a elegia, e quando o homem os personagens são mais dignos do que eram antes. Eis
martirizado pelo destino emudece, então há ainda o coro a solução euripidiana que Sófocles achou para o conflito
para restabelecer o equilibrio lírico do m u n d o ; são os co- esquiliano: ordem divina c ordem terrestre, cujo conflito
ros do Édipo em Colono que completam a tragédia do torna tão dolorosa a vida, reconciliam-se nn dignidade hu-
Édipo. mana. Em Sófocles, tudo é harmonia, sem que fosse es-
quecido uma só vez o fundo escuro da nossa existência.
"Lirismo" é o verdadeiro nome da ordem divina e hu-
Sófocles é humanista. Mas não é um humanismo satis-
mana no mundo de Sófocles; sintoma dum equilibrio precá-
feito e suficiente, porque o humanismo grego nunca se
rio, porque puramente estético. Na Antígonc, não existe
esquece da precariedade do mundo, pela possível ira dos
mediação dramática possível entre a lei cruel e inelutável
deuses, nem da tristeza deste mundo que nos impõe o si-
que impõe a Creon, tirano contra a vontade, a perseguição
lêncio piedoso no fim da tragédia.
do inimigo para alem da morte, c, por outro lado, o sen-
timento íntimo, quase cristão, da Antígone: "Não nasci O humanismo de Sófocles prestou-se para ser erigido
para odiar com os outros, mas para amar com os outros." em resultado definitivo, dogma estético, modelo. O hu-
Não existe mediação dramática entre Esquilo e Eurípides. manismo antigo, porém, assim como a religião grega, não
Mas existe, entre eles, a eurritmia poética, a medida lírica. conheceu dogmas. O dogma teórico estava excluído pelo
caráter pragmatista da civilização aMiÍ!',a, na qual era con-
Sófocles estava consciente da natureza precária da siderado ])êKO morto, ou .'uitcs inexistente, o que não tinha
sua solução, Não se afasta da realidade, não mente. A efeitos vitais. O "hutniuiistno" da literatura grega não
dor trágica, no Philoctetes, revela-se como instrumento significa guarda de tradições culturais e sim a capacidade
da vontade divina, como instituição deste mundo, e ao de intervir na vida; é comparável ao "lugar na vida" pelo
homem só resta a elegia: "Nunca ter nascido seria o me- qual os folcloristas modernos classificam o conto de fadas,
lhor; mas se vives, melhor é voltares, quanto antes, para a lenda, a parábola e outros gêneros semelhantes da lite-
o lugar de onde vieste." Contudo, o pessimismo de Só- ratura oral. O "lugar na vida" da epopéia homérica en-
focles — um crítico moderno fala de "visão pavorosa da contra-se na interpretação da vi-da; o "lugar na vida" da
vida" — não é absoluto; porque pelo sofrimento, e só pelo poesia grega encontra-se na disciplina musical das emo-
sofrimento, conseguimos a plena consciência da nossa si- ções; o "lugar na vida" do teatro grego encontra-se na
tuação no cosmo. Sem o conflito trágico com a lei do Es- reinterpretação do m i t o ; o "lugar na vida" da historiogra-
tado, Antígone seria só uma criatura sentimental; o con- fia grega encontra-se, assim como o da filosofia, em inte-
flito lhe revela a força do seu imperativo de consciência resses políticos, e está determinado pela retórica.
que lhe impôs a resistência — e assim Antígone se tornou O gosto dt>s gregos pela retórica é, para nós outros,
o símbolo permanente de todas as resistências. De igual um fenômeno a l g o estranho: não se cansaram de ouvir dis-
86 OTTO MAUIA. (^.AHI-EAUX llis'ii')iuA i i \ 1,111 i n i u i i A n<;tin;r>i lAi, )!7

cursos, inúmeros e intermináveis, na assembléia e perante m u n d o d e s c o n h e c i d o fora das c i d a d e s g r e g a s , H e r ó d o t o


o t r i b u n a l ; de discursos metrificados encheram as tragé- r e a l i z o u o b r a d e p a t r i o t a c o n s c i e n t e e d e r e p ó r t e r corajoso,
dias, e até nas obras de historiografia inseriram discursos ao m e s m o t e m p o . N a r r a n d o as g u e r r a s p e r s a s , H e r ó d o t o
i n v e n t a d o s ; a r e t ó r i c a era c o n s i d e r a d a d i s c í p u l a p r i n c i p a l criou uma porção de recordações inesquecíveis e lugares-
d a e d u c a ç ã o s u p e r i o r , e e n f i m foi i d e n t i f i c a d a com a p r ó - c o m u n s e s c o l a r e s : L e ô n i d a s e as T e r m ó p i l a s , S a l a m i n a , Ma-
pria cultura. Evidentemente, não pode ser confundida com r a t o n a . Revela-se, ai, o r e t o r . M a s H e r ó d o t o c r i o u t a m -
a r e t ó r i c a m o d e r n a , s e m p r e s u b j e t i v a , i n s t r u m e n t o d e efei- b é m u m a t r a d i ç ã o i n d e s t r u t í v e l q u a n t o ao O r i e n t e : a sa-
t o s e s t i l í s t i c o s ou t e n t a t i v a d e " m e t t r e en s c è n e " a p e s s o a bedoria misteriosa dos sacerdotes egípcios, a luxúria dos
d o o r a d o r . A r e t ó r i c a g r e g a visava a u m fim o b j e t i v o , co- r e i s da A s s í r i a , os p a l á c i o s , l a b i r i n t o s , h a r é n s , o r á c u l o s ,
m u m a t o d a s as a t i v i d a d e s e s p i r i t u a i s : a v o n t a d e d e g a r a n - g r a n d e s c r i m e s e g r a n d e s p r o f e c i a s — aqui a r e t ó r i c a é
tir à obra u m "lugar na vida". s u b s t i t u í d a p e l a r e p o r t a g e m , no m a i s a l t o s e n t i d o da pa-
l a v r a ; e não é esta a ú n i c a t r a d i ç ã o l i t e r á r i a q u e i n i c i o u .
N a o b r a de H e r ó d o t o e n c o n t r a m - s e i n s e r t o s n u m e r o s o s
c o n t o s , l e n d a s , n a r r a ç õ e s f o l c l ó r i c a s , em q u e r e v e l a a a r t e
O " l u g a r n a v i d a " da obra h i s t o r i o g r á f i c a d e H e r ó -
consumada d u m grande novelista; narra sem comentários
d o t o ("'*) é a e x p l i c a ç ã o das g u e r r a s c o n t r a os p e r s a s . H e -
m o r a i s n e m e x p l i c a ç õ e s p s i c o l ó g i c a s os a c o n t e c i m e n t o s fa-
r ó d o t o era n a t u r a l da l u n i a , d u m a r e g i ã o d e c i v i l i z a ç ã o
bulosos, que parece aceitar como verdade histórica. E
m u i t o a n t i g a , s u j e i t a p o r é m , havia m u i t o , à d o m i n a ç ã o
por q u e n ã o ? A p r o v i d ê n c i a q u e p r o t e g e u os g r e g o s con-
p e r s a . C o m o fora possível, à s m i n ú s c u l a s c i d a d e s g r e g a s ,
t r a os p e r s a s , a g e p o r m e i o s à s vezes e s t r a n h o s ; o c é p t i c o
v e n c e r esse colosso o r i e n t a l ? H t r ó d c t o s e n t i u c e r t o or-
r e l i g i o s o , q u e é H e r ó d o t o , z o m b a n d o u m p o u c o d o s sacer-
gulho patriótico pela vitória dos co-nacionais de além-mar,
d o t e s o r i e n t a i s com as s u a s a t i t u d e s t e a t r a i s e, no e n t a n t o ,
e m b o r a os s e u s p r ó p r i o s p a t r í c i o s , d e c a d e n t e s d e s d e m u i t o ,
r e c e a n d o - l h c s a t e r r í v e l s a b e d o r i a m á g i c a , esse c é p t i c o a c h a
ficassem na s e r v i d ã o p o l í t i c a dos p e r s a s . N o O r i e n t e , p a r a
t u d o iioHstvel. IC m u i t o d(- q u e a u l i g a m c n t c se c o n s i d e r a -
a l é m d e f r o n t e i r a s i n t r a n s p o n í v e i s , d e v i a h a v e r coisas m i s -
va invetu;;lii ou c r f i l u l i d a d c d o r o p ó r i e r g r e g o , como a h i s -
t e r i o s a s , e x p l i c a n d o a u m t e m p o as r i q u e z a s e x c e s s i v a s d o
t ó r i a d e ])ovos d e ])i".niciis na África, c o n f i r m o u - s e d e p o i s
I m p é r i o O r i e n t a l e a sua f r a q u e z a i n e s p e r a d a . P r o p o n d o -
s e e x p l o r a r , a n t e s d e n a r r a r os a c o n t e c i m e n t o s b é l i c o s , o como fato etriogi.'iiico. H e r ó d o t o não é d e s c r e n t e ; mas
a sua r e l i g i ã o já é u m p o u c o m o r a l i z a n t e — u m Sófocles
s s m l i r i s m o — e a sua m o r a l j á u m p o u c o r e l a t i v i s t a : h á
24) Herodotos, c. 484-425 a. C,
Edição crítica por D. Godlcy, 4 vols., Cambridge (Mass.), 1921/ tantos povos no m u n d o , com costumes tão diferentes — e
1924. n o e n t : m t o a fé m a i s a r d e n t e , e a c i v i l i z a ç ã o m a i s rica, n ã o
A. Hauvette: Ilcrodote, historicn dcs (tucrrcs mediques. Paris,
os p r o t e g e r ã o c o n t r a a d e c a d ê n c i a p o l í t i c a ; a d e c a d ê n c i a
1894.
W. Aly: Volksmaerchen, Sage und Novelle hei Heroãol. Goettin- também abateu os patrícios jôhicos do historiador, colo-
gen, 1921. cando-os apenas na situação de observadores abastados,
T. B. Glovcr: Hcrodotus. Berkclcy (Calif.), 1924.
c u l t o s , c u r i o s o s e p a s s i v o s , d o s q u a i s H e r ó d o t o era o p r i -
F. Fock; Herodot ais Hisloriker. Stuttgart, 1927.
O. Regenbogen: "Hüfüdot und sein Werk". (In: Die Antike, VI, m e i r o r e p r e s e n t a n t e l i t e r á r i o , e o m a i s i n g ê n u o , o m a i s in-
1930.) teligente, e m u i t o bonachão.
V. L. Myers: Heroãotus, Father of History. Oxford, 1953.
88 OTTO MARIA CABPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 89

E a h o r a d o s g r e g o s da G r é c i a c h e g o u t a m b é m : a g u e r - mal, E p o r esta C i d a d e m o r r e r a m esses h e r ó i s , c o n s c i e n -


ra do Peloponeso. O caráter pragmatistico da historio- tes d o dever de não a deixar perecer." Mas A t e n a s pere-
grafia grega revela-se no fato de que nunca u m grego pen- ceu, O d i s c u r s o d e P é r i c l e s é a p e r i p é c i a , s e g u i d a i m e d i a -
s o u em e s c r e v e r a h i s t ó r i a d e é p o c a s ou p o v o s s e m r e l a ç ã o tamente pela g r a n d e peste, começo da catástrofe, das dis-
d i r e t a com a sua própria época e a sua própria cidade. T u - sensõ^B i n t e r n a s , dos c r i m e s p o l í t i c o s e p a r t i c u l a r e s , d a
c i d i d e s (^*) e s c r e v e u u m a m o n o g r a f i a h i s t ó r i c a s o b r e o seu confus&o d e t o d o s os v a l o r e s m o i a i s , d e s c r i t a c o m p a l a -
próprio t e m p o : sobre a guerra peloponésia que arruinou v r a s d i r e t a s , e c o n t u d o i m p a s s í v e i s , n o famoso c a p i t u l o 82
A t e n a s . A d o c u m e n t a ç ã o s o l i d í s s i m a d o seu r e l a t o e o es- do l i v r o I I I , que se lê c o m o u m a d i a g n o s e d o n o s s o t e m p o .
t i l o s e c o e q u a s e m i l i t a r ou b u r o c r á t i c o n ã o c o n s e g u e m i n s - T u c í d i d e s n ã o m o r a l i z a ; e j á não c o n h e c e i n t e r v e n ç ã o d o
pirar dúvidas sobre o fato que já a retórica consumada dos mito. A sua tragédia historiográfica de A t e n a s é a pri-
d i s c u r s o s Lnsertos fazia e n t r e v e r : T u c í d i d e s é u m g r a n d e m e i r a t r a g é d i a m o d e r n a cuja ação se r e g e p o r m o t i v o s
p u r a m e n t e h u m a n o s , e d o s q u a i s o m a i s p o d e r o s o é a am-
a r t i s t a , e a sua h i s t ó r i a t e m a feição d e u m a t r a g é d i a ,
b i ç ã o d o p o d e r : e m A t e n a s , e m E s p a r t a , e em t o d a p a r t e .
P o d e r , r i q u e z a e g l ó r i a d a A t e n a s d e P é r i c l e s estão n o
T u c í d i d e s é o M a q u i a v e l do m u n d o a n t i g o : só a p o l í t i c a
p ó r t i c o d a obra. O p o n t o c u l m i n a n t e c a o r a ç ã o f ú n e b r e
p r á t i c a i m p o r t a a esse p o l í t i c o m i l i t a n t e — m a s é u m
d o s c i d a d ã o s a t e n i e n s e s m o r t o s p e l a p á t r i a , na q u a l P é r i -
M a q u i a v e l às a v e s s a s . O i m p e r i a l i s m o foi o g r a n d e m a l
cles c e l e b r a a C i d a d e como "escola da G r é c i a " c a f i r m a :
q u e d e s t r u i u os " m o n u m e n t o s d o b o m " , d e A t e n a s ; e T u c í -
" T e r r a e m a r não p o d e m l i m i t a r a nossa c o r a g e m : em t o d a
dides, político vencido, não pretende indicar remédios
parte erigimos a nós mesmos monumentos d o bem e do
q u e s e r i a m i n e f i c i e n t e s o u e n t ã o c o n t a m i n a d o s p e l o espí-
r i t o d a v i o l ê n c i a e da g u e r r a civil. O P é r i c l e s d e T u c í -
d i d e s n ã o é u m i d e a l p r o p o s t o à p r á t i c a política, e é, n o
25) Thukydides, c. 460-396 a. C. entanto, mais do que uma lembrança idealizada de tem-
Edição crítica por C, F. Smith, 4 vols., Cambridge (IMass.), 1919/
1923, p o s m a i s fellücs. l i u m fato, t e s t e m u n h a da g r a n d e z a t ã o
J. Glrard: Essai sur Thucydiãe. 2." ed. Paris, 1884. b e m f u n d a d a e, a p e s a r d i s s o , d e r r o t a d a , d e A t e n a s . T u c í -
G. B. Grundy: Thucydiães and the History o) His Age. Lon- d i d e s é u m e s t ó i c o avant Ia Icttre; o r e i n o da p o l í t i c a ideal
don, 1911. reno^JIlr-se-á, t a l v e z e m o u t r a n a ç ã o , e m o u t r a época q u e
E, Meyer: Thukydides und die Enistehung der tmssenschaftli-
chen Geschichtsschreibung, Berlin, 1913. ^' ^ e l e n ã o verá. T a l v e z n a U t o p i a .
E. Schwartz: Das Geschichtswerk ães Thukydides. Bonn, 1919. A c o n s t r u ç ã o d e s s a u t o p i a —: q u e é, e n t r e os g r e g o s ,
G. F. Abbott: Thucyãiães. A Stuãy in Historical Reality. Lon-
don, 1925. u m p r o g r a m a i m e d i a t o — foi a m a i o r p r e o c u p a ç ã o d a f i l o -
W. Schadewaldt: Die Gcschichtschreibung des Thukydides. sofia grega. C o m os s o f i s t a s e S ó c r a t e s , a filosofia t o r n a -
Berlin, 1929. s e " r e t ó r i c a " , i s t o é, a n a l i s a a c o m p o s i ç ã o d o s fatos m o r a i s ,
O. Regenbogen: "Thukydides ais politischer Denker". (In: Das
humanistische Gymnasiwn, 1933/I-II.) c u j o f i m ú l t i m o é a m o r a l i z a ç ã o das a l m a s ; " s a l v a ç ã o " q u e
A. Momlgliano: "La composizione delia storia di Tucidide". (In; p a r e c e religiosa e que se enquadra na renovação do mito.
Memorie delia R. Accademia delle Scienze ãi Torino, LXVII, O mito Platão é o maior criador de mitos na literatura
1933.)
J. Romilly. Thucyãide et 1'impérialisme athéníen. Paris, 1951. universal — é o f u n d a m e n t o da Cidade grega.
90 OTTO M A R I A CARPEAUX IIisTÓniA DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 91
Os diálogos de Platão C^) constituem um mundo com- o mito do Eros, explicação da atração física e espiritual
pleto como nenhum outro poeta — além de Dante — entre as criaturas humanas. Ao amanhecer, entra Alci-
criou. No fundamento da construção quase cósmica en- bíades, e com éle a realidade de Atenas, associando-se ao
contram-se os diálogos polêmicos com os sofistas, âs dis- banquete filosófico. Quer di/er, o Eros que está nas re-
cussões meio literárias, meio comediográficas, do tipo do giões "baixas" do corpo e igualmente no céu da especula-
Protágoras e Górgias; no Mênon estabelece-se o òrogra- ção filosófica, o ICros também seria a nova força de liga-
ma da Academia socrática que conservará nome e memória ção entre os cidadãos, o novo mito da Cidade. Desde en-
tão, Platão abandona os abismos do st^ti inferno de sofistas
do mestre. Platão não tem, contudo, o intuito de escrever
e as prisões do purgatório das almas, cm que Sócrates so-
uma biografia documentada do seu mestre: Sócrates é,
freu, para subir ao paraíso da sn.i mitologia. No Tinica
para ele, um símbolo, e simbólico é o fim da sua vida, o
conta, como advertência, o mito historiográfico do conti-
suicídio sereno após o discurso sobre a imortalidade da nente de Atlântida que se perdeu como se está ]>crdendo a
alma, no Fédon. Daí em diante, o Sócrates dos diálogos Grécia. Na República, o mundo inferior é simbolizado
platônicos torna-se centro de uma companhia fantástica como aquela caverna mítica, na qual os homens, jirisiotiei-
de seres superiores, cuja reunião máxima, cheia de ale- ros dos sentidos, só vêem as sombras das idéias verdadei-
gria sublime, é o Simpósio, o banquete de Sócrates com ras, refletidar- pela luz da "anamnese"; e Platão <)i)i)c, na
o tráfíico Ágaton, o comediógrafo Aiistófancs, o pede- mesma obra, à educação irreligiosa dos sofistas o mito
rasta Pausânias, o médico F.ryximachos, o alvmo de filo- da educação totalitária da mocidade grega, a fim de que
sofia Fcdro e a sacerdotisa Diótima; é unia noite de ebrie- ela integre o Estado utópico, em que a Venlade. a Hele^n
dade patética; e durante a discussão desenfreada surge e a Justiça acham realização. O malogro de Platão na
tentativa de realizar a Utopia na Sicilia já não tem im-
portância: o realismií grego incluiu lamitém, no seu cosmo,
26) Platon, 427-347 a. C. as criações dcK-espírito, o cslns em piimcita linha. Neste
A ordem cronológica dos diálogos, estabelecida por Wilamowitz- sentido, o mito plalõíiifo i.'i era uma realidade, msis real
Moellendorff é a seguinte: lon, Hippias, Protágoras, Apologia,
Crit.on, Lacíies, Lysis, Charmiães, Euthyphron, Thrasymav.hos, até do que a vid;i política, que, desligada do seu mito tra-
Gorgias, Menexeno?., Menon, Kratylos, Euthyãcmos, Phatdon, dicional, já não tiiilia rialidodc completa e ia agonizando.
Symposion, Respublica, Phaiãros, Parmeniães, Theaitetos, So-
phistes, Politikos, Kritiax, Tiviaios, Philebos, Legcs. Os mito^ platônicos são criações poéticas cm cuja rea-
A edição princc.ps é a Aldina de 1511; renovação critica do ten- lidade o seu autor acreditava; correspondem àquelas inven-
to por Immanucl Bekkcr, 1826. Edição moderna por I. Burtict,
2." ed., 7 VOIE., Oxlord, 1941. ções na Divina Comédia que não 'têm base no dogma ou
C. Ritttír: Plalo. sein Leben, scine Schriflen, seinc Lehre. 2 vo!s. nos axioraas da filosofia tomista, e que, no entanto, repre-
Mucnchen, 1910/1923. sentam a realidade florentina que Dante encontrou no seu
U. von Wilamowitz-Mocllcndoríí: Platon. 2 vols. Berün, 1319.
A. E. T.aylor: PJato; the Man and His Work. New York, 1327. outro mundo. Tampouco os mitos platônicos são axio-
P, Friedlacnder: Platon. 2 vols. Berlin, 1926. mas filosóficos; por isso, Platão os expôs eni diálogos de
A, Dièsi Platon. Paris, 1930.
índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma
G. Lowes Dicbinson: Plalo and líis Dialogues. London, 1947.
R. Wildholz; Der phüosophische CiaZotr ais literarischfs Kunst- Cidade e talvez uma religião, mas sem a pretensão de de-
fender um sistema filosófico. Nunca, na Antigüidade, os

i
werk. Bem, 1953.
92 OTTO MABIA CARPEAUX llisiidiiA i>\ L I ri.)i \ I nit \ Oi •nu N IAI, <Í:Í

diálogos de Platão foram citados como obras de filosofia até hoje a crux dos comentadores. O próprio conceito do
racional. O grande criador de fórmulas filosóficas entre mito, em Platão — realidade religiosa ou verdade filosófi-
os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a histó- ca? -— não está inteiramente claro. Há em Platão as ambi-
ria da literatura, porque — ao que parece — todas as suas güidades que caracterizam, segundo Coleridge, a poesia. O
obras literàriamente elaboradas se perderam, ficando-nos método dialético e a exposição dialogai eram caminhos
apenas cadernos de notas e aulas (^'). Os mitos de Platão de evasão, assim como a explicação dos dogmas platôni-
são antes metáforas poéticas, às quais a posteridade atri- cos mediante as perguntas e respostas, um tanto cépti-
buiu correspondência com realidades superiores. A ativida- cas, de um Sócrates meio imaginário. Essa interpreta-
de de Aristóteles parece principalmente um esforço de cor- ção da dramaturgia do diálogo, em Platão, baseia-se em
rigir, segundo as experiências empíricas e conclusões ló- duas premissas: a existência de outros escritos platônicos,
gicas, os "erros" de Platão: o equívoco do "platonismo". não dialéticos e sim dogmáticos, embora estejam perdidos;
Mas aqueles "erros" revelaram-se indestrutíveis: toda a e a evolução da sua dramaturgia no sentido da elimina-
história espiritual da humanidade, de Sócrates cm diante, ção gradual da dialética com a evolução do dogma idea-
é uma psicomaquia entre os seus dois sucessores. No lista. A existência desses outros escritos, hoje perdidos,
campo da filosofia racional, a vitória coube, as mais das foi afirmada por Werner Jaeger, com argumentos convin-
vezes, a Aristóteles. Mas a influência indireta de Platão, centes. A evolução da dramaturgia platônica foi provada
através da especulação cristã e de toda a literatura idealis- por Stenzel (~*); na República, o diálogo já está pratica-
ta, foi maior. O filósofo Platão agiu, na história, indire- mente eliminado; no Partnênides e no Sophistcs, a figura
tamente; a ação direta era impedida pela forma da sua de Sócrates perde a importância. Nos últimos diálogos, o
obra. Pois Platão é poeta. "Homero da filosofia" está transformado cm legislador
dogmático de uma utopia já malograda; e desaparecera a
A origem da poesia platônica talvez fosse casual; a
arte.
dramaturgia do diálogo seria — como o estilo coloquial de
Platão revela — a transformação artística das conversas Platão, porém, era essencialmente poeta. Mais poeta
filosóficas que Sócrates inventara para refutar os sofis- do que filósofo, porque a mera "compreensão" não o dei-
tas e expor, de maneira dialética, os seus próprios con- xou satisfeito. O caminho da sua evasão poética levou-o
ceitos. Essa origem será motivo das maiores dificulda- até os conjins do rnundo da razão, até o mito. Afinal,
des para a compreensão da filosofia platônica. A filoso- Platão é um grande espírito religioso. Não é fundador de
fia de Platão é dogmática: baseia-se num a prjori, a exis- uma academia; antes é o profeta de uma seita. Esta seita,
tência das idéias e o seu reflexo na nossa mente. O mé- porém, transformou-se em Humanidade.
todo dialético, imposto pela índole pragmatística do espí- Quem se bateu na última batalha pela ligação entre a
rito grego, era o mais impróprio para expor essa filosofia realidade política e a realidade espiritual gregas, não fo-
dogmática, e teve como conseqüência o fato de certos con- ram os filósofos, e sim os retóricos; fato que basta para
ceitos, como a relação ontológica entre as idéias e os obje-
tos materiais, nunca se tornarem bem claros e constituírem 1 salvar a honra dos "oradores". Mas não basta estudar o
maior de entre eles. A sua arte e o seu caráter humano

27) W. Jaeger: Aristóteles. Grunãlegung einer Geschichte seiner En- W) J. stenzel: Studien zur Entwicklung ãer platonischen Dialelctik
twicklung. Berlin, 1923. von Sokrates zu Aristóteles. 2.^ ed. Leipzig, 1931.
91 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDEWTAL 95

compreendem-se melhor em comparação com os seus rivais, comparação com a latina criaram a preferência compreen-
dos quais Lísias e Isócrates são os mais importantes. sível dos séculos por Cícero; mas em outro sentido tam-
Lísias (^'') era orador forense. O seu discurso de bém o orador grego foi menos compreendido. A filologia
acusação contra o tirano Eratóstenes, que lhe tinha mor- histórica do século X I X não compreendeu a política beli-
to o irmão, é um grande estudo psicológico, usado como cosa de Demostenes contra a Macedônia, nem a sua resis-
libelo; os discursos contra o infiel tutor Diódoto e con- tência contra a unificação da Grécia; afinal Demostenes
tra o denunciador Agorato não são menos eficientes. Maa foi condenado como reacionário. Os filólogos, porém, não
a análise estilística revela-lhe a simplicidade extrema dos ousaram dar o último passo: condenar-lhe o estilo. Toda
recursos de expressão, a clareza seca das exposições. Mais a Antigüidade grega está cheia de elogios ao estilo de
artista, mais "eloqüente", é Isócrates (^"), o orador político Demostenes, combinação perfeita da simplicidade convin-
do partido conservador, o qual se bate pela aliança das cida- cente de Lísias e da arte elaborada de Isócrates, estilo de
des gregas e pela manutenção da paz. Os seus discursos um homem possuidor do equilíbrio sublime de um herói de
muito elaborados, o Panegyrikos, o Arcopagitikos, o Pa- Sófocles; estilo de último herói da tragédia de Atenas,
nathenaikos, eram os modelos preferidos da eloqüência Os filólogos de todos os tempos repetiram os elogios;
barroca, e até Milton alude, num soneto, a "that old man parece, porém, que são necessários conhecimentos muito
eloquent". Juntai a arte de Lísias e o patriotismo de Isó- íntimos da língua grega p?.ra se gostar de Demostenes após
crates, atiibuindo-os a um grande caráter humano, e tereis uma leitura de Platão; para sentirem-se os recursos mu-
a figura de Demostenes. sicais da sua prosa. Nos grandes discursos políticos contra
Demostenes (^') não tem "boa imprensa". A divul- a Macedônia, as Filípicas e as Olínticas, a simplicidade pa-
gação menor e as maiores dificuldades da língua grega em rece artificial e intencional, para arengar à massa inculta.
A argumentação é sofistica, às vezes insincera; as diatri-
29) Lysias, c. 445-380 a. C.
Fdi;S.o por L. Gernct e M PizoK, 2 vols., Paris, 1924/1926. bes contra os adversários políticos são ocasionalmente gros-
W. L. Dcvries: Ethopya. A Rhetorical Study of the Types of Ca- seiras. Na mais famosa das su.is orações. Sobre a Coroa, os
racter in lhe Orations of Lijsias. Baltimore, 1892, ataques contra o rival Esquines e os elogios à sua própria
30) Lsokrates, 43G-338 a. C.
Edição i»r E. DríTiip, Leipzip, 1906. atividade política são de um estranho personalismo. Os
G, Mathicu: Lcs idcc.s politiqucs d'Isocrate. Paris, 1925. personagens de Sófocles não falaram assim. Mas não fa-
31) Demo.st.lu-nc.';, :i84-:!22 a. C. laram assim porque ainda estavam identificados o Mito e
O.s discursos prinripiu.s siio: Contra J.cptinc.s (354), Summu- a Cidade, ao passo que agora só havia identificação entre
riai (354). !'ró os Mcii(úo}Mlil(ivvnacs. <H5:t), Pró Rhoãios (3.51),
/ PhUippica (3,'il), :; di^curKiis Oivnlhu-as (34.9), Pró Paz (3461, os interesses de Atenas e a situação pessoal de Demoste-
/ / Pliilippica (344), Sõbrr. a Embaixada (343), Sóbrc o Chcr- nes, oposicionista isolado contra uma assembléia de po-
sones (341), / / / Philipvica (341), Sobn: a Coroa (3301.
Edição princeps é a Aldlna de 1504; i-Riioviição crítica do tex- litiqueiros vendidos. O personalismo de Demostenes tem
to por Iramanuel Bekker, 1824. Edições modernaK por S. H. Bu- ilto sentido político.
tcher e Rennie, 2 vols,, Oxíord, 1903/1921, e por M. Croiset,
2 vols.. Paris, 1924/1925. Desde os estudos de Droysen sobre a época heleiiís-
A. Schaefer: Demosthenes und seine Zeit. 2.* ed. Leipzig, 1885. tica, Demostenes foi considerado como reacionário, por-
L. Brédif; Dernosthène. 2." ed. Paris, 1886.
F. Focke: Demosthenes-Stuãien. Stuttgart, 1929. q u e se opôs à unificação da Grécia sob a liderença da Ma-
W. Jaeger: Demosthenes. Berkeley CCalif.), 1938. cedônia; e essa unificação, ideal de Isócrates e Esquines,
96 Orio MAMIA C\r\i»KAii3L HisTÓRiA DA LITERATURA OCIDENTAL 97

estava no trctnl da história. Só unificando-se podia a Gré- des sombrios que acompanharam o coro final da tragédia
cia cumprir .-i sua última grande tarefa histórica, a hele- grega.
nização do Oriente, e quem se opôs a esse determinismo Depois do suicídio de Demostenes, a retórica grega
da história imiversal foi vencido, como reacionário. Na já não terá sentido. Degenera em ' T a r t pour Tart". Os
verdade, Demostenes era antiimperialista. Os planos de seus representantes tornam-se mestres-escolas. Entre eles,
expansão oriental preocupavam-no menos do que o nível Xenofonte (^^) é o único homem da ação. A sua obra de
ético e político da civilização grega. A sua luta contra pedagogia política, a Ciropcdia, já se dirige a príncipes
Esquines e os outros pacifistas macedonófilos era a luta estrangeiros; os segredos de sabedoria política que escon-
contra uma quinta-coluna ateniense. O seu personalismo deu no seu diálogo Hiéron, só em nossos dias foram pre-
violento baseava-se num alto ideal, mortalmente ameaçado cariamente decifrados; e os requintes da sua prosa artís-
tica não nos interessam. Xenofonte, para nós, é o autor
por interesses diplomáticos e comerciais. Demostenes do-
de uma obra de ocasião: da Anábase. Como repórter ou
minava todos os recursos da retórica, desde a simplicidade
correspondente de guerra, participou da campanha asiá-
de Lísias e os artifícios de Isócrates até os truques dos
tica de um exército de mercenários gregos, e quando essa
demagogos populares, para pregar a resistência contra os
aventura acabou, com o malogro das esperanças e a morte
"muniquistas" da época; nem sequer a unificação das ci-
de todos os comandantes, o retor Xenofonte assumiu o co-
dades gregas sem a Macedônia o atraiu, porque esse pro-
mando dos remanescentes, guiando-os pelas regiões mais
grama — comparável ao ideal dos nacionalistas burgueses bárbaras da Ásia Menor, para a montanha de onde viram o
do século XIX — ameaçava a multiformidade da civiliza- mar, o mar grego, e gritaram: "Thalassa! thalassa!". A
ção grega. Neste ponto também, Demostenes nos parece anabasis é um assunto eterno — quantas vezes se repetiu,
defensor da verdadeira civilização européia. Em 330, quan- desde então! — narrado por um homem razoável, realista
do proferiu o discurso Sobre a Coroa, já estava vencido; e idealista ao mesmo tempo: um grego. Mas já é o relato
tinha todos os motivos para denunciar no adversário o ini- de uma derrota.
migo desmascarado da pátria, que já sobrevivia apenas no
A Grécia daquele tcinpo já não é o centro do mundo.
espírito de Demostenes. Lidos assim os seus discursos, A s suas cidades estào ainda cheias de rumor levantino, e
cheios de eloqüência retumbante e argumentação menos nas suas escolas ainda se conserva a arte e o pensamento
escrupulosa, destinados a ouvintes que não o compreen- dos antepassados. Mas este tesouro já não cresce e aque-
deram, esses discursos revelam-se como documentos de alta l e rumor já não tem sentido político. A vida torna-se
sabedoria política. Por isso talvez, foi Cícero preferido burguesa. Os cidadãos são comerciantes abastados e os
pelos séculos da Renascença e do Barroco, épocas sem ver-
dadeira eloqüência política. Mas Demostenes foi modelo
32) Xenophon, c. 430-354 a. C.
confessado dos dois Pitts, de Burke, Fox, Sheridan, Can- Edição por E. C. Marchant, 5 vols., Oxford, 1900/1919.
ning e Brougham. Para compreender Demostenes, é pre- A. Croiset: Xenophon, son charactère et son talent. Paris, 1873.
A. Boucher: VAnabase ãe Xenophon. Paris, 1913.
ciso respirar, num dia de grande debate sobre política ex- E. Scliarr: Xenophons Staats-unã Geseüschaftsiãeal. Halle,
terior, o ar da Casa dos Comuns. Mas na prosa dos orado- 1919.
res ingleses não ressoarão, como em Demostenes, os acor- L. Strauss: Ora Tyranny. An Interpretation of Xenophon's Hié-
ron. New Yorli, 1948.
98 OTTO MAHIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 99

seus filhos constituem uma jeunesse dorée, ocupada em nológico e talvez no sentido do valor também. O seu mun-
aventuras amorosas com escravas. A vitória esportiva, que do é o das pequenas cidades mediterrâneas de então: co-
Píndaro cantara, é substituída pela vitória sobre o p a i : mércio florescente, burgueses imbecis, pais avarentos, fi-
cumpre arrancar-lhe, com a ajuda de um escravo astuto, lhos devassos ou tímidos, escravos astutos e pérfidos, es-
o dinheiro para comprar a "pequena". Eis o mundo do co- cravas ternas ou espertas, parasites insolentes, sargentos
mediógrafo Menandro, representante principal da "comé- grosseiros. É o pequeno mundo grego. Mas Plauto sabia
dia nova", ao lado de Filêmon, Dífilo e Apolodoro. romanizá-lo e latinizá-lo até à perfeição. Os seus pais são
Infelizmente, é difícil formar idéia bastante clara "nobres senadores", os filhos griwculi. já contaminados
da arte de Menandro (^^). Durante muito tempo só se co- pela civilização estrangeira, os escravos são simplesmente
nheciam as suas famosas sentenças, conservadas como ci- plebeus que vencem o patrão pelo bom senso do homem
tações em outros autores, máximas de uma sabedoria paca- da rua. A comédia de Plauto já não pertence à civilização
tamente burguesa, à maneira de Augier. Os fragmentos grega, e sim à romana, que gerou a latina moderna e por
substanciais das comédias Epitrepontes, Sawia, Perikei- isso está incomparavelmente mais perto de nós; a atmos-
romene e Heros, encontrados em papiros egípcios, em 1905, fera plautina volta sempre na história do teatro europeu.
revelam algo como um Ibsen sem problemas, um Shaw Do Anfitrião de Plauto contam-se, através de Camões,
sem força cômica, um realista sem excessos de vulgaridade, Molière, Dryden e Kleits, até Giraudoux, 38 versões. Eu-
É verdade que certos críticos modernos se entusiasmam
com Menandro. Mas esse entusiasmo baseia-se em tradu-
li clion, o herói da Aulularia, volta em Harpagão. As estra-
nhas aventuras dos Menaechmi, gêmeos parecidos até à
ções de que desconhecem a precariedade. As dificuldades confusão, ressuscitam em A Comédia dos Erros, de Sha-
da língua grega antiga, em Menandro, talvez sejam mais kespeare, e em mais de 38 versões, assim como o imortal
de ordem intelectual do que fílológica; porque a "co- Miles Gloriosas, o sargento grosseiro e fanfarrão. A pai-
média nova" revela-se bem viva e permanente em Flauto e xão de pai e filho pela mesma moça, na Casina, inspira a
Terêncio, seus representantes latinos. Clizia de Mnqiiiavcl e inúmeras farsas francesas. Os per-
Mas se Plauto ('*) só fosse o reflexo romano de Me- sonagens de Plrnito vivetn nos Pantalone e Tartaglia, ca-
nandro, não seria o primeiro comediógrafo, no sentido cro- pitano Spavcnta, Arlequim e Colombina da "commedia
deirarte". Dos temas de Plauto vive todo o nosso teatro
popular, Plauto é um dos autores mais influentes da lite-
33) Menandros, c. 342-292 a. C.
Edições por Chs. Jonsen, Berlin, 1929, e por A. Koerte, Leipzlg, ratura universal.
1938.
G. Capovilla: Menandro. Milano, 1924.
K. Lever: The Art of Greek Comcãy. London, 105G.
F, Leo, 2 vols., Berlim, 1895/1896, e por W. M. Lindsay, 5.» ed,.
34) Titus MacciuK Plaiitus, c. 254-184 a. G. 3 vols., Oxford, 1930.
As comédias existentes: Amphitruo, Asinaria, Aulularia, Bacchi- F. LEO: Plautinische Forschungen. 2.» ed. Berlin, 1912.
des, Captivi, Casina, Cistellaria, CurcuUo, Epiãicus, Menaechmi, G. Michaut: Flaute. Paris, 1920.
Mercator, Miles gloriosus, Mosteüaria, Persa, Pseudolus, Ruãens, P. Lejay: Flaute. Paris, 1925.
Stichus, Trinurmnus, Truculentus, Viãularia. A. Frete: Essai sur Ia structure dramatigue ães conéãies ãe
Edição princeps é a de Veneza, por Merula, 1472; seguem-se a Flaute. Paris, 1930.
Aldina de 1522, a de Gronovius, 1664. e a crítica por F. W. Rita- G. Norwoo'd: Flaute and Terence. London, 1933.
chl, 1848/1854 (em 2.» edição. 1871/1894). Edições modernas por F. Arnaldi: Da Plauto a Terenzio. Napoli, 1946.
100 OTTO M A R I A CAEPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 101

O seu teatro é popular; quer fazer rir as massas, e con- nuo não chega a compreender a situação. Flauto, tratando
segue o seu fim, porque Flauto é um sabidissimo profissio- um assunto assim, teria soltado gargalhadas; Terêncio fala
nal da cena, o criador de todas as intrigas e complicações como o "epistolário imiversal dos enamorados" e o seu
burlescas para todos os tempos: um gênio do palco. Fala latim é muito bom. Por tudo isso, Terêncio é, desde os
a língua do povo, não a dos literatos, ao ponto de criar conventos beneditinos da época de Carlos Magno até os
as maiores dificuldades aos nossos filólogos, acostumados colégios humanisticos dos jesuítas e jansenistas, o autor
à fala ciceroniana. Ao mesmo tempo, esse gênio da gíria preferido da escola. E também é o preferido daquela escola
dispõe de inesperada riqueza de metros complicados, de adultos que é o salão literário: Terêncio sabe dizer tudo
de modo que a relação entre o verso plautino e a poesia em tom de conversa polida; transforma as obscenidades
grega constitui objeto de estudos importantes C'^); e esses plautinas em problemas psicológicos sérios, discutindo,
estudos revelam o terceiro gênio de Flauto, o seu gênio nos Aãelphoi, se a educação dos filhos deve ser severa,
poético, lírico, grego. Flauto sabe cantar, e por isso, mais para impedir excessos, ou indulgente, para acostumar às
do que pelos temas, o comediógrafo romano pertence à lite- exigências da vida — é o tema das duas "Écoles" de Mo-
ratura grega. As suas variações métricas assemelham-se a lière. De maneira semelhante, a misantropia de Menedemus,
modulações musicais; talvez os seus entremezes líricos fos- no Heautontlmoroumenos, preludia as expectorações de
sem realmente cantados, e as suas comédias tivessem sido Alceste. Terêncio é o comediógrafo da aristocracia ro-
espécie de óperas-cômicas; vaudevilles que sobreviveram mana, quando já bastante grecizada. É mesmo um grae-
à temporada e a todos os tempos.
culus. O seu método de trabalho lembra os coraediógra-
A glória universal de Terêncio C^") é pouco menor; fos ingleses do século XIX, que adaptaram as peças pa-
mas perturba menos os filólogos que o preferem por mui- risienses de Augiçr e Dumas Filho para o gosto da burgue-
tos motivos. O parasito no Formio é mais decente que os sia vitoriana. Cria a intriga complicada e explica-a pela
parasitos plautinos; e quando Chaereas, do Eunuchus, se boca do escravo inteligente, precursor do raisonneur da
disfarça em castrado para poder aproximar-se de Pamphila, comedia fraiices;i. Tudo c verossímil, realista, mas tam-
tudo acontece de maneira tão discreta que um leitor ingê- bém polido e — cm cciio sentido — mais humano do que
em Plaulü. Porque, cm Terêncio, verdade e humanidade são
35) F. IJCO: Dic plaulínischcn Cantica unã ãie hellenistische Lyrik. idênticas. l''üi esse comediógrafo romano quem criou o lema
Bpitin, 1B07.
36> Publius TciTTit.ius Aft-r. n. IM-inf) a. C, do humanismo grego: "Homo sum; humani nihil a me
Com(^(llllH: Arniria (ififii, Ilrvyra C1G5), Hcaulontimoroumenús alienum puto." É pena que Terêncio já não seja lido nas
(KiU), Kumichníi (Hil), }'li(>riiiio (UiP, /Irír/jiJíiii (1G0>. escolas.
Edit,""!!) priví'r]>.t (ic I';;;I.MiMlniiTíi. ]'\li). ilr|i(ii:; ]»»• MuvíítUK (An-
tu('Tpia), 15r>f>, rnnovnf,ã,n fi-í|,icu do l,cxl,(i por Ricluivd Bnntlcy,
1726. Edição moderna por R. Kiuicr o \V. M. lindsay, Oxford, A "comédia nova" não é o único gênero da literatura
1926. grega que conhecemos principalmente através de versões
G. Norwood: The Art o/ Tcrence. Oxford, 1923.
N. Terzaghi: Frolegomeni a Terensio. Torino, 1931. latinas. Outro tanto se pode afirmar com respeito à úl-
C E . Rand: "Térence et Tesprit comique". (In: Reviie ães cours tima época da poesia grega, a "alexandrina", poesia eru-
et conférences, juln, 1935.) dita e livresca, o que não exclui, aliás, certa independên-
B, Croce: "Terenzio". (In; Poesia antiga e moderna. 2.^ ed. Bari,
1943.) cia do espírito poético, nem sequer o sentimento pessoal. O
102 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 103

maior poeta alexandrino foi Calímaco (^^'^), do qual te- nismo romanesco quando aquele mundo ideal já não exis-
mos obras em número suficiente — elegias, epigramas, hi- tia. Teócrito ainda se encontra num ponto crítico; o grego
nos — para poder apreciá-lo como poeta notável; mas sua começa a perder o contato com a realidade no momento « n
poesia mais famosa "O Caracol de Berenice", só nos che- que parece tê-la atingido.
gou através da versão latina de Catulo. Às epopéias insu- Teócrito ('") é o poeta da Sicília grega. O espírito da
portáveis dos epígonos opôs Calímaco o poema curto, ins- Odisséia renasce nos seus idílíos. O sol mediterrâneo ilu-
pirado; sua teoria poética lembr^ a uma distância de mais mina campos e pastagens levantinos, os pastores dançam
de dois milênios, a de Edgar Allan Poe. Mas Calímaco já ou cantam os seus amores, e o deus Pã dorme ao calor
é menos poeta original do que humanista. do meio-dia: ao crepúsculo, o coro das flautas convida para
O human^.smo moderno é um ideal; o humanismo grego a festa de Adônis, os pescadores preparam as redes e, na
é realidade; e a diferença baseia-se no fato de que o con- melancolia da noite, lamenta o ciclope Polifemo o seu amor
ceito da realidade é mais amplo nos gregos, compreendendo infeliz à ninfa Galatéia (idílio 11). É a Arcádia. A Ar-
também as realidades criadas pelo espírito humano. A dis- cádia de Sannazaro e Montemayor, Garcilaso de Ia Vega e
tinção ajuda à compreensão da última fase da literatura Camões, Sidney e D'Ur£é.
grega. É idílio pastoral e romance fantástico: quer dizer, Na verdade, Teócrito é um homem da cidade que faz
literatura de evasão. Mas serve-se de expressões da lite- excursões pelos campos perto de Siracusa, pintando fiel-
ratura grega realista. Se se tratasse de evasionismos mo- mente o que vê. A demonstração do seu realismo torna-se
dernos, poderia acontecer ficarmos enganados, tomando fácil comparando-se os idílios 14 e 15, que se passam na ci-
como realismo o que é evasão; o conto rústico dos moder- dade, com os mimos urbanos de Herondas, que Kenyon,
nos produz muitas vezes, e deliberamente, esse equívoco. em 1891, encontrou em um papiro do British Museum
No caso grego, dá-se, estranhamente, o contrário. As cenas (•''**). O mimos grego, representação dramática de pe-
rústicas, bem realistas, de Teócrito, foram consideradas, até quenas cenas da vida cotidiana, as mais das vezes humo-
há pouco, como expressões de bucolismo evasionista. No rísticas ou obscenas, continuar-se-á no mimos grosseiro
que se refere à situação social de Teócrito, poeta urbano dos subúrbios da Roma imperial; depois, encontram-se 08
que canta o idílio rústico, está certo. Apenas, a evasão seus vestígios nos iiidi bizantinos e nas sottises dos jon-
tem, aqui, direção contrária à que se observa nas literatu- gleiirs dos mistérios medievais, e até na "commedia deli'
ras modernas. Os nossos evasionistas são românticos; pro- arte" italiana ("'"'*). Mas este cortejo fantástico esconde
curam nos campos o idílio. O grego não conheceu roman- as origens realistas do mimos. Herondas foi realista ver-
tismo; quando pretendeu cvadir-se do mundo ideal da
"Cidade", já agonizante, tornou-se realista bucólico, como 37) Theokritos, século III a.C.
Renovação crítica do texto por Daniel Heinsius, 1603,
Teócrito. E esse realismo só se transformaria em evasio- Edição por U. von Wilamowitz-MoeUendoríf, 2 vols., Oxford.
1910.
A. Lang: Theokritos and His Age. London, 1892.
36A) Kallimachos. c. 305-240 a. C. P. E. Legrand: ttude sur Théocrite. Paris, 1898.
Aiiia; Hinos; O Caracol ãe Berenice. R. J. Cholmondeley: The lãylls of Theocritus. Oxford, 1919.
Edição por R. Píelfíer, London, 1949, E. Bignone: Teócrito, studi critici. Bari, 1934.
E. Cahen: Callimague et son oeuvre poetique. Paris, 1&29. 33) L. Laloy: Herondas. Paris, 1928.
R. Pfeiffer: KaUimachos. London, 1950. 38A) H. Reich: Der Mimus. Berlin, 1903.
104 OTTO MAHIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 105

d a d e í r o ; mas não é mais realista do que o seu contempo- A t é aos s e u s ú l t i m o s r e b e n t o s , o e s p í r i t o g r e g o não c e s s o u


râneo Teócrito. de " c r i a r r e a l i d a d e " , e m b o r a j á i n c a p a z d e d i s t i n g u i r r e a -
O s i d í l i o s d e T e ó c r i t o n ã o se p a s s a m n a A r c á d i a , m a s l i d a d e h i s t ó r i c a e r e a l i d a d e n o v e l í s t i c a (^**"°).
na S i c í l i a r e a l . O s n o m e s d o s s e u s p e r s o n a g e n s — T h y r s i s , O m u n d o ideal d o s g r e g o s só e x i s t i a e m f u n ç ã o d a
Corydon, Daphnis, Gorgo, Praxinoa — tão conhecidos atra- realidade material. Quando a realidade material dos gre-
vés do b u c o l i s m o f a n t á s t i c o d o s m o d e r n o s , são n o m e s co- gos d e s a p a r e c e u , o e s p í r i t o g r e g o p r e n d e u - s e à r e a l i d a d e
m u n s e n t r e os c a m p o n e s e s s i c i l i a n o s d a q u e l a época. T e ó - romana, explicando-a duma maneira idealista de que os
c r i t o c o n s e g u e t r a n s f i g u r a r a r e a l i d a d e t r i v i a l em e n c a n - p r ó p r i o s c r i a d o r e s dessa r e a l i d a d e n ã o erain c a p a z e s .
tadora música verbal, uma poesia de melancolia erótica. P o l í b i o (•'"), o g r a n d e h i s t o r i ó g r a f o , p r e t e n d e e x p l i c a r
E z r a P o u n d considera Teócrito como u m dos maiores poe- p o r q u e os r o m a n o s v e n c e r a m o m u n d o . A p e r g u n t a é p r a g -
t a s d e t o d o s os t e m p o s . E ' u m f a t o q u e esse g r e g o d a mática, no melhor estilo de pensar de H e r ó d o t o e T u c í d i -
S i c i l i a é s o b r e m a n e i r a acessível a l e i t o r e s m o d e r n o s . d e s . A r e s p o s t a , p o r é m , é d i f e r e n t e . O m u n d o já não s e
l i m i t a às p e q u e n a s c i d a d e s d a l ô n í a , Á t i c a e do P e l o p o -
E n c o n t r a m - s e a s m e s m a s c e n a s r ú s t i c a s e as m e s m a s
neso. J á é possível abranger a história universal, dedu-
l i c e n c i o s i d a d e s d i s s i m u l a d a s n o famoso i d i l i o Dáfnis e
z i n d o u m a lei h i s t ó r i c a d e e v o l u ç õ e s cíclicas, q u e V i ç o , o
Chioe, d e L o n g o s ('""'^). É u m a obra d e e s t r a n h a m o d e r n i -
h i s t o r i a d o r da I t á l i a v e n c i d a , e S p e n g l e r , o h i s t o r i a d o r d a
d a d e , c o m o se a t i v e s s e e s c r i t o p o r v o l t a d e 1900 u m fran-
Alemanha vencida, reencontrarão no grego vencido. Ape-
cês, a d m i r a d o r da l i t e r a t u r a g r e g a da d e c a d ê n c i a . F o i lei-
nas, Spengler é positivista, Viço é cristão, e o grego é hu-
t u r a de predileção de A n d r é Gide; e M a u r i c e Ravel trans-
m a n i s t a . É o h o m e m q u e l h e i m p o r t a . C o m o n a frase d e
f o r m o u - a em b a i l a d o .
N a p o l e ã o , a p o l í t i c a é, em P o l í b i o , o d e s t i n o . A h i s t ó r i a
Enfim, com a perda definitiva da realidade grega, ven- é a l u t a d o h o m e m c o n t r a a Tychc. Políbio é o primeiro
cerá o elemento romanesco. S u r g e um novo g ê n e r o : o ro- historiógrafo estóico.
m a n c e de a v e n t u r a s . A m a i s c é l e b r e d e s s a s o b r a s foi, d u -
D o i s s é c u l o s e m e i o dejtois, P l u t a r c o (•"') cria a bio-
r a n t e s é c u l o s , a s Histórias Etiópicas de Theagenes e Cha-
g r a f i a ; a g o r a já c só o i n d i v í d u o q u e i m p o r t a . P l u t a r c o é
riclea, d e H e l i o d o r o (''**"'^). A t r a v é s d e v e r s õ e s b i z a n t i n a s
— o q u e P o l í b i o n ã o foi — u m g r a n d e a r t i s t a da n a r r a ç ã o ;
e t r a d u ç õ e s l a t i n a s , esse g ê n e r o i n v a d i r á , d e p o i s , o O c i -
s a b e c a r a c t e r i z a r à m a r a v i l h a , de m o d o que, d e t o d a s as fi-
d e n t e , C o n t r i b u i r á p a r a a f o r m a ç ã o final d o r o m a n c e d e
g u r a s da A n t i g ü i d a d e , só as q u e êle b i o g r a f o u se t r a n s f o r -
cavalaria, p e r t u r b a n d o o e s p í r i t o d o p o b r e D o m Q u i x o t e .
M a s o p r ó p r i o C e r v a n t e s t a m b é m i m i t o u o m o d e l o , em Per-
38D) M. Braun: Griechischer Roman unã hellenistisehe Geschichts-
siles y Segismunda; e os m a i o r e s e r u d i t o s do s é c u l o X V I , chreibung. Frankfurt, 1934.
i n c l u s i v e u m M e l a n c h t h o n , c o n s i d e r a v a m o ilegível r o m a n - M. Braun: History and Romance in Graeco-Oriental Literatu-
re. Oxford, 1938.
ce d e H e l i o d o r o c o m o p e ç a d e h i s t o r i o g r a f i a a u t ê n t i c a .
39) Polybios, c. 200-120.

38B) Edição por


E. Rohde:
J. M. Edmonds, London, 1924.
Der griechische Rontan. 3." ed. Leipzig, 1914.
1 Edição por W. R. Paton, 6 vols., Cambrldge, 1922/1927.
C. Wunderer: Polybios. Leipzig, 1927.
40) Plutarchos, c. 46-120 d. C.
Vitae parallelae: Theseus e Romulus, Likurgos e Numa, Solon e
38C) Edijão por J. Bekfcer, Leipzig, 1855. Valerlus Publicbla, Tliemistocles e CaniiUus, Perlcles e Quintus
E. Rohde: Der griechische Roman. 3.* ed. Leip2ág, 1914. Fabius Maximus, Alkibiades e Coriolanus, Timoleon e Paulus
lüf) OTTO MM(IA CAnrEAux

maram em pcrsonaf;ens tão reais como Dom Quixote, Ham-


let ou Napülcão. Ji^oi cie quem criou para nós os Coriolanos,
MárioH, Silas, Catões, Brutos e Marco Antônios. Plu-
tarco sabe narrar como um romancista; sabe interessar e
até entusiasmar: Montaigne, Rousseau, Alfieri e Schiller
embriagaram-se em Plutarco, e ainda Whittier não encon-
trou elogio maior para Abraham Lincoln do que compará- CAPÍTULO I I
lo aos heróis de Piutarco. As biografias de Plutarco, lidas
em seguida, são monótonas; o herói parece sempre o mes- O MUNDO ROMANO
mo. Isto acontece porque a composição das biografias é de-
terminada por um conceito imutável do homem, do grande \ OBRA capital da literatura romana é o Corpus Júris.
homem. Plutarco é estóico, na política e na psicologia. " ^ Desaparecera o Império político-militar dos romanos
Mas na religião, não. Os Moralia, escritos enciclopédicos sobre o mundo mediterrâneo-ocidental, da África até a Bri-
sobre tudo o que existe e não existe entre o céu e a terra, tânia. Mas a dominação romana subsiste no fundo da cons-
revelam um platonismo já contaminado pelas superstições ciência política, na linguagem dos parlamentos e tribunais,
do Oriente, um neoplatonismo avant Ia lettre, enfim, aquela nos conceitos da jurisprudência e na organização da Igre-
forma de platonismo que irá atingir tão intimamente a ja Romana. O monumento literário dessa capacidade de
religiosidade cristã do Ocidente; mas as veleidades lai- organização é o Corpus Júris. E mesmo esta obra "literá-
cistas da história ocidental também tomarão a côr da in- ria" não é obra de escritores romanos, porque a sua reda-
dependência do homem estóico em face do destino. Plu- ção definitiva coube aos jurisconsultos de Bizâncio.
tarco legou ao mundo moderno a última atitude do homem
A literatura romana ( ' ) , apesar de ter produzido gran-
grego.
des poetas e grandes prosadores, parece de segunda mão.
A comédia romana já se nos revelou como reflexo da co-
Aemllius, Pelopidas e Marcellus, Aristides e Cato, Philopoemen média nova ateniense, e a tragédia de Sêneca será reflexo
e Flaminius, Pyrrhos e Marius, Lysandros e SuUa, Kimon e Lu-
cullus, Nikias e Crassus, Eumenes e Sertorius, Agesilaos e Pom- da tragédia de Euripides. Os poetas líricos romanos imi-
pejus, Alexander Magnus e Caesar, Phokion e Cato Uticensis, tam Teógnis, Alceu e Safo; Virgílio seria a sombra de
Agis e Kleomenes e os Gracchl, Demosthenes e Cicero, Deme- H o m e r o ; os letores e historiógrafos acompanham os mé-
trios Poliorketes e Marcus Antonius, Dion e Brutus. Moralia: De
superstitione, De curiositate. De será numinis vinãicta. De fa- todos gregos; os filósofos romanos procuram, como eclé-
de quae in orbe lunae apparet. De defectu oraculorum. De co- ticos, um caminho de compromisso entre as discussões das
hibenda ira, Quaestiones conviviales, Conjugaüa praecepta. De escolas de Atenas e da Ásia Menor, Em geral, é uma li-
Ist et Osíriãe, Quaestiones graecae, Quaestiones romanas, etc, etc.
Edição por Stephanus, 1572; edição moderna por B. Perrin, 11 teratura de imitação. Conhecemos grande parte da litera-
vols., Cambridge (Mass.), 1914/192S; edição das Vitae por C. Lln-
dskog e K. Ziegler, Leipzig, 1914 sg. 1) W. F. Teuffel: Geschichte der roemischen Literatur. 4." ed.
I. Oakesmith: The Religion o) Plutarch. London, 1903. Lelpzig, 1913.
R. Hirzel: Plutarch. Leipzig, 1912. R.Pichon: Histoire de Ia littérature roínaine. 12." ed. Paris, 1930.
A. Weizsaecker; Untersuchungen über Plutarchs biographische C. Marchesi: Storia delia letteratura latina, Messina, 1930.
Technik. Berlin, 1931. I. W. Duff: A'Literary History oj Rome jrom the Origins to the
M. A. Levl; Plutarco e il V secolo. Milajao, 1965. Close of the Golden Age. 2.* ed. New York, 1930.
108 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 109

tura grega — particularmente da poesia lírica e do teatro é uma planta exótica em Roma; os que pretendem viver
cômico — SC através das imitações latinas. Não há, porém, nela, só podem fazê-lo como um alto funcionário que nas
uma equivalência perfeita entre as duas literaturas, por- horas de ócio se entrega a caprichos de diletante, ou como
que os romanos — donos duma capacidade de assimilação um boêmio que se afasta das ocupações sérias da vida.
comparável só a dos ingleses — modificaram o espírito Existe, no entanto, entre o diletantismo romano e o dile-
dos modelos, produzindo sempre coisas um tanto diferen- tantismo moderno, uma diferença; e nessa diferença reside
tes. São justamente essas diferenças que nos aproximam aquele "algo de novo" que os romanos introduziram na
da literatura romana. A civilização grega continuou sem- imitação dos modelos gregos. O diletantismo moderno é
pre algo de alheio, quase exótico, ao passo que a civilização sempre participação, às vezes incompetente, às vezes irres-
romana, com a qual temos em comum poderosas institui- ponsável, na realidade espiritual; entre nós sobrevive —
ções jurídicas e religiosas, ainda faz parte da nossa. Todas na arte, na literatura, na ciência — a herança grega duma
as literaturas modernas começaram com uma fase medie- realidade espiritual, criada pelos próprios homens, A rea-
val em língua latina, e os modelos latinos nunca eram cri- lidade romana não era assim; era força alheia ao espírito.
térios impostos de fora pela evolução histórica — como os E os representantes romanos do espirito defenderam a sua
gregos — e constituem antes, por assim dizer, fases an- independência contra essa realidade material, com a mes-
teriores da nossa própria evolução. Mas entre a litera- ma coragem e tenacidade de estóicos natos com as quais os
tura romana, imitação de uma literatura estrangeira por seus antepassados tinham conquistado o mundo e os seus
parte de uma elite culta, e as instituições romanas, obra descendentes, mais tarde, haveriam de sucumbir aos bárba-
original da nação, há um abismo. Por força das suas ori- ros. Aí está o elemento original da literatura romana. Para
gens e da íiua própria existência, a literatura romana cons- os romanos e para nós. Entre nós, como entre os gregos,
titui o modelo de uma literatura de elite, literatura inten- existe uma realidade espiritual; mas só ao lado da reali-
cional, artística, de evasão. Os literatos romanos já são hu- dade material, sem o equilíbrio do realismo homérico. En-
manistas no sentido moderno da palavra. A separação en- tre nós, o Espírito está sempre ameaçado. A sua defesa
tre os escritores romanos e a realidade romana tem conta- tirou as lições mais edificantes do exemplo da defesa dos
minado a nossa própria civilização inteira. romanos cultos contra a sua realidade bruta. A literatura
romana não é um templo da beleza; é uma lição de coragem,
Mas a literatura romana tem justamente "les qualités uma escola de oposição. Eis o "lugar na vida" dessa pre-
de ses défauts". Devia ser literatura de evasão, porque não tensa literatura de evasão, que é, na verdade, uma alta es-
tinha nada com a realidade no meio da qual' surgiu. O cola de humanidade (^'•'^).
espírito grego cria as suas realidades; Estado e poesia,
religião e teatro estão no mesmo plano; a distinção entre É significativo: no pórtico da literatura romana estão
realidade material e realidade espiritual, para o grego, não dois autores, nenhum dos quais era escritor profissional.
tem sentido. A realidade romana é construção em material Um arquiteto e um general: Vitrúvio e César. Do ponto
dado. É realidade econômica, política, jurídica, adminis- de vista literário, não são "grandes escritores"; mais exato
trativa. O romano não criou ó seu m u n d o ; encontrou-o, seria dizer que não pertencem à literatura. São os repre-
dominou-o, continuou a dominá-lo, pensando em termos
lA) E. Howald:' Das Wesen der lateinischen Dichtung. Zuerich, 1948,
administrativos, A realidade espiritual, importada de fora, F. Klingner: Roemische Geisteswelt. 3," ed, Muenchen, 1956.
110 OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL III

sentantes mais típicos da "construção", em oposição à qual dios, então as elites cultas, vivendo da corrução geral e no
nasceu a literatura romana. meio dela, indignaram-se e se alegraram simultaneamente,
Caius Julius Caesar (^'^) não é escritor profissional, como se dissessem: "Esses sargentos e burocratas encon-
já se disse. Só escreve para explicar os seus fins políticos. trarão o fim merecido na revolução social, que será, no en-
Só dá fatos, a realidade nua. Os Commentarii de bello tanto, o fim da nossa própria vida, culta porque abastada."
gallico e Commentarii de bello civili estão cheios de vo- Eis o espírito, ambíguo entre indignação moral e corrução
zes de comando: aos soldados, aos povos subjugados, aos espiritual, em que Salústio (") descreve as discussões tur-
politiqueiros vencidos, à língua. No fim dos relatórios, a bulentas no Senado, na época da revolução anarquista de
Gálta e a Itália estarão organizadas. O seu contempo- Catilina (De coniaratione Catilinae), e a corrução crimi-
râneo Vitruvius PoUio (,^'^) dá vozes de comando às co- nosa dos generais e governadores romanos, na época da
lunas; é criador daquela arquitetura oficial que até hoje conquista da África (De bello JugUTthino).
forma os centros das nossas capitais. No seu sucessor re- Salústio é um historiador inexato e um estilista arti-
nascentista, Palladio, essa arquitetura de colunas, en- ficial e obscuro. Mas esse seu estilo rápido, nervoso, sen-
fileiradas como soldados e alinhadas como parágrafos, já tencioso, como carregado de esprit e eletricidade, é o ins-
tem qualquer coisa de alheio à vida. Em Vitrúvio, não; trumento adequado da sua polêmica contra a escandalosa
na sua obra De Architectura, fala também sobre o serviço política da alta administração e da burguesia romana. Sa-
de águas e esgotos e sobre todas as public utiUtics que lústio é panfletário. Sabe caracterizar os seus personagens
servem à manutenção da boa ordem administrativa. Em como Dryden, e tem dos homens e da humanidade o mesmo
César e Vitrúvio Roma está construída. conceito pessimista de Swift. Como todos os escritores
É a realidade. Mas os cultos, entre os romanos, não a que acreditam em qualidades permanente» — permanente-
sonharam assim, desde Cipião, o Africano, e o seu círculo mente más — da natureza humana, Salústio torna-se de
de graecuJi, que se enamoraram da literatura grega. Não vez em quando atiialissimo. Nos JKMICOS decênios passa-
suportavam a companhia tios militares e burocratas. Quan- dos da nossa época, já vimos várias vêzcs surgir e perecer
do, nos últimos anos da República, a corrução se introdu- os seus personajfonH, diísaparccor e voltar as suas situa-
ziu entre os generais e governadores, e quando demagogos ções. Não se pode abrir uma página de Salústio sem encon-
anarquistas se aproveitaram da situação para arengar às trar "atualidades" surpreendentes. Salústio é o maior obser-
massas urbanas, formadas pelo êxodo rural, dos latiíún- vador da literatura romana.

IB)Caius Julius Caesar, 102-44.


Covvnentarii de bello gallico; Covwiciitarii de hello civili. 2i Cuin.', Sallustius CrispUK, 86-34 a. G.
Edição princeps, Roma, 1469. De. coniuratione Catilinae; De bello lugurthino.
Edição por A. Klotz, Leipzlg, 1921/1927. Edição princeps, Veneza, 1740.
E. Norden: Die antike Ku7istprosa. Vol. I. Leipzig, 1909. Edição crítica por I. C. Rolfe, a.'' ed„ Cambridge (Mass.), 1931.
F. E. Adcock: César as a Man of Letters. Cambridge, 1956. O. Gebhardt: Sallust ais politischer Publisist. Halle, 1920.
IC) Vitruvius Pollio, sec. I (?). W. Baehrens: Sallust ais Historiker, Politiker und Tendenzschrif-
De Architectura. tsteller. Berlin, 1926.
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Edição por H. Rose, 2.^ ed., Leipzig, 1899. E, Cesareo: Sallustio. Firenze, 1932,
L. Sontheimer: Vilruv und seine Zeit. Tuebingen, 1808. W. Schur: Sallust ais Historiker. Stuttgart, 1934,
112 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA 0(;IDENTAL 113

Mas não bastava observar. "Casca 11 mondo." O homem garizador das idéias filosóficas gregas em Roma; é literato.
de letras lem de agir; ou terá de se retirar para a Na- Aplicando-lhe os critérios rigorosos da profundidade na
tureza, que fica imóvel, insensível às mudanças insigni- filosofia e da solidez do uni.i política baseada em ideologia
ficantes que os homens operam. É possivel a tentativa de certa, Cícero não ;,ni bcni: Uú \\\n jornalista algo super-
introduzir motivos ideais, literários, na política; ou então ficial, em todos os setores <1n sua atividade. Esse "jorna-
abrigar o espirito no seio da grande mãe Natureza. É a al- lista" exerceu, poi-óni, nina !nlluòiu-in l,~io luiiversal como
ternativa entre Cícero e Lucrécio. — além de PJatão — nenluiin ruitor da Antigüidade. Du-
A tradição classificou as obras de Cícero (^), distin- rante séculos, todos O;T lioineii-; cultos, os "letrados" da
guindo discursos forenses e parlamentares, tratados filosó- Europa inteira, falaram e cscrfvci-.nu a liii;;ii,-i de Ciccro; e
ficos e cartas. Cícero é jornalista, advogado, político, vul- pode-se afirmar que a sua iafiuéiicia i'.ri',)ii o tipo do ho' i-
ms de lettTSS. Julf:(ado corio exj;nnlo siiprcnif) desse 1i;^o,
Cícero í!-presenta-se de mr.ncira iirais favoiável, e aíc
3) Marcus Tullius Cícero, 106-43 a. C. a sua volubllidade política é a de iim intelecluaf, inc. p /
Os principais dos 57 discursos são os sesuintes;
a> políticos; Pro Rnscio Amcrino (W), VI! In Vcrrem (70), Pro do conformar-se com a disciplina — "right or vvrouj',, • :/
leoe Manitia ."icn lip Império Cnci 1'tmipei ((JG), De lege agraria party" — dos partidos políticos. Começou a carreira i ,t:.;.i
(63), IV In CaÜUnam ((i:!), rro Miirrna (63), Pro Scstio (56), democrata. Os sete discursos contra o governador coini:..»
Pro Rabirki Póstumo (54), Pro Milonc (52), Pro Marcello (46),
Pro l.igario (<l(i), Pm Dejolaro rege (45), XIV Philippix:aê Verres ainda são libelo e defesa de reivindicaçoc^s piirin-
(44-43?; b) forenses: Pro Sexlio Roscio Avicrino (80), Pro Cae- lares. A arasaça da revolução social leva-o para o "ci:niro";
cina (69), Pro Cornelio SuDa (62), Pro Archia •poeta (62), Por naquela época, proferiu os famosos discursos ciintt i o aünr-
Caelío (56). Obras teóricas: De oratores libri III (55), Brutua
sive de claris oratoribu& (46), Orator ad Brutum. quista Catilina. Depois, Cícero é advogado d.a liurgu.^sía,
Obras íilosófloas: Somnium Scipionis, De legihus (52-46), De que se conformara com a ditadura l('tn]ior,ivia. i^l.üiora os
jinibns bonorum et malorum (45), Acadêmica (45), Tusculanae
ãisputationes (45-44), De natura deorum (44), Cato maior seu
seus discursos mais artísticos, como Pro Milonc: laia, pe-
de senectute (44), De ãivinatione (44), Laelius seu de amicí- rante ouvintes cultos, contra os ilcinnyov^os violentos da
tia (44), De officiis (44). rua. Mas quando a diladur:! s;' ,-dia aos dcii-i-: cralPS para
Cartas: — Ad familiares libri XVI (63-43), Ad Atticum libri estabelecer o iftia!iiarisnío, então o intelectual Cícero lan-
XVI (68-43), Aã Quintum fratrem libri III (60-54).
Edição princeps. Milão, 1498; edições por Manutlus, 1540/1546, ça-se na oposiç.ão corajo:;;a das quatorze Filípicas contra
Ernesti. 1737, Orelll, 1826/1830. — Edição crítica por C. F, W. Marco Antôaio. Caiu como vitima das suas convicções pou-
Mueller, 9 vols.. Leipzig, 1880/1896; edição dos discursos por A. co coerentes, mas sempre honestas.
C. Clark e W. Peterson, Oxford, 1905/1918; edição das Ad fami-
liares por L. C, Punser, Oxford, 1901/1903. Cícero era um grande trabalhador. Em três anos de
G. E. Jciins: TJic Li/c anã Lcllcrs o/ Marcus Tullius Cícero.
ócio forçado pela ditadura, escreveu verdadeira biblioteca
London, 1887.
G. Boi.ssicr; Cicéron et ses amis. 14.'' ed. Paris, 1908. de escritos filosóficos, que revelam um conhecedor per-
T. Peterson: Ciccro. A Biography. Berkeley (Calif.), 1920. feito da matéria. A obras como Acadêmica e Tusculanae
L. Laurand: Ètudes sur te xtyle des discours de Cicéron. 2.^ ed.
2 vols. Paris, 1925/1926.
ãisputationes devemos grande parte dos nossos conheci-
E. Ciacerl: Cicerone e i suoi tempi. 2 vols. Roma, 1327/1929, mentos da filosofia grega. Outras são obras de compreen-
F. Arnaldi: Cicerone. Bari, 1929. siva sabedoria humana — como Cato Maior seu de Senectu-
E. Costa; Cicerone giureconsulto. Bologna, 1929.
L. Laurand; Cicéron, sa vie et son ceuvre. Paris, 1933. te, Laelius seu de Amicitia e De Oííiciis — que influencia-
114 OTTO M A R I A CARPEAUI HrsTÓniA DA LITERATURA OCIDENTALI 115

ram profundamente a ética cristã e a moral leiga moderna. no". Talvez não chegasse a t a n t o : Cícero foi sempre alvo
Contudo, Cícero não é um filósofo profundo. Assim como de discussões e objeto das apreciações mais divergentes
na política, não sabe decidir-se entre as ideologias, todas (*). É o destino do ideólogo incoerente, mas também o
exigentes e demasiadamente dogmáticas. Abraçando o cep- destino do hommc de lettres fora dos partidos, do inte-
ticismo moderado da Academia Nova, não rejeita porém lectual independente.
inteiramente a religião tradicional, interpretando-lhe o Independência mais segura, Lucrécio (") encontrou-a
credo como suma de símbolos de verdades mais profun- na contemplação da Natureza. Mas não era contemplação
das; levando a vida despreocupada de um epicureu culto desapaixonada, nem era Lucrécio um homem feliz. Virgí-
e abastado, é no entanto capaz de afirmar sinceramente a lio erigiu uni monumento ao amigo, nos belos versos que
moral estóica, ao ponto de morrer assim como ela o exige. celebram a "felicidade de quem pesquisou as causas das
Afinal, Cícero, sem criar um sistema filosófico, criou a coisas" e "afastou o medo supersticioso do Fado e do In-
"filosofia", a atitude dos intelectuais em muitos séculos. ferno" :
E de outra maneira, mais coerente, não teria sido possível
introduzir filosofia política na política romana. Só en- "Felix qui potuit rerum cognoscere causas
quanto não se reconhece a natureza profundamente imoral, Atque metus omnçs et inexorabile fatum
porque sem espírito, da realidade romana, as teses de Cí- Subjecit pedibus strepitumque Acherontis avari."
cero parecem lugares-comuns brilhantes de um advogado
Esse encômio monumental não é, aliás, muito exato.
profissional. Não é mero declamador. Com elogios des-
No vencedor do Fado, Virgílio idealiza o herói da sua
mesurados ao seu constituinte e acusações maliciosas ao
própria religião estóica. Lucrécio, porém, não tem reli-
adversário, engrandece a importância das causas defen-
didas, porque o orador parlamentar está acostumado a li
4) Th. Zlelinskl: Cícero im Wandel der Jahrhunderte. 4.» ed. Lei-
reconhecer em pequenas interpelações e apartes a atitude pziB. 1929.
do inimigo e mudanças de situação, talvez de importância h) T i t u K I,u<•I•l•lill^ C:iMi;;, <:. 0 7 - 54 ft. C .
histórica. Cícero sabe observar. Como todos os conserva- JJc riTtnii liaIuni.
dores, é bom psicólogo. A sua compreensão dos fatos po- Edlt.-ún inírirrii^. Tti-c:;ciii, M7:i; (-(lições cviticas por K. Líichmatin
185n. e I!c!-ii:iy;; IBlía.
líticos é muito superior à sua atitude algo tímida do Fdiçücs riioiiciniif; |nii- C. ruUKSani, 4 vols,, Torino, 1R96/1898, por
homem de letras em face de demagogos e militares violen- :i. Muiir», :; vols., Ciimbiidüe, 1903/1905; por H. Diels, Berlln.

i
tos. A sua psicologia lhe ensina o uso eficiente da ênfase; 192;j; por A. Ernout e l.. Robin, Paris, 1925.
C. B. M:i.!-(ha: Le poème de Lucrcce: inoralc, religion, science.
mas nunca é vulgar ou fútil. E quando não precisa do 4.=' ed., Paris, 1885.
efeito retumbante, como nas cartas particulares, escreve o F. A. Lance: "Das Lehrgcdicht des Titua Lucretius Canis". <In:
latim mais elegante, mais fácil e coloquial. O crítico inglês Ge.schichte ães Materialistnus. 6." ed. Vol. I. Leipzig, 1905.)
I. Mas.son: Lucretius, Epicurean and Foet. 2 vols. New York,
I . W . Mackail, respondendo às acusações da historiografia 1907/1909.
alemã contra o retor romano, observa que a língua de Cí- G. SantHyana: "Lucretius". (In: Three Phüosophical Foets. C&IÍÍ-
cero é a língua da literatura romana, dos Padres da Igreja bvidfíe (Mass.), 1910.)
E. Turolla: Lucrezio. Roma, 1929.
ocidental, da Igreja medieval, da Renascença, e portanto, O. Regenbogen: Liicrez, seine Gestalt in seinem Gedicht. hei-
indiretamente, a nossa própria; "a língua do gênero huma- pãg, 1932.
O. Tescarl: Lucresio. Roma, 1939.
116 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATUHA OCIDEINTAL 117

gião; é materialista, epicureu. Mas o poeta distingue-se Com Cícero e Lucrécio acaba uma fase decisiva da
dos epicureus prosaicos pelo fato de que a sua própria literatura romana: a tentativa de introduzir espírito fi-
irreligião se transforma em religião pela poesia. Manilius, losófico na política ou na religião de Roma não foi, de-
quase seu coiitempoiâneo, autor de um poema didático pois, repetida. A liteinlura romana volta-se para o indivi-
sobre Astronômica, é um crente no sentido divino do Uni- dualismo algo cvasionista que lhe convém, produzindo uma
verso; a sua fé não lhe insjsira, porém, o grande pathos com série admirável de poel.is líricos, poetas menores, sim, mas
que o descrente Lucrécio descreve os sofriroerilüs dos ho- por isso mais pcrlo dn poesia lírir,-i moderna do que qual-
mens e dos animais, e os angustiosos desesperos do sexo quer pooia lírico ;;rego.
insaciável. Manilius sabe rezar; Lucrécio chega a compor Catiilo C ) , o mais velho entre eles, é o maior. Os seus
rezas, não importa que sejam dirigidas às forças cegas C0!?tempoi\U".eos sentiram isso de maneira imiilo se:;iíra:
da Natureza e ao espírito do mestre Epicuro. Cícero, o critico literário da burguf;sia liuxlei.ida, indi;;na-
O próprio Lucrécio é um mestre. De Rcruin Nutura é va-se contra esse poeta "moderno", Hceüric^so c moder-
um poema didático. Lucrécio pretende er-sinar, conveíicer. nista. Era preciso conhecer bem a poesia grej',a jjara
Fala da teoria atoniJí--tica, (1;Í pluralidatíe dos iiuriulcs, da chegar a esse julgamento; porque a comparação com os
cosmologia, aiiLropülü;;ia e sexu.-ilidiule, terremotos, en- fragmentos conservados da poesia gre;',a revela a (Jcpen-
chentes, viilci^ics c outr()s l'eno:i.U'nos (l;i NaUirc/a que se dência do poeta romano; a originalidade não é o seu lado
explicam de maneira cieiililica, c cujas coiu^eqüénvias fa- mais forte. Parece até decadente, r a s suas miniaiiiras cin-
tais não jiisLificairi a sujjerstição, da qual tiram proveito zeladas da vida amorosa de um jovem ÍÜÍ;;!ocrala que leva
os sacerdotes. Em Lucrécio eucontrau;-se quase todas as uma vida boêmia sem trabalho, fora da politic;!, pe';:;üiulo
teorias do positivismo científico. Seria um grande eru- só em Lésbia; e essa T^csbi-i p:irei;i.' uma .-im.ril; ocnven-
dito, se não fosse um grande poeta. Não pensam assim os cional, como quídqucr (lutr.i dos pocius díi roiir,,i (.'rótica.
idolatras do latim clássico; porque a língua de Lucrécio é Mas n."io é assim. N<'m ;.em]n<' (';i(ul(i clübor,! a forma.
dura, intencionalmente arcaica. Mas o seu verso é de uma Às vezes, f.ii.i cm lirciio cslllti ci)lo[[uia! •— um crítico
energia incomparável; e os pensamentos mràs secos trans- fr;rr.c('s l(.:iiii)i IMI Mui:;.rt c ;'is vr.v/s cscrqirm^bs ir^ia^rens
formam-se-lhe em imagens sugestivas e, às vezes, cheias iiics])'.Tri(l.is (I-, 'lii/. noturna"', li o autor da famosa expres-
de paixão. Lucrécio não era um homem feliz. Sentiu com são "ÜJJ cl , ' u i o . - . " conhece os segredos psicológicos do
todas as criaturas torturadas, e sua força de condenar o air.or. C;'.ido é uni ap:^ixonado. Lésbia é uma mulher real
Universo malogrado não é menor do que a paixão acusa- qno o fíz soíi er amargamente. As poesias dedicadas a ela
tória de Dante. Assim como o cristão herético Milton está
ligado pela simpatia intima a Satanás, assim o materia-
lista herético Lucrécio está ligado aos deuses condenados, 0) Caius Valerius Catullus, 87-54 a. C.
Edição prmceps é a Aldiiia de 1502; ediçõeíí por Muretus, 1554,
pela desesperada angústia. Por isso. De Rerum Natura é, e Scalirrcr, 1577. — Edições modernas por R. Ellis, 6.'' ed., Oxford,
entre todos os poemas didáticos da literatura universal, a 1937, e por W. Kroll, Leip.-iip:, 192:Í.
A. Couat: Êtude sur CatiiUe. Paris, 1875.
única obra de poesia autêntica: obra de lirismo sincero, O. Weinrelch: Die DisLichen des Catullus. Leipzig, 1926.
do poeta mais original em língua latina e do poeta mais T. Franlí: Catullus and Horacs. New Yorlí, 1928.
moderno da Antigüidade. E, V. Marinorale: Uuliimo Catv.Uo. Napoii, 1952.
L. Ferrero; Inlcrpretazioni di CatuUo. Torlno, 1955.
118 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL U9

constituem ura ciclo; são "poemas de ocasião", no sentido ca-o. É um decadente. Complica os assuntos com multidão
da expressão de Goethe, nascidos, sem artificio, de uma de alusões mitológicas, perde-se em confusões sintáticas;
paixão poderosa, Catulo domina todas as modulações: a sua linguagem é a mais obscura e difícil de todos os poe-
desde a alegria ébria do canto de núpcias — tas romanos. Só quando, depois de havermos lido uma imi-
tação genial de Propércio, como são as Elegias Romanas,
"Hymen, O Hymenaee, Hymen ades, O Hymenaee!"
de Goethe, voltamos aos versos do romano, é que desco-
até a melancolia desesperada perante a certeza da noite per- brimos a flama da sua paixão, mais violenta que a de qual-
pétua que nos espera: quer moderno:
"Nobis, cum semel occidit brevis lux, "Cynthia prima fuit, Cynthia íinis erit."
Nox est perpetua una dormienda."
Propércio é artista; menos nas tentativas de solenes
Catulo é um poeta muito humano. A êle também, nada elegias patrióticas — essa tentativa um tanto estranha do
de humano foi alheio, e defendendo-se contra a acusação poeta erótico explicar-se-á mais tarde — do que na mú-
da licenciosidade ("mais infeliz" o poeta se sente do que sica extraordinária das suas palavras. Versos como os da
decaído) — Elegia I só se encontrarão em Virgílio.
"Non est turpe, magis miserum est" — Enfim, quanto a Tíbulo (*), é forçoso confessar que
não somos capazes de formar uma idéia bem clara da sua
revela a sua condição humana. Catulo é, no primeiro século
poesia, Dos seus quatro livros de poemas, mal se conservou
antes da nossa era, um poeta moderno. É, entre os poetas, o
uma dúzia de poesias, misturadas com produções alheias
primeiro que se comove com a paisagem. As águas azuis
que constituem o "Corpus Tibullianum", objeto de estudos
do Lago di Garda evocam-lhe os dias da infância feliz, e
intermináveis dos filólogo». É coiifnso como Propércio,
a solidão melancólica da sua vida em Tibur lembra-lhe a
mas muito mais suave; Konsard e todos os classicístas o
sombra do irmão morto, ao qual dedicou a mais bela das
preferiram ao "ardoris noKtri poeta". Tíbulo é, entre os
canções de despedida para sempre:
elegíacos, o mais elegíaco.
" . . . . atque in perpetuum, frater, ave atque vale." A injustiça evidente da preferência dada a Tibulo ex-
Como um irmão, o leitor modernc sente o poeta romano plica-se pela modificação semântica que a acepção da pa-
Valério Catulo. lavra elegia sofreu. Propércio é elegíaco; mas não é "ele-
Dos outros elegíacos romanos, só Propércio (') se com- gíaco" sentimental. Com mau gosto infalível, a poste-
para um tanto a êle. A imitação dos modelos gregos sufo-
8) Albius Tibullus, c. 54-19 a. C.
7) Sextii.s Propertius, c. 47-c. 15 a. C. Edição princeps por Puccius, 1502; Edições criticas por J. P.
Edição princeps, Veneza, 1572; edições críticas por J. Phillimo- Postgate, 2." ed., Oxíord, 1924, e por J. Calonghi, Torino, 1928.
A. Cartault: Tibulle et les auteurs du Corpus Tibullianum. Pa-
re, 2.^ ed., Oxford, 1907, e por D. Paganelli, Paris, 1929. ris, 1909.
F. PJessis: Études critiques sur Properce et ses élegies. Paris, 1886.
W. Schoene; Be Propertii ratione fábulas adhibenãi. Leipzig, K, Witte: TibuU. Erlangen, 1924.
1911. M. Schuster: TibuUstudien. Wien, 1930.
A. Lapenna: Propersio. Firenze, 1951. V. Ciaífi: Leitura ãi Tibiülo. Torino, 1944.
120 OTTO MAUIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 121

ridade elegeu Ovidio, o mais sentimental entre os ele- de qualquer affairc de ícmwe, para a região bárbara do Mar
gíacos romanos, excessivamente sentimental porque desi- Negro, mandou para Konia suas elegias sentimentais: as
ludido pela própria fraqueza, e conferiu-lhe uma glória Tristes e Epistolae ex Ponto. São comoventes. Mas Ovi-
póstuma sem par. "Sentimentalismo é sentimento, compra- dio não é um poeta séiio. Nélc perdeu-se, pela ambição do
do abaixo do preço" — a frase de Meredith aplica-se bem mitologismo falso, um notável poeta ligeiro, talvez um hu-
a Ovidio ('*). morista à maneira de Ileinc ou Musset. Contudo, não são
A diversidade das suas obras revela o virtuose. Sabe nomes desprezíveis êstcs, eiiil>ova nfio coiivcnha colocá-los
fazer tudo. Cria, nos Amores e nas Heróides, cartas iina- ao lado de Coethe e Kacinc. Miv.: U}\ jiiiUnmcnle isso o que
p;inárias de amantes famosos, uma "teoria do amor" que aconteceu com Ovidio. A postcrid;i(le loinoiio n sério: já
o lê nas escolas a mocidrale, há quase áu/x) séculos. Os
exercerá influência profunda nos troubadonrs da Idade
meninos não lhe compreendein o erolismo; os jidullos n;io
Média. Cria até, na Arte de Am<ir, uma verdadeira estraté-
lhe compreendem a malícia. Do outro mundo, Ovidio ]io-
gia da conquista erótica, e logo depois, nos Remedin Amo-
deria repetir o que gemeu entre os báiliaros do Oiienlc
ris, a estratégia da "libertação". Os Fíistos acompanham
onde ninguém lhe compreendeu a língua:
com pequenas poesias narrativas o calendário das festas ro-
manas; ao lado de idilios encantadores, aparece;t.i versões
"Barbarus hic ego sum, quia non intclligor iilli."
fastidiosas de episódios patrióticof; — é pela ficji^iifala vez,
depois de Propercio, que encontramos isso. As Metomoiío- Ovidio é hoje algo mais apreciado do que ainda liá
ses regalam-nos com uma multidão de contos mitológicos, 30 ou 50 anos. É um artista elegante, um p.ini;isi;iiio á ma-
bem conhecidos, conhecidos até de mais: Vcnus e Adõnis, neira de Banvilie. Até se descobriiani "vci dadi s" na sua
Faeíonte, Píramo e Tisbe, Perseii e Andrômeda, Eco e poesia mitológica; no:, FnstoK cxisicm (r:i(li(;(ics ;uiU'Titicas
Narciso, ícaro, Níobe, Orfeu, Midas, Dáfnis, Filêmon e da antiga religião roai;.n;i, ;iiiti'S dii ;•,; fci.-.i., . D ; ;)].•-,:.;:, iiao
Bucis, Polifeno e Galatéia. Ovidio contaminou a litera- foi fátil perceber is:;o ])(nqi[c o purl.i iiiiiiul.iüo l.iía sem-
tura univcri^al, fornecendo-lhe assuntos tediosos; enfim, o pre a lingu;i;',ein d.'i i.ii.i piiipíi.-i <-])<)c:i. Nao loi ]>t)r acíiso
tédio torrio;i-íc seu próprio destino. Exilado, por motivo que Ovidio v^í loitiou o [i(.f!,-i ii;;iis liilo <la I(.l;id<j Média:
a mr-jiicira au;u-.i i.nica dos iníxíicvais, vestindo os dej.scs
e heróis aníij.os de tri';jes da sua piópria época, já é a nia-
9) Piilüins Ovidlii;; Nn::o, 'IH :i. C. - n M ' í ri. C.
AmorCK: lln-o^iUis; Ais ÍUIUIIDIIII; HeincdUi araoris; Fasíi; Me- neira de Ovidio, que poderia ser interpretado, neste sen-
tamorphosciu; '!'ri.'it'i(\: F/úslul/if r.t !'(iiiti>. tido, como "o mais moderno" dos poetas da Antigüidade.
Edição j>riiií-rps. K.I)NI;I, M / I : (di,-iM'.'; i-i-it,ic,r: ptn- J);i!url Ilcin- A desproporção ovidiana entre assunto e estilo é um fe-
Sius, 1()2!), c Bui-niiiliii. 172/. \']iMi::'\n iii(i:in-ii;i jinj' J. 1'. Postfí.l-
te, Oxford, 1898. nômeno geral da literatura romana; é reflexo da despro-
J . J . HarLmann: De Ovidio poc.Ui. j.vyíW^i. i;)()r>. porção entre a realidade romana e a literatura latina. As
C. Bipert: Ovide, puèle de ramour, dcs dietix ei de Icxilc. Pa-
ris, 1921. tentativas de poesia patriótica em Propercio e Ovidio são
E. K. R a n d : Ovide and fíis Injhicnce. Bcston, 1925. sintomas de uma crise aguda dessa convivência, daquele
E. M a r t l n i : Einleitung zu Oviã. P r a h a , 1933. momento transif;ório que foi considerado pela posteridade
H. F . F r a e n k e l : Oviã, a Poet Between Two WorUls. Berkeley,
1945. como época de apogeu da literatura latina; a "época augus-
122 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 123

tana". Por isso, aconteceu que os lugares de maiores poe- língua e de todos os metros da poesia grega, criou um poe-
tas romanos, devidos a Lucrécio e Catulo, couberam, na ta autêntico. Horácio é poeta lírico à maneira de Heine
tradição dos séculos, a Horácio e Virgílio. ou Musset, poeta satírico à maneira de Pope, poeta mora-
O restabelecimento da paz por Augusto parecia tor- lista-político à maneira de Carducci; às vezes, consegue
nar possível a conjunção dos esforços políticos e cultu- o equilíbrio pelo qual se distingue Andrev/ Marvell, o
rais. A proteção que Mecenas deu às letras é uma tenta- grande horaciano inf^lcs. Não é o maior, mas o mais com-
tiva de conseguir artificialmente a unidade das realidades pleto dos poetas romanos.
material e espiritual, própria dos gregos. O Estado ro- Os quatro livros de Odes constituem a coleção mais
mano esperava os seus Homeros e Píndaros. A literatura variada de poesias. Desfrutador alegre e até licencioso da
latina, porém, por força das suas origens, é individualista vida, o amante — "nympharum fugientum amator" — de
e elegíaca. A dois grandes poetas menores, Horácio e Vir- várias Pirras, Lídias, Leucônoes, Glicérias, Cloes, Fílis,
gílio, coube a tarefa de realizar uma poesia maior. A con- e também de diversos meninos, celebra o vinho e a dança
seqüência foi o artificio sublime: o classicismo. ("Nunc est bibendum, nunc pede libero pulsanda tellus"),
Horácio ('") é, talvez, o maior entre os poetas meno- mas sente ligeiros acessos de melancolia ao pensar na ins-
r e s : sensível sem sentimentalismo, alegre sem excesso, es- tabilidade das coisas deste m u n d o : "Carpe diem!", reco-
pirituoso sem prosaismo. Para falar em termos da filo- menda, porque "Eheu fugaces, Postume, Postume, labun-
sofia antiga, é um eclético, como Cícero e quase todos o» tur anní". Sempre o atrai a retirada para a vida pacifica
romanos: dado ao gozo epicureu da vida, e capaz de ati- nos campos ("lUe terrarum míhi praeter omnes angulus
tudes estóicas. Verifica-se certa ambigüidade em Horá- r i d e t " ) . Os antepassados — pensa o romântico — viveram
cio, e esta, aliada ao domínio perfeito e até virtuoso da assim — longe dos negócios da cidade, dedicados aos idí-
licos trabalhos rurais:
10) Qulntus Horatius Flaccus, 65-8 a. C. "IJeatus ille qui procul negotiis,
Carminum libri IV; Epodon liber; Sermonum libri II; EpistolU'
rum libri II. Ut prisca gens mortalium,
Edição princeps, 1470; revisão crítica do texto por Bentley, l l l l , Paterna rura bubus exercet suis."
e Orelli, 1837/1838.
Edição crítica por E. C. Wickham e H. W. Garrod, 8.» ed., Ox- As alusões à "gens prisca" são significativas. Quando Ho-
ford, 1941.
L. Mueller: Horace. Paris, 1880. rácio fôr chamado ("Poscimur!") a poetizar a realidade
W. Y. Sellar: Horace and the Elegiac Poets. Oxford, 1B92, romana, irá encontrar versos de patriotismo imperialista.
J. F. D'Alton: Horace and His Age. London, 1917. Mas o verdadeiro Horácio não está aí. E m contradição fia-
G. Pa.squall: Orazio lírico. Flrenw, 1820.
A. J. Campbell; Horace. A New Interpretation. London, 1924. grante com a poesia de sentido coletivo celebra a atitude
E. H. Haight: Horace and His Art of Enjoyment. New York, 1925. da elite culta, odiando os plebeus vulgares e mantendo-os
Th. Birt: Horaz's Lieder. Leipzig, 1925. ao longe — "Odi profanum vulgus et arceo" — e, quando
A. Dupouy: Horace. Paris, 1928.
N. Terzaghi; Orazio. Roma, 1930. muito, aproxima-se do ideal estóico, do homem puro e ín-
E, Turola: Orazio. Flrenze, 1931. tegro — "integer vitae scelerisque purus", profetizando
L. P . WUkinson: Horace and His Lj/ric Poetry. Cambridge, 1945. que até as ruínas do Fim do Mundo o encontrariam indo-
W. Wili: Horaz und die augusteische Kultur. Basel, 1948.
K. Fraenkel: Horace. Oxford, 1957. mável e indomado:
124 O T T O ]\1 \iiiA CARPI;AIJX HisTÓniA i>,\ L I T E U A T U R A OCIDENTAL 1 '*''•

" S i f r a c t u s i l l a b a t u r orbis, L U Í S de León e Quevedo, Ronsard e L a Fontaine, M a r -


Impavidum ícrient ruinae." vell. P o p e e ü o e t h e . Criou u m a infinidade de versos
M a s H o r á c i o n ã o n a s c e u p a r a isso. D o s e u p o s t o d e obser- m e m o r á v e i s , e x p r e s s õ e s i n e s q u e c í v e i s ; e se se t o m a r a m
vação n a vila n o c a m p o , p r e f e r e s a t i r i z a r os c o s t u m e s d a frases feitas c lup.ares-coinnns, n ã o é s u a culpa, e s i m a
c a p i t a l : p r i m e i r o , n o s Epodos, cora m o r a l i s m o a m a r g o , sua glória, o s e u " m o n i i n u ní um a c r e p e r e n n i u s " . H o r á c i o
m a i s t a r d e , n o s d o i s l i v r o s d e Sátiras, c o m s o r r i s o amável, c r i o u u m d i c i o n á r i o ijoéiico e nnia liii;;ua p o é t i c a c o m u n s
jzombando d o s a v a r e n t o s , devassos, p a r a s i t e s , loquazes, s e m à h u m a n i d a d e o c i d e n t a l infeira.
f e r i r a f u n d o . A s Epístolas afirmam a sabedoria do " N i l Virf^ílio m o r r e u a n t e s d e It-rinin.ir a ú l i i m a r e d a ç ã o d o s
a d m i r a r i " , o a famosa A r t e P o é t i c a , Ad Pisonern, e n s i n a a v e r s o s d a Eneida; e d a obra hi:;tóri i:.! d e T i t o l.ivio ('•'),
d o u t r i n a d o c l a s s i c i s m o m o d e r a d o : " E s t raodus i n r e b u s , Ab urbe condila, só p o s s u i m c s fr,it_Mnt;iilüS: (JS livros 1 —
suDt c e r í i d e n i q u e f i n e s " . D e p o i s d e t u d o isso, H o r á c i o X e X X — X L V , t r a t a n d o d o s a n c s 753 ~ 7.'):) e .:i8 — 167
a c r e d i t a t e r e r i g i d o a si m e s m o u m m o n u m e n t o p o é t i c o e'a i.iGssa e r a , e a i r d a c o m ]a''Uiias. I s s o n a o icin ;;r.! ; d e
para sempre: i m p o r t â n c i a , p o r q u e a s CÍV::M obras, n a s c i d a s d o mesníu 1;;;-
p u l s o d e i d e a l i z a r a h i s t ó r i a rorr,:'na, se c o m p l e t a m . IC d i -
"Exej;i niomimentum aere percniiius." fícil i m a g i n a r p e r f e i ç ã o njaior q u e o s v e r s o s vir;;iliaiio:.; e
T e r á j-azão? H o r á c i o é u m a n a c r e ô n t i c o , u m e p i c u r e u l i - q u a n t o à s l a c u n a s era L í v i o , a p e r d a d a h i s t o r i o g r a l i a i-.io
f^eiro, 111'j irò'.:t':o [loJido e eíçp.ante. O r;randc mor.-jlismo é mr.ito s e n s í v e l . L í v i o n ã o é u m a f o n t e d e p r i m e i r a or-
p o l í t i c o n ã o c o BCvi lado n-ais f o r t e . K me-.os |:oeta d o dem. É i n e x a t o , n ã o t e m e s p í r i t o c r í t i c o , a c e i t a leiu!:;;; c
q u e n r í i s t a , v i r t u o s o adn;.irá.'íl d a c o n s t r u ç ã o de p c e m n s , i n v e n ç õ e s p a t r i ó t i c a s , vê t u d o d o p o n t o d e visia d e n m
da e u r r i t i n i a d o verso, d o s m e t r o s c o m p l i c a d o s . N ã o è g ê - a r i s t o c r a t a r o m a n o , n ã o t e m pcrr.pcctiva h i s t ó r i c a . Gosta
n i o íitâiiico. É u m p o e t a c u l t o , li^^eiramente e p í g o n o , l i g e i - de e n g r a n d e c e r os acontc;cimenU.is, como se a eiiladc.íinha
raiTiente r o m â n t i c o . E n ã c s ó CÍÍÍÍO, m a s q u e s a b e v i v e r , bélica, m e i o s e l v a g e m , d o s p r i m e i r o s t e m p o s já t i v e s s e
e q u e s e r e t i r a , era t e m p o s d e g u e r r a civil e p e r t u r b a ç ã o s i d o a " U r b s " d o Iiniiério. S ã o l e m d t a d o s dessa t e a t r a l i z a -
social, p a r a a v i l a n o cr.moo e p a r a a poesia. E s t a r e m o s ção os famosos e p i s ó d i o s q u e e o n i i e c c m o s da escola — R ô -
em p r e s e n ç a de u i n c v a s i o n i s t a ? N ã o . Ê i e é a n t e s u m g r a n - m u l o e Kcmo, o r a p t o d a s S a b i n n s , c s H o r á c i o s e C u r i á c i o s ,
d e egoísta. S ã o a p e n a s os seus p r a z e r e s e a s s u a s m e l a n c o - a m o r t e d e L u c r é c i a , a r e v o l t a d e C c r i o l a n o , a v i r t u d e cí-
l i a s q u e o p r e o c u p a m . N a s tctrjpeatades d o raundo lá fora, vica do C i n c i n a t o , A p i o e V i r g í n i a , a i n v a s ã o d o s gálios,
H o r á c i o c o n s e r v a a cabeça c o b o m s e n s o : o q u e i m p o r t a Anib-r.l " a n t e p o r t a s " e e m C á p n a , a m o r t e d e S o f o n i s b a
é o h o m e m , c i n d i v í d u o . N ã o é romario t i j u c o , m a s c p o e t a e a obstinação d e Catão. A idealização da história romana
romano típico.
H o r á c i o é o i)cc',n ctiMo e n t r e c píirn os ftoctas c u l ' c s ,
12) Titus Livius, 59 a. C. - 17 d. C,
u m " p o e t ' s p o e t " . D a í a s u a i n f l u ê n c i a i m e n s a n a poesia Edição princeps, 1460. — Edição por I. N. Madvig, Kioebenliaven,
ciilta d e t o d o s os t e m p o s ( " ) , c m A r í c s t o c P;;ri.u, F r a y
I 1831/1876.
Edição crítica por R. S, Conway e C. F. Walters, 3.^ ed., 4 vols.,
11) M, Mcniíndoz y POJUJO: Horácio en Espana. 2 vols. Madrid, 1835, 1 Oxford, 1936,
E. Stcroplinger: Das Fortlehen der Jfora&ischcn Lyrix scií der W. Soltavi: Livius' Geschichtswerk. Leipzlg, 1897.
Rcnaissancc. Leipzig, 1906. H. Tí!ine. Essai sur ntc-Live. 7." od. Paris, 1904.
G. Showerman: Horacc and His Jnjluence, Boston, 1922. H. Boniecque: Tite-Livs. Paris, 1933.
126 OTTO MARIA CARPEAÜX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 127
corresponde o estilo solene, às vezes poético, quase sem- o gênio do idílio realista não conseguiu o realismo homé-
pre monótono. Lívio escreve o comentário em prosa da- rico; só o idealizou. Mas quase criou, com isso, uma poesia
quelas odes patrióticas. Na escola, serve ainda como es- ideal.
pelho de feitos do mais alto patriotismo; e tornou-se mo- Para provar a primeira parte da tese — o realismo ina-
delo internacional quando a historiografia moderna co- to de Virgílio — não é preciso afirmar a autenticidade du-
meçou a escrever a história nacional das pátrias euro- vidosa do idilio "Moretum", descrição exata da preparação
péias. Contudo, não é justo qualificar a história Ab urbe de uma refeição de camponeses. Basta comparar as Bucó-
condita como "epopéia nacional em prosa". Livio inventou licas e as GeÓTgicas. As Bucólicas, obra da mocidade, já dão
só onde não havia fontes; teve de inventar, porque os ro- testemunho da predileção de Virgílio pela poesia rústica
manos haviam esquecido a sua própria história primitiva. ("Fortunatus et ille deos qui novit agrestes"). Mas Virgí-
E o moralismo de Lívio torna-se suportável pela ligeira lio não é homem dos campos; tem apenas a nostalgia do
melancolia de um espírito aristocrático que sabe decadente homem urbano pela vida rústica, que — no belíssimo ver-
a moral da sua própria época. Afinal, não pretendeu dar so "Deus nobis haec otia fecit" — lhe aparece como "ócio",
historiografia exata, mas uma história exemplar; não como o que é significativo. O estila corresponde a esse erro me-
foi, mas como devia ser. Fê-lo de maneira tão discreta lancólico: é melódico e altamente artificial. Virgílio é res-
que épocas posteriores puderam interpretá-lo de maneira ponsável pelas inúmeras éclogas da Renascença, com os
anacrônica, tirando das suas lendas os axiomas da mais seus pastores amorosos e as alusões a acontecimentos po-
alta sabedoria política. Não há outro historiógrafo que líticos que preocupam os poetas. Em comparação, o poe-
possa gabar-se de comentadores como Maquiavel, Víco e ma didático GeÓTgicas é realista num sentido elevado. Rea-
Montesquieu. A história ideal dos romanos transformou-se lismo classicista, talvez realismo clássico. Aí, também, não
em história ideal da Humanidade. estão ausentes as preocupações políticas: Virgílio faz pro-
paganda da reagrarização da Itália, pronunciando-se con-
Deste modo estranho, Lívio salvou-se pelo idealismo.
tra o latifúndio, para salvar a "justíssima tellus". Mas as
O mesmo idealismo prejudicou a poesia de Virgílio (^^):

R. Billiard: Vagricullurc ãans Vantiquité, d'après les Géorgi-


13) Publius Vergillus Maro, 70-13 a. C. ques. Paris, 1928.
Bucólica (43/37); Georgica (37/30); Aeneis. (A autenticidade R. Heiiize: Virgih epische Technik. 3.'* ed. Leipzig, 1928.
dos poemas pastorais MoreUiin e Culex é duvidosa.) O. Wili: Virgil. Zuerich, 1930.
Edição prínceps, Roma, 14(59. Revisão crítica do texto por l í e i n - T. Fiore: La poesia di Virgilio. Bari, 1930.
sius, 1664. L. H e r m a n n : Les masques et les vUages ãans les Bucoligues ãe
Edição crítica por Conirríton c Neltleship, 4." ed., 3 vols., London, Virgile. BruxeJles, 1930.
1881/1883. W. r . O t t o : Virgil. Leipzig, 1931.
Sainte-Beuve: Êluúe sur Virgile, 1857. (3.'' ed,, 1878.) A . - M . Guillemin: L'originalité ãe Virgile. Paris, 1931.
M. Y. Sellar: Virgil. Oxford, 1908. A. Rostagni: Virgílio minore. Saggio sullo svolgimento delia poe-
J. W. Mackall; Virgil and His Meaning to the Woj-lã o/ Today. sia virgiliana. Torlno, 1933.
Boston, 1922. W. F . J. K n i g h t : Roman Virgil. London, 1944.
T. R. Glover: Virml. London, 1923. V. Poesclil: Die Dichtkunst Virgils. Wien, 1949.
A. Ciartault: L'art de Virgile ãans VEnéide. Paris, 1926. J. P e r r e t : Virgile, l'hom,me et Voezivre. Paris, 1952.
J. H u b a u x : Le réalisme ãans les Bucoliques ãe Virgile. Liège, A, M. Guillemin: Virgils, le poéie, iartiste et le penseur. Paris,
1927. 1952.
HisTÓRiA DA LITERATURA OCIDENTAL 129
J28 OTTÜ M A R I A CARPEAUX
de que o romantismo descobriu o gênio na poesia popular
descrições da agricultura, da vida das árvores, da criação e de boêmios indisciplinados, a glória multissecular de
de gado, da apicultura, são de um realismo sereno, e só Virgílio empalideceu. Em comparação com o "gênio po-
parecem idealizadas a leitores acostumados a certa barba- pular" Homero, Virgílio foi considerado como poeta da
ridade da vida rústica, em outras regiões. Piá três milê- decadência, de falsa dignidade, incapaz de representar a
nios que o arado nao pousou na terra itálica. É uma pai- vida real. É verdade que Virgílio pertence a uma época de
sagem altamente humanizada, à qual Virgílio está sau- decadência; e c justamente por isso que não quer repro-
dando : duzir a realidade que lhe pretendem impor. É artista, in-
venta um mundo ideal, melhor, superior. Apresenta-nos
''Salve, magna parens frugum, Saturiiia íellus."
santos e heróis artificiais, porque não existem outros. Não
como romano, mas como intelectual romano, Virgílio é da
A esta "Mãe Itália" está dedicada a Eneida. Comparações
com Homero, provocadas pela imitação manifesta, não são, Resistência. Opõe ao caos moral da sua época os ideais
no entanto, convenientes. O espírito é diverso. O estilo do trabalho rústico ("Labor omnia vincit improbus"), da
"rápido, direto e ncbre" é substituído por certa dignidade justiça imparcial ("Parcere subjectis et debellare super-
melancólica e monótona; o espírito bélico, pelo civismo bos") e do amor ao próximo ("Non ignara mali miseris
c Sí.'n':o de iiisliça; o antropomorfismo, pela fria reiiíjão succurrere disco"). A idéia central da sua obra inteira
de listado. M:is Vir;'ilio é o (pu' líoiMcro nao foi c não é a utopia de uma "aaetas áurea": utopia romântica nas
podia licr: c :i)tis(.n. Um artisui incomp-üávcl do verso, Bucólicas, utopia social nas Geórgicas, utopia política na
da ninsica das palavras. As expressões poétic-ns do impe- Eneida. Sente, com amargura melancólica, a distância en-
riiiíit-mo ffnn-.no eíitão como que envolvidas no "altum si- tre esse ideal e a sua época crepuscular ( " , . . . cadunt, altis
lenliiirn" da rriúsica virgiliana. Sol e lua da Itália real le- de montibus, umbrae"). e qualquer acontecimento insigni-
vantam-se e põem-se — "fugít irreparabíle tempus" — so-
bre personagens pálidas e acontecimentos penosamente in-
I ficante, como o nascimento de uma criança, lhe sugere
logo esperanças in<U'finidas de um futuro melhor, como
ventados. A tarefa de inventar uma tradição oficial do naquele verso — "Maf;iuis ab integro, saeclorum nascitur
Império Augustano inspirou ao poeta uma utopia das vir- ordo" — da Écloga IV das Bucólicas. Então, aquele crepús-
tudes políticas dos romanos, quase já uma política cristã. culo melancólico aparece como aurora esperançosa de uma
A Idade Média cristã, encantada pelos amores de Dido e nova era, e o poeta pagão Virgílio, insatisfeito com a re-
Enéias, não viu esse aspecto de Virgílio; só Dante o adivi- ligiSü oficial e os sistemas filosóficos, ergue a voz como
nhou, após a derrota da sua própria utopia política — e um profeta no Advento. Com efeito, todos os séculos cris-
por todos os séculos depois ecoou o verso modesto e pro- tãos interpretaram a Écloga IV como profecia paga do
fético : nascimento do Cristo. Compararam-se as viagens mediter-
râneas de Enéias às do apóstolo Paulo, a fundação da Urbs
"Forsan et haec olíni meminisse juvabit." à da Igreja. Lembrou-se a unificação do Império Romano
por Augusto, o soberano de Virgílio, como condição in-
A Virgílio aplica-se, mais do que a outro qualquer dispensável da missão do cristianismo. A Idade Média não
poeta, a distinção de Schiller entre "poesia ingênua" e sabia explicar a profecia e o gênio de Virgílio senão trans-
"poesia sentimental". Virgílio não é nada ingênuo, e des-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 131
no O r i o MA 1(1 A (.Anri;At)x

formando-o cm feiticeiro poderoso, era herói de inúmeras nossa era, acreditava na possibilidade de penetrar na rea-
len<laK; em Daiitc, Virgílio já é o representante da "Razão" lidade hostil, retirando-se depois para a região na qual
pa{>n, não batizada, mas "naturaliter christiana", e ilumi- individualismo, intelectualismo, temperamento elegíaco e
nando todo o mundo latino e católico. Chamaram a Vir- resignação estóica se encontram. Mas explica-se que, sob
gílio "pai do Ocidente" ('*). o domínio de Tibério, Calígula e Nero, aquele individua-
Virgílio é "pai do Ocidente" num sentido muito am- lismo tome a atitude de oposição literária, substituindo a
plo. O seu ideal do "labor" está na disciplina dos monges oposição política, já impossível.
de S. Bento, união do trabalho nos campos e do trabalho O sentido político da oposição está claro em Lucano
intelectual; e o seu ideal do "otium" está na dedicação dos ('••'), que morreu como conspirador contra Nero. A Far-
humanistas à ciência desinteressada. Até a música dos seus sália é hoje pouco lida; já não se lêem as epopéias histó-
versos melancólicos ensinou a todas as épocas a transfor- ricas, e certos manuais chegam a considerar Lucano como
mação da angústia em arte. Homero é maior, sem compa- sucessor fraquíssimo de Virgílio. Nada mais errado. Ape-
ração; mas é Virgílio que nos convém. sar da diferença dos temperamentos, é Lucano de uma ori-
A posição de Horácio e Virgílio dentro da literatura ginalidade absoluta; foi o primeiro poeta que pensou em
romana é diferente da que ocupam na literatura universal. basear uma epopéia em acontecimentos históricos, até em
As inúmeras tentativas, em todas as épocas e literaturas, acontecimentos do passado imediato. Lucano descreve —
de imitar a ode solene de Horácio e a epopéia heróica de a intenção do súdito de Nero é manifesta — o fim da Re-
Virgílio, não foram, as mais das vezes, bem sucedidas. A pública Romana. O assunto histórico-político implica o
verdadeira influência dos poetas está na elaboração de um abandono do aparelho mitológico: neste sentido a Far-
tom poético finamente humano e expressivo, na sátira ho- sálin é uma criação siii gencris na literatura universal;
raciana e na écloga virgiliana. Na literatura universal, nem Voltaire teve essa corafícm. E Lucano é corajoso.
Horácio e Virgílio são os maiores entre os poetas meno- Ouna tomar atitude coiilia César, opondo-se ao consenso
res. Na literatura romana, são os últimos poetas "maio- do mundo c <)os séculos. O sou herói é o suicida Catão, o
res". Com êles, acabam as tentativas de poesia de interesse aeu pari ido é o rc|Hiblicano. A Fnrsália é um poderoso
coletivo. Desde então, toda a literatura romana está na F.ernião poli li co, a favor de uma causa já vencida, abando-
oposição. É possível interpretar essa oposição como re-
sistência da gente culta contra o despotismo dos Césares;
Gaston Boissier reuniu diversos estudos sobre escritores 15) Murcus Annaeus Lucaniis, 39-65 a. C.
romanos do primeiro século da nossa era, sob o título Pharsalia.
Edição vrinceps, Roma, 1469. Edições criticas por A. E. Housman,
Uopposition soas les Césars. Contudo, essa oposição não Oxford, 1926, e por J, D. Diiff, London, 1928.
é um fenômeno transitório nem meramente político; expri- A. Genthe: De Lucani vita et scriptis. Berlln, 1879.
me o caráter íntimo da literatura romana, que só durante F. Grosso: La Farsaglia dí Lucano. Fossano, 1901.
G. Boissier; Uopposition sous les Césars. 5." ed. Paris, 1905.
poucos decênios, imediatamente antes do começo da R. Pichem Les sources de Lucain, Paris, 1911.
E. Fraenkel: Lukan ais Mittler des antiken Pathos. Hamburg,
1927.
14) D. Comparetti: Virçilio nel médio Evo. 2.* ed. Firenze, 1896. R. Castresana; Historia y política en Ia Farsalia de Lucano.
Th. Haeeker: Virgil, Vater des Abendlanães. Hellerau, 1931. Madrld, 1956.
132 OTTO M A R I A CARPEAÜX

H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 133
nada p e l o s deuses, m a s por isso mesmo mantida p e l o espí-
rito d o n o v o Catão: mas a situação da "opposition sous l e s Césars" explica bem
que na sua vida a atividade literária e a atividade política
"Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni." estejam separadas, encontrando-se s6 no final, quando o p o -
l í t i c o obedeceu ao c o n s e l h o do literato e s t ó i c o , suicidando-
A qualidade de poeta retórico, cheio de argumentos s o f í s - se. D e n t r o da sua atividade literária e x i s t e separação se-
t i c o s e alusões eruditas, é o que afasta Lucano do g o s t o
m e l h a n t e : entre os escritos filosóficos e as tragédias. E s -
moderno — ou afastava, antes do advento do n e o g o n g o -
tas, as únicas tragédias romanas que existem, são obras de
r i s m o : Lucano, natural de Córdova, patrício de Góngora,
e p í g o n o ; v e r s õ e s fortemente retóricas de peças gregas,
é artista requintado a serviço de uma causa política. É u m
substituindo a vida dramática por e f e i t o s crassos, assas-
poeta da grande cólera, como p o u c o s na literatura uni-
sínios n o palco, aparições de espectros vingadores, dis-
versal, um satírico v i g o r o s o , u m mestre do desprezo al-
tivo. A indignação moral e a coragem política t ê m raízes cursos v i o l e n t o s , cheios de brilhantes lugares-comuns fi-
no seu credo estóico. Lucano é o primeiro estóico autên- l o s ó f i c o s ; até nas situações mais trágicas as personagens
tico da literatura romana — daí a sua l i n g u a g e m v i o l e n t a ; soltam trocadilhos espirituosos, de ironia cruel. R e c o n h e -
e é também o primeiro grande estóico de raça espanhola. cem-se, e m t u d o isso, certas qualidades do teatro espanhol;
Daí a sua influência profunda em a l g u n s espíritos de e Sêneca é espanhol, natural de Córdova, como L u c a n o e
elite da literatura universal. Lucano nunca foi o autor pre- Góngora. Parece-se mais com o intelectualista Calderón
ferido da maioria; mas, quando alguns dos poucos que o do que com L o p e de V e g a , sem possuir a força cênica do
admiravam o traduziram — Jaureguí na Espanha, R o w e na primeiro. Duvida-se da representabilidade dessas peças,
Inglaterra — surgiram grandes obras de arte. Há a l g o de para as quais talvez n e m e x i s t i s s e m teatros na Roma im-
L u c a n o em Corneille, e m u i t o em S w i f t . perial. Parecem antes destinadas à recitaçao em círculos
Lucano fêz uma tentativa de atentado contra N e r o ; literários, p o s s i v e l m e n t e na própria corte. Mas represen-
mas era e s s e n c i a l m e n t e homme de lettres, assim como o
próprio d é s p o t a . Sêneca (^*) é h o m e m da ação também;
I5I&, c as edições de Lipsiu.s, 1588, Gruterus, 1604, Gronovius, 1661.
Edições modernas da.s tragédias por R. Peiper e G. Richter, 2.*
16) Luclus Annaeus Seneca, 4 a. C. - 65 d. C. cd„ Lejpzití, 1921, e por L. Herrmann, 2 vols.. Paris, 1924/1926.
Escritos filosóficos: Dialogorum 1, Xll (DE providentia, De cons- R. Schreiner: Seneca ais Tragoeãienãichter in seinen Besiehun^
tantia. sapientis. De ira 1. III, De beneficiis, De consolatlone, De gen zu ãen griechischen Vorgaengern. Muenchen, 1909.
vita beata. De otio. De tranquillitate animl, De brevitate vitae. R. Waltz: ha vie de Sénèque. Paris, 1910.
De clementia) ; Quaestiones naturales; (124) Epistulae mora- L, Herrmann: Le théâtre de Sénèque. Paris, 1924.
les aã LuciUum. 0. Regenbogen: Schmerz unã Tod in den Tragoeãien ães Se-
Tragédias: Hercules furens; Troades; Phoenissae; Medea; Hip- neca. Hamburg, 1930.
•polytus; Oeãipus; Agamemnon; Thyestes; Hercules Oetaeus. -^ G. Przychocki: "Die metrische und lyrische Kunst in den Tra-
Uma décima tragédia, OctavXa, não é autêntica. goedien Senecas". (In: Bulletin de VAcaãémie Polonaise ães
Edição princeps dos escritos filosóficos, Nápoles, 1475; depois, Sciences et ães Lettres, Déc. 1932.)
editados por Erasmo, 1515, Muretus, 1585, Gruterus, 1593, C. Marches!: Seneca. 2.^ ed. Messina, 1934.
Lipsius, 1605. T, N. Pratt: Dramatic Suspense in Seneca and in His GreeJc
Edição princeps das tragédias, Ferrara, 1484; depois, a Aldina de Precursors. Prificeton, 1939.
Cl, W. Mendeir. Our Seneca. New Haven, 1941.
1. Lanna: Lúcio Anneo Seneca. Toríno, 1955.
134 OTTO M A R I A CARPEAUX HlSTÓRIA DA LiTEHATTJBA OciDENTAL 135

tações ocasionais nos teatros italianos modernos têm-lhes tima decadência dos tempos", e a necessidade de morrer,
revelado uma inesperada força de efeito no palco. sem temores, com este mundo:
O filósofo Sêneca é como se fosse outra pessoa. Es-
"In nos aetas ultima venit.
creve em estilo coloquial, embora com energia apaixonada,
O nos dura sorte creatos,
violando a sintaxe, acumulando as elipses. A moral que
Seu perdidimiis solem miseri,
recomenda ao seu correspondente Lucílio revela, uma vez
Sive expulimos! Aboant quaestus.
mais, o espanhol: é o estoicismo. Mas Sêneca está longe
Discede tínior. Vilae est avidus,
da imperturbabilidade estóica que professa. Está possuído
Quisquis non vult, muncJo socum
pela imagem da morte que em toda a parte o espia, e a re-
Pereunte, mori."
comendação permanente do suicídio, como saída defini-
tiva ("Non sumus in ullius potestate, cum mors in nostra As tragédias de Sêneca não merecem o desprezo em que
potestate sit"), é menos evasão do que tentativa de ven- caíram de há dois séculos para cá. Elas também são poe-
cer a morte pela própria morte: "Placet, pare, si, non pla- sia, e grande poesia, cujo eco se encontra em Shakespeare,
cet, quaecumque vis, exi," Qualquer oportunidade de "sair" Webster e Tourneur, e, pudicamente escondido, em Ra-
vale como caminho da liberdade. cíne. A tragédia de épocas de transição violenta é sempre
Em face dessa moral do suicidio, nào se compreende do tipo das tragédias de Sêneca, e a retórica dos seus ver-
bem como tantos séculos puderam acreditar no cristianismo sos não é vazia nem falsa, porque dramatiza uma grande
clandestino de Sêneca, inventando até um encontro dele personalidade: a personalidade do moralista que se apro-
com o apóstolo Paulo. Na verdade, Sêneca não foi influen- xima da caridade cristã, mas que, como individualista, é
ciado pela religião cristã; foi, muito ao contrário, o cris- incapaz de submeter-se à disciplina do dogma. Sêneca é
tianismo, em sua atitude ética, que foi profundamente in- o primeiro dos dramaturgos espanhóis e também o primei-
fluenciado pelo estoicismo de Sêneca, transformando po- ro dos laicistas espanhóis. A sombra desse homem livre
rém o suicídio em martírio. O que Sêneca tinha em comum e angustiado — "creo, tú a mi incredulidad ayuda" —
com os cristãos da Igreja primitiva era a angústia. A mes- desse Unamuno romano, erra pelos séculos, e no seu cor-
ma angústia que invade as suas tragédias, alterando com- tejo aparecem, de vez cm quando, outras sombras, ensan-
pletamente o espírito dos seus modelos gregos, transfor- güentadas, de tiranos e vitimas da sua tragédia, que ainda
mando-os em quadros grandiosos de tirania sangrenta, não perdeu a atualidade.
medo, pânico e terror sinistro. Lucano e Sêneca são intelectuais, assim como Quinti-
A filosofia estóica de Sêneca é uma tentativa, apai- liano ('^), o grande mestre-escoja da literatura romana,
xonada porque infrutífera, de vencer a angústia, que se sistematizador do gosto arcaizante da "oposição" conserva-
exprime nas suas tragédias. Sêneca, como filósofo, está dora. Do outro lado está, zombando dos sofrimentos da
convencido da possibilidade de vencer o terror pela ele-
vação espiritual: "Pusilla res est hominis anima; sed in- 17) Mateus Fabius Quintilianus, c, 35-95.
gens res contemptus animae". Sêneca, como poeta, sabe Edição da Instltutio Oratória por F. Meister, Leipzlg, 1886/1887,
B. Appel: Das Bildungs — und Erziehungsiãeal áes QtíintiUan
o mundo povoado de demônios e de almas decadentes, já nach der Institutio Oratória. Muenchen, 1914.
incapazes de resistir. E m versos notáveis anuncia a "úl- D. Bassi; QuintüiaTto maestro. Firenze, 1929.
136 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 137

gente rica e queixando-se de misérias mais substanciais, nem para indignar-nos com a licenciosidade das suas ex-
o fabulista Fedro (""*), o pobre escravo, a voz do povo. pressões. O ambiente de Petrônio é o das nossas capitais,
Não se compara com os seus grandes contemporâneos. Es- da nossa "alta sociedade". Apenas somos nós que nem
creve para incultos e meninos, sem força poética, sem a ma- sempre temos a coragem de dizer a verdade com o rea-
lícia de La Fontaine, sem a elevação moral de Gellert. lismo do romano, nem a capacidade de exprimi-la com o
Conta o que ouviu contar, a história do lobo e do cordeiro, seu riso espirituoso, A obra de Petrônio é de estranha e
e lembra-se do seu próprio destino, da "injuriae qui addi- alegre atualidade.
deris contumeliam". Mal se pode dizer que Fedro seja Se a obra completa de Petrônio fosse conservada, apa-
poeta; mas é de uma dignidade inconfundível, porque este receria êle, talvez, maior do que os poetas da sua época.
único elegíaco popular é, talveí:, a voz mais solitária da E dessa época poucos restam. Pérsio ('") é um homem
literatura romana. digno; a sua dignidade de estóico sincero justifica a in-
O escravo, tanto na literatura como no direito romano, dignação das suas sátiras, mas não a dureza dos seus ver-
não tem existência legal. É objeto entre outros objetos, e sos. Marcial (^'^) teria sido um poeta apreciável, fino ele-
um objeto do qual se abusa. Assim aparecem os escravos gíaco e paisagista, se a corrução dos tempos não o tivesse
transformado em literato profissional. Assim como o fa-
na sátira de Petrônio (^"), sátira sem moralismo, porque o
moso epigramatista se nos apresenta, parece uma falsa ce-
satírico participa da moral do seu ambiente: novos-ricos.
lebridade. Teve a sorte de chegar à posteridade como o
pederastas, parasites, levando uma vida devassa em bor-
único dos epigramatistas latinos. A sua obscenidade, jus-
déis e estações de águas. No centro está o parvenu Tri-
tificada ou quase justificada pela língua clássica, inspirou
malchio, caricatura, em tamanho sobrenatural, do milioná-
a muitas gerações de padres, professores e eruditos imi-
rio que gosta de imitar a jeunesse dorée e os literatos
tações mais obscenas, criando-se vasta literatura clandes-
estóicos, cobrindo-se de ridículo. As intenções de Petrô-
tina, ao lado da erudição c edificação oficiais. O seu rea-
nio não são muito puras; parece que pretendeu ridiculari-
lismo quase ingênuo faz dos seus versos uma mina de in-
zar a oposição burguesa e intelectual, para agradar a Nero.
formações sobre os aspectos menos sublimes da vida ro-
Nós, porém, não temos motivos para acusá-lo de calúnia
mana. A sua arte é virtuosidade de um poeta de ocasião e
de profissão.
HA) CaiijK .Juliijs Pliiiciiniri, .séc. I. A mentira poética e mitológica, da qual o epigrama-
Edi<;õe.s ixir J. P. PostfíJiU;, Oxford, 1019, e por A. Brenot, Pa-

I
ri.s, 1924. tista foge como da peste, é dignamente representada por
C. MarcliOKi: Fcüro c Ia /avola latina. Fircii^.c, 1923.
18) Caius Potroiilu.s Arbilor, .st-c l. 19) Aulus Pei-.sius Flaccus, 34-62.
Edições críticas dos rrii4'mcn(,ü.s exi.steiites do Satyrieon por K. Edição por A. Cartault, Paris, 1920.
Buechelcr, 4."- cd., Berlin, 1904, por W. B. Scdgwick, Oxford, 1925, F. Villeneuve: Essai sur Perse. Paris, 1918.
e por A. Ernout, Paris, 1950, 20) Marcus Valerius Martialis, c. 40 - c. 102.
E. Thomas: Uenvers de Ia société roniaine d'après Petrone, Edição princeps, Roma, 1470.
Paris, 1892. Edições modernas: Lindsay, Oxford, 1902; Heraeus, Leipzig, 1924;
G. Boissier: L'oppositíon sous les Césars. 5.^ ed. Paris, 1905. Izaac, Paris, 1930.
C. Marchesi: Petrônio. Roma, 1921. G. Boissier: "Le poete Martial". (In: Tacite. 5." ed. Paris, 1903.)
E, Paratore: II Satyricon ãi Petrônio. Firenze, 1933. C. Marclaesi: Valerio Marziale. Gênova, 1914.
E. Marmorale: La questione petroniana. Firenze, 1948. G. B. Beilissitna: Marziale. Torino, 1931.
13(! OITO MAIUA CAUPICAUS. HisTÓBiA DA LITERATURA OCIDENTAL 139

Estíicio C), cuja ('.tória se baseia na pobreza da Idade Mé- Amos ou um Jeremias, Juvenal sentou-se no alto da co-
dia cm manuscritos latinos — Estácio era conservado a lina e viu a massa brutalizada, enfurecida pelas paixões
par de Vir^iílio. Até Dante e Chaucer o estimaram como mais baixas, dançando c gritando sem perceber a tempes-
fonte de informações mitológicas e como hábil narrador tade que se aproximava. Roma apresentou-se ao seu espí-
em verso. Mas as suas poesias da vida familiar, as Silvae, rito excitado como um daqueles grandes quadros históri-
são bastante insignificantes, e uma epopéia como a Thebais cos do século XIX, de Couture ou Makart: uma aurora
só existe como amostra da suprema ilegibilidade. terrível, iluminando a sala cheia de mulheres embriagadas,
Somente no século II, quando o pesadelo do despotis- homens esgotados, o vinho dcrraumdo por toda a parte. E
mo era desaparecido e a oposição política se tornara dis- Juvenal gritou — nao contra o <léspoln, como o haviam
pensável, é que os conformistas cínicos ou ingênuos desa- feito Lucano e os intelectuais, mas contra a sociedade in-
parecem também; e surge, então, outra oposição mais ra- teira. Juvenal é um tribuno irritado — se bom que apolí-
dical. Em Juvenal, chega quase à força de expressão pro- tico — um panfletista de eloqüência torrcucial c sem re-
fética. quintes poéticos, um profeta dos subúrbios cie líoma, a voz
Juvenal (^^) trata, nas suas 16 sátiras, os assuntos de da consciência romana. Os seus versos aliás, fariam me-
Horácio: hipócritas devassos (sát, I I ) , loquazes importu- lhor figura em linhas de prosa. Mas então, talvez não dés-
nes na rua ( I I I ) , efeminação dos ricos ( I V ) , lascívia das semos o mesmo crédito às palavras do retor furioso. Exis-
mulheres ( V I ) , literatos ridículos ( V I I ) , caçadores de tem, pelo menos, dúvidas assim quanto ao prosador Sue-
heranças ( I X ) , métodos errados de educar os filhos ( X I V ) , tônio (*•') ; é verdade que êle conta os crimes horrorosos
orgulho dos militares ( X V I ) . Mas Juvenal não tem nada de um Tibério, de um Calígula, de um Nero, de um Domi-
de Horácio; ou antes, Horácio não tem nada de Juvenal. ciano, com a frieza de um autor de relatórios oficiais; en-
Este estòico duro só pretende dizer a verdade, e neste afã tão, crueldade e infâmia ressaltam tnnto mais quanto os
encontra as palavras mais justas, mais definitivas. "Si na-
tura negat, facit índignatío versus"; e a indignação não
t horrores são apresentados como as coisas mais naturais do
mundo. Mas Suetònio, sem vontade de mentir, nem sem-
lhe negou as expressões de um profeta bíblico. Como um pre disse a verdade. Cahmiou Tibério, porque não enten-
deu nada da tragédia psicológica do imperador traído, e
quem sabe quantas vezes Suetònio só notou a maledicên-
21) Publlus Papinius Statius, c. 40 - c. 96.
Edição por H. W. Garrod, Oxford, 1906. cía e as calúnias de cortesãos preteridos. Uma larga cre-
Silvae; Thebais; Achilleis.
G. G. Cruaio: Stuãio su Publio Papinio Stazio. Catanla, 189S.
L. Leotras: Etude sur Ia Thcbaicle ãe Stace. Paris, 1905. 23) Caius Suetonius Tranquillus, c. 75 — c. 150.
32) Decimus Junius Juvenalls, c. 60 - c. 140. De vlta Caesarum (Caesar, Augustus, Tiberlus, Calígula, Clau-
Edição prlnceps, Veneza, 1470; edições criticas por S. G. Owen, dius, Nero, Galba, Otho, Vitellius, Vespasianus, Titus, Domltia-
2." ed., Oxford, 1907, e por P. De Labriolle e F. vmeneuve, Pa- nus).
ri.s, 1921. Edição princeps, Roma, 1470; edições modernas por M, Ihm,
G. Boissier: Juvenal et son époque. Paris, 1380. Lcip:!ifr, 1907, e por Ailloud, 3 vols.. Paris, 1932.
C Marchesi: Giovaiale. Roma, 1022. A. Mace: Êtuãe sur Suátone. Paris, 1900.
1. G, íáccít; r/te Grand Style in the Saüi-cs of Juvenal. Lon- G. Funaioli: "I Cesari di Suetònio''. (In; Raccolta di scritti in
don, 1927. onore di F. Ramorino. Milano, 1927.)
G. Highet: Juvenal, the Satirist. Oxford, 1954. W. Steidle: Suelonius unã ãie antike Biographie. Muenchen. 1950.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 141
140 OTTO M A R I A CARPJSAUX
assunto principal da sua atividade literária — mas sempre
dulidade plebéia e a vontade de atribuir tudo aos "ricos" em prosa. A Germania, quadro espetacular dos bárbaros
também se encontram em Juvenal. Cumpre não esquecer puros, é mais profecia do que sonho evasivo, Nas His-
que a literatura romana é de oposição sistemática. É uma tórias, que tratam da dinastia relativamente boa dos Flá-
literatura de elegíacos e satíricos, de individualistas. vios, admite, pelo menos, a possibilidade de ter havido alí-
vio, se bem que só em comparação com os predecessores
Só assim se compreende a atitude de Tácito (^*'). Este
terríveis. Nos Anais, crônica impressionante da Casa Jú-
grande romano foi interpretado pela posteridade como êle
lia, a decadência aparece como se tivesse existido sempre,
pretendeu ser interpretado; como advogado destemido da
quase como instituição nacional. Tácito apresenta-se como
nação mais nobre contra a tirania mais infame. Mas não
republicano aristocrático; mas, se pudesse, não aboliria a
é tanto assim; e Tácito nos deixou um documento, escrito
monarquia, porque ela lhe parece indispensável para a ad-
na mocidade, no qual revela os seus verdadeiros motivos.
ministração do imenso império. É um "republicano his-
O Dialogas de Oratoribus, sive de causis corruptae elo- tórico" sem se lembrar da história da Repiiblica, que não
quentiae, é uma conversa entre quatro advogados sobre a era menos corruta. O grande historiógrafo é um pensador
decadência da retórica romana: atribuem a responsabili- essencialmente a-histórico.
dade dessa decadência aos métúdos pedagógicos errados,
Parece aristocrata, mas na sua época já não havia aris-
ao mau gosto literário, à servidão política. Roma, é a con-
tocracia; o despotismo nivelara tudo. Tácito é burguês e
clusão, está em decadência irremediável, e a eloqüência
intelectual, preocupado com a decadência da retórica. É
afunda-se com a cidade; é melhor deixar a prosa e reti-
um moderado. A sua oposição é mais moral do que polí-
rar-se para a poesia. O estranho, no caso, é que Tácito não tica; e por isso, é oposição sistemática.
obedeceu ao próprio conselho. A decadência continuou
Fêz oposição com o temperamento de um grande poe-
ta. A sua prosa é elíptica, concentrada, impregnada de sen-
t i d o obscuro, como os versos de um poeta hermético. As
aii Coriiflius TacituK, c. 55 - c. 120.
Dialoffus de oratoribus; Be wta et moribus Julii Agricolae; De suas metáforas deformam a realidade. Tibério, Sejano,
oricjinc, silu. morílms ac populis Germanorum (Germania); His- Cláudio, Messalina, Nero são como que personagens de
toria texi.sU-m os livros I - I V e p a r t e do 1. V; d a morte de Ne-
ro h íiuccssfu) fio Ncrvii) ; Annales (existem 1. I-IV, p a r t e s do u m comediógrafo satírico, cheio de raiva; Tácito era lei-
1. V i) VT, 1. XI-XVT, i\sl.c incompleto; as p a r t e s existentes t r a - t u r a preferids de Ben Jonson, e é, sem dúvida, também
t a m (ie 'J'ibÍTtí> o N n i i ) .
Kdiíião priyicfjit:. Vciuv.u, I^IYO; cdií.ão por Lipsius, 1574; edições
u m grande dramaturgo. Escreveu a tragédia satírica da
crllituK por C. n . Mouic t: J. JucN.soti, :i VOIÍL. Cambridee (Mass.) decadência romana. Nos seus retratos históricos de mons-
1925, e por U. Aiuli-fM.'ii e E. Kocsttírmann, l.eipzÍB, 1026/1930. tros inverossímeis não existe psicologia humana; o proble-
H. F u r n e a u x : The Anuais oj raciluíi. 2." ed. 2 vols. Oxford,
1896/1907. ma psicológico está no próprio autor e chama-se: o com-
G. Boissier: Tacite. 5.* ed. Paris, 1903. portamento do indivíduo livre em face da tirania e do avil-
E . Coiirband: Les procedes ã'art de Tacil.e üans les Histoires.
Paris, 1918.
k tamento geral. Tácito resolveu o problema pelas expres-
C. Marchesi: Tácito. Messina, 1925. sões do pessimismo mais profundo, e foi injusto: esqueceu
R. Reltüenstein: Tacitus und sein Werk, 2.'* ed. Berlin, 1929. que a sua época produzira um Tácito.
F. K r o h n ; Fersonendarstellungen liei Tacitus. Leipzig, 1934.
E. P a r a t o r e : Tácito. Milano, 1952.
142 OTTO M A B I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 143

No exagero profissional dos satíricos existe uma con- ções de águas e vilas no campo. É um elegíaco sem angús-
tradição: são pessimistas sistemáticos, acreditando na mal- tia, um Horácio sem malícia. As suas cartas, parte das
dade permanente da natureza humana, e, por outro lado, quais está dirigida ao grande imperador Trajano, ocupara-
são pessimistas imperfeitos, convencidos de que o homem se do trabalho e das férias; do trabalho de um literato co-
é melhor em outras partes — na Geimânia, de Tácito — ou locado em altos postos da administração imperial e das
que o homem foi melhor nos bons velhos tempos — na ocupações de um romano culto, na companhia de amigos e
República de Juvenal; só na própria época e na própria na solidão do repouso nos campos. No fundo, a diferença
cidade do satírico, a corrução é enorme, a catástrofe imi- não é grande: trata-se, cá e lá, de ofícios em estilo elegante,
nente. É por força dessa contradição que o satírico tem de exercícios de retórica perante um público escolhido, de
razão de modo geral e é desmentido pelos fatos particula- leituras e anotações. Plínio é literato. Um humanista, ao
res. No caso de Juvenal e Tácito, o desmentido se encontra qual a Natureza sugere reminiscências dos autores clássi-
na existência de uma família como a dos Plínios, que não cos. Perdeu muito tempo no Oriente, no governo de gre-
eram, por sinal, gênios singulares, e sim apenas intelectuais gos barulhentos, judeus excitados e bárbaros esquisitos e
típicos da época. Mas confirmam o conceito da perma- incompreensíveis. Falou com eles como um lorde inglês,
nência dos caracteres na literatura romana: são homens de encarregado da administração de uma província da índia
temperamento individualista c elegíaco, repetições meno- Central, desprezando os seus súditos que lhe ocasionaram,
res de Lucrécio e Horácio. no entanto, um ligeiro írisson. Depois, retirou-se para fé-
O velho Plínio ("''), o naturalista que pereceu quando rias vitalícias, entre os diletantes cultos de Roma, nas suas
da erupção do Vesúvio e destruição de Pompéia, é vilas à beira do golfo de Nápoles, nas montanhas da Tos-
cana, na praia do lago de Como. Assim passou a tarde da
um Lucrécio sem gênio poético; colecionador assíduo de
sua vida, a tarde da civilização antiga. Uma existência de
fatos e materiais, sem chegar a uma visão coerente da Na-
equilíbrio saudável, de felicidade extremamente egoísta.
tureza, um positivista cheio de superstições. O estudo da
Outros tempos considerarão esse crepúsculo como uma ida-
Natureza levou-o ao mesmo pessimismo do qual Lucrécio
de áurea.
fugiu para a Natureza. Para seu sobrinho, o outro Plínio
Os Plínios, tio e sobrinho, sentem ligeiro frisson
(^*'), a Natureza tem feição diferente: compõe-se de esta-
quando pensam no Oriente. Para o velho, é uma região de
mistérios inexplorados, sobre a qual não existe documen-
tação suficiente nas bibliotecas romanas; quem sabe dos
25) Caius Plinius Sccundus, c. 23-79.
Naturalis Historia U. 1 bibIio;.'i-afia, 1. II co.smojsraíia, 1. III-VI miasmas venenosos ou terremoto's surpreendentes que, vin-
geografia e etnoi^rafla, 1. VTI ri;;ioIotíia, 1. VIII-XI zoologia, 1.
XII-XIX botânica, 1. XX-XXVII plantas medicinais, 1.
XXVIII-XXXII remédios de origem animal, 1. XXXIII-XXXVII
minerais e metais). De Merechkovski: "Plínio". (In; Companheiros Imortais. Moscou,
Edição por L. lalin e C. Mayhoff, 2." ed., Leipzig, 1375/1908. 1897.)
E, Allaini Pline le Jeune et ses hérifiers. 2 vols. Paris, 1901/1902.
26) Caius Plinius Caecilius Secundus, 62-13. E. Guillemin: Pline le Jeune et Ia vie littéraire ãe son temps.
Oraiiones; Panegyricus Trajani; Epistularum 1. X. Paris, 1929. ,
Edição princeps, Veneza, 14'?1; edições críticas por GulJlemin, G. Unitá; Vita, valore letterario e carattere morale ãi PlinU) il
3 vols.. Paris, 1927/1928, e por M. Schuster, Leipzig, 1933. Gionane. Milano, 1933.
144 OTTO M A R I A CARPEAUX

do de lá, poderiam empestar a atmosfera e derrubar os fun-


damentos do Mediterrâneo! O sobrinho, por sua vez, viu
Í HisTóniA DA LITERATURA OCIDENTAL 145

borboletas. Na Vitarum auctio, os filósofos, representan-


aqueles orientais gritando, gesticulando, sacrificando-se tes das várias escolas e academias, são vendidos em leilão
por motivos absurdos no altar de deuses desconhecidos. Os como escravos e ninguém quer comprar criaturas tão inú-
Plínios fingem ignorar a presença do Oriente na sua terra teis. Os devotos da religião tradicional recebem a sua
itálica. A Roma dos Plinios é uma cidade meio oriental, lição nos Deorum dialogi e Marinorum dialogi, nos quais
cheia de bárbaros; o culto de deuses de nomes impronun- os deuses olímpicos se cobrem de ridículo, discutindo os
ciáveis tornou-se moda entre a alta sociedade. Os mais seus amores e truques de alcoviteiros. Mas não serão me-
perigosos dos invasores são os "gregos"; não são gregos au- lhores os novos deuses orientais — Luciano é foragido de
tênticos, são sírios, mesopotâmios, asiáticos de toda a es- um gueto — nem a estranha superstição dos cristãos,
pécie, servindo-se da língua de Platão — "língua geral" dos quais dá notícia em De morte Peregrini. Luciano não
do Oriente do Império — e fingindo-se filósofos, quando compreende sequer o antropomorfismo da arte grega; no
divulgam ocultismos suspeitos ou vivem do baixo jorna- Gallus, o galo do sapateiro Mykillos — quase é um quadro
lismo. de gênero da vida proletária — revela os segredos da es-
Luciano í^''), natural de Samosata, na Mesopotâmia, é cultura: dentro das estátuas mais famosas de Fídias vi-
um jornalista assim. Num diálogo seu, Deorum concilium, vem ratos!
os deuses olímpicos, reunidos em conselho de emergência, Os sarcasmos de Luciano contra a arte da escultura
deliberam providências contra a concorrência desleal dos têm motivos pessoais; êle mesmo fora destinado a escul-
deuses asiáticos importados. O próprio Luciano é produ- tor. No Somnium, diálogo autobiográfico, conta como lhe
to de importação asiática. Não entende realmente a civi- apareceram, em sonho, duas deusas, propondo-lhe rumos di-
lização grega, da qual se serve como os parasites se servem ferentes na sua carreira, e como êle abandonou a deu-
da capa de filósofo. Em De historia consctibendi zomba sa da escultura para seguir a da "retórica", quer dizer, a
dos eruditos, comparando-os a colecionadores de moscas e literatura e o jornalismo. Para isso, era mister tornar-se
"filósofo". Mas se os filósofos são todos uns charlatães?
27) Lukiano.=;, c. 115 - c. 200- É porque o mundo, sob a lua, não é mais moral nem mais
Somnium; Ad eum qui ãixerat 'Prometheus est in verbis'; De inteligente do que o Olimpo; quer ser enganado pelos fal-
historia conscrihenda; Vera historia; Demonax: Imagines; Deo- sos "intelectuais" que se vendem a preço baixo — apa-
rum dialogi: Maritiorum ãialogl; Mortuorum áialogi; Menippus
(Nokyonmntia); GalluK; Vitarum auctio; IcaroTnenippus; Zeus recem assim em De mercede conducti, auto-retrato invo-
confutalux: Drnruvi cam-iüiim; Dr mcrcedc cnnductis; De mor- luntário d e Luciano.
te Pcregrini; Lxicius seu Asinus; Tmum; Pp.>:catores; Negrinus
etc. cie. O mundo de Luciano é ura caos espiritual. O ecle-
Edição princeps, Florença, 1490; edição crílica por N. Nllén, 2 tismo filosófico de Plutarco, transformado em mercado
vols., Leipzig, 1900/1923. de opiniões. O céu de Píndaro, transformado em Olimpo
M, Cioiset: Essai sur Ia vie et les oeuvres de Lucien. Paris, 1883. de Offenbach, de opereta. T u d o está de cabeça para bai-
F. G. AUinson: Lucian, Satirist and Artist. New York, 1927,
C. Gallavotti: Luciano nella sua evolusione artística e spiritua- xo, revelando as suas vergonhas e ridículos. Visto do
le. Luciano, 1932. Hades (^Menippus, Mortuorum dialogi) ou da lua ( Icaro-
M. Caster: Lucien et Ia pensée religieuse de son temps. Paris. menippus), o nosso mundo é um manicômio. Luciano é
1937.
um grande humorista: Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire
lIisTÓRTA DA LITERATURA OCIDENTAL 117
146 OTTO M A B I A CARPEAUX

mente nos mistérios da Isis, para dedicar-se, dai por diante,


encontram nesse grego falsificado as melhores inspirações.
Mas não é um satírico, porque não conhece critério moral. ao culto da deusa, da qual Luciano zombara.
Não compreende aquilo de que zomba. Dá-se ares de Anti- Apuleio é um grande literato. É maior do que Luciano,
Homero, mas não passa de speaker de um show humorís- porque tem um estilo próprio. Escreve um latim meio re-
tico, no qual homens e deases dançam o último cancã do quintado, meio bárbaro, em que se misturam as frases fei-
mundo greco-romano. tas da escola retórica, as elegâncias do jornalismo grego,
as fórmulas místicas do Oriente e a linguagem violenta de
Luciano é típico; estão todos contaminados. Uma no-
vela de Luciano, Lucius seu Asinus, história das aventuras Tertuliano. É uma figura da época: o literato desarrai-
obscenas ou penosas de um sujeito transformado em bur- gado que encontra a solução das suas angústias nos arre-
ro por um feiticeiro, serviu de modelo ao romance Meta- pios místicos do Oriente. Eis um contemporâneo muito
morphoseon seu Asinus aureus, de Apuleio C^), que é um estranho do fino epistológrafo Plínio.
panorama completo da época. O autor é, desta vez, um Existem vários autores de língua latina aos quais a
africano, um patrício de Tertuliano e Santo Agostinho, posteridade conferiu o título honroso de "o último dos ro-
Talvez explique essa aproximação as angústias religiosas manos". Na verdade, no processo vagaroso da decomposi-
que distinguem esse Luciano de fala latina. O romance pa- ção apareceram muitos "últimos romanos" — o "realmen-
rece autobiográfico, com as suas aventuras lascivas e vicís- te último" será Boécio — mas o primeiro entre eles foi
situdes de literato viajante, embora a insinceridade inata um grego: o imperador romano e escritor grego Marco
de Apuleio e a sua habilidade de narrador não permitam Aurélio (^"). O imperador, educado por filósofos estóicos,
distinguir realidade e ficção, nem na sua ficção nem na sua era homem de ação e escritor ao mesmo tempo. Filósofo
vida. Contudo, quem soubera dar vida literária eterna ao introspectivo e defensor corajoso das fronteiras setentrio-
conto de Amor e Psique, inserto no romance, não podia nais do Império contra os bárbaros. Morreu onde fica hoje
estar alheio às "superstições", velhas ou novas, e a Apolo- a cidade de Viena, c cm Konia ciif^iraiu-lhc uma estátua,
gia de Apuleio, defendendo-se contra a acusação de magia, a primeira est;'itii;i eqücslrc de um imperador; passado não
confirma a veracidade do fim do romance: após tantas muito tempo, o moniinicnto verá transformado o bairro
aventuras eróticas e picarescas, o herói ingressa solene- de Latrão eiu ninho de malária e de ladrões. Tudo, no
destino de Marco Aurélio, é paradoxo: homem de ação
por desespero, e escritor por firme resolução; sendo o úl-
28) liuchis Apuleiu.s, .srculo TT. timo dos grandes individualistas romanos, anota os movi-
Mctamorpliosfím: Avoloiiia.
EcUçüri j)í-J7t(,r)i.s (• a AliUmi de iril2; riliçrirK por Colvius (Plan-
t i n a 1 , 1588, Sc:ilii;er. KiíKl. l';(li(;fi.o crílic"i yxn- R. Helm c P.
29) Marcus Aurelius, 121-180.
Thoma.s, 2.^ cõ., 3 VOIK., I,cip/i(í, 1!)21.
Edições criticas por H. Sciienkl, Leipzig, 1913, e por A. S. L, F a r -
P. Monceaux: Apulèe, roman et viagie. ParL^i, 19111.
qnharson, 2 vols,, Oxforâ, 1944,
E . Coechia: Romanzo e realtà nella vita e nelValtività letterarki
ãi Lúcio Apulejo. Catanla, 1915. M. Arnold: Essays Literary and Criticai. 1865.
E. R e n a n : Marc-Aurèle et Ia fin ãu monde antique. 1882.
I. M e d a m : La latinité ã'Apíilée ãans les Métamorphose. Paris,
F. W. H . Myers: Essays Classical, London, 1888.
1S26.
D, Mcrejkovskl: "Marco Aurélio". ( I n : Companheiros Imortais,
B . E . P e r r y , "An I n t e r p r e t a t i o n of Apiüeius' Metamorphoscs".
1897; v á r i a s traduções.)
( I n : Proceedings of the A-merican Phüological Association, 1926.)
H- D . Sedgwick: Marcus Aurelius. Newhaven (Conn.), 1921.
P, Scazzoso; Le metamorfosi di Apuleo. MUano, 1951.
148 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 149

mentos da sua alma solitária em língua grega. Mas, como já privada de "grandeza romana", revela aspectos inéditos
ele dizia, " T u d o o que te acontecerá, estava preestabelecido da vida. Eis a particularidade de Ausônio C***). É um ci-
assim, desde o começo, e a cadeia das coisas ligava firme- dadão pacato de Burdigala, a Bordéus de hoje, longe das
mente a tua existência e o teu destino". Assim fala um perturbações da capital. A Gália é uma província culta;
estóLco, cheio de fé na providência, "cujos germes se en- Burdigala, um centro de escolas de retórica; as vilas dos
contram em toda a parte", Mas a doutrina estóica do "Sen- ricos, nos campos, são pequenos museus de arte, se bem
tido", espalhado em germes por toda a parte, serve ao im- que de gosto provinciano. Ausônio é um pequeno-burguês,
perador romano, não para construir um universo ideal, e levado pela sua formação de retor a altos postos da admi-
sim para justificar a própria existência de indivíduo iso- nistração, até às fronteiras da Germânia, às ribeiras do
lado. Marco Aurélio é romano; quer dizer, quando pensa, Mosa. Permaneceu sempre pequeno-burguês, encostado à
não escapa à trivialidade do lugar-comum. Mas dá teste- família, à qual dedicou as EphemeTÍs: poemas prosaicos da
munho de que, no fim da história romana, até o impera- vida cotidiana. Ausônio enxerga as coisas pequenas, as
dor se encontra sozinho em face da realidade impenetrá- minúcias, e os seus olhos são melhores do que os seus ver-
sos. Na Mosella, repara nos encantos modestos da paisa-
vel. E ela aparece-lhe na figura da Morte. O livro inteiro
gem, o rio, as vinhas nas colinas, a luz dourada do crepús-
das Meditações foi escrito para afugentar a obsessão des-
culo sobre as vilas e sobre o horizonte desconhecido — lá
se homem poderoso com a idéia da morte. A idéia estóica
onde moram os bárbaros. Poesia amável e até alegre, poe-
da coesão na Natureza, do determinismo razoável que rege
sia crepuscular, sem tristeza. Aquelas vilas encontram-se
tudo, não lhe serve para aprender a viver, e sim a morrer.
hoje em ruínas, enterradas no solo; de vez em quando,
Ao contrário do que muitas vezes se pensava, Marco Au-
revelam os seus tesouros modestos: moedas, estátuas, frag-
rélio, que fêz mártires, nada tem de cristão; o que o faz
mentos de mosaicos, e sobretudo — delícia dos arqueólo-
parecer cristão é a clemência meio indiferente de uma me*-
gos — inscrições, relativas a ;icontecimentos de família,
lancolia que êle sabe nada adiantar. Marco Aurélio soube
nascimentos, enterros, morte d-j um cão, emancipação de
exprimir esse pensamento banal em mil fórmulas, cada
um escravo; os arqiicóloj;os reuniram essas inscrições em
vez mais impressionantes, que fizeram do seu livro um
coleções imcnsns, como no Corpus inscriptionum latina-
breviário para os velhos, durante séculos a fio; a sua elo-
rum, o poeta do qual se chama Ausônio.
qüência simples e convincente de uma idéia fixa revela
a sinceridade de um grande poeta. Ao mesmo ambiente pertence o Pervigiliam Veneris
(^*), epitalâmio cheio de paixão erótica, atribuído, às vezes.
Quem não pode ser incluído entre os "últimos roma-
nos", são os últimos poetas romanos. Aqui, sim, há deca- } 30) Decimus Magnus Ausonius, 310-^5.
dência, não apenas nos fatos exteriores, mas também nos Ephemeris; Mosella, etc.
espíritos. Contudo, não são sem interesse. E m alguns so- Edições críticas por Sohenkl, Monum, Germ, Hist. V. 2. Hanno-
ver, 1883, e por B. Peiper, Leipzig, 1886.
brevive apenas a habilidade técnica. E m outros, porém, C. JuUian: "Ausone et .son temps". (In: Revue Hiatorique, 1891.)
repete-se o fenômeno fisiopatológico dos doentes que per- R. Pichon: Êtuães sur 1'histoire de Ia littérature latine dans lea
deram um sentido e o substituem, enquanto possível, por Gaules. Les ãerniers écrivains profanes. Paris, 1906,
G. Bellissimo: Ausoniana. Siena, 1932.
outro sentido, inferior. Assim, os cegos aprendem a sentir
31) Edição em; A. Riese: Anthologia latina. Leipzig, 1879.
sensações inéditas, pelo t a t o ; e aquela poesia agonizante. Edição por C. Clementi, 3." ed., Oxford, 1936.
HisTÓHiA DA LITERATURA OCIDENTAL 151
150 Orro MAIUA (',MII'1IAUX

um Jerônimo, que explicou o prazer na leitura de Cícero


ao historiador Júlio l'loro, outra vez ao poeta menor Tí-
pela inspiração do Demônio. Mas a vontade e os efeitos
beriano (c. ^KiO); lulo é possível determinar a origem nem
não coincidiram. Para convencer e converter o mundo da
a éi)oc;i ex:i(a do poema, ao qual Walter Pater dedicou be-
civilização antiga, não bíistava a "sabedoria da infância"
las pá};iiinH do aeu romance Marius, the Epicurean. Já se
dos cristãos primitivos; chcgou-í;e a um compromisso, pon-
pensou, também, em origens medievais; em todo o caso, o
refrão do-se a filosofia c as letras a Hcrviço do Deus cristão e da
sua teologia. Começa a jjré-hislòria do humanismo europeu
"Cras amet qui nunquam amavit quique amavit eras no Oriente cristão.
amct!" Os fundamentos do compromisso foram lançados no
Oriente grego. Já no começo do século II, o erudito Cle-
soa estranhamente moderno; já tem encantado poetas so-
mente de Alenxandria introduziu na teologia conceitos do
fisticados do "Middie W e s t " americano de hoje.
platonismo e do estoicismo: o Paidagogos é um manual de
Claudiano {^^), que é de fato o último poeta romano,
conduta estóica para cristãos, e os Stromata uma coleção
não conhece essas audácias de expressão. Poeta oficial
de ensaios platonizantes sobre assuntos teológicos. Um
do ministro Stilicho, que já é um bárbaro germânico, Ciau
discípulo de Clemente, Orígenes, é contemporâneo de Plo-
diano é tímido demais para dizer coisas novas. É pagão
tíno, do fundador do neoplatonismo místico; Orígenes
— um dos últimos num mundo já batizado — e é patriota
pretende basear o dogma cm teoremas gregos, para fugir
romano, considerando a "colaboração" com o inimigo ger-
ao realismo religioso dos orientais e compreender as ver-
mânico como a última salvação possível. Claudiano é con-
dades do credo como alegorias de um sentido místico, ocul-
servador. Imita fielmente os clássicos, chega a redigir
to e inefável. Orígenes caiu na heresia, mas são, indire-
obras inteiras, juntando versos consagrados como um mo-
tamente, discípulos seus os três maiores Padres da Igreja
saico de citações. O seu idílio De raptu Proserpinae é, nó
oriental: Basílio (f 379), bispo de Ccsaréia, fundador da
entanto, belo, até superior ao modelo ovidiano. Claudia-
ordem dos monges basilianos, e que, na famosa Epístola
no ainda sabe latim.
XIX, sübre a escolha do lugar para um cremitério, se revela
Os últimos pagãos responsabilizaram o cristianismo poeticamente sensível à paisagem; seu irmão, Gregório
pela queda da civilização; e é preciso admitir que os Pa- ( t 394), bispo de Nissa, filósofo neoplatônico de batina; e
dres da Igreja fizeram tudo para confirmar a acusação. Gregório Nazianzeno (f 389), que chegou a patriarca de
Ou antes, escreveram como se fosse assim: um Agostinho, Bizancio, herói do púlpito, grande poeta de hinos eclesiás-
que chamou às virtudes dos pagãos "vícios brilhantes"; ticos e leitor devoto de Platão. Estes homens participaram
da luta pelo dogma trinitário contra os arianos; era a épo-
32) Claudius Claudlanus, morreu c. 404. ca pitoresca em que, nas ruas de Bizancio, os barbeiros e
EpithalamiuTn; De raptu Proserpinae; muitos epigramas, idí- sapateiros disputavam sobre "igualdade substancial" ou
lios, poemas políticos etc.
Edição critica por Tli. Birt, Monumenta Germaniae Histórica, "semelhança essencial" do Pai e do Filho, escondendo de-
Auctores antiqulssimi, vol. X, Berlin, 1892. sígnios de oposição política atrás dos teologemas compli-
T. H. Odgkin: Clauãianus, the Last of the Roman Poets. London, cados, enquanto os representantes autênticos do cristia-
1875.
A. Parravicini: Studio di retórica sulle opere ãi Claudiano. Mi- nismo primitivo se retiravam para os eremitérios, no de-
lano, 1905.
152 OTTO MAKIA CARriíAHX HISTÓRIA DA LITEHATURA OCIDENTAL 153

serto da Egípcia. Entre esses extremos da profanação e nário fêz versos pitorescos, e em que Cassiodoro, acumu-
da fuga, o cristianismo salvou-se pelo compromisso com a lando tesouros de manuscritos na sua vila "Vivarium",
civilização paga. Não era fácil encontrar o meio-termo. preparou os caminhos para a ordem de São Bento. São os
A t é para nós, hoje, não é muito clara a atitude de um monges da civilização paga, monges do estoicismo. Boé-
Nonnos (^^), bispo de Panópolis, na Egípcia, e autor de cio suportou assim a prisão, na qual escreveu a Consola-
uma paráfrase metrificada do Quarto Evangelho, e, ao tio, e a morte pelo carrasco germânico. Cristão, Boécio
mesmo tempo, de uma enorme epopéia em 40 livros, Dio- não o é, a não ser pela confissão dos lábios. Mas já é homem
nysiaka, cheia de embriaguez paga até à perturbação de medieval, Com toda a razão, a Idade Média irá escolher
todos os sentidos; é nesta obra que a métrica grega, ba- os seus tratados sobre geometria e música como base do
seada na quantidade das sílabas, começa a decompor-se, in- ensino superior e encontrará nos seus comentários aris-
vadida pelo verso acentuado. Começa um novo mundo. totélicos e neoplatônicos o problema escolástico dos "Uni-
No Ocidente, o compromisso entre cristianismo e ci- versalia". Na Consolatio Philosophiae, um homem de men-
vilização paga foi concluído pelos inimigos apaixonados talidade medieval acalma as suas angústias com as respos-
dessa civilização; Tertuliano, Ambrósio, Jerônimo, Agos- tas da filosofia estóica. São perguntas de um monge me-
tinho, os Padres da Igreja latina. Mas estes já são ho- dieval — sobre a injustiça no mundo e a Providência di-
mens "modernos". O último romano cristão é Boécio. vina — mas e resposta é dada pelo aparecimento de uma
Mas seria Boécio (''') um cristão? Existem tratados visão, que se dá a conhecer com a "Philosophia". Por isso,
teológicos de sua autoria: De Trinitate, Contra Eutycben 3 Consolatio ficou sendo o livro preferido dos espíritos
et Nestorium, e outros. Mas nas obras mais importantes estóicos de todos os tempos, que não se sentiam sujeitos,
de Boécio, até na Consolatio Philosophiae, que trata de no foro íntimo, à religião cristã; Boécio era o ma-
Deus e do destino humano, não se encontra a mínima alu- nual do laicísmo entre os heréticos da Provença, entre os
são ao cristianismo. Boécio é romano pela atitude; per- humanistas do Quattrocento, entre os eruditos do Barroco,
tenceu ao círculo ilustrado em que o poeta Sidônio Apoli- que fugiram das guerras de religião.

Contudo, Boécio não é moderno, nem medieval, nem


33) Nonnos, c. 400. cristão herético, nem cristão sans pbrase. Em face da ca-
Dianysiaka. — Edição crítica por A. Ludwlch, 2 vols,, Leipzig, tástrofe do mundo antigo, um grande cristão. Santo Agos-
1909/1911.
R. Koehler: Veber ãie Dionysiaka des Nonnos. Leipzig, 1853. tinho, tinha justificado a obra da Providência divina por
P. Collart: Nonnos de Pannopolis; études su7- Ia composition et uma grandiosa filosofia da história, explicando o advento
le texte ães Dionijsiaqacs. Cairo, 1930.
e a queda dos impérios. O romano Boécio não pergunta
34) Manlius Sevcrinu.s Boothiu.s, c. 480-524.
Consolatio Philoxophiac; De institutione arithmcticae 1. / / ; De pelo Império. Está preocupado apenas com a sua própria
institutione musicae 1. V; traduções de Euclidcs e Aristóteles; alma, É individualista, é romano. A Consolatio Philoso-
De Trinitate. phiae é um pendant das Meditações de Marco Aurélio,
Obras, em Mlgne, Patrologia latina, vols. LXIII e LXIV.
Edições criticas da Consolatio por R. Peiper, Leipzig, 1871, e por apenas sem medo da morte, Na sua última hora — que foi
E. K. Rand e H. F. Stewart, London, 1926. a última hora de um mundo magnífico e que pereceu in-
H. F. Stewart: Soethius. An Essay. Edlnburg, 1891. compreensivelmente — Boécio pôde repetir as palavras
G. A. Mueller; Die Trostschrift ães Boethius. Berlin, 1912.
H. Klingner: De Boethii Consolatione Philosophiae. Berlin, 1927. com as quais o imperador-filósofo terminara livro e vida:
154 OTTO M A R I A CARPEAUX

"Ó homem, fôste cidadão nesta grande cidade, e que im-


porta se passaste aqui cinco anos ou trinta? O que é con-
forme à lei, não é duro para ninguém. Será tão terrível se
a mesma Natureza que te mandou para esta cidade, agora
1
te mandar sair? K como se um ator fosse demitido pelo
mesmo pretor que o chamou. 'Mas não representei todos
os cinco atos da peça e sim apenas três!' Bem; mas, na C A P Í T U L O ITI
vida, três atos já constituem uma peça completa, pois o fim
é determinado por aquele que outro dia iniciou a repre- HISTÓRIA DO HUMANISMO E UAS RENASCENÇAS
sentação e hoje a termina. Começo e fim não dependem
de ti. Então, despede-te com ânimo sereno; êle, que te "What's Hecuba to him, cr lie to Ilccuba,
despede, também é sereno." That he should weep for h e r ? "

O AO as palavras de Hamlet, quando se admira da emo-


^ ção do ator ao lamentar a rainha Hécuba. A rainha
morreu há não sabemos bem quantos mil anos; e nós ainda
deveríamos chorar por ela? Hamlet tem as suas próprias
preocupações, atuais, reais; as histórias antigas podem-lhe
servir, quando muito, de alegorias, aliás dispensáveis, para
representação poética dos seus pensamentos. Mas chorar?
O homem que o fizesse seria um biblíômano, um habi-
tante de mausoléu livresco, alheio à vida c perdido em
sonhos absuidos; ou então, seria um hipócrita, um mes-
tre-escola que desejasse afastar os alunos das suas
futuras tarefas vitais, ou um artista frio, técnico de ver-
sos e emoções artificiais. Hamlet tem outras preocupações.
Todos nós vivemos a nossa própria vida. Quem chorará
por Hécuba?
A pergunta de Hamlet indica, com a maior precisão,
a atitude do homem moderno em face da Antigüidade e
dos seus monumentos literários. Meditando-se, porém, o
caso, Hécuba revela-se como símbolo de significação muito
maior: não é apenas uma rainha da Antigüidade mais re-
mota, mas o símbolo do passado inteiro. Assim como as
angústias e esperanças da nossa vida atual não nos per-
mitem chorar .pelos gregos e romanos, assim está longe
de nós a fé dos monges medievais; não temos nada em
156 OTTO M A B I A CABPEAÜX HlSTÓHIA DA LlTEBATURA OciDENTAL 157

comum com os artifícios artísticos da Renascença e com Também é preciso coragem para confessar que as obras
as fúrias religiosas da Reforma, cem os místicos barrocos literárias do passado são realmente, até certo ponto, es-
e os marqueses do Rococó — e será muito o que nos liga tranhas para nós. Para ler Homero é necessário o conheci-
aos sonhos dos românticos e à ciência antiquada de nossos mento perfeito de um dialeto obsoleto já na Antigüidade,
avós? O que é posto em dúvida pela pergunta de Hamlet, de uma língua morta, é necessário ter o hábito de sentir
não é a Antigüidade apenas; é o passado inteiro. uma métrica que tem hoje outro ritmo, a capacidade de en-
tender o sentido autêntico de uma linguagem metafórica,
Trata-se de algo mais do que na famosa "Querelle des
gasta pelo uso milenar, e, enfim, a "suspension of disbelief"
Anciens et des Modernes", sobre a pretensa superioridade
em face de um mundo de imaginação mitológica sem ponto
dos autores antigos ou dos modernos. Esta discussão re-
de referência em nosso mundo. Aplica-se o mesmo racio-
vive sempre que se trata da conservação ou abolição do
cínio ao inglês arcaico de Chauccr, às convicções feudo-
ensino das línguas clássicas na escola secundária. Mas as
católicas da literatura espanhola do "Siglo de Oro", às ex-
vitórias efêmeras deste ou daquele partido, nessa guerra
pressões meio arcaizantes, meio barrocas, do "Siècle d'Or"
pedagógica, não acertam o centro do problema. Não adian-
francês. Os "séculos de ouro" ficam mais longe de nós
tam as comparações absurdas entre Platão e Kant, Homero
do que o número dos anos decorridos de então até nossos
e Shakespeare, Píndaro e Victor H u g o ; as relações quan-
dias, pode indicar; e o "século de prata", o classicismo in-
titativas não resolvem o caso. O que o "futurismo" anti-
glês do século X V I I I , não está mais perto. Muitos obser-
humanístico pretende demonstrar é a diferença qualitativa,
vadores fixarão com a Revolução Francesa o começo da
essencial, entre nós e os homens do passado, entre as nos-
época moderna; mas a Revolução, anunciada e antecipada
sas expressões e as expressões deles. Hécuba não é capaz por escritores notáveis, não produziu, diretamente, litera-
de arrancar-nos uma lágrima. Esse "futurismo" nega não tura alguma, nem sequer na própria França, e foi seguida
apenas o caráter do presente e do futuro, mas continuações imediatamente pelo romantismo, literatura medievalista.
do passado, conceito com o qual, no entanto, passadistas passadista, a mais "antimoderna" de todas. Não tem sen-
e dialéticos concordam; mas nega também, com a continui- tido insistir na pergunta: quando acaba a "literatura
dade da história, a igualdade essencial dos homens de to- morta" ou quando começa a "literatura viva"? Presente e
dos os tempos; e nega ainda, com a unidade da história, Passado encontrara-se tão indissolüvelmente ligados — seja
a unidade da nossa civilização. Para o futurista anti-huma- em relação unilinear, seja em relação dialética — que a
nista a expressão "civilização ocidental" não teria sentido nossa civilização não existe, em nenhum ponto da evo-
atual. E "futuristas" assim existem em maior número do lução histórica, sem encerrar todo o seu passado. Não se
que o punhado de barulheiros italianos e os seus adeptos deve perguntar quando termina o passado; é mister per-
internacionais, já quase esquecidos. Sem grande exagero, guntar quando o passado principia.
pode-se afirmar que assim pensam os cientistas e os en-
Como tantas outras questões históricas, esta também
genheiros, os médicos e os homens de negócios, os ban- fica obscurecida pela retórica. Os últimos oradores pro-
queiros e os secretários de sindicatos, os socialistas e os fissionais da Antigüidade, mestres-escolas dedicados ao
fascistas; enfim, a grande maioria. Apenas, nem todos têm ensino literário dos filhos de latifundiários e funcionários
a coragem de confessá-lo. abastados, encheram os exercícios escolares de uma emo-
158 OTTO M A B I A CARPEAUX HisTÓniA DA LITERATURA OCIDENTAL 159
ção sincera quando viram desaparecer, pouco a pouco, a em carta a Willibald Pirkheimer, de 25 de outubro de
sua freguesia. Os últimos pagãos não observaram bem o 1518); e essa consciência de ter saído enfim de um perío-
processo de humanização gradual do cristianismo primi- do de trevas decidiu o êxito do esquema tripartido da
tivo, escatológico e hostil à civiIÍ2ação; como intelectuais História Universal. Ao orgulho dos intelectuais junta-
típicos, acreditavam ver o fim do mundo, e as suas lamen- ram-se outros motivos, de origem emocional ('-) : durante
tações retóricas encontram eco nas visões apocalípticas toda a "Idade Média", a forle reação contra a corrução
dos primeiros cristãos. O aspecto da destruição material moral do clero levou a comparações menos lisonjeiras com
e institucional escondeu a preservação da herança antiga, a pureza da Igreja primitiva e às esperanças heréticas de
e o bispo Hildeberto de Lavardin, poeta latino do século uma "renovatio", de uma "Terceira Igreja", puramente es-
XI, avistando as ruínas da cidade que foi a capital do mun- piritual; assim aconteceu com os franciscanos espiritua-
do, irrompeu numa elegia digna dos últimos romanos: listas e joaquimistas dos séculos X I I I e XTV. Enquanto os
humanistas, buscando sempre as "fontes", estiveram inte-
"Urbs cecidit, de qua si quicquam dicere dignus ressados em questões religiosas, aprofundaram a compara-
Moliar, hoc potero dicere: Roma fuit." ção com a Igreja primitiva, de Poggio Bracciolini, no seu
De miséria hnmanae conditionis, até Erasmo, com as suas
O aspecto sentimental das ruínas romanas levou os
edições do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A
humanistas a criarem o esquema tripartido da História Uni-
Reforma pensou ter vencido a "noite do Papado" (cxi>res-
versal: Antigüidade, "séculos escuros" da Idade Média,
são de Lutero), e o esquema tripartido, com o seu duplo
Época Moderna, começando com o renascimento das le-
fundamento literário e religioso, sobreviveu ao humanismo
tras clássicas pelos próprios humanistas. O êxito com-
e zelo reformador, gerando ainda no século X V I I I a ex-
pleto deste conceito historiográfico explica-se, em parte,
pressão "Dark Ages" (William Robcrlson), c <loniinando
pela admiração que já os eruditos medievais tinham à
até hoje os manuais e a linguagtím. Até no abismo absolu-
civilização romana (^): já o abade Servatua Lúpus de Fer-
to que Oswald Spcnglcr cavou entre a Antigüidade e a
rières (f 862) se congratula com o renascimento dos es-
civilização moderna, rcconlicccni-se os vestígios da velha
tudos latinos em sua época; o cluniacense Bernardus de
retórica.
Morlas, no seu poema didático De contemptu mundi (c.
1140), lamenta a falta de cultura do seu tempo, lembrando A historiografia atual já não admite esse conceito (^);
a civilização dos antigos romanos; entre muitos outros, não existe cisão absoluta entre a Antigüidade e os séculos
Johannes de Garlandia (')" 1258) reconhece a superioridade seguintes, e sim uma evolução contínua. Os historiadores
intelectual dos pagãos da Antigüidade. Daí vai só um dos séculos passados fixaram o "Fim da Antigüidade" em
passo para o grito de júbilo do humanista: "O saecuium! datas diferentes: em 375, pretenso começo das grandes mi-
o litterae! luvat vivere etsi quiescere noiidum iuvat, Eilli- grações dos bárbaros, que, no entanto, haviam começado já
balde, vigent studia, florcnt ingenia! Heu tu accipe la-
queum barbai ies. exilium prospice!" (Ulricus de Hutten, 2) L. Varga: Dos Schlagwort vom "finsteren Mittelalter". Ber-
lln, 1332.
3) A. Dopsch: Wirtschaftliclie unã soziale Gmndlagen der euro-
1) A. Graf; RoTna nella memória e nelle iminaginazioni dei Meãio paeischen KulturentwicKiung aus ãer Zeit von Caesar his auf
Evo. 2." ed. Torlno, 1923. Karl ãen Grossen. 2." ed. Wien, 1923/1924.
160 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 161

muito antes; ou então em 476, ano do pretenso fim do Im- ção literária mais poderosa do espírito romano — é o fun*
pério Romano, que, no entanto, continuava no seu novo damento institucional do humanismo europeu.
centro, Bizânciü. A análise imparcial dos fatos revela, ao Essas codificações marcam uma data e, ao mesmo tem-
contrário, uma solidificação das instituições e resíduos cul- po, uma delimitação. Religião judaico-cristã, ciência grega,
turais da Antigüidade, no século V I . Com efeito, um ca- direito romano: eis a herança da Antigüidade, lançando os
taclismo, uma catástrofe, nunca pode servir de data para fundamentos da civilização ocidental. As regiões e nações
o começo de uma nova era. A época pós-antiga do mundo que não receberam aquela herança ficaram excluídas da co-
cristão-ocidental começa com uma data de valor positivo: munidade ocidental, entrando nela somente séculos depois
com a elaboração, no século VI, dos três grandes Códigos, e em circunstâncias bem diferentes. E todas as outras in-
nos quais a herança se cristalizou. fluências alheias, que o Ocidente recebeu mais tarde, já
O século VI é a época das grandes codificações. Até não se incorporaram bem na nossa civilização; tornaram-se
mesmo o judaísmo termina então o imenso trabalho da influências "exóticas". Nem os elementos de pintura chi-
codificação das suas leis pós-mosaicas tradicionais; o Tal- nesa que, trazidos pelos viajantes do século X I I I , influí-
mude. A Igreja ocidental, possuindo já um texto latino au- ram em Giotto; nem as riquezas ornamentais da índia que
têntico da Bíblia, a Vulgata de São Jerônirao, começa a a arquitetura da época dos descobrimentos imitou; nem a
organizar um corpo de escritos autentificados dos chama- abundância fantástica das MiJ e uma Noites arábicas nem a
dos Padres da Igreja: em 496 (a data não é certa), o Papa pacífica sabedoria chinesa, de que o Rococó gostava; nem o
Gelásio I promulga a Epístola dccretalis de recipiendis et budismo que os pessimistas do século XIX apregoaram
non recipiendis libris, na qual autentifica os opuscula de — nada disso entrou realmente em nossa civilização; con-
Cipriano, Gregório Nazianzeno, Basílio, Hilário de Poi- tinuou sempre "exotismo". A sorte dos documentos lite-
tiers, Ambróaio, Agostinho, Jerônimo e Próspero Aquita- rários do Oriente entre nós confirma a distinção entre o
nense. constituindo assim o corpo patrístico que significa "exotismo" greco-romano, que faz parte da nossa cultura,
o aproveitamento da filosofia e da literatura greco-roma- e o "exotismo" oriental, que ficou fora dela. Há certas
nas a serviço da teologia cristã (*). J á por volta de 400, obras da Antigüidade clássica que ninguém conseguiu tra-
sob 3 influência de Ambrósio, conceitos cristãos tinham duzir bem para as línguas modernas, como as de Píndaro;
penetrado no direito romano (CoIIatio legam mosaicarum contudo, Pindaro é uma das maiores e mais persistentes in-
et romanarum); agora, o imperador Justiniano termina esse fluências nas nossas literaturas. Das literaturas orientais
processo com a grande codificação que é principalmente recebemos e conservamos definitivamente apenas algumas
obra do seu conselheiro jurídico Triboniano: o Corpus Jú- poucas obras, traduzidas (se é lícita a expressão) de manei-
ris O é de 529, e a segunda edição, que inclui as Institutio- ra antes inexata, razão por que se tornaram obras nossas.
nes e os Digesta seu Pandectae, de S34; o conjunto é a cria- Hafiz é, para nós, um nome; as traduções exatas apenas
servem de ajuda de leitura ao especialista; mas o Wes-
toestlicher Diwan, de Goethe, só ligeiramente inspirado no
4) T. Chapman: in Revue Bénéãictine, XXX, 1913. poeta persa, é uma das grandes obras líricas da literatura
5) P. Krueger: Geschichte der Quellen und Literatur des roemU-
chen ítechts. 2." ed. Leipzig, 1912. ocidental. Omar Khajjam é, para nós, menos do que um
F. Albertario: Introãusione storica alio studio ãel ãiritto roma- nome; as traduções literais só constituem a delícia dos bi-
no giustinianeo. Milano, 1935.
162 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 163
bliófilos; mas a tradução libérrima de Edward Fitzgerald, origens étnicas muito diferentes, não se estabeleceu pela
quase obra independente, é obra "clássica" da língua in- unidade da religião, mas é conseqüência direta da unifica-
glesa. E que mais? As grandes coleções orientais de fá- ção helenística do Oriente Médio. Os "árabes" da Idade
bulas e contos, das quais as literaturas medieval e renascen- Média são uma espécie de gregos da decadência, vestidos
tista se aproveitaram, forneceram apenas matéria-prima no- de albornoz e turbante. Traduziram com assiduidade os
velistica. As traduções de Li Tai Po que d'Hervey-Saint- livros científicos gregos, menos por zêlo de cultura do que
Denys e Hans Bethge popularizaram, na França e na Ale- por uma necessidade lingüística; do mesmo modo, os gre-
manha, são belas poesias neo-românticas, nas quais os si- gos da Grécia moderna estão na obrigação de ler as obras
nólogos são incapazes de reconhecer os originais. O que dos seus antepassados em traduções, porque a língua se
não provém daquela herança antiga, continua inassimilável; modificou muito. Durante a Idade Média inteira, existe
e com isso o conceito "Literatura do Ocidente" está jus- uma afinidade íntima e profunda entre a civilização árabe
tificado. e a civilização ocidental, herdeiras do mesmo patrimônio.
Parece preciso abrir uma exceção para a civilização is- Essa unidade foi quebrada para sempre pelo humanismo
lamítica do Oriente Médio, chamada com imprecisão "ci- da Renascença ocidental. Os "árabes" conservaram sem
vilização árabe". Entramos em contato com ela já antes modificações sensíveis a civilização da Antigüidade deca-
das Cruzadas; transmitiu-nos, por intermédio de traduções, dente; eram incapazes da renovação radical que o huma-
grande parte da literatura científica greco-romana, perdida nismo conseguiu. Em última análise, o traço caracterís-
no Ocidente. O caso é muito especial e serve bem para tico da civilização ocidental não é a herança antiga, mas
confirmar o que já foi estabelecido. Segundo estudos re- a modificação dela, que se chama Renascença.
centes ("), a civilização islamítica, nos países limítrofes
Renascença como marco decisivo da civilização oci-
do Mediterrâneo, não constitui uma civilização indepen-
dental: este conceito enquadra-se bem no esquema tripar-
dente — a "civilização mágica", como Oswald Spengler
tido da História Universal, na qual deveria haver duas
afirmou — e sim uma continuação direta da civilização gre-
cesuras, a queda do Império Romano e a renascença de
co-romana, apenas ligeiramente envernizada com cores ori-
Atenas e Ruma pelo esforço dos humanistas. Mas, que é
entais; para dizer, desta vez, com Spengler: uma "pseudo-
a Renascençn? O uso da ex[)rcssão pelos historiadores foi
morfose". Os orientais conseguiram, cora relativa facili-
inaugurado por Michelet e Burckhardt; o conceito, porém,
dade, a assin:i]ação da civilização romano-helenística, cen-
é mais antigo. Os historiadores das artes plásticas no sé-
tralizada na bacia oriental do Mediterrâneo, e da qual a
culo X V I I I tinham em consideração especial aqueles pou-
maioria dos rcpresentntcs foram sírios, egípcios e meso-
cos artistas modernos — Leonardo, Miguel Ângelo, Rafael,
potâmios de nascimento; essa mesma gente, os últimos pa-
Correggio, Ticiano — que pareciam dignos de participar
gãos e os cripiãos orientais, constituiu a massa dos conver-
das glórias da Antigüidade clássica. Os românticos gosta-
tidos ao islamismo, que, deste modo, tem cm comum com
vam de acrescentar o nome de Duerer, e até de alguns ar-
a civilização helenística a paisagem e a substância huma-
tistas posteriores, como Rubens, Van Dyck, e Claude Lor-
na. A unidade da civilização islamítica, entre povos de
rain. São estes, mais ou menos, os nomes que definem o
gosto artístico de Goethe. Segundo a opinião dos classi-
6) C. H. Becker: Islamstuãien. Vol, I. Leipzig, 1924.
G. E. Grunebaum: Medieval Islam. Chicago, 1947, cistas ortodoxos, a humanidade moderna é, era geral, in-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 165
164 OTTO M A R I A CARPEAUX

pela influência da reforma religiosa de São Francisco Ç);


capaz de atingir o esplendor da arte antiga; contudo, a
c Burdach construiu uma nova linha de evolução: "Huma-
imitação assídua das obras de arte greco-romanas, durante
nismo — Renascença — Reforma", com o apogeu do hu-
o século XVI, teria produzido aqueles poucos artistas so-
manismo no século XIV, em Petrarca e Cola dí Rienzo, e
bremaneira geniais, dignos de ser venerados no Panteão
com as raízes do movimento inteiro na religiosidade fran-
da arte clássica. Ao mesmo tempo, a historiografia lite-
ciscana (^). Quase ao mesmo tempo, Duhem fêz a desco-
rária dos românticos fêz renascer as "littératures du Midi berta surpreendente de que os conceitos da astronomia e
de TEurope" (Sismondi): Ariosto e Tasso, Camões e Cer- da física modernas já se encontravam em nominalistas como
vantes. Fortaleceu-se a opinião segundo a qual o século Johannes Buridanus, Nicolaus Oresmius e outros escolás-
X V I teria sido época de uma prosperidade excepcional da ticos menos ortodoxos do século XIV C ) . Desde então, o
civilização humana, já liberta das cadeias medievais pelo conceito "renascença medieval" já não parecia paradoxo.
heroísmo geográfico de Colombo, pelo heroísmo religioso Afinal, Aristóteles é um dos espíritos mais poderosos da
de Lutero e pelo heroísmo científico dos Copérnicos e Ga- Antigüidade grega — e a assimilação da sua filosofia, no
lileus; e tudo isto se devis ao estudo da Antigüidade pelos século X I I I , por São Tomás e a sua escola, não teria sido
humanistas! No famoso livro de Jacob Burckhardt, porém, uma renascença? A palavra já aparece com o artigo inde-
a ênfase já é dada ao século XV. Com efeito, o trabalho finido e no plural. Até uma época bem anterior revela
principal dos humanistas pertence a este século; e os ita- aos estudiosos conhecimentos tão amplos da Antigüidade
lianizantes ingleses da época, os pré-rafaelistas, já tinham clássica, que se íala de uma "renascença do século X I I " ( " ) .
descoberto o esplendor maior das artes plásticas "antes A "Idade Média", considerada antigamente como época es-
de Rafael": Brunelleschi, Ghiberti, Donatello, Masaccio, tática de ortodoxia petrificada, perdeu esse aspecto: apre-
Fra Filippo Lippi, Bellini, Mantegna, Botticelli e Peru- senta-se com a nova característica de época de intensas
gino. O "Cinquecento" foi substituído, na admiração ge- lutas espirituais, com renovações periódicas, das quais a
ral, pelo "Quattrocento". Mas o recuo do conceito histo- primeira foi a renovação dos estudos clássicos na corte de
ríográfico não parou aqui. J á na exposição de Burckhardt Carlos Magno: a "renascença carolíngia" do século IX. É
aparece, como '"primeiro homem moderno", Francesco Pe- possível continuar essa série de renascenças, para trás e
trarca, que nasceu em 1304: e começaram a celebrar, como para a frente. A renovação do espírito romano no século
pai da arte moderna, o grande Gictto, que nasceu em 1267, V I , pela atividade legislativa do Imperador Justiniano,
dois anos depois de Dante. Pouco faltou para o próprio
Dante, considerado até então como o maior espírito da
Idade Média, ser nomeado inaugurador da Renascença. O
único obstáculo foi a questão religiosa: os homens da Re-
nascença passaram por libertadores, enquanto que Dante
i 7) H. Thode: Fram von Assisi und (Lie Anfaenge der Kunst der
Renaissance in lialien. Berlin, 1885.
8) K. Burdach: Rejormaüon, Renaissance, Humanismus. 2.^ ed.
Berlin, 1926.
foi o poeta máximo do cristianismo medieval, o poeta do 9) P. Duhem: Ètuães sur Léonarã ãe Vinci. 2.me série, Paris, 1904.
e S.me série. Paris, 1913.
tomismo; e a aversão à escolástica era muito forte. Mas
10) Ch. H. Haskins: The Renaissance of the Twelfth Century. Cam-
já se havia chamado a atenção para as energias religiosas bridge, 1927.
no movimento renascentista, mesmo em Erasmo; Thode G. Pare, A. Bunet, P. Tremblay: La renaissance ãu Xlle siè-
explicou os elementos de espirito novo em Dante e Giotto cle. Les écoles et Venseignement. Ottawa, 1934.
166 OTTO M A R I A GAHPEAUX HisTÓBiA DA LITERATURA OCIDENTAL 157

pela regra dos monges de São Bento, pelo governo auten- poucos e insuficientes os estudos sintéticos sobre a in-
ticamente romano do Papa Gregório, o Grande, é uma re- fluência antiga, em determinadas literaturas, e até em de-
nascença. Até na Roma do imperador Augusto, a revivifi- terminadas épocas. Seria fácil contentarmo-nos com ge-
cação da poesia grega por Horácio, Virgílio, e pelos poetas neralidades e construir de impressões vagas as imagens da
elegíacos, é uma renascença. São renascenças, posterior- Antigüidade, nas épocas da história ocidental. Mas reu-
mente, o classicismo francês do "siècle de Louis le Grand", nir com paciência algumas páginas de notas, quase de ca-
o classicismo inglês da "Augustan Age", no século X V I I I , tálogo, dará um resultado mais exato.
o classicismo alemão de Weimar, e até a ressurreição da Nas obras dos Padres da Igreja, escritores que pos-
"Antigüidade dionisíaca", em Nietzsche. Agora, já não é suíam toda a literatura e ciência antigas e se serviram de-
possível confundir a atuação do espírito greco-romano no las em defesa do Credo, encontram-se numerosas advertên-
Ocidente com a conservação estática da herança antiga no cias contra as leituras pagas, perigosas à pureza da ié e
islamismo: a história espiritual do Ocidente, segundo Man- dos costumes. A contradição não podia ser resolvida se-
donnet, é uma seqüência de renascenças. não por meio de uma sutileza, à qual os exegetas cris-
Essas renascenças consecutivas constituem um fenô- tãos do Velho Testamento já se tinham acostumado: a in-
meno inquietante: tentativas sempre repetidas de apode- terpretação alegórica. O secreto sentido teológico que os
rar-se da substância da civilização antiga; sempre repeti- Padres da Igreja acreditavam achar em certos textos pa-
das, porque talvez sempre malogradas. Afirma-se a influ- gãos, franqueava também a manuscritos menos inofensi-
ência imensa das letras greco-romanas nas literaturas me- vos, até a Ovídio, a entrada nos conventos italianos e ir-
dievais e modernas. Parece, porém, que todas as épocas landeses, e destes últimos saíram os primeiros professores
souberam escolher na Antigüidade apenas o que lhes era da filologia clássica, viajando pelo continente e levando
afim: cada época logrou somente criar uma imagem da os cristãos recém-convertidos ao uso dos abecedários e vo-
Antigüidade segundo a sua própria imagem, de modo que cabulários latinos e das leituras poéticas. O intuito dessa
já a época seguinte ficava na obrigação de abandonar o cruzada filológica não era puramente didático; familiari-
erro e incidir em novo erro. "Erros férteis", no sentido zar os povos germânicos com a língua latina significava
do pragmatismo. No fundo, a Antigüidade não influiu ligá-los à Santa Sé Apostólica em Roma. Eis o sentido
realmente naü literaturas modernas; só agiu como medida, íntimo das renascenças carolíngias e otonianas (^^). Al-
como critério, e o fato de, durante treze séculos, o crité- cuíno, conselheiro cultural de Carlos Magno, leu aliás os
rio da nossa civilização não ser imanente, mas encontrar- textos clássicos prestando toda a atenção à estrutura gra-
se fora, numa outra civilização, alheia e já passada, é a matical, sem perceber o conteúdo. As conseqüências dessa
marca mais característica da cultura ocidental. renascença escolar nem sempre foram, evidentemente, as
O estudo das transformações da imagem da Antigüi- desejáveis. Terêncio, Virgílio e Ovídio, adotados como
dade nas letras modernas é de grande importância; eqüi- livros didáticos, deixaram nos espíritos adolescentes cer-
vale a acompanhar de fora, como de um observatório co- tas sugestões eróticas, que se ligam intimamente às ori-
locado num outro planeta, a nossa própria evolução, e tra-
çar, como numa antecipação histórica, o caminho que nos 11) H. Naumani\: Karolingische unã Ottmiische Renaissance. Frank-
espera. Infelizmente, esse estudo nunca foi feito. São furt, 1926.
168 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 169

gens da literatura moderna. No Waltharius manu fortis, ferença alguma entre as parábolas do Evangelho de Lu-
versão latina de uma saga alemã, redigida por volta de cas e os contos de Ovídio, entre as viagens dos apóstolos
930 pelo monge Ekkehard de St. Gallen, reina um espírito e as dos heróis homéricos. Estácio fornece uma infinidade
de doce galantaria virgiliana, e em outro poema latino, de episódios a Dante, Chaucer, L y d g a t e ; a Tebaide ins-
Ruodlieb, que, um século mais tarde, ura monge do con- pira um "ciclo" de romances medievais, o "Roman de Thè-
vento de Tegernsee na Bavária compôs, encontram-se até bes" (^^), As personagens antigas vestem roupas medie-
alusões ovidíanas; mas até o século X I os autores silen- vais. Nas epopéias e romances do "ciclo antigo", gregos
ciam, prudentemente, o nome de Ovídio. Contra os graves e troianos, Encías e Dido, os irmãos inimigos de Tebas e
equívocos que as cenas eróticas, nas comédias de Terên- Alexandre, o Grande, César e Cleópatra, transformam-se em
cio, suscitaram, reagiu, no século X, a religiosa Hrotsvpitha
cavaleiros e damas feudais, atualizados como numa farsa
de Gandersheim, escrevendo, em estilo terenciano, edifi-
de Bernard Shaw; Aristóteles aparece, nas miniaturas,
cantes comédias de santos. Mas não sabemos nada sobre o
como monge, de batina e cora o breviário na mão. O mundo
êxito da iniciativa. Só sabemos que o livro menos cristão
antigo do século X I I I é um tapete multicolor, comparável
entre os livros cristãos da Antigüidade, a estóica Conso-
lado philosophiae, de Boécio, se tornou leitura predileta aos tecidos amplos e fantásticos que o Museu Cluny guar-
da época. Alfredo, o grande rei dos anglo-saxões, tradu- da. Essa vasta assimilação da Antigüidade, nos séculos
ziu-a para consolação dos seus patrícios menos cultos, e X I I I e XIV, corresponde a necessidades íntimas da alma
um provençal desconhecido parafraseou a Consolado, num medieval: sentimentos recalcados e pensamentos oprimi-
poema intitulado Boecis. Uma época de cristianização im- dos libertam-se na atmosfera irreal de uma civilização remo-
perfeita preferiu, evidentemente, os autores semipagãos ta e alheia, e, no entanto, admitida e justificada. Certas su-
aos cristãos. perstições populares que, nos séculos XI e X I I , as pasto-
O método conciliatório dos Padres da Igreja venceu, rais dos bispos tinham severamente condenado, cristali-
porém, as conseqüências oposicionistas da renascença ca- zam-se em torno da figura misteriosa de Virgílio, o poeta
rolingia. O grande movimento ascético do século X en- pagão, que freqüentava as sibilas e teria profetizado, na
fraqueceu-se quando não se realizou o fim do mundo, Écloga IV, o nascimento do Cristo ('^). Os educadores
anunciado p°lo ano 1000 em profecias apocalípticas. O ainda insistiram no valor das Metamorfoses como manual
mundo cristão estabeleceu-se firmemente na terra, e o de mitologia e, ademais, na necessidade de "purificar" o
pensamento antigo lhe ofereceu para isso os fundamentos texto do Ovídio; é prova disso o divulgadíssimo Ovidias
mais sólidos. A divulgação das obras de Aristóteles por moralizatus, de Pierre Bersuire (séc. X I V ) Ç*). Mas fora
tradutores como Gerardus de Cremona e Dominicus Gun- / da escola é justamente o Ovídio erótico que tem as prefe-
disalvi demonstrou a compatibilidade perfeita da fé cristã
com o pensamento grego, compatibilidade da qual a sín-
tese de São Tomás é o monumento. Estabeleceu-se uma 12) C. Calcaterra: Introdução à reedição da Tebaide, traduzida por
simbiose. Na enciclopédia imensa de Vincentius de Beau- C. Bentivoglio (1729). Torino, 1S28.
13) D. Comparetti: Virgílio nel médio Evo. 2." ed. Firenze, 1896.
vais ( t c. 1264), o Speculum tnaius, toda a Antigüidade está
14) F. Ghlsalberti: "Ovidius moralizatus". (In: Stuãi romanzi,
presente, em inúmeras citações; já não se sente quase di- XXITI, 1933.)
170 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 171
rcncias da Idisdc Média ('^). O novo culto da mulher, ines- em cuja obra o feiticeiro Virgílio se transforma em voz da
perada sccnlarização erótica do culto da Virgem, encon- "Ragion", e que põe os poetas e sábios da Antigüidade
tra a sua psicologia e as suas expressões em Ovídio, na poe- no limbo, salvando-os das penas infernais, continua a ser
sia sensivelmente ovidiana dos trovadores provençais; em homem medieval, pela identificação apaixonada do Im-
Albrecht de Halberstadt, que já por volta de 1210 arrisca pério Romano com o Império cristão. Petrarca não sabe
uma tradução alemã das Meamoiíoses; em Chrétien de bem distinguir entre o estoicismo boethiano do seu De ie~
Troyes, nos primeiros romances de adultério da literatura mediis utriusque fortunae e o ascetismo do seu De con-
francesa; era Guillaume de Lorris, cujo Roman de Ia Rose temptu mundi; Cícero é o seu ideal estilístico, mas em De
transforma em conto alegórico de conquista de uma mulher vita solitária baseia o pensamento horaciano "Beatus ille
os conselhos da Arte de Amar; em Chaucer, que traduziu o qui procul negotiis. . . . " em argumentos de ura eremita da
Roman de Ia Rose, e imitou, na Legende oi Goode Women, Tebaida. E Boccaccio, o erótico ovidiano do Niníale
algumas das Heróidas. O elemento erótico ovidiano, asso- d'Ameto e da Fiammetta, é igualmente o asceta dos seus
ciando-se à misoginia lasciva dos clérigos medievais e à últimos sonetos. Ao Norte dos Alpes, clérigos e leigos
corrente geral das sátiras medievais contra as mulheres, deleitam-se incansavelmente no anedotário antigo de Va-
vai brutalizar-se na glosa da Arte de Amar, no Libro de lério Máximo, ornando-o com miniaturas nas quais os gre-
buen amor, do Arcipreste de Hita, e era certas grosserias da gos e romanos se transformam em clérigos e leigos, seus
continuação do Roman de Ia Rose, de Jehan de Meung. Por leitores. Petrarca, o autor de De viris illustribus e Rerum
outro lado, Boécio continua como fonte inesgotável de memorandarum libri IV, e Boccaccio, o autor de De genea-
consolações í-losóficas para o indivíduo aflito, isto é, fora logiis deorum gentilium e De casibus virorum iUustiium,
das consolações da religião cristã. J á por volta de 1200, servem-se de Valério Máximo e de autores semelhantes de
o italiano Arrigo di Settimello conseguiu fazer uma pará- um modo diferente: para conservar um tesouro de lem-
frase bastante independente da obra do romano: Elegia de branças, ameaçado de olvido. No' fundo, Petrarca e Boc-
diversitate Foríunae et de consolatione Philosophiae; e era caccio sentem-se romanos da decadência, num mundo tur-
1381, Chaucer traduziu o Boécio em linguagem como- bulento e corrompido. As letras clássicas principiam a de-
vida, que atesta uma religiosidade muito pessoal. sempenhar a função de literatura de evasão.
Os humanistas italianos do "Trecento" acentuam o pa- No "Quattrocento", esse movimento continua. Ovídio
pel das letriJs antigas como reguladoras da mentalidade já perde a importância, porque já não se precisa da
medieval. Aos italianos, herdeiros naturais do pensamento sua influência vitalizadora. Após o Petrarca do Bucolicum
romano, o paganismo causa menor estranheza. Aparece Carmen e o Boccaccio do Niníale Fiesoíano e Niníale
até o entusiasmo pelas ruínas e pela glória antiga. Por ã'Ameto, os poetas italianos do-século XV — Lourenço, o
outro lado, a corrente ascética, que proveio da reforma Magnífico, Poliziano, Sannazaro — são todos bucólicos,
franciscana, constitui um obstáculo psicológico. Dante,
mais ou menos evasionistas, imitadores de Teócrito e Vir-
gílio. O traoalho imenso dos humanistas contemporâneos,
15) L. Karl; "Ovide, poete de Famour au moyen-âge", (In: Zeitsch- descobrindo e editando manuscritos, comentando poetas e
rift fiier romanische Philologie, XLIV, 1924.)
D. Scheludko: "Ovld und die Trobadors". (In' Zeitschrift juer filósofos, influi pouco na literatura — primeira advertên-
romanische Philologie, LIV, 1934.) cia de que o conhecimento erudito da Antigüidade e a sua
172 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 173

Influência viva são coisas diferentes. Aos eruditos que epigonismo, que nos numerosos épicos espanhóis e portu-
proclamam um novo mundo em nome da Antigüidade gueses se tornou quase obsessão (^^). Compreende-se bem
opõem-se os poetas que choram elegias em nome da Anti- que a parte mais epigônica da obra virgiliana, a bucólica,
güidade. tivesse exercido atração muito forte, fortalecendo as ten-
Só no "Cinquecento" — expressão na qual se resume o dências pastorais, herdadas do "Quattrocento". H á mais a
auge da Renascença — as literaturas européias sofrem o forma virgiliana do que o seu espírito na poesia pastoral de
impacto maciço do classicismo. O número de traduções e Spenser e Baldi, e na poesia didática de Giovanni Rucellai
imitações aumenta vertiginosamente. Renascença e Lite- (Le A pi, 1524; La Coltivazione, 1546) ('"). Mas em Gar-
ratura do Ocidente identificam-se. cilaso de Ia Vega, Ronsard, Du Bellay, Fray Luis de León,
Em Homero, os grecizantes acreditavam encontrar a vive o autêntico espirito virgiliano — a atitude elegiaca
imagem da sua própria sociedade, aristocrático-heróíca e, diante da Natureza, a síntese moderada de paganismo e es-
no entanto, ]á culta e até requintada; as dissensões entre píritualismo: o humanismo cristão. Apenas, a época não
os reis gregos em face da Tróia assediada lembravam as sabia distinguir entre Virgilio e Horácio, em cuja esfera
primeiras guerras européias, na Itália, em face do perigo de influência se encontram os mesmos nomes; Bembo, Ron-
turco, e Ulisses parecia o modelo dos conquistadores da sard, Du Bellay, Garcilaso. Fray Luis de León traduziu
índia e da América. Mas as imitações — como a Itália li- 24 odes horacianas. A particularidade de Horácio — a re-
terata dai Goti (1548), de Trissino, ou a Avarchide (1570), tirada contemplativa e a meditação maliciosa — revelou-se
de Alamanni — são pálidas e inábeis, e apenas um poeta apenas a poucos espíritos desiludidos e solitários: ao Ari-
solitário e apaixonado como George Chapman conseguiu osto das sátiras, a Sá de Miranda, Fernando de Herrera, aos
fazer uma tradução, que tem valor de original: sua Iliad irmãos Argensola, ao poeta polonês Kochanowski ('"). Fora
(1598/1611) e sua Odyssey (1612/1614) são grandes poemas da solidão horaciana, os quinhentistas exageram e moder-
elisabetianos, torrentes de linguagem impetuosa. Virgilio nizam os modelos: no poema erótico de Marlowe, o modelo
era mais acessível — a afinidade maior das literaturas mo- Ovídio está deformado em paixão anárquica que o elegíaco
dernas com a literatura latina do que com a grega explica- romano desconhecia; S|)cnser e outros poetas elisabetianos
se pelas menores dificuldades lingüísticas entre os povos conferem um novo esplendor aristocrático ao epitalâmio
neolatinos e pelo peso religioso e institucional da herança de Catulo. Mas Píndaro continua, apesar dos esforços da
latina no Ocidente. Ronsard, que ainda no prefácio da Pléiade de imitá-lo, inacessível.
Franciade de 1572 celebrara Homero, declara-se no prefácio
O outro amor infeliz do "Cinquecento" foi a tragédia
de 1584 em favor de Virgílio; na querela em torno de Tasso
clássica com coros, à maneira, de Sófocles. As traduções
trata-se, no fundo, da vilóna de Virgílio sobre Homero ('*•).
da Antigone (Alamanni, 1533; Jean-Antoine de Baif, 1573)
A tradução da Eneida por Annibale Caro é a primeira gran-
e Electra (Lazare de Baif, 1537) são mais tentativas de cor-
de tradução de um poema antigo (a data da publicação
póstuma, 1581, não é decisiva); a influência da epopéia
17) I. S. Morgan, K. Macbenzie, C. G. Osgood; The Tradition of
virgiliana em Vida, Tasso, Camões, Ercilla, revela certo Virgil. Princeton, 1930.
18) E. G. Gardner: Virgil in Italian Poetry. London, 1931,
19) M. E. Stemplinger: Das Fortleben der horazischen Lyrik seit der
16) G. Finsler: Homer in der Neuseit. Leipzig, 1912. Renaissance. Leipzig, 1906.
174 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 175

rigir os defeitos da imitação feita por Trissino (Sofonisba, e Jean-Antoine de Baif (Le Brave); Menaechmi, por Bib-
1515) e Ruccellai (Oreste, 1525). Ao mesmo tempo res- biena (Calandria), Firenzuola (Lucidi), Trissino (Similli-
surge Eurípides (tradução da Hécuba por Lazare de Baif, mi), Cecchi (La moglie), Lope de Rueda (Los enganados),
da Hécuba e Electra por Fernán Peréz de Oliva): primeiro Hans Sachs {Monechmo), e finalmente Shakespeare (Co-
sintoma da transição para a tragédia romana, psicológico- medy oi ETTOIS); Amphitrao, por Dolce (Marito) e Ca-
retórica, de Sêneca. Deveu-se o passo decisivo a Giovanni mões (AnfitTiões); Aulularía, por Lorenzino de' Mediei
Battista Giraidi Cinzio: sua Orbecche (1541) é a primeira (Aridosia) e Gelli (La Sporta); Casina, por Maquiavel
tragédia neoclássica que foi realmente representada. Os (Clizia) e Giovanni Battista delia Porta (Fantesca); Capti-
nomes de Jodelle, Buchanan e Thomas Sackville {Gorbo- vi, por Ariosto (Suppositi); Rudens, por Dolce (Ruffiano);
duc, 1562) indicam a trajetória da continuação. Nas tragé- Trinummus, por Cecchi (La dote). Havia até combinações
dias senequianas de Robert Garnier (Porcie, Troade), a engenhosas de várias peças plautinas, como a Cassaria, de
poesia francesa atingiu quase as esferas elisabetianas. A Ariosto, combinação de Poenulus e Mostellaria com ele-
síntese de elementos senequianos e populares em Kyd abre mentos do Heautontimoroumenos, de Terêncio. As repre-
caminho à tragédia elisabetiano-jacobéia. sentações dessas peças em Ferrara, Urbino ou Roma rea-
A grande conquista teatral do século XVI foi Flauto. lizaram-se em teatros meio improvisados, nos quais palco
Não era muito apreciado o fino tom de conversação de Te- e platéia quase se confundiam; comédias plautinas no
rêncio, que aparece quase que só pela tradução do Eunu- meio de uma sociedade plautina.
chus por Jean-Antoine de Baif (1573) e pela imitação dos Fora do teatro, porém, essa sociedade oscilava entre
Adelphi nos Dissimili, de Cecchi; no século XVI, Terêncio a lascívia de Luciano, que Aretino imitou com tanta feli-
é livro escolar, estudado para aprender frases latinas. Em cidade, e do qual até o santo Thomas Morus traduziu tre-
Plauto, porém, a sociedade quinhentista se reconhece; as chos, e o entusiasmo platônico; Platão c o spiritus rector
aventuras da jeiinesse dorée romana repetem-se entre as de toda a poesia quinhentista, de Camões até Miguel Ânge-
"escravas" e os "alcoviteiros" da Roma papal, de Florença, lo. E os que não conscguinun hormcnizar Platão com o dog-
Ferrara e Voneza; e essas cidades são os pontos finais das ma cristão, preferiram ficar, como Montaígne, às portas do
"viagens de cavaleiro" dos jovens aristocratas de toda a cristianismo, consolando-se com o estoicismo de Sêneca e
Europa. Constroom-se teatros para representar Plauto, que Plutarco. Nas grandes figuras greco-romanas de Plutarco,
é, desde então, talvez o mais traduzido e mais imitado de a época viu concretizado o seu ideal humano de homens cul-
todos os autores da Antij^iiidade {'"). Além de grande nú- tos e gentis e, contudo, heróicos: por isso, Plutarco foi tão
mero de traduções, qunsc todas as peças de Plauto foram perfeitamente assimilado, graças à tradução francesa de
imitadas: Miies gloriosas, por Arctino (Talanta), Lodovico Amyot (1559), fonte de meditações intermináveis de Mon-
Dolce (Capitano), Nicholas Udall (Ralph Roister Doister) taigne, e à tradução inglesa de Thomas North (1579), fonte
das reflexões políticas e psicológicas de Shakespeare.
O "Cinquecento" não conseguiu compreender Homero,
20) K. V. Reinhardstoettner: Plautus und ãie spaeteren Bearbeitunr Sófocles, Píndaro e Horácio. A sua imagem da Antigüi-
gen seiner Lustspiele. Leipzig, 1886. dade era formada por Virgílio e Plauto, Platão e Plutarco,
V. de Amicls: l/imitazione latina nella commedia italiana, Fi-
renze, 1897. e, acima de tudo, pela adoção da língua latina como língua
HisTÓHiA DA LITERATURA OciDEirTAL 177
176 OTTO M A R I A CABPEAUX

dius Salmasius (1588-1653), famoso como defensor do in-


internacional de uma sociedade de aristocratas cultos, de
feliz rei Carlos I da Inglaterra, erudito em coisas jurídi-
uma elite evasionista e, portanto, sem tragédia. O autor
mais lido do século, até o início da Contra-Reforma, é Cí- cas e militares, consagrou quinze anos de vida a assunto tão
cero ( - ' ) . importante como Plinianae exercitationes in Solinum, es-
gotando-o para sempre. Johannes Fridericus Gronovius
A "Antigüidade" do século X V I I , do Barroco, tem
(1611-1671) conheceu, como ninguém, as intimidades da
pouco daqui?le exclusivismo aristocrático. Aos cavaleiros
moeda romana (Commenturius de scstcrtiis), e Johannes
e damas de festas latinas substituem-se os scholars bur-
Graevius (1632-1703) reuniu o enorme Thcsaurus antiqui-
gueses do "CoIIegium latinum"; aos feudais ociosos, os tra-
tatum Italiae. A maioria desses scholars são holandeses;
balhadores fanáticos da erudição filológica e arqueológica.
e mesmo quando franceses ou alemães, pontificaram, pelo
Joseph J u s t u s Scaliger (1540-1609), filho do filólogo e
crítico Julius Caesar Scaliger, homem cheio de orgulho e ntienos, na Universidade holandesa de Leyden. Mas a na-
grande brigão, é o primeiro de uma geração de polígra- cionalidade não importa: todos eles têm os nomes latini-
fos de versatilidade incrível: edita e interpreta Terên- zados, e todos eles lembram imediatamente os retratos de
cio Varro, Virgílio, Catulo, Tibulo, Propércio, Manílio, dignos professores com perucas enormes, entre estantes
Teócrito, Apuleio e César, e trata, nos seus Opuscula varia cheias de pesados in-fólios. É a época da nota erudita ao
(1610), de tudo o que existe e não existe entre o céu e a pé da página.
terra, mas sempre em termos de filologia clássica. J u s t u s A Antigüidade torna-se mania de burgueses eruditos:
Lipsius (1547-1606), que aderiu sucessivamente ao catoli- fazem, com paciência enorme, as primeiras traduções per-
cismo, ao luteranismo e ao calvinismo, e era, no fundo, um feitas, o Virgílio e Ovídio de Dryden, o Virgílio de Von-
estóico (Manuductio ad Stoicam philosophiam, 1604), sabia del, o Lucrécio de Alessandro Marchetti, o Lucano do es-
escrever sobre assuntos tão variados como De militia ro- panhol Jaureguí e o do inglês Rowe; e ao lado desses gran-
mana. De glaãiatoribus, De amphitheatro. De cruce, De des artistas calmos aparece até o materialista Hobbes, tra-
vestalibus. Isaac Casaubonus (1559-1614), conselheiro do duzindo Homero (1675). Em Lucano, esses burgueses apre-
rei Jaime I da Inglaterra, oscilava apenas entre De saty- ciam a patética altivez do literato erudito perante os pode-
rica Graecorum poesi et Romanorum satyra e Exercitatio- rosos deste mundo (^^). Em horas de ócio, os poetas eru-
nes de rebiis sacris et ecclesiasticis. Janus Gruterus (1560- ditos sabem brincar, na poesia horaciano-anacreôntica de
1627) colecionou, sozinho, as Inscriptiones antiqaae totius Chiabrera, Menzini, RoUi, Esteban Manuel de Villegas e
orbis romani. Gcrhardus Vossius (1577-1649) foi o maior Robert Herrick. Ressentimentos contra a sociedade aris-
perito em etimologia, retórica, latim medieval, historio- tocrática inspiram-lhes, enfim, a,compreensão perfeita da
grafia antiga e teologia pelagiana, tudo a um tempo só. malícia horaciana, nas sátiras e epístolas que Dryden (Re-
Daniel Heinsius (1580-1655) foi o grande comentador de ligio laici) e Boileau tão bem imitaram. Vive — coisa rara
Hesíodo, Teócrito e do Novo Testamento, e fêz, com vir- em toda a história literária — verdadeiro espírito hora-
tuosidade igual, versos em grego, latim e holandês. Claa- ciano, em vários poetas espanhóis da época, nos sonetos de

31) R. Sabbadini: Storia dei ciceronianismo. Torino, 1885. 22) E, Fraenkel: 'Lukan ais Mittler des «níiífcen Pathos. Hamburg,
W. Ruegg: Cícero und der Humanismus. Zuerich, 1946. 1927.
178 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATUBA OCIDENTAL 179

Milton, nas poesias de Marvell e Testi (^*); e, por outro gostam ainda das situações equívocas do Eunucbus e do
lado, encontra-se algo de furor sagrado contra o século Phormio, imitadas por Brcderoo em Moortje, Wycherley
nas traduções que Dryden íêz de Pérsio e Juvenal. A gran- em The Country Wife, e Molière nas Fourberies de Scapin.
de ambição dos poetas-burgueses do século aristocrático é Mas a peça preferida de Terêncio é a mais finamente psi-
a poesia sagrada de Píndaro, imitada por Chiabrera, Guidi, cológica, Adelpbi. modelo da Scornful Lady, de Beaumont
Malherbe, Cowley, Dryden (^*). Mas a arma satírica mais e Fletcher, e da École dos pcrcs, de Baron, e sobretudo da
eficiente da literatura erudita dos burgueses do Barroco é École des maris, de Molière.
a imitação da epopéia herói-cômica: a Secchia rapita, de De Sófocles já não se fala fora dos círculos eruditos,
Tassoni, é o melhor exemplo; Villaviciosa, na Mosquea a não ser com louvores insinceros. A tragédia é meio re-
(imitada de Folengo), e Lope de Vega, na Gatomaquia, tórica, meio psicológica, e quase sempre politica, como a
brincam apenas; o Hudibras, de Butler, embora de ten- de Sêneca. O malogro de Trissino, na imitação de Sófocles,
dência oposta, antibarrôca, resume e termina um século de fora decisivo. Giraldi Cinzio afirma francamente a supe-
história inglesa. rioridade de Sêneca sobre os gregos; na Orbecche apare-
Flauto continua a fornecer matéria-prima aos comedió- cem, como em Sêneca, juramentos de vingança, fúrias, es-
graf os: reconhece-se o Miles gloriosus no Captain Bodadil, pectros, mortes em pleno palco. A tragédia senequiana
em Every Man in His Humour, de Ben Jonson, e no capi- fascinou toda a Europa, pela psicologia sutil e cruel, e pe-
taine Matamore, da Illusion comique, de Corneille; Menae- los lugares-comuns da retórica retumbante. Senequianos
chmi, nas comédias do mesmo nome, de Rotrou (1636) e encontram-se na Alemanha (Opitz, Gryphius, Lohenstein),
Regnard (1705); Anfitrião, em obras de Rotrou (Les deux na Holanda (Vondel, Samuel Coster), até na Suécia (Stjern-
Sosies, 1638), Molière e Dryden; Aulularia, em The Case hjelm). Muret e Jodelle precedem o maior senequiano
is Altered, de Ben Jonson, e em Warenar, de Hooft; Capti- francês: Robert Garnier. A influência de Garnier, na In-
vi, nos Captifs, de Rotrou, e em A New Way to Pay Old glaterra, é um dos fatos mais importantes da história lite-
Debts, de Massinger; Mostellaria, no English Traveller, de rária comparada (-'). Thomas Kyd traduziu a CornéUe, de
Thomas Heywood, e em Retour imprévu, de Regnard; Bac- Garnier, como Pompey the Grcat, his Faire Corneliaes Tra-
chides, em L'étourdi, de Molière. Mas tudo isso não passa gedy (1595) ; o mesmo Kyd aliou, na Spanish Tragedy, a
de matéria-prima para farsas divertidas. A fina sociedade "tragédia de vingança" senequiana aos elementos popula-
prefere o comediógrafo mais delicado, que só servia, antes, res do teatro inglês. The Spanish Tragedy é a peça exem-
de leitura escolar: Terêncio. Os profissionais do teatro plar do teatro elisabetiano-jacobeu: dela descendem Titus
Andronicus, Richard III, Macbeth, e a mais famosa das
tragédias de vingança, Hamiet; depois, Bussy d'Ambois, de
23) M. Menéndez y Pelayo: Horacio en Espana. 2 vols. Madrid, 188í,
G. Curcio: Orazio Flaco stuãiaLo in Itália dal sécolo XIII Chapman, Antônio and Mellida, de Marston, The Reven-
ai XVIII. Catania, 1913. gei^s Tragedy, de Tourneur, as tragédias de Webster, e The
24) A. Sommariva: La lírica pindareggiante in Itália ãa Orasio a
Chiabrera. Gênova, 1904.
E. R. Keppeler: Die pinãarische Ode in der ãeutschen Poesie des 25) Sobre a influência de Sêneca no teatro renascentista, e parti-
n. unã IS. JahrhunãerU. Tuebingen, 1911. cularmente na Inglaterra, v. L. E. Kastner and H. B. Charlton:
A. H. Nethercot; "The Relation of Cowley's Pindarics to Pmdar's The Poetical Works o/ Sir WilUam Alexanãer. Vol. I, Introd.
Odes", (In; Modem Philology, XIX, 1921/1922.) Manchester, 1921,
180 OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 181

Triumph of Death, de Beaumont e Fletcher. Na França, meiras poesias de Goethe e Puchkín (^'). Harmoniza-se
Garnier não se tornou modelo, mas influiu na Medéia de com tudo isso a ternura ovidiana de Monti, o aspecto bucó-
Corneille; e dela descende a tragédia de psicologia femini- lico de Virgílio nas traduções de DeliUe e Cesare Arici, e
na, de Racine: Andrômaca, Ifigênia, Fedra. Nestas, Sêneca na poesia pastoral de Pope, Thomson e William Collins, e
é superado pelo próprio modelo do romano: Euripides. a elegância de Pope ao transformar, no Rape of the Lock,
Pela primeira vez, o Ocidente moderno, tão profunda- a sátira herói-cômica em festa aristocrática. Toda a poesia
mente latinizado, recebe um raio de beleza grega; no fundo, inglesa do século X V I I I , antes da irrupção do pré-roman-
porém, é uma síntese francesa. tismo, tem sabor virgíliano (^^)-
O Barroco deu Plauto por Sêneca. Preferiu a sátira Terêncio continua a fornecer modelos de comédia aris-
horaciana e a epopéia herói-cômica a Virgílio. Platão e tocrática; Eunuchns reaparece na Bellamira, de Sedley, no
Plutarco são substituídos pelo estocismo sombrio de Sê- Eunuque, de Brueys e Palaprat e no Jacob de Tyboe, de
neca e Lucano. Não consegue pôr a peruca a Píndaro, mas Holberg. Plauto continua a fornecer modelos à farsa, bas-
transforma o mundo em dicionário e edição crítica. É a tante atenuada, como revela a comparação da Mostellaria
Antigüidade da erudição, da malícia e da tragédia. com o Driimmer, de Addison, do Miles gloriosus com o Die-
O século X V I I I , que parece o primeiro dos mod«r- derich Menschenskraek, de Holberg, do Trinummus com o
nos, é, em certo sentido, mais arcaizante do que todos os Trésor cachê, de Destouches, dos Captivi com o Schatz, de
precedentes: parece que receia avançar um passo sem Lessing, dos Menaechmi com os Due gemeJli veneziani, de
estar autorizado por um modelo antigo. Mas a Antigüi- Goldoni. O próprio Horácio é interpretado como poeta
anacreôntico, menos satírico do que paisagista, em Pope
dade permite-lhe tudo. Homero, ocupando enfim o lugar
(Imitations oi Horace, 1733/1739), Cowper, William Col-
de Virgílio, aparece na tradução elegante de Pope (Iliad,
lins (^To Evening e Od. I, 5), em Chénier (Élégies), em
1715/1720; Odyssey, 1725/1726), na prosaica e vigorosa ver-
Meléndez Valdés e Leandro Fernández de Moratin; no ar-
são de Houdart La Motte {Iliade, 1714), através das vagas
cadismo de Filinto Elisio e na tradução italiana de Fran-
e poéticas nuvens nórdicas da tradução de Cowper (1791),
cesco Cassoli Verernos também aparecer um Horácio mais
através do pré-romanismo germânico da tradução de Vosi
sério, mais pensativo, nas odes de Parini, e um Horácio
{Oâyssee. 1781; Uias, 1793), da qual descende, por turno, a
ovidianamente exilado entre os "bárbaros" na poesia do
poesia madura de Goethe; e aparece o melódico classicis-
húngaro Daniel Berzsenyi,
mo italiano da Iliade, de Monti, e da Odissea, de Ippolito
Pindemonte í^"). O Rococó tem um reverso curioso. O espírito virgília-
no de Fénelon encontra-se na "op"osição"; / / Giorno, o poe-
A Antigüidade do Rococó é um céu côr-de-rosa, cheio
ma irônico de Parini contra as futilidades da vida aristo-
de ninfas e amoretti, sobre um banheiro luxuoso ou ura
crática, é uma espécie de "Georgicas urbanas", e no Peder
parque artificial; pelo meM^os, é esta a impressão sugerida
Paars, a epopéia herói-cômica de Holberg, aparece o pro-
pela poesia anacreôntica de um Bernis, Giovanni Meli,
Meléndez Valdés, Hagedorn, Gleim, Uz, e ainda pelas pri-
27) F . Ausfeld: Dle deutsche anakreontische Dichtung des 18. Jah-
rhunãerts. Strasbourg, 1907,
Í6) I. Schott: Homer and His Influence. London, 1826. 28) E. Nitschie: Virgil and the English Poets. New York, 1919.
182 OTTO M A R I A CABPBAUX HisTÓBiA DA LITERATURA OCIDENTAL 183

blema social do servo, com certa rusticidade. A brutalida- em Hoelderlin, na poesia patriótica de Quintana, nas so-
de é também outra característica do século em que os "pas- lenes odes russas de Derchavin. Um Plutarco diferente do
tores" de Versalhes e o Marquês de Sade são contemporâ- da Renascença — um Plutarco de revoltas catilinárias, en-
neos. A par da suavidade do tibuliano Savioli e do rea- che de entusiasmo os Raeuher, de Schiller, e as tiradas ti-
lismo teocritiano de Chénier e Landor surge a sensualida- ranicidas de Rousseau e Alfieri A eloqüência de Demós-
de properciana das Roemische Elegien de Goethe e dos tenes, nobre e violenta, substitui a urbanidade de Cícero, e
poemas do sueco Kellgrén; e o idílio de Paulo e Virgínia ressoa nos discursos dos dois Pitts, de Fox, Burke, Can-
será substituído pela ingenuidade mais nua da tradução ning, Brougham, na Câmara dos Comuns (""),
de Daphnis et Chloé feita por Courier. Sêneca volta da In- O fato mais importante dessa evolução é a substi-
glaterra e enche o teatro francês com os horrores de Cré- tuição dos romanos pelos gregos; de Virgílio por Homero,
billon père e os efeitos melodramáticos de Voltaire. Apa- de Horácio por Píndaro, de Sêneca por Sófocles, de Cíce-
recem, então, "Antigüidades" inesperadas: a incredulidade ro por Demóstenes C^**). Essa substituição, já iniciada pe-
materialista de Lucrécio, na imitação de Chénier e na tra- los pré-romântícos ingleses do século X V I I I , foi princi-
dução alemã de Knebel; a sátira violenta de Juvenal, em palmente obra dos poetas e filólogos alemães de 1800; cons-
Samuel Johnson (London corresponde à Sát. I I I , e The titui o pendant da abolição de conceitos importantes do Di-
Vanity oi Haman WisAes à Sát. X) e no Misogallo, de reito romano pelo Código de Napoleão. O ensaio de Schil-
Alfieri. ler Sobre Poesia Ingênua e Sentimental (1796) fornece um
A contar de 1750, o pré-romantismo europeu criara uma lema: a poesia latina era "sentimental", porque de segunda
imagem inteiramente nova da Antigüidade. Uma ternura mão, epigônica e alexandrina; à índole de originalidade
de feição diferente da do Rococó — o sentimentalismo — dos povos "novos", "modernos", corresponderá a poesia
tira efeitos inéditos daquele velho livro didático que é "ingênua", original, dos gregos. O pré-romantismo pré-re-
Terêncio: a Anãria, pouco imitada até então, forneceu, de- volucionário gostava de acentuar os elementos primitivos
pois dos Conscious Lovers, (1722) de Steele, um novo da civilização grega, o realismo ingênuo, o individualismo
tipo de comédia sentimental; e os Adelphi transformaram- apaixonado. Com a revelação do caráter burguês da Re-
se, no Pèrc de tamille, de Diderot, em peça burguesa. Eu- volução, desde o Diretório, e o advento do estilo "Empire",
rípides é ainna interpretado através de Racine, em Alfieri neoclassicista, a nova imagem da Antigüidade se tornou
(Alceste, PoUnice) e Goethe (Iphigenie auf Tauiis); e, estática. Formou-se a Antigüidade "olímpica" de Weimar
tanto num como noutro (e mais tarde em Oehlenschlae- e de todos os classicistas europeus do século XIX, o Olim-
ger), percebe-se a influência de Sófocles; também, pela po de uma civilização de beleza.mediterrânea e equilíbrio
primeira vez na história moderna, Esquilo se torna mais do feliz, superior a todas as civilizações posteriores: o ideal
que um nome; já em 1738, Thomson traduzira o Agamêm- comum da elite dos homens cultos da Europa. Esta "An-
non, e Alfieri em Agauiemnone e Oreste revela-se um apai-
xonado esquiliano, embora não autêntico. Pela primeira
vez, na história das literaturas modernas, Píndaro torna-se 29) C D . Adams: Demosthenes and His Influence. New York, 1927.
um pouco mais acessível: em Gray (The Progress of Poesy, 30) L. Dimier: Histoire et causes ãe notre décadence. Paris, 1934.
W. Rehm: Griechentum unã Goethezeit. GescMchte eines Glau-
The Bard), em Foscolo, nas odes religiosas de Klopstock, bens. 3." ed. Berlln, 1952.
184 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 189

tiguidade estática" — e estética — é a que aparece nos fica" dos materialistas e evolucionistas. Do mesmo modo,
manuais históricos, até hoje. É a Antigüidade de Renan a unidade latina não pôde ser substituída por uma uni-
(Prière sur VAcropole), de Burckhardt (antes de êle con- dade grega. A língua grega não encontrou o apoio que
ceber a História da Civilização Grega) e dos scholars de o latim sempre tivera nas línguas neolatinas; o classictsmo
Oxford e Cambridge. grego revelou-se coisa artificial e dificilmente assimilável.
Esta "Antigüidade estática e estética", defendida até Ao contrário, a distinção nítida entre a Antigüidade grega
hoje pelos humanistas da escola secundária, já não cor- e a Antigüidade romana levou a dúvidas com respeito ao
respondia a necessidades vitais de uma civilização homo- valor absoluto do ideal antigo em geral. O primeiro re-
gênea. Não se baseava no consenso da sociedade, e sim de flexo dessa dúvida foi a crítica filológica, que no co-
uma casta de eruditos e semi-eruditos, que perdeu cada vez meço do século X V I I I , com Richard Bentley e Bayle, re-
mais o aspecto de unanimidade internacional, à medida que velou as espessas camadas de lenda e falsificação erudi-
a unidade européia se fragmentava, durante o século XIX, tas em torno da Antigüidade, para, ao terminar o século,
por influência dos nacionalismos. A democratização pro- duvidar, com Friedrich August Wolf, da autenticidade
gressiva tornou insustentável um ideal de elite que tinha de Homero. O segundo reflexo foi a atitude dos ro-
por premissa o conhecimento de línguas difíceis, sem apli- mânticos de preferirem às literaturas antigas as litera-
cação na vida prática, e estudos de muitos anos, acessíveis turas medievais, por serem do nosso próprio sangue, e
só aos filhos de uma classe economicamente privilegiada. até as literaturas renascentistas, que, sob formas aparen-
Já antes da fragmentação social da sociedade européia temente antigas, também são literaturas "nossas", mo-
começara a fragmentação nacional. A língua de Cícero dernas. Friedrich Schlegel, homem do século X V I I I e
fora, desde o século XV, a "língua comum" dos europeus helenista erudito, e ao mesmo tempo o maior pensador do
cultos; a língua de Erasmo fora desde o século XVI, a
primeiro romantismo, tirou a conclusão penetrante: "To-
"língua comum", pelo menos, dos eruditos. Só do começo
dos encontraram sempre nos antigos o que desejavam e
do século X V I I I em diante o latim se torna realmente
aquilo de que precisavam, quer dizer, encontraram a si
uma "língua morta", porque o século X V I I terminara o
mesmos." Mas, quando a sociedade democrática e naciona-
processo de formação das nacionalidades européias. Ainda
lista do século XIX já não precisar de nada da Antigüidade,
no século X V I I I , a pálida "Antigüidade Rococó" deu à
então não se poderá fugir à pergunta: " W h a t ' s Hecuba to
Europa ura aspecto de civilização internacional: as alu-
sões mitológicas foram compreendidas imediatamente e him, or he to Hecuba?"
em toda a parte. O pré-romantismo acabou com a poesia "Todos encontraram sempre,nos a n t i g o s . . . a si mes-
mitológica, rompendo assim um dos últimos laços da uni- mos." As experiências do caminho percorrido confirmam
dade européia; o famoso Sertnone suHa mitologia (1825), essa tese. O Homero de Chapman, o Homero de Pope e
de Vincenzo Monti, última e já quase póstuma defesa da o Homero de Voss são poetas de 1600, de 1700 e de 1800;
mitologia, marca o fim de uma era. Depois, já não se con- o "verdadeiro" Homero, propriedade exclusiva dos filó-
seguiu unificar a Europa literária em torno da mitologia logos, existe em nossa ciência, mas não em nossa litera-
nórdica ou céltica dos pré-românticos, ou da "mitologia tura. Nunca uma literatura moderna se aproximou tanto
cristã" de Chateaubriand, ou ainda da "mitologia cientí-
do ideal clássico quanto a literatura francesa da segunda
186 OTTO M A R I A CARPEAUX HlSTÓRIA DA LiTEBATURA OCIDENTAL 187

metade do século X V I I ; e é, no entanto, uma criação ge- fluência das letras clássicas — no parnasianismo pós-ro-
nuinamente francesa ( ' ' ) . mântico, no neoclassicismo de certos grupos simbolistas, no
Durante os onze séculos anteriores a Antigüidade foi estoicismo de certos diletantes e pessimistas modernos —
sempre variável como critério e como medida: é este o sen- foi literatura de evasão.
tido da frase de Friedrich Schlegel. Para os românticos, a Um pTÍmeiro movimento neoclassicista surgiu por vol-
Antigüidade já não significava um ideal absoluto, e sim ta de 1850, piepaiado por certas tendências do último ro-
uma experiência histórica entre outras, uma das mais re- mantismo, tais como o entusiasmo de Shelley por Esquilo,
motas, e a mais alheia de todas; para interpretá-la, o sé- o "paganismo" de Maurice de Guérin, a tentativa de Keats
culo X I X confiava-se à critica histórica. de superar o romantismo pelo grecismo, a imitação dos me-
A filologia clássica do século XIX não pertence à li- tros gregos na poesia alemã de Platen, o bucolismo teocrí-
teratura: é lingüística, arqueologia, epigrafia, numismá- tiano de Moerike e as inclinações virgilianas em Victor
tica, historiografia exata. Wolf, o dénicheur de Homero, Hugo. Na segunda metade do século, essas tendências se
Niebuhr, o dénicheur dos heróis romanos, Mahaffy, o generalizaram, De Platen provêm, por influência direta,
dénicheur dos exércitos gregos, marcam fases de um ca- as Odi barbare, de Carducci, que são uma renovação do
minho de destruição. Tampouco faltam os reabilitadores: classicismo italiano. Em Shelley se origina o entusiasmo
os Boeckhs, os Wilamowitzs, os Lowes Dickinson. Mas de Swinburne, meio escolar, meio dionisíaco. De Keats
o resultado é sempre o mesmo: quanto mais sabemos da herdou Tennyson as tendências arcaizantes (To Virgil);
Antigüidade — e sabemos hoje infinitamente mais do que influências virgilianas encontram-se em poetas tão dife-
os poligrafos barrocos sonharam — tanto mais estranha rentes como Matthew Arnold e Pascoli. Todos eles par-
nos aparece. As traduções modernas, feitas não por poetas, ticipam da reação contra a civilização materialista da épo-
mas por especialistas, transmitem-nos textos seguros e in- ca; são inimigos da democracia ou do cristianismo, ou mes-
compreensíveis, e, muitas vezes, o que antigamente parecia mo de amboF,, e são todos pessimistas, ou seja, contra a
cume da poesia, parece-nos hoje lugar-comum penosamente corrente, som esperança de vencer, fechando-se em ideais
estilizado. Não conseguimos alcançar a "verdadeira" An- artísticos. Na França, esse sonho parnasiano torna-se sis-
tigüidade; com os progressos da "verdade histórica", a tema (^^), representado por Leconte de Lisle, o poeta dos
Antigüidade perdeu o papel de critério e ideal. Hoje, o hu- Poèmes antiques; as suas traduções de Homero (1866/1867),
manismo já não é uma força viva: seria possível escrever Hesiodo (1859), Teócrito (1861), Esquilo (1872), Sófocles
uma história da literatura dos séculos X I X e XX sem men- (1877), Horácio (1873) e Eurípides (1885) constituem o
cionar a influência das letras gregas e romanas. A Anti- I último corpo compacto de poesia antiga numa literatura
güidade está reduzida a disciplina escolar: recomenda-se moderna.
o estudo do grego para fins de educação filosófica e es- O classicismo de Leconte de Lisle revela certas qua-
tética, e o estudo da língua latina para fins de educação lidades que nenhum classicismo anterior conheceu: a pre-
lógica e pars compreender melhor a sintaxe das línguas ferência pelos mitos bárbaros da Grécia primitiva e pelo
neolatinas. Enquanto a literatura moderna sofreu a in-

32) F. Desoney: Le rêve hellénique chez les poete» parnassiens. Pa-


31) H. Peyre: Le classicisme français. New York, 1942. ris, 1929.
188 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL, 189

pessimismo desesperado dos últimos pagãos. Nisso, Le- GeÓTgicas. Nos últimos anos, as traduções de poetas anti-
conte de Lisle é bem o contemporâneo de Bachofen e gos para o inglês constituem verdadeira onda. O que num
Rohde^ que descobriram os primitivos cultos fúnebres doi Esquilo ou num Sêneca atrai os poetas modernos é a atitude
gregos; de Burckhardt, que destruiu a imagem da Grécia pessimista e, no entanto, viril, em face de terríveis transi-
olímpica e harmônica, descobrindo o pessimismo feroz dos ções sociais. Um sentimento parecido chama a atenção para
habitantes da polis totalitária; de Nietzsche, que inven- a atitude de Ulisses. J á em 1918, o escritor norueguês
tou a Antigüidade dionisíaca, escondendo atrás de giitos Arne Garborg, espirito anj^ustiado e barbaramente nór-
de alegria histérica a angústia apocalíptica. Traços dessa dico, refugií'do na solidão das montanhas mais setentrio-
histeria erudita encontram-se na dramaturgia euripidiana nais do continente, surpreendeu o mundo com uma tra-
de Hofmannsthal (Oedipus und ãie Sphinx, EJectra), em dução da Odisséia. E Thomas Edward Lawrence, o famoso
D'Annunzio (Fedra) e em Wyspianski. Mas o "fin du e fantástico "Lawrence da Arábia", quando desesperou da
siècle" passou sem que se realizasse o "grand soir"; e o política inglcta e do mundo moderno, publicou, em 1932,
simbolisrao burguês acalmou-se na frieza de um neoclas- a sua tradução em prosa da Odisséia. Poderíamos conside-
sicismo de difusão internacional, representado por Henri rá-las despedidas resignadas: o sol de Homero, que ilumi-
de Régnier, Moréas, Stephan George, Brídges, Viatches- nou durante milênios a paisagem européia em torno do
lav Ivanov, Staff, Ekelund. mar de Ulisses e São Paulo, parece enviar-nos da última
Tule, antes de seu ocaso para sempre, os derradeiros raios.
Essas tendências arcaizantes ainda não acabaram in-
teiramente; apenas perderam o caráter de movimentos or- Essa visão antipassadista da Antigüidade não corres-
ganizados, transformando-se em atitudes solitárias. Assim ponde, porém, aos fatos históricos e à sua justa interpre-
podemos considerar o parnasianismo do poeta americano tação. No estudo Três Fontes e Três Elementos do Marxis-
William Leonard, traduzindo Lucrécio (1916); o buco- mo (^'), Lenin caracteriza o marxismo como herdeiro le-
lismo virgiliano de Jammes (Géorgiques chrétiennes, 1911/ gítimo da filosofia alemã, da economia política inglesa
1912) ; o evasionismo erudito e emotivo de Thornton Wil- e do socialismo francês. Nas origens desses três elementos
der (The Woman of Andros). Em outros casos, os nomes encontram-se pensamentos antigos: o idealismo acadêmico,
antigos, modernizados, servem apenas de símbolos de va- o materialismo epicureu e a utopia platônica. Não será di-
lidade geral. Assim o pacifismo histérico de Werfel (Die fícil demonstrar, da mesma maneira, a presença invisível
Trocrinncn, 1915), a angústia religiosa de Unamuno (tra- da Antigüidade em todos os setores do pensamento moder-
dução da Mcdcia, de Sêneca), a Antigüidade psicanaiítica n o ; e do pensamento antigo, a literatura antiga é a mais
de 0'Neill (Moiirning Bccomes Eloctra, 1931) e a existen- completa expressão emotiva. Daí se origina o fato de to-
cialista de Sartre {Les mouchrs). Mas há outros casos, di- dos os gêneros literários ainda hoje existentes haverem
ferentes, de poetas modernos, "radicais", se lembrarem da sido criados pelos gregos, tendo-nos sido transmitidos pe-
Antigüidade: Horace Gregory, por exemplo, traduziu Ca- los romanos. A negação futurista do humanismo, embora
tulo (1931); Maxwell Anderson renovou, em The Wingless
Victory (1936), aquela mesma Medéia, de Sèneca, que tam-
bém foi modernizada por Robinson Jeffers; Louis Mac 33) Publicado primeiro na revista "Prosweschtchniie", n.» 3, março
de 1913.
Neice traduziu o Agamêwnon, de Esquilo; e Day Lewis, as Agora em V. J. Lenin: Obr^s Completas. Vol. XVI.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 191
190 OTTO MARIA CARPEAUX

admitindo essas origens, considera-as como stiperadas, já interpretações, cuja multiplicidade através dos tempos lhes
sem valor atual, A interpretação dialética dos fatos histó- confirma a permanência.
ricos chega a outro resultado: a contradição dialética en- Nessa circunstância se baseia a parte crítica da histo-
tre o presente e o passado pode ser removida pela ação, riografia literária: a verificação das obras que restam. E
mas nunca pelo pensamento; o pensamento não pode abo- que é que resta da Antigüidade? Do ponto de vista ma-
lir o que nos foi dado pela história; o pensamento pode terial, muito pouco. A literatura grega era, sem dúvida,
conservar, mas não abolir o fato histórico; na dialética uma das maiores, em sentido quantitativo, e a romana, pelo
hegeliana, a abolição (Aufhebung) do passado significa a menos, muito considerável. A poesia lírica grega, com ex-
sua conservação (Aufbewahrung) (^*), ceção da de Píndaro, perdeu-se quase completamente; só
possuímos, hoje, fragmentos dela. Sabemos da existência de
Existem, pois, fatos históricos que não passam, mas
90 peças de Esquilo, e só temos 7; das 120 peças de Sófo-
que, pelo contrário, permanecem, e entre estes encontram-
cles, restam-nos 7; das 80 ou 90 peças de Eurípides, possuí-
se os fatos da história espiritual em geral, e da história li-
mos apenas 19. Dos outros poetas trágicos, nada nos res-
terária em particular. A história literária não pode ser es-
ta: da comédia, além de Aristófanes chegaram até nós al-
crita como a história política, revelando a relação pragmá-
guns fragmentos de Menandro. Os florilégios e enciclo-
tica entre os fatos; neste caso, a história literária seria a
pédias bizantinos, fornecendo-nos inúmeras citações e mui-
narração dos chamados "movimentos", dos grupos e esco-
tos resumos de obras perdidas, fazem-nos sentir essa per-
las, e das suas polêmicas, das tentativas de sistematização
da. Da literatura romana não conhecemos bem as origens
filosófica dos programas e manifestos, e, na melhor das
nem a evolução, e sim apenas a renascença e a decadência.
hipóteses, das chamadas "influências" e da migração dos
Esse estado de coisas apresenta certas vantagens: o
enredos pelas épocas e pelas literaturas: quer dizer, a his-
tempo tem feito a escolha, e a atenção fica concentrada
tória literária seria a relação dos fatos exteriores e de im-
nas obras. Por outro lado, é impossível escrever uma ver-
portância menor. Fatos desta natureza constituem parte
dadeira história das literaturas antigas. Seria, porventura,
integrante da historiografia política, ocupada com os acon-
possível escrever a história da literatura inglesa sem co-
tecimentos que se passaram. Existe, porém, entre a his-
nhecer a poesia lírica inglesa, ou escrever a história da li-
toriografia política e a historiografia literária, uma dife-
teratura espanhola conhecendo só a décima parte das suas
rença essencial: aquela vê os acontecimentos do ponto de
obras dramáticas? A arqueologia e a historiografia dos
vista do "era"; esta, do ponto de vista de "é". O objeto
últimos cem anos forneceram uma quantidade imensa de
principal da historiografia literária é constituído pelas
novas datas sobre a história política, econômica e social
"obras", não "abolidas", mas "conservadas"; as obras que
da Antigüidade; o background já está bastante ilumi-
não passaram, mas que permanecem e continuam. A bem
nado. Mas o nosso conhecimento das obras literárias, ape-
dizer, essas obras não têm história ("'•'), senão a das suas
sar dos muitos fragmentos encontrados nos papiros egíp-
cios, não aumentou do mesmo modo. Não é possível —
e nunca o será, talvez — conhecer a evolução das letras
34) S. Marclí: Die Dialektik in der Philosophie der Gegenwart. Vol.
II. Tuebingen, 1931. antigas; o que possuímos, são últimos resultados e frag-
35) H. Cysarz: Literaturgeschichte ais Geisteswissenschaft. Halle, mentos de resultados.
1926.
192 OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITURATUHA OCIDENTAL 193

Enquanto a "Antigüidade" foi considerada de maneira A "tradição romana" é igualmente tão antiga como a
estática, como produto da época mais esplêndida da civi- própria civilização romana. Já num verso do poeta épico
lização humana, aquelas obras foram consideradas como Quintus Ennius, do século I I I antes da nossa era, se en-
modelos, Hoje, a "Antigüidade" é interpretada de ma- contra o dogma tradicional: "Moribus antiquis stat res
neira dinâmica, como série de reflexos variáveis que Romana viribque"; e pouco depois, no século I I , Marcus
uma civilização alheia deixou nas diferentes épocas da Porcius Cato exprime a doutrina da resistência viril deste
nossa própria história. A verdadeira significação da Anti- modo: "Quis hanc coiitumcliam, quis hoc imperium, quis
güidade — o motivo da sobrevivência das suas obras — hanc servitutcm ferre potcst?"
deve encontrar-se na própria tradição milenar que ela dei-
Trata-se, pois, de tradições que não são o resultado
xou. Esta tradição existe em nossos dias apenas como ro-
das civilizações antigas, e sim o seu substrato. Apenas,
tina escolar, apontando os gregos como donos de beleza
"tradição" tem, para os antigos, um sentido diferente da
olímpica e profundidade filosófica, e os romanos como
acepção em que hoje tomamos a palavra. "Tradição", para
exemplo de heroísmo viril e razão lógico-jurídica. Con-
a Antigüidade, não é um corpo de doutrinas e atitudes, que
tudo, não é uma tradição inventada pelos humanistas da
se faz mister aceitar e imitar, assim como acontece entre
Renascença e mantida pelos humanistas da escola secun-
nós, com as nossas tradições. O conceito hodierno de "tra-
dária moderna. Aquela tradição é tão velha como a pró-
dição" é inseparável dos conceitos "fé" e "imitação", ou
pria civilização da Antigüidade.
"dogma". No mesmo sentido, tomou-se sempre, entre nós,
A Ilíada não é um documento contemporâneo das guer- o humanismo, isto é, como "dogma" do valor superior dos
ras heróicas da Grécia primitiva; é documento de uma épo- modelos antigos, e como imitação desses modelos; assim se
ca posterior, e, apesar disso, muito remota — as opiniões interpretou a mimesis, conceito principal da estética aris-
diferem entre o século IX e o século V I I . J á então exis- totélica. Se fosse este o sentido de "tradição" na Antigüi-
tia a tradição de uma estética requintada, de uma aristo- dade, qualquer defesa do humanismo e ocupação com a
cracia meio divina, raeio humana, imagem reprojetada so- literatura greco-romana seria inútil. O sentido de "tra-
bre os rudes guerreiros de um passado já quase esquecido. d i ç ã o ' entre us antigos era, porém, diferente. As religiões
O ideal de beleza harmônica, nutrido pelo sol sobre o mar da Antigüidade não conhecem "ciogiiias"; consistem essen-
jônico, não é um sonho moderno; encontra-se já na Ilíada, cialmente num corpo de ritos sai',rados que c preciso re-
e já como tradição secular (3"), Para completar o quadro petir sempre, "imitar", de modo que o problema se reduz
dos ideais e tradições homéricas, é preciso esquecer o con- à acepção da palavra mimesis, imitação.
ceito moderno de "filósofo", como sonhador metafísico
Toda a literatura greco-romana-repete invariavelmente
ou como investigador intrépido de verdades novas e cada
os mesmos assuntos, transmitidos pela tradição. Mas, quan-
vez mais profundas. O filósofo grego é, em primeira linha,
to a essa tradição, os antigcs permitem-se as maiores liber-
um retor, um "sofista", um homem habilíssimo, que ensina
dades; chegam a modificar livremente até os mitos sa-
mil recursos para vencer na vida política e judiciária; um
grados, e fizeram isso desde o começo. Já no hino home-
descendente espiritual de Ulisses (^^).
ridico a Apoio, atribuído, segundo um escoliasta de Pín-
daro, a Kynaithios de Quios (c. 580 antes da nossa era),
36) C. M, Bowra: Tradition and Design in the Jliaã. Oxford, 19M.
encontram-se trechos considerados outrora corno acréscimos
37) K. Schwartz: Die Oãyssee. Muenchen, 1924,
194 OTTO M A R I A CARPEAUX
i HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 195

incoerentes, e reconhecidos hoje como modificações do de distinguir bem entre a tradição e a poesia; até a mi-
mito tradicional para fins de técnica literária (^®). Mais tologia, a tradição religiosa, estava largamente composta
tarde, a literatura greco-romana irá fornecer inúmeros de invenções dos poetas. O homem antigo era, até certo
exemplos dessas modificações livres da tradição aceita. ponto, incapaz de distinguir exatamente entre a realidade
Quer dizer que, desde os começos da civilização grega, e a idealidade. A conseqüência disto é a falta de realismo
os antigos consideraram a mimesis não como imitação e de idealização na arte antiga: o plano real e o plano ideal
servil, e sim como processo criador. A definição relati- coincidem perfeitamente, de modo que o que nos parece
vamente moderna da arte como "imitação da natureza" idealizado, ao grego parecia realista e real. Dai a enor-
pode-se apoiar num testemunho antigo: em Platão. Mas me capacidade de imaginação especulativa dos gregos, na
na República a arte só é definida como "imitação da na- arte, na literatura, na filosofia. Criaram, mentalmente,
tureza", duplicação supérflua de objetos existentes, para mundos, sem cair em romantismo ou evasionismo, porque
justificar a expulsão dos poetas; conclusão que não se ti- esses mundos espirituais, logo depois de criados, se incor-
rou ainda a respeito dos modernos propagandistas da arte poraram à realidade, para fazer parte dela. Deste modo, os
como mera "imitação da natureza". A refutação desse con- gregos criaram não só uma arte, uma literatura, uma filo-
ceito platônico encontra-se em Aristóteles. Mantendo o sofia, uma ciência, mas também, e em primeira linha, os
conceito mimesis, Aristóteles demonstra que a obra de conceitos desses reinos do espírito como realidades, ou,
arte não é uma simples repetição do objeto natural em como nós outros diríamos, como realidades superiores —
outra matéria. A mimesis acrescenta qualquer coisa ao distinção que o grego ignorava. O nosso "mundo ideal"
objeto, e também ao assunto transmitido pela tradição. — arte, literatura, filosofia, ciência pura — é uma criação
A mimesis, segundo Aristóteles, não é mera imitação;
do espírito grego. Apenas com uma diferença: para nós,
é a técnica literária da transformação de impulsos psico-
é um "mundo ideal", sempre diferente da realidade das coi-
lógicos do poeta em estruturas lingüísticas, sem preocupa-
sas; para os gregos, a idealidade do pensamento filosófico
ção da conformidade com a natureza ou com a forma tra-
e das obras de arte coincidia com a realidade das coisas.
dicional do assunto (*^). As modificações poéticas, intro-
Neste sentido, o mundo grego continua como ideal eterno.
duzidas deste modo, incorporaram-se imediatamente à "na-
Os romanos não possuíam a força de abstração dos
tureza" e à "tradição", e nisso reside a diferença entre
a maneira antiga e a maneira moderna de considerar a li- gregos. Assim como o "idealismo" dos gregos é para nós
teratura e o mundo ( ' " ) . O homem antigo era incapaz de inconcebível e portanto inimitável — vivemos apenas con-
distinguir bem, na obra de arte, entre a Natureza e a re- sumindo-lhes a herança — assim o realismo dos romanos.
presentação da Natureza; viu a Natureza sempre através O caráter materialista da religião romana é exemplo disso.
da arte. Do mesmo modo, o homem antigo não era capaz O realismo romano chegou ao extremo de excluir toda a
possibilidade de criação ideal: não existe propriamente li-
teratura romana que não seja imitação dos gregos pelos
38) F. Dornseiff: Archaische Mpthenerzaehlung. Berlin, 1933. romanos cultos, educados à maneira grega, e numa época
39) L. Abercrombic: "Principies of Literary Criticism". (In: An
Outline of Moãern Knowleãge. Ed. by W. Rose. New York, 1931.) relativamente tardia. Explica-se assim o fato de não exis-
40) G. Lowes Dickinson: The Greek Vieio of Life. 18.^ ed. London, tir evolução da literatura romana, que principia logo com
1938.
196 OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 197
uma "renascença" meio romântica da literatura grega (*^).
caso único na história universal; um caso de que não há
O material desta literatura de segunda mão já não era a
exemplos em outras civilizações. Daí as conseqüências do
imaginação grega; era a própria realidade romana, literà-
humanismo bimilenar da humanidade ocidental, as boas e
riatnenVe idealizada. A literatura romana fornece os pri-
as menos boas. Sem aquele ideal transcendente, sem aque-
meiros exemplos de idealização, romantismo e evasão; tal-
le critério alheio, a civilização moderna teria sido incapaz
vez por isso os modelos romanos tenham exercido nas lite-
de renovaçõts periódicas, ter-se-ia petrificado como as
raturas modernas influência muito maior do que os mo-
grandes civilizações do O r i e n t e ; e que significam, em
delos gregos.
comparação com isso, as épocas passageiras de imitação
A literatura romana não criou um mundo espiritual estéril? A criação de um mundo ideal pelos gregos e a
independente, como a literatura grega; foi, antes, ocupa- luta dos melhores entre os romanos contra a realidade ma-
ção de uma elite culta, ou até de indivíduos isolados, mais terial foram e continuam a ser os primeiros exemplos de
ou menos separados da realidade. A evolução posterior "humanidade pela humanidade", de "humanismo". Neste
da literatura romana é a história da luta contínua do ho- sentido, as obras da Antigüidade são soluções literárias
mem para defender-se dessa realidade bruta, para manter de problemas geralmente humanos; as vitórias dos antigos
a sua independência espiritual. As suas vitórias e derrotas são virtualmente vitórias nossas, as derrotas dos antigos
neste caminho ficaram cristalizadas nas obras da literatura são virtualmente derrotas nossas. Para nós, em quase dois
romana. mil anos de tentação permanente de sair da qualidade hu-
Já se disse que as obras das literaturas antigas são mana, a mera sobrevivência daquelas obras constitui um
dificilmente traduziveis: quando traduzidas literalmente, sinal, lembrando-nos que somos homens. Mas se esta cons-
parecem estranhas, inteiramente alheias ao nosso modo de ciência se perdesse, um dia, então teria chegado o tempo
pensar e sentir, e quando traduzidas livremente, acomoda- de deixar de "chorar por Iléciibs", c de chorar por nós
das a esse nosso modo — muito do que os séculos elogia- mesmos.
ram parece então lugar-comum gasto. Agora, essa difi-
culdade é explicável. Quando as obras da Antigüidade são
traduzidas literalmente, reparamos que pertencem a um
mundo alheio, com o qual a nossa realidade não tem nada
em comum. Mas quando traduzidas livremente, isto é,
realmente para a nossa língua, então reconhecemos nelas
os nossos próprios ideais básicos, herdados da Antigüi-
dade c propr.edade comum dela c nossa; por isso nos pa-
recem lugarcs-comuns. Combinando esses dois fatos, che-
ga-se a reconhecer a significação histórica da Antigüi-
dade: uma civilização alheia forneceu durante quase dois
milênios os critérios d a nossa própria civiUzação. É um

41) Ed. HamUton; The Roman Way. New York, 1932.


C A P I T U L O IV

O CRISTIANISMO E O MUNDO

A S obras dos escritores cristãos do século V. que foi o


século da grande catástrofe, estão cheias de lamen-
tações sobre a situação do inundo mediterrâneo. As ci-
dades estão destruídas, desertos os campos, foram depos-
tas as autoridades, vazias estão as escolas. "A cultura das
letras", dirá o bispo e historiógrafo Gregorio de Tours,
"agoniza, ou antes, desaparece nas cidades da Gália. No
meio de atos bons ou ruins, quando a ferocidade das na-
ções e o furor dos reis estão desencadeados, quando a Igre-
ja é atacada pelos heréticos, defendida pelos fiéis, c quan-
do a fé cristã, ardente em muitos corações, enfraquece em
outros, quando as instituições rcli^',iosas são saqueadas pe-
los perversos, então não se encontrou nenhum homem de
letras para descrever esses acontecimentos, nem em prosa,
nem em verso. E muitos dizem, gemendo: Ai do nosso tem-
po, porque o estudo das letras desaparece entre nós, e nin-
guém é capaz de descrever as coisas desta época."
Santo Agostinho construirá uma filosofia da história
para provar que a catástrofe do mundo não é um ato de
injustiça divina e, pelo contrário, obedece aos planos su-
periores da Providência; o seu discípulo Orósio pretende-
rá demonstrar que toda a história humana, já antes do
advento do cristianismo, é um campo de batalha, destrui-
ção, crimes e horrores de toda a espécie; Salviano já admi-
tirá que o cristianismo não conseguiu muita coisa para me-
lhorar o mundo e que a decadência é irremediável, a catás-
trofe completa e merecida.
200 O I T O MAHIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 201

Os cscrilnros cristãos que se exprimiram assim, fize- nitiva do Império, é o novo ensimismamiento: o cristia-
ram o ])íi))fl (Io .'idvocatus diaboli. Revelaram a decadên- nismo se retira para dentro dos muros das igrejas, para
cia dos úhiiiius pagãos, o artifício de um Claudiano, o encontrar aí a sua expressão genuína; os hinos e a liturgia.
vazio fspii iiiial de um Símaco. T u d o o que estes tinham O encontro com o mundo pagão estava preparado pe-
a pt''<lLT era uma linguagem literária sem conteúdo. Mas las Padres d?. Igreja oriental. i-.á, no Oriente, o compro-
havia outros espíritos, capazes de "descrever as coisas misso deu origem a uma nova literatura, independente, que
desta época", porque neles um novo conteúdo enchera não pertence ao mundo ocidental: a literatura bizantina,
as formas gramaticais da velha língua; eram eles mesmos, No Ocidente, criou-se uma literatura do transi^jão, com de-
aqueles escritores cristãos. É verdade que o Ocidente teve terminados objetivos de apologia dogmática c historiogra-
de experimentar uma catástrofe, uma interrupção quase fia eclesiástica: a literatura patrística ( ' ) .
total de todas as atividades espirituais; mas essa catás- O S. Joào Batista dessa literatura era o grande heré-
trofe veio alguns séculos depois. Um observador imparcial, tico africano Tertuliano ("). O seu Apologoticuin, que pre-
não perturbado pela nostalgia convencional do "paganismo tende ser a defesa da religião cristã contra os pagnos, é
alegre" nem pela mentalidade apocalíptica dos escritores mais ataque do que defesa. Esse polemista terrivelmente
eclesiásticos, admitirá a existência de uma notável ativida- agressivo irrita-se contra todos: contra as autoridades ro-
de literária JIOS séculos do cristianismo vitorioso e da in- manas que fazem mártires, contra os perseguidos que fo-
vasão dos bárbaros; de uma literatura rica, embora não gem ao martírio, contra os mártires que morrem sem a fé
grande, que contou com personalidades tão extraordiná- ortodoxa, contra a ortodoxia que violenta as consciências;
rias como Jerônimo e Agostinho, que criou formas intei- o próprio Tertuliano acabou como herético. Mas a sua he-
ramente novas de expressão literária, nos hinos da Igre- resia não é de origem doutrinária, é antes de ordem moral.
ja, e que criou, enfim, uma das maiores obras, das mais Revolta-se contra a indulgência com a qual bispos e sacer-
permanentes àa literatura universal de todos os tempos: dotes tratam os cristãos que participaram das festas ro-
a liturgia romana. Apenas, não é por um acaso histórico manas, que 1 rio mandam velar o rosto às suas filhas, que
que esta literatura está escrita nas línguas antigas. É mes- toleram em casn qualquer vestígio do naturalismo sexual
mo literatura antiga, a do cristianismo primitivo, e neste dos grcco-ronianos, c que chegam ao cúmulo de freqüen-
sentido é tão "exótica" como a paga. tar os teatros, ÊKSCS "consistoria impudicitiae". Neste mo-
A mentalidade cristã dos primeiros séculos percorreu
três fases distintas, coordenadas como uma evolução dia-

1
1) O. Bardcnhewer: Geschichte der alikirchlichen Literafur. 2.» ed.
lética. No período das catacumbas, o espírito cristão é de 3 vols. Freiburg, 1912/1914.
P. de LabrioUe: Histoire de Ia littérature latina chrétienne. Pa-
uma introversão tão completa que a expressão se inverte ris, 1920.
em silêncio; adivinhamos esse estado de almas nas inscri- 2) Quintus Septimus Florencius Tertullianus, c. 150 - c. 230.
ções lacônicas e, contudo, tão eloqüentes, dos túmulos nas De idolatria; Apologeticum; Aã martyres; De fuga in persec^itio-
catacumbas; e, com eloqüência maior, no silêncio das gran- ne; De spectaculis; De cultu feminaruríi; De virginibus velandis,
etc.
des basílicas romanas, como San Paolo fuori le mura. A Edição-. Mlgne, Patrologia latina, vols. I-II.
segunda fase é a do encontro do cristianismo com o mundo: P. Monceaux; Histoire littéraire ãe VAjrique chrétienne. Vol. I.
a literatura patrística. A terceira fase, após a queda defi- Paris, 1901.
F. Ramorino: Tertulliano. Milano, 1923.
202 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 203

mento, o moralista revela-se como da família dos purita- Escritor, literato até, é Jeronimo (*). Homem de vas-
nos ingleses que mandaram fechar os teatros. Tertuliano tas atividades, quase febris, fazendo inúmeras viagens, es-
lembra os predicadores calvinistas que ameaçam os "ser- crevendo, traduzindo, comentando, trocando cartas com
vos de Baal" com citações terrificanteo do Velho Testa- papas e religiosos, dando conselhos a toda a gente, grande
trabalhador, que acabou seus dias num convento, no de-
mento, ou lembra, então, os próprios profetas do Velho
serto da Judéia. Odiava a literatura paga, na qual fora
Testamento. O seu estilo violento, artificial, obscuro, reve-
educado, e é o literato mais típico entre os Padres da Igre-
la-lhe as origens africanas. Tertuliano é um Apuleio às
ja. A sua maior obra é um trabalho de estilística, a tra-
avessas, um individualista furioso, um dos maiores escri- dução latina da Bíblia, a Vulgata, que alcançou autoridade
tores de língua latina e um romano autêntico. canônica na Igreja Romana. Com essa obra, Jeronimo criou
A quase todos os grandes Padres da Igreja ocidental uma língua nova e uma nova literatura. Prestou ao latim
se pode conferir o mesmo título de "romano autêntico", medieval o serviço que os poetas da idade augustana tinham
que já se deu a Ambrósio (^), o poderoso bispo de Milão, prestado à literatura imperial, naturalizando em Roma as
ao qual a tradição atribui a criação do hino litúrgico. letras gregas. Durante mais de um milênio, a Europa in-
teira rezou na língua de Jeronimo, que é, contra a sua von-
Ambrósio era natural da Gália, da mais romana das pro-
/. tade, a língua de Virgílio, e não inteiramente indigna dele.
víncias romanas. Em De oíficiis ministrorum apresenta
A Vulgata é a Eneida do cristianismo. Jeronimo, anti-hu-
um sistema bem organizado, quase em parágrafos, da con-
manista furioso, é o primeiro grande humanista europeu.
duta moral do clero; aplicação razoável da moral estóica Valery Larbaud exalta o autor da Vulgata como o rei ou
do De officiis, de Cícero. Ambrósio era o primeiro a obe- padroeiro de todos os tradutores.
decer aos seus próprios conselhos. Sabia reunir imperia-
Chegou, enfim, o momento em que a aliança entre a
lismo eclesiástico e dignidade sacerdotal tão bem como um Igreja e as letras pagas se rompeu: na realidade, porque o
senador romano sabia reunir política de anexação e digni- Império caiu; na literatura, porque um espírito poderosís-
dade humana Grandes quadros, nas igrejas do catolicismo simo destruiu o equilíbrio. Agostinho ('') é uma das maio-
pós-tridentino, representam a cena em que Ambrósio, re-
cebendo em Milão o imperador Teodósio, culpado de assas-
sínio, lhe nega a entrada na basílica. Ambrósio era mais 4> Hieronymus, 331-420.
De viris illustribus: tradução da história eclesiástica de Eusé-
homem de ação do que escritor; nisso também, é romano. bio, cartas, comentários bíblicos, etc, etc; a Bíblia latina (Vul-
gata) ,
Edição: Migne, Patrologia latina, vols. XXI-XXX,
F. Cavallera: Hieronymus. 2 vols. Louvain, 1922.
3) Aurelius Ambrosius, 340-397. U. Morlcca: Hieronymus. 2 vols. Milano, 1923.
De ofíiciis ministrorwm, e muitos outros tratados, 91 cartas, ser- 5) Aurelius Augustinus, 354-430.
mões, etc. Entre os inúmeros escritos destacam-se: Contra acadêmicos; So-
Edição: Migne, Patrologia latina, vols. XIV-XVII. liloquia; De immortalite animi; De musica; De libero arbítrio;
Th. Foerster; Ambrosius, Bischof von Mailanã. Halle, 1884. De Genesi; Confessiones; De civitate Dei; De gratia et lihero
P. Vacani: La política ãi S. Ambrogio. Milano, 1888. arbítrio; De corfuptione et gratia; Retractationes, etc, etc.
E. Buonaiutl: S. Ambrogio. Roma, 1923, Edição: Migne, Patrologia latina, vols. XXXII-XLVII.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 205
204 O lio MAIUA CARPEATJX

rcH persoiinlMndcH da literatura universal; muitos, porém, é um anarquista, procurando a ordem, sabendo que precisa
nilo o (iiiisidfi.iiMü "simpático", e a culpa é dele mesmo. nascer outra vez, como homem diferente. É da raça dos
l': o di's(iiin de todos os que, como êle nas Confissões e "twice born", à qual pertencera os maiores gênios reli-
mais tíiidi' líousseau e Strindberg, contaram com sinceri- giosos da Humanidade, um Paulo, um Lutero, um Pascal,
(líide irreverente a própria vida: a mocidade devassa, o es- um Kierkegaard. Para justificar perante Deus e os ho-
t;'i;'.ic) entre os adeptos da estranha seita dos maniqueus, mens a sua natureza ambígua, o teólogo Agostinho tem
de responsabilizar uma força exterior e mais forte que as
os estudos de retórica e a vida literária, os remorsos e an-
suas próprias forças: a Graça, esse seu conceito teológico
gústias que duraram anos terríveis, enfim a conversão, a
que será, depois, suscetível de tantas interpretações ambí-
vocação sacsidotal, o bispado, as lutas contra heréticos de
gvias. Esse homem fortíssimo precisa sempre de um apoio
toda a espécie, as vitórias políticas; no fim da vida, Agos-
de fora: daí provém a sua confiança ilimitada na autori-
tinho é "magnus sacerdos", o rei episcopal da África cristã,
dade da Igreja Romana; daí o seu susto em face da catás-
morrendo no momento em que a sua província e a sua Igre-
trofe do Império; daí a necessidade imperiosa de substi-
ja se desmoronavam sob os golpes dos bárbaros. Este ho-
tuir a derrotada "civitas terrena" pela "civítas Dei", objeto
mem de atividades extraordinárias é um introspectivo.
do seu grande mito filosófico-histórico. Agostinho está
"Surgunt indocti et rapiunt regnum coelorum, nos autem,
contra o Imj,ério e não pode viver fora do Império: é um
cum nostris litteris, mergimur in profundum?" Eis o lema
romano.
da sua vida ativa. E o lema da sua vida contemplativa foi
a advertência de procurar a Verdade dentro da própria O que o distinguiu, porém, dos outros romanos foi
alma: "Noli foras ire; in interiore hominis habitat veri- ser um santo, e a demonstração disso está no "humano, hu-
tas." Os efeitos dessa atitude ambígua são fatalmente con- mano demais" das Confissões. Um santo não é um anjo,
e sim um hcmem. Agostinho foi o primeiro, em todos os
traditórios. No mundo exterior, em que a anarquia des-
tempos, a exfíor a sua humanidade fraca, falível e até anti-
trói uma civilização inteira, Agostinho sabe impor a sua
pática, pelo lirismo exuberante e efusivo daquele grande
autoridade espiritual de bispo, sabe restabelecer a ordem,
livro. Para >T literatura universal, é o Colombo de um novo
No mundo interior, sacodem-no "tormenta parturientis
continente. Para a sua época, encerra uma fase decisiva
cordis mei", reina a noite da anarquia espiritual, iluminada
da evolução da incntalídatlc cristã, e inicia outra fase: após
pelos raios dolorosos da graça que se impõe. Agostinho
a queda definitiva do Império, o cristianismo retira-se para
dentro dos muros da Igreja, e a nova alma encontra a sua
nova expressão: eleva-se o hino.
E. Troeltsch: Augustin, die christliche Antike unã das Mitte-
lalter. Tuebingen, 1915. O hinário (") da Igreja latina é a primeira obra da li-
E. Buonaiuti: S. Agostino. Roma, 1917. teratura moderna. Um espírito diferente do espírito da
P. Alfaric: Vévolution intelleciuelle de Saint Augustin. Paris,
1918. < Antigüidade greco-romana cria formas independentes, cuja
1. N. Flggis: The Politícal Aspects of Augustine's City of Goá.
London, 1921. ^
E. Gilson: Introãuction à Vétuãe de Saint Augustin. Paris, 1929. 6) F. G. Mone: Hymni latini medii evi. 3 vols. Freiburg, 1852/1855.
H. J. Marrou: Saint Augustin et Ia fin de Ia culture antique. S. W. Dufíield: The Latin Hymn Writcrs and Their Ilymns. Lon-
Paris, 1938. don, 1890.
V. I. Bourke: Augustine's Quest of Wisãom, Milwaufc.ee, 1945. G. Semeria;. Gíi Inni delia CMesa. Milano, 1910.
206 OTTO IVTAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 207

origem constitui um dos maiores problemas da historiogra- maior parte aão pertence ao grande bispo de Milão. São
fia literíuia. de origem incerta os hinos para as horas canônicas, con-
Já (icscl(! o século I I da era cristã, os poetas latinos servados no Breviário Romano: "Iam lucis orto sidere",
cncin com freqüência em erros prosódicos, enganando-se "Nunc sancte nobis Spiritus", "Rector potens, verax Deus",
com respeito à quantidade das sílabas; e sobre a quan- "Rerum Deus tenax vigor", "Lucis creator optime" e "Te
tidade das sílabas se baseia a métrica greco-romana. Per- lucis ante terminum"; também os hinos mais extensos,
de-se a segurança, e a métrica procura novo apoio no acen- "Splendor paternae gloriae", "Conditor alme siderum" e
to da palavra falada. A liturgia cristã contribuiu para essa "Jesu corona virginum", não são autênticos. Enfim, é pre-
modificação essencial, pelo uso das antífonas com a sua ciso privar Ambrosio da autoria do famoso cântico "Te
prosódia diferente. Contudo, não está esclarecido se a ver- Deum laudamus" ("). Ficam, quando muito, 4 hinos au-
dadeira origem da nova métrica se encontra na evolução da tênticos: "Aeíerne rerum conditor", "Deus creator omni-
língua latina ou na liturgia. um", "Iam surgit hora tertia" e "Veni redemptor gentium";
Segundo Gaston Paris, existiu sempre uma diferença revelam eles que o estoicismo — fonte, tantas vezes, de ins-
de acentuação entre a língua culta, usada na poesia metri- piração lírica — também acendeu no senador eclesiástico
ficada, e o sermo plebéias, que se impôs na época da e ciceroniano seco a luz da poesia. Revela inspiração am-
decadência. São mais convincentes, porém, as analogias, brosiana, embora indireta, o corpus inteiro dos hinos atri-
reveladas por Wilhelm Meyer ( ' ) , entre a versificação dos buídos outrora ao bispo; um dos símbolos mais freqüentes
hinos latinos e as versificações síríaca, caldaica e armênia. na autêntica poesia ambrosiana é o galo que, após a noite
Parece que o cristianismo importou as leis da versificação que pertence ao demônio, chama os fiéis para o oficio; e
semítica. em um dos hinos não autênticos encontram-se os versos
característicos;
Mas essa versificação entrangeira não teria vencido se
não fossem modificações lingüísticas que tinham motivos
"Procul recedant somnia
mais profundos do que a plebeízação da língua latina. A
E t noctium phantasmata. . .",
nova estrutura do latim falado é sintoma de uma nova alma
que o fala. Um autor anônimo, a alma coletiva, inventa explicando o hino autêntico:
uma nova poesia, os versos de 4 diâmetros jâmbicos, reu-
nidos em estrofes de 4 linhas; primeiro exemplo da poesia " . . . . gallus iacentes excitat
"moderna". E t somnolentos increpat".
Os hinos mais antigos da Igreja atribuem-se a Am-
Como a aurora, cuja luz entra pelas vidraças da igreja,
brosio (**). Em geral, esta tradição foi abandonada pela
aparece nos hinos ambrosianos a luz de um novo dia, e com
crítica. Do corpus dos hinos ambrosianos, certamente a

9) O "Te Deum laudamus" é atribuído, atualmente, ao santo bis-


7) W. Meyer: Oesammelte Abhandlungen zur mittelalterlichen Ry- po Nicetas de Remesiana (-j-ilS), sem se alegarem argumentos
thmik. Vol. II. Berlln, 1905. conclusivos.
8) Peter Wagner: Der Hymnus des heiligen Ambrosius. Maria- A. E. Burn: Niceta o/ Remesiana, his Life and Works. London,
Luach, 1898. 1905.
208 OTTO MAUIA. CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 209

êle uma inovn(;rio estranhíssima, "moderna", totalmente autêntica feição romana. Venâncio Fortunato ( " ) sente o
dcscüiihcciila da Antigüidade: a rima. caminho do Cristo para a cruz como triunfo militar —
O verdadeiro Ambrósio da poesia latina crista é o es-
"Vexilla regis prodeunt,
panhol Priidcncio {^"), o maior poeta da antiga Igreja Ro-
tulget crucis m y s t e r i u m , . . " —
mana. Já foi comparado a Horácio, mas é mais sério, e a
Píndaro, mas é mais humano. A grande epopéia alegórica e a glória celeste da Virgem como apoteose d» uma deusa —
da Psychomachia, a luta das virtudes contra as paixões,
talvez intere:i3e hoje menos do que as 14 odes do Periste- "O gloriosa domina,
phanon, em homenagem a 14 mártires espanhóis e africa- Excelsa super sidera. . ."
nos, espécie de epinícios cristãos,
A língua latina salvara o novo espírito poético.
Prudêncio, apesar das tentativas de poesia narrativa,
O novo mundo lírico encontrou apoio real no traba-
é essencialmente um poeta lírico. Nas 12 odes do Cathe-
lho monástico e na organização eclesiástica: dois elemen-
merinon, destinadas a certas horas do dia e a certas festas,
tos herdados da realidade romana. Sobrevive espírito ro-
encontra os acentos mais novos e mais universais, o
mano na reg-a da ordem de S. Bento, na convivência de
". . .. mors haec reparatio vitae est" duro trabalho manual e estudo das letras clássicas; e em
relação íntima com o espírito beneditino criou-se o grande
para a hora das exéquias, e o papa, que também já foi chamado "o último romano" e
que é o fundador da Igreja medieval: Gregório Magno ('^).
" . . . p s a l l a t altitudo caeli, psallite omnes angelí"
O grande Papa aparece nos quadros medievais como
para ser cantado omni hora. Prudêncio é um dos raros simples monge, e isso lhe teria agradado; estimava a sim-
poetas líricos que conseguiram criar um mundo completo plicidade do coração mais do que os talentos do espírito.
de poesia. Não fêz nada para salvar os tesouros ameaçados da civili-
zação clássica; ao contrário, tudo fêz para substituir a lei-
A força desse classicismo eclesiástico revela-se na sua
tura dos autores pagãos pelos escritos hagiográficos e edi-
capacidade de sobreviver às piores tempestades. Mesmo
na corte dos reis rnerovíngios, num ambiente de assassínio
e incesto, um poeta habilissimo para ocasiões oficiais sabe 11) Venantius Honorius Clementianus Fortunatus, c. 530 - c. 600.
exprimir os mistérios do credo em símbolos poéticos de Edição: Migne, Patrologia latina. Vol. LXXXVIII,
Ch. Nisard: Le poete Fortunat. Pa.ris, 1890,
R. Koebner: Venantius Fortunatus. Leipzlg, 1915.
12) Gregorius Magnus, c. 535-604; papa, 590-604,
10) Aurclius PnidcntiUR Clemens, c. 348 - c. 400. Liber regulae pastoralis; Liber dialogorum seu de vita et mir*'
Psychomachia; Cathemerinon; Pcristephanon. culis patrum italicorum; Registra.
Edijãü: Mig:ne, Patrologia latina, vols. LIX-LX. Edição crítica Edição: Migne, Patrologia latina, vols. LXXV-LXXIX.
por K. Bergmann, Wlen, 1926. F. H. Dudden: Gregory the Great. 2 vols. London, 1906.
A. Puech: Pruãence. Ètuãe sur Ia poésie latine chrélienne au F. Tarducci: Storia di Gregório Magno e ãel suo tempo. Roma,
JVc siccle. Paris, 1888. 1907.
A. Mclardi: La Fsycomachia ãi Fruãemio. Pistoja, 1900. W. Stuhlfath: Gregor der Grosse. Heidelberg, 1913.
F. Ermini: Peristephanon. Stuãi pruãensiani. Roma, 1914. F. Ermini: Gregório Magno. Roma, 1924.
210 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIUKNTAL 21 I

ficantes, literatura para a qual êle contribuiu com o Liber nacionais, O vazio explica-se pela destruição geral, a per-
dialogoTum, vidas de santos itálicos, cheias de milagres in- da de quase todos os bens materiais, inclusive os benefí-
críveis, aparições de almas do outro mundo, castigos es- cios de uma administração organizada. Contudo, a rela-
tranhos infligidos por Deus aos infiéis. Ê um monge su- ção entre o estado econômico-político e a situação cultural
persticioso, um daqueles a quem êle prescreveu, no Liber não pode ser formulada à maneira de uma equação algé-
regulae pastaralis, as normas de conduta e ação. Chamam- brica. Antes dos "séculos obscuros" e depois, as maiores
lhe "simplista", "inimigo do humanismo". Mas que valor devastações materiais não impediram o cultivo das letras,
poderiam ter as disciplinas humanistas para um homem e a hinografia ambrosiana e pós-ambrosiana, literatura ori-
cheio de angústias apocalípticas, que espera o fim do mun- ginal e poderosa, constitui um primeiro desmentido àquele
do? Essa expectativa impunha disciplina diferente; mas inglês incompreensivo. Outro desmentido, mais forte ain-
uma disciplina. As ansiedades apocalípticas não trans- da, revela-se no estudo da liturgia romana. É ela, sem dú-
formaram o Papa em quietista angustiado e passivo, e sim vida, uma obra literária, embora de um típo diferente da
em homem de uma atividade enorme, que abrangeu, desde literatura paga e da líteratvira medieval; constitui uma
a Itália e a Espanha até a Inglaterra, o mundo inteiro co- literatura sui generis, não comparável a nenhuma outra,
nhecido. Era preciso salvar as almas, antes do cataclismo. de modo que nem os critérios classicistas nem os critérios
E Gregório construiu um abrigo materno para as almas, a "modernos" a ela se aplicam bem. A mais geral e mais
Igreja medieval, trabalhando como um monge de S. Bento e rigorosa das normas historiográficas exige a compreensão
governando como um "cônsul Dei". Era vim espírito só- e apreciação de todos os fatos históricos segundo os câ-
brio, seco, prático; um romano. Estabilizou o mundo lí- nones e critérios da própria época a que pertencem. Vista
rico dos hinólogos, construíndo-lhe uma catedral invisí- assim, a liturgia é alguma coisa mais do que um cerimonial
vel. A expressão literária dessa atividade realista e da- eclesiástico; levela-se como obra literária, cujo valor, se
quele espírito lírico conjugados está na liturgia que tem bem que relacionado intimamente com o credo que ex-
o nome do papa, embora ela tivesse origens mais remotas, prime, não pode depender das convicções religiosas da
e séculos posteriores, até o século X I I , houvessem acres- crítica ou do crítico. A apreciação literária da liturgia
centado muito à "liturgia gregoriana". exige, certamente, uma "suspension of disbelief" da parte
Foi WiUiam Robertson, historiógrafo inglês do século do descrente; mas a leitura compreensiva de Dante e Mil-
X V I I I , quem criou a expressão "Dark Ages", ou "séculos ton exige o mesmo de todos os que não são católicos flo-
obscuros", para qualificar a época em que a "Ra.-?ão" e as rcntínos ou puritanos ingleses. Após a "suspensão da des-
"boas letras clássicas" não iluminaram o mundo. A expres- crtnçn", ninguém negará à liturgia o caráter de grande
são mudou várias vezes de sentido, estendendo-se à Idade obra literária que marca os séculos V I e V I I , iluminan-
Média inteira, ou aos séculos IX, X e XI, entre a qu^da do-lhes a "obscuridade".
do Império carolíngío e as Cru/adas, ou então aos séculos A liturgia romana compõe-se de certo número de pe-
VI, V I I e V I I I . Do ponto de vista da história literária, (picnos textos religiosos, reunidos conforme a atuação do
este último sentido da expressão é o mais razoável. A lite- v.acerdote no altar. Alguns desses textos são iguais, per-
ratura romana acabara e as literaturas modernas ainda não m.nuntcs, cm todas as missas, particularmente o Cânon,
tinham começado, nem em língua latina nem nas línguas cpif inclui o sacrifício e a transubstanciagão; outros mu-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 213
212 OTTO M A R I A CABPEAUX

dência papal e nos martiriológios romanos. As missas dos


dam conforme os domingos e a sua posição nas fases do
séculos V e V I I I subsistem em três velhas coleções: o Sa-
ano eclesiástico; outros, segundo os dias dos santos cujo
cramentarium Leonianum, o Saciamentarium Gelasianum e
martirio ou translação se comemora. A origem romana
o Sacramentarium Gregorianum. Com a interpolação de
da liturgia em vigor explica, nestes últimos casos, certa elementos galicanos no Sacramentarium Gregorianum, na
preferência dada aos santos locais da cidade de Roma, época e a p e l i d o de Carlos Magno, terminou a evolução;
de modo que a ordem dos serviços religiosos nas igrejas na Idade Média fizeram-se apenas modificações sem im-
romanas ("igrejas de estação") influiu na composição da portância,
liturgia e do ano eclesiástico. Não é possível verificar com
O "Introibo ad altare Dei", pórtico da missa, compõe-
certeza quando, onde e porque todos aqueles textos foram
se de versículos bíblicos e da reza pela absolvição dos peca-
redigidos e depois reunidos em ordem definitiva; as ori-
dos; logo a linguagem da Vulgata ("Judica me. Deus, et
gens da liturgia assemelham-se à maneira como a filologia discerne causam meam de gente non sancta") revela a
do século X I X imaginava a criação das "epopéias popula- sua qualidade lítúrgica. O início da missa liga-se ao "Con-
res", do Poema deJ Cid ou do Nibelungenlied, de autoria fiteor" por uma daquelas fórmulas que sempre voltam,
coletiva. O verdadeiro autor da liturgia é a Igreja ('^). lembrando menos um refrão do que as fórmulas feitas da
Havia vánas Igrejas e várias liturgias. Só no Oriente epopéia homérica: "Gloria Patri et Filio et Spiritui San-
existem ou existiam dois grupos inteiros de liturgias, do cto, sicut erat in principio et nunc et semper, in saecula
tipo antioqueno e do tipo alexandrino, redigidas em grego saeculorum. Amen." É o "tema" da missa. Após o "In-
ou em línguas asiáticas, e uma delas foi a primeira liturgia troitus", que alude à festa do dia, Deus é aclamado em
romana, hoje desaparecida. No Ocidente se introduziram palavras gregas que formam uma espécie de tríptico:
variantes da forma oriental: a liturgia ambrosiana, na Igre-
ja de Milão; a liturgia moçárabe ou gótica, na Espanha, a "Kyrie, eleison. Kyrie, elcison, Kyrie, eleison.
liturgia céltica, nas ilhas britânicas; e, particularmente na Christe, eleison. Christe, eleison. Christe, eleison.
França, a liturgia galicana, que influiu muito na forma- Kyrie, eleison. Kyrie, eleison. Kyrie, eleison."
ção definitiva da liturgia romana, para ceder, enfim, a esta,
Trata-se, com efeito, de uma "aclamação", como a recebe-
que suplantou, no Ocidente, todas as outras, A liturgia ro-
ram os imperadores de líizáncio no momento de sentarem-
mana é um compromisso entre as liturgias orientais e oci-
se no trono. Várias orações cercam a leitura solene da Epís-
dentais, e um compromisso extraordinariamente feliz.
tola e do Evangelho, herança do serviço religioso na sina-
A história da liturgia romana encontra-se no Liber
goga, e entre elas incluiu-se o "Gloria in excelsis Deo. . .",
pontificalis, a crônica dos primeiros papas, na correspon-
como que abrindo o céu sobre o altar. A transição para o
serviço de sacrifício é feita por uma das partes mais an-
13) F. E. Brighttnan: Liturgies Eastem anã Western. Oxford, 1B96.
F. Calarol: Les origines liturgiques. Paris, 1906. tigas da missa, o ato de mistura de vinho e água, simboli-
F. X. Funk: "Ueber den Kanon der roemischen Messe". (In: Kir- zando a união dos fiéis com d i s t o : "Deus, qui humanae
chengeschichtliche Abhandlungen unã Untersuchungen. Freiburg, substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius
1907.)
L, Duchesne: Les origines ãu culte chrétien. b." ed. Paris, 1920. rcformasti", palavras nas quais a dignidade austera da
A. Baurnstark: VOTTI geschichtUchen Werãen der Liturgie. Frei- língua latina se humilha no coletívismo dos "divinítatis
burg, 1923.
2U OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 215

consortes". Sobrevivem, na liturgia romana, apenas algu- O ciclo está fechado. O fim é a melodia largamente desen-
mas palavras das epikleseis, das invocações do Espírito
Santo, que nas liturgias gregas quase sufocam, pela sua 1 • volvida com que a Igreja despede os "circunstantes" para
voltarem à vida profana: "Ite, Missa est."
grande extensão, o Cânon; a liturgia ocidental é de sobrie- A variedade das missas era, no começo, muito gran-
dade romana. Quando, e isso acontece só uma vez, cede à de; cada dia tinha a sua missa eripecial, como acontece ain-
pompa oriental, na Piaefatio, com o seu júbilo dos exér- da nas semanas da quaresma, nas quais o mundo inteiro
citos celestes, dos "Angeli, Dominationes, Potestates, Se- participa do culto nas "igrejas de estação" da Urbs. Mas
raphim", seguem-se, então, imediatamente, as palavras se- a sobriedade romana fez tudo para suprimir as diversida-
cas, de maior economia estilística, do Cânon, que é a parte des exuberantes. Distribuiu-se uma missa mais ou menos
genuinamente romana da missa latina, romana no sentido uniformizada pelas "estações do ano", constituindo o ano
local: no momento em que o Cânon é recitado, qualquer eclesiástico a repetição simbólica da epopéia da história
altar católico, em qualquer parte do mundo, está idealmente sacra e redenção do gênero humano: Advento, Rorate coe-
em Roma. No "Communicsntes et memoriam venerantes", a li. Natal, Epiphania, Cinzas, Invocabit, Reminiscere, Oculi,
comemoração dos santos, mencionam-se, além da Virgem Laetare Jerusalém, lúdica, Palmarum, Semana Santa, Pás-
e dos Apóstolos, somente Lino, Cleto, Clemente, Xisto e coa, Quasimodogeniti, Pentecostes, os 24 domingos, des-
Cornélio, entre os primeiros sucessores de S. Pedro no de a Trindade até à leitura da profecia apocalíptica, Fina-
bispado romano; depois, o africano Cipriano e os már- dos; e, de novo. Advento.
tires locais da cidade: Lourenço, Crisógono, João e Paulo, Afirmar que a liturgia é uma grande obra de arte im-
Cosme e Damião. Estamos em uma basílica dos primeiros plica estetici-jmo suspeito. Assim como a língua latina,
séculos, perto das catacumbas. E era outra oração muito durante muitos séculos de sobrevivência, se adaptou a es-
antiga, no "Hanc igitur oblationem", inseriu Gregório tados de alma inteiramente novos, assim também a litur-
Magno as palavras "diesque nostros in tua pace disponas", gia latina teve significação diferente em todas as épocas.
para lembra,: a todos os séculos vindouros as atribulações A sua interpretação como drama religioso tem fundamento
da cidade de Roma no século V I , cercada pelos bárbaros apenas na relação puramente histórica entre as cerimônias
longobardos; palavras que são de uma atualidade perma- eclesiásticas e o teatro medieval, e na pompa religiosa do
nente. Após a transiibstanciação, que se distingue pelo Barroco, quando a música e as artes plásticas colaboraram
mais alto grau de expressão religiosa — o silêncio — para transformar a missa solene em "obra de arte total", no
pede-se a Cristo o "locum refrigerii, lucis et pacis" para sentido de V/agner. Essa interpretação ajuda a sufocar
os "qui nos praecesserunt cum signo fidei et dormiunt in a palavra; mas a palavra é a essência da liturgia. A litur-
somno pacis", e, já fora do Cânon, a graça para os que gia é essencialmente uma composição literária, sem consi-
há pouco aclamaram o Kyrios e agora, em outro "trípti- deração de efeitos teatrais ou pictórico-musicais. Talvez
co", se curvam perante o Deus sacrificado: SC entenda melhor o sentido da liturgia nas missas rezadas
na alta madrugada, sem musica, quando o sacerdote só mur-
"Agnus Dei, qui tollis peccata m u n d i : miserere nobis. mura as palavras, e o silêncio absoluto em torno do sacri-
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: miserere nobis. fício é menos efetuoso e mais profundo. É preciso ler e
Agnus Dei, qui tollis peccata m u n d i : dona nobis pacem." entender o t ; x t o — não basta ouvi-lo — para "sentire cum
216 OTTO MAHIA CABPEAUX HiSTÓBIA DA LiTKRATUEA OciDENTAL 217

E c c l e s i a " . E n t ã o a p e r m a n ê n c i a d e c e r t o s t e x t o s e as m o - civilização. O r e s u l t a d o d a q u e l a s l u t a s foi u m a h i s t ó r i a


d i f i c a ç õ e s d e o u t r o s d u r a n t e o ciclo d o a n o r e v e l a m - s e d e s g r a ç a d a e u m a l i t e r a t u r a q u e n ã o e r a a p e n a s rica, m a s
como traços característicos de um "ciclo" em sentido lite- t a m b é m viva C*).
rário, de u m a epopéia. A primeira e maior epopéia que o O primeiro encontro entre tradições gregas e influên-
Ocidente criou. Como todas as grandes epopéias, a litur- cias o r i e n t a i s d e u - s e n a h i n o g r a f i a b i z a n t i n a . É o h i n ó -
gia c o n s t i t u i u m m u n d o c o m p l e t o — c r i a ç ã o , n a s c i m e n t o , g r a f o s í r i o E f r é m q u e se i m i t a nas f o r m a s da l í n g u a d e
vida, m o r t e e f i m — d e n t r o d o s m u r o s d a i g r e j a . M u n d o fe- Píndaro. É também sírio o hinógrafo Romanos, o maior
c h a d o , cuja l i t e r a t u r a é " e x ó t i c a " n u m s e n t i d o d i f e r e n t e p o e t a da l i t e r a t u r a bizaritina, e s q u e c i d o d e p o i s t ã o in-
d o da p a g a : l i t e r a t u r a de o u t r o m u n d o . t e i r a m e n t e q u e s ó os e s t u d i o s o s o c i d e n t a i s d o s é c u l o X I X
P a r a d e s i g n a r o "fora", a I g r e j a R o m a n a , t ã o zelosa o r e d e s c o b r i r a r a (^'"'). P o r falta d e t r a d i ç õ e s não é possível
d o u s o e x c l u s i v o da l í n g u a l a t i n a , a d m i t i u u m a e x p r e s s ã o v e r i f i c a r a é p o c a em q u e R o m a n o s v i v e u ; indica-se, c o m o
d o l a t i m v u l g a r : " f u o r i le m u r a " ; v á r i a s i g r e j a s em R o m a d a t a m a i s v e r o s s í m i l , o século V I . R o m a n o s n ã o p a r e c e
c h a m a m - s e nssim. A e x p r e s s ã o l e m b r a a q u e l e " d i e s q u e m u i t o o r i g i n a l ; t a l v e z j á e n c o n t r a s s e a sua forma, o kon-
n o s t r o s in t u a p a c e d í s p o n a s " q u e foi i n s e r t o p o r q u e " f u o - takios, e s p é c i e d e h o m í l i a m e t r i f i c a d a d e g r a n d e e x t e n -
ri le m u r a " n ã o h a v i a a q u e l a paz. A e p o p é i a e c l e s i á s t i c a são. O s h i n o s d e R o m a n o s —- n e m t o d o s a u t ê n t i c o s — d i s -
d a l i t u r g i a d e c o r r e u s ó d e n t r o d o s m u r o s . L á fora, h a v i a t i n g u e m - s e p e l a i n s p i r a ç ã o d e s e n f r e a d a , que às vêzcs r o m -
os b á r b a r o s e a d e s t r u i ç ã o . p e a s f o r m a s h i e r á t i c a s , t r a n s f o r m a n d o - s e em b a l b u c i a ç ã o
Do p o n t o d e v i s t a da h i s t ó r i a u n i v e r s a l , essa v i s ã o n ã o e x t á t i c a . P a r a f o r m a r i d é i a da poesia d e R o m a n o s , o lei-
é i n t e i r a m e n t e e x a t a . F o r a da I t á l i a e das p r o v í n c i a s d e - t o r m o d e r n o p e n s a r á n a s g r a n d e s o d e s d e Clnudel, ima-
v a s t a d a s h a v i a u m o u t r o m u n d o , em c o n d i ç õ e s d i f e r e n t e s : ginando-as cantadas nas vagas de luz do serviço n o t u r n o
B i z â n c i o . P o i v o l t a d e 550, o I m p é r i o g r e g o , r e s t a u r a d o de N a t a l d e u m a c a t e d r a l bizantin.-i.
por J u s t i n i a n o , fez u m e s f o r ç o s u r p r e e n d e n t e p a r a r e c o n - Se R o m a n o s é rualnit-nte d o í.éculo V I , a sua p o e s i a
quistar o mundo. Se esse esforço não se tivesse malogrado faz p a r l e d o i m p o n e n t e inovinicnto d e r e n a s c e n ç a q u e o
•— a s r u í n a s m e l a n c ó l i c a s d e R a v e n a dão t e s t e m u n h o d i s - i m p e r a d o r J u s t i n i a n o p r o m o v e u . A s d u a s faces desse m o -
so — o O c i d e n t e s e r i a h o j e g r e g o e t a l v e z eslavo. P o r q u e
v i m e n t o a|)aríjccin na r e c o n q u i s t a da África e I t á l i a e n o
falhou, B i z â n c ' 0 n ã o faz p a r t e d o m u n d o o c i d e n t a l . A
restabelecimrnlo da ordem politico-admínistrativa pelo
l i t e r a t u r a b i / a n t i n a só t e m i m p o r t â n c i a , p a r a n ó s o u t r o s ,
Corpus Júris, e, por o u t r o lado, na f o r m a ç ã o d e p a r t i d o s
como f o n t e de m o t i v o s e c o m o c o n t r a s t e .
p o l í t i c o s em B i z â n c i o , c h e g a n d o a e x p l o s õ e s d e g u e r r a ci-
K m t o r n o de I'iz,'incio e x i s t e um e q u í v o c o : a p a l a v r a
e m p r e g a - s e como s i n ô n i m o de e s t é r e i s d i s c u s s õ e s t e o l ó -
gicas, d e p e t r i f i c a ç ã o . E s s e c o n c e i t o n ã o c o r r e s p o n d e aos
f a t o s h i s t ó r i c o s . A h i s t ó r i a b i z a n t i n a é das m a i s m o v i m e n -
l vil, e n a c o r r u ç ã o p e l a q u a l a I m p e r a t r i z T e o d o r a é r e s -

14) K. Krumbacher; Geschichte der hyzanthinischen Literatur. 2."


tadas. Despendiam-se esforços, quase ininterruptos, para ed. Muenchen, 1897.
r e v i v i f i c a r e c o n t i n u a r a s t r a d i ç õ e s g r e g a s , p a r a o p ô - l a s às G. Montelatlci: Storia ãella letteratura bizantina. Milano, 1916.
influências irresistíveis do O r i e n t e e assimilar estas úl- 15) J. B. Cardinal Pitra: Hymnographie ãe Véglise gre.cque. Roma,
1867.
timas. D u r a n t e m u i t o s s é c u l o s , B i z â n c i o é u m c e n t r o da K. Krumbaeíier: Sluãien zu Romanos. Muenchen, 1893.
218 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA » A LITERATURA OCIDENTAL 219

ponsabilizada. Procópio de Cesaréia (i") é o historiador mistérios da Paixão que se representaram nas grand'placeS
de ambos os lados: nas Historia varia descreveu os feitos das cidades medievais.
militares e a alta cultura da corte imperial; nas Historia A vivacidade da literatura bizantina só se revela bem
arcana, a corrução infame da mesma corte e das mesmas quando comparada com a situação no Ocidente. São os
pessoas que tinha elogiado. A civilização bizantina apre- séculos IX, X, XI, realmente os "Dark Ages" da historio-
sentará sempre uma cabeça de Jano. É uma civilização grafia convencional. Em Bizâncio, o eruditíssimo Photios
de duas classes bem distintas: aqui, a corte, a aristocracia, ( t 897) reúne no Myrobiblion as sua<; anotações de inú-
o alto clero, munidos de todos os requintes da civilização meros livros antigos, e esse herói da formação universi-
madura e da decadência moral; ali, o povo chefiado pelos tária é, ao mesmo tempo, patriarca de Bizâncio e adver-
monges bárbaros e fanáticos, inculto, tumultuoso e ingê- sário cismático da Santa Sé em Roma. O imperador Cons-
nuo. Um poeta da alta sociedade, como Agathias, pode tantino Porfirogênito (f 959) digna-se de escrever o
competir com as elegâncias do rococó francês; o seu con- De caerimoniis aulae, espécie de regulamento interno da
temporâneo Johannes Malalas é um cronista popular, lido corte, no qual se criam as "magnificências", "excelências",
em voz alta nas esquinas, traduzido depois para todas as "ilustríssimos" e "excelentissimos" da nossa burocracia e
línguas, e primeiro fator da europeização dos eslavos. A dos nossos envelopes. Konstantinos Michael Psellos
literatura bizantina é vivíssima; e cumpre uma grande ( t 1078) C''), filósofo platônico e algo como um poeta par-
missão. nasiano em meio dos tumultos na rua e das guerras com
eslavos e mongóis, conta, na Chronographia, um século
Tem a força de se renovar. No século V I I I , Andreas
de história áulica, que ele viu de dentro: intrigas de eu-
Cretensis e Johannes Damascenus criam uma nova forma
nucos, conspirações de generais, deposições e assassínios
de poesia eclesiástica, o Cânon. Em 863, a Universidade de imperadores, cnvenenadores, intervenções de mulheres
é reaberta. Theodoros Studita, monge e chefe político, pro- e monges, todo esse caos de sabre, boudoir e liturgia, em
tagonista fax^ático na luta pela conservação das imagens meio da mais requintada arte de viver em palácios e mor-
nas igrejas, é um homem do povo; em Bizâncio, todos os rer em conventos, ambos cheios dos mais luxuosos objetos
movimentos jjopulares tomam a feição superestrutural de de arte — os ocidentais, chegando a Constantinopla, fica-
guerras de religião. E como homem do povo, Theodo- vam boquiabertos; "Lors virent tot a plain Constantinoble
ros é poeta realista, apresentando a vida monacal em co- cil des nés et des galies et des víssiers; et pristrent port
res diversas daquelas por que ela aparece nos ícones e na et aancrerent lor vaíssiaus. Or poez savoir que mult esgar-
hagiografia. Ouvimos até falar de grandes espetáculos po- derent Costanlinoble cil qui onques mais ne Tavolent veue;
pulares nas igrejas, mas estamos mal informados quanto ao que íl ne pocient mie cuidier que si riche vile peust estre
drama religioso e ao mimo popular e obsceno; contudo, en tot le monde, cum ils virent ces halz murs et ces riches
o Cristus patiens do século XI é qualquer coisa como os tours dont ele ere close tot entor à Ia reonde, et ces riches
palais et ces haltes yglises, dont il l avoit tant que nuls
nel poist croire, se il ne le veist à Toeii et le lonc et le lé
16) Procopius de Caesarea, séc. VI.
Edição por E. Haury, 3 vols., Leipzig, 1905/1913.
E. Haury: Procopiana. Augsburg, 1891. 17) A. Rambaud: Psellus. Paris, 1877.
220 Oiio MAHIA CAHPKATJX

de 1(1 vilr f|in ilc totcs les autres ere soveraine." Eis a im-
prcHMÍÍo (iiM! Hi/àncio causou a um rude cavaleiro ocidental
(Io Kri iito X I I I como Villehardouin. Mas não percebeu,
ciilif os jidmiráveis palácios e igrejas, o povo miúdo, viva-
cí%!iiino c turbulento, como aparece nas poesias populares
tlc Thcodoros Prodromos (f c. 1180) ('**), mendigo e pa-
rasito, boêmio e monge, excessivo e melancólico como um
Villon bizantino, A imaginação exuberante desse povo já
havia criado uma legião de romances fantásticos, sobre
Alexandre e Tróia, sobre Apolônio de T i r o e os Sete Sá-
bios do Oriente, que irão invadir a imaginação ocidental,
inspirando Chrétien de Troyes e os cronistas de Arthus,
Lanzelot e Amadis. O povo de Bizancio chegou a criar
uma epopéia popular, um ciclo de romances à maneira es-
panhola, sobre o guerrilheiro Digenis Akritas, que lutou
na fronteira contra os árabes, e que na imaginação dos es-
lavos balcânicos se irá transformar lentamente em herói PARTE II
popular contra os turcos. Talvez o Ocidente inteiro ti-
vesse sido balcanizado, transformado em fronteira bárbara
da civilização grega, se Bizancio tivesse vencido, Mas o O MUNDO CRISTÃO
Ocidente não se bizantinizou nem se balcanizoii. Foi pre-
servado dos gregos pela invasão dos árabes, que fecharam
os caminhos marítimos do Mediterrâneo, isolando Bizancio
de Roma. O Ocidente continuou latino. Nasceu a Europa.

18) E. Beltrami: Teodoro Proãromo. Brescia, 1893.


CAPÍTULO I

A FUNDAÇÃO DA EUROPA

O P R I M E I R O fato histórico da chamada "Idade Mé-


dia" é a fundação da Europa moderna: a dclimita(;ão
das íronteiraE que a definem, a definit;3o das nações que
a habitam, a proclamação da unidade que, apesar de tudo,
a caracteriza
A afirmação parece paradoxal, mas só enquanto aquela
expressão "Idade Média" é mantida. Pressupõe ela ura
esquema da história universal em forma de trinômio, no
qual o membro médio, impermeável às influências do pri-
meiro e vencido pelo terceiro, representa uma decadência
intermediária, depois de uma catástrofe e antes de uma
renascença. O esquema está hoje p;ravemente comprome-
tido. Doscobi írain-se várias "renascenças" durante a cha-
mada "Idade Média", das quais a "grande" Renascença
dos séculos XV o XVI c apenas a continuação: a renas-
cença carolinr.jia do sõculo TX, a renascença "franciscana"
dos séculos > n e X I I I , a renascença escolástica ou fran-
cesa do século X I I I , e ainda outra francesa, dos noininalis-
tas do século X I V ; de modo que existe continuidade quase
ininterrupta ( ' ) . Por outro lado, a queda do Império ro-
mano não teve absolutamente as conseqüências definitivas
que se lhe atribuíam antigamente. Foi possível demons-
trar que as instituições romanas sobreviveram em grande

1) K. Burdach: Reformation, Rcnaissance, Humanismus. Berlin,


1918 .
A. Warburg: GestiTTimeZíe Schriftcn. Hamburg, 1934.
224 OiTít MAIIIA CARPEAUX ITiRTóuiA DA LITERATURA OCIDENTAL 225

parte à catáütrofc, e que a vida administrativa, econômica, seguiu salvar a Provença; os árabes chegaram até Avinhão.
social c intclccliial dos primeiros séculos "medievais", até, E já não era possível anular o acontecimento decisivo: o
maÍH ou menos, a época carolíngia, não diferia essencial- Mediterrâneo eslava fechado. Sobre a base desse fato his-
mente (Ia vida nos últimos séculos da Antigüidade (^). tórico Pircnnc conHtruiii uma hipótese impressionante para
Com i;ssas duas verificações, o conceito "Idade Média" explicar o retrocesso naqueles séculos ('').
perde o sentido, a separação dos três membros do trinô- A civilinaiião nnti(;a baseava-se no comércio livre en-
mio histórico é substituída pela continuidade. tre os paiscB mcditerrâneoH; c, considerando-se a precarie-
Mas a continuidade não é perfeita. Sobretudo quanto dade doH IraiisportcH terreslics, eram os caminhos marí-
ao começo da época intermediária, não se consegue a abo- timos de importância vital. A separação do Império em
lição total do velho conceito. A grande interrupção é só duas partes, o Império ocidental de líoma e o oriental de
deslocada, dos séculos V e VI para os séculos V I I e V I I I Bizâncio, não prejudicou o comércio marítimo entre eles;
ou IX. Evidentemente, cumpre substituir a "catástrofe nem o prejiiõícou a invasão dos bárbaros, que era uma in-
do Império", como acontecimento decisivo, por qualquer vasão pelos caminhos terrestres. Nem a própria queda do
outro acontecimento, menos espetacular, ocorrido dois ou Império ocidental teve, por isso, conseqüências definitivas.
três séculos depois, e que teve as conseqüências regres- Só a ocupação de quase todas as costas do Mediterrâneo
sivas atribuídas antigamente à invasão dos bárbaros, ocidental pelos árabes acabou com o comércio marítimo. As
esperanças bizantinas de uma reconquista do Ocidente es-
Com efeito, houve duas invasões bárbaras; após a tavam frustíadas. Interromperam-se, não completamente
primeira, iniciada no século IV, houve, nos séculos V I I I aliás, as relações entre o mundo grego e o mundo latino,
e IX, a dos vikings germânicos do Norte e dos húngaros e a possibilidade de uma E u r o p a bizantina estava excluída
do Oriente. Muitos monumentos e instituições que tinham para sempre.
sobrevivido à primeira invasão, foram então destruídos.
Contudo, a segunda invasão foi transitória, não chegou ao O fechamento do Mediterrâneo interrompeu o comér-
estabelecimento dos bárbaros dentro das fronteiras tradi- cio marítimo, e o comércio nos caminhos terrestres tor-
cionais da E u r o p a ; e as conseqüências também só não te- nou-se mais precário do que nunca. A troca de produtos
riam sido transitórias se vikings e húngaros não tivessem manufaturados cessou, e as aglomerações humanas viram-se
tido, sem o saberem, um aliado poderoso no Sul. Na mesma obrigadas a produzir, em autarquia perfeita, aquilo de que
época, os árabes (ou qualquer que seja a mistura étnica precisavam. O Ocidente reagrarizou-se. Os latifúndios
dos maometanos reunidos sob aquele nome) conquistaram íuislocráticos ficaram como únicos centros de atividade
a Espanha e a Sicília, invadiram a França e a Itália meri- (conômica, A sociedade hierarquizou-se em aristocratas e
dional e chegaram a ameaçar Roma. A famosa batalha de turvos. A organização política correspondente a essa or-
Poitiers, em 732, salvou o Norte da França, mas não con- C.niiização hierárquica da sociedade é o feudalísmo. O ca-
pital, excluído dos negócios de competição livre, imobi-
li/ou-sc nas mãos da aristocracia rural e da Igreja, que
2) A. Dopsch; Wirtschaftliche unã sosiale Grunãlagen der euro- t.iinbém se ftudalizou. O s chefes supremos desses dois or-
paeischen Kulturentwtcklung aus der Zeit von Caesar bis auf
Karl den Grossen. 2 vols. Wien, 1918/1920. (Vol. I, 2.^ ed. Wien,
1923.) :ti II, rifcimc; Mahomct et Charlemagne. 4.» ed. Paris, 1937,
226 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 227

ganismos feudais, o rei dos francos e o papa, fizeram a da raça céltica (*"'*). Viajar — vtajar, a pé, pelas florestas
aliança que substituiu, no Ocidente, o cesaropapismo bi- e pântanos, era, então, um trabalho bem penoso — é para
zantino. Aliança instável e insegura, aliás, responsável pe- eles um meio de fazer vida ascética. Aparecem em toda
las evoluções futuras e inesperadas. a parte, fundando conventos: Luxeuil, na França; Stavelot,
Aristocratas e servos não eram os únicos componentes na Bélgica; Sankt Gallen, na Suíça; Bobbio, na Itália. Aos
dessa sociedade. Havia também vagabundos sem lar nem monges irlandeses, de espírito independente, devem-se as
categoria social, e entre eles vão surgir os futuros nego- bases de posteriores "renascenças". Os monges ingleses
são mais sedentários; gostam de dedicar-se, em modestas
ciantes e capitalistas. E havia mais uma classe, de caráter
casas de campo em torno da igreja, ao estudo das letras
social menos definido: o clero. O alto clero, bispos e pre-
clássicas. Beda Venerabilis ( ' ) é um monge assim; de eru-
lados, pertencentes, as mais das vezes, às famílias aristo-
dição universal, mas de um horizonte intencionalmente li-
cráticas, já se estava feudalizando. O clero regular fun-
mitado à &ua ilha, escreveu a Historia ecciesiastica gentis
dou centros independentes, com a estrutura econômica dos AngloTum, equilibrada, razoável, patriótica sem excesso,
latifúndios, mas sem relações com o poder político: os clássica sem pedantismo. Beda é o primeiro scholar inglês.
grandes conventos. Daí surgiu uma classe de clérigos ca- E n t r e os anglo-saxões, a mentalidade cristiano-latina
pazes de conceber e exprimir o espírito da época. encontra-se com o vivo espírito religioso da raça, produ-
Economia sedentária, capital imobilizado e horizontes zindo uma literatura religiosa notável, no idioma germâ-
marítimos fechados produziram fatalmente uma concepção nico (®). Antes do fim do século V I I escreveu Caedmon
fechada do mundo. Um mundo espiritual, fechado dentro os seus famosos hinos, antecipação da poesia eclesiástica
dos muros sólidos da disciplina monacal, comparáveis aos de Quarles e Cowper. Do século seguinte é a Anglo-Saxon
Gênesis, paráfrase poética do primeiro livro de Moses, na
muros sólidos das igrejas-fortalezas do estilo românico.
qual a devoção bíblica se mistura com sentimento da Na-
Dentro desses muros eclesiásticos havia uma vida inde-
tureza e certa compreensão do lado noturno, demoníaco,
pendente; a vida da liturgia. Os cultores da liturgia são
os monges. Em certos conventos europeus, o canto litúr-
gico não cessou um dia só, durante mais de mil anos; e 3A) J. Ryan: Irish Monasticism, Origins and Early Developments.
quem assiste hoje a uma missa solene, em um desses con- London, 1931.
ventos, com os escolásticos tonsurados servindo ao abade 4) Beda Venerabilis, 673-735.
Historia ecciesiastica gentis Anglorum.
e o coro cantando o catochão gregoriano, compreende a Edição: Mlgne, Patrologia latina^ vols. XC-XCV; edição crítica
situação insulada daqueles conventos, era meio de uma por C. Plummer, 2 vols. Oxford, 1896.
A. H. Thompson e outros: Beã&, His Life, Times and Writings.
sociedade rudemente agrária e das tempestades produzidas Oxíord, 1935.
pelas invasões dos bárbaros vikings e húngaros. 5) Os principais manuscritos anglo-saxônicos foram descobertos
por Franciscus lunius, 1655. — Edição: C. W. M. Grein: Bíblio-
A civilização da época é clerical; ou melhor, é mona- thck der angelsaechischen Poesie, 2.* ed., 4 vols., Leipzig, 1894.
cal e escolar. O centro de irradiação dessa civilização pe- St. A. Brooke: English Literature írom the Beginning to the
dagógica foram as ilhas britânicas. Mas é preciso distin- Norman Conguest. London, 1898.
G. K. Anderson: The Literature of the Anglo-Saxons. Prince-
guir. Os monges irlandeses revelaram toda a mobilidade ton, 1949.
22B Onu MAIUA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 229

da Criaçílo; Milton, amigo de lunius, que descobrira esses fora discípulo do arcebispo Egbert de York, e portanto
poemas, devo ter conhecido essa Gênesis. O último e maior discípulo indireto de Beda Venerabilis; foi mestre-escola e
doH poetas anglo-saxões é Cynwulf, o autor de Chríst e clérigo. Todas as suas obras têm fins didáticos, às vezes
Klcnc, pocm3S narrativos nos quais a mistura de religiosi- em forma de catecismo, e a Disputado puerorum per inter-
dade e gosto pela poesia descritiva já é, outra vez, ti- rogationes et responsiones dá um panorama vivo dos mé-
picamente inglesa {^-^). A literatura dos leigos anglo- todos pedagógicos, na escola de Aquisgrano. Liam-se mui-
saxões encontra um centro na corte do grande rei Al- to os autores pagãos, Virgílio de preferência, por ser ca-
fredo i^), tradutor de Gregório Magno, Beda e Boécio. paz de uma interpretação cristã. O fim imediato era a
Esta última é significativa; o rei é quase um santo, mas latinização dos povos germânicos; o verdadeiro objetivo
tem as suas veleidades de cultura clássica independente; é da Renascença carolíngia era a conquista e dominação es-
o primeiro gentleman-scholar. \ piritual dos germanos pela Igreja romana: o amplo im-
pério de Carlos Magno, compreendendo a França e a Ale-
Um rebento continental do humanismo anglo-saxônico
manha de hoje e grande parte da Itália, não tem outra uni-
é a "Renascença carolíngia" (O- assim chamada porque foi
dade senão aquela, romana.
da iniciativa do imperador Carlos Magno. A "Renovatio
Romani Imperii" pela coroação romana, em 800, devia cor- Daí resulta não serem os efeitos da Renascença ca-
responder a "renovatio" das letras clássicas, senão do es- rolíngia muito profundos, mas extensos. À aplicação dos
pírito clássico. Na residência imperial, em Aquisgrano, monges copistas da época carolíngia devemos quase todos
reuniu certo número de clérigos britânicos, em uma escola os manuscritos conservados, de poetas e prosadores roma-
palaciana, a cujos trabalhos o imperador assistiu pessoal- nos. Promoviam-se os estudos clássicos nos conventos da
Renânia, da Bélgica e França, em Corvey, Stavelot, Lu-
mente, para dar um exemplo de aplicação à corte e ao povo;
xeuil. Mais para o Oriente, Sankt Gallen, na Suíça, tor-
o diretor da escola, Alcuin (*), era o seu ministro da educa-
na-se o maior centro de estudos C). Aí, o monge Ekkehard
ção. Seria, porém, um erro atribuir a Carlos Magno o
(f 973), o primeiro de quatro monges famosos com este
intuito de desinteressada divulgação de cultura. Alcuíno
nome, escreveu o poema latino Waltharius mana fortis, no
qual a forma virgiliana e o espírito de guerreiro germâ-
5A) K. Trautmann: Cynwulf. Bonn, 1898. nico se misturam com a nostalgia do monge pelo vasto
S. Lupi: SanVElena di Cynwulf. Napoli, 1952.
mundo, lá fora. O Alcuíno de Sankt Gallen é Notker Labeo
6) Alfred, rei de Wessex, 848-901.
Hierdeboc (tradução da Cura pastoralis de Gregório Magno); ( t 1022), tradutor de Boécio e das Categoriae, de Aristó-
traduções de Orósio, Beda, Boéeio; Anglo-Saxon Chronicle. teles; sabemos que traduziu também as Bucólica, de Virgí-
Edição por J. A. Glles. 3 vols. Oxford, 1852/1858.
C. Plummer: The Life and Times of Alfred the Great. Oxford, lio, e a Andria, de Terêncio, para os fins do ensino. O quar-
1902. to Ekkehard ( t 1060) escreveu, nos Casus sancti galli, a
7) H. Naumann; Karolingische unã ottontsche Renaissance. Frank- crônica do convento: liturgia e pequenos incidentes da
furt, 1926.
i
vida escolar, contatos (às vezes sedutores) com o mundo,
8) Alcuin, c. 735-804.
Disvulaüo pucrorum per interrogationes et responsiones; De re-
tmira: De ãialectica, etc, etc.
9) S. Slnger: Uie Dichterschule vou St. Gallen. Lelpzig, 1922.
K. Wcnicr: Alcuin unã sein Jahrhundert. 2.» ed. Wlen, 1881.
J. M. Clark: The Abbey of St. Gall. Cambridge, 1926.
li. ti. Duckctt: Alcuin, Friend of Charlemagne. London, 1952.
2.10 Oiio MAUIA ('ARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 231

lá fom, olhaiitH |IJIIII iis montanhas suíças e o lago de Cons- baros"; ligado pelo sangue à aristocracia germânica, mas
tiin^ii, 1IIVIIHA(I (IOH húngaros, resistência armada dos mon- isento de preconceitos bárfiaros, pela qualidade de clérigo
Kt», devHMtnv-i"- iome, salvação dos manuscritos preciosos e bispo da Igreja Romana. O seu latim é bárbaro e horri-
— t) «'«nvrii"! que ainda hoje existe, na cidadezinha indus- velmente confuso; mas a sua fé nos milagres de S. Mar-
trlali/uilo (Ia Suíça, tem realmente um passado venerável. tinho e dos santos da região (De vita patrum), que êle co-
A tcrinscença carolíngia não sobreviveu muito ao seu
nheceu pessoalmente, é de uma ortodoxia impecável. O
fdiid.Tdor; fora uma tentativa muito intencional, demasia-
historiador dos Merovíngios é fiel, digno de toda a con-
diimente racional. Mas os efeitos não se perderam de todo,
porque correspondiam a uma realidade. Essa primeira re- fiança; só a sua filosofia da história é algo infantil. A
nascença é a superestrutura, algo precária, do Império feu- História, segundo Gregório, serve para revelar os desíg-
dal, aliado ao Papado romano: edifício político-religioso, nios de D e u s ; o próprio Gregório foi testemunha de acon-
totalmente diierente do Império grego de Bizâneio e opos- tecimentos milagrosos, do fim miserável dos aristocratas
to a êle pela diferença lingüística. Em Bizâneio, a tradi- ímpios e do triunfo dos bispos ortodoxos. Infelizmente, a
ção grega continuou, sem interrupção e, por isso, sem re- freqüência dos milagres é insuficiente. Uma verdadeira
nascença. No Ocidente, a latinização dos bárbaros ger-
santa, como Radegonda, mecenas do poeta Venâncio For-
mânicos criou um novo mundo. De uma "renascença" — é
tunato e fundadora do convento de Saint-Croix, em Poi-
preciso chamar a atenção para o sentido literal da palavra
tiers, é personagem rara entre as figuras terríveis dos reis
— nasceu a Europa. Quando o Papa Gregório IV intro-
duziu na França, em 835, a festa romana de Todos os San- merovíngios Sigeberto e Quilperico, e das suas condignas
tos, da comunhão entre os espíritos celestes e o gênero hu- esposas Brunilda e Fredegonda, que devastam a corte e
mano pela liturgia, sancionou a unidade latina do Oci- o país, física e moralmente, por meio da guerra civil, pelo
dente; a matriz desse culto de todos os santos é a igreja assassínío, veneno, incesto, estupro, mutilações, profana-
Santa Maria ad Martyres, o antigo Panteão de todos os ções, horrores de toda a espécie, dos quais a História dos
deuses romanos, em Roma. Francos é o relato fiel, pitoresco e comovido de angústia.
Os fundamentos do edifício não estavam bem seguros. A conversão de Clóvis não adiantou nada. Os instintos sel-
O inimigo, lá fora, vikings e húngaros, não teria sido tão
vagens dos bárbaros até foram exacerbados pelos requintes
perigoso, se não houvesse também o inimigo de dentro: o
da decadência romana.
fato incontestável de a cristianização dos germanos ter
ficada imperfeita. Os testemunhos são muitos. Gregório Mesmo entre os anglo-saxões, o cristianismo ainda não
de Tours ( " ) é um bispo da "época das migrações dos bár-
penetrara no fundo da alma. É testemunho disso o Lay

10) Gregorius, bispo de Tours, 538-593.


Historia Francorum; De Vita patrum; Oe miraculis Sancti Mar-
tini.
J. W. Loebell: Gregor von Tours unã seine Zeit. 2? ed. Berlin,
Edição: Monumenta Germaniae Histórica, Script. rer. Merovlng., 1369.
vol. I, Hannover, 1835; edição crítica por H, Omont e G. Collon, M. Bonnet: Le latin de Grégoire de Tours. Paris, 1890.
Piiiis, 1913. G. Vinay: San Gregório ãi Tours. Roma, 1940.
232 OTTO MARIA CAKPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 233

of Beowulf ( ^ ' ) , considerado hoje, por alguns, como o poe- forma-se para êle em luta mística <*itre deuses da luz e
ma épico mais poderoso que já se escreveu nas ilhas bri- fantasmas noturnos. É assim que a notícia da "Rabens-
tânicas. Embora o enredo seja de feição mitológica — a chlacht" chega aos alemães medievais, transformada em
vitória de Beowulf sobre o gigante antropófago Grendel "saga".
e a sua morte no momento da vitória sobre um dragão O paganismo germânico tem vida mais tenaz entre a
ignívomo — o fundo do poema é histórico, e os aconteci- gente do Norte. Lá, produz uma literatura notável em
mentos, despidos da transfiguração poética, podiam ser Ungua islandesa C^). O seu monumento principal é a
verificados na Dinamarca do século V I . O desconhecido Edda C*), vasta compilação de canções mitológico-herói-
autor do Beowulf, se não é cristão, pelo menos vive em cas e poemas didáticos, estes últimos muito ao gosto dos
país cristão e conhece a moral cristã: Beowulf, um daque- germanos. Os poemas heróicos da Edda, como a Helgakvi-
les "heróis d?, civilização" que aparecem em muitos mitos da, a SigurdaTkvida, a Helreid Brynhildar e a Codrunar-
primitivos, é ligeiramente decalcado sobre a figura do Cris- vida, foram outrora considerados como as fontes mais an-
to. Mas a profunda seriedade do poema não se deve ao tigas da Nibelungensaga alemã; são, porém, versões pos-
Evangelho; decorre da força indomável de germanos que, teriores da lenda semi-histórica dos germanos do Sul, adap-
mesmo quando convertidos, não se convertem.
tadas apenas ao espírito nórdico, que aparece nu e cru
Com efeito, os germanos não esqueceram. Os longo- nos poemas mitológicos da Edda: Voeluspa, Balders ãrau-
bardos já estavam havia séculos na Itália, batizados, gover- mar, Hávamál, Grimiiismál, Voelundarkvida. Constituem
nando um país de fala latina, em contato íntimo, na região verdadeiro compêndio da mitologia nórdica, de Odin, Thor,
meridional, com os bizantinos e a civilização grega, quan- Frigg, Freyr, Loki, sem a mínima influência cristã, sem as
do um velho monge de Monte Cassino, Paulo Diácono C^), atenuantes poéticas e subentendidos filosóficos, que o ro-
se recorda do passado remoto dos seus patrícios, nas praias mantismo e W a g n e r introduziram nas suas versões ana-
brumosas do mar setentrional; transmite fielmente as len- crônicas. O mesmo estado de espirito enforma a historio-
das que ouviu na infância, sem lhes entender o fundo pa- grafia de Snorri Sturliison ("''); a sua Heimskringla é uma
gão; mas, quando fala da grande batalha entre longobar-
dos e gregos, perto de Ravena, o combate histórico trans-
13) G. NeckRl: Die altnordische Literatur. Leipzig, 1923.
A. Heusler: AUgermanische Poesie. Berlin, 1924.
H) Lay of Beowulf, escrito entre 675 e 720. 14> A compilação da Eãda foi atribuída pelo descobridor do manus-
Edição por F. Klaeber, Boston, 1922. crito, o bispo Brynjulf Sveinsson, em 1645, a Saemund Frode, c.
R. W. Cliambers: Beowulf. An Jntroãuction to the Study of the 1240.
Põem. 2." ed. Cambridge, 1932. Edições por F. Jónsson, 2." ed., 2 vols., Rejkjavilc, 1905, e por
D. Whltelock: The Audience of Beowulf. Oxford, 1951. G. Neckel, 2 vols., Leipzig, 1936.
12) Paulus Diaconus, c. 720-727. F. Jónsson: Den olãnorske og oldislanãske Litteraturs Historie.
Vol. I. KJoebenhavn, 1894.
Historia Longobarãorum.
Edição: Monutnenta Germaniae Histórica, Aut. antiqu., vol. II, B. S. Phlllpotts: The Elãer Eãda. London, 1920.
Hannover, 1878. 15) Snorri Sturluson, 1178-1241.
F. Dahn: Paulus Diaconus. Leipzig, 1876. Heimskringla.
A. Vügeler: Paulus Diaconus unã ãie Origo gentis Lonsolmrão- Edição por F. Jónsson, KJoebenhavn, 1893.
riim. Berlin, 1887. F, Paasclie: Snorri Sturluson og Sturlungeme. Oslo, 1922.
234 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OC>DENTAL 235

coleção admirável das sagas históricas que se referem aos melhor comentário de moralista à vida e obra de Egil
primeiros séculos da história noruego-irlandesa. Skallagrimsson C ) ; viking violento, que esteve na No-
A s "sagas" (}^) constituem uma literatura sui generis. ruega e na Inglaterra, expulso e vitorioso, batido e indo-
São relatos rigorosamente históricos, às vezes biográfi- mável, cruel e nobre, avarento e infame, e um grande poeta.
cos, que ora tratam da biografia de uma família inteira, Escrevendo "lausar visur", poemas em louvor de reis e
ora se limitam à autobiografia; Eyibyggjasaga, Egilssa- guerreiros, não hesitou em prostituir, por dinheiro, a sua
ga, Grettissaga, Vapnfiidngasaga e outras contam a vida poesia. Em outras canções exulta com as suas próprias
dos conquistadores noruegueses da Islândia, a partir do sé- conquistas eróticas, que mais se assemelham a estupros,
culo IX, as lutas sangrentas entre famílias inimigas e ir- e as suas vitórias, que se parecem com assassínios. Mas
mãos que se odeiam, as batalhas e os extermínios, os adul- era um amigo fiel e amava os seus, e quando lhe morreu o
térios e as vinganças, a vida miserável dos proscritos, as filho, escreveu a admirável canção fúnebre "Sanatorrek",
aventuras além-mar, na Inglaterra e, mais tarde^. até no furioso contra o injusto deus Odin e conformando-se cora o
Mediterrâneo, na Palestina, na Groenlândia e na América. destino, em resignação estóica. Nenhuma tradução para
A Njálssaga, sobretudo, oferece um panorama completo línguas modernas é capaz de exprimir a força primitiva dos
dessa gente terrível. O estilo do relato é lacônico, abrupto versos finais, em que o poeta, de espírito indomável, espe-
como a linguagem deles. Não se sente a mínima influên- ra a própria morte e — até — a eternidade de um inferno:
cia do latim, fato que torna as sagas fenômeno único na li-
teratura medieval. Aquela gente também não é cristã, em- "Dog skal jèg glad
bora batizada. Não dissimula as paixões violentas, os atos og uden sorg
vergonhosos, nem sente remorsos. Do ponto de vista cris- med villigt sind
tão, são monstros. vente doeden."
Os eclesiásticos sabiam de tudo isso. No século XI, o Pois Egil é o menos "europeu" de todos os poetas da his-
cônego e historiador Adamus de Bremen assusta-se dos tória literária européia: reflete, nos seus poemas, uma pri-
germanos setentrionais: não conhecera pudor nem clemên- mitivíssima economia, quase de silvícolas, e ignora o cris-
cia nem arrependimento, a sua aparente ascese só serve
tianismo.
para fortalecer o corpo. Até o seu famoso heroísmo é ape-
O grande monumento dessa mentalidade é a história
nas egoísmo e ambição do poder, e a sua lealdade uma
dinamarquesa de Saxo Grammaticus Q^). Chamaram-lhe
lenda; estão sempre dispostos a trair amigos e inimigos.
E, apesar de tudo, o cônego devoto não dissimula certa
17) Egil viveu no século X. Sua vida é relatada na Egil SkalUtgritns-
admiração por esses monstros inconversíveis; êle mesmo sonssaga (edit. por F. Jónsson, 2.^ ed., Reykjavik, 1924).
também é germano. As suas observações constituiriam o A. Bley: Egil-Stuãien. Gent, 1909.
E. Noreen: Den Norsk-Islaenãske Poesien. Oslo, 1926.
18) Saxo Grammaticus, c. 1150-c. 1120.
16) Edições: Altnorãisehe Sagabibliothek, por Cederschioeld, Gering Gesta DanoTum.
e Mogk, 17 vols., Leipzig, 1892/1927; Brennu-Njals Saga. por E. Edição por I. Olrik e H. Raeder, 6 vols,, Kjoebenhavn, 1931/19.^3.
O. SvelnsEon, Reykjavlk, 1954, A. Olrik: Danske Oldkvaã. Sakses Historie. Kjoebenhavn, 1898.
W. A, Craigie: The Icelanãic Sagas. Cambridge, 1921. L. Pineau: Saxo Grammaticus. Tours, 1901.
H. Koht: The Old Norse Sagas. London, 1931. V. Madsen; Et Saxproblem. Kjoebenhavn, 1930.
236 ÜTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 237

"Gratnmaticus" porque foi cônego da catedral de Roes- palavra neolatina para designar o estado de guerra civil
kilde e escreveu em latim. Com efeito, o núcleo da sua permanente entre os feudais — era fenômeno geral. A
obra é a biografia do seu admirado arcebispo Absalon, devastação moral não parou às portas da Igreja Romana,
biografia que constitui, hoje, o livro XIV dos Gesta Da- governada por assassinos e suas concubinas: a famosa "por-
noTufís; pois Saxo continuou a narração histórica além da nocracia" romana do século X. A fome chegou aos extre-
morte do arcebispo, e, mais tarde, escreveu os 13 livros mos do canibalismo (^^).
de introdução, da história antiga e lendária dos dinamar-
A reação veio da Igreja. Em 910, Odo fundou o con-
queses. O latim da obra é duro, mas não bárbaro. Saxo
vento de Cluriy. A regularidade da disciplina litúrgica su-
pertence so número dos humanistas do século X I I I da
plantou a anarquia espiritual. A ascese venceu a sujeira
estirpe de Johannes de Salisbury e Alexander de Hales; é
o Lívio de sua nação. Como Lívio, inclui as lendas nacio- física, a intemperança da mesa, a sexualidade desordenada.
nais na sua história, não por credulidade, mas poi* orgu- As portas do convento aboliu-se a propriedade, com todas
lho. Todas as tradições do Norte lhe são familiares, in- as conseqüências. A reforma cluniacense limitava-se, no
clusive as norueguesas e irlandesas; e entre os persona- começo, a certos conventos e "igrejas locais". Roma per-
gens pseudo-históricos aparece um pálido príncipe de manecia inacessível. Mas conquistaram-se, enfim, países
Dinamarca, Amleth. O humanista também se revela nos inteiros, constituindo-se ilhas moralizadas dentro da Igre-
metros antigos que empregou para traduzir as velhas can- ja universal as igrejas nacionais da França e da Alema-
ções. Só uma parte do tesouro comum da civilização da- nha, das quais os bispos eram cluniacenses: os bispados
quele tempo foi completamente esquecida pelo cônego da constituíram os fundamentos da reorganização administra-
catedral de Roeskilde; o cristianismo. O nome de Deus tiva. Surgiram, assim, o Estado francês dos Capetingos e
não aparece nos Gesta Danorum.
o Império romano-alemão dos três imperadores de nome
Eis a gente que invadiu, a partir do século IX, o Oci- Oto. E a idéia da reforma se universalizou. Oto I ain-
dente, devastando-o de maneira impiedosa. Foi então que da é um rei alemão; Oto I I já tem grandes projetos na
muitas instituições e monumentos da Antigüidade, já trans- Itália; Oto I I I julga-se César e passa a residir em Roma.
formados em meros resíduos inúteis pela reagrarização, Com o universalismo era incompatível a guerra civil gene-
desapareceram. Foi então que se apagaram os últimos ves- ralizada. Os monges promovem uma reação democrática
tígios da vidr. urbana. Quando os habitantes voltaram para
do povo contra os feudais, exaltam a idéia da "Treuga
a Treves devastada, contentaram-se com barracas de ma-
Dei", do armistício pelo amor de Deus. Em 989, conclui-
deira, colocadas sobre os restos dos muros romanos. Mui-
se o pacto d£ paz geral, em Charroux; era 1000, em Poitiers,
tas cidades sobreviveram apenas como nomes de co-
marcas rurais. Criminosos, sectários e feiticeiros residiam
nas ruínas do Fórum Romanum, que a imaginação popular
povoava com espectros e fantasmas, últimas encarnações lü) Sobre o estado material c moral da Europa, nos séculos IX e X,
e depois, existe documentação bastante grande; as conclusões
dos deuses pagãos. Administração não havia; a usurpação nem sempre são igualmente pessimistas. Cí.:
dos senhores feudais era lei; famílias, castelos e aldeias F. Gregorovius: Geschichte der Staãf Rom im Mittelalter. 8 vols.
fizeram guerras privadas; a Fehde ou feud — não existe StuttGart, 1859/1872. (Ed. ital., 4 vols. Roma, 1900/1901.)
Chr. Dawson: The Making of Europe. London, 1935.
HiSTÓBiA DA LITERATURA OCIDENTAL 239
238 (JTTO MARIA CARPEAUX

Agora, a gramática rege a língua dos anjos. A nova lite-


a guerra feudal é solenemente abolida. Aparecem outros
ratura começa com um coro interminável de hinos (^•').
monges, OK cistercienses, e substituem a guerra pelo traba-
Os hinos mais antigos são quase todos anônimos, como
lho. Com a pacificação e a reconquista da terra devas-
a própria liturgia, da qual chegam a fazer parte. A tra-
tada ressuscita o conceito da tradição, que recebe, de ma- dição atribui a Rabanus Maurus (f 856) o hino admirabi-
neira muito especial, a sanção eclesiástica: o abade Odilo líssimo que clama pelo advento do Espírito Santo:
de Cluny (f 1048) institui o dia santo de Finados, a pri-
meira festa da Igreja ocidental, que não se conheceu an- "Veni, creator S p i r i t u s . . .
tes no Oriente grego; é a festa da comunhão que liga os Accende lumen sensibus:
vivos aos mortos. Nas almas, nutridas de liturgia, cons- Infunde amorem cordibus";
trói-se um mundo completo, hierárquico, o mundo dos três outros hinos são atribuídos a Venâncio Fortunato, Teo-
reinos: inferno, purgatório, paraiso. A pobre vida terres- dulfo de Orleães, a nomes famosos do passado. Lugar
tre é superada por outra vida, espiritual e mais real. É mais preciso na história literária está reservado a Notker
o único momento da história ocidental moderna que tem Balbulus ( t 912) (^'"^), que, ao que parece, inventou uma
semelhança, se bem que longínqua, com o "realismo" grego, nova forma litúrgica: a seqüência, poema em versículos,
capaz de construir mundos ideais e de transformá-los em espécie de verso livre; entre os autores — quase sempre
realidades. incertos — de seqüências, aparece o polígrafo Hermannus
Contractus (f 1054), que teria sido autor do "Salve, regi-
Os criadores da nova mentalidade tinham, às vezes,
na misericordiae", em que os versos
plena consciência disso. Citam-se agora as palavras com
as quais Rabanus Maurus exaltou a gramática "imperecí- " . . . . ad te clamamus, exsules filii Hevae,
vel", quase como se fosse um sacramento: "Grammata sola ad te suspiramus gementes et flentes
carent fato, fortemque repellunt." Se fosse apenas dis- in hac lacrymarum valle."
ciplina escolar, seria a repetição do experimento carolín-
gio; e, com efeito, houve, no tempo dos três imperadores exprimem a angústia da época.
A seqüência esconde, no seu aparente prosaísmo, cer-
de nome Oto, uma tentativa de "renascença otoniana"; a
tos artifícios, quase claudelianos: cadêincias que se re-
religiosa alemã Hrotswith (^*') escreveu 8 comédias hagio-
gráficas, em estilo terenciano, primeira tentativa do huma-
nismo cristão para criar um teatro. Desta vez, porém, já i 21) A maior coleção dos hinos medievais" foi editada por G. M. Dre-
ves e outros: Analecta Hymnica Meãii Aevi. 55 vols. Leipzig,
não se trata só de exercícios gramaticais de mestres-escolas.
1886/1922.
S. W. Duffield: The Latin Hymn Writers and, Their Hymns. ItOn-
don, 1890,
U. Clievalier; Poesie liturgique. Rhythme et histoire. Paris, 1893.
20) Hrotswith von Gandershein, c. 935 - c. 1000. R. de Gourmont; Le Latin Mystique. 3.^ ed. Paris, 1923.
Dulcitius; Callimachus; Theophilus, etc. F. J. E. Raby; A History of Cristian-Latin Poetry. Oxford, 1927.
Edição por K. Strecker, 2.^ ed., Leipzig, 1930. 21 Aí W, von den Bteinen; Notker der Dichter und seine geistige
F. Preissl: Hrotswith von Candersheim unã ãie Entstehung cies Welt. Bem, 1950.
mittelalterlichen Helãenlieds, Erlangea, 1939.
Orrn MARIA CABPEAUX H I S T Ó R I A DA JjiTríRATURA OcHJEfflTAL 241
£40

petcm. nKHOD.iiicias e aliterações, rimas internas. Quando bem êle é inimigo do poder corrutor, mas o livro De con-
o hino HP renovou, sob a influência das "renascenças" repe- siãeratione, dirigido ao Papa Eugênio I I I , ensina uma po-
tidiiK. iiitiodiiziram-se aqueles artifícios em uma iingua- lítica do amor. O rigorismo moral de Bernardo, pregador
t;rrn MKIÍS clássica, produzindo uma forma nova de poesia, extátíco sobre o Cântico dos Cânticos, acaba na contem-
niciiiiM o "moderna" ao mesmo tempo. São desse tipo as plação e na união mística, e o seu ascetismo cultural, de
poesias de Petrus Damiani ("^). Este asceta furioso, que que deu testemunho na luta inquisitorial contra Abelardo,
He flagela duramente a si mesmo, não é menos rigoroso é susceptível de efusões líricas. Os hinos, que a tradi-
para com o mundo; inimigo feroz do Papa Gregório V I I , ção lhe atribuiu, não lhe pertencem. Mas nasceram no seu
porque o poder corrompe a alma, e inimigo feroz da filo- ambiente, porque são do seu espírito o ardor místico do
sofia e das letras, porque a cultura corrompe o espírito, "Jesu dulcis memória" e a emoção dolorosa do "Salve,
Mas esta alma "naturalmente conventual" é também a de caput cruentatum". São os hinos mais sentidos, mais lí-
um político, no mais alto sentido da palavra, a de um dire- ricos da Igreja latina.
tor de consciências e homens; e, quando o inimigo das le- São quase da mesma época numerosos outros hinos,
tras pretende exprimir as suas ânsias apocalípticas, a obses- anônimos todos, e na maior parte marianos, que se asse-
são da morte e do demônio e do último dia do mundo, en- melham bastante aos hinos pseudobernardinos, distin-
tão lhe ocorrera versos de uma precisão romana: guindo-se, no entanto, pelo lirismo mais musical. A mo-
dificação parece puramente literária; mas é de uma im-
"Hora novíssima, têmpora péssima sunt, vigilemus. portância muito maior.
Ecce minaciter imminet arbiter ille supremus." Os hinos litúrgicos caracterizam-se pela estranha ma-
gia da língua: vogais longas, com preferência pelos díton-
A aliança de asceta visionário e político ascético volta gos; determinadas combinações de sons; recitativos mo-
na alma mais suave de Bernardo de Claraval (^'•'). Tam- nótonos; a melodia do verso encontra-se "abaixo do li-
miar dos conceitos intelectuais", como se as palavras fos-
sem feitas para acomodar-se a um ritmo já preexistente,
22) Petrus Damiani, 1007-1072..
Opuscula (poesias e tratados); Sermones; Epistulae. à inaudível harmonia das esferas, Essa magia lingüística
Edição; Migne, Patrologia latina, vols. XVIV e CXV. é que exprime as angústias apocalípticas e júbilos angéli-
A. Capecelatro: Storia ãi S. Pier Damiani e dei suo tempo. 2.» cos do "homo cluniacensis". Pela magia lingüística, o hino
ed. Roma, 1894. representa, em forma adequada, certos sentimentos religio-
R. Biron: Saint Pierre Damien. Paris, 1908.
A. Wilmart: "Le recueil úes poèmes de S. Pierre Damien". (In: sos — a "majestas tremenda", o "amor mysticus" •— que
Revue Bénéãictine, XLI, 1929.) são, por si mesmos, inefáveis: os sentimentos "numinosos"
23) Bernard de Clairvaux; 1090-1153. (^''). Esse traço característico é comum aos hinos de to-
De consiãeratione: 125 sermões "de diversis"; 86 sermões sobre
o Cântico dos Cânticos. das as religiões em certa fase da sua evolução: ressoam
Edição: Migne, Patrologia latina, vols. CLXXXII-CLXXXV. hinos assim nos templos budistas e nas sinagogas. O hino
R. S. Storrs: Bernard of Clairvaux. The Times, the Man anã His litúrgíco em língua latina distingue-se pelo fato de conser-
Work. New York, 1893.
E. Vacandard: Vie de saint BerrMrã. 1 vols. Paris, 1910,
G. Goyau; Saint Bernard. Paris, 1927.
J. Calmette et H. David: Saint Bernard. Paris, 1953. 24) R. Otto: Das Heilige. 22.^ ed. Berlin, 1932.
f
242 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL ,243

var a capacidade de exprimir conteúdos dogmáticos de quase parnasiana, que devia acabar, nos seus imitadores,
maneira muito precisa. Naqueles hinos marianos, porém, em rotina.
o ritmo prejudica o conteúdo, transformando o dogma ma- O hino salvou-se pela influência do grande movimento
riano em substrato de uma poesia quase erótica; as cesu- religioso que deu ímpeto inédito aos sentimentos numino-
ras não são determinadas pela lógica da frase, e sim sos do franciscanismo. Mas a última palavra coube à soli-
pela música do verso; um elemento musical, a rima, rom- dificação do sentimento: a volta ao conteúdo dogmático,
pe o equilíbrio métrico; os símbolos, que pretendem repre-
sem o qual o hino da Igreja perderia a sua significação
sentar o dogma, tornam-se independentes.
especial. Por isso, o maior teólogo dogmático da Igreja
O grande poeta dessa fase é Adam de St. Victor (^^). romana também é o seu maior poeta litúrgico: Tomás de
Grande poeta exatamente porque o valor da sua poesia re- Aquino C-^"). Os seus poucos hinos — "Pangue, língua,
side mais nas qualidades literárias do que nas qualidades
gloriosi" e "Lauda, Sion, Salvatorem" — reúnem duas qua-
litúrgicas. O poeta do "Salve, mater salvatoris" e do "Ave,
lidades que raramente se encontram na poesia lírica: a
virgo singularis" é um criador de símbolos; inventou ou
maior precisão e a maior musicalidade, Seria possível co-
popularizou um conjunto impressionante de metáforas ma-
riológicas. Desde Adam de St. Victor, toda a gente en- mentar esses hinos como se fossem tratados teológicos
tende imediatamente o sobre a eucaristia; ao mesmo tempo, versos como

"Rosa mystica, "Tantum ergo sacramentum


T u r r i s Davidica, Veneremur cernui:
T u r r i s eburnea, Et antiquum documentum
Domus áurea, Novo cedat r i t u i :
Foederis arca, Praestet fides supplementum
J a n u a coeli, Sensuum defectui. . . "
Stella matutina."
ficam indelèvelmente na memória, o que é um dos crité-
Adam de St. Victor moveu esses símbolos por meio de rios mais seguros da grande poesia.
uma arte extraordinária do verso, de troqueus de 7 ou 8 Esta última fase da hinografia latina tem, outra vez,
sílabas, fortemente ritmadas e suavemente rimadas. Arte importância mais do que literária. A Igreja romana não
adotou o "credo ut intelligam", algo fideísta, de S. An-
25) Adam de St. Victor, c. 1110 - c. 1180. selmo, mas tomou como base do seu dogma a filosofia
Dos muitos hinos que se atribuem a Adam, só pequena parte é
autêntica; 45, dizem alguns, 14, dizem outros. O grande número
das atribuições revela Que Adam era o porta-voz poético dos
clérigos de sua época. 26) Tbomas de Aquino, 1225-1274.
L. Gautier: Les oeuvres poéttques ã'Aãam de St. Victor. Paris, J, Hoffmann: Verehrung und Aribetung des Sakraments ães Al-
1858. tars. Kempten, 1897.
D. S. Wrangham: The Liturgical Poetry o) Adam of St. Victor, M. Grabmann; The Interior Li/e of St. Thonias Aquinas. (Trad.
Oxford, 1881, ingl.) Milwaukee, 1949.
244 OTTO MAHIA CABPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 245

aristotélica ( - ' ) . Também não foi aos discípulos entusias- t u a d a s n o s c a m i n h o s da r o m a r i a p a r a S a n t i a g o de C o m p o s -


mados de S. Francisco, e sim aos filhos eruditos de S. Do- tela, a q u a l t i n h a q u e p a s s a r p o r a q u e l e s l u g a r e s d e r e c o r -
mingos, que coube a tarefa de construir a catedral da esco- dações b é l i c a s . E os c l é r i g o s d a q u e l a s i g r e j a s e r a m os q u e ,
lástica. Quando ficou pronto o edifício, que o "homo litur- c o n f o r m e a h i p ó t e s e d e B é d i e r , e l a b o r a r a m as l e n d a s é p i -
gicus" de Cluny começara, era um sistema filosófico, e cas. A i n t e r v e n ç ã o d e C a r l o s M a g n o e dos " p a r e s " n a -
uma instituição jurídica. quela luta introduziu extensa matéria de outra proveniên-
Esse edifício não está, de modo algum, separado do cia, l e m b r a n ç a s d e g u e r r a s f e u d a i s f r a n c e s a s , n a p r ó p r i a
mundo profano. Ao contrário, só agora a Igreja é capaz F r a n ç a e em t o d o o m u n d o ; t r a d i ç õ e s g e r m â n i c a s , p e d a ç o s
de vencer os restos do paganismo germânico e penetrar d o ciclo b r e t ã o , l e m b r a n ç a s das C r u z a d a s c o n t r i b u í r a m
até nos modos da vida profana. As catedrais levantam-se t a m b é m p a r a a elaboração d e n u m e r o s a s g e s t a s em t o r n o
nas grand'places das cidades. Em todo o castelo há uma da "geste de Charlemagne". Guillaume d'Orange, Aimeri
capela particular. J á com os cluniacenses, os ideais cris- de Narbonne, Enfances Ogier, Berte aux grands pieds,
tãos começam a modificar o ideal do guerreiro germâ- Elie de Saint-Gilles, Fierabras pertencem mais diretamen-
nico; começa a esboçar-se o tipo do cavaleiro cristão, do te ao ciclo central. E m Doon de Mayence, Renaud de
futuro cruzado. As cabeças dessa gente estão cheias de Montauban, Raoul de Cambrai, Girart de RoussiUon, Car-
lendas fantásticas, tradições pagas, lembranças bélicas. los Magno aparece menos simpático; porque essas gentes
Acontece, porém, que a elaboração literária desse mundo tratam da luta dos feudais contra o poder real, refletindo
ideal é feita, principalmente, por clérigos. As origens da a época anterior à "Treuga Dei". Enfim, em Eníances Go-
epopéia medieval ligam-se à cristianização definitiva do defroy, Chevalier au Cygne e na Chanson d'Antioche apa-
Ocidente. recem as Cruzadas. O conjunto, muito heterogêneo, cons-
titui a "Geste française".
A historiografia literária francesa distingue tradicio-
nalmente três ciclos de epopéia medieval: o Ciclo de Car- O Ciclo Bretão (^"), no qual se destacam os feitos do
los Magno, o Ciclo Bretão e o Ciclo Antigo. rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, as aven-
O Ciclo de Carlos Magno, a "geste de Charlemagne" turas de Gavain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a
(^'), tem origem histórica. A batalha de Roncesvales, con- Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na Historia
tra os árabes espanhóis, em 15 de agosto de 778, nunca Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século
foi esquecida; tornou-se lendária. À memória do herói V I I I , Artur aparece como herói dos celtas britânicos con-
Rolando acrescentaram-se as lendas locais das igrejas, si-

29) P . Marchot: Le roman breton en France ou Moyen Age. Paris,


27) O significado da transição, de Anselmo a Thomas, é bem expli- 1898.
cado em; A. Nutt: Celtic and Medieval Romance. London, 1899-
W. von den Steinen: Vom Heüigen Geist des Mittelalters. W. Lewis lones: King Arthur in History and Legend. Cambrí-
Berlin, 1928. dí;e, 1920.
28) G. Paris: Histoire poétique de Charlemagne. 2.» ed. Paris, 1905. I. D. Bruce: The Evolution o/ Arthurian Romance from the Be-
J. Bédier: Les legendes epiques. Recherches sur Ia formation //iiinmg.'i ãown to the Year 1300. 2 vols, Goettingen, 1923/1924.
des chansons de geste. 3." ed. 4 vols. Paris, 1925. íl, K. Chambei-g: Arthur of Britain. London, 1927.
F . Scliuerr: Das alfraneoesisehe Epos. Stuttgart, 1926. K. Fiiral; La legende arthurienne. 3 vols. Paris, 1929.
J, Crosland: The Old French Spic. Oxford, 1951. .T Marx; La Legende Arthurienne et le Graal. Paris, 1952.
HISTÓRIA DA LITERATUFA OCIDENTAL 247
246 (lrT() Míviu\ CAHPEAUX

cavaleiros e damas medievais. A Idade Média ignorava


tra OB invaBores anglo-saxões. As versões autenticamente
as epopéias homéricas. Conheceu apenas duas abstrusas
célticas dn lenda estão no Mabinogion, coleção de nar-
ra(;õcü na liiif;ua do País de Gales; aqui a figura de Artur versões da decadência latina: as Epbemerís Belli Trojani,
c dos cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achan- de um pretenso grego Dictys Cretensis, que foram tradu-
do-Hc inteiramente tranformados pela vivíssima imagina- zidas, no século IV da nossa era, pelo romano não menos
ção céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, flores- obscuro Quintus Spetimius; e a £>e excidio Troiae Historia,
tas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabino- de um falso frígio Dares, do século V. Dictys e Dares dis'
gion, na sua forma atual, foi redigido só no século X I V ; tinguem-se de Homero, não só por alguns valores literários,
os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros fran- mas pelo ponto de vista. Tomam o partido dos troianos
co-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma trans- contra os gregos, e disso gostavam os cavaleiros e damas
formação foi operada pelo "historiador" Geoffrey of Mon- medievais, porque simpatizavam com o casal adulterino Pá-
mouth (-"•'^), cuja fantástica Historia regum Britanniae ris e Helena. Motivos parecidos causaram a popularidade
foi escrita entre 1135 e 1138; parece que Geoffrey preten- de um episódio da Eneida: Enéias e Dido. As versões roma-
deu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste nescas das conquistas e viagens de Alexandre Magno sa'
francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religio- tisfizeram a curiosidade geográfica. E um acaso incom'
sa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e
preensível deixou sobreviver a fastidiosa Tebaida, de Está-
como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei
cio, da qual existem umas filhas medievais, igualmente
Artur para a ilha de Avalun, paraíso dos celtas, a Deman-
feias. Em geral, a Idade Média viu os enredos de Homeríí
da do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda
e Virgílio pelos olhos de Ovídio; o interesse no assunto
de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cru-
zados místicos. era principalmente erótico, de trovadores e clérigos ena-
morados; o Alexandre Magno medieval não era — comO
O Ciclo Antigo (*°) representa a sobrevivência de cer-
acontece, em geral, com a literatura de viagens — um herói
tos temas greco-romanos, tratados de maneira anacrônica
de evasão, e sim um trânsfuga do mundo fechado dos cas-
como se os heróis e heroínas de Homero e Virgílio fossem
telos e das igrejas. Era difícil encontrar sentido religioso
na "matière antique". Em todo o caso, justificou-se o in-
29A) L. Keeler: Geoffrey of Monmouth and the Later Latín Chro- teresse por Tróia e pelo troiano Enéias, por terem sido os
niclers. Berkeley, 1946. troianos que fundaram Roma, mais tarde capital do cris-
30) A. Joly: Benoit ãe Saint-More et le Roman ãe Troie, ou Méta- tianismo, de modo que as aventuras amorosas de Paris e
morphoses ã'Homere et ãe 1'épopÉe gréco-latine au Moyen Age.
2 vols. Paris, 1870/1871. Enéias estavam preestabelecidas no plano da Providência;
P. Meyer: Alexandre le Grana dans Ia Uttérature française du e o aventuroso Alexandre Magno foi interpretado comO
Moyen Age. 2 vols. Paris, 1886. símbolo do homem que viaja, sempre insatisfeito, até o firn
W. Greif: Die mittelalterlichen Bearbeitungen der Trojasage.
Marburg, 1886. do mundo, para encontrar a verdade divina. Essas inter-
E. Faral: Recherches sur les sources latines ães contes et ro- pretações não passaram de artifícios; não é possível ne-
mans courtois. Paris, 1913 . gar que o ciclo antigo e a maneira de tratá-lo represerJ-
A. Graf: Roma nella memória e nelle immaginasione dei médio
evo. 2.^ ed. Torino, 1923. taram uma irrupção de espírito leigo.
Q. Cary: The Medieval Alexander. Cambridge, 1956.
248 OTTO MARIA CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 219

Com exceção de algumas poucas grandes obras, as baladas primitivas é tão diferente que dêle nunca poderia
versões dos três ciclos são de um valor literário muito di- partir o espírito épico. As novas teorias foram confir-
minuto; o melhor lugar para estudá-los poderia encon- madas — sem que até hoje se tenha dado a isto muita im-
trar-se cutre os produtos romanescos da alta e baixa Idade portância — pelos estudos de folclore e da exegese bíblica.
Média. O interesse histórico, porém, é muito grande e As leis segundo as quais nasce a literatura oral são iguais
situa a questão das origens dos três ciclos entre os pro- no mundo inteiro C^); a origem dos seus produtos pode
blemas da origem da literatura profana medieval; as "ges- ser determinada pelo estilo, que varia conforme o "lugar
tes" estão nos começos das literaturas francesa e espanhola, na vida", conforme o fim prático que as obras da litera-
com irradiações importantes para a Alemanha, a Itália, a tura popular sempre têm, de modo que existem diferenças
Europa inteira, nítidas entre lenda, parábola, conto, etc. A aplicação des-
O problema assemelha-se à questão homérica, e nasceu, ses princípios à exegese crítica do Novo Testamento deu
realmente, com ela. O romantismo, grande amador da poe- os resultados importantes da "Formgeschichtliche Schule"
sia popular e admirador do gênio coletivo, acreditava que (K. L. Schmidt, R. Bultmann, M. Dibelius) (^^ ; o méto-
no começo da literatura havia pequenos poemas popu- do está, aliás, em relação com o da "Gestaltpsychologie".
lares, de autoria anônima, reunidos depois por "redatores" Chega-se a uma verdadeira "biologia da lenda". Como qua-
pessoalmente sem importância; esta solução satisfez tam- lidades essenciais da lenda primitiva notam-se a falta de
bém a admiração dos românticos ao gênio instintivo e o começo e fim do enredo e o gosto da repetição, que são
desprezo à epopéia intencionalmente feita do classicis- também qualidades típicas da epopéia primitiva, das "ges-
mo. Deste modo, Lachmann extraiu do Nibelungenlied 20 tes". As canções revelam-se produtos de decomposição, e
"canções originais", que teriam constituído a base da re- as grandes "epopéias populares" medievais, que têm co-
dação posterior, Fauriel íèz a mesma operação cirúrgica meço e fim, apresentam-se como obras de poetas indivi-
com a Chanson de Roland, e Durán com o Poema dei Cid. duais, se bem que anônimos.
Enfim, Gaston Paris organizou a teoria definitiva: no co- A primeira vítima das novas teorias é a classificação
meço havia canções curtas, "cantilènes" de origem po- tradicional das "gestes" em 3 ciclos. Quanto ao espírito
pular, que foram reunidas, depois, em epopéias coerentes, que preside ao tratamento dos assuntos, é perfeitamente o
as quais, afinal, se dissolveram em "romances", no sentido mesmo nas obras dos três ciclos, de modo que a classifi-
espanhol da palavra romance ('*'). cação conforme os assuntos não se justifica. Quanto aos
Após as primeiras dúvidas, expostas por Milá y Fon- próprios assuntos, o ciclo bretão relaciona-se pouco com
tanals, vieram os estudos de Rajna (•^"), Bartsch, Bédier e as lendas célticas que lhe servirarfi de base, e o ciclo antigo
Menéndez Pidal, que inverteram o estado das coisas. Admi- nada tem que ver com os modelos greco-romanos: as
tem eles que canções curtas comparáveis às do "Roman- "gestes" desses dois ciclos são criações tardias e artifi-
cero" espanhol constituem produtos de decomposição, mas
evidenciam o fato principal: o ponto de vista poético das
;Í:I) A. Olrik: "Die eplschen Gesetze der Volksdichtung". (In; Zeit-
schrift fuer deictsches Altertum, 1909, n.° 1.)
31) G. Paris: Histoire poétique de Charlemagne. 2.* ed. Paris, 1905, ;i4t Informação sumária em:
32i P, Rajna: Origine ãelV epopea francese. Firenze, 1884. J. Baruzi: Problémes ã'histoire des religions. Paris, 1935.
250 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA 0CIDENT4L 2.^>l

ciais. Resto a "geste de Charlemagne", que, no entanto, está perfeitamente caracterizado. Os costumes feudais e
não está isolada na Europa; o Poema dei Ciá e o Nibelun- as expressões religiosas não passam de um verniz. A Chan-
genhed estão ao lado da Chanson de Roland. São as três son de Roland representa a época em que os franceses es-
primeiras criações importantes das literaturas nacionais tavam mal cristianizados, e, por assim dizer, ainda não
da Europa, eram franceses. Eram francos. Assim como no Poema dei
Segundo a opinião de certos críticos estrangeiros, os Cid castelhano subsiste espírito visigótico, e assim como
franceses exageram o valor da Chanson de Roland Q^); no Nibelungenlied alemão subsiste espírito escandinavo,
a "geste" não poderia comparar-se às grandes epopéias po- assim também a Chanson de Roland pertence à época da
pulares das outras nações. Essa opinião não se justifica. transição entre a barbaria germânica e a civilização fran-
E' verdade que a Chanson de Roland carece de arte cons- cesa. A esta última deve simplesmente a existência. À
ciente, de "poesia feita"; mas as outras epopéias popula- primeira deve a grandeza sombria das cenas mais famo-
res estão no mesmo caso. O valor dessas produções reside sas, da despedida de Rolando, e da sua morte. A Chanson
na capacidade de representar uma nação, uma época. Com de Roland é, dentro da literatura francesa, como um mo-
a nação francesa dos tempos posteriores, nação de patrio- numento que está tão distante de nós que mal se lhe en-
tas-cristãos, a Chanson de Roland pouco tem que ver. Ro- xergam os contornos; a Idade Média considerava a epo-
lando e outros personagens revelam devoção cristã; porém péia como monumento do feudalismo valente, na luta con-
esta não é motivo da sua ação. E patriotismo, no sentido tra os infiéis, e o romantismo considerava-a como monu-
moderno, a Idade Média não o conheceu. A "dulce France", mento do patriotismo religioso. Na verdade, a Chanson
a palavra chave do poema, só revela que o último redator de Roland é um dos grandes e um dos mais fortes poemas
do texto atual conhecia Virgílio, mas o espírito da obra bárbaros da literatura universal. Em toda a literatura fran-
não é virgiliano. Os costumes que a epopéia apresenta são cesa posterior não existe, porém, tradição de barbaria, nem
um grande anacronismo; os guerreiros do século V I U apa- outra tradição épica nem, por isso, outra grande epopéia.
recem como cavaleiros feudais; está em contradição com Ruy Diaz de Vivar, herói de lutas dos espanhóis con-
isso o exagero, evidentemente primitivo, das forças físicas tra os árabes, e de outras lutas de senhor feudal contra
e das façanhas corporais. Sentimentos mais delicados não o seu rei, morreu em 1099; o Poema dei Cid ('"') foi redi-
existem — além do forte sentimento de honra — e não há
36) O texto atual do Poema dei Cid foi redigido por volta de 1140.
nenhum vestígio de psicologia. Mas, com isso, o poema O autor era provavelmente natural de Medinaceli. "Per Abbat"
é o copista do manuscrito de 1307.
Primeira edição por Tomás Antônio Sánchez, 1779.
35) O texto atual da Chanson ãe Roland foi redigido entre 1098 e Edição por R. Menéndez Fidal, 2."' ed. 3 vols, Madrid, 1944/1946.
1100, ou por volta de 1120, conforme outra tese. O "Turoldus" R. Mencndei; Pidal: Uépopée castillane à travers Ia littérature
que assina no fim do manuscrito da biblioteca de Oxíord, não espagnole. Paris, 1910.
é o autor, mas o copista. R. S. Rose e L. Bacon: The Lay of the Cid. Berkeley, 1919.
Primeira edição por Fr. Michel, 1837. R. Menéndez Pidal; La Espana dei Ciã. Madrid, 1929.
Edições por Cli. Samaran, Paris, 1934, e por R, Mortier, Paris, P. Salinas: "The Reproduction of Reality: The Põem of the
1948. Cid". (In: Reality and ihe Poei in Spanish Poetry. Baltimore,
J. Bédier; Commentaires sur Ia Chanson de Roland. Paris, 1927. 1940.)
E. Faral; La Chanson de Roland. Paris, 1934. Dám. Alonso:'"Estilo y creación en ei poema dei Cid". (In: Ensa-
E. Mireaux: La Chanson de Roland. Paris, 1943. yos sobre poesia espaAola. Buenos Aires, 1944.)
FÜtíütW OTTO M A R I A CABPEAUX ' HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

gido por volta de 1140, isto é, imediatamente após os nada da bravura romântica que a imaginação dos ^ o v o s do
acontecimentos. Esse fato explica a exatidão geográfico- Norte dos Pireneus acredita encontrar na Espanha. É um
histórica do poema. Ao passo que na Chanson de Rolanã os castelhano sóbrio, leal, mas com vontade indomável de
acontecimentos históricos se transformam em façanhas so- independência pessoal, com forte senso de justiça, cruel e
bre-humanas e a geografia é fabulosa, é possível acompa- violento às vezes, capaz de elevações sublimes, mas des-
nhar o Cid no mapa e nos anais. T u d o está certo, e Me- confiado e avarento como um camponês da sua terra. O
néndez Pidal pôde estabelecer a relação mais íntima entre poema está escrito como se o próprio Cid o tivesse feito:
a epopéia e, por outro lado, a história e a sociedade es- com realismo sóbrio, sem intervenção de forças sobrenatu-
panholas do século XI. Contudo, o Poema dei Cid não é rais, e principalmente sem retórica.
uma crônica ritmada. É — o que a Chanson de Roland não
é — uma obra de arte, intencionalmente feita, da qual Dá- "De Castiella Ia gentil exidos somos acá,
maso Alonso pôde analisar o estilo. Não se compõe de Si con moros non lidiáremos, no nos darán ei pan."
"cantilènes" anteriores, mas está dividido em três partes
Eis a chave do poema: o Cid luta contra os árabes para
bem distintas, em composição simétrica: o conflito do
ganhar o pão, a vida, porque está desterrado. Em primeiro
herói com o poder real, e o seu desterro; o casamento das
plano, é êle o revoltado feudal contra o rei, o primeiro
suas filhas com os infantes de Carrión; e a ação do Cid
revolucionário espanhol; por isso é intensamente popular,
contra os genros covardes e traidores. O que a imagina-
por isso têm êle e o seu poema todos os traços caracterís-
ção popular considera como assunto principal do poema ticos do homem castelhano e da sua natureza. Mas o am-
— a luta contra os árabes e a conquista de València — é biente em que o poema foi redigido era o da Chanson de
apenas a conseqüência do seu desterro, e fica reduzido, à Roland, do feudalismo de cruzados. Deste modo, o herói
luz da análise da composição, a valor episódico. Resta popular transformou-se em herói nacional e herói de cru-
explicar o forte acento patriótico-religioso da epopéia, no zada. Assim como na Chanson de Roland, influências "cle-
sentido do "patriotismo" medieval. Menéndez Pidal afir- ricais", quer dizer, dos clérigos, transfiguraram as virtudes
ma, com toda a razão, o fundo germânico, visigótico, da pouco cristãs do herói bárbaro. Rolando e o Cid represen-
inspiração do poema. Não é possível, porém, negar a in- tam fases da cristianizaçao pelas quais Egil Skallagrimsson
fluência francesa. A literatura francesa é a mais poderosa nunca passara. A memória popular, porém, acertou bem: o
entre as medievais, irradiando influências por toda a parte. Cid é a encarnação do caráter espanhol antigo, e o seu poe-
Assim como o exemplo da "geste de Charlemagne" inspi- ma é o monumento mais notável — porque o mais antigo —
rou Geoffrey de Monmouth na transformação de confu- da literatura espanhola.
sas lendas célticas em romances de cavalaria feudal, assim
Quanto ao Nibelungenlied C), Carlyle exprimiu a opi-
a Chanson de Roland inspirou a um anônimo de Medina-
nião seguinte: "The city of Worms, had we a right ima-
celi a idéia de cantar o Cid como herói da guerra nacional
contra os infiéis. Neste sentido, o Poema dei Cid é uma
37) O Nibelungenlied foi redigido entre 1190 e 1200, provavelmente
"geste"; mas é uma gesta espanhola, ou antes — mais exa- na Áustria. O texto existe em três redações diferentes: os manus-
tamente — uma gesta castelhana, "dura e sólida como critos A (Muenchen), B. (St. Gallen) e C, (Donaueschingen). —
Primeira edição completa por Ctir. H. Mueller, 1782.
os muros românticos d e Ávila". O Cid do poema não tem Edições críticas: Ms. B por K. Bartsch, 7.'' ed., Leipzig, 1821,
254 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 255

gination, ought to be as venerable to us moderns as any Worms. Lá se perpetrara o assassínio, e o começo da pri-
Thebes or Troy was to the ancients." Desde então, popu- meira parte passa-se até na Islândia, onde Sigefredo, por
larizaram-se muitas traduções — o alemão medieval é uma meio de ura truque, conquistou Brunilda, entregan-
língua diferente do alemão moderno e não imediatamente do-a ao rei Gudrun e iniciando, assim, a série de perfídias,
compreensível a leitores modernos; e o drama musical de crimes e mortes, que o poema celebra. A composição do
Wagner conquistou o mundo. Mas a exigência de Carlyle Nibelungenlied é assimétrica. O texto atual foi redigido
não encontrou eco. Em parte, porque não se trata de na Áustria, por volta de 1200, baseando-se, conforme Heus-
Worms ou só de Worms, que aparece apenas na primeira ler, numa lenda de Brunilda, de origem franco-renana,
parte do poema. A epopéia acaba com os versos: com vestígios da mitologia nórdica, e, por outro lado, em
uma lenda dos burgundos Hagen e Gudrun, de origem
" . . . . ritter unde vrouwen vireinen man dâ sach, austríaca e baseada em acontecimentos históricos; pode ser
dar tuo die edeln knehte, ir lieben friunde tôt, que essas duas lendas tenham existido antes, em forma de
hie hat daz maere ein ende: daz ist der Nibelungen nôt." canções épicas — não o sabemos. A redação final foi feita
por um poeta de gênio extraordinário, transformando os
— com o lamento geral de homens e mulheres "pela des-
acontecimentos confusos da saga em série lógica de crimes,
graça dos Nibelungen". "Nibelungen nôt", "Desgraça dos
vinganças e expiações, acabando por um coro de lamentos;
Nibelungen", seria o título adequado do poema, porque se
é a única obra "moderna" em que existe algo do espírito da
refere à parte mais importante: à segunda. A cena dessa
tragédia grega. O autor anônimo empregou os processos
segunda parte fica localizada na Áustria, às margens do
da epopéia medieval, das "gestes", transformando as per-
Danúbio, na corte do rei Etzel (Átila), que casou com Cre-
sonagens em cavaleiros feudais e damas de castelo. Mas
milda, a viúva de Sigefredo; ela o instigou a convidar
não conseguiu bem essa transformação, porque se esqueceu
os Nibelungen, Hagen e os outros assassinos de Sigefredo,
de um elemento importante: o cristianismo. Fala-se de
para mandar matá-los; e eles caem, apesar da culpa si-
igrejas, e aparece até um capelão. Mas os Nibelungen,
nistra, com heroísmo sombrio, grandioso até. Compreen-
assim como os seus inimigos, não sabem nada do Evange-
de-se, no fim, o lamento de um mundo em agonia, em
lho. São cavaleiros cristãos, mas agem segundo o código
"nôt". Mas isso não tem nada com a cidade renana de
dos heróis das sagas islandesas, e ninguém os repreende.
Sigefredo enganou Brunilda; mas continua como herói
Ms. C por W. Braune, Leipzlg, 1920. luminoso. Hagen assassinou, mas a sua morte em combate
T, AbEling: Das Nibelungenlieã unã seine Literatur. 2 vols. Leip- não é expiação, e sim resignação estóica em face do des-
Zig, 1907/1909.
J. Koerner: Das Nibelungenlieã unã ãie Klage. Leip?,ig, 1920. tino. Cremilda vinga uma perfídia monstruosa, repetin-
A. Heusler: Nibelungensage unã Nibelungenlieã. Die Stoffgeschi- do-a por sua vez, e no fim ela é, chorando e desesperando,
chte ães ãeutschen HelãenejMs. 2." ed. Dortmund, 1922. uma espécie de Grande Mãe das mitologias primitivas, la-
E. Tonnelat: La chanson des Nibelungen. Paris, 1926.
A. Jolivet; La chanson ães Nibelungen. Paris, 1942. mentando o fim da era dos deuses noturnos. O Nibelun-
Kurt Wais: Die fruehe Epik Westeuropas unã die Vorgeschichte genlied é o canto fúnebre do mundo germânico pagão. Re-
ães Nibelungenliedes. Tuebingen, 1953. vela que no século X I I I o cristianismo ainda não tinha pe-
Fr. Panzer: Das Nibelungenlied. Enistehung unã Gestalt. Stut-
tgart, 1955. netrado a fundo na alma alemã. Antes, os alemães preci-
íflí» O I T O MAIUA CARPEAUX

saram esquecer a sua epopéia nacional, que, apesar dos es-


forços dos f^ermanistas e poetas modernos, não ressuscitou
realineuie. Só na época da Reforma se completou a cristia-
nizín;5o dos alemães e começou a £ormar-se a nação alemã.
As "epopéias nacionais" pertencem, literàriamente, à
poesia dos clérigos e trovadores da alta Idade Média. Mas
quanto ao espírito que as enferma, pertencem a uma época CAI^ÍTULO II
anterior. Terminam a pré-história paga dos povos euro-
O UNIVERSALISMO CRISTÃO
peus e iniciam a formação das nações cristianizadas; ao
mesmo tempo, introduzem no universalismo medieval o
germe da dissolução lingüística. São as primeiras grandes 4 C O M P A R A Ç Ã O entre a arquitetura das catedrais
obras era "vulgar". Eis o papel das epopéias nacionais, na góticas e a arquitetura lógica dos sistemas escolás-
França, na Espanha e na Alemanha. Os ingleses não têm ticos é um lugar-comum dos estudos medievalistas; parece
epopéia nacional — o BeowuH não pode ser considerado só metáfora. Revelou-se, porém, que as plantas e a decora-
assim; a eles, a situação insular deu outros meios para de- ção escultórica das catedrais obedeceram realmente a um
finir sua nacionalidade. Tampouco têm epopéia nacional plano, fornecido pelos construtores da teologia e da metafí-
os italianos, porque os patrícios do Papa, vigário de Cristo sica; todos os pormenores correspondem ao plano com a
e chefe da Igreja universal, constituíram a "Nação inter- maior precisão (}). Os elementos básicos comuns, que con-
nacional". Eles, a nação da Igreja, seguiram o caminho da ferem ao pensamento medieval a estrutura arquitetônica, e
Igreja; na Itália construiu-se, sobre a base do sistema fi- à arquitetura medieval a significação teológico-filosófica,
losófico, a epopéia universal de Oante. são o modo de pensar hierárquico e a idéia da ordem uni-
versal, revelada naquelas correspondências. Um mundo go-
vernado espiritualmente pela hierarquia eclesiástica e ma-
terialmente pela hierarquia feudal não pode pensar de ma-
neira diferente. Tudo, no mundo visivel e no mundo in-
visível, tem o seu lugar definido na hierarquia das criatu-
ras, instituições e coisas, e as dúvidas eventuais se resol-
vem pela correspondência exata "visibilium omnium et in-
visibilium", Com efeito, a base desse pensamento encon-
tra-se no Credo: "et incarnatus. est de Spiritu Sancto".
Pela encarnação de Deus, o mundo material foi santifiçado;
tornou-se símbolo e reflexo do outro mundo. O mundo é
um símbolo — eis uma idéia bem medieval; em conseqüên-

1) T. Gurza: "La Catedral y Ia Summa". (In: Del cristianismo y Ia


edad media. México, 1943.)
E, Panofsky: .Gothic Architecture and Scholasticism. New York,
195T.
256 OTTO M A R I A GARPEAUX

saram esquecer a sua epopéia nacional, que, apesar dos es-


forços dos germanistas e poetas modernos, não ressuscitou
realmente. Só na época da Reforma se completou a cristia-
nização dos alemães e começou a formar-se a nação alemã.
A s "epopéias nacionais" pertencem, literàriamente, à
poesia dos clérigos e trovadores da alta Idade Média. Mas CAPÍTULO II
quanto ao espírito que as enforma, pertencem a uma época
O UNIVERSALISMO CRISTÃO
anterior. Terminam a pré-história paga dos povos euro-
peus e iniciam a formação das nações cristianizadas; ao
mesmo tempo, introduzem no universalismo medieval o \ C O M P A R A Ç Ã O entre a arquitetura das catedrais
germe da dissolução lingüística. São as primeiras grandes -^-^ góticas e a arquitetura lógica dos sistemas escolás-
obras em "vulgar". Eis o papel das epopéias nacionais, na ticos é um lugar-comum dos estudos medievalistas; parece
França, na Espanha e na Alemanha. Os ingleses não têm só metáfora. Revelou-se, porém, que as plantas e a decora-
epopéia nacional — o Beowulf não pode ser considerado ção escultórica das catedrais obedeceram realmente a um
assim; a eles, a situação insular deu outros meios para de- plano, fornecido pelos construtores da teologia e da metafí-
finir sua nacionalidade. Tampouco têm epopéia nacional sica; todos os pormenores correspondem ao plano com a
os italianos, porque os patrícios do Papa, vigário de Cristo maior precisão (^). Os elementos básicos comuns, que con-
e chefe da Igreja universal, constituíram a "Nação inter- ferem ao pensamento medieval a estrutura arquitetônica, e
nacional". Eles, a nação da Igreja, seguiram o caminho da à arquitetura medieval a significação teológico-filosófica,
Igreja; na Itália construiu-se, sobre a base do sistema fi- são o modo de pensar hierárquico e a idéia da ordem uni-
losófico, a epopéia universal de Dante. versal, revelada naquelas correspondências. Um mundo go-
vernado espiritualmente pela hierarquia eclesiástica e ma-
terialmente pela hierarquia feudal não pode pensar de ma-
neira diferente. Tudo, no mundo visivel e no mundo in-
visível, tem o seu lugar definido na hierarquia das criatu-
ras, instituições e coisas, e as dúvidas eventuais se resol-
vem pela correspondência exata "visibilium omnium et in-
visibilium". Com efeito, a base desse pensamento encon-
tra-se no Credo: "et incarnatus est de Spiritu Sancto".
Pela encarnação de Deus, o mundo material foi santifiçado;
tornou-se símbolo e reflexo do outro mundo. O mundo é
um símbolo — eis uma idéia bem medieval; em conseqüên-

1) T. Gurza; "La Catedral y Ia Summa" (In: Del cristianismo y Ia


eãaã media. México, 1943.)
E. Panofsky: Gothic Architecture and Scholasticism. New York,
1957.
258 OTTO M A R I A CARPEAUX HlSTÓBIA DA LlTEBATURA OciDENTAL 2r>o

cia, todos os seus pormenores têm qualquer significação ções no sentido de atribuir todo o movimento renascen-
além da significação material e literal, prestam-se à inter- tista europeu a fontes francesas C). Esse exagero pre-
pretação alegórica. A alegoria é o método de pensar me- judicaria a compreensão das renascenças italianas. Mas o
dieval ; tem a função que exerce o experimento no pen- fato geográfico está certo, e explica-se pela evolução es-
sar científico moderno. Com a alegoria, resolvem-se dú- pecial da Igreja francesa, por volta do ano 1100, que é uma
vidas e problemas. O resultado da alegorização do mundo das grandes datas críticas da história universal.
é o estabelecimento de uma ordem perfeita na hierarquia Naquele tempo, a Igreja, que se regia, até então, se-
do Universo; em tudo age o espírito de Deus. O mundo é gundo os princípios do feudalismo e levara uma vida prin-
o reino do Espírito Santo. Eis o ideal do imperador Oto cipalmente agrária, começou a urbanizar-se. Com a evo-
I I I , residindo em Roma, em comunhão fraternal com o lução da vida urbana, sobretudo na França e na Bélgica,
Papa Silvestre I I . Mas Lúcifer também aspira ao título de os centros eclesiásticos deslocaram-se dos campos para as
"príncipe deste mundo", e faz uma tentativa bem-sucedida cidades, dos conventos para os bispados. A conseqüência
para encarnar-se nos podêres temporais. No começo, a foi uma reforma do ensino C ) . As escolas conventuais
ciência angélica serviu, sem escrúpulos, ao poder tempo- perderam a sua importância; foi então que Sankt Gallen
ral; a chamada "Renascença otoniana", florescência dos entrou em decadência. Sucederam-lhes as escolas episco-
estudos clássicos nos conventos do século X, está intima- pais, nas cidades. Uma das primeiras e mais famosas entre
mente ligada à casa reinante; Gerberga, que ensinou a re- elas é a escola de Chartres, fundada em 990, pelo bispo
ligiosa Hrotswith de Gandersheim a escrever comédias cris- Fuíbert, e na qual ensinaram os escolásticos platonizantes
tãs no estilo e latim de Terêncio, é sobrinha do imperador Bernard de Chartres, Gilbert de Ia Porrée e Thierry de
Oto I. Dessa estirpe nascerão, porém, polemistas terrí- Chartres (^), espíritos de uma liberdade surpreendente, com
veis, aos quais responderão os polemistas não menos ter- veleidades de poesia e ciências naturais. Das escolas epis-
ríveis do Papado, todos em língua latina e com as armas copais nascem as primeiras universidades: Paris, Monlpel-
da ciência clerical. De ambos os lados da barricada lutam lier, Tolosa, Cambridge •— universidades eclesiásticas,
arcebispos, bispos, cônegos e doutores. O mundo literário- nas quais ensinam, como nas escolas episcopais, os ma-
científico dos séculos XI, X I I e X I I I , já muito antes da gistri. Estão ao lado das universidades municipais, do-
vitória definitiva do Papa sobre o imperador, era um mun- mínio dos scolares: Bolonha, Pádua, Siena (*').
do clerical. O reino literário do Espirito Santo. Os conhecimentos literários da gente universitária —
A ciência e a literatura dos clérigos estavam escritas mesmo fora das disciplinas profissionais: Teologia, Filoso-
na língua da liturgia. Para aprender a dominar essa lín-
gua, era preciso cultivar os clássicos. E n t r e 1070 e 1140
situa-se um grande movimento, de conseqüências incalculá- :Í) Ch. Nordstrocm: Moyen Age et Renaissance. Paris, 1933.
4) G. Pare, A. Brunet et P. Tremblay: La renaissance ãv, XIle siè-
veis, em favor dos estudos clássicos: a chamada "líenas-
cle. Les écoles et renseignement. Ottawa, 1934.
cença do século X I I " ou "Proto-Renascença" (-). Tem o
;>i A. Clerval: Les écoles de Chartres au Moyen Age ãu Ve au XVe
seu centro na França, fato que provocou certas reivindica- í:wcle. Paris, 1895.
<li H. Rashdall: The Universities of Europe in the Middle Ages. 3
2) Ch. H. Haskins: The Benaissance o/ the T-weljth Century. Cam- vnl.s. Oxíord, 1936.
bridge, 1927. N, Kchachner: The Medieval üniversities. London, 1938.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 261
260 OTTO M A R I A CARPEAUX

Brunetière abre o seu Manuel de rhistoire de Ia litté-


fia. Jurisprudência, Medicina — eram muito extensos, mais
ratare française com uma citação de Tocqueville: "J'ai eu
do que em geral se acredita, e, em parte, mais vastos do
Toccasion.... d'étudier les institutions politiques du Moyen
que em plena Renascença (^). Pode servir de exemplo a
Age en France, en Angleterre et en AUemagne; et, à me-
então famosa escola do gramático Eberard de Béthune (por
sure que j'avançais dans ce travail, j'étais rempli d'étonne-
volta de 1210): leram-se, aí, Virgílio, as sátiras de Horá-
ment en voyant Ia prodigieuse similitude qui se rencontre
cio, Ovídio (inclusive as poesias eróticas), Lucano, Está-
cio. Pérsio, Juvenal, Fedro, Claudiano e Boécio, além de en toutes ces lois". Isso se aplica também às instituições
numerosas obras latinas de autores medievais; não se men- universitárias e às atividades literárias. O "internacionalis-
ciona, porém, Terêncio (leitura preferida nos conventos), mo" da Idade Média é muito forte. Mas aquela citação
nem Plauto e Marcial, igualmente muito lidos em outras es- convém particularmente para abrir o estudo da literatura
colas. O agostinho inglês Alexander Neckham (1157-1217) francesa medieval; na Idade Média, a literatura francesa
escreveu para o ensino monástico o Mythographus, manual dominou a Europa inteira, fornecendo às outras literatu-
da mitologia paga. Um quadro quase completo de conheci- ras os assuntos, os gêneros, os metros, a mentalidade. O
mentos clássicos apresenta o famoso polígrafo Vincentius fenômeno não pode ser explicado sem consideração do fato
de Beauvais ( t c. 1264). No seu tratado didático De eiu- de que a França dos séculos X I I e X I I I também era o cen-
ditione fiiioTum nobilium, A. Steiner (**) contou a par de tro de uma outra literatura, em língua latina; a literatura
148 citações de Jerônimo e 75 de Agostinho, 60 citações francesa da época não passa, com poucas exceções indi-
de Ovídio, 57 de Sêneca e 39 de Cícero. Na sua enorme viduais, de um órgão intermediário, em língua "vulgar",
enciclopédia Speculum maius, que trata em 9865 capítulos entre a literatura latina e as novas literaturas nacionais.
de tudo o que existe e de muitas outras coisas, Vincentius A literatura latina medieval é a expressão do internacio-
utilizou Plauto, Terêncio, César, Cícero, Virgílio, Horá- nalismo medieval.
cio, Ovídio, Manílio, Vitrúvío, Fedro, Lucano, Pérsio, Sê- A literatura latina medieval (") é imensamente vasta;
neca, Plínio, Estácio, Juvenal, Quintiliano, Suetônio, Apu- mas está morta, isto é, não se continua, e a sua extensão
leio e Marcial, além de muitos autores gregos em tradução é um dos obstáculos a uma apreciação mais justa. Eis por-
latina; Vincentius desconhece, porém, Lucrécio, Catulo, que subsistem idéias errôneas com respeito ao caráter uni-
Lívio e Tácito. Esses extensos estudos latinos serviam, lateral, puramente eclesiástico, dessa literatura: parece
em primeiro plano, para fins gramaticais: tratava-se de composta de hinos litúrgicos e vidas de santos. Com efeito,
dominar a língua da liturgia, da teologia e filosofia, e da a hinografia constitui parte essencial da literatura latina
jurisprudência. A época dos clérigos não as concebia em média; mas no século X I I o hino, que é uma criação de
outra língua, e a conseqüência foi a uniformidade inter-
nacional das instituições medievais. iO A. Baumgartner: Die laceinische Literatur der christlichen Voel-
hcr. (Geschichte der Weltliteratur, vol. IV.) Freiburg, 1905.
M, Manitiusi Geschichte der lateinischen Literatur des Mittelal-
7) J. E. Sandys: History of Classical Scfwlarship from the Sixth Irr;;. 1 VOIÍ;. Muenchen, 1910/1931.
Century. B. C. to the End of the Miããle Ages. 3.^ ed. T. I, Cam- V. V. Winterfeld: Deutsche Dichter ães lateinischen Mittelalters.
bridge, 1930. •I.' Cd. Bertin. 1922.
8) A. Steiner: Vincent of Beauvais. De eruãíüone filiorum riobi- I''. ,T. K. Raby; A History of Christian-Laiin Poetry. Oxford, 1927.
lium. Cambridge, Mass., 1938. .1 Chiillinck: La littérature latine au Moyen Age. Paris, 1939.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDKNTAL 2<úi
262 OTTO M A R I A CARPBAUX
do outro mundo. A "visio" mais antiga parece ser a cha-
épocas anteriores, já estava em decadência, e o século X I I I , mada Visio Wettini, na qual o monge Walafrid Strabo
a idade áurea da literatura latina medieval, só viu o fim (c. 809-849) viu as almas nos três reinos sobrenaturais. O
da hinografia, com os ingleses John de Hoveden (f 1275) aue interessava sobremodo nessas visões, era o estado das
e John Peckham (f 1292), e o francês Philippe de Grevia almas no outro mundo, os seus sofrimentos, especialmente
(f 1237). Um fim, aliás, que pertence principalmente ao no Purgatório, Daí a grande popularidade do gênero, de-
movimento franciscano, cujos hinos diferem, na forma e pois da instituição da festa de Finados. Destacam-se, en-
na essência, do hino litúrgico anterior. E quanto à hagio- tão, o PurgatoTÍum S- Patricii, no qual já se encontra um
grafia, o seu monumento principal, a Legenda áurea, do sistema complicado de penas infligidas às almas, a Visio
dominicano Jacopus de Varagine (i"), fonte inesgotável da Tungdali (c.1150), e a visão do monge Alberico de Monte
iconografia medieval, é igualmente um fim; é o cume da Cassino. Esse gênero é precursor literário da Divina Co-
hagiografia, e só deixou lugar para os epígonos. Mas a li- média.
teratura latina medieval é muito mais vasta, tem muitos O purgatório imaginava-se no subsolo; o lugar das re-
outros aspectos. Só o desconhecimento dela é responsável compensas celestes, em uma ilha, perdida ao longe, no
pela pobreza dos "capítulos medievais" em muitas histó- Oceano ocidental. A imaginação céltíca colaborou nessa
rias das literaturas nacionais. Os franceses, ingleses, ita- idéia, e das lendas de marinheiros irlandeses nasceu a Na-
lianos, alemães, espanhóis dos séculos XI, X I I e X I I I ti- vigatio Sancti Brenãani, relato de uma viagem fantástica,
nham duas literaturas: uma em língua latina, outra em no Atlântico. A Idade Média gostava muito de relatos de
língua vulgar; e a latina era mais rica e enformou a outra, viagens, sobretudo a lugares santos. As romarias a Roma
fornecendo-lhe assuntos, temas, gêneros, metros, formas. criaram um gênero especial, os "Mirabilia", espécie de
A literatura latina medieval é a base da literatura medie- "Baedeker" ou "Guide Hachette" para informar sobre as
val inteira C"''^). E só aparentemente caiu, depois, em es- igrejas e relíquias de Roma; tais são os Mirabilia Urbis
quecimento completo. Pois inúmeros enredos, temas e for- Romae (c. 1150), do padre romano Benedictus; e cita-se
mas da literatura latina medieval sobreviveram, ainda que ainda a Narrado de mirabilibus urbis Romae, de Osbern de
apenas por via de alusão; e sobrevivem até hoje ("'"'3). Gloucester (século X I I ) . Depois de as Cruzadas terem
A literatura religiosa só raramente sai da igreja para aberto o caminho para a Palestina, o gênero se ampliou,
oferecer leitura aos leigos. Cria, porém, pelo menos, um como o revela a Descriptio terrae sanctae, de Johannes de
novo gênero: a "Visio" (^')i relato da visão de um místico Wuerzburg (c. 1170). O contato com o Oriente produziu
ou outro homem pio, em que se lhe revelavam os segredos outros relatos de viagens, inventadas, como as de Mande-
ville, ou reais, como as de Marco Polo. Mas isto já fora do
meio da língua litúrgica.
10) Jacobus a Varagine, 1230-1298.
Legenda Áurea, Ao lado da geografia está a história. Guibert de No-
Edição por E. Graesse, 3." ed., Breslau, 1890. f^ent ('-) descreveu a primeira cruzada e deu à obra o tí-
lOA) F. Brittaln: The Medieval Latin and Romance Lyric. Cam-
bridge, 1951. 12) Guibert de Nogent. 1053-1121.
lOB) E. R. Curtlus: Buropeische Literatur unã lateinisches Mittel- íícsia Dei per Francos.
lídição: Migne, Patrologia latina, vols. CLVI e CLXXXTV.
alter. Bem, 1948. 15. Monod: Le moine Guibert ãe Nogent et son temps. Paris,
11) Th. Wright: St. Patrick's Purgatory. London, 1844. U)05.
A. D'Ancona: / precursori ãi Dante. Flrenze, 1872.
264 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 26Í

tulo Gesta Dei per Francos, que impressionou o patriotis- pérfida, femina foetida"), contra o clero corruto, contra
mo religioso dos franceses até o século XX. Sem veleida- os prazeres do mundo. Numa hora de melancolia, Bernar-
des de panache, com o espírito prático de inglês e diplo- dus escreveu o poema que principia com o verso
mata eclesiástico, «m monge de St. Alban, Matthaeus Pa-
risiensis ('^), escreveu a poderosa Chronica Major, o maior "Est ubi gloria nunc Babylonia?"
monumento da Inglaterra católica. Na Itália, o franciscano
primeira versão do " í Q u é se hizo ei rey Don Juan?....", de
Fra Salimbene de Parma ( " ) encheu a sua Chronica de
Jorge Manrique, do "Dites moy ou, n'en quel pays.,,.",
anedotas, de baladas que se cantavam nas ruas, de toda a
de Villon, e do "Ubi sunt qui ante nos in mundo fuere ?....",
vida tumultuosa das pequenas cidades italianas. Guibert, o
canção dos estudantes alemães (^'•').
patriota, Matthaeus, o politico, e Salimbene, o homem do
Ao moralismo se alia a sátira, que é, na Idade Média,
povo e da vida pitoresca, representam três tipos da histo-
extremamente violenta. O clero não pode ser atacado com
riografia, que continuarão.
maior ímpeto do que nas sátiras pouco horacianas de Phi-
A Idade Média não sabe distinguir entre realidades lippus de Grevia ( t 1237), chanceler da catedral de Notre-
materiais e realidades imaginárias: história e lenda se con- Dame de Paris. As mais das vezes, porém, a sátira escon-
fundem, porque ambas têm a mesma significação alegórica. de-se atrás da alegoria. Colaboraram vários fatores para
Grande parte da literatura latina média serve para fins de popularizar a idéia de apresentar as personagens satiriza-
interpretação alegórica dos objetos e do mundo, o que dá das em disfarce de animais: reminiscências de fábulas do
oportunidade a que se introduzam clandestinamente mui- paganismo germânico, como na Ecbasis captivi, de um
tas coisas profanas. E n t r e inúmeras obras ineptas, cita-se monge alemão do século X ; a explicação alegórica das qua-
o Liber lapidum, do bispo Marbod de Rennes (f 1123), lidades dos animais, iniciada no Physiologus, da Antigüi-
explicação alegórica das qualidades das pedras preciosas; dade decadente, e muito imitada, como no Poema de nata-
o mesmo Marbod é urn moralista eloqüente no Liber ãecem TÍs animalium, do monge Theobaldus de Monte Cassino
capituloTum. O moralismo justifica t u d o : até os contos de (século X I ) ; enfim, a repercussão das fábulas de Fedro,
origem oriental, que o judeu espanhol Petrus Alphonsi como no Aesopus, de Gualterus Angliciis (século X I I ) . O
(convertido em 1106) inseriu na Disciplina clericalis. O resultado é o Ysengrimus (c. 1184), do magister Nivardus
maior moralista medieval é o cluniacense Bernardus de de Gent, origem do romance de Renart.
Morlas: o seu vasto poema De contemptu mundi ( c . l l 4 0 )
Um passo mais adiante, e a fábula irá transformar-se
está cheio de eloqüência terrível contra a mulher ("femina
em conto. A primeira tentativa é muito antiga: é o Ruo-
dlicb latino, que um monge alemão do convento de Te-
13) Matthaeus Parisiensis ou Matthaeus Paris, 11259. gernse escreveu por volta de 1050. Depois, chega a inva-
Chronica Maior. são de contos orientais, através de versões bizantinas. Tais
Edição por H. R. Laurd, 7 vols., London, 1872-18S3.
são os contos narrados pelos "sete sábios", no romance
14) Fra Salimbene da Padua, 1221-1290.
Chronica.
Edição por G. Bertani, Parma, 1857. 15) C. H. Bccker: "Ubi sunt qui ante nos...". (In; Aufsaetse, Eríist
E. Michael: Fra Salitnbene unã seine Chronik. Innsbruck, 1389. Kulin gewidmet. Berlin, 1916.)
G. Pochettino: L'opera e i tempi ãi Fra Saliníbene. Sancasciano, E. Gilson: "E)e Ia Bible à François Villon". (In: Lea iãêes et les
1926. letres. Paris 1932.)
H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 267
266 OTTO M A R I A CARPEAUX

Dolopathus (1184), do francês Johannes de Alta Silva, e, X I I , v e r s i f i c a ç ã o f a s t i d i o s a d a B í b l i a i n t e i r a , m a s q u e foi


nos séculos X I I I e XIV, a vasta coleção dos Gesta Roma- o livro didático mais divulgado da I d a d e Média, existindo
norum ( ' " ) , que reúne contos das origens mais variadas, da em numerosos manuscritos, embora nunca impresso. A
Antijíuidade clássica, até da índia, uniformizados pela men- Chanson de Roland forneceu a matéria da Historia Caroli
talidade medieval, da qual a obra é um espelho perfeito. Magni (C.116S), que se dá como obra do Arcebispo T u r p i n ;
Também aparece, pela primeira vez, em latim, o conto é um romance de valor diminuto, mas alcançou fama uni-
humorístico-satírico, o íabliau: o conto versificado Milon versal e contribuiu para a divulgação do assunto em toda
(c. 1160), de Matthaeus de Vendôme, é a primeira nar- a Europa. O Ciclo Bretão deriva mesmo de uma fonte la-
ração de um adultério escrita por um francês. O assunto tina: da Historia regam Britanniae, de Geoffrey of Mon-
está em relação com o fato literário que menos se es- mouth. E, finalmente, o Ciclo Antigo. Imitando o roman-
pera na Idade Média: a existência de peças dramáticas ce bizantino de Pseudo-Kalliathenes, o arcipreste Leo de
profanas (^'). Plauto e Terêncio impressionaram a imagi- Nápoles escreveu, por volta de 1000, uma fantástica Histo-
nação dos monges, inspirando-lhes cenas dialogadas, à ma- ria de proeliis, sobre a vida de Alexandre Magno. Depois,
neira dos "debates" — o "Debate entre corpo e alma" é Gualterius de Châtillon, bispo de Tournai ('"), do qual
assunto predileto da literatura medieval — "debates" na também existem Rhytmi rimados, compôs a Alexandreis (c.
língua clássica, e logo em espírito "pagão". No século X I I , 1175), que se recomendou às escolas pelo elemento alegó-
Vitalis de Blois decalcou as "comédias" Geta e Querulus rico; é um poema de valor de atmosfera virgiliana. Hugo
sobre AmphitTUo e Aulularia. São anônimas uma comédia de Orleães (f 1160) e Josephus de Exeter (f 1210) escre-
terenciana Pamphilus et Gliscerium, uma comédia de adul- veram poemas sobre a guerra troiana, segundo a versão de
tério, Comoedia Babionis, e o escandaloso Pamphilus de Dares; mas o grande êxito coube à Historia Destruxionis
amore, que o Arcipreste Ruiz de Hita utilizou. Com- Troiana, do italiano Guido delle Colonne (f 1287) ('"),
preende-se o anonimato, mas essas comédias dão testemu- mais divulgada que o modelo francês de Benoit de Saínt-
nho da força do espirito profano na literatura da língua More. Guido, que os contemporâneos compararam a Dan-
litúrgica. te e ainda os latinjstas do século X V I I exaltaram, é o mais
A literatura latina apoderou-se também da matéria morto entre os ilustres defuntos do cemitério da litera-
épica, enriquecendo-a e devolvendo-a às literaturas vulga- tura universal.
res. É exceção, antes rara, uma epopéia bíblica, como a As "gestes" latinas não se podiam impor sem assimi-
Aurora, de Petrus de Riga, cônego em Reims no século lar também a atmosfera erótica que envolvia as obras cor-
respondentes em língua vulgar. E os clérigos-poetas la-
tinos revelaram capacidade surpreendente para exprimir
16) Gesta Romanorum.
A primeira edição Impressa é de Utrecht, 1472; o primeiro ma-
nuscrito, de 1342, é de origem inglesa. Mas não é possível verifi-
car em que pais a coleção foi reunida. 181 E. Bellanger: De Gualthero ab Insulis ãicto de Casfeüione. An-
Edição por H. Oesterley, Berlin, 1872. gers, 1873.
J. T. Welter: UExemplum ãans Ia Uttérature religieuse et ãi- K. Strecker; Die •moralisch-satiríschen Geãichte Walthers von
ãactique de Moyen Age. Paris, 1927. Châtillon. Heidelberg, 1926.
17) W. Claetta: Tragoedie unã Komoeãie im Mitíelalter. Halle, 1890. 19) V. Di Giova'nnl: Guião delia Colonne, giudice di MessiTia. Ro-
Edição do Pamphilus por A. Baudouin, Paris, 1874. ma, 1894.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 2m
268 OTTO M A R I A CARPEAUX

O humanismo toma atitudes oposicionistas em Abe-


até o lado menos sublime do amor. Andreas Capellanus,
lardo (^^), cavaleiro perdido entre os clérigos, mas, em rea-
chamado assim porque era capelão do rei da França, es-
lidade, não perdido, porque de uma inteligência superior.
creveu um tratado De amore bem ovidiano, e Giraldus Cam-
"Docente livre" em Paris, fora da Universidade, bateu os
brensis, bispo de St. David no Pais de Gales, era um poeta
magistrí pelo talento brilhante de causeur, perturbou os
do amor sentimental, na Descriptio cuiusdam puellae e em
teólogos pelo dialético do Sic et Non, despertou as cons-
De súbito amore. Mas o ponto culminante é uma obra anô-
ciências pela ética quase autonomista do Nosce te ipsum,
nima do mesmo século X I I , o Concilium in monte Roma-
comoveu a todos pelos seus sermões, e sobretudo pelos seus
rici: reunião de religiosas, sob a presidência da abadêssa,
hinos, que já pertencem à liturgia, mas são obras de arte in-
discutindo se é preferível o amor de um clérigo ou de um
dependentes, como o "Advenit veritas, umbra praeteriit",
cavaleiro.
arte que podemos situar entre gongorismo e parnasia-
Outros havia, que preferiram, evidentemente, os acor-
nismo. Abelardo tinha muitos admiradores e ainda mais
des mais sérios da lira antiga. Alfano, arcebispo de Sa-
inimigos. Lutou, quanto pôde, contra os anátemas de S.
lerno por volta de 1080, celebrou em versos clássicos a ve-
Bernardo de Claraval, e não teria sucumbido, talvez, se
nerável abadia de Monte Cassino, que tinha, já então, mais
não o tivesse desgraçado o amor de Heloísa. A sua His-
de meio milênio de existência; e Matthaeus de Vendôme,
toria caiamitatam mearam é a autobiografia de um homem
ao qual já encontramos como fabulista licencioso, sabia
moderno; Gourmont chamou a Abelardo o primeiro racio-
fazer versos de feição virgiliana — seu poema Tobias foi,
nalista e artista tipicamente francês, ou antes parisiense.
no gênero, a obra mais famosa da Idade Média. Mas
"Racionalista" moderado, "classicista" conservador, ao
Matthaeus é só artista da forma; escreveu também uma
lado do "radical" Abelardo — assim aparece o eruditíssimo
ATS versiíicatoria. E entre os cultores do latim litúrgico
Alanus ab Insulis ("'-); nias no Anticlaudianus e Liber de
existem verdadeiros humanistas.
planctu naturae êle também se revela pouco conformista;
O primeiro e o mais digno entre eles é Hildeberto de
um entusiasta místico da Natureza, celebrando-a em versos
Lavardin, arcebispo de Tours (-"). Este sucessor do semi-
quase baudelairianos:
bárbaro Gregório de Tours não deixa de ser um bispo me-
dieval; só poetiza para dar lições morais e, por meio do
21) Pierre Abailard, 1079-1142.
verso, gravá-las melhor na memória. Mas quando, em 1085, Dlalectica; Introductio ad Tfieologiam; Sic et Non; Scito te
viu a Cidade Eterna devastada pelos normandos, a emo- ipsum; Historia calamitatmn mearum; HyTnnorum I. III.
Edições; Obras teológicas in: Migne, Patrologia latina, vol.
ção inspirou-lhe os versos clássicos
CLXXVIIl.
" . . . . Urbs cecidit, de qua si quicquam dicere dignus Ouvres, edit., por V. Coiisin, 7 vo>s., Paris, 1849/1859.
C, Ottaviano: Pietro Abelardo. La vita, le opere, il pensiero. Ro-
Moliar, hoc potero dicere: Roma fuit."
ma, 1931.
J. G. Sikes: Peter Abaelarã. Cambrldge, 1932.
20) Hildebertus de Lavardin, 1056-1133. E. Gilson: Héloise et Ahélarã. Paris, 1938.
Poema elegiacum. de virtutibus et vitüs; Mathematicus. 22) Alanus ab Insulis, c. 1128-1202.
Edição: Migne, Patrologla latina, vol. C I J X X I . Anticlaudianus; Liber ãe planctu naturae.
B. Hauréau: Les inélanges poétiques ã'Hilãébert de Lavardin. Edição: Migne, Patrologia latina, vo5. CCX.
Paris, 1882. J. Huizinga; Ueber ãie Verknuepfung des PoetiBchen mit ãetn
F. Barth: Hüdébert von Lavardin. Stuttgart. 1906.
Theologischen bei Alanus ãe Insulis. Amsterdam, 1933.
270 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 271

"Pax, amor, virtus, regimen, potestas, supremo do humanismo medieval. No fundo, é o mesmo
Ordo, lux, finis, via, dux, origo, processo pelo qual o público medieval se apoderou de Ho-
Vita, lux, splendor, species, figura. mero, Virgílio e Ovídio, transformando os personagens
Regula mundi." antigos em cavaleiros e damas feudais. É um anacronismo
enorme. O mesmo anacronismo age, aliás, na imaginação
Agora, já não parece estranha a figura extraordinária popular. Do mesmo modo por que Virgílio é aceito como
de Johannes de Salisbury (^*), bispo de Chartres, amigo feiticeiro e profeta pré-cristão (^*), povoam-se as ruínas ro-
do grande arcebispo Thomas de Canterbury, do qual escre- manas de fantasmas noturnos que não são outra coisa senão
veu a biografia. Homem de cultura francesa e serenidade disfarces supersticiosos dos deuses que tiveram antiga-
inglesa, Johannes é essencialmente "prelado romano", no mente o seu culto nos mesmos lugares. Até no Diaíogus
sentido em que os tempos modernos empregam a palavra: miraculorum (c. 1220), de Caesarius de Heisterbach ("°),
ortodoxo quanto aos dogmas essenciais e céptico quanto cheio de relatos fantásticos de almas que aparecem vindas
ao resto; identificando o amor de Deus com a filosofia, e do purgatório, pedindo ajuda, e de demônios que as fazem
a sabedoria com as letras clássicas; partidário de uma po- recuar para o lugar sinistro, até nessas histórias de um
lítica "clerical", contra o Estado dos leigos, para preser- monge angustiado os diabos levantam, às vezes, a máscara,
var a independência do poder espiritual e do Espírito. J o - e o rosto de Vênus ou Mercúrio se revela.
hannes de Salisbury parece, às vezes, um precursor lon- A Idade Média, assimilando a Antigüidade, parece in-
gínquo de Tomas Morus; outra vez, um cardeal da Re- capaz de compreendê-la. O grande obstáculo é o ascetismo.
nascença. Ao "homo cluniacensis" a liberdade grega do corpo e do
A presença — e glória — de uma figura assim, no espírito permanece incompreensível. Desde os estudos fa-
século XII, basta para destruir o conceito convencional da mosos, porém já antiquados de von Eicken, o ascetismo foi
"Idade Média"; a definição da época pelo binômio "Ca- sempre considerado como a tendência mais característica
tedral e 'Summa'" torna-se insuficiente. Na verdade, a da civilização medieval. Existe, no entanto, vasta litera-
"Summa" também representa o resultado de um movimento tura medieval antiascética.
"renascentista": a renascença de Aristóteles. A capacidade Uma das obras dessa literatura é até muito famosa, e
medieval de assimilar o pensamento e as formas da Anti- com toda a razão: é o conto anônimo A acassin et Nicolette
güidade era muito grande. Uma obra como o Speculum (^"). É uma chantefabJe; quer dizer, pequenas canções in-
Maius, de Vincentius de Beauvais, tão representativa da
época, está saturada de "humanismo"; incorpora ingenua-
mente a Antigüidade paga, justificando-a, quando preciso, 24) D, Comparetti: Virgílio nel Meãio Evo. 2.* ed. Firenze, 1896.
pela interpretação alegórica. A alegoria é o instrumento J. W. Spar^o: Virgil, the Necromancer. Cambridge, Mass., 1934.
25J P. V. Winteríeld: Caesarius von HeisterTjach. Muenchen, 1912.
26) Aucassin et Nicolette, escrito na segunda metade do século XII,
23) Johannes de Salisbury, c. 1120-1180. provavelmente no Halnaut.
Entheticus de ãogmate philosophorum; Historia pontificalis; Edições por H. Suchier, 9." ed., Lelpzig, 1909, e por M. Coulon,
Historia Thomae Cantuarensis; PoUcraticus sive de nugis curia- Nimes, 1933.
lium et vestigiis philosophorum.
Edição; Migne, Patrologia latina, vol. CXCIX. W. Pater: "Two Early French Stories". (In: Studies in the His-
C. C, J. Webb: John o/ Salisbury. London, 1932. tory of the Réltaissance, 1873; várias edições.)
A. Bruel: Romans français ãu moyen age. Paris, 1934.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 273
272 OTTO M A R I A CARPEAUX

terrompem a história de Aucassin, que se apaixonou pela E n t r e eles nasceu uma poesia antiascética, penãant es-
escrava sarracena Nicoiette e a conquistou e casou com ela, tranho na hinografia.
contra todos os obstáculos do mundo. Como tudo termina J á ao bispo Gualterius de ChâtiUon se atribuem poe-
bem, é um idílio, cheio de ternura, mas não de inocência. sias dessa espécie. Mas o primeiro goliardo autêntico é
As perfeitas maneiras cavaleirosas do estilo mal escondem magister Hugo de Orleães (c. 1093-1160), com as suas poe-
a sensualidade ardente; e quando ameaçam com o inferno sias de amor e vinho, maravilhosamente rimadas, com os
o enamorado da bela infiel, Aucassin responde: "Qu'ai-je lamentos típicos sobre a pobreza e, depois, sobre a velhice.
à faire du paradis, pourvu que j'aie Nicoiette, ma três Ao inglês Walther Map ou Mapes (c. 1140-1209), autor de
douce amie? Le paradis, c'est pour les vieux prêtres, pour poemas sobre Lancelot e o Graal, atribuem-se versos vio-
les estropiés, bancroches et manchots qui jour et nuit ram- lentos contra o celibato e a blasfêmia do "mihi est propo-
pent autour des autels, dans les cryptes moisies; c'est pour situm in taberna m o r i . . . " Na Chronica de Fra Salimbene
les vieilles capes râpées, les guenilles crasseuses, pour les acha-se inserta uma canção tabernária do goliardo Morando
va-nu-pieds, sans bas ni chausses, pour les meurt-de-faim da Padova. Enfim, o maior COT pus dessas poesias está
et les claque-dents! Viola ce qui va dans votre paradis: reunido no manuscrito dos "Carmina burana" (-*'), precio-
qu'ai-je à faire avec ces gueux? C e s t Tenfer qu'il me faut! sidade extraordinária da Biblioteca Nacional de Munique.
Là vont les clercs élégants, les beaux chevaliers morts dans O poeta de alguns manuscritos alemães chama-se "Ar-
les tournois et les grandes guerres magnifiques; et là bas chipoeta"; os ingleses preferem dizer "Golias"; certas alu-
vont les jolies filies, les belles dames fines qui ont deux sões a paisagens tipicamente italianas indicariam a nacio-
ou trois amants outre leurs maris." nalidade do autor, mas os goliardos todos, como "vagan-
Atribuiu-se essa atitude à influência oriental, impor- tes", conheciam bem a Itália. Na verdade, trata-se de uma
tada pelas cruzadas. Mas o "inferno" de Aucassin não é figura coletiva e internacional, como toda a literatura la-
maometano; e o caso não é isolado. Aí está a poesia tina da Idade Média. O "Archipoeta" está em casa em toda
dos goliardos e outros vagabundos latinos. a parte, ou antes, em nenhuma parte, e quando presta home-
Entre as universidades medievais existia o maior in- nagens ao imperador, não é por patriotismo alemão, e sim
tercâmbio possível de professores e estudantes. Os univer- por ódio contra os altos dignitários da Igreja; este "Ar-
sitários viviam em viagens continuas entre Bolonha, Paris, chipoeta", aliás, é do século X I I , ao passo que a maior
e Oxford; juntaram-se a eles outros clérigos, fugitivos da parte dos poemas se situa por volta de 1230. A "decadên-
disciplina rigorosa dos conventos; muitos se perderam na cia" goliárdica coincide com o apogeu da escolástica.
vida devassa e até criminosa das estradas reais, outros na
anarquia moral das grandes cidades como Paris. Havia 28) Os manuscritos mais importantes são: o dos Carmina burana,
n.° 4660 da Biblioteca Nacional de Munique; o manuscrito 978 da
mais clérigos do que prebendas, e constituiu-se afinal um
Biblioteca Harleiana em Oxíord; o Manuscrito Arundel do Bri-
"proletariado latino": os "clerici vagi" ou "goliardos" (-''). tish Museum,
Edições: J. A. Schmeller: Carmina hurana. 4.* ed. Breslau, 19M.
27) A. Straccoli: J. Goliarãi ovvero i clerici vagantes ãelle Univer- M. Manitius: Archipoeta. Muenchen, 1913.
sità medievali. Firenze, 1880. F. Luers: Carmina burana. Bonn, 1922.
H. Waddell: The Wanãering Scholars. 6* ed. London, 1932. S. Santangçlo: Stuãio sulla poesia goUarãica. Palermo, 1902.
M. Bechthum: Bevoeggruenã, und Beãeutung ães Vagantentvms O. Dobiache-Rojdesvensky: Les Poésies des Goliarãs. Paris,
in der lateinischen Kirche ães Mittelalters. Jena, 1941. 1Ü31.
HISTÓRIA DA LITEBATUBA OCIDENTAL 27 r
274 OTTO M A R I A CABPEAUX

o arrependimento é pouco sincero. Mais uns versos con-


O autor coletivo da poesia dos "clerici vagantes" é um
tra "rex hoc tempore summus", o dinheiro, e então o go-
grande poeta, talvez ura dos maiores da literatura univer-
liardo faz a sua confissão contrita, a "Confessio Goliae",
sal. E m primeira linha, é um humorista sutil, que sabe
inventar frases sempre novas e engenhosas para pedir di- na qual se encontra o verso blasfemo
nheiro aos ricos. O goliardo é pobre, é mendigo. Os estu- "Mihi est propositum in taberna mori".
dos já o aborrecem —
É a despedida do gênio, corrompido e perdido na taverna;
"Florebat oHm studiam,
depois, desaparece sem deixar vestígios, assim como desa-
Nunc vertitur in t a e d i u m . . . " —
parecerá sem vestígios o último goliardo, François Villon.
e o seu júbilo, viajando para a famosíssima Universidade A literatura antiascética é mais do que um sintoma de
de Paris — decadência moral. É preciso rever o conceito convencio-
nal "Idade Média". Com efeito, a expressão já serve ape-
"Vale, dulcis pátria! nas para fins de classificação simplista.
Suavis Suevorum Suevia!
Um dos criadores do conceito "Idade Média" é o pró-
Salve, dilecta Francia,
prio goliardo. Foram as sátiras e queixas incessantes con-
Philosophorum cúria!" —
tra o clero corrompido que contribuíram para abolir o es-
parece ter menos em mente os filósofos do que as moças quema historiográfico dos Padres da I g r e j a : o binômio
( " . , . . iam virgo maturuit, — iam tumescunt ubera"); e Paganismo — Cristianismo. Desde os cluniacenses e cis-
no amor o goliardo é insaciável: tercienses fala-se em "renovatio" da Igreja, e em volta à
pureza da Igreja primitiva. "Renovatio" é também o lema
"Si tenerem, quam cupio, das diversas "renascenças", quer dizer, "renovatio" dos es-
In nemore sub folio, tudos clássicos. E quando, no século XVI, as duas "reno-
Oscularer com gáudio." vationes" se encontraram, o Humanismo e a Reforma, en-
tão toda a era entre o fim do paganismo e da Igreja pri-
As mulheres e o vinho, Com gravidade solene, fala do mitiva e, por outro lado, a renovação da Igreja e das es-
"Istum vinum, bonum vinum, vinum generosum", e chega a colas, pareceu época intermediária, eclipse temporário do
parodiar o hino "Verbum bonum et suave", no verso Espírito Santo e do espírito humano. Esse conceito tor-
nou-se até dogma: para os protestantes, é o dogma do
"Vinum bonum et suave". "Anticristo em Roma"; para os humanistas e os seus suces-
sores, os livres-pensadores, é o dogma do Progresso. A
Eis, porém, que chega a velhice. O goliardo sente remor- história apresenta-se como esquema tripartido: entre o
sos religiosos: brilho da Antigüidade e da Igreja primitiva e o novo bri-
lho do Humanismo e da Igreja reformada, hâ a "Idade Mé-
"Omnes quidem suraus rei, dia" escura. Um historiador de terceira ordem, do século
Nullus imitator Dei, X V I I , Cellarius, introduziu a expressão nos manuais. Ou-
Nulius vult portare crucem".
276 On») MAUIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 277
tro, HohrrtNon, inventou a expressão "Dark Ages". Afinal,
Lullus (^°) é fenômeno raro: um gênio confuso. O ca-
ON pr('jpti(is "niodievalistas" conformaram-se com o termo.
minho da sua vida é retilineo: vida mundana, desengano,
O roniíinlismo, tão apaixonado pela "Idade Média",
conversão, ascese, projetos de converter sarracenos e ju-
niio <(insi')',ijiu abolir o erro, porque esse mesmo erro es-
deus, obstáculos eclesiásticos, viagens de missão, martírio.
tnvíi no conceito dos próprios românticos. Tàcitaraente,
Os altos dignitários da Igreja chamaram-lhe "doctor phan-
ni<it,nam o esquema tripartido, apenas invertendo os va-
tasticus", apelido que não convém às suas obras científicas,
lores; a época moderna apareceu-lhes como fase de corru-
nem às literárias, mas sim ao conjunto destas e daquelas.
<;.-iu política e religiosa, e a "Idade Média" como idade
Como poeta, Lullus é um "joglar de Déu"; queimou as
áurea da monarquia feudal e da Igreja ortodoxa. O "me-
poesias eróticas da sua mocidade, substituindo-as pela poe-
dievalismo" é progressismo às avessas.
sia religiosa, a mais pesosal que se escreveu na Idade Mé-
O estudo das "renascenças medievais" abriu as primei- dia. Lo cant de Ramón, confissão poética, seria o pen-
ras brechas. Troeltsch chamou a atenção para a relativi- dant sério da poesia goliarda. As tentativas filosóficas
dade do ideal ascético e para as concessões da Igreja ao de criar uma "ciência geral", que suscitaram a admiração
espírito profano. Erinckmann já distinguiu dois tipos do de Leibniz e antecipam algo da logística moderna, perten-
homem medieval: o idealista ascético e o leigo realista.
cem, em certo sentido, ao gênio poético de L u l l u s : pre-
Afinal, a civilização medieval é um fenômeno muito com-
tendem transformar o mundo em catedral de símbolos cien-
plexo; não é possível defini-la numa frase só. Ao lado da
tíficos. Mas o conflito entre entusiasmo místico e razão
mentalidade eclesiástica, há a mentalidade leiga dos cava-
construtiva subsiste. No estranho romance filosófico Lli-
leiros; ao lado da civilização feudal, há a civilização bur-
bre de meraveles decompÕe-se o mundo em alegorias, e o
guesa. E tudo isto não se encontra em equilíbrio estático,
mais estranho romance Blanqueina exalta a dissolução do
como a equação "Catedral — ' S u m m a ' " afirmou, mas em
evolução viva e multiforme (^^). mundo real pela mística. Lullus pretendeu reduzir a fór-
mulas alegóricas o inefável, que se tinha revelado ao mís-
A solução teórica do problema talvez esteja na dis- tico em símbolos; era um grande poeta pela ambigüidade
tinção mais exata dos termos símbolo e alegoria, que se intima da sua alma. O resultado de sua vida encontra-se era
empregam, indistintamente, na equação "Catedral — 'Sum-
ma' ". O símbolo é expressão artística do que é inefá-
vel; a alegoria é representação intelectual do que é com-
30) Raimundus Lullus, 1235-1315.
preensível. A Catedral é um símbolo. A Summa é um con- Poesia: Plant de Nostra Dona;. Los cent noms de Déu; Medici-
junto de alegorias. A "Idade Média" está entre esses dois na de Pecat; Lo desconhort; Lo cant de Ramón; Mil provérbios.
pólos, oscilando, evolvendo, e enfim dissolvendo-se. Exis- Romances filosóficos: Llíbre dei gentil y de tos três sabias; Blan~
quema; Llibre ãe meravelles.
te até uma grande figura na qual os dois termos se en- Filosofia e mística: Llibre de contemplado; Art general; Ordre
contram: Raimundus Lullus, o santo da Catalunha. de Ia Cavalleria; Arbre ãe Sciencia; Arbre ãe Filosofia d'amor.
Edição por I. Eosselo e M. Obrador y Benassar, 14 vols.. Palma,
1906/1935.
A. Peers: Ramon LuU. London, 1929.
29) H. O. Taylor: The Medieval Mina. A History o] the Develop- F. Sureda Blanes; El beato Ramon Lull. Su época. Sus obras.
mrnt of Thought and Emotion ín the Midãle Ages. 4." ed. 2 vols. Sus Empresos. Madrid, 1934.
Lüudon, 1925.
J. Xírau: Vida y obra ãe Ram,ón Lull. México, 1946.
278 ÜTTo MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDKNTAL 27*>

um dos seuH Mil Provérbios: "Quem disputa com Deus, será gira seu apogeu na época do nominalismo herético ou semi-
vencido"; mas o místico pretende ser vencido por Deus. herético.
Neste sentido compreende-se a ação do místico Ber-
O caminho da separação progressiva entre símbolo e
nardo de Claraval contra Abelardo. A Bernardo seguem-
alegoria é o caminho de evolução do pensamento medieval.
se os monges de St. Victor, sistematizadores dos símbolos
Mas as últimas fases do pensamento alegórico, se bem que
místicos. Com Bonaventura e os franciscanos, acentuar-
tipicamente "medievais", não pertencem ao conceito con-
se-á o sentido psicológico da mística: o caminho interior
vencional do que é "Idade Média"; pertencem ao pensa-
para a união com Deus. É este o caminho que levará à
mento profano, continuam o processo de secularização que
religiosidade individual (•'"^).
os "clerici vagantes" tinham iniciado, e dirigem a arma
A mística está acompanhada de efusões poéticas. Con-
da alegoria contra os seus criadores. A alegoria fora a
temporânea dos victorinos é Hildegarda de Bingen (1098-
arma intelectual para santificar o mundo profano, incor-
1179), a visionária. Contemporâneas da reforma francis-
porá-lo na hierarquia celeste das coisas; no fim, a alego-
cana, embora em ambiente diferente, são as místicas be-
ria é arma intelectual para decompor a hierarquia estabe-
neditinas Mechthild de Magdeburg (1212-1285), Mechthild
lecida, para demonstrar a sua identidade com a ordem pro-
de Hackeborn (1242-1299), S. Gertrudis (1256-1302). É al-
fana do mundo. A alegoria, isolada do símbolo, tornar-se-á
tamente significativo o emprego da língua vulgar nas suas
meio de expressão da sátira burguesa.
visões poéticas, e é também notável o grande número de
O mundo simbólico, separado da alegoria, perde o con- poetisas. Essa literatura emotiva é tipicamente feminina.
tato com a realidade profana. Torna-se meio de expressão Na descrição dos êxtases introduz-se um vocabulário eró-
da mística. Nesta afirmação reside, porém, a possibilidade tico. O símbolo vai conquistando regiões inexploradas da
de um erro, que é preciso eliminar imediatamente: seria a alma; dá sentido superior à poesia lírica dessa época ver-
tentativa de opor a mística à escolástica intelectualista. dadeiramente universal a que chamaram "Idade Média".
Com efeito, os historiadores da filosofia medieval sucum-
biram não raramente à tentação de ver em Bonaventura e
Eckhart os antípodas de Alberto Magno e Tomás de Aqui-
no. O estudo das origens já basta para refutar essa tese.
O pensamento platônico, neoplatônico e augustiniano dos
místicos medievais deixou, também, os seus vestígios, na
síntese tomista. Não há escolástica sem mística. Por outro
lado, os místicos medievais não constituem uma oposição
sistemática; não são, de modo algum, precursores dos "mo-
i
dernos". Servem-se do aparelho lógico da escolástica para
exprimirem em fórmulas filosóficas os seus símbolos. A
mística, quando sistemática, seria antes uma tentativa de
salvar o conteúdo simbólico da escolástica, ameaçado pelo 31) M. Preger: Geschichte der deutschen Mystik ivi Mittelalter.
3 vols. Leipzig, 1874/1893.
intelectualisrao alegórico; por isso, a mística medieval atin- Fr. Heer: Europaeische Geistesgeschichte. Stuttgar^ 1953.
CAPÍTULO III

A LITERATURA DOS CASTELOS E DAS ALDEIAS

A O R I G E M do lirismo medieval é um dos grandes pro-


blemas da historiografia literária. Apontam-se in-
fluências ovidianas, vindas da poesia latina medieval, e in-
fluências da mariologia que se teria secularizado, transfor-
mada em culto da dama; discutem-se as influências árabes
no lirismo provençal e ibérico. Admite-se, enfim, como fon-
te do lirismo medieval, a canção popular dos próprios povos
europeus. Esta última hipótese encontra apoio no estudo
dos antigos cancioneiros portugueses, onde é possível dis-
tinguir uma camada anterior à imitação do lirismo proven-
çal. São os cossantes e canções encadeadas, em língua ga-
lega, canções de amor, baladas, serranilhas, cantigas de
romaria, composições de sabor popular, pois, embora sejam
obras de poetas aristocráticos, não se dedignaram estes de
imitar com muita elegância a poesia do povo; a este fato
devemos a conservação daquele lirismo primitivo no meio
trovadoresco dos cancioneiros, Existem poesias desta espé-
I cie, simples e delicadas, de Nuno Fernandes Torneol, João
\ Zorro, Pero Meogo, Martim Codgx, Airas Nunes e outros.
A poesia dos trovadores galego-portuguêses deve a sua
feição especial a essa influência popular ( ' ) .
Na poesia aristocrática das outras nações medievais
t
não é possível demonstrar a influência popular com a mes-
1 ma segurança com que podemos demonstrá-la na poesia da
democrática península Ibérica, Mas a presença do lirismo

1> Cf. nota 25.


IK Oriii MAUIA CARPEAUX HisTÓBiA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 233

p o p i i l u t , cHpci uilmriUc e n t r e os p o v o s d e o r i g e m g e r m â - G r i e g r e v e l a m o r e f l e x o . E n f i m , os " F o l k v i s o r " s u e c o s (*)


iiiiii f i«-liii;i. i c p r e s e n t a s e m p r e u m a p o s s í v e l f o n t e d e não apresentam, depois dos noruegueses e dinamarqueses,
inHpiiíi<,j((). o .intecede, n e s t e s e n t i d o , a s f o r m a s c o n v e n c i o - muita originalidade.
tiaÍN ii;i p(jLsia p r o v e n ç a l , s e b e m q u e a s p o e s i a s p o p u l a - A poesia popular européia — excetuando-se p o r en-
res i i u i a d a s e c o n s e r v a d a s sejam, e m g r a n d e p a r t e , p o s - q u a n t o a d o s p o v o s eslavos — a t i n g i u a m a i o r i m p o r t â n -
ti-iiorcs. cia n a s i l h a s b r i t â n i c a s ; i n f l u ê n c i a s c é l t i c a s t o n i f i c a r a m ,
A poesia popular conserva a maior independência nos decerto, o lirismo anglo-saxão. U m a canção popular, o
países e s c a n d i n a v o s , a o n d e o p r o v e n ç a l i s m o m a l c h e g o u . Eamoso
N a D i n a m a r c a (^) d i s t i n g u e m - s e , s e g u n d o os a s s u n t o s , o s
" S u m m e r is y - c o m e n i n !
" K a e m p e v i s e r " , ou c a n ç õ e s h e r ó i c a s , à s v e z e s r e m i n i s c ê n -
Loud sing c u c k o o ! . . . " ,
cias m i t o l ó g i c a s ; o s " R i d d e r v i s e r " o u c a n ç õ e s b é l i c a s , d e
fundo histórico, da época heróica da Dinamarca medieval, é q u a s e o m o n u m e n t o m a i s a n t i g o d a l i t e r a t u r a em l í n g u a
sob os r e i s d e n o m e V a l d e m a r , n o s é c u l o X I I I ; os " T r y l l e - inglesa. A s poesias mais belas são as religiosas; é mais
v i s e r " , ou c a n ç õ e s d e d e m ô n i o s , n a s q u a i s a p a r e c e t o d a a difícil apreciar as poesias eróticas, q u e foram retocadas e
m i t o l o g i a n ó r d i c a , t r a n s f o r m a d a e m c o n t o d e fadas e l i g e i - a r t i f i c i a l i z a d a s n a época d a R e n a s c e n ç a . E m c o m p e n s a ç ã o ,
ramente cristianizada. Essas canções dinamarquesas t ê m s u b s i s t e m a l g u m a s e s p e c i a l i d a d e s b e m i n g l e s a s , q u e n ã o se
um e n c a n t o m u i t o p o é t i c o ; e s t ã o p r ó x i m a s d o " M a e r c h e n " e n c o n t r a m e m o u t r a p a r t e , como o f a n t á s t i c o mad song
a l e m ã o , e a l g u n s d o s a s s u n t o s , c o m o A g n e t e , q u e foi r o u - ( " F r o m t h e h a g a n d h u n g r y g o b l i n . . . " ) . q u e o povo a t r i -
b a d a p e l o d e m ô n i o d o m a r , a p a r e c e m n a coleção d o s i r m ã o s bui a u m mendigo louco, T o m o'Bedlam, e q u e , na m ú -
G r i m m . A s c a n ç õ e s n o r u e g u e s a s (^) t ê m a s p e c t o m a i s b á r - sica d a s s u a s frases i l ó g i c a s , l e m b r a os p o e m a s d e R i m -
b a r o , estão m a i s p e r t o d o p a g a n i s m o . M a s isso a p e n a s b a u d . M a s o v e r d a d e i r o g ê n i o d a p o e s i a popiilar i n g l e s a
q u a n t o ao estilo. C a n ç õ e s p r o p r i a m e n t e m i t o l ó g i c a s n ã o está na balada. Seria preferível, e m vez de "inglesa", di-
e x i s t e m , e os " K j e m p e v i s o r " d e r i v a m d a s a g a i s l a n d e s a . O s zer a n t e s " c é l t i c a " , p o r q u e a s b a l a d a s m a i s i m p o r t a n t e s s ã o
" T r o l l e v i s o r " j á s e a s s e m e l h a m t a m b é m a o s c o n t o s d e fa- da E s c ó c i a , s e n ã o h o u v e s s e o u t r a s , i g u a l m e n t e belas, d o
d a s ; estão a c o m p a n h a d o s d e " H e i l a g v i s o r " , s o b r e s a n t o s l a d o i n g l ê s d a f r o n t e i r a , e se n ã o fosse o c o n h e c i d o g ê n i o
cristãos. Enfim, os " R i d d a r v i s o r " utilizam-se até de assun- dos a n g l o - s a x õ e s n o q u e d i z r e s p e i t o à p o e s i a n a r r a t i v a .
tos importados, de R o l a n d o e Carlos Magno. A maior ori- A s b a l a d a s i n g l e s a s e escocesas (") t r a t a m , e m p a r t e , d e
g i n a l i d a d e d a c a n ç ã o p o p u l a r n o r u e g u e s a está n o s " G a m -
melstev", canções de dança, d a s quais certas melodias de
4) S. Ek: Den svenska folkvisan. -Stockholm, 1924.
5) Edição: F. J. Child: The English and Scottish Popular Ballaãs.
2) Edição: Danmarks gamle Folkeviser, ed. por N. F. S. Grundtvig, 10 vols. Boston. 1882/1898. (Edição abreviada em 1 vol. por G. L.
5 vols., Kjoebenhavn, le'J5/18flO; continuada como: Danske Riã- Kittredge, Boston, 1904.)
dervher, ed. por A. Olrik, 2 vols., Kjoebenhavn, 1898/1919; volu- F. E. Bryant; A History af English Ballaãry. Boston, 1913.
me suplementar por H. Gruener Nielsen, Kjoebenhavn, 1920. J. C. H. R. Steenstmp: The Medieval Popular Ballad. (Tradu-
J. Paludan: Danmarks Lüeratur i Midãelalãeren. Kjoebenhavn,
ção por E. G. Cox.) Boston, 1914.
1896.
G. H. Gerould: The Ballad of Traãition. London, 1932.
:ÍI Edição: Gamle norske Folkeviser, ed. por S. Bugge, Kjoebe- E. K, Chambers: English Literature at the Close of the Miãdle
nhavn, 1858.
Ages. Oxford, 1945.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 285
28^ OTTO MAniA CAHPEATJX

E n t r e as descobertas do romantismo está também a


personagens históricas; em parte, constituem verdadeiras
poesia popular alemã {^). A poesia popular alemã é de
"geates" cm torno de figuras populares como o herói de
maior emoção lírica do que as outras, e exerceu sempre
fronteira Kobin Hood (Robyn Hode). Logo, as baladas
influência irresistível sobre o espírito da nação: a poesia
apresentam os mesmos problemas que as epopéias nacio- lírica alemã — a literária, de Goethe a Liliencron — obe-
nais. Courthope e Raleigh sustentam a "literary theory", dece, até hoje, às leis estilísticas e métricas da canção po-
segundo a qual as baladas seriam versões literárias de "gas- pular, do Ueã. As baladas históricas são muito inferio-
tes" medievais; a origem tardia de muitas baladas, no sé- res às inglesas, mas constituem documentação preciosa da
culo XVI e até no X V I I , é forte argumento a favor dessa história alemã, da Idade Média, das tempestades da Re-
teoria, A. Lang, Kittredge e outros sustentam a "commu- forma, e até do século X V I I I .
nal theory", conforme a qual as baladas seriam obra do As canções populares foram cantadas nas aldeias e nas
gênio coletivo do povo. Com efeito, o fundo das baladas ruas das cidades, nas estradas reais e junto aos castelos.
é dos séculos XIII e XIV, e as versões posteriores não con- Não podiam deixar de exercer certa influência na poesia
seguiram eliminar os traços característicos da poesia pri- culta. Mas essa poesia aristocrática tem outras origens, e
mitiva: a objetividade impassível que só permite entrever a verificação das origens constitui ura grande problema (").
a emoção (ou que a deixa explodir de repente), as repe- Já não é possível considerar os provençais como cria-
tições de frases estereotipadas, a narração abrupta e às ve- dores ex nihilo do lirismo moderno. Mas de todas as
teorias, a menos convincente é a da origem arábigo-espa-
zes incompleta, fazendo com que a balada deixe adivinhar
nhola C ) . Conforme Julián Ribera y Tarragó, existem
mais do que exprime. Numerosas baladas constituem "ges-
grandes semelhanças entre a poesia dos trovadores e a do
tes" em torno de Robyn Hode e outros outlaws da fron-
árabe espanhol Mohammed Ibn Guzmán (f 1160), do
teira. Outras tratam de acontecimentos da história anglo- qual possuímos um cancioneiro. Na verdade, as semelhanças
escocesa que impressionaram a imaginação popular, como são superficiais, e a teoria é incapaz de explicar porque
"Chevy Chase", "Sir Patrick Spens", "Hunting of the Che- a poesia lírica nasceu na Provença e não na própria Espa-
viot". Algumas baladas, como Edward e Douglas, chegam nha. As analogias entre a expressão erótica dos trovado-
a igualar a grandeza sombria da saga nórdica, e brumas res e a expressão mística dos autores de hinos mariológi-
nórdicas também envolvem as baladas de espectros e fan-
tasmas — "Thomas Rymer", "Tam Lin", "Sweet William's 6) A primeira coleção ó a íamosa Des Knaben Wunãerhorn, edita-
Ghost". As baladas amorosas, do tipo da "Nut-Browne da por Cl. Brcntano e A. von Arnim, 1805/1808; os dois grandes
poetas retocaram bastante as canções. (Nova edição por F. Ban-
Maid", revelam um espírito diferente, terno e um pouco ke, Leipzig, 1908.)
artificial; nestas a influência literária é mais forte. Em I. Moier: "Das Volkslied". (In: H. Paul edit.: Grundriss der ger-
manUichen Phüologie. 2."' ed. P. II. Vol. I. Strasbourg, 1909.)
geral, o coipus inteiro das baladas anglo-escocesas sofreu H. Meorsmann: Das ãeutsche Volkslied. Berlin, 1922.
alterações segundo o gosto dos séculos posteriores, o que 7) K. Burdach: "U(;ber tíen Ursprung des mittelalterlichen Mlnne-
facilitou o êxito enorme que obtiveram quando o bispo Eang;c.5". (In: VorspieZ. Vol. I. Halle, 1!)2G.)
A. Rodrigues Lapa: Das Origens da Poesia Lírica em Portugal na
Percy, em 1765, as redescobriu. A balada britânica foi uma Idade Média. 'Lisboa, 1D29,
das grandes influências do pré-romantismo. 8) A. R. Nykl: El Cancionero ãe Aben Gvzmán. Madrid, 1933.
286 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATUBA OCIDENTAL 287

COS foram sempre observadas; Wechssler (*), retomando a A literatura provençal (^^) é um fenômeno estupenda:
idéia, chamou a atenção para as freqüentes trocas de cartas durante poucos decênios, uma série de poetas — alguns
entre padres e religiosas e damas, às quais os confessores deles muito grandes poetas — cria uma poesia lírica,
tinham de dar conselhos de consciência, também em ca- que dominará a Europa inteira durante séculos; e depois
sos de conflitos eróticos. Mas isto significa exagerar a daqueles poucos decênios desaparece completamente e
influência do padre no meio dos provençais, que eram he- para sempre. As circunstâncias exteriores, sempre alega-
réticos e anticlericais. Brinkmann ('"), enfim, lembra a das — a riqueza do país, a alta cultura dos senhores feu'
poesia erótica ovidiana, em língua latina; a alba ou au- dais, os contatos com o Oriente, a liberdade do pensamento
bade já se encontra em Ovídio, e a maneira ovidiana de
no país dos albigenses heréticos, e enfim o desaparecimento
tratar o amor como disciplina escolar agradou aos cléri-
repentino dessa civilização pelas devastações cruéis da
gos e contribuiu também para criar o formalismo erótico
cruzada contra os albigenses — não parecem explicação
dos trovadores. Em Angers e na biblioteca do convento St.
suficiente. Na verdade, a literatura provençal constitui-se
Martial, em Limoges, Brinkmann encontrou documentos
principalmente de poesia lírica. O que temos mais, é só:
que permitem afirmar a existência de uma poesia de tro-
uma gesta, Girart de Roussillon; um romance arturiano,
vadores latinos no fim do século X I I . Spanke (^^) explo-
Jauíré; um interessantíssimo romance realístíco-erótico era
rou o "Repertoire de Notre-Dame de Paris", de 1150 a
1230, descobrindo os modelos latinos da estrofe provençal versos, a Flamenca {^^'^^; e alguns livros didáticos. O
e do Tonãeau. Isso parece decisivo. O que os proven- resto — pois deve ter havido muito mais — foi destruído.
çais acrescentaram — além do gênio pessoal de alguns Por isso, o nosso conhecimento daquela civilização é tão
poetas entre eles — foi a sisteraatização dos gêneros (de- insuficiente que é difícil penetrá-la. Os poetas proven-
bate, pastoreia, balada, canción com envio, alba, sirven- çais se nos apresentam como figuras isoladas, quase assim
tês ou canção satírica), o uso da personificação alegórica como os poetas líricos da Antigüidade grega; apenas, com
na descrição dos movimentos psicológicos do amor, e a um pouco mais d t carne e osso compreendemos-lhes me-
representação da relação entre dama e poeta como relação lhor a paixão.
entre senhor feudal e vassalo: elementos, todos eles, ime-
diatamente compreensíveis ao homem medieval, e tão in-
12) Antologias: A. Jeanroy: Anthologie des troubaãours. Pa-
ternacionais como a poesia de língua latina. Deste modo, ris, 1927.
o êxito internacional da poesia dos trovadores provençais J. Anglade: Anthologie des troubaãours. Paris, 1927.
J. Audiau et R. Lavaud: Nouvelle anthologie des troubaãours.
está bem explicado. Paris, 1928.
A. Restori: La leiteratura provensale. Milano, 1881.
F. Diez: Leben unã Werke der Troubadours. 2." ed. Leipzig, 1882.
9) E. Wechssler: Die Kulturprobleme des Minnesangs. Halle, 1909. J. Anglade: Les origines ãu gai savoir. Paris, 1919.
10> H. Brinkmann; Entstehungsgeschichte des Minnesangs. Halle, J. Anglade; Histoire sommaire de Ia littêrature méridionale au
1926. Mopen Age. Paris, 1921.
ll> H. Spanke: Beziehungen swischen romani&eher unã mitteüa- A. Jeanroy: La poésie lyrique des troubaãours. 2 vols. Paris, 1934.
teinischer Lyrik, mit besonderer Beruecksichtigung der Metrik 12A) Flamenca, eü. por P. Meyer, 2.» ed. Paris, 1907.
und Musik. Berlin, 1936. C. Grimm: Êtuãe sur le roman ãe Flamenca. Paris, 1930.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 289
288 O no MA)IIA GAHPEAUX

Pela paixão define-se Bernard de Ventadour C^)> ° natural do Limousin, cujo lirismo fresco e despreocupado
amante cxnltatlo de Eleonora de Aquitânia e Hermen- agradou menos ao grande florentino. Mas, desta vez, tam-
garda de Narbona: bém discordou a posteridade: os críticos do romantismo e
do século X I X em geral consideraram Giraut como o maior
"Non es meravelha A'ieu chan de todos os provençais. Foi um virtaose que sabia fazer
mielhs de nulh autre chantador, tudo, um "poeta de ocasião", no sentido goethiano do
que plus mi tra-1 cors ves amor". t e r m o ; a sua alba com o refrão " et ades será Talba"
Do formalismo frio que se costuma censurar na poe- está a meio caminho entre Ovídio e Petrarca. Giraut pode
sia provençal, nada se percebe em Bernard de Ventadour. ser definido como o "rei do lugar-comum da poesia pro-
Seu erotismo parece mais "moderno" do que a poesia de vençal", quer dizer, daquilo que fora então novo e se tor-
amor dos próprios italianos do "Trecento". nou, depois, lugar-comum; mas também como um romântico
Mas é verdade que Bernard é excepcional. Aqueles avant Ia lettre. Seus contemporâneos admiravam-lhe a
italianos preferiram-lhe o "mais erudito", isto é, o mais facilidade, que não agradou a Dante. No século XIX, pas-
formalístico Arnaut Daniel (^*). Dante eternizou-lhe a me- sou novamente a ser muito apreciado. Mas, desde então, o
mória ("Purgatório", XXVI, 117), declarando que "sover- mundo deu mais uma volta; e hoje reúne, outra vez, a
chiò tutti". A posteridade não quis, durante muito tempo, maioria dos votos o hermético Arnaut Daniel.
ratificar o elogio: achou artificial o hermetismo impenetrá- Bertran de Born í^") é diferente de todos. É guerreiro
vel das suas 20 canções. Só as experiências poéticas do furioso, raptor de mulheres, usurpador do castelo de Hau-
nosso tempo permitiram apreciar a disciplina severa, crivo tefort, instigador de uma revolução na Inglaterra: um ho-
pelo qual passaram as emoções desse nobre coração, crista- mem diabólico. Dante colocou-o entre os criminosos da
lizadas depois era símbolos algo enigmáticos. nona das malebolge ("Inferno", X X V I I I , 133). Mas não
Declara Dante que Arnaut supera a todos e, especial- era traidor. Era homem de batalha em campo aberto cheio
mente, "quel di Lemosi". É alusão a Giraut de Borneil ('^'), de soldados armados:

13) Bcrnartz de Ventadorn, f c. 1194. " . . . . et ai gran alegratge


Edição por C. Appel, Halle, 1915. quan vei per champanha rengatz
G. Carducci: "Un poeta d'amore dcl secolo XII". (In: Opere, vol.
VIII. Bologna, 1923.) chavaliers e chavals armatz."
K. Vo.ssler: Der Minnesang ães Bernard ãe Ventadour. Muen-
chen, 1918. Bertran é uma voz no ar livre, .mas não é o rouxinol da
14) Arnauta Daniels, c. 1180-1220.
Kdlção por R. Lavaud, Toulouse, 1920. "fable convenue" dos seus biógrafos. Meio guerreiro, meio
U. A. Canello: La vita e le opere ãel trovatore Arnaut Daniel.
Halle, 1883.
A. Del Monte: Stuãi sulla poesia ermetica meãievale. Napoli, 16) Bertrans de Born, c. 1140-c. 1210.
1953. Edição por A. Thomas, Toulouse, 1888.
15) Girautz de Borneill, c. 1175-1220. A. Stimming: Bertran ãe Born, sein Leten unã seine Werke.
Edição por A. KolEen, Halle, 1910. Halle, 1879.
G. Kolsen: Giraut ãe Borneil, der Meister der Troubaãours. St. Stronski:' La legende amoureuse de Bertran ãe Born. Paris,
Bcrlin, 1895. 1921.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 291
290 OTTO \ U U I A CARPEAUX

E só num último rebento da poesia provençal, no século


vagabimdo foi o cruzado Peire Vidal C), cantor de mui-
X I I I , em Guiraut Riquier, aparece aquele formalismo con-
tas guerras e muitos amores em toda a parte do mundo
vencional que os historiadores sempre alegaram encontrar
e sempre cheio de saudades da Provença:
nela. Mas não há nada disso nos grandes trovadores, que
"Ab Talen tir vas me Taire foram justamente no século XX desenterrados e revivifica-
qu'eu sen venir de Proensa; dos pelo poeta e crítico americano Ezra Pound, chegando
tot quant es de lai m'agensa." a exercer notável influência sobre a poesia moderna. A
poesia dos trovadores é imortal porque eles criaram uma
O último grande trovador seria Peire d'Auvergne (^*), que das grandes lendas da humanidade: a lenda de um país
deixou uma espécie de história literária versificada do seu cheio de sol. Não é a Provença real, é a Provença dos tro-
país ("Chantarai d'aquestz trobadors.. .") Mas depois des- vadores que se tornou inesquecível como um sonho de in-
se "último dos trovadores" ainda vem o epílogo sinistro. fância remota e feliz.
Nas canções de Peire Cardenal ('^) manifesta-se o credo O famoso "formalismo" da poesia provençal, o regu-
heterodoxo dos albigenses; Guilhem Figueira (^^) escreve lamento da atividade poética segundo normas estabelecidas
um "sirventés" em que cada uma das 24 estrofes começa
e rigorosamente observadas, é mais um produto das ori-
com a palavra "Roma", para acumular as acusações contra
gens feudais daquela poesia: às leis complicadas da Cour
a "trjchairitz", "cobeitatz", o "caps de Ia dechassensa", a
d'Assises de Jerusalém, código modelar do feudalismo eu-
cidades dos papas. E Bernard Sicart de Marvejols (^^) já
ropeu, correspondem as "Leys d'AmDrs" que Guilhem Mo-
pode entoar o lamento sobre a devastação do pais querido:
linier, chanceler do "consistório" "de Ia gaya sciensa", pro-
" A i ! Tolosa e Proensa clamou em Tolosa, em 1324; codificação "post festum",
e Ia terra d'Argensa, quando a grande poesia provençal já acabara. As expres-
Bezers e Carcassey, sões sintáticas e métricas daquela legislação erótica — o
que vos vi e quo-us vey!" "formalismo" provençal — têm outra significação históri-
ca: constituem a primeira disciplina européia do lirismo.
A poesia dos trovadores alcançou êxito internacional
17) Peire Vidals, c. 1175-1205. como nenhuma outra entre a literatura latina e a Renas-
Edição (com introcJução biográfico-crítlca); J. Anglade: Les
Poésies ãe Peire Vidal. 2.' ed. Paris, 1923. cença italiana; poetas estrangeiros fizeram até a tentativa
18) Peire d'Alvernhe, c. 1180. de escrever em langue d'oc, antes de se aventurarem à imi-
Edição por S. C. Aston, Carabridge, 1953. tação na língua materna (^^).
R. Zenker; Die Lieãer Feire ã'Auvergnes. Erlangen, 1900.
19) Peire Cardenals, c. 1210. Muitos "trouvères" havia, naturalmente, no país vizi-
K. VoEsler: Peire Cardinal, ein Satiriker aus ãem Zeitalter der nho da langue d'oil, na França (^^): Conon de Béthune,
Albigenserkriege. (Ber. Bayr. Akad. Wiss., Philos. — Philol. Klas- Gui le châtelaín de Couci, Blondel de Nesle, Jean Bodel
se, Muenchen, 1916.)
20) Guihems Figueira, c. 1190. 22) E. Baret: Les troubadours et leur ínfluence sur Ia littérature dtt
E. Levy: Guilhems Figueira, ein provemalischer Troubaãour.
Berlin, 1880. miãi ãe VEurope. Paris, 1867.
21) Bernartz Sicart de Marvejols, c. 1220. 23) A. Jeanroy: Les origines de Ia poêsie lyriiiue en France. 2.* ed.
Cí. a antologia de Audlau et Lavaud, citada na nota 12. Paris, 1904.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 293
292 Orid MAÍUA CARPEAUX

d'ArraH. Tliibüiit IV de Champagne, Adam de Ia Halle. ses, a figura importante de d'el-rei D . Dinis (^^). Os trova-
AI{;uns fiiln: ilcs deixaram a lenda pessoal dos seus amo- dores galego-portuguêses são os únicos que suportariam a
res c dcKfjaças. Mas nenhum saiu do forraalismo conven- comparação com os provençais, se tivessem mais originali-
cional alt- aparecer Rutebeuf, o rude homem do povo, re- dade. Mas a decadência foi relativamente rápida. O Can-
cioneiro Geral de Garcia de Resende (impresso em 1516)
vivi ficando o lirismo aristocrático esgotado.
já é marcado pelos artifícios do século XV (^'''^). Não se
Na Itália setentrional (^''^) do século X I I I , só se em- pode dizer muito sobre os trovadores catalães: começam a
pregou a língua provençal para cantar o amor, e entre os cantar em língua provençal (Giraut de Cabreira, Cervert
Lanfrancos Cigala, Bonifácios Calvo, Bartolommeos Zor- de Gerona), e quando ousam empregar a língua materna
zi, pelo menos um não foi esquecido, Sordello, que deve a (^''), já se aproxima a hora da poesia italiana. E não se
imortalidade a Dante ("Purgatório", VI, 74). Na Sicília, na pode dizer muito de bom sobre os trovadores castelhanos.
corte do grande imperador Frederico I I , empregavam o Eles também começam em provençal (Guillem de Tudela,
dialeto da ilha, e um homem de inteligência superior, o Amanieu de Ias Escas). O primeiro cancioneiro castelha-
chanceler imperial Pier delle Vigne, deixou um cancio- no, o de Baena (-*), deve o que tem de valor aos galegos, a
neiro e também a memória da sua desgraça e suicídio ("In- Alfonso Alvarez de Villasandino, ao famoso Macias. E o
ferno", X I I I , 33) ; no "Purgatório" (XXIV, 56), Dante lem- outro, o Cancioneiro de Lope de Stuíliga, já é um produto
brou-se também do trovador siciliano Giacomo de Lentino da decadência do século XV.
— a poesia provençal está em toda a parte da Europa e Ocupa um lugar de todo separado o único ramo da
nos três reinos do outro mundo dantesco. poesia provençal em língua germânica: o "Minnesang" dos
alemães (^''). É provençal e ovidiano, como os outros, e
O ramo mais original da poesia mediterrânea encon-
tra-se na península Ibérica, entre os galego-portuguêses;
26) D. Dinis, 1261-1325.
três cancioneiros famosos, o da Ajuda, o da Vaticana e o Edição por H. Lang, Halle, 1894.
Códex Colocci-Brancuti (^^), contêm mais de 2000 poesias S. Pellegrini; Don üenis. Saggio ãi letteratura portoghese. Bel-
de 200 poetas: entre aquelas, uma variedade bastante gran- luno, 1927.
26A) J. Ruggieri: II canzoniere ãi Resende. Gênova, 1931.
de de cantigas de amor, cantigas de amigo, cantigas de mal-
P. Le Gentil; La voenic lyrique espagnole et portiigaise à Ia
dizer; e entre estes alguns poetas muitos finos, os galegos fin ãu Moycn Açiu. Rcntins, 1949.
Martin Codax, João Airas e Airas Nunes, e, dos portuguê- M. Rodrigues Lapa: Lições ãe Literatura Portuguesa. Época
Medieval. 3." ed, Lisboa, 1952.
27) Cançoner catnlá ãels corates d'Urgell. Edição, Barcelona, 1906.
28) Cancionero de Alonso ãe Baena (c. 1450). Primeira edição pelo
24) G. Bertoni: / Trovatore ã'ItaUa. Modena, 1915. marquês de Pidal, 1851, Edição por H. R. Lang, New York, 1926.
25) Cancioneiro ãa Ajuda (primeira edição crítica por Ad, Varnha- R. Menéndez Pidal; La primitiva lírica espanola. Madrid, 1919.
gen, 1&49). Edição crítica por Car. Michaelis de Vasconcelos, 2
vols., Halle, 1904. i 29) O maior cancioneiro alemão é o Manuscrito Manesse (Biblioteca
de Heidelberg). Primeira edição por F, H. von der Hagen, 1838.
Cancioneiro ãa Vaticana. Edições críticas por E. Monaci, Halle, Edição crítica por F. Píaff, Heidelberg, 1909.
1875, c por Th. Braga, Lisboa, 1878. F. Grimme; Geschichte ãer Minnesaenger. Paderborn, 1892.
Cancioneiro Colocci-Brancuti. Edição por E. Molteni, Halle, 1880. R. Becker:' Der altheimisclie Minnesang. Halle, 1892.
O. Vitaletti: Uantica lírica portoghese. Roma, 1926. A. Schiller: Der Minnesa,ng ais Gesellschaftspoesie. Borm, 1908.
295
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

294 OTTO MARIA CABPBAUX


Não esquecemos também Neidhart von Reuental (*^), mas
contudo distingue-se pela forte influência da canção popu- por outros motivos. As suas canções, muito espirituosas,
lar, que lhe confere uma frescura surpreendente. As "al- dirigem-se a moças de aldeia. Antigamente, foi Neidhart
bas" e "despedidas" do senhor de Kuerenberg (século X I I ) considerado como uma espécie de oposicionista contra o
são, em formas provençais, lieds alemães; Dietmar von aristocratismo, mas hoje se admite que empregou as for-
mas provençais mais finas para zombar dos camponeses —
Aist também guarda certa feição arcaica. Mas Heinrich
a sátira contra o camponês é um dos motivos preferidos da
von Morungen e Reinmar von Hagenau jâ são artistas da
literatura medieval, Na paródia acaba, enfim, o Minnesang.
forma, e a combinação dos dois elementos, o nacional e o
Um cavaleiro anacrônico, Ulrich von Lichtenstein (^^),
estrangeiro, produz um dos maiores poetas da Idade Mé-
descreve, no Frauendienst, SL viagem fantástica que empre-
dia: Walther von der Vogelweide i^"), provavelmente na-
endeu para expor a toda a gente as suas qualidades de ca-
tural da Áustria. Na poesia amorosa cultiva o tom popular, valeiro amoroso; e confessa francamente que foi conside-
sem vestígios de aristocratismo. No belíssimo lied "Un- rado louco. O realismo são dos burgueses e camponeses já
der der linden, an der heide", idílio de dois amantes à não suportou o espetáculo da festa aristocrática que se
sombra da árvore, com o refrão melodioso "tandaradei", só tinha transformado em carnaval.
a análise mais exata descobre a arte consumada do metro
A poesia de tipo provençal não pôde sobreviver à de-
e das composições de vogais atrás das aparências da can-
cadência da classe dos cavaleiros feudais. Na Alemanha,
ção popular. Walther supera os provençais no sirventês
os burgueses fizeram uma tentativa de salvação: fundaram-
político: é um lutador sério, em favor do imperador e con-
se sociedades de artífices — alfaiates, sapateiros, carpin-
tra o papa e os clérigos; é até nacionalista alemão, revol-
teiros — para cultivar uma poesia "literária", de conteúdo
tado contra as exigências romanas. Mas, afinal, prevale-
diferente, mais moral e mais religioso. Mas a tentativa
cem as expressões pessoais, a meditação e a melancolia.
acabou no formalismo vazio dos "Meistersaenger", que hoje
A canção melancólica sobre o recuo da mocidade e os "anos
são lembrados só através da ópera-cômica de Wagner, Os
desaparecidos" — "Owê war sint verswunden alliu miniu
Mestres-Cantores de Nurembergo. A salvação da poesia
jâr!" — é a sua despedida. Um epígono, Hugo von Trim-
culta só foi conseguida onde havia uma burguesia culta:
berg, dedicou-lhe o epitáfio memorável — "Sinto pena dos
na Itália do "dolce stil novo".
que viessem a esquecer-se do poeta":

"Her Walther von der Vogelweide, 31) Neidhart von Reuental, c. 1180 - c. 1250.
swer des vergaeze, der taet' mir leide." Edição por R. Keinz, 2." ed., Lelpzig, 1910.
C. Pfeiffer: Die ãichterische Persoenlichkeit Neidharts von
Reuental. Padertaorn, 1903.
F. Guenther: Minneparodie bei Neiãhart. lena, 1931.
30) Walther von der "Vogelweide, c. 1170 - c. 1228.
Edição por C. Kraus, Berlin, 1923. E. Wiessner: Kommentar zu Neidharts Lieãern. Leipaig, 1954.
K. Burdach: Walther von der Vogelweide. Leipzig, 1900. 32) Ulrictx von Lichtenstein, c. 1200-1276.
R. Wustmann: Walther von der Vogelweide. Strasbourg, 1912. Frauendienst, edição por R. Bechstein, 2 vols., Lelpzig, 1888.
K. H. Halbach: Walther von der Vogelweide und ães Minnesangs R. Beclíer: Wahrheit und Dichtung in Vlrichs von Lichtenstein
Fruehling. Muenohen, 1927.
D. Kralik: Die Elegie Walthcrs von der Vogelweide. Wien, 1952. Frauendienst. HaUe, 1888.
296 OTTO MAHIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 297

A poesia ])rovençal deixou no espírito europeu uma e a arte considerável do seu verso confere certa dignidade
marca profunda. Era a primeira poesia profana que o Oci- à maneira um pouco frívola de transformar toda a lenda
dente criara; ensinou a todo o mundo uma nova atitude, arturiana em série de romances de amor, de Lancelot e
maÍB positiva, em face da vida; inverteu os valores. Conse- Guinevere, de Erec e Enide. Os cavaleiros de Chrétien são
guiu até uma coisa que a Igreja não pudera conseguir: a galanteadores; Chrétien é francês, mundano e espirituoso,
eliminação do elemento germânico-pagão, que ainda se en- um Bourget medieval sem veleidades católicas, com um
contrava nas "gestes" e nas epopéias nacionais. Substituiu pouco de Anatole France. O seu mundo é a "Cosmopolis"
esse elemento pelo paganismo "moderno", o erótico. A do século X I I , sem Papa no fundo.
rude epopéia nacional transformou-se em romance mun- O êxito internacional do "roman courtois" tem vários
dano. motivos. A idealização da vida dos cavaleiros corresponde
O fato decisivo é, pois, a "provençalização" dos assun- à decadência já sensível do papel político da classe: os
tos. É ela que transforma a "geste de Charlemagne" em poemas épicos já estão destinados a conferir à classe um
série de aventuras fantásticas de cavaleiros andantes, mais brilho que perdera C^''^). E n t r e as "gestes" da matéria
preocupados com as damas do que com os infiéis. Muito de Carlos Magno, preferem-se agora os ciclos de Doon de
semelhante é a transformação da matéria céltica: a rainha Mayence, Renaud de Montauban e Raoul de Cawbrai, que
Guinevere e as aventuras amorosas de Lancelot são postas refletem a revolta dos senhores feudais contra o poder
em evidência, e o romance de Tristão com Isolda torna-se real. A matéria bretã permite tratamento livre das ques-
popularíssimo. Questões de amor ímpõem-se a propósito tões amorosas, exaltação franca do amor adulterino e do
da guerra de Tróia, e a história de Enéas e Djdo é intei- amor livre. O romance de Tróia deve parte da sua popula-
ramente "provençalizada". Contudo, existem influências ridade às arbitrárias árvores genealógicas de muitos prín-
subsidiárias: Ovídio é o autor latino mais lido nas escolas cipes medievais, que acreditavam descender de heróis troia-
do século X I I , e uma obscura literatura ovidiana de se- nos. O episódio de Dido e Enéias, tomado à Eneida, é tra-
gunda mão e segunda ordem contribuí para o requinta- tado em estilo mais ovidiano do que virgiliano. O roman-
mento das maneiras e para a complicação da psicologia ce de Alexandre Magno satisfaz o prazer inexgotável do
amorosa (^^), leitor medieval em ouvir narrações de viagens fantásticas.
O produto típico é o "roman courtois", de Chrétíen Introduzem-se novos motivos romanescos para matar a
de Troyes (•*''). Poeta, ele não é, mas é artista. Talvaz curiosidade. Em fontes bizantinas foi encontrada a histó-
seja o primeiro autor que sabe narrar como um "moderno", ria de ApoUonio de Tyro, da qual já existia uma versão em
língua anglo-saxônica; aparece, por volta de 1390, na Con-
33) E. Faral: Recherches siir les sources latines des contes et roman* fessio Amantis, de J o h n Gower, já antes aparecera tam-
courtois. Paris, 1913. bém no Libro de Apolonio, espanhol, e existe ainda em ver-
34) Chrétien de Troyes, c. 1130 - c. 1180. são italiana e como assunto de um romance alemão (im-
Erec et Eniãe; Lancelot; Yvain; Perceval.
Edição (incompl.) por W. Foenster, 5 vols., Halle, 1884/1890,
Perceval, na odição de Potvin, 6 vols., Mons, 1866/1871.
G. Cohon: Chrétien de Troyes et son oeuvre. Paris, 1931. 34A) H. Kulin: "Soziale Realitaet und disehterisclie Fiktian am
R. S. Loomis: Arthurian Traãition and Chrétien de Troves. New Bcispiel der hoefischen Ritterdieíitung". (In; C. Brinkmann cd.:
Yorlc, 1949. Sosiologie und Leben. Tuebingen, 1952.)
298 OTTO MARIA CABPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 299
presso em 1471); e forneceu a Shakespeare, mais tarde, o
O herói mais popular da "geste de Charlemagne" con-
enredo para uma peça fantástica (^^). A maneira meio
tinuou a ser o próprio Carlos Magno, ao lado de Rolando e
romântica, meio barroca de tratar os pretensos assuntos da
dos outros pares C). Menéndez Pidal encontrou, em 1917,
Antigüidade greco-romana encontrará inúmeros enredos
um fragmento bem antigo (século X I I I ) de um roman-
adequados nos Gesta Romanoram (^^).
ce espanhol de Rolando; também o "Fierabras" espanhol
O leitor medieval gostava imensamente desses roman- deriva, provavelmente, do "Fierabras" provençal. Do sé-
ces. Na economia espiritual da época, o "roman courtois" culo XV é a Historia dei emperador Carlos Magno y
ocupa exatamente o lugar do romance na economia espi- de los doce pares de Francia, contemporânea das versões
ritual moderna. Então como hoje, o maior consumidor é prosaicas em português; a Vida de Carlos Magno galega
a mulher; escreve-se para o gosto da dama no castelo, parece mais antiga. As versões inglesas ocupam-se mais
ocupada com as personagens secundárias, bastante anglicizadas,
como Sir Bewis of Hamton, Sir Otuel, Sir Ferumbras, Ro-
". . . . à lire leur psautier
land and Vernagu; a imaginação céltica deixa-se dominar
E t faire oeuvre d'or ou de soie,
pela versão gaélica do Pseudo-Turpino latino. Nos Paises-
Ouír de Thèbes ou de Troie."
Baixos, Klaas von Haarlem traduziu, por volta de 1200, o
O verso só é obstáculo à facilidade da leitura; então, Guillaume d'Orange; também existe um Roelantslied e um
abolem o verso. A transformação dos romances versifica- Karel ende Elegast; mas o senso prático dos holandeses
dos em romances em prosa acompanha a "prosificação" da resiste às aventuras, e só no século XV vemos aparecer o
vida medieval, a decadência do prestígio político dos se- "Volksbuch" {^^) Strijt opten berch van der Roncevale in
nhores feudais; é sintoma importante da evolução social. Spaengien. Do século X l l é o Rolandslied alemão, do
Do ponto de vista da história literária, a importância da "pfaffe" Kuonrad, Muito diferente de todas as outras ver-
transformação não é menor: a prosa, em vez do verso, fa- sões é a Kariamagnussaga noruego-islandesa, fortemente
cilita muito a tradução, torna possível a surpreendente di- "clerical" e destinada à propaganda do cristianismo no
vulgação internacional dos "romans courtois" por todas as N o r t e ; foi traduzida também para as línguas dinamarquesa
nações, em todas as literaturas, da Espanha à Islândia, da e sueca. Mas a versão italiana do cód. X I I I da Biblioteca
Inglaterra à Bulgária. Mas do ponto de vista da crítica S. Marco, em Veneza, é mero tecido de aventuras fantás-
literária, a diferença é insignificante: os versos não foram ticas. Vem daí o "volksbuch" italiano Reali di Francia,
melhores do que a prosa, e o espírito que enforma as ver-
sões em verso e prosa é o mesmo. "Romans courtois" em 37) Ph. A. Becker: Grunãriss der altfranzoesischen Literatur. Hei-
verso e "romans courtois" em prosa, juntos constituem a delberg, 1907.
literatura internacional da época. Por isso, não vale a 38) Os "Volksbuecher" (termo da ciência germanistica), são os úl-
timos produtos da evolução das "gestes": versões em prosa, para
pena distingui-los dentro do panorama da Internacional o gosto das classes incultas (séculos XV e XVI). Os "Volksbue-
literária do século X H I . cher" alemães tratam de Siegfried, dos filhos de Haimon, For-
tunatus, etc, constituindo, desde o romantismo, objeto de pre-
dileção dos estudos de folclore.
35) S. Singer: Apollonius von Tyrus. BErlin, 1906. Edição dos "Volksbuecher" por K. Simrock, 2.^ ed„ 13 vols., Basel,
36) c r . "O Universalismo Cristão", nota 16. 1886/1887.
L. Maekensen: Die ãeutschen Volksbuecher. Leipzig, 1927.
500 OTTÍI M^niA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 301

obra de Andréa dei Magnabotti (c.l340-c.l430), um dos fundamental da história de Perceval e da demanda do San-
livros mais lidos pelo povo inculto da I t á l i a ; é a fonte de to Gral. Outro tema importante da literatura arturiana
Pulei c de Ariosto. foi afrancesado por um poeta fino e penetrante, o anglo-
As outras "gestes" do ciclo francês entram na lite- normando "Maitre" T h o m a s : Tristan et Iseut C')- A. ver-
ratura "literária" da França: Adenet le Roi deu-nos a ver- são em prosa do Tristan francês foi um dos livros medie-
são definitiva de Berte aux grands pieds e Enfances Ogier, vais mais divulgados.
Eertrand de Bar-sur-Aube, a do Aimeri de Narbonne, que Os episódios centrais da lenda arturiana, perdendo os
se tornaram "volksbuecher"; do Renaud de Montauban de- traços da imaginação céltica, revelaram cada vez mais o
riva o "volksbuch" Qucitre iils Aymon, traduzido para to- caráter de aventuras misteriosas, em que são os predeces-
das as línguas. A "geste de Charlemagne" com as suas de- sores do romance de Amadis; apenas, o elemento erótico,
rivações substituiu, em toda a parte, as "gestes" nacionais, ovidiano, é mais forte. Assim aconteceu nas versões in-
que se mantinham só como lendas pseudo-históricas, incluí- glesas: Arthour and Metim, Morte d'Artbur, Sir Gawayne
das nas crônicas; isso também é uma forma da "prosifí- and the Green Knight (um dos romances mais populares
cação". Desapareceram, desta maneira, as versões mais an- do século X I V ) , Ywain and Gawayjie, Sir Launfal. Perten-
tigas das gestas secundárias espanholas; na Primeira Crô- cera ao mesmo grupo o Roman de Jaufre, provençal; a Ta-
nica general, do rei Alfonso X, encontrou Menéndez Pidal vola redonda, italiana; o Faula ó poema de Artús, do ca-
a versão prosaica da gesta dos Infantes de Lara (-''»). Do talão Guillén de Torroella, no século X V ; o fantástico
mesmo modo, as "gestes" de outras nações entram nas crô- Roman van Waldwein, flamengo; o Roman van Merlijn,
nicas históricas ou pseudo-históricas, desfigurando o pas- do holandês Maerlant; os Erec e Iwein, do notável poeta
sado ou criando fabulosas árvores genealógicas dos prín- alemão Hartmann von Aue (c. 1200), que reapareceram na
cipes e pré-histórias fantásticas dos povos. Especialmente Islândia como Erexsaga e Ivenssaga, e na Suécia como
a matéria bretã, cheia de "celtic twilight", lusco-fusco en- Yvein,
tre história e ficção, serve para esse fim; ainda Dom Qui-
Na matéria bretã, esconderam-se atrás da monotonia
xote não saberá distinguir entre romance e realidade.
das aventuras de cavaleiros dois elementos muito diferen-
Na elaboração romanesca e divulgação internacional t e s : o elemento erótico, de origem provençal-francesa e
da matéria bretã (•«), a literatura francesa foi particular- ovidiana, revelando-se nas aventuras de Lancelot e Guine-
mente feliz, como se se tratasse de assunto nacional; a vere; e o elemento fantástico, de origem céltica, revelando-
França é, realmente, meio céltica. Chrétien de Troyes (*^) se nas aventuras de Gawayne com o "cavaleiro verde". O
ocupou-se das figuras mais romanescas da Távola Redon- elemento erótico desenvolveu-se livremente, no romance
da, de Erec, Lancelot, Guinevere; criou também a versão de Tristão e Isolda; o elemento fantástico, nas aventuras
de Perceval e na Demanda do Santo Gral.
39) R. Menéndea Pidal: La leyenda de los Infantes de Lara. Ma-
drid, 1896.
401 J, D. Bruce: The Evoluüon of Arthurian Romance from the 42) Thomas, c. 1170; do Tristan et Iscut, só existe um íragmento de
Bcginrdngs ãown to the Year 1300. 2 vols. Goettingen, 1923/1924. 3000 versos. Edição por J. Bédier, 2 vols., Paris. 1902/1905.
J. Mívrx: La Legende Arthurienne et le Graal. Paris, 1952. E. Vinaver: Le Yoman de Tristan et Iseult et études sur le Tristan
M) c(. nota 34. en prose. Paris, 1926.
HISTÓRIA DA LITERATUBA OCIDENTAL
30.1
302 OTTO MARIA CARPEAUX
religiosos: Perceval, como homem angustiado em busca da
O romance de Tristão e Isolda manifesta o individua-
presença de Deus, e o Santo Gral, como objeto misterioso
lismo violento dos celtas; baseia-se numa saga irlandesa.
de culto de uma companhia de cavaleiros quase monges.
MBH KÓ na França lhe acrescentaram o erotismo intenso,
Nesta forma, a lenda conquistou a Europa (*^). É como
que Kc comunicou a toda a literatura novelistica francesa.
se os ideais dos cruzados, desmentidos pela realidade polí-
Em f;eral, as versões literárias do assunto derivam da obra
tica, se tivessem refugiado na tenda. Mas as idéias reli-
de Thomas ('^). Apenas a versão italiana se baseia em ou-
giosas em torno do Santo Gral não são exatamente orto-
tra obra francesa, anterior a Thomas e hoje perdida. Não
doxas. A origem da lenda já foi atribuída a resíduos da
há muita diferença entre o Sir Tristrem inglês e o Dois
religião céltica ('**), ou então à heresia dos albigenses pro-
Tristán de Leonis espanhol (impresso em 1501). Mas des-
vençaís, tendo por sua vez raízes no dualismo persa C^).
taca-se sobremaneira o Tristan und Isolde do alsaciano ale-
Nem sempre o sentido religioso foi plenamente compreen-
mão Gottfried von Strassburg (''''), que era um poeta de
dido: quase desaparece no Perceval de Chrétien de Troyes,
paixão intensa, superando bastante o modelo francês.
e não se destaca muito na Historia van ãen Graal, do ho-
Gottfried é poeta e artista e, quase, pensador independente.
landês Jacob van Maerlant. Mas está evidente na Parzi-
Na sua obra o choque entre o erotismo e a tradição cristã
produz uma crise espiritual. A versão alemã foi o modelo valssaga noruego-islandesa, que é a versão nórdica do Par-
da Tristramssaga noruego-islandesa e de uma versão tcheca. zival, do grande poeta alemão Wolfram von Eschenbach
A "geste" de Perceval e do Santo Gral aparece mui- (^^). Eis uma epopéia autêntica, em estilo difícil e obscuro;
tas vezes, como uma espécie de apêndice ou parte integral a multidão de episódios não chega a sufocar a impressão
da lenda arturiana; ainda não apresenta, então, nada de profunda que desperta. Nenhuma outra obra literária su-
particular. Pode-se citar o Lancelot du Lac anglo-nor- gere mais do que essa a comparação entre o estilo gótico
mando, que inclui a Çuête dei Saint Graal, e que foi ou- e o estilo barroco. Mas apenas a forma parece barroca. A
trora atribuído ao poeta goliardo Walther Mapes; existe idéia central é gótica, no sentido em que os pilares das ca-
dele uma tradução holandesa. Pertencem ao mesmo tipo
a História dos Cavaleiros da Mesa Redonda e da Demanda 45) A. Pauphilet; Ètuãe sur ia Qiieste de Saint-Graal. Paris, 1921.
do Santo Gral, versão portuguesa do século XIV, e a ver- W. Golther: Pareival und der Gral in der Dichtung des Jtfiítelal-
são espanhola La demanda dei santo Criai con Ias mara- ters. Stuttgart, 1925.
villosos fechos de Lanzarote de] Lago (impressa em 1515). R. Jaífray: King Arthur and the Holy Grail. London, 1928,
Cá e lá, nessas obras, o assunto romanesco revela aspectos 46) R. S. Loomis: Celtic Myth and Arthurian Romance. New York,
1927.
47) W. Raiin'. Her Kreuzzug gegen deu Gral. Leipzig. 1933.
43) J. Kelemma: Geschichte der Tristansage nach ãen Dichtungen 48) Wolfram von Eschenloaeh, c. 1170 - c. 1220.
des Mittelalters. Wien, 1923. Parsival; Titurel; Willehalm.
44) Gottfried von Strassburg, c. 1210. Edição por A. Leitzmann, 2.^ ed., 5 vols., Halle, 1926.
Tristan und Isola; edição por R. Bechstein, 5.^ ed., 2 vols., Leip- G, Weber: Wolíram von Eschenbach. Frankfurt, 1922.
zig, 1930. F. R. Schroeder: Die Parzival - Frage. Muenchen, 1923.
L. Piquet: Uoriginallté de Gottfried de Strasbourg. Lllle, 1905. M. Wilmotte: Le Parzival de Wolfram d'Eschenl>ach. Paris, 1933.
F. Ranke: Tristan urid Isold. Muenchen, 1925. W. J. Schroeder: Der Ritter swischen Welt und Gott. lãee und
G. Weber: Gottfrieãs "Tristan" und die Krise des mittelalterlí- Prohlem des Par^ivalromans Wolframs von Eschenbach. Weimar,
chcn Weltbilüs um 1200. Stuttgart, 1953. 1952.
HISTÓRIA DA LITEHATUBA OCIDENTAL 305
504 OTTO M A R I A CARPEAIIX
de Ayalla, a galega, de Fernán Martinez, a Geste Historíale
tedrais parecem buscar o céu. O Parzival é o romance oi the Destruction oi Tioy e o Troy Book, de John Lydga-
da evolução religiosa de uma alma; antecede aqueles nu- te, a Histoire van Troyen, do holandês Jacob van Maerlant,
merosos romances alemães modernos que, desde o Wilhelm uma epopéia alemã de Konrad von Wuerzburg, uma ver-
Meister, de Goethe, irão descrever o caminho de um ho- são tcheca. e até versões gaélica e búlgara. O romance
mem pela vida em busca de si mesmo. de Tebas existe igualmente em várias línguas, enquanto
o sucesso do episódio de Dido e Enéias, tratado em espírito
A literatura francesa apresenta, mais uma vez, a obra
mais ovidiano do que virgiliano. se limitava aos círculos
principal do ciclo de Tróia: Le roman de Tioie de Benoit
aristocráticos: depois do romance de Benoit de Saint-More,
de Saint-More (*«), vasta epopéia de 30.000 versos, basea-
que foi lido igualmente na França e na Inglaterra nor-
da nos escritos apócrifos de Dictys e Dares, transformando
manda, assinala-se a Eneit (c.1180), do holandês Hendrik
o assunto antigo em "roman courtois" dos mais banais; a
van Veldek, escrita em alemão medieval.
Benoit de Saint-More atribui-se também o Roman de Thè-
bes, baseado em Estácio, que alcançou a mesma populari- Sorte imensa sorriu ao romance fantástico de Alexan-
dade, e uma versão da Eneida, o Roman d'Enéas. A apre- dre Magno ( " ) . A Idade Média conhecia a tradução latina
ciação dessas obras, hoje ilegíveis, como "anacronismos que certo Julius Valeríus tinha feito do romance bizan-
enormes", é injusta. Benoit e os seus contemporâneos adap- tino de Pseudo-Kallisthenes; as versões latinas do arci-
taram a Antigüidade ao gosto do seu tempo, nem mais nem preste Leo de Nápoles e de Gualterius de Châtillon conti-
nuaram a tradição, que se cristalizou, no século X I I , no

I
menos do que fizeram outras épocas, e a enormidade do
anacronismo é compensada pelo êxito: os assuntos "mor- Rowan d'Alexandre, de Lambert le T o r t e Alexandre de
tos" tornaram-se, outra vez, vivos. A filologia moderna Bernay. É uma "geste" geográfica, de viagens em países
não conseguiu tanto. Neste sentido, foi bem merecido o de milagres, horrores, monstros ridículos e revelações mis-
sucesso internacional í^"): nota-se até uma Conquista de teriosas. Existem dois "Alexandres" ingleses (Kyng Ali-
Tioya galega, além de uma Istonetta trojana em dialeto saunder e The Wars oi Alexander), nada menos do que
dos subúrbios de Roma. Mas o grande mediador foi, desta três alemães (de Lamprecht, Rudolf von Ems, Ulrich von
vez, um italiano, Guido delle Colonne, que escreveu em Eschenbach), o Libro de Alixandre, espanhol (atribuído a
latim, por volta de 1287, a Historia Destruxionis Troiac. Gonzalo Berceo), a Alexanders Gheesten, do holandês Ja-
Desta obra fastidiosa existem numerosas traduções, ver- cob van Maerlant, versões em islandês, irlandês e até era
sões, versificações e prosificações: a espanhola, de Lopez búlgaro. A versão tcheca do século X I V , tradução livre
da obra de Gualterius de Châtillon, é um dos primeiros
grandes documentos da literatura tcheca.
4S) Benoit de Saint-More, c. 1160. A enumeração foi longa e fastidiosa; aquelas obras,
Roman ãe Troie. Edição por L. Constans, 6 vols.. Paris, 1904/1912. lidas antigamente com tanto interesse, constituem hoje o
Koman ãe Thèbes. Edição por L. Constans, Paris, 1890.
Roman d'Enéas. Edição por Salverda de Grave, Halle, 1891.
A Joly: Benoit ãe Saint-More et le Roman de Troie, ou Méta- 51) P. Meyer: Alexandre le Grana ãans Ia Uttérature du Moyen Age.
morphose ã'Homère et ãe Vepopée gréco-latine au Moyen Age. 2 vols. Paris, 1886.
2 vols. Paris, 1870/1871. G. Cary: The Medieval Alexander. Cambridge, 1956.
50) W. Greif: ZJie mittelalterlichen Bearheitungen der Trojanersage.
Marburg, 1886.
306 OTTO MARTA CAUPEAUX

canto mais abandonado do grande cemitério melancólico,


que é a história da literatura universal. Contudo, só assim
foi possível dar uma idéia do internacionalismo prodigioso
da literatura medieval, da "prodigieuse similitude" que
Tocqiieville encontrara em toda parte. A literatura aristo-
crática medieval fortaleceu a unidade européia que o latim
litúrgico tinha criado entre as nações principais: os italia- CAPÍTULO IV
nos e franceses, espanhóis e portugueses, provençais e ca-
OPOSIÇÃO. BURGUESA E ECLESIÁSTICA
talães, ingleses, alemães e holandeses; estendeu as frontei-
ras literárias da Europa até a Dinamarca, Suécia, Noruega
e Islândia. Preparou até a ocidentalização futura dos es-
lavos.
O I N T E R N A C I O N A L I S M O do mundo medieval é ape-
nas uma, entre outras, das suas qualidades caracterís-
ticas que não se ajustam bem ao conceito convencional
sobre a época. E m geral, a Europa medieval é imaginada
como um círculo tão hermèticamente fechado quanto o sis-
tema cosmológico dos seus astrônomos; as Cruzadas pa-
recem, então, uma tentativa meio louca e infrutífera de
sair da prisão. Fechada, a Idade Média era-o sem dúvida;
não tomou nem quis tomar conhecimento de coisas fora da
sua fé e da sua geografia. Mas dentro do círculo havia
vida e tumulto. A Europa do século X I I já não é a da épo-
ca carolíngia; já não é só agrária, latifundiária. E n t r e
Flandres e a Itália, entre a Itália e o Oriente, entre o Orien-
te e a Catalunha, há um comércio considerável, e os novos
centros desse comércio são as cidades. Por volta de 1050,
é, segundo Pirenne, que a cidade se torna importante. Alia-
se aos bispos, na luta contra os senhores feudais. Cidades
e bispos, juntos, criam os fundamentos de uma nova admi-
nistração. Outros frutos dessa colaboração são as univer-
sidades e a "Renascença do século X I I " . Dentro da orga-
nização hierárquica da sociedade e do pensamento medie-
vais, a cidade constitui um elemento novo; fatalmente vira
elemento de oposição. A cidade medieval tornar-se-á tão
sistematicamente oposicionista que no seu seio se irão criar
todas as espécies de outras oposições. Haverá a oposição
do "popolo minuto" contra o "popolo grasso", dos peque-
nos burgueses contra os patrícios ricos; haverá, mais tarde,
308 OTTO MAIUA CAHPEAUX 30<)
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

a oposição dos operários contra os patrões, que dirigem da Como todos os mendigos medievais, Rutebeuf invoca a
maneira mais egoísta as corporações. Haverá a série inter- Virgem e todos os santos, pedindo esmola. Mas a sua reli-
minável de lutas da classe, tão características da cidade giosidade é muito pessoal; não gosta dos monges que fazem
medieval, apenas mal compreendidas pela posteridade, por concorrência desleal aos mendigos, nem dos clérigos em
se apresentarem, muitas vezes, disfarçadas em revoltas re- geral, porque têm prebendas, enquanto Rutebeuf as não
ligiosas. Mas também haverá, realmente, intervenção reli- tem. E foi, no entanto, um clérigo que conheceu por den-
giosa na luta de classes medieval: entre os rebeldes mais tro a Universidade. Agora, tem de cantar nas tavernas
tumultuosos encontram-se os monges, que tomam o par- e nas esquinas para ganhar a vida penosa. É o primeiro
tido dos pobres contra os ricos e dos leigos contra os bis- goliardo em língua francesa, ou antes, o último goliardo e
pos. O espírito de oposição sai até dos muros da cidade, o primeiro chansonniei; está, portanto, na oposição. Mas
toma conta dos camponeses, que se revoltam contra os se- a oposição dos goliardos é relativa: faz parte da estrutura
nhores feudais e se refugiam nas cidades que já conquis- do cosmo medieval.
taram territórios "fuori le mura". E m breve os campone- Rutebeuf pode falar com toda a franqueza, porque não
ses saberão, porém, que o jugo dos burgueses não é mais tem nada que perder. Os que defendem os seus bens, por
cômodo que o jugo aristocrático; se o senhor maltra- mais modestos que sejam, contra gente poderosa, preferem
tou o camponês, o burguês junta à opressão a mofa, o es- a linguagem alegórica, que lhes dá o ar de quem conta his-
cárnio contra o homem rude e inculto dos campos, que se tórias inofensivas, enquanto exprime as suas mágoas e os
vinga, por sua vez, com a astúcia inata dos camponeses. É seus desejos de vingança. A sátira alegórica é meio de
um mundo fechado, mas turbulento. expressão legítimo do pensamento medieval, Mas concor-
Na época dos hinos litúrgicos e da poesia aristocrá- reram outras influências para aguçar o instrumento.
tica, essa evolução mal tinha começado; mas já se esbo- Do Oriente chegam, sem interrupção, contos e mais
çava uma literatura de oposição. As mais das vezes, ser- contos, histórias de daroeses, romeiros, cameleiros e mais
gente exótica, nas quais a sabedoria popular de civiliza-
viu-se do instrumento soberano da alegoria para ferir o
ções alheias se cristalizou. Desses contos orientais o mun-
adversário sem se expor à sua vingança, deixando margem
do literário só tomou conhecimento quando se publicou,
às interpretações inofensivas. É rara a expressão direta,
no século X V I I , a primeira tradução das Mil e Uma Noites;
como na poesia de Rutebeuf. a Idade Média já os conhecera pela boca de marinheiros
Rutebeuf (*) é um mendigo. É pobre, e a pobreza cons- italianos que os tinham ouvido no Oriente. Outro ponto de
titui o assunto principal da sua poesia: contato encontra-se na Espanha, dividida entre cristãos e
'íi* maometanos. São de origem oriental muitos contos do Li-
" J e ne sai par ou je comance, bro de enxemplos dei Conde Lucanor et de Patronio, do In-
T a n t ai de matière abondance fante Don Juan Manuel (-), e é tipicamente oriental a ma-
Pour parler de ma povreté."
2) Don Juan Manuel, 1282/1349.
Libro de enxemplos dei Conde Lucanor et de Patronio; Libro de
1) Rutebeuf, t 1230. íos EBtaãos. Edições por H. Knust, Leipzig, 1909, e por E. Juliá,
Madrid, 1933,
Edição por A. Jubinal, 3 vol*., Paris, 1874/187S. A. Jiménez Soler: Don Juan Manuel. Biografia y estúdio cri-
L. Clédat: Rutebeuf. Paris, 1891.
tico. Madrid, s. d,
310 OTTO MARIA CAUPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL ,11]

neira de empregar o conto como apólogo para explicar vezes refundido e traduzido para todas as línguas; fazia
teses morais. Mas o Infante é cristão, e cristão medieval. parte da ciência zoológica de ura Alberto Magno e um Vin-
A sua moral é a de um aristocrata espanhol do século X I I I , centius de Beauvais. Também era considerado digno de am-
e o seu estilo seco e direto lembra o estilo dos pequenos pla divulgação porque permitiu mais outra interpretação
contos de Heródoto; como este, D . Juan Manuel incor- alegórica: a religiosa. O pelicano é também símbolo do
porou muitos enredos à memória comum da humanidade. Cristo, que dá o sangue para redimir o gênero humano. O
O Infante pode não ser poeta. Mas é um dos primeiros Physiologus existe em francês, inglês, alemão, islandes e
grandes escritores de língua castelhana. outras línguas, e a sua grande divulgação entre o povo con-
Desse mesmo tesouro comum tiram-se os assuntos dos tribuiu para uma nova transformação: da interpretação re-
fabJiaux (''): pequenos contos em versos, cheios de ale- ligiosa em interpretação moral: os animais representando
gria e verve francesa, representando o lado cômico da tipos e caracteres humanos. Enfim, o Physiologus virou
vida burguesa, particularmente da vida conjugai. Não pa- espelho zoológico do mundo medieval inteiro, com todas
recem conter intenção satírica; mas as misérias do marido as suas hierarquias religiosas e sociais. A humanização
enganado e as astúcias da mulher infiel já têm semelhança alegórica do mundo animal foi facilitada pelos resíduos do
suspeita com uma paródia da arte amatória provençal. paganismo germânico, ao qual a familiaridade íntima entre
gente e bichos não era alheia. As alegorias dos zoólogos
A "sátira zoológica" também tem uma pré-história com-
eruditos vivificaram-se de maneira inesperada, rebelando-
plicada (*). Ao longe estão os contos indianos do Pantcha-
se contra o poder arbitrário do leão, contra a força brutal
tantra. Depois, a fábula latina de Fedro, transmitida atra-
e imbecil do urso, e elogiando a astúcia inteligente da ra-
vés de fabulistas obscuros da decadência latina, como Avia-
posa; mas sem simpatia para com as desgraças do burro,
no e Rômulo C^). Essas fábulas já revelam a influência
porque os alegoristas — homens da cidade — não sentiam
do Physiologus (*), outro livro obscuro da decadência da
cora o camponês. Os animais chegam, deste modo, a re-
Antigüidade, no qual as qualidades de animais reais ou fa-
presentar as classes da sociedade. A sátira moralista trans-
bulosos são interpretadas como símbolos de atitudes éti-
forma-se em sátira social. Lembra a origem oposicionista
cas e verdades filosóficas: o pelicano que sacrifica o pró-
da fábula do escravo Fedro.
prio sangue para alimentar os filhos é uma dessas inven-
ções do Physiologus que sobrevivem nas crenças folcló- Quem criou o romance de Renart foi um goliardo ho-
ricas. Durante a Idade Média, o Physiologus foi várias landês: o magister Nivardus de Gent. O seu Ysengrinus
(^), escrito em latim, reflete o espirito oposicionista dos
3) Edição; A. de Montaiglon et G. Raynaud; Recueü general et "clerici vagantes"; obra da "Intelligentzia" daquela época.
complet ães fabliaux des XlIIe. et XlVe. siècles. 6 vols. Paris, Ura pobre monge alemão, Heinrich der Glichezaere, que
1872/1890. íèz desta obra, por volta de 1180, a primeira versão em lín-
J. Bédier: Les Fabliaux. Êtude ãe littérature populaire et ii'hls-
toire UlteTãire ãu Moyen Age. 4.^ ed. Paris, 1B25, gua vulgar (Ysengrines Not), não soube fazer mais do que
4) L. Sudre: Les soiaces du roman ãe Renart. Paris, 1892.
5) L. Hcrvieux: Les fabuUstes latins ãepuis le siècle ã'Auguste
nisqu'à Ia jin ãu Moyen Áge. 2," ed. 5 vols. Paris, 1893/Í899. 7) Nivardus, c. 1150.
0) F. Laucliert: Geschichte ães Physiologus. Strasbourg, 1890. Y&engrinus, editado por E. Voigt, Halle, 1884,
L, Willems: Étude sur l'ysengrinus. Gent, 1895.
312 ()TT<i MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITBBATUBA OCIDENTAL ;U3

vulgarizar o assunto. A forma definitiva deram-lha os E n t r e as versões em outras línguas, a inglesa — The
franceses, no Roman de Renart (*). É uma obra coletiva, Fox and the WoJí — é de extrema violência satírica. É
doB séculos X I I e XIII, meio anônima; os nomes, ainda muito mais domesticada a versão alemã, ou antes, em dia-
conservados, de alguns colaboradores — Pierre de Saint- leto baixo-alemão, o Reynke de Fos(^*'); se este é a tra-
Cloud, Kichard de Lison — não nos dizem nada. Mas eram, dução de uma obra do holandês Hinrik van Alkmar, ou
êles também, clérigos, e o romance deve-lhes a forma no- se é obra independente, redigida por Hermann Barkhu-
velística dos episódios e o esprit satírico. No fundo, não sen, que imprimiu o livro em 1498, é problema que ainda
é um romance e sim uma coleção de 27 contos, "branches", não foi possível resolver. Em todo o caso, é uma obra
na maior parte façanhas de Renart, que engana os outros de sabor popular que, por sua vez, foi traduzida para todas
animais, mais poderosos do que ele ou simplesmente im- as línguas e vive ainda como "volksbuch" e literatura in-
becis, de modo que a sátira se dirige igualmente contra a fantil: é este o fim habitual das grandes obras satíricas •—
aristocracia e o alto clero e, por outro lado, contra o cam- do Roman de Renart e de GuUiver' Traveis — quando os
ponês ingênuo. É a sátira de clérigos inteligentes e po- objetos da sátira desapareceram.
bres contra os podêres constituídos; às vezes, como na Falar da "epopéia zoológica", com os seus humorismes
"branche" Le coaronnement Renart, é quase uma sátira mordazes, e falar, imediatamente após, do maior santo da
revolucionária. Igreja e do movimento franciscano, parece — qualquer que
A elaboração do Roman de Renart levou dois séculos; seja a justificação do processo — pelo menos uma transi-
e nesse mesmo tempo situa-se a obra do poeta flamengo ção artificial, senão uma blasfêmia. Mas não é tanto assim.
Willem ("), do qual não sabemos mais do que o nome e Contra todas as aparências, o modo de pensar e sentir é
que foi um dos grandes satíricos da literatura universal. o mesmo na vivificação do mundo animal pelo pensamento
O seu Van den vos Reinaerde é menos violento e mais satírico, no Roman de Renart, e, por outro lado, pelo amor
poético do que a obra francesa. A sátira torna-se mais ar- a todas as criaturas de Deus, no Cântico delle Creature.
tística, os animais são caracterizados com maior precisão. Não é, de modo algum, panteísmo, mas uma espécie de pan-
Foi Willem quem criou a personagem de Renart, tão imor- vitalismo, que inclui os animais na hierarquia cósmica, ati-
tal como o são apenas as grandes criações da literatura uni- tude que se justifica, aqui e ali, pela interpretação alegó-
versal : a inteligência vencendo a força brutal. rica. Mas existem ainda outros motivos para a aproxima-
ção algo esquisita entre a "epopéia zoológica" e o francis-
canismo.
8) Roman de Renart. (Séculos XII e XIII.) Nos sermões e panfletos dos. reformadores eclesiásticos
Edições por E. Martin, 3 vols., Strasbourg, 1882/1887, e por P. do século X V I aparece constantemente a comparação da
Paris, 2." ed.. Paris, 1921.
L. Foulet: Le roman ãe Renart. Paris, 1914, Igreja Romana e do Papa com um monstro animal, ocupan-
9) Willem, c. 1250, do a Santa Sé. A metáfora, tomada do Apocal., X I I I , 1-3,
Van ãcn vos Reynaerde, edição por J. W. Muller, Gent, 1914. (2.*
cd., Leiden, 1939.) (Comentário critico por J. W Muller, 2 vols.,
Utrecht, 1917/1931.) 10) Reynke de Vos; edição por A. Leitzmann e K. Voretsck, 2." ed.,
H. Dageling: Van ãen vos Reynaerde. Muenster, 1910. Halle, 1925.
J. Viin Mierlo: In: Geschieãenis van de Letterkunãe der Neãer- R. Dohsa: Reinke de Vos unã die plattãeutsche Tierdichtung.
huiãcn, editado por F. Baur, Brussel, 1939. Vol. I, pág. 205 segs. Pardeim, 1919.
314 OTTO M/VUIA (JAUPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL :ÍI:

é familiar à Idade Média, aparecendo em Dante, Petrarca movimento oposicionista das cidades medievais; mas esse
e oulroH nulores de ortodoxia insuspeita, em momentos de movimento não é laicista, tem raízes profundas na religio-
grande iiritat;ão contra a política da Cúria romana, contra sidade medieval, abalada por experiências históricas.
a cori iitão da corte papal. Em um nível menos elevado, O universalismo não é um fenômeno medieval "sans
aparecem animais como símbolos da corrução do clero em phrase"; é o ideal da primeira Idade Média, dos séculos
geral, até em esculturas satíricas, dentro das próprias ca- X e XI, e já no século XI revela sintomas de decadência.
tedrais; e ali intervém as personagens do Roman de Renart. Quem o atacou e afinal rompeu, foi o próprio Papa, O
No coro da catedral de Amiens, Renart faz um sermão às universalismo ocidental baseava-se na aliança entre o Papa
galinhas; na igreja de Berverley, na Inglaterra, Renart e o rei dos francos, substituindo o cesaropapismo bizantino.
aparece disfarçado em monge; na catedral de Samora, na A coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão I I I , durante
Espanha, Renart está, outra vez, no púlpito, diante de um a missa de Natal do ano de 800, na basílica de São Pedro,
auditório de galinhas. Todas essas esculturas são, aliás, confirmou a aliança. Mas quando o Papa, primeiramente
obras de artistas flamengos, da terra de Renart; reprodu- Nicolau I, depois Gregório V I I , exigiu a soberania acima
ziram a mesma cena também na igreja de Saint-Pierre, em do imperador, destruiu o equilíbrio já ameaçado pela tenta-
Louvain (^'). A presença dessas obras nas igrejas e a si- tiva inversa dos três imperadores de nome Oto que, insti-
tuação social dos autores da "epopéia zoológica" permitem gados pelos cluniacenses, pretendiam "salvar" o Papado. A
afirmar: trata-se de "anticlericalismo" de clérigos, assim primeira conseqüência da destruição do equilíbrio foi a luta
como no caso dos goliardos. Por isso, não é possível in- entre o Papa e o imperador em torno da investidura dos
terpretar o anticlericalismo medieval como movimento bispos. Depois, vieram a oposição da consciência nacional
laicista. As interpretações modernas de fenômenos medie- francesa contra o imperialismo político e eclesiástico e o
vais estão cheias de anacronismo dessa espécie. O cha- estabelecimento do Estado leigo dos normandos na Sicília.
mado "racionalismo" de Abelardo tem pouco de comum Essas experiências históricas modificaram radicalmente a
com os racionalismos modernos. Os aspectos exteriores, filosofia medieval na história.
e até os efeitos práticos, podem apresentar analogias; mo-
tivos e mentalidades são diferentes. Os liberais italianos Até o começo do século X I I I , a filosofia da história
do século X I X celebraram a memória de Arnaldo da Bres- baseava-se em S. Agostinho: sucessora da "Civitas terre-
cia, precursor do seu próprio patriotismo antipapal. Ar- na" do paganismo é a "Civitas Dei", a Igreja, até a consu-
naldo, aliás discípulo de Abelardo, era, êle próprio, clé- mação dos séculos. S. Agostinho criara essa teoria no mo-
rigo, e o seu fim não era a abolição do poder temporal do mento histórico em que a autoridade do Império romano
Papado, mas de condomínio do Papa e da "comune" de agonizava ou já havia desapai-ecido. Quando, porém, os
Roma no governo da cidade; o seu fim não era a unificação "gesta Dei per Francos" restabeleceram o Império, criou-
da Itália, mas o estabelecimento de "comuni" livres tam- se, dentro do conceito agostiniano, uma antinomia entre
bém nas outras cidades italianas. Arnaldo faz parte do Igreja e Império, que pretendiam, ambos, representar a
"Civitas Dei", Por volta de 1000, os cristãos esperavam o
Fim apocalíptico do mundo. Mas o Papado venceu, e então
11) I.,. Maeterlinck: Le geme satirigue, fantastique et licencieux surgiu outra dificuldade: a "Ecclesia triumphans" já não
tliins Ia sculpture flamande et wallonne. Paris, 1910. permitia pensar no próximo Fim do Mundo, porque não
HISTÓRIA DA LITEBATUBA OCIDENTAL 317
316 Ono MAIIIA CAHPEAUX

titui o Império pela própria Igreja; parece voltar ao puro


pensava em demissão depois da vitória. Essas dificuldades
conceito agostiniano. Realmente, as idéias agostinianas de
destruíram o universalismo medieval. Mas o caminho da
política religiosa — Pax, Ordo, Justitia — tornaram-se,
dissolução não foi aquele que a historiografia do século
em Johannes de Salisbury, diretrizes de diplomacia ecle-
X I X itna^nnou; não foi um progresso racionalista, come-
siástica. E n t r e Igreja e Estado já não é possível a aliança.
çando com as angústias apocalípticas do ano 1000 e termi-
A vítima do conflito é o próprio patrão de Johannes, o
nando provisoriamente no "laicismo" de Johannes de Sa-
arcebispo Thomas Becket de Canterbury, assassinado ao
lisburg, precursor do "laicismo" renascentista. Na verdade,
pé do altar pelos cavaleiros do rei da Inglaterra. A obser-
a evolução tomou o caminho inverso, do "laicismo" político
vadores menos frios do que Johannes de Salisbury, esse
para a profecia apocalíptica ('^).
acontecimento pareteu anunciar o fim do mundo — do
O representante do universalismo na historiografia me-
mundo medieval — e do seu universalismo político-reli-
dieval é Oto de Freising ('•'): pela grande visão filosó-
gioso, poderíamos acrescentar.
fica da história, é superior ao empirista Matthaeus Paris
Havia só um meio para sair de um pessimismo deses-
e ao anedótico Fra Salimbene. É o maior dos historiado-
res medievais, também pela cultura clássica. ". . . . de dua- perado: esperar um outro Império — ou uma outra Igreja.
bus civitatibus" está no título da sua obra principal: Oto Neste sentido, o historiador Anselmo, bispo de Havelberg
pretende continuar o Ue Civitate Dei, de S. Agostinho. e conselheiro do imperador Frederico Barbarroxa, quebra
Mas agora, a "Civitas Dei" compõe-se de duas "civitates": o esquema agostiniano da história universal. Três são as
Igreja e Império. Oto, alemão e parente da família im- "civitates": a do Pai ou do Velho Testamento; a do Filho
perial dos Staufens, toma o partido dos imperadores; o bis- ou da Igreja atual, a nossa própria época, que terminará
po de Freising cria uma filosofia da história do Império. com acontecimentos epocalípticos; e, enfim, a do Espírito
Mas os acontecimentos históricos parecem pronunciar-se Santo, que criará nova Igreja, sem política eclesiástica. An-
contra o "Sacrum Imperium", e ao bispo angustiado, refu- selmo introduziu no seu credo histórico a idéia do pro-
giado num convento, ocorrem pressentimentos apocalípti- gresso, incompatível com o conceito católico da Igreja. Só
cos de Fim do Mundo. sectários podiam desenvolver a idéia de um terceiro reino,
Fora do Império, tiraram-se conclusões menos pessi- de uma nova Igreja puramente espiritual, que não poderia
mistas. O beneditino Ordericus Vitalis, anglo-normando, nascer antes de ser derrubada a Igreja visível do Papa,
nega importância ao Império, mas só para substituí-lo, em Roma. Sectário era Giovanni dei Gioachini, ou Joa-
na sua função de escudo da Igreja, pelo Estado normando. quim de Flores (c. 1132-1202), o eremita calabrês, autor
E Johannes de Salisbury, na sua Historia pontificalis, subs- do Liber concordiae Novi ac Veteris Testamenti e da Ex-
positio in Apocalypsin, profeta do "Evangelium Aeternum"
e da Igreja do Espirito. As autoridades eclesiásticas me-
12) A. Dempf: Sacrum Im-perium. Geschichts und Staatsphüosophie
des Mittelalters und der politischen Eenaissance. Muencheti, 1929. dievais, muito mais tolerantes do que se pensa, puderam
13) Otto von Freising, c. 1114-1158, conseguir um modus vivendi com o profeta; mais tarde, êle
Chronicon sive historia de duabus civitatibus. Edição por A. seria queimado. Dante ("Paraíso", X I I , 140) colocou-o en-
Holmeister (Monum. Germ. Hist,, Script. rer. Germ., XX), 3.»
ed., Hannover, 1912. tre os beatos do Paraíso. Pois então, no começo do século
J, Sclimidlin; Die Geschichtsphilosophie unã kirchenpolifische X I V , a sua profecia já parecia meio realizada em um
WcUanscliaming Ottos von Freising. Freiburg, 1906.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL :ii9
31B Oiro MAIIIA (".MUMÍAUX
dei Frate Sole coro celeste, A poesia, em sentido pura-
grande movinunto de amor místico, renovando a Igreja:
mente humano, do santo de Assis, encontra-se na memória
o írancis<;misnio. que êle deixou na mente dos seus primeiros discípulos, nos
S. í'r;iiicisco de Assis (''') foi um dos grandes gênios preciosos Fioretti di S. Francesco C^), que um frade anô-
relif^iosoK da Humanidade. Também figura nos manuais nimo traduziu do original latino de Ugolino de Montegior-
da história literária, porque escreveu, ou antes (segundo a gio. O santo também inspirou a poesia franciscana, ver-
lenda), ditou um poema, uma das efusões mais profundas dadeira renovação da "poesia litúrgica ('"), poesia riquíssi-
da alma humanai o Cântico dei Frate Sole. Essa paráfrase ma, da qual a maior parte caiu em olvido injusto, como o
— seqüência em prosa ritmada — do salmo 148 é, em pou- admirável hino Pbilomena, do franciscano inglês John
cas linhas, um poema universal, a epopéia do cosmo cris- Peckham (f 1292), arcebispo de Canterbury C''); nesse
tão, condensada numa poesia lírica: hino, o rouxinol que canta e morre é identificado com a
alma que reza e se consome na nostalgia do céu; Peckham,
"Laudato si, mi Signore, cum tucte le tue creature,
continuando, como no Cântico dei Frate Sole, a ani-
spetialmente messor Io frate sole";
mar as criaturas pelo entusiasmo religioso, chega a uma ale-
e assim, o santo continua a santificar todas as criações de goria que lembra estranhamente a personificação de quali-
Deus: "sora luna e le stelle", "frate vento", "sor'acqua", dades humanas em animais na "epopéia zoológica",
"frate focu", "sora nostra matre terra", e, enfim, "sora nos- O entusiasmo de primeira hora não sobreviveu muito
tra morte corporale". Não existe poema mais universal. ao santo; ficou a angústia profunda, na qual a religiosi-
Mas não pretende exaltar o Universo, e sim chamá-lo à dade dos pobres do povo e dos pobres do santo se encon-
adoração. Francisco é um santo, é humilde. No dialeto traram. Aconteceu, assim, que o Dies irae, de Fr. Thomas
humilde da sua terra de Umbria conclui: de Celano ('^''^), entrou na liturgia do serviço de defun-
tos e alcançou popularidade imensa, coisa rara, quan-
"Laudate et benedicete mi Signore, e rengratiate, do se trata, como no caso, de um dos maiores poemas da
e serviteli cum grande humilitate." literatura universal. Basta citar a reza litúrgica que cons-
tituiu o germe do poema ("Libera me, Domine, de morte
Mas é esse poema de S. Francisco um poema? Não
aeterna, in die illa tremenda"), para sentir a nova força
será, antes, uma oração? Esse problema de crítica continua
muito discutido na Itália. Preferimos chamar ao Cântico
15) Edições por Fr. Sarri, Fircnzi, 192e, c por F. Casolini, Milano,
192(5.
14) Francesco d'Assisi, 1181-1226. 16) L. Suchet: La poesia litúrgica íranciscavxt nel secolo XIIÍ. Roma,
Edição tíe S. Francisci Asslsiensis Opuscula, Qiiaracchi pr. Fi- 1914.
rcnze, 1904. Texto crítico do Cântico ãel sole in: E. Monaci: 17) D. L. Douie: Archhishop Peckham. Oxford, 1952.
Crestoviüzia italiana dei primi secoli. Cittá ãi Castello, 1912. 17A) Thomas de Celano, c. 1200 - c. 1260 ou 1270.
A. Rossi: II cântico ãel sole in q-d^ttro ãiverse lesioni. Foligno,
1S82, Autor da Vita prima úo santo, e dos hinos JJies irae, Fregit vic-
A. Griüctti: "II cântico dei sole". (In; Nuova Antologia, novem- tor e Sancütas nova.
bro, 1926.) F. Ermini; II Dies irae e linnologia ascética nel secolo deci-
L. F. Benedetto: II Cântico dl Frate Sole. Firenze, 1941. moterso: siuãi sulle letteratura latina ãel Meãio evo. Roma,
A. PaEliaro: "II Cântico dei Frate Sole". (In: Quaãemi di Roma, 1903.
1, 1947J B. Croce; Poesia antica e moderna. Bari, 1943.
/ T

320 OTTO MARIA CARPEAUX HiSTÓRiA DA LITERATURA OCIDENTAL 321

poética que Thomas de Celano conseguiu insuflar àquelas lência ascética no sentimento algo sentimental do seu fa-
palavras: moso hino latino Stabat matei dolorosa, e a sua resistência
contra o Papa Bonifácio V I I I não foi mais herética do que
"Dies irae, dies illa a de Dante. Chama à "Povertà, alto sapere", como qualquer
Solvet saeclum in favilla";
franciscano, e a sua biografia ("O vita fallace do' m'hai
para sentir o "frisson nouveau" na lógica tremenda da se- menato — e co m'hai pagato") — a conversão repentina,
qüência das expressões: o "judex" que chega para "cuncta quando se descobriu o cilício no corpo de sua noiva, morta
stricte discussurus", a "tuba" que abre os "sepulcra regio- num acidente — basta para explicar o ascetisrao sombrio
num" o "liber scriptus" que inspira pavor ao monge ile- dos versos:
trado, o desespero do "quid sum miser tunc dicturus", e
"Quando t'allegri, uomo de altura,
o "flammis acribus addictis" em que ao desespero se acres-
Vá, pone mente alia sepultura!"
centa o temor. E basta comparar a melodia suplicante do
As Laude de Jacopone constituem a obra principal da poe-
"Rex tremendae majestatis,
sia franciscana. Não são, como se acreditava, gritos inar-
Qui salvandos salvas grátis
ticulados de um homem do povo, mas poesia elaborada de
Salva me, fons pietatis"
um burguês que adquiriu, para a salvação da sua alma, cul-
com os inesperados versos brancos do fim — tura teológica. Mas todos os lamentos apaixonados e as
enumerações terríveis de doenças e desgraças, escolàsti-
"Huic ergo parce, D e u s : camente classificadas, dissolvem-se, afinal, na manifesta-
Pie Jesu Domine, ção da "angélica natura" desse grande poeta franciscano;
Dona eis requiem. Amem." —
"Clama Ia lengua e '1 core:
para saber que estamos em presença da expressão poética
Amore, amore, amoret"
do verdadeiro "numen". Talvez por isso Benedetto Croce
chegasse a negar ao Dies irae a qualidade de poema. Jacopone da Todi, que os séculos esqueceram, é hoje reco-
A f ^ a da poesia franciscana atribui-se, em parte, à nhecido como ura dos grandes poetas de língua italiana,
i n f l u ê n X do movimento ascético dos "flagellatori" que de estranha modernidade.
p e r t u r í i r a m então as cidades italianas. Fala-se também da Seria simplismo imperdoável chamar "ascético" ao mo-
i n f l J n c i a dos "flagellatori" ou dos joaquimitas na poe- vimento franciscano. A angústia dos poetas franciscanos
s i a , | e Jacopone da Todi (»«). Mas não se encontra vio- faz parte de uma emoção mais ampla, que é, em parte, bem
medieval, e, por outro lado, nova e até revolucionária. É
18) Jacopone da Todi, c. 1230-1306. como um grande "abrir-se" da alma, motivo pelo qual um
Laude. Jacopone resolveu, enfim, exprimir-se na língua materna,
Edição por G. Ferri, 2." ed., Bari, 1915. a única na qual êle pôde dizer tudo e ser compreendido pe-
N. Sapegno: frate Jacopone. Torino, 1926,
K Russo: "Jacopone da Todi, mistieo-poeta". (In; Studi sul une los humildes. No franciscanismo, a alma cristã se abre a
e Trecento. Roma, 1946.) Deus e ao povo, e também ao mundo. Um ensaísta lembrou.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 323
322 OTTO MARIA CABPEAUX

alguma, precursores da Reforma. Mas dentro da ordem


a propósito do franciscanismo, o famoso mural do Trion-
medieval — da ordem eclesiástica e da ordem social —
fo delia Morte no cemitério de Pisa: não há assunto mais
representavam uma oposição, aliando-se às outras oposi-
angustioso do que esse triunfo da morte sobre todas as
ções, e acabando, enfim, numa verdadeira revolução, se
criaturas, e não há exortação mais ascética do que a justa-
bem que revolução medieval, revolução religiosa. Aquela
posição violenta de cavaleiros alegres e caixões abertos.
parte da ordem de S. Francisco que não se conformou
Mas em outra parte do imenso quadro os ereraitas saem
com certas mitigações da regra — os "spirituales" — jun-
das suas cavernas, indo ao encontro do sol. O movimento
tou-se ao movimento entusiástico e apocalíptico dos joa-
franciscano apresenta o mesmo quadro. O próprio santo
quimitas; pretenderam, assim, acabar com a profanação do
"saiu" e mandou aos seus discípulos que saíssem. A mis-
Papado pela política e apressar o advento da Igreja espi-
são franciscana chegou, com Giovanni dei Pian dei Carpine,
ritual, do terceiro e último Reino da história. O movimen-
a Astracã, com Guillaume de Rubruquis, à Mongólia; com
to dos "spirituales", quase esquecido pelos historiadores
Giovanni de Montecorvino, à í n d i a ; com Odorico da Por-
católicos, não suficientemente apreciado pelos historiado-
denone, à China: preparando ou seguindo os caminhos de
res protestantes, e nunca bem compreendido pelos histo-
Marco Polo, abrindo o mundo. Abrindo também o mundo
riadores laicistas, é de importância capital, de importância
da expressão artística. O nascimento da pintura italiana
tão grande para a derrota final da "Idade Média" como o
está intimamente ligado ao franciscanismo: o retrato do
é o franciscanismo ortodoxo para os começos da Renas-
santo, no Sacro Speco, em Subiaco, é o primeiro retrato da
cença (^'^). Baseando-se em idéias universalistas e apoca-
pintura moderna; Cimabue trabalhava na igreja superior,
lípticas de uma época já passada, os "spirituales" fizeram
em Assis; Giotto é propriamente o pintor do francisca-
uma revolução de alcance e violência inéditas, e essa am-
nismo; o chamado "realismo gótico" dos Pisani é o fran-
bigüidade os fêz falhar: Petrus Olivi, o grande erudito,
ciscanismo desses grandes mestres da Renascença das ar-
o mestre de Dante, acabou herético; Ubertino da Casale,
tes plásticas, e já há muito tempo a arte franciscana é con-
o grande místico, perdeu-se em visões fantásticas; Fra Dol-
siderada como o verdadeiro começo da Renascença (^®).
cino, que era considerado como outro Francisco, acabou
Nessa compreensão baseia-se uma série de teorias, de gran-
mártir. A reforma espiritualista malogrou-se. Mas os ven-
de importância para a historiografia literária: o recuo da
cidos vingaram-se. Juntaram-se às oposições nas cidades,
cronologia do "Rinascimento", a descoberta das renascen-
excitando uma religiosidade popular que era, no fundo, re-
ças medievais, a destruição do conceito "Idade Média".
volução social. Os teólogos, adeptos ou suspeitos do "es-
Daí a tentação de interpretar o franciscanismo como
piritualismo", abraçaram a filosofia nominalista, atacaram
movimento revolucionário, idéia que já se exprime no su-
os próprios fundamentos lógicos da escolástica ortodoxa,
fixo ismo. Mas se o franciscanismo era revolucionário,
criaram uma nova astronomia, uma nova física, uma nova
era-o em sentido medieval. O santo e os seus discípulos
eram de uma ortodoxia impecável; não eram, de maneira
20) F. Eherle S. J.: "Die Splrltualen, ihr Verhaeltnls zum Franzis-
kanerorden und zu den Fraticellen". (In; Archiv juer Literatur
19) H. Thode: Frans von Assisi und ãie Anfaenge der Kunst der R«- und Kirch^ngeschichte des Míttelalters, t. I, fase. IV, 1885.)
naissance in Italien. Berlin, 1885. E, Benz: Ecclesia spiritualis, Kircheniãee und Geschichtstheo-
L. Courajod: "Les véritables origines de Ia Renaissance". íGazettt logie der Franziskanischen Reformation. Stuttgart, 1934.
ães Beaux-Arts. 1889, I.)
32i OTTO M A R I A CARPEAUX

economia política e — aliando-se a imperadores e reis con-


tra o Papado — a nova teoria da soberania do Estado leigo;
8 sanção pela Igreja, substituíram-na pela soberania do
povo. É o fira do universalismo medieval. Dante já era
passadista.

Í N D I C E D O VOÍATME 1

Prefácio 13
Introdução 15

PARTE I

A HERANÇA
Capitulo I
A Literatura Grega 51
Capitulo II
O Mundo Romano 107
Capitulo III
História do Humanismo e das Renascenças 155
Capitulo IV
O Cristianismo e o Mundo 199

PARTE II

O MUNDO CRISTÃO
Capítulo I
A Fundação da Europa 223
Capítulo II
Universidade Estadual de Maringí O Universalismo Cristão 257
Sistema de Bibliolecas - BCE
Capitulo III
A Literatura dos Castelos e das Aldeias 281
Capitulo IV
Oposição, Burguesa e Eclesiástica 307

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