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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

Yes because he never did a thing like that before as ask to get
his breakfast in bed with a couple of eggs since the City Arms
hotel when he used to be pretending to be laid up
18
julho
2009
with a sick voice doing his highness to
ano II
make himself interesting for
that old faggot Mrs ficina

Riordan

fluxo.de.consciência
a.literatura.dentro.da.mente
SAMIZDAT 18
julho de 2009

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral O século XX representou a libertação para a Literatu-


Léo Borges ra. Desde há muito, principalmente desde a “Poética” de
­Aristóteles, a escrita literária era constrangida a obedecer
vários princípios formais e estéticos.
Assessoria de Imprensa
Obviamente que sempre houve inovações e rupturas, tais
Mariana Valle como a utilização das línguas vulgares e da prosa, durante
a Idade Média e o Renascimento, ou como a febre realista
Autores durante a Modernidade; mas poucos momentos históricos
Barbara Duffles foram tão devastadores quanto a contemporaneidade.
Caio Rudá A crise da racionalidade mostrou o homem como frag-
mentário, finito e incompleto; na Literatura, esta nova visão
Carlos Alberto Barros
se manifestou de maneira bastante evidente através da téc-
Dênis Moura nica narrativa conhecida como “fluxo de consciência”, cuja
Giselle Natsu Sato pretensão era representar o caos da mente humana.
Guilherme Rodrigues Alguns autores da SAMIZDAT toparam o desafio de uti-
Henry Alfred Bugalho lizar esta técnica nesta edição, em homenagem aos grandes
autores contemporâneos que romperam com vários grilhões
Joaquim Bispo
formais da Literatura.
José Espírito Santo
Também passamos a contar com a participação da escrito-
Jú Blasina ra Jú Blasina, que, junto com Volmar Camargo Junior, desen-
Léo Borges volveu uma forma própria de expressão poética.
Marcia Szajnbok
Mariana Valle Henry Alfred Bugalho
Maristela Scheuer Deves
Volmar Camargo Junior

Autores Convidados
Miguel Castro
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
Textos de: a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Clarice Lispector Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
James Joyce free ou sob licença Creative Commons.
Os textos publicados são de domínio público, com consenso
Imagem da capa: ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-
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raggle/3071219631/sizes/l/ Copyright dos EUA (§107-112).
As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
www.revistasamizdat.com autores.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

COMUNICADO
SAMIZDAT Especial de Mistério e Suspense 8

ENTREVISTA
Goulart Gomes, o criador do Poetrix 10

MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho 14

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Quando Nietzsche chorou, de Irvin D.
Yalom 16
Henry Alfred Bugalho

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


Uma Galinha 18
Clarice Lispector

CONTOS
Boa noite, minha princesa. Te amo! 22
Carlos Alberto Barros

O Primeiro Passo 26
Joaquim Bispo
O Lobo Vermelho (primeira parte) 28
Volmar Camargo Junior

7/8 em 1/4 32
Jú Blasina

Janela pra rua 36


Henry Alfred Bugalho
Prisioneiro em si 36
Léo Borges
Camuflagem 42
Marcia Szajnbok
O dia em que o farsante encarou o
espelho 44
Barbara Duffles
O Admirador - Parte 4: Rostos 46
Maristela Deves
Parceiros 48
Giselle Sato

Autor Convidado
O dito sexo e a tal cidade 52
Miguel Castro

TRADUÇÃO
Eveline 54
James Joyce

TEORIA LITERÁRIA
Fluxo de consciência, a literatura dentro
da mente 61
Henry Alfred Bugalho
Algumas pistas para escrever mistérios 66
Maristela Scheuer Deves

A poética do poema Blavino 72


Volmar Camargo Junior

CRÔNICA
Um monte de papel 75
Volmar Camargo Junior

Obama matou a mosca 76


Maristela Scheuer Deves

Crônica de uma cidade adormecida 78


Caio Rudá de Oliveira
O que você quer ser quando
crescer? 80
Henry Alfred Bugalho

POESIA
Dois blavinos 82
José Espírito Santo
Desencanto 83
José Espírito Santo
Laboratório Poético: o Poema Blavino 84
Volmar Camargo Junior
Poemas 86
Mariana Valle
O Lago 88
Guilherme Augusto Rodrigues
Fale Frei Cappio, fale a vida 90
Dênis Moura

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 91


Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

www.revistasamizdat.com 7
Comunicado

SAMIZDAT Especial
Mistério e Suspense
http://www.flickr.com/photos/ericmorse/454379200/sizes/l/

8 SAMIZDAT julho de 2009


8
Estamos preparan- 5 - Por se tratar duma
do a quinta edição do obra de divulgação, não
­SAMIZDAT Especial, serão pagos direitos
contemplando o gênero autorais. A publicação e
Mistério e Suspense. a distribuição do E-Zine
não acarretará, tampouco,
1 - Todos os colabora- em custos para os autores
dores fixos do E-Zine po- participantes.
dem participar e sugerir
autores colaboradores; 6 - O SAMIZDAT Espe-
cial - Mistério e Suspen-
2 - Também serão se será publicado durante
aceitos textos enviado vo- o mês de setembro no
luntariamente por autores blog, e na edição em
externos, para as seguin- .PDF em 1 de outubro.
tes seções do E-Zine: Por isto, solicita-se aos
autores interessados que
a - Resenha de Livros; entrem em contato até o
final de agosto, através do
b - Teoria Literária ou e-mail
de Mistério e Suspense;

c - Autor convidado
(prosa ou poesia); revistasamizdat@hotmail.com

d - Traduções;

e - Crônicas; Indicando, no assunto


do e-mail, SAMIZDAT
3 - Serão seleciona- Especial 5, e em qual se-
dos, ao todo, entre 3 e ção o texto se enquadra
5 textos para cada uma (ver item 2).
das seções acima, mas a
edição do E-Zine possui o
direito de selecionar mais
ou menos obras.

4 - Não há limites Abraços a todos,


de palavras, mas como
se trata duma publica- Equipe da SAMIZDAT
ção voltada para o meio
digital, solicita-se que www.revistasamizdat.com
não sejam enviados tex-
tos mais extensos do que
umas 2500 palavras.

www.revistasamizdat.com 9
Entrevista

Goulart Gomes
o criador do POETRIX
Goulart Gomes nasceu em
­Salvador da Bahia, em 1 de maio
de 1965. Administrador de Em-
presas, concluiu pós-graduação
em Literatura Brasileira (UC-
SAL) e em Gestão de Comunica-
ção Integrada (ESPM-RJ). Atua
na área de Comunicação Empre-
sarial. Espiritualista e pesquisa-
dor de ficção científica. Fundador
do Grupo Cultural Pórtico (1995)
e criador da linguagem poéti-
ca Poetrix (1999). Obteve 65
prêmios em concursos de poesia,

foto: Gustavo Rosario


prosa e festivais de música e par-
ticipou de 48 coletâneas publi-
cadas no Brasil, Cuba, Espanha,
USA, Itália, França e Coréia do
Sul e tem trabalhos divulgados
Trix, Poemetos Tropi-kais (1999) Os tercetos do Poetrix
em vários outros países. Atual-
e Minimal, dos males o menor nos remetem, imedia-
mente é o Coordenador Geral tamente, ao Haikai. Em
(2007), poetrix; a peça teatral A
do Movimento Internacional que momento surgiu
Greve Geral (1997), o cordel A a decisão de romper
Poetrix. Como editor alterna-
Divina Comédia (1989); Todo com a métrica e com a
tivo propiciou a publicação de temática deste gênero
Tipo de Gente, contos (2003),
53 livros e coletâneas de novos poético e inaugurar o
Matrix Revelations – Tudo o que Poetrix?
autores.
Você Queria Saber sobre o Fil- Goulart Gomes - No
Publicou: Anda Luz (1987), me, ensaio (2005) e Deixando de exato mofile:///C:/Users/
Todo Desejo (1990), Sob a Pele Existir, ficção científica (2009). henrybugalho/AppData/Lo-
(1994), LinguaJá, o Território cal/Temp/InDesign%20Sni-
Homepages: www.goulartgomes. ppets/Snippet_3004DC21E.
Inimigo (2000), Esfinge Lunar e
com e www.movimentopoetrix. indsmento em que des-
Outros Enigmas (2001), poesias; cobri que os tercetos que
com

10 SAMIZDAT julho de 2009


10
eu escrevia – assim como rápido, dinâmico, objeti- ves - como a crônica e
vários outros poetas – não vo, fugaz, conciso. E essas o conto, por exemplo
eram haikais. Isso se deu também são característi- - costumam sofrer de
quando eu estava prestes cas do Poetrix. Alguém desconfiança por parte
a publicar meu livro TRIX já chamou o Poetrix de dos leitores e editoras,
POEMETOS TROPI-KAIS, Poeminha da Internet. por causa da aparente
em 1999, e conversei Esse slogan, que pareceria facilidade em escrevê-
virtualmente com o po- algo pejorativo, acabou los. Você percebe algum
eta Aníbal Beça, de Ma- provando o inverso: que o tipo de rejeição deste
naus. Ele me fez ver que Poetrix é a linguagem po- tipo em relação ao poe-
o haikai tem uma outra ética adequada para essa trix?
proposta, um outro nível nova mídia. A Internet é GG - Evidentemente. É
de exigência, que eu não como o mundo: está cheia um fato que é mais fácil
percebia. Existem vários de coisas maravilhosas errar em três linhas que
entendimentos sobre a e outras banais. Ela está em 3.000, mas também
feitura do haikai. Eu alio- propiciando um surgi- é bem mais difícil acer-
me àqueles que são con- mento de uma legião de tar. Executar um poetrix
siderados ortodoxos, que novos escritores. Os que perfeito, com um mínimo
entendem que o haikai, são verdadeiramente bons de palavras e um máximo
em nosso idioma, deve ter ficarão para a posteridade. de concisão e conteúdo
17 sílabas, distribuídas É preciso distinguirmos a é um desafio. Acredito
em três estrofes, com 5, Brevidade da Banalidade. que a rejeição maior seja
7 e 5 sílabas, respectiva- dos críticos, que admiram
mente, sem título, além de mais uma Epopéia ou
possuir o “kigo”, que é a A legião de escritores
que têm surgido na In- uma Trilogia que as for-
imagem ou emoção cor- mas breves. Assim como
relata às estações do ano. ternet não torna a litera-
tura ainda mais efêmera nas corridas existem os
Sem isso, não é um haikai. atletas que se especiali-
O poetrix é mais “flexível”, do que ela já havia se
tornado na modernida- zam em provas curtas ou
com um máximo de 30 sí- longas, também na litera-
labas distribuídas à vonta- de?
tura existem os autores da
de nas três estrofes, título GG - Não há como se concisão e os autores da
sem limite de sílabas e falar em efemeridade na verbosidade. E ninguém
temática livre. Em verdade literatura com milhares diz que a Maratona é mais
ele está mais próximo do de livros sendo publicados importante que os 100
Sijô coreano que do haikai todos os anos. Os grandes metros rasos ou que as
japonês. Os três são as escritores continuam nos pequenas telas de Vermeer
grandes formas de tercetos brindando com obras sen- valem menos que os pai-
existentes, cada um em sacionais e novos surgem néis de Diego Rivera. Em
seu lugar, com seus objeti- a cada dia. As vendas de cada uma dessas ativida-
vos, leitores e praticantes. livros pela Internet cres- des é preciso ter a com-
cem a cada dia, as editoras petência, o dom, a habili-
de grande porte faturam dade própria, nem melhor
O poetrix foi acolhido cada vez mais. A Internet
com entusiasmo pelos nem pior que a outra.
está apenas mostrando Estou organizando o Proje-
internautas. Como você tudo que há, de bom e de
percebe a relação entre to 1001 Poetrix e, uma vez
ruim. Cabe ao leitor sepa- concluído, poderei testar,
internet e escrita em rar o joio do trigo.
nossos dias? verdadeiramente, o grau
de rejeição das editoras ao
GG - A Internet é a Meca Poetrix. Vamos ver...
da Brevidade. Tudo ali é Todo os gêneros bre-

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três linhas. Na Antologia de literatura, do trabalho
O que é necessário para Poetrix 3, que estamos que eu fazia e faço. Esse
se escrever um bom po- publicando agora, tem al- “aplauso” serviu de estímu-
etrix? guns poetrixtas que foram lo para que eu continuasse
resultado dessa nossa “ga- me aprimorando. Existem
GG - Em meu site (www. rimpagem”. O Concurso concursos promovidos por
goulartgomes.com) há um Internacional de Poetrix, entidades sérias e outros
texto chamado “Dez dicas que realizamos anualmen- promovidos por outras
para um bom poetrix”. Em te, é outra fonte de revela- nem tanto, apenas para ga-
suma são: evite as orações ção de novos talentos. nhar dinheiro com taxas
coordenadas, explore o de inscrição e organização
poder do título, minimali- de antologias. É sempre
ze, pesquise, não confunda Você acha que o Poe- preciso estar atento a
poetrix com haikai, utili- trix pode acabar sendo quem está promovendo
ze figuras de linguagem, usado por “pseudopoe- o concurso e com que
acabe com as conjunções tas” para engrossar suas objetivos.
adversativas, não force obras literárias devido à
rimas, não faça do poetrix liberdade que ele pro-
um provérbio e o não-dito porciona a quem escre- Quando você concebeu
fala mais que o dito. Tam- ve, teoricamente assim o poetrix, imaginou que
bém recomendo a leitura facilitando a sua escrita? alcançaria as proporções
da Bula Poetrix, um con- GG - O Poetrix é tão em que hoje se encon-
junto de orientações ela- pequeno que não dá para tra?
borado pela coordenação engrossar a obra de nin- GG - Para ser sincero, não.
do Movimento Interna- guém (risos). Eu não sei O nosso grupo virtual
cional Poetrix. Além dele, bem o que seja um pseu- (hoje chamado literatrix@
gosto muito do texto “Para dopoeta. Para mim, quem yahoogrupos.com.br)
Viver Um Bom Poetrix”, escreve poesia é poeta, e começou com 300 partici-
mais poético, que escrevi fim. Se escreve bem ou pantes. Depois, equilibrou-
parafraseando Vinicius mal, certo ou errado, é se em uma média de 100
de Moraes. Ambos estão outra história. E se o autor integrantes. Mas, a partir
disponíveis no site www. quer escrever poetrix bem, dele, da atuação dos Coor-
movimentopoetrix.com vai perceber que terá mais denadores Estaduais e da
dificuldades que facilida- realização dos concursos,
Você costuma ler os po- des. Na prática a teoria é o Poetrix foi ganhando
etrix de outros poetas? É outra! amplitude e atingindo
possível identificar um autores de todo o Brasil
grande talento em tão e de outros países, como
Até que ponto os prê- México, Argentina, Uru-
poucas palavras? mios que você recebeu guai, Venezuela, Colômbia,
GG - Bastante. Habitual- influenciaram sua car- Portugal e Espanha. Só
mente visito sites, como o reira de escritor? Qual na Internet estimo que
Recanto das Letras, para sua opinião sobre os existam mais de 100.000
apreciar o que os poetrix- concursos literários? poetrix publicados. Isso
tas estão publicando por GG - Os concursos li- é algo que me dá muito
aí e já identifiquei alguns terários influenciaram contentamento.
poetrixtas bem talentosos definitivamente a minha
assim. O poetrix requer história nas Letras. Porque,
um talento específico. O para mim, eles represen- Considerando o que
bom poetrixta consegue taram a validação, por você tem visto, tanto
até mesmo definir um pessoas que entendem na internet quanto nos
estilo próprio apenas em meios tradicionais de

12 SAMIZDAT julho de 2009


12
publicação, o que você O poetrix, que tem fei- de resposta a uma apro-
considera como prin- to um grande sucesso priação generalizada e
cipal ou principais ca- - basta ver a quantidade por vezes equivocada
racterísticas da poesia de textos no site Re- do Poetrix pelos poetas
contemporânea no Bra- canto das Letras. Você virtuais?
sil? Já é possível reunir conhece alguma outra GG - Ambas as coisas.
teoricamente os poetas linguagem ou forma po- Nós, que coordenamos o
em “movimentos”? ética moderna, praticada Movimento Internacional
GG - Pelo que vejo, ainda tão largamente como o Poetrix, sempre sentimos
estamos todos fora de lu- poetrix? Por exemplo: a falta de uma instrução
gar, fora da ordem. É a sín- no próprio RL tem tido oficial do MIP aos poetrix-
drome da pós-modernida- bastante repercussão, e tas. Não queríamos estabe-
de. Não consigo perceber arrebanhando adeptos, o lecer um documento nem
nenhuma unicidade temá- indriso, que é um “deri- um conjunto de regras,
tica ou estilística dentre vado contemporâneo” do pois isso iria de encon-
tudo o que é produzido soneto. tro à própria proposta
hoje no Brasil. Ouso dizer GG - Não conheço. Creio libertária do poetrix, nem
que a única novidade, o que, ao lado de Décio Pig- poderíamos ficar passivos
único Movimento é o Poe- natari e Augusto de Cam- diante da série de enga-
trix, com seus Manifestos, pos, que criaram a Poesia nos e exageros que são
a sua Bula e uma proposta Concreta, somos os únicos cometidos quanto à sua
concreta de criação literá- escritores criadores de elaboração. Assim, resol-
ria. uma linguagem poética de vemos criar a BULA POE-
grande abrangência, ainda TRIX, que é um consenso
em atividade – quer dizer, do que esse grupo de
Além do MIP, você tem vivos. [Sobre o indriso] É Coordenadores considera
contato com outros verdade. Já houve até uma fundamental para a cria-
grupos de poetas, mais proposta de criação do ção do Poetrix. Cada autor
ou menos nos mesmos Indrisotrix, uma mistura tem o direito de classificar
moldes? do Indriso e do Poetrix. O a sua obra da forma que
GG - Aqui na Bahia nós Indriso é uma variação do desejar, mas é importante
criamos, em 1995, o Gru- Soneto tradicional, assim que seja do conhecimento
po Cultural Pórtico, com como o Poetrix é uma geral o que nós conside-
a proposta de propiciar variação do Haikai e do ramos verdadeiramente
a publicação de novos Sijô. Ambos ainda tem um como Poetrix. Muito grato
autores. Entre altos e longo caminho pela frente, pelo espaço que nos foi
baixos, produzimos 52 até o total reconhecimen- concedido.
livros, realizamos eventos, to. Já mantive contato com
lançamentos e mostras. o criador do Indriso e
Em abril estaremos lan- temos um respeito mútuo Coordenação da entrevista:
çando a Antologia Pórtico pelas nossas criações.
3, na Bienal do Livro da Volmar Camargo Junior
Bahia, reunindo antigos e
novos autores. Atualmen- Li, recentemente, o tex-
te estamos procurando to “Bula Poetrix”, com Perguntas feitas por:
estabelecer contatos com as orientações oficiais Carlos Barros
autores minimalistas dos sobre o que é e como
EUA, Alemanha e Coréia escrever um Poetrix. Este Henry Alfred Bugalho
do Sul. texto surgiu na intenção Pedro Faria
de apenas normatizar a
forma, ou é algum tipo Volmar Camargo Junior

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Microcontos

Foi por medo de avião


Henry Alfred Bugalho
Desistiu de voar, tinha medo de avião. Meia hora de-
pois, morria com uma coxinha entalada na garganta, do
outro lado da rua do aeroporto.

Busca da iluminação

http://www.flickr.com/photos/zarajay/377865814/
Henry Alfred Bugalho
Saíra pra comprar cigarro e nunca mais voltou.
“Por causa da amante”, ela pensou, mas o real destino
dele era um monastério no Tibet.

Que menino lerdo!


http://www.flickr.com/photos/oriol_gascon/2571747463/

Henry Alfred Bugalho


A mãe o considerava retardado, mas, em seu silêncio
introspectivo, ele estava quase descobrindo a irrefutável e
definitiva prova matemática da existência de Deus.

http://www.flickr.com/photos/coolmel/3242477790/

14 SAMIZDAT julho de 2009


14
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
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www.oficinaeditora.org
Recomendações de Leitura

Quando Nietzsche Chorou,

de Irvin D. Yalom
Henry Alfred Bugalho

Quando Nietzsche chorou

Autor: Irvin D. Yalom

Editora: Ediouro

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Eu ainda trabalhava da História dos saberes: Nietzsche Chorou” é uma
numa livraria na épo- Josef Breuer, o protagonis- sucessão de altos e bai-
ca em que o romance ta, incumbido da tarefa xos, de interessantíssimos
“Quando Nietzsche Cho- de curar Friedrich Nietzs- diálogos entre Breuer e
rou”, do escritor ameri- che de suas dores. Nietzsche, e de tediosas
cano Irvin D. Yalom se digressões sobre a vida
A pergunta primordial
tornou um sucesso no pessoal do protagonista.
do livro é: como curar
Brasil. Yalom se esforça demais
alguém que não deseja
para demonstrar sua
Lembro-me de ter sido ser curado?
erudição e apresentar o
atraído pela ideia de uma
A segunda pergunta, resultado de suas pesqui-
obra de ficção abordan-
não menos crucial, é: sas para compor a obra,
do a psique de Friedrich
como desenvolver uma e acaba negligenciando o
Nietzsche, um dos mais
cura para as dores da enredo.
importantes filósofos de
alma?
todos os tempos. Con- O resultado final é um
tudo, o simples fato de Josef Breuer foi um romance bastante desi-
ser um best-seller já me dos pioneiros da psicaná- gual, com trechos inspi-
deixava um pouco des- lise, graças a seus estudos rados, mas recheado de
confiado. sobre histeria, em parce- excessos. Todavia, é um
ria com Sigmund Freud, primeiro passo interes-
Qualquer um que
no famoso caso de Anna sante para quem deseja se
conhece um pouco da
O. aproximar do pensamen-
biografia do filósofo já
to nietzschiano, pois há
deve ter se deparado com Nietzsche e Breuer várias referências a con-
as imensas contradições nunca se encontraram de ceitos recorrentes na obra
internas de Nietzsche, um fato, apenas na ficção de do filósofo, bem como a
vulcão enquanto teórico, Yalom, mas a proposta antecipação do que viria
mas um homem fragili- de unir duas das mais a ser sua obra-prima, “As-
zado em sua vida pessoal. brilhantes mentes de seu sim falava Zaratustra”. Ao
Um destruidor de ídolos tempo é instigante. mesmo tempo, é também
como filósofo, mas um
No entanto, Irvin D. uma lição sobre os pri-
homem oprimido pelo
Yalom recai em algumas mórdios da psicanálise e
jugo daqueles que o cer-
falhas do romancista da busca por um método
cavam: sua irmã Elizabe-
iniciante. O enredo de- científico para tratar pa-
th, o compositor Richard
mora a engrenar, são 50 tologias psicológicas.
Wagner, ou a poderosa
figura de Lou Salomé. páginas até à aparição “Quando Nietzsche
de Nietzsche, que é sem Chorou” está longe de ser
O psicoterapeuta Irvin dúvida o charme da obra um primor literário, mas
D. Yalom estreia como e está presente nos mo- certamente Yalom reali-
romancista unindo dois mentos mais empolgan- zou um profundo traba-
importantes personagens tes; depois disto, “Quando lho de pesquisa histórica.

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Autor em Língua Portuguesa

Clarice Lispector

Uma Galinha
http://www.flickr.com/photos/track24/1404943330/sizes/o/

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Era uma galinha de fazer esporadicamen- Estúpida, tímida e li-
domingo. Ainda viva te algum esporte e de vre. Não vitoriosa como
porque não passava de almoçar, vestiu radiante seria um galo em fuga.
nove horas da manhã. um calção de banho e Que é que havia nas
resolveu seguir o itinerá- suas vísceras que fazia
Parecia calma. Des-
rio da galinha: em pulos dela um ser? A galinha
de sábado encolhera-se
cautelosos alcançou o é um ser. É verdade que
num canto da cozinha.
telhado onde esta, hesi- não se poderia contar
Não olhava para nin-
tante e trêmula, escolhia com ela para nada. Nem
guém, ninguém olhava
com urgência outro ela própria contava con-
para ela. Mesmo quando
rumo. A perseguição sigo, como o galo crê na
a escolheram, apalpando
tornou-se mais intensa. sua crista. Sua única van-
sua intimidade com in-
De telhado a telhado foi tagem é que havia tantas
diferença, não souberam
percorrido mais de um galinhas que morrendo
dizer se era gorda ou
quarteirão da rua. Pouco uma surgiria no mesmo
magra. Nunca se adivi-
afeita a uma luta mais instante outra tão igual
nharia nela um anseio.
selvagem pela vida, a como se fora a mesma.
Foi pois uma surpresa galinha tinha que de-
Afinal, numa das ve-
quando a viram abrir as cidir por si mesma os
zes em que parou para
asas de curto voo, inchar caminhos a tomar, sem
gozar sua fuga, o rapaz
o peito e, em dois ou nenhum auxílio de sua
alcançou-a. Entre gritos
três lances, alcançar a raça. O rapaz, porém, era
e penas, ela foi presa.
murada do terraço. Um um caçador adormecido.
Em seguida carregada
instante ainda vacilou — E por mais ínfima que
em triunfo por uma asa
o tempo da cozinheira fosse a presa o grito de
através das telhas e pou-
dar um grito — e em conquista havia soado.
sada no chão da cozinha
breve estava no terraço
Sozinha no mundo, com certa violência.
do vizinho, de onde, em
sem pai nem mãe, ela Ainda tonta, sacudiu-se
outro voo desajeitado,
corria, arfava, muda, um pouco, em cacarejos
alcançou um telhado. Lá
concentrada. Às vezes, roucos e indecisos. Foi
ficou em adorno des-
na fuga, pairava ofegante então que aconteceu. De
locado, hesitando ora
num beiral de telhado e pura afobação a galinha
num, ora noutro pé. A
enquanto o rapaz galga- pôs um ovo. Surpre-
família foi chamada com
va outros com dificul- endida, exausta. Talvez
urgência e consternada
dade tinha tempo de se fosse prematuro. Mas
viu o almoço junto de
refazer por um momen- logo depois, nascida que
uma chaminé. O dono
to. E então parecia tão fora para a maternidade,
da casa, lembrando-se
livre. parecia uma velha mãe
da dupla necessidade de
habituada. Sentou-se so-

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bre o ovo e assim ficou, — Se você mandar a traísse: mexendo-se
respirando, abotoando e matar esta galinha nunca rápida e vibrátil, com o
desabotoando os olhos. mais comerei galinha na velho susto de sua espé-
Seu coração, tão pequeno minha vida! cie já mecanizado.
num prato, solevava e
— Eu também! — ju- Uma vez ou outra,
abaixava as penas, en-
rou a menina com ardor. sempre mais raramen-
chendo de tepidez aquilo
A mãe, cansada, deu de te, lembrava de novo a
que nunca passaria de
ombros. galinha que se recortara
um ovo. Só a menina
contra o ar à beira do
estava perto e assistiu Inconsciente da vida
telhado, prestes a anun-
a tudo estarrecida. Mal que lhe fora entregue, a
ciar. Nesses momentos
porém conseguiu des- galinha passou a morar
enchia os pulmões com
vencilhar-se do aconteci- com a família. A meni-
o ar impuro da cozinha
mento, despregou-se do na, de volta do colégio,
e, se fosse dado às fême-
chão e saiu aos gritos: jogava a pasta longe sem
as cantar, ela não can-
interromper a corrida
— Mamãe, mamãe, taria mas ficaria muito
para a cozinha. O pai de
não mate mais a galinha, mais contente. Embora
vez em quando ainda se
ela pôs um ovo! Ela quer nem nesses instantes a
lembrava: “E dizer que
o nosso bem! expressão de sua vazia
a obriguei a correr na-
cabeça se alterasse. Na
Todos correram de quele estado!” A galinha
fuga, no descanso, quan-
novo à cozinha e rode- tornara-se a rainha da
do deu à luz ou bicando
aram mudos a jovem casa. Todos, menos ela, o
milho — era uma cabeça
parturiente. Esquentando sabiam. Continuou entre
de galinha, a mesma que
seu filho, esta não era a cozinha e o terraço
fora desenhada no come-
nem suave nem arisca, dos fundos, usando suas
ço dos séculos.
nem alegre, nem triste, duas capacidades: a de
não era nada, era uma apatia e a do sobressalto. Até que um dia mata-
galinha. O que não ram-na, comeram-na e
Mas quando todos
sugeria nenhum senti- passaram-se anos.
estavam quietos na casa
mento especial. O pai, a
e pareciam tê-la esque-
mãe e a filha olhavam
cido, enchia-se de uma
já há algum tempo, sem Extraído do livro “Laços
pequena coragem, res-
propriamente um pensa- de Família”, Editora Rocco
quícios da grande fuga
mento qualquer. Nunca — Rio de Janeiro, 1998
— e circulava pelo ladri-
ninguém acariciou uma
lho, o corpo avançando
cabeça de galinha. O pai
atrás da cabeça, pausado
afinal decidiu-se com
como num campo, em-
certa brusquidão:
bora a pequena cabeça

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20
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/a/aa/Clarice_Scanned_Photos_011.jpg
Clarice Lispector nasceu num cado em 1944, “Perto do Coração cigarro. Sua carreira literária
navio, quando seus pais viajavam Selvagem”. No ano seguinte a prosseguiu com os contos infantis
para o Brasil, como imigrantes escritora ganhou o Prêmio Graça de “A Mulher que matou os Pei-
vindos da Ucrânia. Chegou a Ma- Aranha, da Academia Brasileira xes”, “Uma Aprendizagem ou O
ceió com dois meses de idade, com de Letras. Dois anos depois publi- Livro dos Prazeres” e “Felicidade
seus pais e duas irmãs. Em 1924 cou “O Lustre”. Clandestina”.
a família mudou-se para o Recife, Em 1954 saiu a primeira edição Nos anos 1970 Clarice Lispector
e Clarice passou a frequentar o francesa de “Perto do Coração ainda publicou “Água Viva”, “A
grupo escolar João Barbalho. Aos Selvagem”, com capa ilustrada Imitação da Rosa”, “Via Crucis
oito anos, perdeu a mãe. Três anos por Henri Matisse. Em 1956, Cla- do Corpo” e “Onde Estivestes de
depois, transferiu-se com seu pai e rice Lispector escreveu o romance Noite?”. Reconhecida pelo públi-
suas irmãs para o Rio de Janeiro. “A Maçã no Escuro” e começou a co e pela crítica, em 1976 recebeu
Em 1939 Clarice Lispector in- colaborar com a revista “Senhor”, o prêmio da Fundação Cultural do
gressou na Faculdade de Direito, publicando contos. Distrito Federal, pelo conjunto de
formando-se em 1943. Trabalhou Separada de seu marido, radicou- sua obra.
como redatora para a Agência se no Rio de Janeiro. Em 1960 No ano seguinte publicou “A
Nacional e como jornalista no jor- publicou seu primeiro livro de Hora da Estrela”, seu último
nal “A Noite”. Casou-se em 1943 contos, “Laços de Família”, se- romance, que foi adaptado para o
com o diplomata Maury Gurgel guido de “A Legião Estrangeira” cinema, em 1985.
Valente, com quem viveria muitos e de “A Paixão Segundo G. H.”, Clarice Lispector morreu de cân-
anos fora do Brasil. O casal teve considerado um marco na literatu- cer, na véspera de seu aniversário
dois filhos, Pedro e Paulo, este ra brasileira. de 57 anos.
último afilhado do escritor Érico
Em 1967 Clarice Lispector fonte: http://educacao.uol.com.br/
Veríssimo.
feriu-se gravemente num incêndio biografias/ult1789u592.jhtm
Seu primeiro romance foi publi- em sua casa, provocado por um

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Contos

Boa noite,
minha princesa.

Te amo!
Carlos Alberto Barros

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22
“Isso, pode me olhar com falar, ele também não vai ele não conhecendo muito
esse seu carão de desprezo, dizer. do autor.
sua vadia. Você nem imagina “Odeio esses seus jogui- – Você soube que Macha-
como eu gosto. Ah, como eu nhos, Samantha! Se não tem do de Assis morreu? – per-
gosto! Tanto que seria capaz nada, por que esta cara de gunta ele, com expressão
de trazer-lhe um lindo buquê velório? Pelo amor de Deus! fingida, tentando demonstrar
de rosas só para lhe enfiar Como eu pude casar com algo entre indignação e tris-
garganta adentro”, pensa uma mulher tão feia!”, pensa, teza.
Arnaldo, deitado na cama ao indignado, mas apenas diz: – Nossa! – responde, irôni-
lado da esposa, Samantha.
– Você fica linda assim ca, a mulher, enquanto pensa:
E, mesmo sabendo que ela
séria. “burro, idiota, imbecil!”, e
está com raiva por conta de
– Arnaldo, você sabe como continua: – É, eu sei que ele
uma conversa que ele teve
eu amo esse seu cinismo... morreu.
com a ex-mulher... Tudo
bem, ao que ele chama de – Não é cinismo. Você – Por isso que você está
conversa, outros dão o nome sabe que não. assim? Quer dizer, do jeito
de “brincar com fogo”, “des- que você gosta de leitura e
– Eu estou gorda, Arnaldo. essas coisas...
caramento”, “sem-vergonhice”,
ou mesmo – oh, más línguas Ao ouvir essas últimas Samantha lembra-se do
– “fornicação”. Mas o fato palavras, Arnaldo responde rosto da ex-mulher de Ar-
é que ela só está assim por prontamente. Tão rápido, naldo e se imagina esfaque-
conversas de terceiros, “pelos que nem se lembra de como, ando-o, mas não, não, nunca
destruidores de lares” – como no mês anterior, achou sua teria coragem de fazer uma
sempre enfatiza Arnaldo. cunhada muita mais formo- coisa dessas! Pensa: “Mas, que
Bem, mesmo sabendo do mo- sa que a esposa, chegando a às vezes dá vontade, dá... só
tivo do “carão de desprezo” pensar que Samantha pode- às vezes... ai credo, Deus me
da mulher, com naturalidade ria muito bem perder uns livre! Deus me livre!” Sen-
paradisíaca, ele pergunta: quilinhos frequentando uma te ainda mais raiva do que
academia de ginástica. antes por perceber a tentati-
– Aconteceu alguma coisa,
minha flor? – Você está ótima, meu va do marido em agradá-la
amor – diz ele. falando de um assunto que
“É claro, seu idiota! Por que
“Então, por que você vive ele domina tanto quanto fala
acha que estou assim?”, res-
olhando para outras mulhe- bem da sogra aos amigos.
ponde, mentalmente, a mu-
res, seu cretino?”, imagina-se “Maldito homem com quem
lher, porém, prefere resumir-
perguntando Samantha, mas me casei... Eu te odeio, Arnal-
se na fala:
nada fala. do!”, pensa enfurecida, mas
– Não, nada.
http://www.flickr.com/photos/cphotos/2796820522/sizes/l/

ao falar, parece que muda de


Um silêncio se instau-
Arnaldo sorri compassi- opinião:
ra. Arnaldo acha que será
vamente e faz um carinho – Arnaldo, meu amor,
gentil de sua parte encontrar
suave no rosto da esposa. obrigada pela tentativa da
algum assunto do agrado da
Sabe que ela está mentindo. conversa, mas, deixa eu te
esposa. Ele se lembra de uma
Interiormente, sente vontade contar um detalhe: Machado
notícia que viu recentemente
de esganá-la para que diga a de Assis está morto há cem
na televisão sobre a morte
verdade e deixe de manhas anos... – “...seu débil mental
de Machado de Assis. Como
e joguinhos. Ele está ciente ignorante”, completa em sua
sabe que Samantha gosta de
de que ela sabe da conversa mente.
ler, acha que será uma con-
com a ex-mulher – apenas
versa conciliadora, mesmo “Senhora sabe tudo, se
conversa! –, mas se ela não

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acha a intelectual, a sabi- mais lavada do mundo, fingir que sabe de tudo, sempre
chona, não é? Para o inferno que entende de Machado! se achando a superior. Eu te
com sua arrogância, maldita!”, Ah, tenha dó!”, fala Samantha, odeio!”, grita Arnaldo para a
explode em pensamento Ar- quase sem acreditar em suas mulher, sentindo vontade de
naldo, porém, apenas fala: próprias palavras, mas sen- estapeá-la. Não contendo o
– Minha linda, obrigado tindo certo alívio de algo que desejo, desfere-lhe um gol-
a você, por esclarecer, com lhe apertava a garganta. Na pe no rosto. Parte da mão
tanta delicadeza e humildade, cabeça, um só pensamento: espalmada fica desenhada na
que o Machado já está morto – Você é o homem da vermelhidão da face de Sa-
há tempos. Cem anos! Meu minha vida! mantha. Ele ainda se imagina
Deus! E eu aqui pensando falando:
– Você é a pessoa mais
que o cara tinha morrido especial do mundo! – pensa, – Não consigo viver sem
ontem! – e sorri, meio sem por sua vez, Arnaldo. você, minha deusa!
graça, tentando entender o A bofetada deixa Saman-
porquê de ainda deitar-se “Sua vagabunda fofoqueira!
É nisso que dá ficar escu- tha sem reação. Antes de en-
com tal mulher. cerrar a conversa, opta, ainda,
tando conversa fiada dessas
Samantha fica refletindo, putinhas que se dizem suas por demonstrar um último
inconformada por ainda es- amigas. Amigas do diabo! carinho ao marido. “Filho-da-
tar presa a um infeliz como Bando de putas, isso sim!”, puta”, diz. E vira-se, dando as
Arnaldo. Sente vontade de diz, enfurecido, à mulher, costas para Arnaldo. Já com
socá-lo, atirá-lo dali para lon- mas em seu coração, pergun- os olhos fechados, pensa:
ge. “Como Machado de Assis ta: – Boa noite, meu anjo. Te
pode ter morrido ontem, seu amo!
animal?”, pergunta calma- – Vamos ter um filho?
mente ao marido, enquanto – Agradeço a Deus todos Arnaldo, bufando de ner-
imagina-se dizendo: os dias por ter você, Arnaldo vosismo, parece não mais se
– pensa ela. incomodar com as palavras
– Tudo bem, meu amor. carinhosas da esposa. “Isso
Ninguém pode saber de – Vamos tornar esta famí- mesmo... Vai dormir, menini-
tudo. lia maior, mais feliz? – inda- nha mimada”, diz, e completa
“Melhor ser animal do que ga-a ele em pensamento. num tom sinistro, “E nunca
uma sabichona ranzinza que, – Te amo do fundo do mais me provoque ou eu
vira e mexe, está derramando meu coração – pensa ela. acabo com você de vez, vaga-
feiúra por aí”, diz Arnaldo, “Não suporto mais essa bunda!” Depois, vira-se para
julgando ter medido as pala- sua cara de enterro eterno, o lado oposto de Samantha.
vras, e pensa: Samantha!”, fala ele. Antes de adormecer, ainda
– Que mulher maravilho- pensa:
“E eu não suporto nem
sa! Por isso que a amo. mais escutar sua voz! Já esgo- – Boa noite, minha prince-
“Seu ogro hipócrita! Como tei minha conta das merdas sa. Te amo!
pode falar isso de mim, que tenho que aguentar de
depois de tudo que aguentei? você!”, fala ela enquanto, na
E, inclusive, você sabe mui- mente, diz:
to bem por que estou com – Adoro ouvir suas frases
esta cara! É a cara de uma inocentes, meu bebê.
chifruda otária que tem um
“Vadia! É isso que você é:
baita de um filho-da-puta de
uma vadia orgulhosa! Pensa
marido que vem, com a cara

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Ele tinha diante de si
a mais difícil das missões:
cumprir a vontade de Deus ficina
www.oficinaeditora.org

Henry Alfred Bugalho


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O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 25
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Contos

Joaquim Bispo

O Primeiro Passo
– Não vês que estás a ir dos os sentidos, a Revolução um anjo eu me sentia capaz:

http://www.flickr.com/photos/lauraburlton/2841127273/sizes/l/
por mau caminho, meu filho? avançava com auto-gestões – E, além do mais, o que é
– O anjo adoptava uma pos- nas fábricas e nos campos e que tens com isso?
tura paternal, a face preocu- auto-organização das popu-
pada, o gesto complacente. lações em todos os domínios. – Não penses que podes
Havia um sentimento no ar viver como queres, lascivo,
– Eu nem sei se quero ir descrente e subversivo. Tudo
por bons caminhos! – retor- de que, finalmente, tudo era
possível. E tanto que havia está determinado e o teu lu-
qui, desafiador. gar está muito bem definido.
para fazer! O mais difícil
Quando ele se materializa- era a mudança das mentali- – Eu posso fazer o que
ra no meu quarto de solteiro, dades. Todos tínhamos sido quiser. Desde que não res-
com ares de arcanjo Gabriel, condicionados para sermos trinja a liberdade de nin-
passava das três da manhã. engrenagens duma sociedade guém.
Estranhei, mais do que me as- de obedientes, castos e te-
sustei. Tinha estado na asso- – E não achas que roubar
mentes. De repente, tinham- a casa de alguém é atentar
ciação do bairro a tratar de se rompido as comportas
questões relacionadas com as contra a sua liberdade?
que mantiveram a multidão
recentes ocupações de casas calada e quieta e esta inalava, – Não é roubar, é usar
desabitadas e, proposta puxa impertinente, os primeiros para fins humanitários o que
discussão, tinha bebido umas aromas da liberdade. alguém desperdiça. Não é a
três ou quatro cervejas. O sua casa, é a sua ostentação.
Verão de 75 ia quente em to- Agora, até de replicar a
– Não vês que tudo isto é

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apenas um remoinho pas- são donos das suas vidas. rava os que lhe mandamos?
sageiro!? Não vês qual é a – Loucos, dizes bem. A Pelo contrário, procuraria
ordem natural das coisas? revolução pôs pais contra tratá-los o melhor possível
Quando a poeira assentar, filhos, filhos contra pais, ma- para ganhar aceitação po-
volta tudo ao que era. E en- rido contra mulher, mulher pular. Não; o trabalho dele
tão, tu estarás perdido. contra marido. Os partidos, é um pouco desagradável,
– Não me vão prender por de que até o nome é revela- porque tem aquela falta
querer ajudar as pessoas sem dor, destroem a harmonia da cívica para pagar, mas está
casa, está descansado. sociedade. tão integrado e é tão neces-
sário ao nosso sistema, como
– Não é dessa perdição – Os partidos são a ex- é o sistema prisional em
que eu estou a falar. – E con- pressão crispada, mas ne- qualquer sociedade humana.
tinuou a pôr água na fervura cessária, que faz circular na Aliás, quem me enviou está
revolucionária: – Quem me sociedade os vários conceitos muito satisfeito com ele. O
mandou não gosta de rebel- da sua própria organização. seu Inferno é a cúpula que
des. Gosta que a hierarquia Vocês não têm partidos? Os completa o edifício teológico
esteja muito bem definida e anjos dão-se bem com os arquitectado.
que o de baixo não desobe- querubins? E estes com os
deça ao de cima. Gosta que serafins? Ou também têm Nesta, eu nunca tinha
a moral e a religião sejam interesses de classe? pensado. Senti uma náusea
o guia das nações e que os de repulsa por um desígnio
– Lá, donde eu venho, a tão totalitário. Em vez de
seus dirigentes sejam auste- harmonia não tem ameaças.
ros, mas bondosos, como os me convencer da perfeição
Todos conhecem e aceitam o do sistema e de me subme-
pais são para os filhos. Ago- seu nível celeste.
ra, tu és um filho pródigo ter aos argumentos do anjo,
que não respeita o seu pai. – Não será bem assim! fui invadido por uma onda
Tanto quanto eu sei, já houve irreprimível de rejeição, que
– Eu vejo é que o teu ar revoltas. Não foi lá que Lúci- se transmutou em descren-
paternal, de há pouco, está a fer bateu o pé ao teu patrão? ça e não deixava espaço a
transformar-se na fúria conti- qualquer mito. Abri a janela
da de um mestre-escola au- – Sim, há esse episó-
dio… e aspirei o ar fresco da noite.
toritário. Por que é que quem
te mandou não prefere a li- – E essa tal harmonia de – Tretas! Não acredito em
berdade das pessoas e a livre que falas não corre o risco nada disso. Nem em anjos. E,
adesão aos seus preceitos? de um dia ser alterada pela mesmo que acreditasse, seria
Ou a livre rejeição!? Como é tomada do poder por Lúci- contra. – A minha voz soou
que se pode sentir satisfeito fer? com uma tal limpidez, como
de mandar em autómatos, se eu não tivesse dito nada
O anjo, de que não che- antes.
que se lhe sujeitam apenas guei a saber o nome, riu-
pelo medo do castigo? Não se com gosto. Perdeu por Ou fosse porque os últi-
repara como são alienadas as momentos o ar, umas vezes mos vapores de álcool aban-
pessoas que se lhe submetem, pedagógico e protector, ou- donaram os meus pulmões,
que nem pensamentos de tras tenso e vagamente ame- ou porque os mitos só se
revolta podem ter? açador, e riu-se demorada e instalam na cabeça de quem
– Ele vê é que, com a maliciosamente. lhes dá guarida, o certo é
ordem que instaurou, todos que, quando me voltei, não vi
– O Lúcifer foi um caso anjo algum. Acho que nessa
eram felizes. Já viste alguém de sucesso. Foi das revoltas
feliz nesta revolução? noite dei o meu passo revo-
melhor recuperadas de que lucionário mais consequente.
– Sim, muitos, loucos de há memória. Achas que se
felicidade. Pela primeira vez ele fosse anti-sistema tortu-

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Contos

O Lobo Vermelho
(primeira parte)
Volmar Camargo Junior

Avvena é um lugar ina- eram militares trabalhavam cias: uma massa de trabalha-
propriado para quem gosta para eles, e se lhes impunha dores obedientes, histórica
de sol e calor, porque não há um regime de ordem e obe- e culturalmente incapaz de
um único dia no ano em que diência, o que acabava, enfim, exigir melhores condições
não chova. É úmida, cinzenta, sendo a mesma coisa: todos de trabalho. Assim, Avvena
encardida. Nas ruas, peram- seguiam um regime militar. passou a ser um atrativo, pri-
bulam pessoas cabisbaixas Depois que as conquistas meiro para as nascentes in-
e tristonhas. São raros os ao território minguaram e dústrias, depois, para pessoas
dias festivos, e ainda assim, o exército foi incumbido de que viviam em situação de
preenchidos de solenidades. proteger as fronteiras, mui- pobreza e miséria nas áreas
Durante séculos, Avvena foi to distantes do Mar, Avvena rurais desta mesma provín-
um quartel gigantesco, e a tornou-se um pólo industrial, cia, que vinham em busca de
maior parte da população porque tinha algo difícil de trabalho – ou, pelo menos, de
era de soldados; os que não encontrar em outras provín- um meio de se sustentar - e

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por último, para moradores dos pelo médico me fizeram — É um prazer, Senhor
de outras grandes cidades e dormir feito um degrau das Plumbeano. Entre. Está muito
do interior de outras provín- escadarias do Farol, e só fui frio aí — e imediatamente,
cias ao redor do Mar. Avvena acordado, a muito custo, pelo eu soube de quem se tratava.
inchou, alastrou-se pelo vale fiscal do trem, quando já Era Agatha Pietra Velasturvo,
que ocupava, tomou a região estávamos parados. Fui o úl- tataraneta e assistente pessoal
acidentada que circundava a timo passageiro a descer. Um do General.
cidade-quartel, subiu a mon- funcionário do governo, mui- Ela não parecia um mili-
tanha e hoje é um monstro to prestativo e jovem, viera tar, pelo menos, não estava
cinzento, frio e empoeirado, buscar-me com um veículo vestida como um. Ao tele-
insensível aos seus quatro- oficial, desses carros sofisti- fone, sua voz era melodiosa
centos mil habitantes, e nada cados que se vêem pouco na e grave, como a das pessoas
convidativa para os visitan- Capital. O rapaz apresentou- que estudam técnica vocal.
http://www.flickr.com/photos/trondheim_byarkiv/3409688247/sizes/l/in/photostream/

tes. Eu era um visitante, mas se com muita cordialidade, e Em sua presença, tive a im-
não fui até lá por causa dos quase nenhuma formalidade. pressão de que era uma per-
atrativos inexistentes da ci- Chamava-se Platin. Eu teria sonagem de rádio-romance,
dade. Não tive muito tempo me enganado se concluísse à imagem que eu havia feito,
para me preocupar com o que todos os avveninos eram quando criança, de heroínas
mau-humor do clima avve- como ele. Posteriormente, como Semmpat de Ture ou
nino, nem prestar atenção descobri que Platin era de Felixcia Luna – com a dife-
nas chaminés quilométricas, um lugarejo perdido na rença óbvia de que estas não
nem nos rostos infelizes que imensidão surenha, e que era eram humanas. Entretanto,
compunham a classe traba- tão avesso ao modo de viver Agatha Velasturvo era, de-
lhadora às seis da manhã e avvenino quanto eu e outros finitivamente, uma pessoa
às sete da noite. Fui porque estrangeiros. O jovem encar- diferente, talvez dotada de
tinha um grande interesse na regou-se de carregar minha uma aura não-humana como
vida de um cidadão ilustre, pouca bagagem, apenas duas a das heroínas de minha
sobre o qual estive pesqui- malas pequenas, rindo da imaginação. Lendo a respeito
sando desde que aprendi a minha falta de cuidado com da história pessoal do Gene-
ler: General Petro Velasturvo, o frio que costumava fazer, ral Petro, chega-se facilmente
o Lobo Vermelho. e em poucos minutos, fez à conclusão de que nunca
Meu contato físico com comercial de duas lojas de confiara em ninguém, e que
Avvena começou na estação roupas de inverno de co- sempre fora assessorado por
de trens. Teria começado nhecidos seus. Convidou-me um familiar. Ela, Agatha, es-
antes, se eu estivesse acorda- para entrar no carro, sem ne- tava como sua fiel escudeira
do, e teria visto praticamente nhuma formalidade especial desde os primeiros passos.
toda a cidade, de cima, pela – não que eu precisasse de A mim, porém, lembrou-me
janela do vagão: os trilhos qualquer formalidade, apenas uma diva do rádio.
fazem um percurso em espi- achei aquilo estranho e di-
Ao longo dos cinco qui-
ral pelo perímetro da cidade vertido para um lugar que eu
lômetros entre a estação e
velha, pelas encostas da serra, sabia ser o mais antipático
o hotel, Agatha expôs-me a
por sobre a absurda muralha do mundo. Entrei pela porta
situação toda, de modo mui-
que a circunda. Entretanto, os lateral, e só então percebi
to sucinto, claro e objetivo.
barbitúricos não recomenda- que havia mais alguém lá
Em poucas palavras, agendou
dentro. Era uma mulher.

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a primeira entrevista para de café e alguns biscoitos, mas não o fim do precon-
as sete da manhã em ponto para começar a esboçar mi- ceito. Assim que chegaram o
do dia seguinte, durante o nha entrevista sem precisar café, os biscoitos e potes com
desjejum do General. Dei- descer ao restaurante. En- geléias – os avveninos são
xou-me a par do estado de quanto esperava, tentei olhar pouco sociáveis, mas sabem
saúde do herói nacional, que pela janela, e tudo o que vi comer bem – tomei meu
já avançava para a casa dos foi a fachada da fábrica de bloco e uma caneta. Esqueci-
cento e vinte anos. Também botas que ocupava a metade me completamente da rua, da
deu-me algumas explicações, da quadra do outro lado da chuva fina, do guarda bovi-
sem espaço para dúvidas, rua, e duas vezes a altura do neu que caminhava pesada e
sobre como referir-me aos hotel. Também não se via silenciosamente na calçada
tritões na presença do Ge- naquele quarteirão mais do em frente, e anotei minhas
neral, porque jamais acatou que a luz de um poste tímido perguntas.
os acordos de paz assina- permitia: uma imensa parede Amanheceu. Tomei o últi-
dos mais de cinquenta anos de tijolos, uma guarita, um mo gole de um café amargo
antes. Tampouco considera a contêiner de lixo abarrota- e frio, e nem conseguia mais
confederação das províncias do, uns quantos gatos de rua olhar para biscoitos. Pude
do Mar de Luna uma única embolados em uma caixa ver Platin e o carro oficial –
nação, e por isso, também de madeira que lhes servia cor-de-madeira-dourada com
é um assunto delicado. Por de casa. Assim que o relógio detalhes em dourado nas ex-
fim, quando o carro já se do alto da entrada da fábri- tremidades, nos paralamas e
encontrava diante das portas ca marcou meia-noite, um nos faróis dianteiros, luxuoso
do hotel, Agatha estendeu-me guarda caminhou de uma mesmo para um carro do
a mão, ao que correspondi, esquina até a outra. Era um governo – subindo a rua. O
recebendo o aperto de mãos bovineu, que eram muito dia não estava muito menos
mais pesado que já havia respeitados na infantaria do escuro nem menos chuvoso
recebido na vida. “Amanhã”, exército avvenino, e ainda que a madrugada, e Avvena
disse ela, “Platin virá buscá- mais respeitados na guarda não era mais simpática na
lo bem cedo. Não abuse dos municipal. Já estaria aí o claridade pálida do dia. Em
barbitúricos dessa vez”. O assunto para um tratado, a uma hora eu estaria dentro
ângulo dos seus lábios me diferença de tratamento dado da mansão Velasturvo. A
fez entender que se tratava aos bovineus, começando nas toca do abominável Lobo
de uma piada. Talvez, o mais caçadas da Capital, passando Vermelho.
perto que um militar avveni- pela escravatura, culminan-
no tenha chegado de uma. do na posição de destaque
Choveu continuamente no exército e na polícia de
durante toda a madrugada. Avvena. Certamente trataria
O hotel tinha um sistema de deles na biografia do Gene-
calefação eficaz e moderno, ral Petro, já que um de seus
o que me possibilitou uma companheiros no início da
noite agradável, inevitavel- vida de soldado, foi Unmonu,
mente sem sono. Dei-me o que veio a ser herói tanto de
luxo de pedir para o serviço seu próprio povo quanto do
de quarto levar-me um bule nosso, e que lhes garantiu a
alforria oficial e definitiva,

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30
O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.org

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A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

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Contos

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Jú Blasina

7/8 em 1/4
Tudo começou, como hora de almoço, o escritório
sempre – mensagem anôni- Ele sorriu, apagando ime- quase vazio, silencioso – o
ma no celular: diatamente a mensagem – já som de uma nova mensagem
fazia tempo, muito tempo, – “Ah, celular barulhento”
desde o último encontro. ele resmunga fazendo ainda
Sexta-feira – 21:00 hs
Tanto que a simples menção mais barulho na tentativa de
Você sabe o que e aonde.... ser discreto.
de “surpresa” associada com
O champagne é por tua a lembrança de Val, seminua
conta. em meias 7/8, bastou para E então, garanhão?
A surpresa é por minha... excitá-lo. Olhou discretamen-
Posso te considerar... dentro?
te as mesas ao redor – era

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32
manter seu arsenal abaste- O champagne esquentou e
“Ah... cachorra sem vergo- cido, atualizado e principal- não foi o único: a combustão
nha” – ele ria, sem perceber mente organizado. E ele ain- imediata daqueles corpos fez
que pensava alto, enquanto da insistia em lembretes do com que as roupas saltassem
caminhava em direção ao tipo “não esqueça as meias” quase que espontaneamente.
banheiro, apagando, aflito, a – uma piadinha interna, pois Depois de algum tempo, pra-
nova mensagem. Lá passaria ela nunca esquecia nada. zeroso tempo, até as amadas
o resto do seu intervalo, len- Em cima da hora, ele meias sumiram. O flat, antes
do e apagando, lendo e apa- chegou ao flat. Funcionava tão arrumado, agora parecia
gando, sucessivamente, mais como um esconderijo secre- ter sido atingido por um ter-
rápido, gradualmente mais to e compartilhado, que há remoto ou furacão. E de cer-
excitado, lendo e apagando, meses alugavam para seus ta forma o foi. Lá estavam os
lendo e ahh... pagando. Era encontros – nunca ao acaso sobreviventes, nus, enrolados
hora de responder: – apenas, sempre e somente em corpos e lençóis, bebendo
mediante aviso por ela envia- o champagne já quente, cujo
do, como havia ocorrido hoje gelo havia ganhado outras fi-
Confirmando: nalidades durante o processo.
pela manhã.
Mesma hora, local, Pau – Agora, recuperado o fôlego,
Ao abrir a porta, Cris
ops! conversavam sobre as supos-
notou as pequenas mudanças
tas e postiças vidas que um
(risos) E não esqueça as que renovavam o ambiente,
apresentava de forma mais
meias! “como sempre”. Cada vez que
mirabolante ao outro. E entre
Bjs - Cris visitava o local, encontrava-o
mentiras e risadas recíprocas,
redecorado, habito que ela
as coisas pareciam funcionar
mantinha, não apenas com
– e satisfazer muito bem – a
Ele passou o dia tão an- o flat – Val era cheia de
ambos.
sioso, tão absorto em pensa- surpresas e a ansiedade por
mentos obscenos que quase encontrá-la o deixava louco... “Mais barato que terapia”
se esqueceu de comprar dizia ela às amigas
Havia velas acesas es-
o champagne. Tudo o que “Melhor que uma esposa
palhadas por toda a parte,
precisava levar era: um bom ou prostituta qualquer” dizia
iluminando e perfumando o
champagne, o corpo disposto ele a si mesmo.
ambiente. A música já estava
e alguma imaginação – agora
tocando. Era algo envolvente, Ao amanhecer, após
a lista estava completa!
mas não apelativo “Moby? dormir, comer, mentir, rir,
Val sempre se encarregava talvez”, pensou ele, largando banheira e sexo, em repedi-
dos detalhes – e como era o champagne no balde de das e desordenadas vezes, era
boa nisso... Perfeccionista ao gelo que o aguardava sobre a chegada a hora de montar o
extremo! Ela e sua maleta mesa de centro. Tirou o casa- “quebra-cabeças” do quarto.
hermeticamente organiza- co, tentando aparentar tran-
da de onde saiam as mais qüilidade, até que ouviu o
diversas e inesperadas coisas. — Viu minha camisa?
som do salto se aproximando
Segundo Cris, aquilo era o – toc, toc, toc – virou-se e lá — Na sala – respondia ela,
“chapéu mágico do sexo”. estava ela: espartilho, salto enquanto reorganizava sua
Mal sabia ele quanto tempo agulha e meias... ah... meias maleta.
e dinheiro ela gastava para 7/8 pretas, arrastão. — Viu minha cueca?

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— Hum... aqui! Toma aqui Ela permanecia com o presumo que seja de quem?...
– alcançava ela, enquanto semblante fechado. Largou tua?
terminava de se vestir, de a meia 7/8 preta, vagarosa- Uma gota de suor amea-
maneira muito mais compor- mente, no centro da cama, çava escorrer denunciando o
tada do que havia se apre- sobre o lençol vermelho. pavor de Cris diante aquela
sentado na noite anterior. Ainda sem captar o que afirmação. Tentando man-
— E minha meia, viu? estava acontecendo, ele se ter a calma, ele reavaliava a
aproximou, analisando de situação:
— Qual? Esta que está no
perto a situação. Olhou para
seu ombro, Cris? De um lado Val: vestida
Val, para a meia, Val, meia,
Ele riu — Esta também. E sobriamente, tailleur cinza,
perguntando-se o porquê
a outra? camisa branca, sapatos impe-
de tanto mistério, Val, meia,
cáveis, cabelo perfeitamente
Olharam em volta e nada Val, meia... até que, enfim,
arrumado. De outro ele, Cris:
da meia. Começou então a percebeu! Quando seus olhos
calça ainda aberta, camisa
procura – ela revirava as co- encontraram os dela, que o
mal abotoada, calçando um
bertas já arrumadas, enquan- fitavam atentamente, não se
sapato só, cabelo bagunçado,
to ele, parado, olhava para os sentia muito seguro quanto
barba mal feita. Entre eles,
móveis, sem mover um dedo, ao que dizer. Agarrava-se
sobre a cama, aquela cama,
como se pudesse enxergar àquele silêncio, em busca de
naquele quarto que é dos
através deles – ela, agora de uma boa explicação, quando
dois, estava ela: aquela meia
joelhos, procurava por todo o silêncio foi rompido:
– maldita meia – que não
o canto, atrás a cômoda, na — E então, Cris? Caso não podia pertencer a nenhum
poltrona, sob a cama. tenhas escutado, ou entendi- dos dois.
— Achei! do, eu repito: Não, essa meia
“É isso!” pensa ele “É o que
vagabunda não é e nunca foi
Gritou ele, orgulhoso, de ela espera que eu diga: a res-
minha. As minhas, já estão
algum lugar da sala. posta lógica - é perfeita!”
na maleta, e, além disso,
Ela permanecia ajoelhada coisas vagabundas não fazem — Não, claro que não é
no mesmo local, apreensi- o meu estilo, mas, pelo visto, minha. É de uma amiga... Já
va com algo que trazia nas fazem o teu, ou estou enga- faz um tempo, a gente não se
mãos. nada? encontrava mais, tu não liga-
Cris voltava ao quarto, já vas nunca! Aconteceu... Não
Ele engoliu a seco, arrega-
de meias, fechando a camisa, achei que isso fosse te inco-
lou os olhos, “pensa rápido,
enquanto ela levantava lenta- modar tanto, afinal, a gente
pensa rápido... ah, merda!
mente – uma expressão fria, não tem compromisso... e foi
Ela sabe ou só tá blefando?
nenhuma palavra. só sexo.... e...
Ah, merda! Melhor eu falar a
— O que foi Val? Ah, verdade, dane-se” — Chega. Não preciso
achou a tua meia também? ouvir mais nada. Primeiro:
— Não, eu não trouxe
“só sexo” é o que nós temos.
— Não. ninguém aqui, se é isso que
Segundo: pouco me importa
tu tá insinuando.
— Como não? E o que é o que tu faz ou deixa de fa-
isso na tua mão? Parece até — Ah, sim, claro! Então, zer aqui, na minha ausência,
eu. Haha, te peguei agora, acompanhe o meu raciocínio: mas me incomodo, e muito,
perdendo coisas! Se essa meia não é minha, a tua falta de consideração,
nem de outra qualquer, eu

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ao deixar os restos das tuas Indignado, ele saiu, juntan-
vagabundas espalhados pelo do suas coisas pelo caminho,
Um detetive...
nosso quarto. bufando e batendo com as
— Val... foi só uma meia! portas. Uma loira gostosa...
— Pois é, Cris. Não é a Já no carro Cris sente-se
aliviado, extremamente ali-
Um assassinato...
perna que estava nela que me
importa. É o teu descaso. viado, por ela ter engolido a
mentira mais sensata. Apesar
— Desculpa, mas como eu E o pau comendo entre
de todo o drama e ofensas,
ia adivinhar?
antes sair de um quarto com as máfias italiana e
— A gente não adivinha fama de mal caráter do que chinesa.
­
Cris, a gente pensa, organiza revelar o tamanho de sua
e se certifica de que tudo paixão por meias 7/8 . Isso
esteja perfeito. seria mais embaraçoso que
Sabe o que isso me mos- qualquer coisa!
tra, Cris? Essa meia é uma
mancha no teu caráter!
Ainda no flat Val joga-
se em cima da cama, rindo
O Covil
Cris pensa: “Droga, parece
até que ela sabe”
e brincando com a meia,
recém encontrada. Pega o
dos
Val pensa: “Ótimo, acho
que fui convincente”
telefone e manda uma men-
sagem. Dessa vez o remetente Inocentes
é outro:
—Tá certo Val, se é isso o
Cherrie, sua cachorra! www.covildosinocentes.blogspot.com
que tu pensas... Eu já vou... tô
atrasado para o trabalho. Vou Eu sei o que tu fez e sei
juntar minhas “manchas” e te que foi de propósito.
deixar aqui no teu “santuário” E sim, ele foi embora, mas
de organização e retidão. só por enquanto...
— Ironia não vai ajudar E se quiser tua meia de
agora, Cris. E DEIXA ESSA volta: Vem pegar - hoje, 21hs.
MEIA AÍ!
Te espero faminta – E tra-
Gritou ela, enquanto ele, ga o champagne!
cuidadosamente, enrolava o
precioso achado.
E assim, ambos seguiram,
— Por quê? Não é minha...
compartilhando um mesmo
minha falta de caráter?
alívio ao cobrir as verdades
— É. E eu vou guardar, de impróprias, com um mesmo
recordação. pensamento: “A meia de bai-
— Tu é louca, sabia? Gos- xo da cama não é minha”
tosa, mas louca. do
w
— E tu é burro, sabia, gos-
gr nl
toso, mas burro. át
oa
is d

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Contos

Janela pra rua


Henry Alfred Bugalho

Christiane não virá. Naquele mesmo cinema, timento secou e morreu.


Da minha janela, acom- eu a beijei pela primeira Já conhecia Linda antes,
panho o absurdo movi- vez, e quantas outras vezes colega de faculdade; ao vi-
mento noturno na rua: depois. No restaurante do sitar minha mãe enferma
táxis, automóveis, gente outro lado da rua, pus-lhe no interior, reencontramo-
deixando o cinema, gen- a aliança nos dedos e brin- nos, jantamos juntos, ela
te bebericando em bares, damos com champanha. me levou para sua casa
casais abraçados, assim No sofá da sala, nossas e ouvimos alguns discos.
como eu e Christiane até desajeitadas carícias; na Não me recordo se Chris-
dias atrás. cama, confidências que tiane e eu havíamos briga-
jamais depositei em outros do antes da viagem, ou se
Acendo um cigarro, o ouvidos.
último do maço, e deixo a eu me imaginei discutindo
brisa da noite roçar minha Mas descuidamos, não com ela, sempre por causa
barba. Tudo aqui dentro, cultivamos bem o amor — de alguma trivialidade co-
na casa e no peito, e lá a sorte grande que tivemos tidiana — a toalha molha-
fora são recordações dela. na vida — e este frágil sen- da sobre a cama, esquecer-

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me de baixar o assento da mais te ver. fixo em algo atrás de mim,
privada, espremer a pasta Desliguei, para não ter risinho sardônico.
de dente no meio do tubo de ouvir a resposta. Uma eternidade trans-
e não no fim, calcinhas correu naquele simples
penduradas no registro Meia hora depois, a
campainha: era Linda. movimento de girar o pes-
do chuveiro, detalhes que coço e visualizar Christia-
deixam de ser detalhes Ela entrou, dependu- ne parada na porta, mão
com o passar dos anos —, rou seu casaco no cabide tapando a boca em assom-
mas Linda me seduziu (ou e me beijou. Christiane bro.
deixei-me ser seduzido) e não estava em casa. Semi-
dormimos juntos. nus, conduzi Linda a meu Que explicação dar?
quarto e, banhados pelas Que explicação existe para
Tratei de apagar a me- uma mulher desnuda e o
mória deste deslize, como mesmas luzes e sons desta
rua que agora fito, nos marido só de cuecas na
se isto fosse possível. Se- cama? Ganhei um concur-
manas depois, Linda bateu amamos.
so literário uma vez, mas
à porta de casa, havia se — Você precisa ir... — não, não sou tão criativo
mudado para a cidade, sussurrei no ouvido dela assim.
queria minha companhia — precisa ir agora.
para jantar. Christiane partiu naque-
— Não, não vou — Linda la noite; Linda foi embora
— Quem é? — Christia- apoiou a cabeça sobre o dois dias depois, soube
ne me perguntou, saindo antebraço, olhar frio. que para reatar um noiva-
do banho. — Por favor — a voz do com um moço da sua
— Uma amiga de juven- súplice quase me falhou cidade.
tude, gritei, convida-nos — a Chris logo estará aqui Hoje, descobri o ho-
para jantar. e, dito e feito, pude ouvir tel onde Christiane está
— Estou exausta, dor-de- a chave lutando contra hospedada e enviei-lhe
cabeça, pode ir se quiser. aquela maldita fechadu- um telegrama, implorando
ra emperrada. Apanhei para que viesse e conver-
Eu não queria, porém as roupas da Linda e as
Linda ameaçou revelar sasse comigo.
joguei sobre ela.
nosso caso a minha esposa Desde então, aguardo.
se eu não fosse. Conven- — Vai agora, puta que Por horas, por longas e
ceu-me. pariu! dolorosas horas.
E as camadas de men- Mas ela não moveu O interfone toca e corro,
tira começaram a se acu- um dedo, deitada, nua, na tropeçando em chinelos e
mular, de hotéis a hotéis cama minha e de Chris- livros, para atendê-lo.
com Linda, e eu me obri- tiane.
— Sou eu, Tim.
gando sempre a surgir Desesperei-me, segurei-a
com uma desculpa cada pelo braço, chacoalhan- Não me chamo Tim,
vez mais elaborada para do-a e tentei arrastá-la suponho que o fulano
justificar minhas intermi- para fora, para algum tenha apertado o número
náveis escapadas noturnas. lugar, para a sacada, para errado. Retorno à janela e
o armário, para qualquer reviro os bolsos à procura
Quantas vezes não por outro cigarro, lembro-
tentei pôr um ponto-final, lugar. Ela se segurou nas
barras de ferro da cabe- me então que não há mais,
mas fui dissuadido pelas bolsos tão vazios quanto
ameaças de Linda? ceira, debatia-se, chutando-
me, grunhindo, resmun- todo o resto.
Tomei coragem e telefo- gando. Isto eu já imaginava,
nei para ela. Christiane não virá.
Subitamente, Linda
— Acabou. Não quero deixou de resistir, olhar

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Contos

Prisioneiro em si
Léo Borges

http://www.flickr.com/photos/a_mason/97991107/sizes/l/
– Vou embora. Eu estou disso, de liberdade, mas porque com o rompimento
namorando a Silvia. Quero Laura propiciou-me, com pude descobrir, enfim, que
que você entenda a minha aquele ato, a oportunida- estar livre é, em verdade,
liberdade, porque estou de do meu primeiro livro estar mantido sob engano.
procurando ser feliz. não-escrito de sucesso, Ou seja, a liberdade seria
o que mostrava, então, a o perfeito ópio da huma-
Com essas palavras verdade sobre essa palavra nidade. Estarmos presos a
minha mulher se despe- com a qual os poetas ilu- conceitos dimensionais é
diu de mim, alguns anos dem os tolos: a derradeira melhor do que compreen-
atrás. A incompreensão e obra sobre a inexistência dermos as armadilhas de
a dor foram elementos que da liberdade. um mundo supostamente
me acompanharam desde livre. E esta clausura trans-
então, intensos como de- Laura saiu do matrimô- parente é que nos mantém
veriam ser. Mas não foram nio para poder entrar na esperançosos em algo que
maiores do que a reflexão vida de outra mulher e nunca chega, mas que nos
que fiz sobre os núcleos acreditou que assim seria auxilia em nossa submis-
daquela estrutura oracio- feliz. A felicidade, embora são.
nal: “liberdade” e “ser feliz”. seja um agente ilusório, é,
Naquela época, eu poderia paradoxalmente, passível A fé nessa liberdade fic-
me declarar escritor, ro- de ser procurada. Liber- tícia atrapalha nosso curso
mancista de uma literatura dade, então, seria algum natural e nos aprisiona
esparsa, livre na acepção ânimo misterioso que nesse deprimente cenário
da palavra, mas que – de- nos mantém ativos nesta de falsas alegrias, impedin-
pois descobri – não era busca. De fato, seria mes- do que vidas se enveredem
verdadeira. Procurava levar mo terrível se todos se por cenas paralelas, fossem
entretenimento às pessoas, descobrissem presos. Por estas a plasticidade de um
prendê-las a minha fan- isso minha admiração por suicídio, conforme bem
tasia frugal. Falava muito Laura nunca acabou, até demonstrou Hemingway,

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ou através do prazer orgí- Queriam ser solidários, calor dos sentimentos, as-
aco, pecador por definição mas eu sentia pena deles. sim como os cientistas que
cristã, desde sempre con- Por sorte minha, escritores inventam remédios, passam
firmado por Calígula. Nes- de uma forma geral não suas vidas trancados em
se sistema perverso onde têm sua vida tão esmiu- frios e limpos ambientes
democracias são impostas çada na mídia como os ministrando pílulas que,
e necessidades são criadas, pobres artistas de TV. Estes pretensiosamente, seriam
eu era apenas mais uma sofrem muito mais com fo- a cura de todos os males.
peça. Toda a cegueira nessa tógrafos amaldiçoados, fãs A indústria farmacêutica
crença mentecapta fazia histéricos e outros entes é um dos tentáculos des-
com que não deixassem hediondos. se monstro invisível que
de comprar meus livros aprisiona nossas almas,
medíocres sobre esse Mal. Foi quando resolvi que que fomenta esse massivo
O último, então, com um não iria mais sair do meu ataque a seres inofensivos
belo e embusteiro título – apartamento. A partir daí como a dona Célia. Dava
“A liberdade que nos rege” comecei a perceber algu- pena ver as suas tentativas
– vendeu bastante. mas coisas não identificá- de me “salvar” desta doença
veis do tempo em que eu perniciosa. Como eu não
Assim que Laura foi acreditava na liberdade. queria encontrá-la, ela, vez
embora mergulhei no Nesta pequena sucursal por outra, soltava o Guar-
triunvirato que sublima a de cárcere da vida en- dião, seu gato preto, para
vida de qualquer escritor tendi melhor o formato que, sorrateiramente, ele
de sucesso: álcool, tabaco e deste perverso sistema. viesse me fazer companhia.
bordéis. Essas experiências Minha sala era claramen- O que mais me causava
foram boas para minha te claustrofóbica, mas, ao comoção, porém, era outra
metamorfose. Autodes- mesmo tempo, eficiente curiosa iniciativa sua: ela
truição, obviamente, não em me dar respostas: com comprava e mandava o en-
significa liberdade, mas é meu corpo confinado, eu tregador da farmácia trazer
o melhor caminho para podia enxergar melhor a para mim uma caixinha de
compreender sua inexis- prisão da alma. Meu lar, Rivotril a cada quinze dias.
tência. Chegava carrega- então, se tornou o escritó- A atitude da Laura fez com
do por estranhos ao meu rio ideal para meus livros que dona Célia se roesse
apartamento e vomitava não-escritos. Não saía para em remorsos e, então, ela
sobre rascunhos de minha mais absolutamente nada. procurou esforçar-se para
próxima obra, “Alavancan- Abria a porta para pegar a cuidar do maluco aqui.
do o sonho de ser livre”. comida com o entregador Quando estava cansado de
Meu público-alvo, normal- e pagava com cheques que escrever minhas baboseiras
mente mulheres na casa eram trazidos, por sua vez, líricas sobre liberdade eu
dos cinquenta, adora essas pelo contínuo do banco. deitava no sofá, arrancava
picaretagens literárias. E Ninguém mais me visitava. uns comprimidos da carte-
eu, o pilantra maior, preso Minha promotora tratava la e ficava tentando acer-
ciente desta sina cruel de de minhas publicações tar Libertad, um pequeno
forjar histórias românticas através do telefone ou de camundongo que resol-
e assépticas com o objetivo mensagens pelo compu- veu fazer morada entre o
espúrio de ser reconhecido tador. Minha sogra, dona amontoado de livros, rebo-
como “o escritor da liber- Célia, que infantilmente co de parede, papéis rasga-
dade”. A imprensa soube repudiou a idéia separatis- dos e roupas por lavar que
de minha separação, mas ta de sua filha, morava no eu zelosamente mantinha
não os detalhes. “Parece mesmo andar e insistia na num dos cantos da sala. O
que sua esposa mantinha tese de que eu estaria com alvoroço desesperado de
um caso homossexual há a chamada Síndrome do Libertad, ao ser incomo-
anos”. Alguns criticaram Pânico e que precisava de dado pelo bombardeio de
pesadamente a decisão de auxílio médico. remédios, era sempre an-
Laura, não conseguindo gustiante, pois sugeria que
nem mesmo esconder a Ah, os médicos! Des-
ele precisava de alguém o
homofobia das declarações. compromissados com o
acossando para se manter

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vivo, como se estar sendo carrinho de bebê; o execu- disso. Eu não costumava
perseguido fosse a melhor, tivo engravatado apressado sentir o coração apertado
ou talvez única, saída para com sua maleta marrom. por qualquer coisa, mas
a sua sobrevivência. Uma Havia ali o espectro de naquela tarde senti. Pela
perfeita parábola sobre uma sociedade desconfia- saudade do camundongo
liberdade. da, aprisionada dentro de e, depois, por dona Célia.
si. Claro estava que aquele Minha cabeça estava presa
Na tal “vida livre” que imaculado e entediante es- nela por isso: a frequência
eu levara até poucos anos paço arborizado necessita- de seu gato em meu cár-
atrás nunca havia refleti- va – em caráter de urgên- cere diminuíra bastante
do com seriedade sobre a cia – de uma tragédia que desde que ele destroçara o
praça em frente ao meu o livrasse da angustiante e pequeno roedor. Teria ela
edifício e nem sobre os demoníaca candura a que descoberto o assassinato e
casais de namorados que fora submetido. Algo que proibido o bicho de vir-me
esculpiam coraçõezinhos reconduzisse todos aqueles fazer companhia? Era uma
no corpo das árvores rode- passantes de comporta- idéia absurda, mas deveria
adas por cercas metálicas. mento mecânico, e as com- ser respeitada.
Para eles, tatuagens como placentes copas das árvores
aquelas deveriam significar artesanalmente podadas, Notei que o entregador
o chamado “amor infinito”; a um estado natural; que da farmácia também pas-
coisa tão besta quanto a li- interrompesse todo aquele sou a entregar o Rivotril
berdade que os solteiros se burocrático ciclo no qual em datas incertas, com
regozijam em acreditar que pessoas lutavam, minuto espaços maiores. Achei
saboreiam. As grades cir- a minuto, por coisas su- que dona Célia estava,
cundando os troncos, antes postamente indispensáveis, finalmente, esquecendo seu
de serem incongruentes cumprindo destinos como genro escritor. Ela era uma
celas para caules depre- se lobotomizadas estives- leitora assídua de minhas
dados, representavam um sem. Mas o conceito de “liberdades para dondocas”
modelo de prisão empírica, liberdade funciona desta e gostava de mim com
não da planta como estava forma, com esse ardil ­– uma sinceridade maternal.
óbvio, mas de seus reais uma filosofia difícil de ser Estaria certa ela em querer
detratores – nós. A clau- enxergada e que não admi- esquecer um cara pessimis-
sura em maior amplitude, te nenhum tipo de contes- ta, possivelmente doente,
aliás, podia ser contem- tação. intimamente derrotado e ir
plada com um mínimo de atrás da pseudo felicidade
esforço: prédios cercados De minha janela eu da filha e seu bonito amor
por telas eletrificadas, o co- passava muitas horas homossexual? Um amor
mércio repleto de cadeados observando aquele aflitivo condenado pela sociedade
e travas eletrônicas, pare- vai-e-vem de personagens não poderia ser também
des e muros cobertos com do meu livro não-escrito, repudiado por nós. Sabía-
arames farpados. A própria principalmente dona Cé- mos da leviandade dos sen-
alameda se encontrava asfi- lia, cuja vida era olhar timentos e engrossar essa
xiada em meio às cinzentas vitrines de lojas. Naquela lista seria seguir o script
construções, entrecortadas noite pensei muito em mundial da hipocrisia.
por agressivos neons de minha sogra enquanto Naquele instante me senti
publicidade. mirava, com um remédio profundamente infeliz; uma
entre o polegar e o indi- tristeza torpe, totalmente
O mendigo catando lixo cador, uma camisa roída incompatível com o que eu
para comer, um cachorro no chão, local por onde o vinha descobrindo desde a
acompanhando-o de perto; ratinho aparecia. A gola minha separação.
crianças correndo entre os suja de sangue lembrou-
tubos de ferro do brinque- me do incidente: Libertad Tentava escrever mais
do enferrujado; o vende- já não vivia entre nós. Ele alguma bobagem para pre-
dor de algodão-doce com havia sido destruído por encher o último capítulo
olhar triste; a babá sem Guardião numa de suas de mais uma obra, mas o
expressão empurrando o visitas, e eu me esquecera cursor não saía do lugar e

40 SAMIZDAT julho de 2009


40
deixava estática na tela a lado... e só lembra de meu rio, estava ela própria se
única frase daquela página: nome quando falo dos seus libertando de toda a uma
“E aquela doença parecia livros. Meu Deus! Ela se doutrina nefasta, impiedo-
livrá-la da prisão conjugal”. tornou uma prisioneira em samente sistematizada, que
Eu não sei se teria cora- si... nos humilha desde que
gem de concluir esse livro. nascemos.
Eu não aguentava mais Laura me abraçou aper-
trapaças, desonestidade tado. Seu choro era tão – Trouxe o seu último
e incompreensão comi- estridente e convulsivo que livro?
go mesmo. O fim de um mal conseguia respirar.
Tentei acalmá-la levando-a A pergunta da minha
escritor miserável estava
para o sofá e oferecendo sogra fez com que eu ini-
perto. Despejado de meu
um comprimido que ainda ciasse meu segundo livro
cárcere, iria viver como
não havia sido arremessado não-escrito. A doença de
uma das personagens que
sobre o camundongo. Fo- Célia a estava fazendo en-
criei, catando restos para
mos até o apartamento da trar em contato com algo
sobreviver.
dona Célia e lá eu tomei que não podemos con-
Meus dedos se afastaram uma de suas mãos com quistar por nossa vontade.
do teclado e apertaram carinho. Guardião, cujo Na verdade, ela estava me
meus ouvidos. Aturdido penetrante olhar felino era provando que a liberdade,
dentro de mim, por pouco detentor de uma acusatória sim, a liberdade existe. O
não escutei a campainha. expressão, acompanhava desligamento lento e pro-
Eram três horas da manhã. o pesaroso arrastar de gressivo da mente daquela
Quem iria importunar um corpos pela sala de sua mulher me apresenta-
escritor em pleno horário dona. Silenciosamente e va uma nova percepção
de trabalho? Todos sabiam sem lhaneza, éramos apon- do que seria a cristalina
que eu não recebia quem tados pelo taciturno ani- possibilidade de se estar
eu não esperava – normal- mal como os verdadeiros livre. Quando questiona-
mente os entregadores de culpados por toda aquela ra – em minha mente – o
comida ou de remédio. Po- incômoda situação. Quem seu esquecimento sobre os
rém o barulho da campai- sabe culpados até por toda remédios e sobre a soltura
nha insistiu e uma curio- a mesquinhez humana. do gato, estava, mais uma
sidade mórbida levou-me vez, a serviço desse Impé-
até à porta. Não acreditei Minha sogra desenter- rio que procura arruinar a
quando, pelo olho mágico, rou um sorriso como se verdadeira liberdade, liber-
vi Laura chorando do outro estivesse diante de alguém dade esta que agora estava
lado. Chorava como se ela que, inadvertidamente, sendo provada. A dor de
própria também houvesse fugira de sua prisão. Na- todos a sua volta não iria
acabado de descobrir que quele quarto de paredes encontrar alicerce em sua
a liberdade realmente não escurecidas pelo tempo eu felicidade interior. Dona
existe. percebi, com uma alguma Célia estava, ela própria,
felicidade, que novamente construindo o prefácio de
– Minha mãe! Minha Laura errara: dona Célia minha nova obra fantas-
mãe... ela está com Al- não estava virando refém magórica, enfim, livre de
zheimer... meu Deus... de sua doença, não estava dogmas, culturas, verdades
ela não lembra da Silvia, se tornando uma prisionei- e certezas.
nem quando está ao meu ra dentro de si. Ao contrá-

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Contos

Camuflagem
Marcia Szajnbok

http://www.flickr.com/photos/nitsrejk/3065286013/sizes/o/

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O lugar onde
Horas a fio a observar o Imaginava. a boa Literatura
pequeno exército de for-
migas. Marchavam sobre a
mesa, capturavam migalhas
Do que riria a moça?
Que livros, naquelas mo- é fabricada
e restos de açúcar, inva- chilas? Que travessura
diam o pote mal fechado teria feito a pequena que
de geléia. A cabeça apoia- chorava e se lambuzava de
da sobre os braços, só os lágrimas e chocolate? O
olhos de fora, bem abertos. que lhe diria, se fosse ela
própria aquela mãe?
Imaginava.
Os olhos procuraram
Persegui-las, esmagá-las furtivamente o mostrador
uma a uma, afogá-las em do relógio. Meia hora de
leite quente. atraso.
De onde vinham? Es- Imaginava.
quadrinhava os azulejos à
procura da fresta. Abre-te, Na trupe adolescente,
sésamo! E se jogasse lá den- devia dar-se uma quadri-
tro um pouco de álcool, e lha: Carlos amava Dora,
depois enfiasse um palito que amava Paulo, que ama-
de fósforo aceso pelo bu- va Lia... A velhinha lem-
raco? brou-lhe a avó. Saudade.
Imaginava. Uma hora. Tantos rostos,

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
menos aquele.
Gritos desesperados, as
pequenas pernas esturri- Uma hora e meia de
cadas como gravetos em atraso. Ele não vem mais.
miniatura.
Imaginava ainda.
Imaginava. Só.
Haveria, decerto, um
Só imaginava. bom motivo. Morreu
alguém. Foi assaltado. Ele
*** próprio podia estar morto.
E se jogasse sobre ele um
Parada diante da estação, pouco de álcool e depois
vestida de cinza no tom da um fósforo aceso? Gritos
parede, fazia-se invisível. desesperados, o corpo viril
Gostava de ficar ali, ocul- retorcido e carbonizado.
ta no mimetismo urbano, Um resto.
observando as pessoas.
Só.
Iam e vinham aos bor-
botões. Formigas. Teria sido um bom en-
contro, se ele tivesse vin-
Casais riam juntos, do. Talvez fossem felizes.
alguns de mãos dadas. Talvez tivesse aprendido a
Crianças portando mochi- amá-la. Talvez tanta coisa.
las. Outras, menores, puxa-
das pela mãe que desfiava A noite caía e mais
aos ouvidos desatentos cinza a cidade mais a es-
algum discurso moralizan- condia, desfeita de formas
te. Adolescentes em turbas junto à rua borrada de
barulhentas esbarravam chuva e de gente.
numa velhinha que pre-
cisava do corrimão como A vida passava. Continu-
apoio. Todos disputando
a entrada estreita do trem
que, implacável, partia em
trinta segundos.
ava só.
Só imaginava. ficina
www.oficinaeditora.org

43
Contos

Barbara Duffles

O dia em que o farsante


encarou o espelho
Já estava desconfiado centenas de livros de au- manteve, cansativo. Como

http://www.flickr.com/photos/cuppini/1075324454/sizes/l/
há anos. Mas, ao comple- tores consagrados em sua puderam comprar seus
tar seu 40º aniversário, estante, lidos pela metade livros ao longo desse
Toby não teve mais como ou intocados, assinavam tempo?
fugir. Definitivamente – e embaixo que ele realmen-
disse isso mirando-se fir- te era uma farsa. Longe Lembrou-se do que
me no espelho – ele era de ser o intelectual, o dizia às mulheres para
uma farsa. Que ninguém culto, o sensível, carac- conseguir dormir com
lá fora me ouça, pensou. terísticas que os outros elas. “Além de escritor,
lhe creditavam, e que ele também sou pintor”. Fail,
A constatação deixou piamente acreditava. fail, fail. Os quadros mal
Toby frustrado. Por mais pintados, ou abandona-
que, vez ou outra, uma Rememorou seus dos por fazer no quarti-
vozinha do além tentava textos, escritos desde a nho dos fundos diziam o
convencê-lo de sua inu- adolescência até então, oposto. Que feio.
tilidade, a auto-estima e percebeu como eram
sempre lhe disse que ele rasos. Todos nada mais Toby agora estava dian-
era o máximo. Agora eram que variações do te de um dilema moral:
Toby sabia que estava mesmo tema, as palavras revelar ou não ao mundo
mais para mínimo, e as se repetiam, o estilo se que era uma farsa? Assu-

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44
mir publicamente que é estranhando a sonori-
Henry Alfred Bugalho
mais raso que um prato dade. Barbara. Barbara. A
GUI
Nova York
de salada, ou seguir fin- “Nome bruto”, pensou.
gindo profundidade, cau- Olhou-se no espelho e
sando inveja em amigos, encarou a imagem. “En-
comendo mulheres incrí- tão essa sou eu”. Não se para Mãos-de-VAca
veis, ganhando dinheiro reconheceu. Reparou
sem derramar uma gota em cada detalhe do ros-
O Guia do Viajante Inteligente
de suor? to refletido: olhos, nariz,
boca. O buraquinho no www.maosdevaca.com
Toby não tinha co- lado esquerdo da boche-
ragem de renegar-se. cha. Esta pessoa era ela,
Não aos 40 anos. Não ia assim como era ela o
manchar sua existência nome estranho repetido
por isso. Afinal, o resto diversas vezes. Mas nada
do mundo, pelo menos lhe era familiar, nem o
a maioria, também é de nome, nem a imagem. Em
farsantes. Gente que entra seu mundo interior, Bar-
para a história com base bara era uma figura sem
em mentiras. Ele é que forma, uma sensação, um
não ia ser bobo de quei- buraco negro que ora se
mar o próprio filme. esticava, ora se encolhia.
Não tinha rosto, mui-
Resolvido o embate
to menos uma palavra
consigo mesmo, Toby
que a designasse. Ela era
deu um sorrisinho cínico
seus sentidos, era o que
para o espelho e desceu
enxergava, ouvia, pega-
para o salão, onde acon-
va, comia e cheirava. O
tecia o lançamento de
espelho lhe mostrou um
seu mais novo best seller,
ser desconhecido. Um ser
“A inteligência é para
chamado Barbara, que,
poucos”.
por acaso, ela era mesma.
Muito prazer.
*******

****
Barbara

Textos publicados no
Sem saber o motivo,
blog Não Clique e no livro
começou a pensar no
Não Abra
próprio nome. Barbara.
Repetiu-o algumas vezes,

www.revistasamizdat.com 45
Contos

O Admirador
Parte 4: Rostos
Maristela Scheuer Deves

http://www.flickr.com/photos/victoriapeckham/164175205/sizes/o/

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Acordou do desmaio da praça, o taxista, to- cimentos voltando como
deitada na cama e tendo dos pareciam olhá-la de uma torrente. De repente,
ao lado uma aflita cama- maneira estranha, furtiva, um dos rostos do sonho
reira, que não sabia o que suspeita. fixou-se na sua mente.
fazer com aquela hóspede Claro!, pensou, começan-
Não foi diferente ao
que desmaiava ao receber do a tremer mais uma
chegar no prédio no qual
uma simples rosa. Por vez. Como não pensara
morava: o homem que
mais que perguntasse, nisso antes? Era óbvio, só
saía rapidamente e no
não conseguiu descobrir podia ser...
qual esbarrou, o zelador,
quem deixara a flor na
a meia dúzia de vizi- Estranhamente recon-
portaria – mesmo resul-
nhos pelos quais passou fortada agora que sabia
tado dos inquéritos que
no corredor – seria um quem era seu inimigo
fizera quando da entrega
deles?, perguntava-se ao – sim, tinha certeza, não
dos buquês no seu apar-
olhar para cada rosto. havia outra alternativa
tamento. A cabeça ainda
Trancou a porta do apê e –, sentiu-se calma pela
girando, questionou-se se
depois a porta do quar- primeira vez em meses.
valia a pena continuar no
to. Jogou-se na cama, em Foi ao banheiro, lavou o
hotel, uma vez que o es-
lágrimas. Não aguenta- rosto, voltou ao quarto e
conderijo fora descoberto
va mais. Acabou ador- arrumou-se cuidadosa-
tão facilmente.
mecendo, e nos sonhos mente. Então, saiu rumo
Decidida, apanhou a – ou alucinações? – os ao Cemitério Municipal.
mochila e desceu para fe- rostos mais uma vez se O horário do enterro es-
char a conta. Pensou em sucediam, conhecidos tava chegando, e ela esta-
almoçar – já era quase ou desconhecidos, todos va decidida a não perder
meio-dia, o tempo se es- ameaçadores. a festa de jeito nenhum.
coava rapidamente –, mas
Acordou com o toque
abandonou a idéia. Sabia
insistente da campainha,
que, naquela aflição, nada (não perca, no próximo
e assustou-se ao olhar
pararia no seu estôma- mês, o final dessa histó-
no relógio: já passava das
go. Rumou de volta para ria!)
16h! Ainda semi-ador-
casa, e, no caminho, jurou
mecida, olhou pelo olho
que seus últimos resquí-
mágico, mas não havia
cios de sanidade tinham
ninguém no corredor. A
se esvaído: o porteiro do
dormência evaporou-se
hotel, o guarda parado
como num passe de má-
na esquina, o senhor de
gica, os últimos aconte-
idade sentado no banco

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Contos

Giselle Sato

Parceiros
http://www.flickr.com/photos/dharmasphere/28307816/sizes/o/

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A delegacia abarrotada um sorriso disfarçado e não era hora de perguntar
fedia naquela noite típica acompanhou o preso até o nada, sentou-se no banco
de verão. O odor entra- carro. do carona e deixou que
nhava na roupa e pele de Barbosa assumisse a dire-
Naquela noite, não
quem fosse obrigado a ção:
usariam a viatura. Vinte
chegar próximo à carcera-
e dois anos trabalhando - Porra! Na hora do rush
gem.
juntos davam-lhe conhe- ir pra Caxias é um infer-
Lotação mais que esgo- cimento de causa. Eram no.
tada, seminus eles alterna- mais que amigos, um
- Posso dirigir...
vam as posições de pé e batizou o filho do outro,
sentado. Magalhães acen- passavam as folgas com - Não! Não confio em
deu um cigarro por pura as famílias reunidas em ninguém no volante.
maldade, inalou e soltou intermináveis churrascos.
- Desculpe, quer con-
devagar a fumaça. Enquan- Todos admiravam a dupla,
versar? Porque está tão
to observava os olhares co- eram dignos de confiança
irritado?
biçosos, percebeu o olhar e respeito. Barbosa sempre
de reprovação de Barbosa:- agitado e Magalhães pon- - Nada demais. Coisa da
Algum problema? derado e bonachão.Barbo- vida, desta vida de merda
sa estava irritado: Havia que vivemos. Deste salá-
- Nenhum .
brigado com a mulher, o rio de merda, deste carro
- Já estão trazendo o carro enguiçou e o filho bichado e deste boneco,
preso, daqui a pouco saire- estava para ser reprovado. filhinho de papai senta-
mos deste inferno. Na realidade, a mulher do aí atrás rindo de nós.
informou a separação Motoristas de um moleque
- No final do plantão...
durante o café da manhã riquinho e safado. Vicia-
Não dá pra acreditar!
e no instante seguinte, do da porra! Traficante de
- Chegou o boneco. Va- deixou a casa com todos merda! Quer que eu expli-
mos andando. os pertences. Barbosa e o que mais alguma coisa?
filho nada falaram... Cada
O rapaz chegou alge- Magalhães já estava
qual seguiu sua rotina,
mado, cabeça baixa e bem acostumado com as pata-
como se nada houvesse
machucado. Franzino e das do amigo, acendeu um
acontecido.
encolhido como se fosse cigarro e relaxou. O preso
possível tornar-se ainda Não era a primeira vez sentado no banco de trás,
menor. Barbosa lançou o que ela ia embora e depois soltava risadinhas de vez
famoso olhar de soslaio, retornava arrependida. em quando... pela primeira
mania irritante que apenas Infelizmente daquela vez, vez, Magalhães olhou com
ele julgava ameaçadora. Barbosa jurou que seria a atenção. Apesar do des-
O parceiro ignorou com última.O amigo sabia que conforto, o jovem exibia

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uma expressão altiva e deu outro cigarro. A rodo- estado era crítico. Barbosa
parecia muito à vontade. via estava completamente soube imediatamente que
Ele sabia que estava sen- deserta, um vento gelado tinha quebrado as pernas:
do transferido para uma soprava e Magalhães dese-
- Barbosa! Ajude... Estou
delegacia melhor. Naquela jou ter faltado ao plantão.
morrendo...
hora da noite, Magalhães Havia acordado com maus
entendeu que era tudo pressentimentos e infeliz- - Maldito! Era para estar
muito irregular e não mente não seguiu o instin- morto! Safado... Pensa que
devia fazer perguntas. O to. Finalmente, o detetive não sei do seu caso com
preso começou a rir alto e Barbosa deu partida no Inês? Pensa que não notei
Barbosa jogou o carro no carro e pegou a rodovia: que crio seu filho? Pensa
acostamento: que sou idiota? Todos estes
- O que vamos fazer?
anos... Eu só queria te ver
- Vou dar um jeito neste
- Entregar o boneco, não morto, mas você sempre
palhaço.
foi para isto que viemos? sobreviveu... Nunca levou
- Calma, o moleque tá um tiro! Armei tantas e
- Ele está morto, se não
doidão. nunca levou um tiro! Mas
percebeu... Irão ver na
hoje ela pediu que você
- Eu estou calmo! hora.
viesse...para não levantar
Não adiantou argumen- - Eu sei. suspeitas.
tar, Barbosa desferiu uma
- Ei amigo! Está corren- Barbosa testou a porta
série de socos na cabeça
do demais, porque esta e conseguiu abrir com
do preso, transformando
pressa agora? Barbosa, dificuldade. Girou o corpo
o rosto em uma massa
estamos a 120, 140... Bar- e soltou um grito agudo
disforme e sanguinolenta.
bosa! Diminua esta porra! enquanto jogava as pernas
A muito custo, foi contido
Olha a árvore! para fora do automóvel.
e jogado no asfalto. Maga-
Magalhães arregalou os
lhães tentou socorrer , mas O carro colidiu contra a
olhos de puro horror,
o rapaz regurgitava san- árvore e como é do conhe-
enquanto Barbosa tirava o
gue por todas as vias. Em cimento geral, o instinto
maço de cigarros de seu
poucos segundos, estre- sempre obriga o motoris-
bolso. O fumo acendeu e
meceu e caiu para o lado. ta a se proteger. O preso
Barbosa puxou com força,
Barbosa certificou-se que atravessou o vidro e foi
até transformar a ponta
o rapaz estava morto, tirou arremessado no matagal à
em uma brasa viva. Len-
as algemas e calmamente margem da rodovia. Toda
tamente deixou o cigarro
retomou o volante. a lateral ficou completa-
cair no fundo do carro.
mente destruída, Maga-
O parceiro sabia que ele
lhães preso às ferragens
devia estar pensando, não
ainda respirava, mas o
ousou interromper e acen-

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www.revistasamizdat.com 51
Autor Convidado

http://www.flickr.com/photos/otto-yamamoto/3208625616/sizes/l/
O DITO SEXO E
A TAL CIDADE Miguel Castro

O esforçado Jojo la Rue não uma pequena Meca do rocka- tas, e da sua terceira Budwei-
consegue fazer-nos rir. Acre- billy ao vivo e furioso, num ser, separei-me em Portugal há
dito que o sotaque cerrado pequenérrimo e suado palco, dois meses e não é todas as
dificulte a teatral tarefa, no após uma conversa esta tarde noites de sexta-feira que ando
meio de tantas anedotas de al- com um empregado da Trash por Nova Iorque e encontro
gibeira a sair a ritmo e táctica and Vaudeville, uma loja de uma ruiva de Queens, não
de coelhos da cartola, impe- roupas incríveis em St Marks acompanhada, francamente
cavelmente brancas e dobra- Place, e rocker amador numa bonita, neta de irlandeses, à
dinhas, como lenços prontos garagem em Brooklyn Heights beira de um fim de semana
a sujar de rompante, e umas com uns tais Skinny Boy Jones, sem os dois filhos que andarão
piadas de política emoldurada, promissores, ao que me queria a melgar o pai, e ex-marido.
cujos contextos são para um fazer ver. – Estás com tempo? Queres
português vizinho de Espanha, Só não me vou embora andar por aí? Ir a outro sítio
perfeitos estranhos. por Trisha. Quase uma hora qualquer? – pergunta-me com
A restante meia dúzia de de conversa depois de a ter o tal brilhozinho nos olhos
clientes pingados presta mais visto, e tão revisto, na mesa que me parece ser aquele de
de uma atenção quase re- ao fundo, tenho uma daquelas que uma antiga canção do
verência às cervejas, do que certezas irredutíveis de que- Sérgio Godinho fala.
ao candidato a comediante rer tê-la bem mais perto de Andar por aí, hang out,
anunciado à porta deste Otto`s mim do que os dois palmos como se diz nesta cidade tão
Shrunken Head (a cabeça mir- de diálogo e alguns risos entre viva, onde as noites são tão
rada do Otto), nome fantástico nós, enevoados pelo fumo do intensas como sexo, é uma
para um bar algo polinésio na seu cigarro. O sincero desejo óptima sugestão, para já.
Rua 14, leste, entre as avenidas de sexo demorado e explícito
A e B. Vim cá à procura de é-me implícito. Afinal de con- Lá fora apercebo-me do
esgar da lua, surpreendida, e

52 SAMIZDAT julho de 2009


52
logo depois, à luz da montra geral também indianos, e com um ar sério.
de mais uma de prováveis cen- turbante. Aceito e deixo-a ler-me o
tenas de lojas de conveniência – Temos a minha casa em rosto. Eu próprio começo a
geridas por indianos, entendo Queens – sorri – quem sabe achar que valerá a pena ver
o porquê. noutra ocasião qualquer. Estou página a página desta mu-
É que Trisha é mesmo bo- a gostar demasiado de te co- lher com tanto de rapariga,
nita. nhecer para arriscar estragar e dar-lhe uma bem merecida
OK. Jogo. Tudo ou nada, tudo com uma rapidinha. atenção.
não é? Aposto tudo. Mas quem falou em rapi- – Primeiro tens de me deixar
Uns passos de silêncio subi- dinhas? A fulana deve estar gostar de ti, entendes? – ofe-
tamente acanhado à frente, e mal habituada. E muito menos rece-me um beijo surpresa ao
que ameaça desatar a pigarre- estragar. Argumento e tento. meu queixo. – Como tu gostas
ar, paro e pergunto-lhe olhos Portuguese do it better. Asse- desta cidade.
nos olhos, e olhos no passeio, guro e rio. Entendo.
se há algumas expectativas re- – Olha à tua volta, ó Lisbon Trisha sugere-me um Rodeo
ais, uma probabilidade daque- guy. – Trisha sorri-me durante Bar, onde a Country Music
las bem boas, de… pois… mais tempo, e consegue fazer- acontece, e a Bluegrass arrasa.
portanto… bom… isto me cócegas no coração. Sou todo ouvidos, pernas e pés.
é… ou seja… de em breve Faço o que me pede.
irmos para a cama. Trisha pelos vistos, botas e
– Gostas do que vês? – gostos, também.
E até nem estamos nada pergunta-me depois de eu em
longe do hotel onde estou Trisha dá-me o braço.
para aí cada dez minutos de
hospedado. companhia lhe ter ciclicamen- E caminhamos.
E os táxis nesta terra, de te apregoado que adoro Nova Algures na 8ª avenida ganho
lentidão têm pouco, são por Iorque. uma noite no sofá da sua
vezes conduzidos por uns clo- – E agora deixa-me olhar sala. Com oferta de pequeno
nes do Fittipaldi, regra quase bem para ti – pede-me com almoço.

Miguel Castro nasceu em Ju- Porquinhos da Ilda com a qual de várias pequenas histórias. Um
lho de 1967 em Lisboa. Cresceu decidiu definitivamente fazer da hábito que ainda hoje prevalece.
sempre com vontade de escrever e música uma profissão a tempo Em 2003 fundou a Espanta
a alimentar-se de doses maciças inteiro. Graças à irreverência, Espíritos, empresa de manage-
de música. Aos 16 anos desistiu humor peculiar, sonoridade, e a ment, agenciamento, e produção,
de perseguir e atormentar o seu animada presença em palco que que gere as carreiras de grupos
pai quando este finalmente lhe os caracterizava, os Porquinhos do panorama musical português
comprou uma guitarra eléctrica e da Ilda realizaram centenas de como Corvos, Verdes Anos, Dina,
um amplificador. concertos por todo o Portugal e e Mariária, entre outros. No verão
Em 1986 ingressa na Faculdade editaram 3 álbuns, destacando-se de 2004 começou a escrever o seu
de Ciências de Lisboa para cursar o hit radiofónico “Canguru” em primeiro romance ANDA CÁ FAZ-
Geologia. 1997. ME TUDO O QUE QUISERES,
Integrou a formação de várias Em 2000 fundou a sua primeira que foi editado em Setembro de
bandas com as quais, e também a empresa de management e produ- 2005 pela Sete Caminhos.
solo, percorreu o circuito universi- ção de espectáculos, a Oink Músi- Actualmente Miguel Castro conti-
tário dos cafés-concertos e alguns ca, e tornou-se responsável oficial nua a ser músico, como sempre foi
bares em Lisboa. Em 1991 grava a pelas carreiras de Porquinhos e será, coordena os espectáculos
sua primeira canção numa colec- da Ilda, Império dos Sentados, e infantis da Espanta Espíritos e é
tânea de novos grupos e artistas, Woodstone. Em 2002, após muitas co-produtor da cantora e com-
editada ainda em vinil, num LP. viagens e experiências, a conselho positora Dina. Adora o seu filho
do médico e de amigo deixou de Afonso, o rock`n`roll, ir para a
De 1992 a 1994 foi professor beber álcool.
no ensino secundário e em 1995 estrada, viajar, e escrever. Está
formou na Amadora a banda pop Um dia ao fim de uma tarde sen- até com ideias de preparar o seu
tou-se e escreveu a sua primeira segundo romance.

www.revistasamizdat.com 53
Tradução

James Joyce
tradução: Henry Alfred Bugalho

Eveline
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54
Ela se sentou à janela, varinha de abrunheiro; à Abençoada Margaret
assistindo a noite inva- mas geralmente o peque- Mary Alacoque. Ele havia
dir a avenida. A cabeça no Keogh os alertava e sido um colega de escola
reclinada contra as cor- gritava quando via o pai de seu pai. Sempre que
tinas da janela e em suas dela vindo. Mesmo assim, ele mostrava a fotografia
narinas o odor de cretone eles pareciam ter sido a uma visita, o pai costu-
empoeirada. Ela estava bastante felizes naquela mava passá-la com uma
cansada. época. O pai dela ain- frase casual:
da não era tão ruim; e,
Pouca gente passava. O — Ele está em Mel-
além disto, sua mãe ainda
homem da última resi- bourne agora.
vivia. Isto aconteceu há
dência passou em seu
muito tempo; ela, seus Ela havia concordado
caminho para casa; ela
irmãos e irmãs haviam em partir, em deixar sua
ouviu os passos dele res-
crescido, sua mãe estava casa. Havia sido sábio?
soando pelo chão de con-
morta. Tizzie Dunn havia Ela tentou pesar cada
creto e, depois, calcando
morrido também, e os lado da questão. Em sua
a trilha cinzenta antes
Waters haviam regres- casa, de qualquer modo,
das novas casas verme-
sado à Inglaterra. Tudo ela tinha abrigo e comi-
lhas. Antigamente, havia
muda. Agora ela partiria da; ela tinha por perto
um campo ali no qual
como os outros, deixaria aqueles a quem conhecia
eles costumavam brin-
sua casa. por toda sua vida. É claro
car todas as noites com
que ela tinha de traba-
as crianças dos outros Casa! Ela contemplou
lhar duro, tanto em casa
vizinhos. Então, um ho- a sala, examinando todos
quanto no trabalho. O
mem de Belfast comprou seus objetos conhecidos,
que eles diriam dela na
o campo e construiu as que ela havia espanado
loja quando descobrissem
casas nele — não como as uma vez por semana por
que ela havia fugido com
casas marrons deles, mas muitos anos, imaginando
um sujeito? Diriam que
casas de tijolos brilhantes de onde na terra vinha
ela era uma tola, talvez;
com telhados reluzentes. toda a poeira. Talvez ela
e sua vaga seria ocupada
As crianças da aveni- nunca mais visse aqueles
através dum anúncio. Se-
da costumavam brincar objetos conhecidos, dos
nhora Gavan ficaria feliz.
http://www.flickr.com/photos/rachelsian/252529196/sizes/l/

juntas naquele campo — quais ela nunca sonhou


Ela sempre a incomodava,
os Devines, os Waters, os se apartar. E, mesmo as-
especialmente quando ha-
Dunns, o pequeno Keogh sim, durante todos estes
via pessoas ouvindo.
o aleijado, ela, os irmãos anos, ela nunca desco-
e irmãs dela. Contudo, briu o nome do padre — Senhorita Hill, não
Ernest nunca brincava: cuja fotografia amarelada vê que aquelas senhoras
ele era grande demais. pendia na parede sobre estão esperando?
O pai dela costumava um harmônico quebrado,
caçá-los com frequên- ao lado do pôster colori- — Anime-se, Senhorita
cia pelo campo com sua do das promessas feitas Hill, por favor.

www.revistasamizdat.com 55
Ela não verteria mui- xelins — e Harry sempre Ela estava prestes a
tas lágrimas por deixar a mandava o que podia, explorar uma outra vida
loja. mas o problema era con- com Frank. Frank era
seguir algum dinheiro de muito gentil, másculo e
Mas em sua nova
seu pai. Ele dizia que ela amoroso. Ela iria embora
casa, num distante país
desperdiçava o dinheiro, com ele no barco da noi-
desconhecido, não seria
que ela não tinha miolos, te para ser sua esposa e
deste jeito. Então ela se
que ele não daria a ela viver com ele em Buenos
casaria — ela, Eveline. As
o dinheiro suado dela Aires, onde ele tinha uma
pessoas a tratariam com
para esbanjar na rua, e casa esperando por ela.
respeito, então. Ela não
muito mais, porque ele Quão bem ela se lembra-
seria tratada como fora
estava geralmente muito va da primeira vez que o
sua mãe. Mesmo agora,
mal aos sábados à noite. vira; ele estava hospedado
apesar de ter mais de de-
No fim, ele lhe daria o numa casa na rua princi-
zenove anos, ela sentia-se,
dinheiro e perguntaria pal que ela costumava vi-
às vezes, ameaçada pela
a ela se tinha alguma sitar. Isto parecia ter sido
violência do pai. Ela sabia
intenção de comprar o semanas atrás. Ele estava
que era isto que lhe dava
jantar do domingo. En- parado no portão, seu
palpitações. Enquanto
tão, ela tinha de correr o chapéu pontudo penden-
cresciam, ele nunca ha-
mais rápido que podia e do para trás da cabeça e
via se voltado contra ela
fazer as compras, segu- seu cabelo tombado para
como costumava contra
rando com força na mão frente do rosto de bron-
Harry e Ernest, porque
sua bolsa preta de couro, ze. Então, eles passaram a
ela era uma garota, mas
enquanto ela se acotove- se conhecer um ao outro.
recentemente ele havia
lava através da multidão Ele costumava encontrá-
começado a ameaçá-la
e voltava para casa tarde la fora da loja todas as
e dizer o que faria com
sob sua carga de provi- noites e acompanhá-la
ela se não fosse pela mãe
sões. Ela trabalhava duro até em casa. Ele a levou
morta. E não havia nin-
para manter a casa ajei- para assistir à “Garota
guém para protegê-la. Er-
tada e se certificar se as Boêmia” e ela se sen-
nest estava morto e Har-
duas crianças pequenas tiu elevada ao se sentar
ry, que estava no ramo de
que haviam sido deixadas com ele numa parte do
decoração de igrejas, esta-
a seu encargo iam à esco- teatro na qual não esta-
va quase sempre em al-
la regularmente e se ali- va acostumada. Ele era
gum lugar no sul do país.
mentavam regularmente. tremendamente atraído
Além disto, as invariáveis
Era trabalho duro — uma por música e cantava um
discussões por dinheiro
vida dura —, mas, agora pouco. As pessoas sabiam
aos sábados à noite ha-
que ela estava prestes que eles namoravam e,
via começado a exauri-la
a abandoná-la, não lhe quando ele cantava sobre
indescritivelmente. Ela
parecia de todo uma vida a rapariga que amava
sempre entregava seu
indesejável. um marujo, ela se sentia
salário inteiro — sete
sempre agradavelmente

56 SAMIZDAT julho de 2009


56
confusa. Ele costumava favorito, mas ela também do outro lado da sala e
chamá-la de Poppens de gostava de Harry. Ultima- ela ouvia o melancólico
brincadeira. Inicialmente, mente, ela percebeu que ar da Itália vindo de fora.
foi uma comoção para seu pai estava envelhe- Mandaram o tocador de
ela ter um namorado e cendo; ele sentiria falta realejo embora e deram
então ela começou a gos- dela. Às vezes, ele conse- a ele seis pence. Ela se
tar dele. Ele contava his- guia ser muito legal. Não lembrava do pai trotando
tórias de países distantes. muito tempo antes, quan- de volta para o quarto da
Ele havia começado como do ela ficou de cama por enferma dizendo:
moço de convés por uma um dia, ele leu para ela
— Malditos italianos!
libra ao mês num navio uma história de fantasma
Vindo até aqui!
da Allan Line indo para e preparou uma torrada
o Canadá. Ele lhe dizia para ela no fogo. Outro Enquanto ela refletia, a
os nomes dos navios nos dia, quando a mãe ainda triste visão das condições
quais esteve e os nomes vivia, todos eles haviam de sua mãe lançou seu
dos diferentes serviços. ido a um piquenique na encanto sobre seu ser —
Ele havia navegado pelo Colina de Howth. Ela aquela vida de sacrifícios
Estreito de Magalhães e se lembrava de seu pai medíocres encerrando-se
contou a ela história dos vestindo o boné de sua numa sandice final. Ela
terríveis patagônios. Ele mãe para fazer a crianças tremeu ao ouvir nova-
fincou os pés em Buenos rirem. mente a voz de sua mãe
Aires, disse, e havia vindo dizendo constantemente
O tempo dela estava se
ao velho país apenas para com tola insistência:
esvaindo, mas ela con-
umas férias. É claro, o pai
tinuou sentada à jane- — Derevaun Seraun!
dela havia descoberto o
la, reclinando a cabeça Derevaun Seraun!
romance e a proibiu até
contra a cortina da janela,
de falar com ele. Ela se levantou subita-
inalando o odor de creto-
— Eu conheço bem ne empoeirada. De lá do mente num impulso de
estes marujos, ele disse. fim da avenida ela podia terror. Fugir! Ela deveria
ouvir um realejo tocando. fugir! Frank a salvaria. Ele
Um dia, ele discutiu lhe daria uma vida, talvez
Ela conhecia estes ares.
com Frank e, depois disto, amor também. Mas ela
Estranho que aparecesse
ela tinha de encontrar queria viver. Por que ela
exatamente nesta noi-
seu amor em segredo. deveria ser infeliz? Ela
te para relembrá-la da
promessa feita à mãe, sua tinha o direito à felicida-
A noite se aprofundava
promessa de cuidar da de. Frank a tomaria em
na avenida. O branco das
casa o quanto pudesse. seus braços, ele a envol-
duas cartas em seu colo
Ela se lembrou da última veria em seus braços. Ele
crescia indistintamente.
noite da doença de sua a salvaria.
Uma era para Harry; a
outra era para seu pai. mãe; ela estava de novo
Ernest havia sido seu no quarto escuro fechado

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Ela estacou em meio rumo a Buenos Aires. A possível. Suas mãos cra-
à multidão serpentean- passagem estava reserva- vadas no ferro em frene-
te na estação de North da. Ela poderia desistir si. Do interior dos mares
Wall. Ele segurava sua depois de tudo que ele ela emitiu um grito de
mão e ela sabia que ele havia feito por ela? Sua angústia.
falava com ela, dizendo angústia despertou uma
— Eveline! Evvy!
mais uma vez algo sobre náusea em seu corpo e
a passagem. A estação ela continuou movendo Ele avançou para além
estava cheia de solda- seus lábios numa silen- da barreira e a chamou
dos com malas marrons. ciosa oração fervorosa. para segui-lo. Gritaram
Através das largas portas para ele prosseguir, mas
Um sino ressoou den-
do barracão, ela capturou ele ainda a chamava. Ela
tro de seu coração. Ela
um vislumbre da massa lhe voltou o rosto branco,
sentiu ele segurar sua
negra do barco, jazendo passivo, como um animal
mão:
para além do molhe, com indefeso. Seus olhos não
iluminadas escotilhas. — Venha! lhe davam nenhum sinal
Ela não respondeu nada. de amor, de despedida, ou
Ela sentiu suas bochechas Todos os mares do
reconhecimento.
pálidas e frias, desde um mundo despencaram
labirinto de ansiedade, sobre seu coração. Ele a
ela orou a Deus que a estava conduzindo em
Conto extraído da obra
guiasse, que lhe mostras- direção a eles: Ele a afo-
“Dublinenses”
se qual era sua obrigação. garia. Ela se agarrou com
O navio soltou um longo ambas as mãos na grade
silvo pesaroso em meio de ferro.
à névoa. Se ela partisse, — Venha!
amanhã estaria no mar
com Frank, navegando Não! Não! Não! Era im-

http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
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58
www.oficinaeditora.org
James Augustine Aloysius Joyce (1939) - o que se poderia consi- blin e reflete sua vida familiar e
(Dublin, 2 de Fevereiro de 1882 derar um “cânone joyceano”. eventos, amizades e inimizades
— Zurique, Suíça, 13 de Janeiro dos tempos de escola e faculda-
de 1941) foi um escritor irlan- Embora Joyce tenha vivido fora de. Desta forma, ele é ao mesmo
dês expatriado. É amplamente de seu país natal pela maior par- tempo um dos mais cosmopolitas
considerado um dos autores de te da vida adulta, suas experi- e um dos mais particularistas
maior relevância do século XX. ências irlandesas são essenciais dos autores modernistas de lín-
Suas obras mais conhecidas são para sua obra e fornecem-lhe gua inglesa.
o volume de contos Dublinenses toda a ambientação e muito da
(1914) e os romances Retrato do temática. Seu universo ficcional
Artista Quando Jovem (1916), enraíza-se fortemente em Du-
Ulisses (1922) e Finnegans Wake

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Teoria Literária

Fluxo de consciência
a literatura dentro da mente
Henry Alfred Bugalho

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60
Os mistérios da mente com maestria o conheci- sunção. Como não podemos, de-
e dos pensamentos sempre mento científico de seu vemos simplesmente dizer que o
despertaram a atenção dos tempo para desenvolver um pensamento flui. (JAMES, William.
sábios e filósofos, desde a personagem psicologica- The Stream of Consciousness.
Antiguidade grega e das mente complexo e intrigan- 1892)
primeiras investigações te, dividido entre a certeza
teóricas sobre o Homem de sua superioridade inte-
E William James ainda
e o Universo; no entanto, lectual e moral e o jugo da
enumera quatro caracte-
apenas durante os sécu- medíocre vida comunal.
rísticas deste fluxo mental:
los XIX e XX a ciência se Dostoievski foi, aliás, 1 – cada estado tende a
debruçaria, primeiro caute- um dos primeiros autores ser parte duma consciên-
losamente, depois com um a utilizar, ainda embrio- cia pessoal; 2 – dentro de
fervor extraordinário, sobre nariamente, o que ficaria cada consciência pessoal os
as questões da Psicologia. É conhecido como “fluxo de estados estão sempre mu-
neste momento, na virada consciência”. dando; 3 – cada consciência
do século, que pesquisado-
individual é sensivelmente
res basilares como Wilhelm
contínua e 4 – é interessada
Wundt, William James, C. As características do em algumas partes de seu
G. Jung e, principalmente, fluxo de consciência objeto em detrimento de
Sigmund Freud consolida-
outras, e acolhe ou rejeita
ram suas carreiras e apon- O conceito de “fluxo de
– escolhe-os, numa palavra
taram os rumos desta nova consciência” foi cunhado
– o tempo todo.
ciência que se engendrava. por William James e se

http://faculty.frostburg.edu/mbradley/psyography/james.gif
A Psicologia e suas referia ao turbilhão de pen-
ramificações influenciaram samentos na mente cons-
vários estratos da sociedade ciente, isto é, toda a gama
e da cultura, e encontraram de impressões, sensações,
um solo bastante fértil na raciocínios que se desenro-
Literatura. Imediatamente, lam superficialmente.
os autores deste período de A definição básica de
ebulição científica trouxe- William James é a seguinte:
http://www.flickr.com/photos/raggle/3071219631/sizes/l/

ram para dentro de suas


obras conceitos psicológicos
O primeiro e mais impor-
e inverteram o eixo que
tante fato concreto que cada um
predominava anteriormente,
afirmará pertencer a sua experi-
de eventos externos esti-
ência interior é o fato de que a
mulando os personagens à
consciência, de algum modo, flui.
ação para motivações inter-
“Estados mentais” sucedem-se uns William James foi o primeiro a
nas compelindo-os a uma
aos outros nela. Se pudéssemos utilizar o termo “fluxo de cons-
tomada de atitude.
dizer “pensa-se”, do mesmo modo ciência” para definir o turbilhão
Raskolnikov e sua in- que “chove” ou “venta”, estaríamos
contínuo de pensamentos superfi-
tensa vida mental são um ciais.
afirmando o fato da maneira mais
grande exemplo desta apro- Posteriormente, o mesmo conceito
simples e com o mínimo de pre-
priação; Dostoievski utiliza foi utilizado pela literatura.

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A grosso modo, o que se
propõe é que a consciência
está em constante mutação,
ininterruptamente, concen-
trando-se sobre determina-
das impressões e sensações,
enquanto ignorando outras.
A primeira aplica-
ção óbvia na Literatura é
através dum narrador em
primeira pessoa, que expõe
seus pensamentos e vivên-
cias numa sequência con-
tínua e abrupta, alternando
seu foco de acordo com a
corrente mental.

A revolução joyceana

Poucos autores enfeixa-


ram tanto as propriedades
do mundo moderno quan-
to James Joyce. Este autor
irlandês, que viveu grande
parte de sua vida no exílio,
introduziu na Literatura um
novo universo de possibi-
lidades estéticas, temáticas
e linguísticas, digerindo a
tradição e abrindo as por-
tas para toda uma geração
futura, que encontraria em
Joyce a inspiração para
inovar.
E o grande diferencial
de Joyce foi justamente a
apropriação do “fluxo de
consciência” como técni-
ca narrativa, que também
ficaria conhecido como
“monólogo interior”, quando

http://www.census.nationalarchives.ie/exhibition/dublin/literary/full/M_Joyce.jpg

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62
os pensamentos do perso- vários registros estilísticos,
nagem são apresentados, de eliminando os limites do
maneira ilógica, ao contrá- gênero romanesco, e tam-
rio do solilóquio, quando bém une a fala da rua e dos
um personagem expõe oral bares ao mais sofisticado
e logicamente suas refle- discurso teórico.
xões. “Ulisses” tenta abarcar a
Na antologia de contos totalidade do mundo atra-
“Dublinenses”, James Joyce vés da linguagem, e isto
realizou os primeiros expe- passa necessariamente pela
rimentos com esta forma, dissecação da mente dos
mas ainda com timidez. personagens. Três momen-
Mas foi em seu primeiro tos antológicos do romance
romance, “Retrato do artista são também três grandes
quando jovem”, que narra a monólogos interiores, ou Oposto e acima: o autor irlandês
“fluxos de consciência”: o James Joyce foi um dos mais revo-
juventude de Stephen Deda-
lucionários e influentes escritores
lus e seu processo de rup- primeiro deles ocorre no
do século XX.
tura com a Igreja Católica terceiro capítulo e se passa
Suas obras, especialmente o
e com o provincianismo na mente de Stephen Deda- romance “Ulisses”, são marcos do
dublinense, que Joyce re- lus (o mesmo personagem modernismo europeu.
almente desenvolveu a sua de “Retrato do artista quan-
técnica de “fluxo de consci- do jovem”); o segundo deles “Inelutável modalidade do
ência”, cujo ápice se deu no no quarto capítulo, no qual visível: pelo menos isto, se não
romance “Ulisses”, publica- Leopold Bloom é mostra- mais, pensado através de meus
do em sua vida cotidiana, olhos. Assinatura de todas as
do em 1922.
despertando e saindo para coisas cá estou para ler, engen-
Numa espécie de relei- drado ou destroçado pelo mar,
comprar o café-da-manhã;
tura do enredo da “Odis- marés se achegando, aquela
e o terceiro deles é o gi-
seia” de Homero, “Ulisses” bota corroída. Verde-ranho,
gantesco monólogo interior, azul-prateada, ferrugem: sinais
é a história do anti-herói
sem sinais de pontuação e coloridos. Limites do diáfano.
Leopold Bloom, que vaga
com pouquíssimos parágra- Mas ele acrescenta: em corpos.
pelas ruas de Dublin ator-
fos, que encerra o livro e se Então ele estava ciente de seus
mentado pela suspeita de corpos coloridos diante deles.
trata dos pensamentos da
que sua esposa o trai, mas Como? Ao bater com seu crânio
esposa de Leopold, Molly
sem coragem para tomar neles, com certeza. Vá com cal-
Bloom.
atitude. Nesta obra, James ma. Ele era careca e milionário,
Joyce apela para vários O biógrafo Richard maestro di color che sanno.
recursos narrativos, desde o Ellmann, em seu livro Limite do diáfano em. Por que
“James Joyce”, afirma que o em? Diáfano, adiáfano. Se você
monólogo interior, passando
desenvolvimento da técnica puder pôr cinco dedos através,
por um narrador oniscien- é um portão, senão é uma porta.
te em terceira pessoa, até joyceana de “fluxo de cons-
Feche seus olhos e veja.”
à estrutura dramatúrgica. ciência” ocorreu acidental-
Excerto de “Ulisses”, James
O autor transita por estes mente. Joyce era professor
Joyce.

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Outros fluxos de alta classe média britânica.
consciência Enquanto que, nos EUA, o
fluxo de consciência apa-
Paralela e simultanea- receria nos trabalhos de
mente a Joyce, vários outros Faulkner e T. S. Eliot.
autores também mergulha-
O impacto desta técnica
vam neste turbilhão interior
narrativa foi avassalador.
das psiques de seus perso-
Ela se disseminou entre os
nagens, fossem eles influen-
autores das gerações se-
ciados pelos trabalhos de
guintes, perpassando todo o
Freud, Jung ou Henri Berg-
movimento modernista da
son.
década de 20 e chegando
Na França, o grande até aos nossos dias, acolhida
expoente foi Marcel Proust pelos arautos da pós-mo-
de inglês em Trieste, na e sua monumental obra “Em dernidade.
Itália, e um de seus alunos, Busca do Tempo Perdido”,
A lista de autores que
o também escritor Italo dispersa em vários volumes
namoraram “o fluxo de
Svevo, tinha dificuldade e relatando, de maneira
consciência” é imensa:
para pontuar suas redações bastante pessoal e autobio-
Albert Camus, Hermann
em inglês, escrevendo assim gráfica, as rememorações do
­Hesse, Salinger, Samuel
um texto contínuo. Joyce narrador, Marcel, desde a
teria achado engraçada esta infância até à idade adulta. Topo à esquerda: William
peculiaridade, mas logo Na Inglaterra, Virginia ­Faulkner..
percebeu as implicações Woolf experimentava novas Abaixo à esquerda: Marcel
literárias duma estrutura Proust, autor da gigantesca obra
formas narrativas através de
como esta, adotando-a em “Em Busca do Tempo Perdido”.
enredos cotidianos am-
sua escrita quase imediata- Abaixo: Virginia Woolf.
bientados nos círculos da
mente.

64 SAMIZDAT julho de 2009


64
“Pareço conhecer nos menores O moço consentiu e passada a ainda não me animei a escrevê-
detalhes essa nordestina, pois travessia avisou-lhe: la. Terá acontecimentos? Terá.
se vivo com ela. E com muito – Já chegamos, agora pode Mas quais? Também não sei.
adivinhei a seu respeito, ela se descer. Não estou tentando criar em vós
me grudou na pele qual melado Mas aí o velho respondeu mui- uma expectativa aflita e voraz: é
pegajoso ou lama negra. Quando to sonso e sabido. que realmente não sei o que me
eu era menino li a história de um – Ah, essa não! É tão bom es- espera, tenho um personagem
velho que estava com medo de tar aqui montado como estou que buliçoso nas mãos e que me
atravessar um rio. E foi quando nunca mais vou sair de você! escapa a cada instante querendo
apareceu um homem jovem que que eu o recupere.”
Pois a datilógrafa não quer
também queria passar para a ou- Excerto de “A Hora da Estrela”,
sair dos meus ombros. Logo eu
tra margem. O velho aproveitou Clarice Lispector.
que constato que a pobreza é
e disse:
feia e promíscua. Por isso não
– Me leva também? Eu bem sei se minha história vai ser
montado nos teus ombros? – ser o quê? Não sei de nada,

Para saber mais:


Beckett (herdeiro direto de para citarmos alguns,
Joyce), William Burroughs dentre inúmeros autores
- ELLMANN, Richard, James
e vários outros autores da contemporâneos, que se
Joyce. Rio de Janeiro: Edito-
geração beatnik, Milan munem deste mergulho ao
ra Globo, 1989.
Kundera, Julio Cortázar e íntimo do ser humano para
alguns outros escritores do expressar o assombro dum
Boom latino-americano. sujeito cindido, desorienta- - JAMES, William, The Stre-
do, esmagado pela rapidez am of Consciousness. 1892.
O Brasil também pos-
da era digital. http://psychclassics.yorku.
sui os seus representantes,
ca/James/jimmy11.htm
como Clarice Lispector,
Paulo Leminski, ­Graciliano
Ramos e Guimarães Rosa, - JOYCE, James, Dubliners.
New York: Dover Thrifts
Editions, 1991.
— Portrait of the
artist as a young man. New
York: Penguin Books, 1982.
— Ulysses. New York:
Random House, 1946.

- Wikipédia: stream of
consciousness
http://en.wikipedia.org/wiki/
Stream_of_consciousness_
(narrative_mode)

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Teoria Literária

Algumas pistas
para escrever mistérios
Maristela Scheuer Deves

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66
Embora tenham por çois Fosca, citado por Paulo
muito tempo sido trata- de Medeiros e Albuquerque
dos como subliteratura ou na obra O mundo emocio-
como um gênero menor, nante do romance policial
os livros policiais ultrapas- (Francisco Alves Editora,
saram esse preconceito e 1979), listou seis delas, que
garantiram seu lugar entre teriam sido aplicadas pelo
os mais vendidos no mundo escritor Edgar Allan Poe, o
todo. Mesmo abominando pai do romance policial:
o crime na vida real, o ser - O caso apresentado é
humano encontra prazer um mistério aparentemente
em ler obras que mostram inexplicável.
assassinatos e outros deli-
- Uma personagem, ou
tos, bem como o esforço de
várias, simultânea e suces-
alguém (policial, detetive
sivamente, é considerada
particular ou mesmo uma O autor americano Edgar Allan
erradamente culpada por- Poe é considerado o pai do gênero
pessoa comum) para solu-
que os indícios superficiais policial moderno, graças a contos
cioná-lo.
parecem indicá-lo. como “Os Assassinatos da Rua
O que atrai o leitor para Morgue”, “A Carta Roubada”
- Minuciosa observação
o livro policial, no entanto, e “O Mistério de Marie Rogêt”,
dos fatos, materiais e psico- protagonizados pelo detetive
não é somente essa luta
lógicos, após o depoimento ­Auguste Dupin.
entre o bem (representado
das testemunhas e, acima
pelo detetive) e o mal (re-
de tudo, um rigoroso méto- foi Willard Huntington
presentado pelo assassino),
do de raciocínio triunfam Wright, mais conhecido
e sim a forma como essa
sobre as teorias apriorísticas como S. S. Van Dine. Para
batalha é narrada. O sus-
e apressadas; o analista não Albuquerque, “algumas des-
pense é fundamental nesse
adivinha, ele raciocina e sas regras são válidas; ou-
gênero literário e é ele que
observa. tras, positivamente acacia-
vai prender o leitor da pri-
meira à última página, sem - A solução que concor- nas; e algumas até mesmo
conseguir dormir antes de da perfeitamente com os fa- ridículas”. Mesmo assim,
saber o final. tos é totalmente imprevista. vale citar a introdução a
http://www.flickr.com/photos/sgw/2742947532/sizes/o/

elas escrita por Van Dine e


Mas como esse suspense - Quanto mais um caso
reproduzida por Albuquer-
é construído? O que fazer parece extraordinário, tanto
que:
para prender a atenção do ele é mais fácil de resolver.
leitor dessa forma? Embora “A história policial é uma
- Eliminadas todas as
não existam receitas pron- espécie de torneio intelectu-
impossibilidades, o que
tas ou garantidas para es- al. Mais do que isso, é um
resta, se bem que incrível à
crever um romance policial torneio esportivo. E o autor
primeira vista, é a solução
que prenderá o leitor, vários tem de comportar-se correta-
justa.
escritores e estudiosos já mente com o leitor. Não pode
Outro autor que publi- recorrer a truques e escamo-
tentaram estabelecer regras
cou um conjunto de regras teações sem comprometer a
básicas para quem quer se
para se escrever mistério sua sinceridade, assim como
aventurar no gênero. Fran-

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não pode usar tapeação num duzidas”. Cada um tem suas
jogo de cartas. Tem de supe- Uma outra regra não- vantagens, entretanto a
rar intelectualmente o leitor e oficial mas praticamente opção por um investigador
prender o interesse do mesmo institucionalizada entre que não é profissional tem
usando seu engenho. Existem quem escreve mistério é para o leitor um atrativo a
leis definidas na feitura de que o crime em torno do mais – parecer-se com ele.
entrechos policiais; leis que qual se desenvolve a trama Prova disso é o sucesso de
não foram escritas, talvez, deve ser algo com o qual as um dos personagens cria-
mas ainda assim imperativas, pessoas se importem, usu- dos pela Rainha do Mis-
e todo autor de mistérios lite- almente um homicídio. Ou, tério, Agatha Christie: sua
rários atende a essas leis.” como disse Van Dine: inesquecível Miss Marple é
A seguir ele lista 20 leis uma solteirona que mora
“É necessário que haja um
para o gênero, que, segundo numa cidade pequena e que
cadáver na novela de dete-
ele, seriam baseadas na prá- sempre acaba solucionando
tives, e quanto mais defunto
tica dos grandes autores. En- crimes e enigmas compli-
esse cadáver, melhor. Afinal,
tre elas, as que se destacam cados.
o trabalho que tem o leitor
são que o leitor deve ter a precisa ser recompensado. Os Outro fator a ser con-
mesma oportunidade do leitores são criaturas huma- siderado na escolha do
detetive, com todas as pistas nas e, portanto, um assassi- detetive ideal para a histó-
claramente descritas, e que nato desperta neles o senti- ria é o público para o qual
o culpado deve ser encon- mento de vingança e horror. se escreve. Se em uma obra
trado por meio de deduções Desejam levar o assassino à voltada a adultos a identifi-
lógicas e não por confissão, justiça, e com isso se inicia cação com o protagonista já
coincidência ou acidente. a perseguição com todo o exerce papel importante na
Ele também condena as so- entusiasmo.” hora de cativar o leitor, isso
luções não naturais, como é ainda mais verdadeiro
Uma vez cometido o
reuniões espiritualistas ou quando se trata do leitor jo-
crime, seja ele assassina-
dispositivos fictícios, como vem. Afinal, qual o adoles-
to ou não, entra em cena
o assassinato da vítima por cente que não gosta de ler
outro elemento impres-
um veneno desconhecido, sobre outros jovens da sua
cindível, o detetive. Nesse
ou a imputação do crime a idade envolvidos em aven-
ponto, deverá ser tomada
um criminoso profissional, turas, investigando crimes e
uma das primeiras decisões
a exemplo de um assaltante. solucionando mistérios?
importantes do escritor de
Um dos conselhos que mistério: quem será o seu Tão importantes quanto
mais se aproxima do ideal detetive. Um policial? Um o detetive, talvez, são os
e que resume inúmeras ou- detetive profissional? Um suspeitos. Eles são todos que
tras regras talvez seja esse semi-profissional, como um podem ter um motivo para
de Nardejac: “é necessário advogado ou um jornalista? cometer o crime, seja esse
que os enigmas propostos Ou um outro personagem motivo financeiro, passional
ao detetive sejam, ao mes- qualquer, uma pessoa co- ou outro qualquer. Com o
mo tempo, verdadeiras pro- mum que irá se confron- desenvolvimento da trama
vas. As situações dramáticas tar com o crime e tentará e o surgimento de pistas,
deverão, por conseguinte, resolvê-lo? novos suspeitos vão sendo
ser numerosas e bem con- acrescentados, enquanto ou-

68 SAMIZDAT julho de 2009


68
tros saem dessa condição.
No livro “Prelúdio para
matar”, considerado sua
obra-prima, a escritora
britânica Ngaio Marsh usa
esse recurso com maestria.
Detetives e leitores descon-
fiam ora de um, ora de ou-
tro personagem. A vítima é
uma pessoa, mas acredita-se
que o alvo poderia ter sido
outra; como alguns envolvi-
dos no caso teriam motivo
para matar uma delas e
outros, para matar a outra,
cria-se um clima de tensão,
que aumenta a curiosidade
do leitor para saber quem
foi, afinal, o perpetrador
do assassinato. Essa curiosi-
dade, que faz o leitor virar
páginas e mais páginas sem
conseguir parar de ler, é
um sinônimo do procurado
suspense.
Para fazer o leitor des-
confiar de um ou de outro
personagem e mantê-lo
preso ao livro até ao final, é
preciso fazer uso de pistas.
Essas pistas não são apenas
elementos concretos, como
objetos deixados no local do
crime ou pegadas ao lado
do corpo da vítima. Po-
dem ser palavras, diálogos,
situações. São elas que vão
guiar o trabalho do dete- As pistas podem ser Agatha Christie, a Primeira Dama
tive, e também o do leitor, verdadeiras ou falsas (red do Mistério, é uma das mais
que estará concorrendo herrings). Essas pistas falsas influentes autoras do gênero e
com esse detetive (e com o elaborou enredos geniais, muitas
podem ser plantadas pelo vezes recorrendo a certos recursos
autor) para tentar descobrir próprio criminoso ou por narrativos para ludibriar o leitor e
o culpado antes da última algum outro personagem surpreendê-lo no desfecho.
página. que tenha algo a esconder,

www.revistasamizdat.com 69
ou ainda serem fatos que, não por acidente, coincidên- assim que o detetive o fizer. E
mesmo parecendo suspei- cia ou confissão. Solucionar aí temos o sabor do torneio.”
tos, nada têm a ver com o um problema criminal desse Paralelamente às pistas,
crime. Isso fará o detetive (e modo é como mandar o lei- outro elemento é necessário
o leitor) ir por determinado tor numa empreitada inútil”. para fazer o leitor descon-
tempo para o lado errado, É novamente o concei- fiar de um ou de outro per-
suspeitando de alguém que to de jogar limpo com os sonagem e, principalmente,
não tem nada a ver com o leitores, que, dessa forma, para mantê-lo interessado
crime, até outra pista levá- têm as mesmas condições na história: pontos de vira-
lo de volta ao rumo certo. do investigador ficcional de da no decorrer da trama.
Da mesma forma, al- descobrir o culpado a partir Como foi dito anterior-
gumas pistas devem estar das pistas que vão sendo mente, se o detetive seguir
totalmente visíveis para os apresentadas. Voltando à sempre em uma direção, o
leitores e para o investiga- orientação de Van Dine livro terminará (ou perderá
dor que é o protagonista reproduzida por Albuquer- a graça) logo nos primeiros
da trama, enquanto outras que: capítulos.
devem estar escondidas em “A verdade do problema Para que ocorra essa
meio a outros fatos ou obje- deve estar à vista, em todos virada, um ponto é básico:
tos. O importante, destacam os momentos – desde que o fazer algo acontecer. Esse
estudiosos e escritores do leitor seja arguto o bastante fato novo pode ser um ou-
gênero, é jogar limpo com para percebê-la. Com isso tro crime (talvez até mes-
os leitores, proporcionando quero dizer que se o leitor, mo do suspeito), uma nova
a eles as mesmas informa- depois de tomar conheci- pista que aponta para uma
ções a que o detetive da mento da explicação para direção totalmente nova,
história tem acesso (embo- o crime, voltar a ler o livro, etc. Outra tática consagrada
ra alguns escritores, como perceberá que a solução de e usada pela maioria dos
Agatha Christie, por vezes certo modo estivera bem autores de romances poli-
escondam pistas que só são clara, que as pistas realmente ciais é encerrar os capítulos
reveladas no final). indicavam o culpado. E que, com um algo novo, uma
Outra visão defendida se tivesse sido tão perspicaz informação instigante que
por vários autores é que o quanto o detetive, poderia fará o leitor começar o
desenlace da história deve- ele próprio ter solucionado capítulo seguinte imediata-
rá se dar a partir das pistas. o mistério antes do último mente para saber o que vai
O autor não deve recorrer a capítulo. Se a história de acontecer.
uma saída fácil que se apre- detetive for legitimamente A leitura, no entanto,
senta miraculosamente para construída, será impossível não pode ser uma contí-
solucionar o mistério. Se a manter a solução afastada de nua tensão. É preciso saber
solução não vier através das todos os leitores antes das pá- dosar os picos de suspense
pistas e do trabalho inte- ginas finais. Existirá, de modo com momentos em que o
lectual do detetive, o leitor inevitável, certo número de clima é aliviado. Isso pode
se sentirá traído, enganado. leitores tão argutos quanto o ser feito por meio de tra-
Como disse Van Dine: “O autor, que poderão, mediante mas paralelas, mostrando
culpado deve ser encontrado análise, eliminação e raciocí- outras partes da vida do
mediante deduções lógicas e nio lógico, indicar o culpado detetive-protagonista: traba-

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70
lho, namoro ou até mesmo uma gravura na parede,
problemas comuns, como roupa espalhada pelo
um vizinho chato. quarto, etc. Acreditando
Além de todos esses nessas pequenas insignifi-
elementos inerentes à histó- câncias, salienta, passa-se
ria, tão essencial quanto ter a também “acreditar” na
uma boa trama para contar transformação de Samsa
é como ela é contada. A em inseto. Vale lembrar
escolha da palavra exata que, no romance policial, é
é importantíssima para ainda mais importante essa
garantir o efeito desejado, confiança do leitor no autor,
ensina Francine Prose em essa sensação de “poderia
Para ler como um escritor ser verdade”.
(tradução de Maria Luiza Para finalizar, uma dica
X. de A. Borges, Jorge Zahar sempre citada em ofici-
Editor). Por isso, vale reler o nas literárias e que talvez
texto com atenção, pesando resuma tudo o mais que
palavras, frases e até mesmo foi dito aqui: ao sentar-se
capítulos enquanto se per- para escrever seu conto ou
gunta: era isso mesmo que romance de mistério, pen-
eu queria dizer? Teria outra se no que você gostaria de
palavra, outro verbo, outro ler. Recorde seus autores
adjetivo que poderia expri- prediletos no gênero, tanto
mir melhor esse momento os que são considerados
da trama? mestres quanto outros
Da mesma forma, deta- menos conhecidos mas que
lhes por vezes considerados o agradam, e tente precisar
insignificantes podem ser o que exatamente torna
tornar muito importantes seus textos interessantes,
para dar verossimilhança bem escritos e repletos de
e credibilidade à história. suspense. Você terá, então,
“São os detalhes que nos tudo o que é preciso para
convencem de que alguém dar início à sua história de
está falando a verdade – todo mistério. O resto só depen-
bom mentiroso sabe disso (...) de de você...
E que alívio é quando um
detalhe nos assegura que um
escritor está no controle e Sherlock Holmes é sem dúvida o
não caçoa de nós”, diz Prose. personagem símbolo do processo
Ela cita, para ilustrar, pe- dedutivo de investigação. Cria-
quenos pontos que tornam do por Sir Arthur Conan Doyle,
mais crível a situação de ­Holmes e seu parceiro Dr. ­Watson
já pertencem ao imaginário cole-
Gregor Samsa em “Meta- tivo.
morfose”, de Franz Kafka:

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Teoria Literária

A poética do Poema Blavino


Juliana Ruas Blasina &
Volmar Camargo Junior

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72
Em um papo madrugado e MSNico clássico:
entre Jú (Juliana Ruas Blasina) e V (Volmar
Camargo Junior.) nasceu o blavino.
Fugaz
Discutíamos sobre a possibilidade de
criar um poema que fosse sugestivo tanto
(Juliana Blasina)
em sua composição textual quanto na sua
aparência gráfica, concreta, sobre a folha.
Juliana tinha em mente uma “pirâmide” Tão
construída por 13 versos, mas não conse-
guia concretizar sua divisão em estrofes de Frágil
modo a alcançar a forma esperada. Após o E fugaz
debate, eis que surgiu a ideia de um mode-
lo que contemplasse as seguintes caracte- Que quebra
rísticas:
Ao menor toque,
- número de estrofes: 7 E sem razão se desfaz
- número de versos: 13, distribuídos a
partir dessa sequência: 1-2-3-1-3-2-1 A beleza que mora em mim
- tamanho dos versos: o objetivo é que o
poema comece e termine com uma pala- Embalada neste corpo
vra, crescendo até ao verso-estrofe central É invisível ao olhar
e maior (7) e decrescendo até ao último. Estranho, procuro
Resultando assim numa aparência pirami-
dal, triangular, ou em seta – sempre alinha-
Resquícios do
do, à esquerda ou à direita (nunca central),
que ainda
conforme a preferência do autor.
- decidimos que o “blavino clássico” cor-
Sou
responderia somente às três regras ante-
riores. O “blavino heróico”, adicionalmente,
http://www.flickr.com/photos/qthomasbower/3426242870/sizes/o/

deve ter como verso central um decassíla- Já um blavino heróico – ou uma tentati-
bo heróico: 10 (6-10) [dez sílabas, va de - seria algo como este:
acentuando-se a 6ª e a 10ª].
- uma regra adicional seria a de que o
“blavino perfeito” seria aquele que pode ser
lido na ordem direta e na ordem inversa [conforma-te]
perfeitamente.
(Volmar Camargo Junior)
- uma variação, criada pela Marcia Sza-
jnbok – que também aderiu ao blavino, é o
formato “abismo” (ou “abissal”), cujo verso conforma-te
central, ao contrário da forma padrão, é ei-la, como pediste,
composto por uma única palavra (assim a praia longa e branca
como ocorre nos versos 1 e 13).
basta de ritos funerários
Assim, por exemplo, seria um blavino

www.revistasamizdat.com 73
basta de tormentas marinhas participantes da comunidade Estúdio de
basta de esperar ser consumido Criação Poética, onde foi apresentado. Des-
conforma-te, é o fim da vida no mar te grupo, já produziram blavinos Beatriz
Moura, Caio Rudá, Carlos Barros, Marcia
sente, o sol aqui é mesmo o sol
Szajnbok, José do Espírito Santo, Renata de
o chão caminha com o vento
Aragão Lopes e Taty Nascimento. Nesta
e a paisagem, por si, muda edição da SAMIZDAT é possível encontrar
a praia longa e branca alguns exemplos de blavinos, publicados
ei-la, como pediste por Juliana, Volmar e José do Espírito
conforma-te Santo. E, até ao final da edição, talvez haja
mais alguns. E se você que está lendo,
gosta de escrever poemas e tiver gostado
Um blavino abissal seria assim: do blavino, sinta-se à vontade. Sirva-se! O
blavino está aí, para quem quiser desfrutá-
lo. Apenas gostaríamos que os interessados
cat on a hot tin roof entrassem em contato conosco aqui na
SAMIZDAT, mostrassem seus poemas, para
(Marcia Szajnbok)
que, quem sabe, esse formato se torne algo
tão interessante – e grande! – como o poe-
luzes trix e o indriso.

teus olhos Para mais informações sobre as cria-


que brilham turas e os criadores, visite:
de mar e de estrelas Um resto de café frio (Volmar Camargo
percorrem-me a pele Junior): http://restodecafefrio.blogspot.com/
me buscam, me despem P+2T: Poesia + dois tantos (Juliana Ruas
Blasina): http://jublasina.blogspot.com/
fico Estúdio de Criação Poética http://estu-
diocriacaopoetica.blogspot.com/
um pouco escondida
à espreita, à espera
do gesto, da vinda

do bote
da fera

faminta

Algo que é digno de nota é que, em


pouco tempo, este formato ganhou adesão
por parte de vários poetas, notadamente os

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74
Crônica

http://www.flickr.com/photos/sunlightfoundation/2385174105/sizes/o/
Volmar Camargo Junior

Um monte de papel
Exame de gravidez “posi- tório civil como testemunha demissão de todos os cargos
tivo”, exame pré-natal, baixa de casamento, inscrição para de professor (champanha e
hospitalar, prontuário médi- concurso público, inscrição foguetes!), contrato de expe-
co, teste do pezinho, certidão para segundo concurso pú- riência, contrato de trabalho
de nascimento, carteira de blico, certificados de partici- por tempo indeterminado,
vacinas, matrícula escolar, pação em cursos (dezenas), pedidos de transferência de
boletim escolar (um a cada encerramento de contrato de lotação, efetivação de trans-
dois meses durante onze trabalho, encerramento de es- ferência de lotação, certidão
anos), carteira de identidade, tágio na universidade, diplo- de casamento, contrato de
carteira de trabalho, cadastro ma universitário, contrato de hipoteca de imóvel, novo
de pessoa física, título elei- trabalho para professor em pedido de transferência de
toral, certificado de curso de escola municipal, contrato de lotação, efetivação de transfe-
informática, certificado de trabalho para professor em rência de lotação, contrato de
curso de datilografia (sim, escola estadual, outro con- locação de imóvel (outro, não
sim... no meu tempo se fazia trato de trabalho para pro- o primeiro), inscrição em se-
isso...), histórico escolar, ins- fessor em escola municipal, gundo vestibular, aprovação
crição para o vestibular, ves- primeiros contracheques com em segundo vestibular, matrí-
tibular, divulgação do resul- um salário decente, folhas cula em segunda universida-
tado do vestibular, matrícula de chamada de dezenas de de, mas desta vez, tudo pelo
na universidade, alistamento turmas de alunos, cartão- computador. Desistência da
militar, certificado de dispen- ponto, ata de reunião com vaga na segunda universida-
sa do serviço militar (excesso professores, ata de reunião de, com firma reconhecida,
de contingente), renovação com pais de alunos, telegra- enviada para o centro de
da matrícula na universidade ma “você está sendo convo- registro acadêmico, por cor-
(4), contrato de financiamen- cado para avaliação médica respondência registrada com
to estudantil, contrato de tra- e psicológica referente ao confirmação de entrega.
balho, contrato de estágio na segundo concurso público”,
universidade, caderno do car- bateria de exames, pedido de

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Crônica

http://meaningfuldistractions.files.wordpress.com/2008/07/barack_obama_on_the_primary.jpg
Maristela Scheuer Deves

Obama matou a mosca


O presidente dos Estados amigos... Obama é nada mais, nada
Unidos, Barack Obama, ma- Pois é. Nada contra falar menos do que o homem
tou uma mosca. E daí? Daí da mosca do Obama, eu mais poderoso do planeta, e
que a imagem desse gesto também falei, e aqui estou demonstrou uma pontaria
tão simples e corriqueiro escrevendo sobre ela. Con- certeira ao liquidar com o
(quem nunca matou, ou ao fesso que achei engraçadi- inseto.
menos nunca tentou matar, nho até, quando vi a “no- No entanto, o que me
um desses insetos tão ino- tícia” sobre isso na TV, ao assusta é pensar que esse
portunos?) correu o mundo, meio-dia desta quarta-feira. gesto comum e natural, do
virou notícia. Notícia lida, Jornalista que sou, pensei qual o presidente talvez já
comentada e obrigatória em logo que o tema realmen- tenha até esquecido passa-
todas as TVs, sites, jornais, te rendia uma materinha das algumas horas, possa
rodas de conversa com os ou nota curiosa - afinal, vir a ser outro campeão de

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76
acessos na sites de vídeos manchetes de economia e
na internet. Não se trata, política). Ou que Obama,
repito, de condenar essa aquele cara do qual se falou
curiosidade simples que nos tanto quando se elegeu
faz querer ver cenas engra- presidente ano passado e
çadas ou inusitadas de vez que cada pouco está lá no
em quando. O que eu estra- jornal, matou uma mosca.
nho é por que essa mesma Isso se repete também
curiosidade não se repete, na internet, basta ver o que
na maioria dos casos, quan- tem mais leitura em sites e
do o que está em pauta são blogs. Um exemplo apenas:
assuntos ditos mais “sérios”. textos nos quais apareçam,
Ou alguém aqui acredita mesmo que incidentalmen-
que o pacote que o mes- te, palavras ligadas ao sexo
mo Obama anunciou nesta costumam ter índice de lei-
mesma quarta-feira, o maior tura várias vezes maior do
dos EUA desde os anos que outros, mesmo que não
1930, terá o mesmo índice sejam tão bem escritos. lhões de opções de coisas
de leitura que a mosca? “interessantes” que existem
O que concluir disso
Da mesma forma, ou- por aí como desculpa para
tudo? Que o “povo”, esse
tros assuntos que nós - e não ler ou ver outras coi-
ente ao qual pertencemos,
por “nós” quero dizer os sas que talvez não sejam
mas do qual muitas vezes
jornalistas, mas também os tão engraçadas ou curio-
nos excluímos, está erra-
intelectuais ou membros de sas ou excitantes, mas que
do? Que só se deve falar
uma camada supostamente influenciam no nosso dia
de coisas mais sisudas? Ou
detentora de maior conhe- a dia (como a política ou a
talvez que devemos deslan-
cimento e cultura - julga- economia).
char de vez para o circo
mos imprescindíveis mui- pedido pela maioria? Nem Se você leu este texto até
tas vezes são solenemente tanto ao mar, nem tanto à aqui, independente de como
ignorados pelo público terra. Creio que devemos chegou até ele, sugiro ape-
leitor ou telespectador. Que ter, sim, as duas coisas, nas que reflita sobre esse
prefere saber quem o ator o”importante” e o inusita- assunto. Não deixe de ver o
tal está namorando, quan- do. Devemos publicar, e ler, vídeo do Obama matando
do começam as inscrições uma e outra. Afinal, gostos a mosca, eu também vi e
para o próximo BBB, quem não se discutem, e a vida gostei, mas tire um tempi-
fez mais gols na rodada é feita tanto de momentos nho para ler também sobre
de futebol da semana ou sérios quanto de momentos a crise mundial ou sobre
simplesmente quem foi que de riso (que graça teria sem a situação política da sua
morreu (sim, os obituários eles?). cidade. Você vai descobrir
continuam figurando entre que isso pode ser igualmen-
O que não deveria ocor-
as seções mais lidas dos jor- te muito interessante.
rer, apenas, é usar as mi-
nais, batendo muitas vezes

www.revistasamizdat.com 77
Crônica

Crônica de uma
cidade adormecida
Caio Rudá de Oliveira

É quando a cidade dor- Desempenhamos nossas sei se é insônia ou calor.

http://www.flickr.com/photos/oimax/243853848/sizes/l/
me que consigo pensar. funções e esquecemos de Dessa vez um leite quente
Quando acordada, é o todo o resto. Eis o viver. com chocolate, enquan-
capitão-do-mato que nos Para nos tirar da rotina, to olho uns blogues sem
mantém na linha confor- nada como uma insônia sal. Por fim, uma passada
me a vontade do senhor; inesperada. Levanto, vou na janela. A avenida lá
não tolera atraso, descul- à janela, tomo empres- na frente, vazia. Não é a
pas ou ineficiência, e está tado um pouco de ar, mesma das horas de sol.
atenta, regendo uma vida agora menos carregado Um carro ou outro per-
compulsória. de poluição, e sento em corre o asfalto cansado,
Nasce o dia e acor- frente à TV - monótona insone como eu. Tento
damos, não porque o programação aberta. Vou advinhar para onde vai
sono já nos bastou, mas à cozinha, bebo um suco uma hora dessas. Talvez
pelas obrigações diárias. e volto a deitar. Já não já esteja retornando. De

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78
todo modo, ambas as al- pensamentos? Ele pas-
ternativas não me dizem sa, mudo com se ainda
respeito. dormisse, e vai à cozinha.
Olho a passarela em Também não puxo papo.
que fui assaltado há Esse sou eu, também ca-
alguns dias. Agora pare- lado, não dado a conver-
ce ser um lugar seguro. sas desnecessárias. É por
Mas só parece. Escondido isso que respeito o silên-
em algum lugar que eu, cio alheio. Sei o quanto é
nem a possível vítima, importante. E aí me dou
possamos ver deve estar conta de que pode ter
o bandido, como o que sido a TV dele ligada que
levou meu celular. Ofício tenha colaborado com
de assaltante - hora extra minha insônia. A prin-
ociosa. E bandido lá sabe cípio sinto raiva, que se
o que é ócio? esvai. Não fosse ele, ainda
que involuntariamente, eu
Os pontos de ônibus não estaria aqui, pensan-
estão desertos, diferentes do, vendo a cidade ador-
dos formigueiros que são mecida. Os capitães-do-
durante o dia. Não é o mato também dormem. E
caso dos que vejo, mas enquanto o fazem eu sou
algum em outro canto livre. Livre para ver, sen-
da cidade pode servir de tir, pensar, perceber cada
abrigo para um mendi- detalhe de uma paisagem
go. Abrigo contra o quê? tão costumeira, porém
Nem contra os perigos da surpreendente.
madrugada, nem contra
o frio. Talvez contra a O sol se aproxima. Eu
chuva, porém não chove posso vê-lo, não em seus
hoje. primeiros raios, mas nas
luzes que começam a ilu-
Os prédios vizinhos minar cômodos nos pré-
dormem. Sequer uma dios ao lado, na fumaça
janela acesa, o que me faz da padaria que começa
pensar que sou o único a subir, no caminhão de
acordado da cidade. Isso lixo e seu barulho carac-
é falso. Há os motoristas terístico. É quando ouço
que passam maltratando os capitães vestirem suas
o asfalto, o assaltante à roupas e empunharem
espreita não se sabe onde suas armas. Daqui a pou-
e o mendigo que dorme co eles estarão atentos,
por aí. E há também meu colocando-nos nos eixos.
companheiro de aparta- Tudo bem. Hoje eu tive
mento que se levantou minha pequena alforria.
agora. Foram os meus

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Crônica

Henry Alfred Bugalho

O que você quer ser


quando crescer?
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80
Eu pensava muito sobre bem longe das aventuras em Não nasci para ser bom-
o que queria ser quando eu ruínas, enfrentando nazis- beiro, nem astronauta, nem
crescesse. Afinal de contas, tas ou povos exóticos, sem sequer arqueólogo como o
esta é a pergunta que todo tumbas remanescentes de meu herói de outrora; des-
adulto faz às crianças; como faraós para serem descober- cobri que o quero fazer por
se nosso destino já tivesse de tas, o encanto diminuiu, e me toda a minha a vida era
estar traçado desde sempre. enveredei por outro tipo de aquilo que estava de lado,
arqueologia, talvez aquilo que tão natural, tão comum, tão
Meu primeiro desejo era Foucault chamaria de “arque- instrumental: escrever.
que eu pudesse fazer algo ologia do saber”, a Filosofia.
que gostasse, que nunca me Não me tornei o que
entediasse, que apresentasse Formei-me, só que não me queria, mas faço justamente
desafios, que fosse instigante. via naquela profissão que aquilo que sei que gostaria
aspirava quando criança. de continuar fazendo sempre;
No entanto, não poderia Tornar-me professor não era não é dinheiro fácil, mas não
ser trabalho pesado, nada uma questão de escolha, era é trabalho braçal; sem reco-
braçal, nada estafante. Assim a única saída para a minha nhecimento instantâneo, mas
como para muitos, o tra- formação. Ou eu fazia isto, tão essencial que, para mim,
balho ideal era aquele que ou ficaria desempregado. é impossível me pensar sem
pagasse bem e que exigisse exercê-lo.
pouco esforço. Todavia, a vida é cheia de
surpresas e tudo pode mudar Entre a criança que fui e
Tirando os projetos ab- a qualquer instante. Tudo o homem que sou há anos e
surdos (absurdos hoje, pois à mudou... separação; somos muito dife-
época eram bastante plausí- rentes, com projetos e sonhos
veis), como bombeiro, piloto “O que eu queria ser quan- diferentes, mas tenho certeza
de caça, astronauta, franco- do eu crescesse?”, esta é a de que o eu-criança se orgu-
atirador, jogador de videoga- pergunta que me fiz hoje, ao lharia de mim agora.
me profissional, havia uma terminar de assistir ao pro-
sensação interior de que, em grama “Profissão Repórter” E correndo o risco de imi-
qualquer ramo que eu se- na Globo. tar os maus cronistas ou filó-
guisse, sempre estaria ligado sofos, que adoram acabar um
às artes. A candidata que conse- texto com uma interrogação
guiu ocupar uma das vagas para forçar o leitor à refle-
Eu até que desenhava bem, para o programa, ao respon- xão, também lhe pergunto: “E
mas não bem o bastante; der qual era o sonho dela, você? O que queria ser quan-
aprendi piano, mas também disse: “fazer, na semana que do crescesse? Você-criança
sem vestígios de genialidade vem, exatamente isto que teria orgulho de você-adulto?
http://www.solarviews.com/raw/apo/as11_40_5903.jpg

ou talento extraordinário; estou fazendo hoje”. Você faz hoje o que gostaria
apenas a escrita parecia de fazer amanhã?”
estar presente o tempo todo, E não é o que todos nós
mesmo que paralelamente, sonhamos? Encontrar algo Se a resposta for não, não
sutilmente. na vida que gostaríamos de se desespere, nem tudo está
fazer todos os dias de nossas perdido... A vida pode mudar
Meu herói da infância vidas? Encontrarmos a pro- a qualquer instante. Às vezes,
era o Indiana Jones, por isto, fissão perfeita para nós, ou a muda até sem querermos.
por um bom tempo tam- companheira pra toda a vida,
bém almejei ser arqueólo- a casa do sonhos, a viagem
go. Quando descobri que a de nossos projetos?
realidade da profissão estava

www.revistasamizdat.com 81
Poesia

Dois blavinos
José Espírito Santo
Um
Olhar

Sussurrar o espaço
Ventar rodopiante na mostra de gota

Soltar razão, ir de feição em vida que não é


Segredo, talvez, dizer-te tempos chegados que partem
Ilusória mão definição, e depois está feito - há quem diga sentir...

Fruindo

Solto desvario, oco o eco, “multidão” que cai embriagante


De sons, o tic-tac aberto, a certidão em bater fechado
Nada mais é... “mapa-mundi” que se mostra

Apenas apertar em mim para sentir Dois


horizontes de te ver
Escreveste

Ficando
Palavras e frases
Angústias, lampejos, ausência

Pensaste Mar, pensaste Terra


Imaginaste-nos uma história com chorar de chuva
Definiste-me, deste-me, amiúde, mil planos objectivos

Sentiste

Um tão menos em continuidade de ausência próxima


Um riscar de pensamento no centro-momento
Dois vagabundos. Voltar para não ficar

Correste, esqueceste, tropeçaste em contradição


Deitaste fora todas as páginas e folhas

Vivendo

82 SAMIZDAT julho de 2009


82
Desencanto

http://www.flickr.com/photos/pulihora/250872559/sizes/o/
José Espírito Santo

Desencanta-me a superfície polida do dia,


a lembrança vazia, Vazia a procura
o verbo, Muda a promessa
o passivo sujeito Na pressa, o mundo é círculo de gritos

Não encontro substantivo em jeito Desencanto-me

Ir de compasso, marcar o passo, O tempo passa a troçar, em baile de redemoinhos,


ir como quem despe o fa(c)to no acto, em vórtices de iue saem campos e rios
ao correr da vida, no espaçar solto dos ritmos, e palavras e pessoas
como quem vê e não se sabe de ser...
O tempo nada me diz
Desencanto-me
Imperfeito motivo,
Cima-abaixo, não me sou feito sem jeito substantivo...
No sim, no não, até no tão,
igual normal misteriosa periferia vou, Desencanto-me
não me acho

www.revistasamizdat.com 83
Poesia

Laboratório Poético:

o poema Blavino
Volmar Camargo Junior

Colheita
sedutora

de invulgar e
irresistível beleza

planta rara de raizes rotas


que dá frutos que não se dão
que não matam por seu veneno

[conforma-te]
frutos somente, nenhuma semente
conforma-te
colhe-se só iracunda e vil
joga ao chão os pomos ei-la, como pediste,
ignora aos vermes a praia longa e branca

pobres coitados basta de ritos funerários


a si apodrece e basta de tormentas marinhas
basta de esperar ser consumido
autodevora
conforma-te, é o fim da vida no mar

sente, o sol aqui é mesmo o sol


o chão caminha com o vento
e a paisagem, por si, muda

a praia longa e branca


ei-la, como pediste

conforma-te

84 SAMIZDAT julho de 2009


84
Siesta
deixo

http://www.flickr.com/photos/stansich/178907288/sizes/o/
que chegue
tenra e morna

e que seu hálito


tenro dos sonhos
dos sonhos morno

seja o ritmo de hoje

que em meu peito


e meus ombros
e meus braços

desarmônica
acomode-se

durma

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Poesia

Antessala

Quero estar no vão do teu olhar,


no intervalo da tua fala,
na tua inspiração,
quero ser tua antessala.

Quero ser teu ato falho


e estar no inconsciente. Mariana Valle
Não quero ser o que você pensa
e sim o que você sente.
Natural
Não quero ser teu objetivo,
A noite cai.
tua missão, finalidade,
O sol se vai.
quero me impregnar em tua veia
A chuva molha
e ser pra sempre tua verdade.
e a folha chora
o orvalho da noite.

As flores morrem
e o vento corre,
varrendo a terra
e o caminho.

Eu, sozinho
ainda choro,
mas não imploro
por sua volta.
Eu sei que o fim
é natural.

86 SAMIZDAT julho de 2009


86
Cena do crime

Ainda sinto teus dedos deslizando na minha pele


e tua voz ecoando em meus ouvidos.
Nas minhas roupas, o teu cheiro,
na minha boca, o teu mel.

Tuas palavras se repetem na minha mente


e no i-Pod ainda tocam as músicas que você gravou pra mim.
Os copos na pia continuam rubros, com os restos do nosso vinho,
e o cheiro da pizza ainda invade minhas narinas.

A cama está desfeita


e a banheira continua molhada,
e eu tenho a nítida impressão
de que você vai me abraçar a qualquer momento.

Mas estou totalmente enganada.


Você já se foi há muito tempo.
E eu ainda não consegui desfazer a cena do crime.

O barulho da água

Enquanto a água escorre


e a mágoa percorre meu corpo,
eu não escuto.
O mundo segue no mute.
O tempo passa na surdina.

Eu me entupo de luto http://www.flickr.com/photos/_belial/481126091/sizes/o/

e derramo minha sina.

E assim,
alagada em minha lágrima,
cai a chuva, chora a água,
a dor transborda e me enxágua,
e eu me inundo de mim.

Até o fim.

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Poesia

O Lago Guilherme Rodrigues

Perto de onde moro As estrelas vêm


Há um lago se entapetar na superfície
Nado, mergulho são gotas brancas n’água negra
vejo sentimentos reluzentes, lindas
coisas escondidas eu as toco com
emaranhados a ponta dos dedos
e a água turva e engelece meu corpo

Vejo a mim Caminho pelo água


um garoto jovem de mãos dadas
que pouco sabe com um vulto
mas sonha vou e venho
grandiosas no farfalhar da maré
Feliz, se devaneia canto o amor
e vive intensamente a noite, o lago me renovam

Ora enegrece O lago cochicha


e pela água turva em meus ouvidos
surge flutuando um velho me mostra tudo
é a própria morte - doentia sou uma parte dele
traz consigo a Tristeza ele parte de mim
e o redor desseca entrelaçados, partimos
eu também, me encolho e choro somos um vivendo noutro.

88 SAMIZDAT julho de 2009


88
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http://www.flickr.com/photos/danorbit/378760588/sizes/o/
Poesia

Fale Frei Cappio, fale a Vida


Dênis Moura

Fala a teia da vida, a alma do Planeta,


Fala a alma do Nordestino, a cada fala do Frei.
Enquanto fala o olho egoísta, dos papéis investidos
Do lucro rápido e fácil à cegueira dos malefícios,
A Grande imprensa paga pelos anúncios financistas, pelos dinheiros malditos.

Assim segue Canudos sua sina em plena “Democracia”


Sem que haja, no entanto, Democracia Plena
Em papéis invertidos, quando a vontade do povo,
Nas mãos de “representantes”, nunca lhe vira lei.
Sendo sempre o povão quem paga, vaga e pena,
Enquanto a gana de uma minoria se lhe impõe como um rei.

Entre o egoísmo e a coletividade,


O individualismo e a solidariedade,
Quem ganhará a eterna Guerra,
Do bem contra a maldade, do ter mais que o Ser,
Do consumir/exaurir contra o (con)(sobre)viver?

http://www.flickr.com/photos/imortal/3540839854/sizes/o/
Que fale a voz do povo explorado em Frei Cappio, Beto e Bofff,
Em Sabatella, Comparato, Casaldaliga e Zé Celso,
Reverberando em vozes sem fim
Como reverberaram as vozes de Gandhi, Cristo, Zumbi,
Conselheiro e do grande Martin Luther King.

OBS: Poesia publicada no contexto da greve de fome de Frei Cappio contra a Transposição do Rio São Fran-
cisco que segue irrigando ainda mais as terras dos latifundiários e passam a largo do semi-árido do povo
pobre e sofrido, filhos, netos e bisnetos do Arraial de Canudos.

90 SAMIZDAT julho de 2009


90
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

www.revistasamizdat.com 91
Assessoria de imprensa

Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com

Coordenação de Entrevista

Volmar Camargo Junior


Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

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de2009
2009
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Colaboração

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

Barbara Duffles
Jornalista, escritora e roteirista, é autora do livro
“Não Abra” e do blog “Não Clique”. Apesar das nega-
tivas, esta carioca quer, sim, ser lida - como todo es-
critor. Tem dias de conto, de crônica e de pílulas sem
sentido. Suas paixões: cinema e livros com cheiro de
novo - se bem que adora se perder nos sebos da vida.

Carlos Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com

www.revistasamizdat.com 93
Dênis Moura
Paulistano de pia, cearence de mar e poeta de
amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-
paço, mais com bits de imaginação que com telescó-
pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e
a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na
outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social,
com a democracia participativa eletrônica, onde o
povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias
sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-
ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É
feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize,
o clique, o blogue e o leia!

Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre gran-
de paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas
a que se dedica cada vez mais.

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós graduação na
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,
trabalha há largos anos em formação e consultoria,
sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de
Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”.
A paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no
ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e
“Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a fa-
mília em Alverca, uma pequena cidade um pouco a
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94 SAMIZDAT
SAMIZDATmaio
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2009
94 norte de Lisboa, Portugal.
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador,

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
licenciado recente em História da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu a
ler. Escreve principalmente contos nos gêneros misté-
rio, suspense e terror, além de crônicas.

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Também nesta edição, textos de

Barbara Duffles José Espírito Santo

Caio Rudá Jú Blasina

Carlos Alberto Barros Léo Borges

Dênis Moura Marcia Szajnbok

Giselle Natsu Sato Mariana Valle


http://www.flickr.com/photos/st-stev/155466775

Guilherme Rodrigues Maristela Scheuer Deves

Henry Alfred Bugalho Volmar Camargo Junior

Joaquim Bispo
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