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Entrevista realizada pelo Grupo com a Profa.

Lígia Vieira da Silva (ISC-UFBA)

SIDARTA

Estamos hoje dando continuidade às atividades do nosso projeto PIBIC 2008/2009 com
a seqüência de entrevistas que temos realizado. Nosso projeto visa à investigação da
produção de conhecimento em artes e humanidades a partir de epistemologias não-
cartesianas. Nessa direção, começamos com o estudo do filósofo da ciência e físico
austríaco Paul Feyerabend, em seguida a obra do filósofo e químico Gaston Bachelard,
e hoje, para conversar com a gente sobre a obra e o pensamento do filósofo e sociólogo
Pierre Bourdieu, temos a professora LÍGIA Vieira do Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal da Bahia, médica e doutora em medicina preventiva, com estágios
pós-doutorais no Canadá, na universidade de Montreal e no Centro de Sociologia
Européia em Paris. Conosco nosso grupo de pesquisa, Adalberto da Palma, mestrando
em Artes Cênicas, aqui na Universidade Federal da Bahia, Adalene Sales, mestranda no
programa de pós-graduação em psicologia da UFBA, a professora Denise Coutinho, que
orienta nosso grupo de pesquisa, professora do instituto de psicologia e da pós-
graduação em artes cênicas, Eleonora Santos, doutoranda do programa de pós-
graduação em artes cênicas, e Isa Sara que é estudante de graduação do curso de dança
da Universidade Federal, e eu sou Sidarta Rodrigues, estudante de graduação de
Psicologia aqui da Universidade Federal da Bahia.

LÍGIA

Inicialmente eu quero agradecer o convite, a vocês e a Denise. Dizer que, a minha


formação básica foi medicina, mas, como atuo na área de saúde coletiva que é uma área
transdisciplinar acabei incorporando as ciências sociais na pesquisa em relação a
diversos objetos. Eu, em particular, cheguei até Bourdieu por conta de uma linha de
pesquisa sobre os determinantes sociais das práticas de saúde e por essa razão vim
estudando há muitos anos e incorporando essa linha de pesquisa e resolvi fazer um
estágio pós-doutoral no Centro de Sociologia Européia onde desenvolvi um projeto de
pesquisa em colaboração com Patrice Pinell que trabalhou com Bourdieu e possui
estudos sobre o campo médico e análise das políticas de saúde a partir do referencial
“bourdieusiano”.

SIDARTA
Eu queria começar com uma questão da obra de Bourdieu, quando ele fala sobre
habitus, a partir do conceito de habitus e de campo, o habitus, representando também e
incorporando elementos da estrutura do campo, como podemos pensar – uma questão
ética. Eu queria saber o lugar da liberdade e também da criatividade na obra de
Bourdieu, porque quando ele se coloca do ponto de vista metodológico, ele cria uma
certa oposição ao existencialismo e o individualismo de Sartre, como aquela idéia de
sujeito livre, e adota uma postura que tenta fazer uma mediação entre objetividade e
subjetividade, tentando evitar qualquer psicologismo. Nessa questão, o que seria um
agente livre, sendo que toda sua ação já tem uma estruturação objetiva a partir do
campo?

LÍGIA

Em primeiro lugar, eu queria fazer uma consideração preliminar da dificuldade de nós


discutirmos a obra de Bourdieu de uma perspectiva puramente teórica, porque a
essência da sua metodologia, sua epistemologia está ligada a uma investigação ao
mesmo tempo prática e teórica. Ele sempre traz nos seus trabalhos que não faz sentido
uma análise dos conceitos por si mesmos, mas ver como os conceitos funcionam em
situações concretas de investigações e de pesquisa. Essa é uma limitação de uma
discussão ainda que numa conversa, mas evidentemente que é possível referindo não só
àas pesquisas dele, mas ainda referindo àas pesquisas de outros pesquisadores do grupo
dele que incorporaram esse tipo de conceito.

Fazendo essa consideração, há duas observações a serem feitas: a idéia de que o habitus
implica um determinismo rígido não é uma idéia precisa do que foi o conceito de
habitus de Bourdieu, nem que ele se opunha a Sartre. No livro O senso prático, ele
inicia sua análise dizendo que todo homem trabalha com duas metafísicas, segundo
Bachelard: uma objetivista, outra subjetivista.

Ele traz o pensamento de Sartre por um lado, que enfatiza uma perspectiva subjetivista e
o de Lévi-Strauss que seria a perspectiva estruturalista, objetivista. Ele discute que
ambas as abordagens são importantes para o conhecimento do mundo social. Ele não
exclui, ele diz que ambas são importantes, ele desenvolve a teoria das práticas dele a
partir de uma busca de incorporação e de diálogo entre essas duas abordagens.

O segundo comentário, também me referindo à questão de Adalberto, em ciências


sociais, isso o Weber já discutia, precisaríamos distinguir muito “o que é” do “que deve
ser”. Na verdade, muitas vezes nós confundimos projetos de mudança com o que é a
realidade social. Bourdieu, ao investigar a realidade social, descobriu que o que era mais
freqüente não era a mudança e sim a conservação e a reprodução das estruturas. E ele
estudou a realidade social. Isso não quer dizer que ele defenda a manutenção do status
quo, até para você mudar, você tem que entender por quê, quais são as razões da
conservação e reproduçãos das estruturas.

DENISE

Agora, o que eu acho que mais chocou a gente, e Sidarta fez uma referência direta a
isso, na posição dele em relação a Sartre está no livro Esboço de auto-análise, quando
ele está fazendo um panorama da intelectualidade francesa, quando ele começou, em
que a figura do intelectual total que era Sartre era muito mais – do ponto de vista dessa
posição de Sartre enquanto existencialista – era muito mais valorizada do que a posição,
por exemplo, de um sociólogo como ele. Então ele sai da posição de filósofo, que era
muito mais reconhecida socialmente na época, e vai para uma posição que é de defender
a prática da sociologia, e isso era menor na época.

LÍGIA

Sim, na verdade é que o Esboço de auto-análise é uma demonstração prática de como


ele exercita a própria epistemologia dele, onde ele propõe que o sujeito que objetiva tem
que se objetivar. Então, ele estava tentando explicar a própria obra a partir da posição
que ele assume no campo intelectual francês, no momento em que ele entra, em que ele
optou por exercer um ofício que era não tão nobre na época e ele foi fazer pesquisa de
campo, foi entrevistar, desenvolveu uma investigação concreta no mundo social, pôde
perceber coisas que talvez ele não percebesse se ficasse numa perspectiva mais teórica
exclusivamente.

Mas eu acabei não lhe respondendo sobre a liberdade. Claro que é uma pergunta muito
complexa e muito difícil. Mas, em síntese, eu acho que onde ele responde bem essa
questão é ao final do livro A miséria do mundo. O livro A miséria do mundo contém
uma série de entrevistas do grupo de Bourdieu, sobre jovens em situação de exclusão na
periferia de Paris e também nos guetos americanos. Além dos jovens foram
entrevistados outros, os agentes relacionados com aquela situação como assistentes
sociais e professores. Ao final do livro ele retoma a análise feita em trabalhos anteriores
onde aponta como o sistema escolar contribui para excluir os excluídos, para perpetuar
essa situação de exclusão.

Então, ele fala: qual o papel do intelectual? O papel do intelectual não é


necessariamente o papel militante (Esse aspecto ele discute em diversas outras obras).
Ele defendia que o intelectual interviesse na realidade como intelectual através de sua
obra. Não era absolutamente necessário que ele fosse para passeatas e manifestações
embora isso não fosse contraditório com a sua contribuição como intelectual. Para ele, a
alternativa da ciência não é entre a desmedida totalizadora de um racionalismo
dogmático e a renúncia esteta de um irracionalismo niilista; ela se satisfaz com verdades
parciais e provisórias que ela pode conquistar contra a visão comum e contra a doxa
intelectual e que estão em condições de fornecer os únicos meios racionais de utilizar
plenamente as margens de manobra deixadas para a liberdade, isto é, para a ação
política”.

Ou seja, ele mais uma vez se contrapõe a falsas oposições. Considera então, que as
margens de manobra deixadas para a liberdade estão exatamente na ação política. O que
é coerente com seus últimos anos de vida quando ele desenvolveu várias atividades
militantes na melhor tradição dos intelectuais franceses engajados.

DENISE

Agora talvez a gente pudesse ver a questão de Adalberto já, não é?

ADALBERTO

É isso, porque na realidade como é que ele pode dar, você deixou claro, essa visão do
que a realidade é e do que ela deveria ser. Como, especificamente, a questão da arte nos
interessa no sentido de o trabalho de um intelectual pensando a arte, ele está pensando
num método, mas a própria feitura da arte dispõe de outro método. Mas aí, ao mesmo
tempo, ele traz outra questão: a arte legitima essas desigualdades sociais, por quê? Eu
estou me olhando, eu como um produtor de arte, estou olhando o que deveria ser e não o
que é a realidade. Nesse sentido, eu fiquei pensando, ele tem todo esse lado político que
a senhora está falando, destes últimos anos da vida dele, mas quando ele traz a questão
do habitus, que ele diz que o habitus tem dois princípios: o princípio da individuação e
o princípio da associação. Tudo bem, se o princípio da associação cai nessa roda viva
de legitimação das desigualdades sociais, eu fiquei pensando, talvez seja pelo princípio
da individuação que eu, como agente, como artista, posso pensar no que deveria ser e
não no que é, não sei se fica um pouco confuso o argumento, professora...

LÍGIA

Bom, na verdade em A Distinção ele faz uma análise a partir da sociedade francesa,
quer dizer, o objetivo dele naquele trabalho era estudar o gosto, o gosto artístico, o que é
que faz alguém gostar de uma obra de arte abstrata e o que é que faz alguém gostar de
uma obra de arte realista. Então ele estudou isso empiricamente, através de uma amostra
das diversas classes sociais na França, mas associou a esse estudo estatístico – ele usou
uma técnica estatística de análise de correspondências, ele fez algumas perguntas sobre
o gosto artístico em matéria de pintura, em matéria de música, em matéria de lazer...

DENISE

Os freqüentadores de museus, aquele “Por amor a arte”?

LÍGIA

Esse é outro livro. Em A Distinção ele fazia perguntas sobre o gosto artístico. Ele
queria estudar o que é que faz com que alguém tenha um gosto legítimo. As classes
dominantes reivindicam para si o gosto legítimo como se fosse algo nato, alguém saber
apreciar uma obra de arte seria algo nato, da nobreza, ou das classes dominantes,
enquanto as classes populares estariam desprovidas daquele gosto. Então, ele mostra o
processo de produção do gosto, o que é que faz a diferença do gosto. Ele faz um estudo
empírico a partir de uma amostra representativa das classes sociais francesas: de
operários, patrões, da classe média, intelectuais, mas usa também entrevistas em
profundidade, usa fotografias, então reúne diversas técnicas de análise para concluir
sobre a...

DENISE

A produção do gosto. A construção do gosto.

LÍGIA

A construção do gosto. Então ele chega à conclusão que tanto a posição no espaço
social do indivíduo quanto sua trajetória social e familiar são orientadoras das
disposições para apreciar a obra de arte. Então, por exemplo: as classes populares
gostavam mais da obra realista (um quadro com um cavalo correndo no campo, uma
fotografia sobre um pôr-do-sol) e tinham menos chance de achar, por exemplo, a
fotografia das mãos de uma mulher idosa, toda enrugada, como uma obra, como algo
que poderia ser considerado como uma obra de arte. Ele faz uma análise muito
interessante do que seria o gosto popular, a partir da idéia de que a distância da
necessidade criava um habitus que permitia a apreciação da obra dita legítima. Então, o
gosto artístico mais realista estaria ligado também ao gosto em matéria de comida,
ligado às comidas gordurosas e substanciais, a, digamos, uma decoração interna prática
e útil, e não estética. Então, apoiado nessa análise empírica ele desenvolve uma teoria
do que seria um gosto de luxo – gosto da liberdade ou um gosto popular – gosto da
necessidade. Na verdade, ele mostra que o campo artístico se autonomiza quando você
dissocia a forma da função, onde a forma ganha uma prioridade em relação à função, ou
seja, não precisa uma obra ser útil ou ser bela para ter valor artístico, isso foi levado ao
extremo, digamos, com aquele episódio do...

TODOS

Duchamps!!! Do urinol.

LÍGIA

No sentido de que... Não sei se...

ADALBERTO

Sim, na realidade a senhora está falando... porque ele diz que a questão do gosto, na
realidade, é um código; que a pessoa, para ter um determinado gosto artístico, na
realidade, esse código também foi construído. Então isso que a senhora está levantando,
das disparidades sociais, na realidade, o gosto da nobreza, na realidade, pressupõe todo
um código de construção anterior...

DENISE

... e, além disso, tem a questão de que o agente não só ele é orientado para isso como ele
orienta a reprodução disso, não é?

ADALBERTO

É.

LÍGIA

Eu falei um pouco como ele fez o estudo, mas depois como ele analisa. Ele identifica
também que nas classes dominantes essa disposição de apreciar a obra de arte, que
constituiria o gosto legítimo, é incorporada quase que naturalmente, porque as pessoas
têm os quadros originais nas suas casas...

ADALBERTO

Vem da família já.

LÍGIA

É interiorizado, enquanto, digamos, alguém das classes populares que adquire aquilo
como um capital escolar, então, ele estuda quem foram os principais pintores, ele visita
os museus para poder ver as obras de arte, é um gosto cultivado com um esforço maior.
Então ele [Bourdieu] compara, é claro, na França, os descendentes da nobreza com as
pessoas que adquiriram uma cultura artística através da escola. E aí ele analisa o capital
cultural. Com uma função interessante, que o capital cultural tem uma função que ele
chama de noblesse oblige que é que a pessoa se sente na obrigação, por ter um certo
nível, nós, por sermos universitários, nos sentimos na obrigação de conhecer os
principais pintores impressionistas, porque nós somos universitários, porque isso faz
parte do saber universitário, então o capital cultural faz com que a pessoa busque um
conhecimento que a escola não ensina, por esse efeito.

ISA

É essa é uma das minhas perguntas. Porque com essa questão do gosto, ele quebra
mesmo com aquela discussão do senso comum para o nosso século que gosto não se
discute. E, também, ele vai levantar um argumento muito grande: a história do
indivíduo, do agente, para falar sobre capital cultural, não é verdade? Aí eu iria
perguntar por que ele confere essa importância à história do agente para pensar capital
cultural?

LÍGIA

Na verdade, a história é importantíssima na teoria das práticas de Bourdieu. Ele diz que
as práticas são produtos do encontro de duas histórias: a história incorporada nas coisas,
sob a forma de estruturas e a história incorporada no corpo, sob a forma de habitus,
então as práticas das pessoas são produzidas tanto pela história coletiva quanto pela uma
história individual, quer dizer, o habitus é formado também com contribuição dessas
duas histórias.

ISA
Eu me lembro também daquela música que um grupo de axé canta, que há muito tempo
a gente vem ouvindo aí, que acaba se tornando realmente uma realidade. Porque apesar
de ser uma coisa nova [...] já está algo como senso comum, está mais naturalizado. Ela
diz assim: “Analisando esta situação precária [...] analisando essa cadeia hereditária
quero me livrar dessa situação precária. Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre
cada vez fica mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe e o
de baixo desce.” Então é essa cadeia, não é? Será que ele coloca aqui mesmo nos
estudos dele, para pensar o capital cultural...

NORA

Dentro dessa idéia de que a questão de Adalberto trouxe... dessa obra intitulada A
Dominação, não é?

ADALBERTO

A Distinção.

NORA

A Distinção. Mas, dentro da resposta que a professora trouxe, a gente pode perceber
essa noção de disputas de poder, de jogos de poder, que é muito presente nas discussões
e nos argumentos de Bourdieu. Por que, por exemplo, por que será então que as classes
operárias vão aos museus para apreciar os mesmos pintores que a classe dominante, ou
que a classe burguesa aprecia. Porque nos museus estão esses autores, esses pintores, os
artistas tidos como os importantes a serem apreciados. Então, nesse jogo de escolhas, de
espaços para as obras de arte também atua esse jogo de poder, de dominação que define
também, um pouco, o caminho desse gosto. Não sei se a idéia estaria nesse sentido. Por
que se a pessoa da classe operária que acaba tendo gosto mais tendencioso à obra
realista, dos pintores mais presentes no pensamento do senso comum como “os grandes
pintores”, são aqueles que ocupam os grandes espaços em museus. Então, mesmo que
esse interesse venha da escolarização, do estudo, o que está disponível para ser
apreciado é produto de uma escolha de dominação, de poder, porque o espaço que os
museus abrem acaba também sendo definido pela disputa de poder e de dominação do
tipo de arte que pode ser apreciada ou não, ou que deve ser apreciada.

LÍGIA
Aí é mais complexo. Eu acho que são duas questões importantes que você traz. A
primeira é que a teoria sobre mundo social de Bourdieu, nela, as lutas são partes do
mundo. O mundo social não é um mundo de uma comunicação harmônica. É formado
por campos e espaços de luta. E cada campo tem tipos de lutas específicas. Então, o
campo científico é um campo onde determinadas lutas são travadas que não são as
mesmas do campo econômico, ou do campo do poder, ou da burocracia. Então cada
campo tem suas questões que estão em jogo e que valem a pena para os agentes
envolvidos com aquele jogo e que por isso pertencem àquele campo. Então essa é uma
questão. Agora, o que faz com que algo seja considerado uma obra de arte, aí é uma
questão mais complexa, que está ligada à autonomia relativa do campo artístico, que
Bourdieu estudou. Ou seja, quem define o que é uma obra de arte é um campo artístico
relativamente autônomo. Claro que isso numa relação com o campo de poder, com
outros campos, para impor essa posição. Você cansa de ver várias pessoas dizendo que
não consideram a pintura abstrata como arte: “Eu não gosto, eu não entendo, isso não é
arte”, mas o campo artístico, ele conseguiu definir a arte abstrata e mesmo outras formas
de expressão artística que parecem estranhas ao senso comum. E os artistas dizem que
eles não pintam para vender, eles pintam, eles produzem suas obras de arte por outras
razões.

ISA

Os livros falam muito sobre isso. Sobretudo os livros que falam sobre o sociólogo
Bourdieu. Então, para Bourdieu, o que é sociologia?

LÍGIA

Olhe, Bourdieu tem um livro muito interessante que é O Ofício do Sociólogo, é um


livro de epistemologia com algumas questões metodológicas. Inclusive uma das
contribuições muito grandes desse livro, principalmente para quem não teve uma
formação inicial em ciências sociais, é que ele introduz o leitor as ciências sociais. Ele
buscou em autores clássicos da sociologia como Marx, Weber, Durkheim o que é que
eles tinham de comum do ponto de vista metodológico. Apóia-se muito também na
epistemologia de Bachelard e nesses autores. Então, ele considera que se tornar
sociólogo é desenvolver uma atitude perante o mundo social de investigação, é
desenvolver certas atitudes e disposições, um habitus. Tanto que ele critica os textos
puramente metodológicos que contêm prescrições acerca da pesquisa sociológica.
DENISE

Dos clássicos. Engraçado, eu acho que é nesse livro, que ele diz assim: “O problema é
que a escola vai separando. Então, o primeiro semestre estuda Durkheim, o segundo
Weber e o terceiro, eu.”

Todos: risos.

DENISE

Ele já faz, ele se coloca na genealogia também...

SIDARTA

Nesse sentido, eu queria aproveitar essa pergunta de Isa para saber da senhora quais são
os parâmetros que ele utiliza, quais os fundamentos do campo científico que ele chama
para a prática dele, para sustentar que a sociologia que ele faz, a teoria que ele defende é
científica. Porque essa é uma questão que não passa muito despercebida, principalmente
no âmbito das ciências sociais que buscam um estatuto de cientificidade e legitimação
dentro do campo da ciência. Então, quais seriam essas características da ciência que
fundamentam a prática dele, de modo a considerar a sociologia dentro da comunidade
científica?

DENISE

É, eu tenho uma pergunta, Lígia, porque a gente viu umas entrevistas que fizeram com
ele, e uma das perguntas recorrentes é assim: Então qual seria a diferença entre um
sociólogo para um repórter, para um jornalista? Porque ele também vai para o fato, ele
também vai fazer perguntas... Então, por que a sociologia é ciência e o jornalismo não?

LÍGIA

Ele se baseia nesses autores, principalmente Bachelard, Marx e Durkheim, da


necessidade da ruptura com o senso comum para produzir um conhecimento científico.
Então ele se filia às correntes epistemológicas que distinguem o senso comum,
conhecimento do científico e o conhecimento científico como resultante de um processo
de ruptura, construção e constatação.

DENISE

Validação, verificação...

LÍGIA
...de ruptura, os três atos epistemológicos de Bachelard, Denise: ruptura, construção e
constatação. Diferente de correntes que consideram que qualquer saber é igual, não tem
distinção entre ciência e senso comum. Ele se filia às correntes que consideram que é
necessário romper, porque o senso comum se coloca como um véu que impede que a
gente tenha acesso ao real. Bachelard traz inúmeros exemplos. O Louis Pinto tem um
livro junto com Champagne e Remi Lenoir, Introdução à Sociologia que é um
desdobramento de O ofício do sociólogo, que retoma essa linha mostrando, já com
investigações concretas desses princípios, como a objetivação científica rompe com o
senso comum que vai produzir um conhecimento diferente que explica o mundo social,
essa é a diferença. Repare, o que é ciência? Ciência é muito complexo, mas a gente
pode considerar como um conceito provisório aquilo que um grupo de produtores
considera em determinado campo como conhecimento científico. O problema das
Ciências Sociais, segundo o próprio Bourdieu, é que, digamos, o senso comum para as
ciências da natureza também foram um obstáculo para o conhecimento, e as ciências
sociais, segundo Bourdieu, por serem uma ciência mais nova, poderiam saltar essa
etapa, mas acabam caindo nela e, existem várias correntes que consideram que a
experiência primeira é conhecimento científico. Bourdieu desenvolve então toda uma
polêmica com a fenomenologia que acaba reduzindo conhecimento à fala dos
entrevistados, ao senso comum, à impressão primeira.

DENISE

E também eu acho que ele dá muita ênfase, como Bachelard dava, à produção da teoria,
a ciência como produzindo teoria.

LÍGIA

É, é, isso. Na ruptura como o senso comum ele utiliza a teoria. Quer dizer, como
estratégia de ruptura, ou técnica de ruptura, ou modo de ruptura, a teoria é formulação
de hipóteses, porque se você não vai fazer uma investigação apoiado em uma hipótese,
você vai fazer perguntas com base no senso comum, então você fica na armadilha do
senso comum, que é o que ele chama de sociologia espontânea. Então a teoria é um
instrumento de ruptura, a análise histórica da gênese dos conceitos é uma segunda
maneira de ruptura, as analogias, a comparação metódica. Louis Pinto faz um estudo
sobre a instituição militar, onde ele mostra como a comparação metódica conseguiu
fazer com que ele rompesse com a visão que os alistados tinham de si. Remi Lenoir dá
exemplo sobre a velhice, na área de saúde coletiva, temos vários exemplos de estudos
rompendo com o senso comum.

NORA

Então o conhecimento está aí produzido, tem esse caráter cientíifico muito mais por
conta desses pressupostos do que propriamente por uma aplicação de um método
cientifico, “cartesiano”, vindo dessa idéia da modernidade, da proposta epistemológica
da modernidade... no sentido de que esses pressupostos são muito mais abertos, não
estão voltados para a aplicação de um método como Descartes propunha: ciência é
aquilo que cabe nesse método científico e uma vez verificado por esse método ganha, o
conhecimento advindo daí, ganha o status científico.

LÍGIA

Ele opõe uma rigidez do método ao rigor e o que define a ciência não é um método, mas
é o processo de produção do conhecimento que rompe com o senso comum e busca uma
constatação na realidade empírica – ele trabalha tanto com a teoria quanto com a
realidade empírica – e também faz uma críitica aos “teóricos teóricos”. Ele faz uma
críitica tanto a uma teoria sem qualquer referência ao real quanto a uma metodologia
sem nenhum referencial teórico previamente explicitado que acaba incorporando o
senso comum de forma acrítica.

NORA

Então assim, já que a gente entrou nesse campo de produção do conhecimento e uma
das propostas do PIBIC é essa aproximação entre arte e ciência e produção de
conhecimento acadêmico, que é o que a gente faz aqui na universidade, a minha
pergunta vem para esse sentido. O que é estudar a arte dentro da academia, a partir de
que parâmetros podemos pensar esse estudo e na produção de conhecimento acadêmico
em arte, uma vez que o objeto artístico é um objeto bastante complexo, singular, de uma
relação muito individual da obra do sujeito criador. Uma das obras que a gente leu foi
Livre-troca, onde ele faz um diálogo com um artista, Hans Haacke e troca muitas
idéias, como você falou no iníicio, a partir de situações da realidade artística com esse
artista alemão Hans Haacke. E, em determinados momentos, ele coloca como o fazer
artístico, a competência especifica do artista é uma competência que pode fazer a
diferença nesse rompimento com o senso comum e talvez até na produção de
conhecimento para o mundo. Não entra especificamente no campo acadêmico, mas diz
que o artista tem essa tendência de transgredir as regras e propor o rompimento das
tradições do próprio campo artístico. Aí, eu fico pensando nesse ambiente de estudo
acadêmico das artes. Como é pensar a produção de conhecimento acadêmico sobre
obras artísticas e se essa capacidade artística da transgressão e do rompimento de regras
poderia ser importada para o mundo de produção de conhecimento acadêmico, uma vez
que esse campo de produção acadêmica tem a tradição de que as escolhas teóricas
precisam ser bem justificadas, as escolhas teóricas precisam estar muito claras,
enquanto que o artista nas suas escolhas, nas suas propostas de transgressão, não tem
essa obrigatoriedade de se justificar em relação a essas escolhas, e às propostas de
transgressão que apresenta. Então, como é fazer esse diálogo entre a obra artística como
objeto de estudo ou o artista que se coloca na posição de pesquisador, mas que tem esse
habitus de propor transgressões e criar e romper? Como é essa aproximação, como pode
acontecer, se é possível acontecer esse diálogo de estratégias de habitus em prol da
produção de conhecimento acadêmico em artes.

LÍGIA

Aí, é muito complexo. Não sei se eu tenho competência para falar sobre isso. Para
conversar, um pouco. Mas eu tenho a impressão de que a obra de arte produz um
conhecimento sobre o real e muitas vezes de forma bastante mais profunda que muito
conhecimento científico produzido sobre o mundo social. Claro que isso teria que ser
contextualizado, identificado. Você vê a própria inspiração que a obra de arte traz pra
cientistas sociais, filósofos e sociólogos. O próprio Bourdieu cita, trabalha o tempo todo
com a literatura, com referências à literatura, a obras importantes, Em busca do tempo
perdido de Proust a Virginia Wolf...

DENISE

Flaubert...

LÍGIA

Flaubert, ele analisa a obra no sentido de criação do campo artístico, Flaubert e Manet.
Ele deu um curso no Collège de France só sobre a obra de Manet que infelizmente não
foi publicado ainda, um curso que, segundo Pinell, é o curso que ele mais gosta; não foi
publicado, espero que alguém publique. Mas no livro As regras da arte ele já faz
algumas referências a Manet embora seja principal o estudo sobre Flaubert, mas ele
estudou porque como ele estudou o campo artístico, quer dizer, então a arte pode ser
tomada como objeto de estudo sociológico, como campo. Como ele fez em A distinção,
em As regras da arte, ou mesmo como no O amor pela arte na freqüentação dos
museus. Agora, tem o lado do artista criando sua obra; o quanto ele pode explicar ao
mundo, embora não seja esse seu objetivo. O que Bourdieu estudou sobre o campo
artístico é que o artista cria mais em função da forma do que do conteúdo, embora em
todas as manifestações artísticas, o conhecimento do mundo social e a relação com o
mundo social têm um papel importante. No âmbito da criação propriamente artística,
tem sua especificidade, que é diferente do conhecimento cientifico. Então eu acho que
quem está na academia vai tomar a obra de arte como objeto de estudo. Não veria como
fazê-lo sem ser objeto de estudo sociológico. Pode até ter outras perspectivas, mas eu
não veria como objeto de estudo acadêmico. Outra perspectiva é o artista desenvolver
sua obra, são duas coisas diferentes. Tanto o artista desenvolvendo sua obra pode
produzir – como Proust escreveu Em busca do tempo perdido, produziu uma obra que
inspirou um sociólogo como Bourdieu, como Moby Dick inspirou alguns filósofos,
como tem quadros importantes, livros de filosofia, os filósofos fazem reflexões, embora
alguns artistas digam que fazer análise teórica sobre obra de arte é absolutamente
supérfluo porque o artista não pensou nada daquilo quando fez a obra, mas aí também
não sou competente para falar sobre isso.

ADALBERTO

Professora, na construção da obra – retomando um pouco o que Nora estava falando – a


construção da obra de arte não é uma investigação cientiífica, um método cientíifico
dentro da acadêmica. O artista trabalha por pressupostos talvez seja para construir
significados.

DENISE

Formulando hipóteses...

ADALBERTO

Exatamente, há construção de significados pela obra de arte. Então, na realidade, posso


pegar a obra de arte não no sentido de uma ciência que a academia traz para a gente,
mas eu posso pegar a obra de arte como uma construção de significados. Existem
métodos. Aí, eu fico pensando, vou perguntar à senhora: a construção desses
significados seria a própria história da arte, discurso da arte, alguma coisa assim?

LÍGIA
Essa não é minha área de investigação. A única coisa que eu sei sobre a arte foi por ter
lido Bourdieu...

DENISE

E viver com um artista...

LÍGIA

É, muito mais por Bourdieu que estudou o campo artístico, mas esse não é meu objeto
de investigação então eu não saberia lhe responder. Agora, como Bourdieu estudou o
campo artístico, ele estudou essa lógica do campo artístico. Segundo Bourdieu, a lógica
do campo artístico não é baseada em hipóteses e busca de significados, é uma lógica que
é outra, que é especifica, não é uma lógica de produção cientíifica.

ADALBERTO

Mas há lógica, há uma lógica.

DENISE

Há sim...

ADALBERTO

Há uma lógica de construção de conhecimento.

NORA

Sem a pretensão de produzir conhecimento científico desse tipo.

DENISE

O objetivo não é esse...

LÍGIA

Tanto que a ruptura de Flaubert é exatamente fazer um romance que não tem uma tese,
não é um romance de tese... É uma das rupturas.

ADALBERTO

Que Flaubert faz...

LÍGIA

Sim, Manet também, os impressionistas, com a pintura realista. No primado da forma


sobre o conteúdo.
ADALBERTO

É exatamente, e não é a função... nas camadas populares se confunde a forma com a


função. Essa xícara é bonita, mas também é boa para eu tomar café aqui.

LÍGIA

Exatamente.

ADALBERTO

Então, ele faz essa diferenciação entre as camadas populares em um discurso estético,
de arte, e o discurso estético da arte tem o significado do subjacente, a leitura é
construída, os códigos são construídos, então. Na realidade, a forma se sobrepõe à
função. Num carnaval de rua, numa cena de rua, de festa, de dança a função está se
sobrepondo à forma, embora a forma seja importante ali. Estou aqui pensando no meu
trabalho, na minha pesquisa, porque é exatamente isso... a relação...

NORA

O que eu percebo é que o estudo de Bourdieu ajuda, a nós, estudantes dos campos das
artes, no espaço para produção de conhecimento acadêmico em artes, a entender
justamente isso, que o campo acadêmico tem a sua estrutura e que o artístico tem a sua
outra estrutura e que nunca essa tradução vai ser literal, vai ser então uma transposição.
Então, enquanto artistas, pesquisadores dentro do campo acadêmico, precisamos estar
atentos à estrutura que o acadêmico produz.

DENISE

E também construir esse outro capital, porque muitas vezes o artista chega na
universidade, eu tenho visto isso, com seu capital cultural e artístico e seus interesses,
achando que isso é imediatamente traduzido em capital acadêmico, e não é. Então,
querem, por exemplo, ser reconhecidos naquele outro campo da mesma maneira que o
são no campo artístico. Não existe essa colagem, é outro campo.

LÍGIA

É, é outro campo. É claro que quando o artista... vamos ver... Caetano Veloso que é um
compositor que se consagrou como compositor e cantor. Quando ele atingiu o auge da
consagração, a UFBA deu o tiítulo Honoris Causa para ele. Ele não precisou vir aqui
fazer uma tese de mestrado, doutorado para ter o titulo de doutor. Ele foi reconhecido,
os versos são usados para as apresentações das teses, mas não é um conhecimento
cientíifico. Ele fez uma produção artística sobre o mundo social, que tem vários
significados e, no fim da carreira – no fim da carreira não, no auge da carreira – é
reconhecido pela universidade.

DENISE

Lígia, eu tinha vontade de saber se a teorização sobre Bourdieu está muito presente na
área de saúde. Tem muitas produções de teses, de dissertações?

LÍGIA

Olha, na saúde coletiva ela está presente, mas não é, no Brasil, dominante. Existem
alguns grupos que trabalham, que têm algumas produções, mas eu diria que é incipiente,
há predominância de uma antropologia americana e canadense. Na produção de ciências
sociais em saúde, ela não é dominante.

DENISE

Embora Bourdieu seja um dos autores mais citados hoje, não é? No mundo acadêmico,
em relação às ciências sociais, parece que ele, Marx e Weber são os grandes autores e
ele esta sendo cada vez mais citado como referência.

LÍGIA

Eu considero que ele é um dos mais importantes... também não tenho essa dimensão,
não sei a dimensão...

DENISE

Você acha que ele continua restrito às ciências sociais?

LÍGIA

Não, não. Eu creio que ele ultrapassou as fronteiras das ciências sociais. Especialmente
na saúde coletiva brasileira, que é mais limitada. Tem grupos em São Paulo e no Rio de
Janeiro que trabalham com ele mas...

DENISE

Eu o acho muito produtivo nas artes, inclusive porque ele propõe uma sociologia da
arte.

LÍGIA
É, ele estudou o campo artístico...

NORA

E essa proximidade com as artes não aparece só pela proximidade pessoal dele, que
trabalhou com a literatura, nessa aproximação com autores de teatro, que o programa de
pós-graduação em artes cênicas tem proporcionado. Uma outra curiosidade foi a
perspectiva com a proposta teatral de Brecht. Brecht é um autor do teatro alemão que
trabalha com sociologia do teatro. Propõe obras artísticas com o viés, com a proposta de
que a cena produza um estado de pesquisa do espectador, pelo distanciamento. Uma
cena, pela não identificação, que o teatro realista faz, o teatro realista durante muito
tempo produziu – e é um dos pressupostos do teatro realista. Uma das características
principais da proposta de Brecht é trabalhar com o gestus que é produzir na cena,
recriar, trazer à cena, questões de comportamentos sociais comuns onde o espectador
pode se reconhecer ou não ali, ou pelo menos exercitar a crítica em relação ao que está
sendo apresentado. Então, há o comportamento social de determinadas classes, o que
identificaria alguém sendo de uma linhagem nobre ou então de camadas operárias, de
trabalhadores, e isso é uma proximidade muito grande com o que me parece a idéia de
habitus. O habitus, no sentido de incorporação de uma estrutura social. E o gestus
brechtiano vem também com uma idéia de, ali na cena, ser apresentado um habitus
social de diversas categorias sociais. Então, uma curiosidade que surgiu foi ver se
Bourdieu se referenciou ou estudou a obra de Brecht.

DENISE

Adalberto encontrou...

ADALBERTO

Está aqui, na introdução, estava comentando isso ontem. Na introdução de A Distinção,


ele faz essa referência ao distanciamento brechtiano. Na realidade, a gente volta à
questão da forma e da função. Brecht chama atenção assim para o gestus, professora, no
sentido de que o gesto tem uma função na cena, mas ela tem uma forma. O que Brecht
quer é que o público fique atento é para a forma, é a forma que denuncia, é um ato, é um
gesto político. É um gesto de transformação. Então, não é a identificação com o gesto
de uso da xícara pela função, para eu tomar café. Eu vou ver o espetáculo porque vou
ver o mocinho, porque é bonito, porque é uma pessoa que eu quero amar na vida.
Justamente o contrário. Ele quer romper essa relação da função e da forma no teatro e
pensando como a senhora disse no iníicio da conversa, o sociólogo que quer ver o que é,
e o sociólogo que quer ver o que poderia ser. Na realidade, Brecht quer mostrar o que é,
e não o que deveria ser: o namorado que quero ter identificado com o mocinho da peça.
Eu acho que é a discussão de forma e função que a gente continua tendo, só que no
plano da arte ou no plano da sociologia. E ele fala aqui claramente que essa construção
de significados é a questão do distanciamento, você não olhar a coisa como você quer
que seja, como deveria ser, mas como é, como construção de significado, que o Brecht
chama esse distanciamento, você não misturar com a coisa. Pode falar assim? A coisa?
É pouco epistemológico. Está aqui na introdução do texto dele e eu estou um pouco
abismado com a quantidade de trabalho que tem pela frente, porque é muito incrível.

DENISE

Ele usa gestus como Bourdieu usa habitus.

LÍGIA

Na teoria das práticas de Bourdieu, um componente importante é o que ele chama de


hexis corporal. A postura, hexis corporal, faz parte da prática das pessoas, a linguagem
corporal diz muito da pessoa. Então ele tem toda uma análise do corpo, por quêe o
habitus se incorpora no corpo. A história individual e as estruturas se incorporam no
corpo. Então, as pessoas submissas das classes populares têm uma postura recurvada,
enquanto as pessoas dominantes têm uma postura... O que a pessoa é se traduz na
postura corporal. Faz parte da teoria dele.

ADALBERTO

É uma construção, não é? E assim, pensando nessa coisa da violência simbólica é


chocante, porque a gente observa nas escolas as desigualdades sociais, no ensino
público, no ensino da elite, essa construção do gestus. A sociedade vai construindo isso
como habitus... É maravilhoso como ele coloca, ele está a par das teorias da arte
moderna, do distanciamento do teatro, como [inaudível] é um diálogo maravilhoso que
vem a partir das ciências sociais, os grupos sociais como produtores de significado.
Você aceita ou não seguir. Serve para a gente também. Você vê isso em sua vida como
uma forma ou como função. Eu acho que cabe a gente decidir, não sei. Essa legitimação
das desigualdades sociais, eu estou pirado com isso, através da obra de arte. É uma
função técnica, importantíssima. E Brecht chamou atenção: não adianta você ir ao teatro
para ver uma coisa e assumir aquilo como sendo seu, sendo que não é; você vai lá e
assimila a função. Você tem de ver a forma, por que ele traz aquilo? Por que eu estou
usando o gestus dessa maneira e não de outra?

LÍGIA

Vamos discutir um pouquinho mais a teoria das práticas. Retomando até um pouquinho
da sua primeira questão. Ele tem uma teoria das práticas que se distancia da teoria da
ação racional, ou seja, o homem não se move, as práticas humanas não são racionais,
não decorrem de ações racionais, mas sim de um encontro entre um habitus e um
campo, uma situação num determinado campo. Daí que as práticas sociais não são
decididas livremente. Você tem esses constrangimentos que são não só toda sua história,
o campo onde você se situa, mas também o que ele chama de condições de
possibilidade. Então, por exemplo, em As regras da arte, onde ele desenvolve toda sua
teoria geral sobre os campos, é onde ele sistematiza toda a construção do campo
artístico, mas ele desenvolve a teoria geral dos campos, ou seja, além de analisar, quem
é quem naquele campo, quem são os agentes, quem são as instituições ele procurou
sistematizar aspectos comuns aos diversos campos. Eu estou estudando o campo da
saúde coletiva, quais são as instituições que fazem parte desse campo, quem é que
pertence a esse campo? O que é que está em jogo neste campo? O que é importante, o
que faz com que as pessoas façam parte da saúde coletiva e não da medicina? Queiram
jogar esse jogo? O que faz com que alguém seja artista e não médico? A gente acha
importante que um médico dê um plantão de 24 horas, joga esse jogo; outras pessoas
dizem não, eu jamais faria isso, eu jamais veria sangue e vice-versa. Um médico diria:
eu jamais seria artista eu não tenho paciência... Então, o conceito de illusio é próximo
da libido, o que é que faz com que eu motive minhas energias para aquilo. Então, essa
teoria das práticas sociais que ele desenvolve relacionando, explicando essa teoria com
o pertencimento a um campo a um habitus gerado naquele campo, a partir da história
social, da trajetória social. Investigar empiricamente um campo é investigar as
trajetórias sociais, de onde vem a pessoa, de onde vem o avô, a avó, o pai, a mãe, sua
trajetória pessoal para entender um pouco o que faz hoje. Então a teoria das práticas
dele é outra teoria que ajuda muito a gente a entender o mundo social.

NORA

E culmina com essa questão do espaço dos possíveis? Em As regras da arte...

LÍGIA
É, o espaço dos possíveis seria uma outra maneira de falar de contexto. O espaço dos
possíveis de Bourdieu ter desenvolvido a sociologia reflexiva dele foi o campo
intelectual francês dos anos 1950, onde existia Sartre por um lado e Lévi-Strauss por
outro. E a trajetória pessoal e familiar dele, que veio do interior da França, o fato dele
ter ido servir na Argélia, que o colocou em contato com um trabalho de campo, uma
pesquisa muito empírica, e esse foi o espaço dos possíveis. No livro As regras da Arte
ele analisa o espaço dos possíveis de Flaubert.

DENISE

As contingências...

LÍGIA

Contexto é muito pouco preciso. Tem um outro aspecto interessante que a gente não
comentou que é a abrangência de disciplinas que Bourdieu transitou, a gente falou
muito de sociólogo, mas ele é reconhecido como antropólogo. O livro Respostas, de
Loic Wacquant, um sociólogo americano foi produzido após um semestre durante o qual
seu grupo estudou Bourdieu; e Bourdieu responde às perguntas do grupo. Este livro tem
um subtítulo: “Por uma antropologia reflexiva”. Então, ele é reconhecido como
antropólogo, tem trabalhos que são filosóficos, como sociólogo, ele recorta uma
quantidade enorme de disciplinas e temáticas. Nesse estudo das práticas, ele também
desenvolve a idéia das trocas sociais, fazendo parte da explicação das práticas sociais. O
interessante é que ele vai vendo regularidades nessas leis que regem o mundo social,
que estão presentes tanto numa sociedade primitiva como a sociedade Cabila como na
França dos anos 1970. A gente estudando o Brasil hoje também vê isso se reproduzir.
Então ele conseguiu captar alguns processos universais, daí sua obra poder ser
considerada como uma produção de conhecimento cientíifico.

Livros de Pierre Bourdieu citados durante a entrevista:

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

BOURDIEU, Pierre. A distinção – crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora


Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre; HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio
de Janeiro. Bertrand Brasil, 1995.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: génese e estrutura do campo literário. Trad.


Miguel Serras Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte : os museus de arte na Europa
e seu público. Porto Alegre. Ed. Zouk, 2003.

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