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Gloria Steinem

Memórias
da Transgressão:
momentos da história da mulher
do século XX
Tradução de
CLAUDIA COSTA GUIMARÃES

EDITORA
ROSA DOS
TEMPOS
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Título original inglês


OUTRAGEOUS ACTS AND EVERYDAY REBELLIONS (Revised Edition)

Copyright © 1995 by Gloria Steinem

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil


adquiridos pela
EDITORA ROSA DOS TEMPOS
Um selo da
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 -20921-380 Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 585-2000
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil

ISBN 85-01-04655-8

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052 - R i o de Janeiro, RJ -20922-970
Este livro é dedicado, com agradecimentos, a...

...Letty Cottin Pogrebin, que vasculhou caixas e mais caixas


de trabalhos antigos, que vendeu uma amostra para a Holt e assim
me forçou a trabalhar neste livro; a Suzanne Braun Levine, que
me deu carinho e longos conselhos sobre o que manter e onde colocar;
a minha editora, Jennifer Josephy, cujo excelente critério corresponde
apenas à sua enorme paciência; ajoanne Edgar, que passou doze
anos me incentivando a criar espaço para escrever, mesmo quando
eu hesitava em fazê-lo; a Robin Morgan, esperando sempre poder
contar com suas críticas de irmã; a Robert Benton que, há tanto
tempo, ouviu as histórias de uma infância em Toledo e me mostrou
que eu não precisava ser outra pessoa para ser escritora; a Clay
Felker, que jamais deu importância para o sexo do jornalista que
aparecia com um notícia digna de ser publicada; ao Woodrow Wilson
International Center for Scholars do Instituto Smithsonian, cuja
bolsa permitiu que eu realizasse grande parte das pesquisas contidas
neste livro; a Stan Pottinger por oito anos de amizade, ânimo e
vitalidade; a Alice Walker por uma sinceridade imensa que ilumina
um caminho de sinceridade para todos que a cercam; a Andrea
Dworkin por sua raiva tão cabida, permitindo que outros con-
frontem injustiças sem precisar senti-la; a Patricia Carbine, amiga
e sócia na revista Ms., que proporcionou a mim, e a tantas outras,
um foro para novas idéias e sonhos; a meu pai, Leo Steinem, que
me ensinou a amar e a viver com a insegurança; a minha mãe,
Ruth Nuneviller Steinem, que efetuou o milagre de amar aos outros
mesmo sem se amar; e a todas as pessoas corajosas que conheci nos
últimos vinte anos de reportagens e organização — mulheres e
homens que sonham com uma justiça que ainda está por vir e viver
às margens da história.
Sumário

Nota ao Leitor 9
Prefácio 11

APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA

A Vida nas Entrelinhas 29


Eu Fui Coelhinha da Playboy 61
Em Campanha 109
Irmandade
Reunião de Ex-Alunas 165
A Canção de Ruth (Porque Ela Não Sabia Cantar)

OUTRAS DESCOBERTAS BÁSICAS

Palavras e Mudanças 199


Celebrando o Corpo Feminino 215
A Importância do Trabalho 223
O Fator Tempo 230
Homens e Mulheres Conversando 233
A Política da Alimentação 250
Criando Redes 256
Transexualismo 267
Por que as Jovens São Mais Conservadoras 272
O Erótico vs. o Pornográfico 282
8 GLORIA STEINEM

CINCO MULHERES

Marilyn Monroe: A Mulher Que Morreu Cedo Demais 299


Um Vôo com Patrícia Nixon 306
A Verdadeira Linda Lovelace 310
Repensando Jackie 322
Alice Walker: Você Conhece Essa Mulher? Ela Conhece
Você 328

TRANSFORMANDO A POLÍTICA

Houston e a História 351


O Crime Internacional da Mutilação Genital 365
Receitas de Fantasias: Para Alívio Temporário da Dor Causada
pela Injustiça 377
Se Hitler Estivesse Vivo, de que Lado Estaria? 381
Pensamentos Noturnos de um Telespectador 405
Se os Homens Menstruassem 416
Longe da Margem Oposta 420
Nota ao Leitor

No decorrer do texto ou ao final do artigo, você encontrará o ano no


qual foi escrito. Onde artigos relacionados foram combinados em
um só, o ano de cada um foi incluído. Onde houve atualizações para
esta segunda edição, elas também aparecem ao final do ensaio. Para
que cada ensaio exista como uma peça independente há referências
repetidas, embora eu tenha tentado minimizar repetições, restau-
rando e reescrevendo textos que foram adaptados para uma revista
específica. Dois ensaios, "A Vida nas Entrelinhas" e "A Canção de
Ruth (Porque Ela Não Sabia Cantar)", aparecem aqui pela primeira
vez, assim como o Prefácio e Pós-Escritos e outras atualizações desta
segunda edição. Em geral, tentei fazer deste livro uma entidade in-
dependente, sem alterar o estado de espírito em que me encontrava
quando cada uma de suas partes foi escrita.
Prefácio

Como escritora, sinto-me recompensada pelo fato de esta coletânea


ter permanecido à venda por mais de doze anos desde sua primeira
publicação. Agora, com um novo prefácio e alguns pós-escritos, ela
chega à sua segunda edição. Considerando que, nos Estados Uni-
dos, a data de validade de um livro se encontra entre a dos ovos e a
do leite — e que os ensaios incluídos neste abrangem um período
de vinte anos desde que foram reunidos pela primeira vez —, isto é
muito mais do que eu jamais poderia imaginar.
Republicados num mundo ligeiramente diferente, eu espero que
estes ensaios tenham nova utilidade. Para os leitores mais jovens e
para outros cujo juízo do passado recente do feminismo chega em
segunda mão, eles talvez contribuam como uma narrativa de even-
tos e idéias conforme foram experimentados à época. Eu sinto a ne-
cessidade de um registro contemporâneo quando leio livros e arti-
gos que se baseiam mais na mídia ou em relatos acadêmicos do que
na riqueza das experiências de gente que viveu o momento. Por exem-
plo, quando ouço coisas tais como "mulheres imitadoras de homens",
"anti-homem", "mulheres-vítimas", "classe média branca" e outras
descrições contraditórias de um movimento monolítico que eu não
reconheço. Mesmo as estudantes do feminismo tornam-se, muitas
vezes, vítimas de buscas via computador e acabam permitindo que
seus pontos de vista sejam moldados por recortes de jornal nos quais,
em se tratando do presente, elas mesmas não confiariam. Talvez devesse
existir uma linha mestra para todos os estudiosos do passado recen-
te: gente antes de papel.
Eu também espero que a durabilidade desta ou de outras cole-
tâneas e antologias exerça alguma influência sobre a crença popular
de que livros que contêm diversos assuntos são de alguma forma menos
dignos e duradouros do que livros que discorrem a respeito de um
12 GLORIA STEINEM

só assunto. Enquanto escrevia "A Vida nas Entrelinhas", eu me sentia


sem graça por ainda não estar produzindo "um livro de verdade".
Desde então, aprendi que a diversidade tem suas vantagens, espe-
cialmente quando se está tentando contar um pouco do que acontece
quando estamos transformando idéias que um dia basearam-se em
sexo e raça. No final das contas, para cada motivo além da repro-
dução ou da resistência a certas doenças, as diferenças entre indi-
víduos da mesma raça ou sexo são muito maiores do que as exis-
tentes entre os sexos feminino e masculino, ou entre as raças como
grupos. No entanto, sistemas perenes de castas, baseados nestas
duas diferenças visíveis, continuam a ser os únicos sistemas políti-
cos com um poder de penetração tal que chegam a ser confundi-
dos com o natural. Um assunto não é o bastante para atiçar nossa
imaginação de como seria a vida sem todas as suposições que fluem
destes sistemas de castas, de um nível global a um nível pessoal.
Mesmo a história dos movimentos que opõem tais castas fala mais
a respeito da coisa do que da coisa em si. Apenas as histórias pessoais,
além de paralelos com sistemas já reconhecidamente políticos —
digamos, aqueles baseados em classe social ou grupo étnico, um
dia tidos como inerentes—podem nos ajudar a visualizar um mundo
no qual todo mundo tem importância. Afinal, seres humanos seguem
o que vêem, não o que lhes é dito. Precisamos de exemplos diver-
sificados.
Olhando para trás, eu me dou conta de que eu mesma respon-
dia à pergunta "o que devo ler sobre o feminismo" recomendando
livros que ofereciam diversidade, de antologias tais como Sisterhood
is Vowerful {A irmandade é poderosa], Radical Feminism [Feminismo
radical] e All the Women Are White, All the Blacks are Men, But Some of
Us Are Brave [Todas as mulheres são brancas, todos os negros são
homens, mas algumas de nós são valentes] a coletâneas escritas por
um só autor, tais como Woman Hating [Odiando mulher], de Andrea
Dworkin ou In Search Of Our Mothers' Gardens [Em busca dos jardins
de nossas mães], de Alice Walker. Destes, Sisterhood is Powerful [A
irmandade é poderosa] de Robin Morgan, detém o recorde de
longevidade desta onda do feminismo, pois ainda está em circulação
vinte e cinco anos após seu lançamento. Os demais títulos ainda podem
ser encontrados em livrarias, em bibliotecas, com as orelhas gastas,
adotados por escolas ou tidos como livro de cabeceira—assim como
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 13

outros tesouros que surgiram desde então.* Se esta coletânea se unir


aos demais títulos em qualquer um destes lugares, eu serei uma es-
critora feliz.
Por outro lado, minha porção ativista não se sente nem um pou-
co feliz em constatar que este livro ou qualquer uma de suas publi-
cações-irmãs ainda sejam relevantes. Eu me sentiria bem mais re-
compensada se esta coletânea estivesse tão desatualizada que preci-
sasse figurar entre livros como Por que Roosevelt não vencerá um segundo
mandato, ou os diversos livros que falam do apartheid na África do
Sul e do comunismo soviético como sistemas que só seriam derruba-
dos com guerras. Ao perceber que os ensaios deste livro estão sendo
passados para uma nova geração de leitores, não sei se devo come-
morar ou lamentar.
Aqui vão alguns exemplos de sua atualidade que me preocupam:
Fui entrevistada recentemente para um documentário de tele-
visão cujo enfoque era o movimento feminista. Perguntaram por que,
nas palavras das produtoras — todas mulheres — "não existem jo-
vens feministas?" Embora elas pudessem ter consultado pesquisas
de opinião e constatado que, na verdade, existem mais jovens femi-
nistas hoje do que em qualquer outra época na história — sem con-
tar o número ainda maior de jovens que vivem vidas feministas, não
importa como se autodenominem —, eu sabia o que queriam dizer.
A verdadeira pergunta que faziam era: Por que as jovens não são mais
feministas do que as mulheres mais velhas, como seria de se esperar?
Eu me peguei explicando, mais uma vez, as tendências que no-
ticiei há 17 anos em "Porque as Jovens São Mais Conservadoras".
Normalmente, os homens são rebeldes na juventude e vão se tor-
nando mais conservadores com a idade. As mulheres tendem a ser
mais conservadoras na juventude, tornando-se mais rebeldes com o
passar dos anos. Este modelo torna-se evidente desde a época do
abolicionismo ou dos movimentos sufragistas. Isso faz sentido numa
sociedade dominada pelo sexo masculino, na qual o jovem precisa se
rebelar contra o poder do pai e aos poucos se tornar mais conserva-
dor para tomar o lugar do mesmo. Enquanto isso, as jovens crescem
além do limitado poder que lhes é conferido como objetos sexuais e

Ha mais referências sobre "o que devo ler sobre o feminismo" no final deste prefácio. Cada livro
lido puxará outros.
14 GLORIA STEINEM

mães para finalmente substituírem suas mães, bem menos podero-


sas. Além disso, a jovem ainda não foi exposta às injustiças da desi-
gualdade salarial no mercado de trabalho, ao fardo desigual da cria-
ção dos filhos e das tarefas do lar e ao sistema de dois pesos e duas
medidas que enfrentamos em relação à idade. Em outras palavras:
se as jovens têm algum problema é acreditar que não têm proble-
mas.
Essa tendência não deveria ter sido novidade para ninguém quando
o ensaio foi publicado pela primeira vez. Infelizmente foi e ainda é.
Se fosse escrevê-lo nos dias de hoje, eu deixaria mais claro que a ten-
dência feminina não é melhor ou pior do que a masculina, é sim-
plesmente diferente. Também não se trata de um modelo que se aplique
a todos os membros de um sexo; observamos aqui a ação da cultura,
não da biologia. Analisando historicamente, a idade média da rebe-
lião do amor-próprio feminino torna-se cada vez menor, chegando
até mesmo a uma diferença de dez anos de uma onda do feminismo
para a outra. Eventualmente, os modelos para cada sexo desapare-
cerão, assim como os papéis que os criaram. Mas comportar-se como
se o paradigma cultural masculino fosse o esperado, o normal ou o
único, transforma as muitas mulheres (e alguns homens), cujas vi-
das seguem uma lógica diferente em seres invisíveis, e mina a cora-
gem das jovens que incomodam o conservadorismo machista de seus
colegas. Acima de tudo, faz com que a sociedade — e até nós mu-
lheres — subestime o poder das mais velhas como rebeldes — mu-
lheres com quarenta, cinqüenta, sessenta anos ou mais. Agora que a
taxa de natalidade nos Estados Unidos sofreu uma queda significa-
tiva e que a expectativa de vida aumentou pelo menos trinta anos
desde os tempos dos movimentos sufragistas, é bem provável que as
mais velhas formem o corpo crítico de toda a energia feminista.
Encontramos recentemente outras razões pelas quais as mulhe-
res tornam-se mais radicais com a idade. Eu escrevi algumas obser-
vações a respeito de algumas destas razões. Mas até mesmo as pró-
prias jovens feministas — assim como as jovens produtoras de tele-
visão — ainda são levadas a se sentirem sós. Elas se perguntam: "Onde
está todo mundo?"
Daqui a quanto tempo será que homens e mulheres se sentirão
à vontade para encarar a rebelião do amor-próprio como uma possi-
bilidade para a vida inteira?
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 35

Há dezesseis anos "Se Hitler Estivesse Vivo, de Que Lado Esta-


ria?" foi escrito para expor o fato de grupos antiaborto tentarem
equacionar judeus com fetos e aqueles que apóiam abortos legais, fru-
to da escolha de cada uma, com nazistas. Essa retórica inflamada aca-
bara de substituir uma tentativa frustrada da direita em pintar a lega-
lidade do aborto como uma trama genocida contra a comunidade negra,
uma alegação com pouca base na verdade (mulheres brancas estavam
e estão mais propensas a se submeter a um aborto do que as de cor). A
tática teria sido mais bem-sucedida se não tivesse sido engendrada por
uma maioria de racistas brancos que se queixavam também de que "o
mundo ocidental branco está se suicidando por meio de abortos e
anticoncepcionais". Eu achei que a mídia perceberia o cinismo dessa
campanha nova e ultrajante, assim como o fato histórico de que Hitler
e os nazistas eram, na realidade, antiaborto. Declarar o aborto um ato
criminoso contra o Estado, crime pelo qual médicos e pacientes pode-
riam ser presos, fechar clínicas de planejamento familiar e banir infor-
mação a respeito de anticoncepcionais—tudo isso fazia parte dos esforços
nazistas para aumentar a população ariana, eliminando ao mesmo tempo
judeus e outros cidadãos indesejáveis de formas mais imediatas.
Hoje, uma década e meia depois, os grupos antiaborto ainda
comparam os pró-escolha a nazistas, sem serem interpelados pela
mídia. Essa retórica inflamada já causou ou justificou bombardeios
e outros ataques terroristas contra clínicas de saúde reprodutiva com
uma freqüência de, em média, uma vez por mês. Houve também
homicídios e tentativas de homicídios de médicos e funcionários das
clínicas.
Teriam resultados tão violentos servido para conter a retórica
antiaborto? Acho que não. Pelo contrário, tornou-se parte do mainstream.
Rush Limbaugh, apresentador de um programa de televisão e inte-
grante da direita radical, que ganhou popularidade durante o atual
recuo contra a igualdade, conseguiu comprimir a falsa equação de
feministas com nazistas em uma só palavra: "feminazi". Em 1992,
ao lhe pedirem para definir o termo, ele explicou: "Uma feminazi é
uma mulher — uma feminista — para quem a coisa mais impor-
tante do mundo é que o maior número possível de abortos ocorra".*

* Paul D. Colford, The Rush Limbaugh Story [A história de Rush Limbaugh] (Nova York, St. Martin's
Press, 1993), p. 184.
16 GLORIA STEINEM

Eu jamais conheci alguém que preencha tal descrição, muito embo-


ra ele a despeje sobre mim e sobre muitas outras mulheres. Na ver-
dade, o direito de ter um filho com segurança, assim como o direito
de decidir quando e se ter filhos, sempre foi a nossa meta. Por exem-
plo, uma das maiores batalhas feministas foi a investida contra a es-
terilização através de coação. A atual ênfase no aborto é uma respos-
ta às tentativas de recriminalizá-lo ou de usar o terror para eliminá-
lo de uma vez.
Não obstante, o termo "feminazi" continua sendo usado na mídia
como se fosse verdadeiro ou até mesmo divertido. Será que um ter-
mo igualmente cruel, e sem base histórica, tal como "nazijudeu",
receberia tratamento parecido? Duvido muito. Quanto tempo vai
levar até que a equação de escolha livre do aborto com genocídio —
e de feministas com nazistas — tenha sido exposta com tal freqüên-
cia na mídia que não mais justificará o terrorismo?
Nos dezenove anos desde que escrevi "O Erótico vs. o Pornográ-
fico" a compreensão de que a pornografia tem a ver com a misoginia
e a violência e não com sexo — da mesma forma que o estupro está
relacionado à violência e não ao sexo — encontrou ressonância en-
tre um público cada vez mais aterrorizado e iniciou um debate na-
cional. Estas são as boas novas. As más notícias são que os ativistas
antipornografia vêm sendo de tal forma mal interpretados — e suas
palavras de tal forma distorcidas por uma campanha de desinformação
promovida pela indústria da pornografia — que estão sendo, cada
vez mais, agrupados com censores da direita, mesmo que os pró-
prios censores sejam extremamente claros quanto à sua posição anti-
feminismo, antilesbianismo, antiaborto, antieducação sexual, antinudez
e anti-qualquer-coisa relacionada ao sexo não-procriativo, dentro do
casamento. Na verdade, é até bem fácil distinguir um censor de uma
feminista. Os primeiros estão tentando tirar um número cada vez
maior de livros da biblioteca enquanto as últimas tentam colocar um
número cada vez maior.
Não posso lhes dizer o quão surrealista tem sido me ver, e a outras,
chamadas de "puritanas", de "novas vitorianas" ou "anti-sexo" pelas
mesmas posições que nos condenaram como "libertinas" e "imorais"
até alguns anos atrás. (Afinal, para a turma da direita, é o que con-
tinuamos a ser.) Mulheres e homens que se opõem à pornografia porque
ela normatiza a violência terão de lutar muito para não entrar para
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 17

a História como as sufragistas, descritas como chatas, assexuadas e


sabichonas. Afinal de contas, muitas delas acreditavam na liberação
sexual tanto quanto nós, de Emma Goldman e Victoria Woodhull a
Margaret Sanger. Fazer com que as mulheres pareçam ser anti-sexo
e sem vida quando queremos apenas o direito à sexualidade, sem
humilhação ou dor, fazer com que os homens pareçam ser fracos ou
sexualmente privados por preferirem a cooperação à dominação é
claramente uma tática para isolar qualquer um que tente separar a
sexualidade da violência e da dominação — o que vem a ser um ata-
que bem no coração da dominação masculina.
Por que será que a tentativa de separar a pornografia do erotis-
mo é mais difícil do que separar o estupro do sexo, o assédio sexual
da atração mútua, assim como outras investidas de separar a violên-
cia e a dominação do sexo? Creio que a resposta esteja nos bilhões de
dólares ganhos pela indústria multinacional da pornografia com
produtos que vão de filmes, vídeos, quadrinhos, revistas pornográfi-
cas, CD-ROMs, videogames a shows de sexo ao vivo, turismo sexual,
comércio de escravos sexuais infantis "descartáveis" e mulheres im-
portadas para serem usadas na pornografia. Essa é a indústria na qual
o crime organizado conseguiu se "legitimar" e até mesmo ser defen-
dido por grupos de direitos civis para os quais os pornógrafos con-
tribuem. Se ao menos conseguíssemos enquadrar como crimes os atos
cometidos para a criação da pornografia — de espancamento e
encarceramento, tal como no ensaio sobre Linda Lovelace, até o rapto
e estupro de crianças — poderíamos transformar os ganhos dessa
indústria num negócio bem mais arriscado. Se a distribuição fosse
limitada — ou pior, se toda a pornografia fosse menos tolerada e
menos popular — essa gigantesca indústria, que não pára de cres-
cer, encolheria. E por isso que as demonstrações antipornografia fi-
cam mais vulneráveis à acusação de ameaçarem a Primeira Emenda
da Constituição Americana — mesmo que a estejam fortalecendo
por se utilizarem da liberdade de expressão — do que protestos si-
milares contra a Ku Klux Klan, contra os neo-nazistas e contra ou-
tras áreas, menos lucrativas, da literatura do ódio. A coisa chegou a
um ponto em que a melhor forma de proteger um crime é fotografá-
lo e vendê-lo como pornografia. A maneira mais certa de se ser con-
denado como censor é sugerir que um crime vendido como porno-
grafia seja processado como qualquer outro crime.
18 GLORIA STEINEM

É claro que há motivos menos econômicos e mais profundos pelos


quais ainda encaramos a pornografia como "normal". As represen-
tações de prazer mútuo e de sexualização da igualdade são tão raras
que os pornógrafos parecem ter obtido direitos exclusivos sobre o
sexo. Eles conseguem se desvencilhar de acusações dizendo que opor
a pornografia é o mesmo que opor o sexo. Todas as vezes que usa-
mos o termo "sexo, drogas e violência" como se nos referíssemos a
uma instituição, fortalecemos a alegação dos pornógrafos de que o
sexo é intrinsecamente violento.
Desde que o ensaio foi escrito, no entanto, já aprendemos mais
sobre a ligação entre o grau de abusos sexuais sofridos por menores
e o grau de sadomasoquismo adulto. Muitas pessoas crescem com a
convicção de que a dor e a humilhação são porções inevitáveis do
amor e da intimidade. A resposta para a pornografia encontra-se não
só em expô-la como instituição, como também em certificar-se de
que os indivíduos atraídos por ela, e que não estejam machucando
ninguém com isso, não se sintam condenados. É, em parte, essa sensação
de estar sendo acusado pessoalmente que levou algumas mulheres,
incluindo feministas, a defender a pornografia. Da mesma forma que
muitos indivíduos têm crenças arraigadas em relação aos sistemas
baseados em raça ou classe social, a ponto de achá-los naturais, há
muitos empregados da indústria do sexo e outros para os quais a
prostituição e a pornografia exercem um poder não escolhido.
Para a grande maioria, no entanto, a maior barreira para esta-
belecerem sua oposição à pornografia é o fato de ignorarem o que
ela realmente é. Diana Russell, uma das pioneiras do feminismo —
que às vezes usa uma camiseta com um slogan muito simples, "Mu-
lheres contra a pornografia e a censura" —, incluiu em seu último
livro, Against Pornography: the Evidence of Harm [Contra a pornogra-
fia: a prova do mal]*, algumas das imagens pornográficas mais co-
muns. Assim, aqueles que desviaram o olhar como forma de se pro-
teger poderão reconhecer aquilo ao qual estão expostos em cinemas,
nas locadoras de vídeo, nas bancas de jornal e, cada vez mais, em
seus lares através das TVs a cabo e do ciberespaço. Aqui estão algu-

*Diana E. H. Russell, Against Pornography: The Evidence of Harm [Contra a pornografia: a prova do
mal] (Berkeley, Califórnia: Russell Publications, 1994). Ver também: Russell, Making Violence Sexy:
Feminist Views on Pomography [A Transformação da violência em sexy: visões feministas sobre a
pornografia] (Nova York: Teachers College Press, 1993). i
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 19

mas imagens típicas: mulheres com seios tão aumentados por im-
plantes que elas mal conseguem andar ou se deitar confortavelmen-
te- corpos femininos transformados em carne de açougue com o uso
de mortalhas, correntes e máscaras; meninas com a maquiagem es-
correndo pelo rosto em lágrimas de "prazer" pela humilhação a qual
estão sendo submetidas; mulheres acorrentadas com as pernas aber-
tas enquanto garrafas e bastões são introduzidos, à força, em suas
vaginas; meninas sorridentes, aparentemente drogadas, enquanto seus
lábios vaginais e seus mamilos são perfurados por agulhas; crianças
sendo penetradas oral e analmente em manuais explicativos de como
abusar sexualmente de uma criança; mulheres gritando de dor, pre-
sas em arreios e penetradas por vibradores e animais; homens com
garotinhos no papel da "fêmea" tendo seu corpo cruelmente invadi-
do; até mesmo cenas extremamente reais de evisceração e homicí-
dio. Em muitos dos casos acima descritos, a diferença de poder en-
tre vítima e algoz é amplificada pelo acréscimo de diferenças de raça,
classe, idade e grau de nudez.
Quanto tempo se passará até que homens e mulheres de todas
as raças se oponham à pornografia e sejam levados tão a sério quan-
to os judeus que se opõem às representações de imagens nazistas,
aos negros que se opõem às representações de imagens do racismo
ou qualquer um que se oponha às representações de ódio e degrada-
ção não sexualizadas?

Como podem ver, sinto raiva ao reler algumas destas páginas e re-
fletir sobre a falta de mudanças ou sobre os lembretes dos pequenos
retrocessos que sofremos nas mudanças obtidas. Mas a raiva é uma
célula energética que leva à mudança. Eu espero que vocês tratem
com carinho e utilizem o que quer que sintam. Apenas a raiva não-
externada e engolida transforma-se em amargura ou depressão, e
existem diversas provas de que a ação é um antídoto para tais senti-
mentos e o único caminho para o progresso. É bem verdade que os
retrocessos são, em si, um tributo ao sucesso: o resultado perigoso
mas inevitável de colocar a consciência da maioria na direção da igual-
dade e assim transformar uma maioria antiigualdade numa minoria
irada que ainda acredita poder ditar o que é legal, e até mesmo o
que é normal.
20 GLORIA STEINEM

Especialmente no caso de nós mulheres, treinadas para encon-


trar nossa identidade na aprovação dos outros, é difícil enfrentar a
oposição. Mas, conforme demonstrou a historiadora Gerda Lerner,
é uma característica comum à história da mulher — ou à verdadeira
história de qualquer grupo marginalizado — ser perdida e desco-
berta, perdida outra vez e redescoberta, perdida uma terceira vez e
re-redescoberta até que as margens transformam o núcleo. Numa
árvore ou numa semente, é nas margens que ocorre o crescimento.
Quem ia querer estar em algum outro lugar?
Há muitos sinais de crescimento nestas páginas que devem ser
comemorados. Abrangem toda uma gama de considerações, do pessoal
ao político. O político é compartilhado por grupos e, eventualmen-
te, pela sociedade como um todo. Mas o pessoal será diferente para
cada leitor. Os motivos para se comemorar são:
Me dar conta de que o relato no qual exponho o que é trabalhar
no Playboy Club teve maior longevidade do que os Playboy Clubs,
tanto aqui como no exterior.
Revisitar a faculdade na qual estudei, evento contado em "Reu-
nião de Ex-Alunas", para ser paraninfa da turma de 1995 e desco-
brir que se tornou um verdadeiro enxame de ativismo e também a
primeira das Sete Irmãs — as sete faculdades da Costa Leste ameri-
cana exclusivamente para mulheres — a nomear uma afro-america-
na para reitora. Ela está prestes a tomar posse.
Reler a narrativa da derrota de Bella Abzug para o Congresso
em "Longe da Margem Oposta" e me dar conta de que sua triste
derrota abriu caminhos para uma nova atividade como organizadora
de grupos feministas internacionais, através das Nações Unidas,
possibilitando, assim, que o mundo inteiro conheça seu trabalho. (Como
anunciou uma mulher, orgulhosamente, ao chegar à ONU, "Eu sou
a Bella Abzug da Mongólia".)
Saber que os assuntos que incluí neste livro foram expandidos
em outros lugares, da política de "Homens e Mulheres Conversan-
do" (agora explorado com grande popularidade em You just Don't
Understand [Você simplesmente não entende] de Deborah Tannen)
a "O Crime Internacional da Mutilação Genital" (que finalmente foi
noticiado na mídia e que está sendo submetido às maiores mudan-
ças: há um movimento de mulheres que sofreram esse tipo de muti-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 21

lação, que são valentes o bastante para se organizarem contra suas


próprias tradições para salvar as filhas).
Olhar mais uma vez para "Celebrando o Corpo Feminino" e
constatar que ele se torna ainda mais pungente diante da nova com-
preensão da freqüência e seriedade de doenças tais como a bulimia e
a anorexia e a política sexual que leva uma jovem a jejuar a ponto de
ficar sem menstruação, quadris, seios e seu destino como mulher.
Ver que os movimentos de gays e lésbicas ultrapassaram os limi-
tes espaciais nos quais os rebeldes sexuais descritos em "Transexualismo"
possam viver e ser eles próprios — com ou sem cirurgia.
Querer ter escrito mais a respeito das viagens que fiz com um
time inter-racial de organizadoras feministas em "A Vida nas Entre-
linhas" — e sobre as origens comuns do racismo e do sexismo em
"Houston e a História" — porque ainda perdura a caracterização de
todo o movimento feminista como sendo de "classe média branca"
(mais até, por exemplo, que o Partido Republicano, onde a "neve"
realmente poderia cegar alguém). Mesmo assim, notamos um cres-
cimento de times organizadores multirraciais, especialmente em meio
às jovens feministas, mesmo que desconheçam a história de outros
trabalhos parecidos.
E há também vidas de indivíduos como marcos de mudança: assistir
ao talento de Marilyn Monroe como atriz ser levado mais a sério,
algo que ela almejou a vida inteira; celebrar a jornada de Alice Walker,
que se tornou uma escritora conhecida em todo o mundo, com imensa
alegria; e lembrar que Jacqueline Kennedy Onassis disse, após a
publicação deste artigo, que ele a ajudou a ser vista como uma edi-
tora de verdade, um trabalho que ela continuou a realizar durante
outros dezesseis anos. Ela morreu, conforme descreveu seu filho, rodeada
pela família e pelos livros que tanto amava.
Em minha própria vida, o ensaio "A Canção de Ruth" foi o maior
marco de mudança. Passei anos sem conseguir relê-lo. Algum lado
misterioso do meu ser deve ter tido mais coragem para enfrentar a
triste vida de minha mãe do que eu tive. Só muito mais tarde é que
eu fui me dar conta de que escrevia, também, a respeito de minha
própria vida — a respeito dos meus primeiros anos de vida, que eu
ocultara, permitindo que fossem um ímã para a tristeza, a respeito
de enxergar o sofrimento de minha mãe em outras mulheres e a res-
peito da falta que senti de não ter uma mãe forte e protetora. Hoje
22 GLORIA STEINEM

em dia eu consigo pensar no sentido de uma frase que escrevi então,


mas que eu não compreendera conscientemente: "Eu sei que vou
passar os próximos anos tentando decifrar o que foi que a vida dela
me deixou."
E é verdade. Eu continuo a descortinar realidades minhas que
eu negara por serem iguais a ela, de forma a não atrair para mim o
mesmo destino que ela teve. Mas agora que o medo se foi, estas
descobertas são, por si sós, uma espécie de renascimento.
Quer seja a sua vida ou a minha, a de nossos pais ou das crianças
que ainda estão por nascer, é bem melhor ser tudo o que somos do
que ser imortal. Numa competição entre o prazer causado por um
trabalho duradouro e o desejo de ativista por um mundo onde todos
têm importância a escolha é simples. Eu espero que você encontre
algo neste livro que ajude a você, leitor, torná-lo obsoleto.

— 1995

TEXTOS COMPLEMENTARES: OS DIVERSOS CAMINHOS QUE LEVAM


AO FEMINISMO

Allen, Paula Gunn. Grandmothers of the Light: A Medicine Woman's


Sourcebook [As avós da luz: o guia da curandeira}. Boston: Beacon
Press, 1991.
Anzaldúa, Gloria, ed. Borderlands/ La Frontera: The New Mestiza [A
fronteira: a nova mestiça]. São Francisco: Spinsters/Aunt Lute
Press, 1987.
Asian Women [Mulheres asiáticas}. Berkeley, Califórnia: Berkeley Asian
American Studies, 1973.
Conway, Jill Ker, ed. Written by Herself{Esctito por ela mesma}. Nova
York: Vintage Books/Random House, 1992.
Dworkin, Andrea. Woman Hating [Odiando mulher}. Nova York: E.P
Dutton, 1974.
Findlen, Brabara, ed. Listen Up: Voicesfrom the Next Feminist Generation
[Ouçam bem: as vozes da próxima geração de feministas}. Seattle,
Washington: Seal Press, 1995.
Freeman, Jo, ed. Women: A Femininst Perspective [Mulheres: uma pers-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 23

pectiva feminista]. Mountain View, Califórnia: Mayfield Publishing


Company, 1995.
Geok-Lin Lim, Shirley e Mayumi Tsutakawa, eds. The Forbidden Stitch:
An Asian American Women's Anthology [O ponto proibido: uma
antologia de mulheres asiático-americanas}. Corvallis, Oregon:
Calyx Books, 1989.
Hull, Gloria T., Patricia Bell Scott e Barbara Smith, eds., All the Women
Are White, All the Blacks are Men, But Some of Us Are Brave [To-
das as mulheres são brancas, todos os negros são homens, mas
algumas de nós são valentes}. Nova York: The Feminist Press,
1982.
Koedt, Anne, Ellen Levine e Anita Rapone, eds., Radical Feminism
[Feminismo radical}. Nova York: Quadrangle Books, 1973.
Kimmel, Michael S. e Thomas E. Mosmiller, eds., Against the Tide:
Pro-feminist Men in the United States, 1776-1990, A Documentary
History [Contra a maré: homens pró-feminismo na América, 1776-
1990, um documentário histórico}. Boston: Beacon Press, 1992.
Moraga, Cherríe e Gloria Anzaldúa, eds., This Bridge Called My Back:
Writings by Radical Women of Color. [Esta ponte que são as Mi-
nhas costas: ensaios escritos por mulheres de cor radicais]. Nova
York: Kitchen Table/Women of Color Press, 1983.
Morgan, Robin, ed., Sisterhood is Powerful [A irmandade é podero-
sa]. Nova York: Vintage Books/Random House, 1970.
Saxton, Marsha e Florence Howe, eds., With Wings: An Anthology of
Literature By and About Women With Disabilities [Com asas: uma
antologia da literatura escrita e dedicada a mulheres deficien-
tes}. Nova York: The Feminist Press, 1987.
Schneir, Miriam. Feminism In Our Time: The Essential Writings, World
War II to the Present [O feminismo de nosso tempo: obras essen-
ciais, da Segunda Guerra Mundial ao presente}. Nova York: Vintage
Books/Random House, 1994.
Smith, Barbara, ed., Home Girls: A Black Feminist Anthology [Home
Girls: uma antologia da feminista negra}. Nova York: Kitchen
Table/Women of Color Press, 1983.
Walker, Alice. In Search of Our Mothers' Gardens [Em busca dos jar-
dins de nossas mães}. Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich,
1983.
A Vida nas Entrelinhas

Houve dias, nos últimos dez ou doze anos, em que achei que minha
coleção de trabalhos escritos se resumia a cartas de captação de re-
cursos, rascunhos de discursos, declarações dadas no nascimento de
uma nova aliança e apresentações para os livros de outras pessoas.
Não me arrependo do tempo dedicado a estes outros projetos.
A escrita que leva à ação, que põe um sentimento comum em pala-
vras, que apresenta as pessoas umas às outras, talvez seja, a longo
prazo, tão importante quanto grande parte dos trabalhos convencionais
de ficção e não-ficção publicados. Se me pedissem para relatar o ápice
emocional desses vinte anos de carreira como escritora, eu talvez dissesse
que foram os dois dias passados em claro como escriba de diversas
reuniões durante a Conferência Nacional de Mulheres, em 1977 (um
evento aqui relatado em "Houston e a História"). Mulheres, repre-
sentantes de todas as minorias americanas, das mais antigas nações
indígenas às refugiadas vietnamitas recém-chegadas, haviam deci-
dido forjar uma resolução comum. Enquanto procurava palavras para
descrever as experiências comuns às mulheres de cor, tentando pre-
servar, ao mesmo tempo, as questões únicas a cada grupo, e quando
esta resolução em comum, sem precedentes, foi aceita e aclamada
por duas mil representantes de todos os cantos do país, senti um
imenso orgulho de ser escritora — um orgulho tão prazeroso quan-
to o de ver relatos mais pessoais publicados.
Dessa mesma forma, e supondo que exista realmente a posteri-
dade, eu teria sentido igual prazer se minha participação tivesse sido
ate menor que um livro ou um ensaio: talvez a invenção de algo tão
breve e essencial quanto a frase liberdade reprodutiva, uma substituta
democrática para frases antigas e paternalistas tais como controle
populacional, e uma liberdade de especial importância para a metade
reminina de todo o mundo. Encontrar uma linguagem que permita
30 GLORIA STEINEM

às pessoas agirem juntas enquanto celebram a individualidade de


cada um é, provavelmente, a função mais feminista e mais verda-
deiramente revolucionária de uma escritora. Assim como não pode
haver mudanças sociais profundas sem a arte e a música (como disse
Emma Goldman, "Se eu não puder dançar, esta revolução não é
minha"), ela não poderá existir sem palavras que evoquem em nos-
sas mentes o sonho da mudança.
Não obstante, uma das maiores ironias de se tentar ser escritora
e ativista ao mesmo tempo é que quanto mais temos sobre o quê
escrever, menos tempo temos para fazê-lo.
Arrependo-me profundamente de jamais ter mantido um diá-
rio nos mais de doze anos em que passei viajando pelo menos dois
dias na semana como oradora itinerante ou organizadora feminista.
Embora grande parte das idéias e observações contidas neste livro
tenham nascido durante tais viagens (incluindo o título, como verão
no último ensaio, "Longe da Margem Oposta"), eu poderia ter es-
crito um livro inteiro relatando, com detalhes, apenas um dos pri-
meiros anos. Por exemplo, o ano em que fui a primeira oradora mulher
para um punhado de poderosos no Clube Nacional de Imprensa, em
Washington (eles me deram uma gravata), e no banquete da Revis-
ta de Direito de Harvard (onde, de posse de uma pesquisa feita por
estudantes mulheres dessa universidade que só começou a aceitar
mulheres nos anos 50, cometi o pecado de falar especificamente de
Harvard e não do mundo em geral). Ou então ter encontrado três
mil pessoas me aguardando numa quadra de basquete de Wichita,
no estado do Kansas, enquanto a mídia ainda noticiava que o movi-
mento feminista era invenção de algumas mulheres pouco razoáveis
das cidades costeiras americanas. Colegas de Nova York haviam previsto
que eu encontraria indiferença ou poderia morrer apedrejada. Ou
ainda ter conhecido mulheres que protestavam contra tudo, de anúncios
de emprego que especificavam o sexo do candidato, em Pittsburgh,
no estado da Pensilvânia, à prática então vigente no estado de Ne-
vada de pressionar mães dependentes do sistema de previdência so-
cial a se prostituírem, poupando assim o dinheiro do estado e au-
mentando as atrações turísticas do lugar.
Apesar das reprovações da mídia ao noticiar o "Women's Lib"
ou as "incediárias de sutiã", vários outros anos como aquele no início
de 1970 me ensinaram que rebeliões do dia-a-dia e sonhos de igualdade
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 31

brotavam por todos os lados, dentro de famílias e na vida pública. E


estas novas idéias não estavam restritas às demografias previsíveis
de idade, raça, educação ou geografia. Na verdade, a rebelião era
menos retórica e mais real em algumas partes do país onde as alter-
nativas eram mais restritas do que nas grandes cidades dos estados
de Nova York ou da Califórnia e em níveis sociais que tornavam o
salário das mulheres ainda mais cruciais para a sobrevivência do que
no caso das rebeldes da classe média, sob a mira da imprensa.
Essas viagens constantes me davam, também, boas novas para
contar às redatoras e editoras de Nova York que se impacientavam
cada vez mais com os já antiquados estereótipos de "feminino" e "mascu-
lino" usados pela imprensa, e que acabavam de fazer uma histórica
greve branca no The Ladies' Home Journal e no RAT, uma revista supos-
tamente radical que prosperava graças à pornografia. A boa nova
era que havia público para um novo tipo de revista para mulheres
que fosse dedicada às mulheres, escrita por mulheres e que focalizasse
assuntos pertinentes às mulheres. Embora o feminismo fosse (e às
vezes ainda seja) um termo mal compreendido, muitas leitoras queriam
uma revista que apoiasse aquilo que o termo realmente significa: a
igualdade e a humanidade integral de homens e mulheres. Afinal de
contas, até mesmo as revistas femininas eram completamente pos-
suídas, controladas e, na maioria das vezes, editadas por homens.
Para que pudéssemos equilibrar um pouco as coisas, as mulheres
necessitavam de um foro nacional — ou de muitos foros como este.
Reuniões com outras mulheres do meio editorial revelaram his-
tórias de batalhas travadas capazes de provocar lágrimas e risos. A
revista Look dissera a Patrícia Carbine, que há anos praticamente dirigia
a revista na condição de editora executiva, que uma mulher jamais
poderia ser editora chefe. Na The Ladies'Home Journal, onde eu tra-
balhava como consultora e redatora ocasional, um dos dois princi-
pais editores (ambos homens, é claro) estavam tão convencidos de
que eu não me parecia em nada com nossas leitoras (descritas por
ele como "deficientes mentais com bobs nos cabelos") que vez ou outra
me entregava um manuscrito e dizia "Finge que você é mulher e lê
isso aqui". E, mesmo assim, ele era mais flexível do que o dono da
revista Seventeen, que mandou que terminassem minha consultoria
editorial ao saber que eu estava captando recursos para a defesa le-
gal de Angela Davis. Um editor da revista New York, para a qual o
32 GLORIA STEINEM

movimento das mulheres não passava de um importante evento de


mídia, insistia em que aquilo tudo não passava de um descontenta-
mento da classe alta que poderia ser resolvido se um número maior de
empregadas domésticas fosse importado da Jamaica. A revista do The
New York Times continuava a permitir que mulheres, minorias e ho-
mossexuais escrevessem artigos de cunho confessionário, na primeira
pessoa, mas por motivos de objetividade mandava que "autoridades"
masculinas, heterossexuais, escrevessem textos definitivos a respeito
desses grupos. Um memorando escrito por Hugh Hefner foi retirado
da sede da revista Playboy em Chicago por uma funcionária. Tratava-
se de uma invectiva contra a publicação de um artigo a respeito do
movimento feminista que um de seus editores encomendara a um
jornalista profissional e que saíra excessivamente "objetivo" e "equi-
librado" para os propósitos de Hefner. Segundo ele, "Escrever um ar-
tigo sobre os prós e os contras do feminismo me parece um tanto sem
propósito para uma revista como a Playboy. Estou interessado mesmo
é no lado irracional, emocional e bizarro do movimento... Essas jovens
são nossas inimigas naturais... Está na hora de enfrentá-las... O que
eu quero é uma peça devastadora... um trabalho de perito, uma de-
molição pessoal do assunto". Lembro-me de ter achado que a valente
atitude da funcionária ao divulgar o memorando à imprensa teria grande
impacto sobre qualquer um que se importasse com o jornalismo, mesmo
que se importasse pouco com a igualdade feminina. Eu estava errada.
Foi recebida com risinhos e sorrisos. A objetividade é destinada a as-
sunto sério, não a assuntos que dizem respeito às mulheres.
O problema era ainda maior para as mulheres de cor. As mulhe-
res negras que compareciam a tais reuniões contavam que nenhuma
das grandes revistas tinha uma negra em seus altos escalões. Até mesmo
uma revista destinada à mulher negra era, parcialmente, de propriedade
da Playboy e, assim como no caso das outras revistas dedicadas às
mulheres, era editada por dois homens. Como disse uma das mu-
lheres presentes: "Pelo menos vocês estão enfrentando hostilidades.
Nós ainda somos a Mulher Invisível."
Foram histórias e reuniões tais como estas que acumularam a
energia e o profissionalismo necessários para a criação de uma revis-
ta nacional e abrangente, controlada por mulheres e publicada para
mulheres. Com um modesto capital e nenhuma intenção de dupli-
car os departamentos tradicionais projetados para girar em torno de
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSAO 33

certas categorias de propaganda — receitas para reforçar anúncios


de alimentos, artigos sobre beleza para salientar os produtos dos
anunciantes do ramo e coisas do gênero —, sabíamos que seria uma
verdadeira batalha econômica. (Ainda bem que não tínhamos noção
do quão difícil seria. Ainda é mais fácil atrair anúncios de carros,
aparelhos de som, cerveja e outros produtos que não são, tradicio-
nalmente, destinados às mulheres do que convencer aos anuncian-
tes de xampu que seus anúncios são vistos por mulheres, mesmo sem
serem acompanhados de artigos que ensinam a lavar os cabelos, da
mesma forma que homens olham anúncios de creme de barbear sem
precisarem de um artigo que os ensine a se barbear.) Com tantos
obstáculos, não teríamos insistido se não fosse o encorajamento de
nossos leitores. Produzimos um fascículo-amostra de uma revista com
esse novo conteúdo editorial — uma revista destinada a permane-
cer três meses nas bancas. Esgotou-se em oito dias.
Havia muito mais trabalho pesado à nossa frente e muita inse-
gurança antes de conseguirmos arrecadar dinheiro e começar a pu-
blicar a revista mensalmente. A tentativa de começar uma revista
controlada editorialmente e financeiramente por sua equipe femini-
na, num mundo acostumado com a autoridade de homens e de in-
vestidores, deveria ser assunto para uma comédia musical.
E, apesar de tudo, nasceu a Ms.: a revista na qual grande parte
dos artigos contidos neste livro foram, originalmente, publicados.
Ao mesmo tempo, no entanto, minha vida tornava-se menos revista
e mais romance. Durante os quatro ou cinco anos de criação da Ms.,
eu viajava e discursava em dupla com uma feminista negra: primei-
ro foi Dorothy Pitman Hughes, pioneira dos serviços de assistência
ao menor, em seguida foi Florynce Kennedy, advogada, e finalmen-
te Margaret Sloan, ativista. Ao discursarmos juntas em centenas de
reuniões públicas, tentávamos ampliar o escopo da imagem pública
do movimento feminista, criada essencialmente após o lançamento
de The Feminine Mystique [A mística feminina], o primeiro real even-
to de mídia do assunto. (A tradução para o inglês de 0 segundo sexo,
de Simone de Beauvoir, causara impacto, anteriormente. No entan-
to, o impacto do livro de Simone foi diminuído pelo fato das revoltosas
em questão virem de um outro país que não o nosso.) Apesar das
grandes virtudes reformistas de The Feminine Mystique, ele consegui-
ra surgir no auge dos movimentos civis sem mencionar mulheres negras
34 GLORIA STEINEM

ou qualquer outra mulher de cor. Sua maior relevância dizia respei-


to a mulheres instruídas, brancas, donas de casa dos arredores das
grandes cidades americanas que encostavam-se à pia da cozinha e se
perguntavam se a vida "não seria mais do que isso". Como resulta-
do, os jornalistas americanos passaram a usar a frase movimento da
classe média branca para definir o feminismo nos Estados Unidos; ao
contrário da Europa, onde os primeiros trabalhos escritos e as pri-
meiras ações diretas eram bem mais populistas e repletas de consciência
de classe.
Havia pouca compreensão de que o feminismo, por definição,
precisa incluir membros do sexo feminino como uma casta que ul-
trapasse fronteiras econômicas e raciais. Da mesma forma, um mo-
vimento contrário às castas raciais precisa incluir indivíduos marca-
dos pelo racismo, independente de sexo ou classe. Havia uma com-
preensão ainda menor de que a discriminação sexual e racial são tão
pragmaticamente interligadas e antropologicamente interdependentes
que uma não poderá ser erradicada com sucesso sem que, também,
se elimine a outra.
Portanto, para ser feminista em forma e em conteúdo, saíamos
naquilo que Fio Kennedy chamava, alegremente, de "times da Pe-
quena Eva, algo para todo o mundo". Dorothy Pitman Hughes e o
marido Clarence tinham tido um bebê que ainda estava sendo ama-
mentado e precisava viajar conosco. Assim, formamos um trio du-
rante algum tempo. Dorothy convenceu-se de que muitos suspeita-
riam tratar-se de um bebê alugado para demonstrar a integração dos
filhos ao dia-a-dia — o que era, na verdade, uma de nossas princi-
pais mensagens. De fato, uma ou duas pessoas comportaram-se como
se tivéssemos dado à luz a menininha por conta própria. Eram tem-
pos nos quais uma oradora feminista sozinha já era novidade e gru-
pos inter-raciais feministas pareciam fruto do passado, relíquias dos
tempos de Sojourner Truth.
Dos vários anos viajando em tais pares, guardo recordações de
olhares insistentes e de oposição, mas também de um apoio imenso.
Nossa presença no palco, juntas, carregava a mensagem pela qual
muitas mulheres do Sul dos Estados Unidos ansiavam. Atraíamos
um público muito maior e muito mais variado do que se estivésse-
mos sozinhas. Nós nos complementávamos de maneiras diferentes.
Por ser jornalista, meu nome era mais conhecido. Assim, era mais
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 35

fácil que eu conseguisse uma palestra paga, o que nos possibilitaria


realizar reuniões e eventos beneficentes. Por outro lado, Dorothy podia
falar de sua experiência pessoal no casamento e na maternidade, ao
contrário de mim, e Flo e Margaret eram oradoras bem mais expe-
rimentadas. Eu sempre falava primeiro, de forma a cimentar as ba-
ses da conversa (além do mais, qualquer um presente naquelas pla-
téias concordaria com a afirmação de que eu seria um verdadeiro
anticlímax após a energia e o estilo tanto de Flo quanto de Margaret).
Mas, mesmo assim, o momento mais importante de qualquer pales-
tra chegava depois que todas nós havíamos falado: a longa discussão
da platéia e uma reunião de organização.
Era naquele momento que as pessoas começavam a responder às
perguntas umas das outras ("O que faço para deixar de me sentir cul-
pada por pedir ao meu marido que faça as tarefas do lar?") e sugerir
soluções testadas por cada uma. ("Imagine como seria dividir as tare-
fas do lar se estivesse vivendo com outra mulher. Agora não vá baixar
seus padrões.") Elas se informavam a respeito de problemas que nós
jamais sequer sonháramos: uma fábrica local que se recusava a em-
pregar mulheres, uma faculdade que abafava o caso de estupro ocorri-
do em seu campus para proteger a reputação, um orientador vocacional
de um high school que aconselhava as meninas a serem enfermeiras e os
meninos de cor a serem veterinários em vez de médicos. Elas distribu-
íam literatura dos grupos feministas existentes, folhas de papel para
que as interessadas em criar novos grupos pudessem se alistar e ende-
reços dos políticos que mereciam ser procurados ou protestados. Elas
aproveitavam idéias de ações que trazíamos de nossas viagens ou en-
tão decidiam tentar algo inteiramente novo.
Os pequenos grupos formados exclusivamente por mulheres, nas
discussões que se seguiam às palestras, eram ainda mais diretos, as-
sim como os grupos de autoconsciência e de criação de redes eram (e
continuam a ser, como poderá ser visto no ensaio intitulado "Crian-
do Redes") os organismos básicos de qualquer mudança profunda, a
longo prazo. Descobrimos que a proporção ideal para uma platéia
de grande porte era dois terços feminina e um terço masculina. Quando
os homens apareciam em número igual ao das mulheres, elas con-
trolavam suas respostas e observavam os homens para ver como rea-
giam. Nas ocasiões em que eram maioria absoluta, elas eventual-
mente se esqueciam da presença masculina e reagiam da forma com
36 GLORIA STEINEM

que reagimos quando estamos entre mulheres. Isso deu a inúmeras


mulheres a oportunidade única de se expressar abertamente e a muitos
homens a oportunidade ainda mais única de ouvi-las.
Mas acima de tudo as mulheres que integravam aquelas platéias
descobriram que não estavam loucas e tampouco sós. Foi o que também ;
descobrimos.
Embora tentássemos nos concentrar nas partes do país mais afas-
tadas da pequena atividade feminista existente na época, havia tão
poucas feministas itinerantes que acabávamos visitando todo e qualquer
tipo de comunidade em, creio eu, todos os estados americanos, com
exceção do Alasca. Houve ocasiões em que nos sentimos como uma
mistura das sufragistas Susan B. Anthony, Sojourner Truth e uma
troupe esquecida encenando Blossom Time.
Naquela época escrevi um ensaio a respeito destas viagens
intitulado "Irmandade", mas muitas outras imagens parecem voltar
à minha mente:

• Durante as coletivas, os jornalistas normalmente supunham


que eu podia responder às perguntas relacionadas a todas as
mulheres enquanto Dorothy respondia apenas pelas mulhe-
res negras, ou talvez pelos poucos líderes negros cujos no-
mes conheciam. Da mesma forma que masculino era univer-
sal e feminino limitado, branco era tido como universal e negro
limitado. (Tentávamos transformar isso em aprendizado dei-
xando que as perguntas se estendessem durante algum tem-
po para só então chamarmos atenção para o problema.)

• Os condutores de trem no norte do país permitiam que eu


entrasse no carro-salão para, em seguida, explicar a Dorothy
que os vagões mais baratos encontravam-se no final do trem.

• O pastor da minúscula cidade natal de Dorothy, no sul, não


permitia que as mulheres fizessem coisa alguma além de co-
zinhar e cantar. Não permitia nem mesmo que fossem diáconos
ou que coletassem dinheiro nas cestinhas que eram, princi-
palmente, cheias com moedas ganhas a duras penas pelas
mulheres.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 37

• Uma comissária de bordo branca considerou "obsceno" o fato


de Dorothy amamentar a filha no avião.
• Um homem, irado, presente numa platéia, que gritou exi-
gindo que Dorothy voltasse para a Rússia, onde era seu lu-
gar. Tanto Dorothy quanto a platéia caíram na gargalhada
diante de suas improváveis raízes russas.

• Uma escola particular para meninos, extremamente esnobe,


engendrou nossa platéia mais difícil e uma amiga para toda
a eternidade: a mãe de um dos garotos. Ela anunciou que
tinha um marido executivo que gostava de caçar, dois filhos
desagradáveis que consideravam as meninas seres inferiores
e que se dispunha a trabalhar como voluntária de um dos
centros de assistência ao menor dirigidos por Dorothy, onde
de fato trabalhou por muitos anos.

Margaret com os braços cruzados, bravamente, para bloquear


a passagem de um homem que invadiu o palco para protes-
tar contra nossas blasfêmias relacionadas à igualdade.

• Conversas que varavam a noite em quartos de hotel nas quais,


por exemplo, mulheres negras sugeriam que radicalizássemos
com as brancas que se ofereciam como verdadeiros capachos
humanos para homens negros e que permitiam assim que os
negros acusassem as negras de serem "excessivamente for-
tes". Ouvimos também diversas histórias a respeito de ultra-
jes que mais tarde vieram a ser conhecidos como "assédio
sexual", "mulheres espancadas" e "donas de casa deslocadas".

• Uma mulher, em Chicago, resumiu nossa longa explicação


do porquê da previdência social ser um assunto de mulheres
(a coisa fora distorcida de forma a parecer uma questão pu-
ramente racial). Disse que ao terem de cuidar de crianças pe-
quenas, "a distância que separa a maioria das mulheres deste
país de ter que recorrer aos fundos de previdência é um ho-
mem".
GLORIA STEINEM

• Ginásios, auditórios, porões de igrejas e prédios de sindica-


tos cheios de mulheres (e alguns homens) que riam e aplau-
diam ao ouvirem a política sexual de suas vidas ser descrita
em vo2 alta.

• Começando uma verdadeira rebelião numa universidade do


Texas onde os guardas do compus eram suspeitos de estuprar
as mesmas mulheres que pagavam seus salários em troca de
proteção; ou então numa fábrica onde o seguro cobria ho-
mens que haviam feito transplantes capilares mas não cobria
mulheres após um parto.

• Durante uma conversa com Flo a respeito de seu primeiro


livro, Abortion Rap [Conversando Sobre o Aborto] num táxi
em Boston, a motorista, uma senhora irlandesa, proferiu
palavras que seriam repetidas muitas vezes depois: "Filha, se
homem engravidasse, aborto seria um dos sacramentos".

• Esforçando-me para manter o mesmo nível de generosidade


e energia de Fio que encorajava prostitutas a organizarem-se
contra os cafetões e a favor da discriminalização, além de ten-
tar encorajar esposas ricas a interromper heranças passadas
de geração a geração de homens.

• Aprender, através da experiência de Fio como advogada, que


as violências doméstica e sexual são muito mais comuns do
que eu jamais sonhara. (Ela disse: "Fale com um grupo de
cinco ou seis mulheres. Pelo menos uma delas lhe dirá que
sofreu abusos sexuais na infância por um homem de sua pró-
pria família". Eu perguntei. Era verdade.)

• Assistir a Flo transformar as vidas das mulheres que encon-


trávamos com qualquer que fosse a mágica: convencer uma
repórter insegura a começar seu próprio programa de rádio
ou a caixa de um armazém de uma cidadezinha de que não
havia problema algum em aceitar que Flo lhe comprasse um
conjunto de calça e blusa roxas que ela desejava há meses.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 39

• Mas acima de tudo, ter aprendido com Flo que ninguém precisa
aceitar os termos impostos pela oposição. Por exemplo, quando
um homem hostil nos perguntou se éramos lésbicas (coisa
que acontecia com uma certa freqüência; afinal, por que ha-
veria uma mulher branca e outra negra de serem companhei-
ras?). Flo simplesmente olhou dentro dos olhos dele e per-
guntou: "Por que, minha alternativa é você?"

Foi Flo, especialmente, que me ensinou que uma revolução sem


humor é tão desesperançosa quanto uma revolução sem música. Ela
era tão escandalosa que eu me permitia dizer coisas que talvez tives-
se restringido ao meu antigo emprego de redatora de sátira para o
programa de televisão "That Was the Week That Was" [Aquilo foi
na semana que foi]. O próprio feminismo acabou me incentivando a
ultrapassar tópicos humorísticos convencionais (como pode ser vis-
to numa fantasia apresentada em palestras posteriores, "Se os Ho-
mens Menstruassem"). Flo também me salvou de um hábito que
funcionava em artigos mas que era a verdadeira morte em discur-
sos: citar fatos e estatísticas em demasia. Após um lapso do gênero,
diante de uma platéia que parecia duvidar de que realmente existis-
se algum tipo de discriminação, ela me levou para um canto e disse
com toda a gentileza: "Olha, não me leva a mal. Se você está deita-
da numa vala com um caminhão no tornozelo, você não vai mandar
alguém à biblioteca para descobrir o peso do caminhão. Você tira o
caminhão de cima".
A amizade e o companheirismo de minhas três parceiras de pa-
lestras me ajudaram a perder o medo patológico de falar em públi-
co. No passado, quando as revistas marcavam uma entrevista numa
rádio ou na televisão, como é comum para divulgar um certo assun-
to, eu cancelara tantas vezes em cima da hora que vários programas
haviam me banido como convidada. Embora eu não tivesse o menor
medo de enfrentar leões, individualmente, em covis separados, como
fazem os jornalistas, a simples idéia de ter de enfrentar um grupo,
ou até uma platéia inteira, era o bastante para o meu coração bater
descompassado e a boca secar. Nas poucas vezes que tentei, eu fica-
va obcecada com a idéia de poder ou não chegar ao final da frase
sem engolir e depois passava vários dias obcecada com o que pode-
ria e deveria ter dito.
40 GLORIA STEINEM

Era vergonha. Era perda de tempo. Eu me criticava por essa ina-


bilidade idiota de falar em público. Em uma das vezes que consegui
aparecer num programa de televisão para falar a respeito dos esfor-
ços de trabalhadores migratórios para se organizarem, o apresenta-
dor, Bill Cosby, tentou fazer com que eu parasse de ranger os dentes
dizendo que eu não tinha o direito de estar tão nervosa quando fala-
va em nome de um homem tão importante quanto Cesar Chavez. A
tentativa não ajudou em nada. Depois de sofrer os ataques da polí-
cia durante a Convenção Democrática de Chicago, em 1968, eu fi-
quei enfurecida o bastante para tentar outra vez, mas somente na
companhia de Jimmy Breslin, meu colega na revista New York. Nes-
ta ocasião, consegui pronunciar três frases, mas não me senti con-
fiante o bastante para resistir aos cílios postiços impostos pelos
maquiadores às convidadas do programa. Assim, a imagem contra-
disse a mensagem.
Partindo do princípio de que eu não conhecia ninguém no Ca-
nadá e que, portanto, lá o meu fracasso não seria tão humilhante
assim, fiz uma série de programas para a televisão canadense no fi-
nal dos anos sessenta. A série incluía longas entrevistas com James
Earl Jones, com o deputado Adam Clayton Powell, com o primeiro-
ministro Pierre Trudeau e com uma separatista de Québec. (Mais
uma vez eu não me senti segura o bastante para sugerir mais convi-
dadas mulheres.) Mas essa série me ofereceu a segurança de ter um
convidado extremamente profissional e teipes que poderiam ser editados
mais tarde. Eu ainda estava a léguas de distância de conseguir me
colocar diante de uma platéia com a responsabilidade absoluta de
preencher uma hora inteira de estática.
Cheguei a consultar uma professora de oratória. Ela me disse que
escritores e dançarinos haviam escolhido profissões nas quais não
precisavam se expressar com palavras e que portanto tinham mais
dificuldade que a maioria em aprender a falar em público. Eu fora
ambas as coisas. Muito antes de me tornar redatora eu fora uma bailarina
semiprofissional que sonhara sair de Toledo, no estado de Ohio,
sapateando. Decidi que desistiria de uma vez de dizer qualquer coi-
sa em público.
Eu teria permanecido em silêncio, como tantas outras mulheres
que desistem de inúmeros aspectos de nossas habilidades humarias,
se não tivesse tido a sorte de estarmos entrando numa era na qual
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 41

algumas mulheres começavam a desvendar o fato de nossa profunda


falta de confiança não ser fruto de inabilidades individuais. Havia
por trás disso um arraigado sistema de política sexual.
O fato de discutir este assunto tão detalhadamente não se dá
apenas por esta ter sido a maior barreira de minha vida, mas tam-
bém por ser um problema que afeta a maioria das pessoas que sem-
pre dependeram, excessivamente, da aprovação dos outros. (Muitas
camadas de causa e efeito políticos foram descascadas quando pesquisei
padrões de fala para o ensaio "Homens e Mulheres Conversando".)
Uma das coisas mais úteis que ouvi foi dita pela poeta Sandra Hochman:
"Não pare para pensar. Finja que você é Eleanor Roosevelt e que
precisa terminar este programa de televisão idiota antes de poder
fazer algo verdadeiramente importante". Talvez este seja o segredo de
oratória zen.
Desde então, os muitos anos me expondo diante de platéias me
ensinaram que: 1) não se morre disso; 2) não existe maneira certa ou
errada, apenas sua maneira de falar; 3) vale a pena. Estabelece-se
uma compreensão mútua entre seres que se encontram num mes-
mo aposento. Há também um sentimento de caráter e de intenção
revelado pela televisão que jamais haveria numa página impressa.
Hoje em dia, viajo como organizadora quase todas as semanas,
às vezes na companhia de outras mulheres, dependendo do assunto
ou da platéia em questão. Se tivéssemos que fazer outro road show
como aqueles anteriores (e talvez devêssemos fazê-lo), faríamos um
show de variedades com mais ou menos uma dúzia de mulheres só
para começar a simbolizar quem são as feministas americanas: de
americanas de origem mexicana às nativas do Alasca, de porto-
riquenhas às nativas das ilhas do Pacífico. Precisaríamos também
representar mulheres que fizeram outros tipos de escolhas, das do-
nas de casa que exigem respeito pelo seu trabalho às lésbicas que
exigem respeito pelo estilo de vida que escolheram. Precisaríamos
incluir também alguns homens. E há tantos outros que se auto-
denominariam feministas com orgulho e plena justificativa. Mas o
propósito ainda é o mesmo: dar oportunidade às pessoas de ouvirem
aquilo que sentem ser confirmado, de saberem que não estão sós e,
desta forma, descobrirem que não precisavam de gente de fora para
agitar as coisas. Em qualquer platéia há energia, habilidade, raiva e
numor o bastante para se fazer uma revolução.
42 GLORIA STEINEM

Como organizadora itinerante, minhas duas maiores recompen-


sas ainda são a sensação de ter feito alguma diferença e o nascimen-
to de novas idéias. O primeiro item se bastaria, pois é assim que nos
damos conta de que estamos vivos. O segundo item, no entanto, é
mágica pura. Numa noite especial, uma sala cheia pode disparar idéias
que nos levarão a novos lugares. É uma súbita explosão de compreensão
e invenção. Ouvimos nossas próprias vozes pronunciarem coisas que
sentimos mas que jamais expressáramos. Eu levaria uma vida intei-
ra para escrever todos estes sentimentos.

Não obstante, eu não estaria sendo honesta ao culpar o ativismo,


exclusivamente, pelo fato de, após quase vinte anos vivendo daquilo
que escrevo, este ser o primeiro livro que eu posso chamar de meu.*
E notório que escritores arranjem qualquer motivo para não tra-
balhar: fazem pesquisas excessivas, batem e rebatem o material,
comparecem a reuniões, enceram o chão, enfim, qualquer coisa. Or-
ganizar, captar recursos e trabalhar para a revista Ms., estas três ati-
vidades foram desculpas bem melhores do que as mencionadas aci-
ma, e eu as usei. Como disse Jimmy Breslin ao fazer uma campanha
simbólica para concorrer a um cargo político que não queria ocupar:
"E fácil fazer qualquer coisa que não seja escrever". Em retrospecto,
pensando num artigo que escrevi em 1965, embora estivesse escre-
vendo em tempo integral e adorasse minha profissão vejo que: "Não
gosto de escrever. Gosto de ter escrito".
Este pensamento vem de "What's In It for Me" (Que vantagem
isso me traz), um artigo para o qual a revista Harper's pediu a contri-
buição de diversos escritores. Na verdade, muitos dos motivos que
incluí naquele artigo permanecem:

• Há liberdade, ou pelo menos a ilusão de liberdade. Traba-


lhar em rompantes, em arrancos para cumprir um prazo pode
nos restringir tanto quanto ter de aparecer para trabalhar no
mesmo lugar todos os dias, mas acho que não... Escrever a
respeito de alguém de quem não gostamos ou de uma teoria

*Há dois semilivros: The Thousand Índias {As mil índias}, um guia que escrevi para o governo da
índia durante uma estadia como bolsista em 1957 e 1958 que jamais foi editado nos Estados Unidos;
e The Beach Book [O livro de praia] (Editora Viking, 1963) cuja antologia foi minha embora
contivesse, principalmente, artigos escritos por outras pessoas.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 43

com a qual não simpatizamos, ou uma instituição com a qual


não concordamos, muitas vezes acaba valendo a pena porque
o orgulho de ter escrito sobrepuja o preconceito. A palavra
impressa assume um poder, uma importância tal, que é im-
possível não sentirmos uma responsabilidade aguda por elas.

• Por outro lado, escrever faz com que eu não acredite em tudo
aquilo que leio.

• As mulheres cujas identidades dependem mais de seu exte-


rior do que de seu interior são perigosas quando começam a
envelhecer. Como eu tenho meu trabalho, é possível que eu
não me torne tão difícil assim quando a papada começar a
aparecer.

• Não preciso me especializar em coisa alguma. Se um ano trouxer


artigos a respeito da integração nos bairros da periferia, música
eletrônica, Saul Bellow, a moral nas faculdades, John Lennon,
três Kennedys, o programa espacial, a política de contratação
de canais de televisão, pintura, cultura popular, alistamento
para a guerra do Vietnã e James Baldwin, escrever não-fic-
ção pode ser o último bastião para um generalista.

• A meu ver, escrever é a única coisa que passa pelos três testes
de métier: 1) quando estou escrevendo não sinto que deveria
estar fazendo outra coisa no lugar; 2) escrever me dá uma
sensação de realização e, de vez em quando, de orgulho; 3)
me dá medo.*

Não obstante, fico surpresa com a quantidade de coisas que es-


crevi durante grande parte dos anos sessenta. Eu não relera nenhum
destes artigos até desencavá-los para incluí-los nesta coletânea. Re-
jeitei todos, menos dois que achei mais pessoais: "Eu Fui Coelhinha
da Playboy" e as partes iniciais de uma série de reportagens intitulada
Em Campanha". Se eu tivesse me dado conta, naquela época, de
que tentar escrever como outros jornalistas e ensaístas é precisamente

* What's In It for Me" (Que vantagem isso me traz), revista Harper's, 1965, p. 169.
44 GLORIA STEINEM

o que torna os resultados mais permutáveis e perecíveis, eu teria sentido


menos hesitação em escrever na primeira pessoa. Mas me haviam
dito que era preferível não escrever nada mais pessoal do que "esta
repórter" e eu estava tentando ser uma escritora profissional com
uma matéria por escrever. É uma tarefa digna, mas não dá espaço
para pensamentos originais. Ainda assim, alguns dos temas daque-
les artigos não incluídos ressurgem.
Eu tentava claramente aprender com outros escritores, ao escolhê-
los como objetos de perfis. James Baldwin estava bem no topo da
lista porque eu me identificava com seu senso de ultraje e vulnera-
bilidade (muito embora naqueles tempos pré-feministas, eu nem sei
por que, uma mulher branca de classe média devesse ter tais sentimen-
tos). As Aventuras de Augie March, de autoria de Saul Bellow, foi o
único romance a capturar a mobilidade de classes um tanto insana,
reinante nos Estados Unidos, que eu mesma sentira ao crescer no
meio-oeste americano cheia de livros e pretensões de entrar para o
mundo artístico embora vivesse num trailer ou numa casa repleta de
ratos e destituída de calefação. Foi por isso que passei tantos dias
memoráveis seguindo Bellow enquanto ele visitava os locais que fizeram
sua infância em Chicago. Entrevistei Truman Capote duas vezes porque
eu me sentira tão atraída pelos seus primeiros trabalhos de ficção,
que evocaram de maneira agridoce uma infância passada como especta-
dor, assim como por sua habilidade de escrever de forma séria e empática
a respeito das mulheres (incluindo o estupro de uma negra encurralada
por homens brancos numa vala de beira de estrada, uma cena da
qual jamais me esquecerei). John Lennon foi um tópico sobre o qual
escrevi há tanto tempo que estava mais atraída pela sua poesia liver-
pooliana repleta de trocadilhos do que pela sua música. Mas a única ]
forma que encontrei de fazer um artigo vendável foi escrever uma
história um tanto convencional sobre seguir os Beatles de perto, em
sua visita a Nova York. Entrevistar Dorothy Parker, uma das poucas
escritoras com as quais as revistas femininas se importavam o suficiente
para publicar um perfil, foi como encontrar uma amiga amarga, de
muitos anos. Minha mãe citara seus versos e eu sabia muitos de cor.
De fato, nos tornamos amigas. Continuei a visitá-la muito tempo
depois do artigo ter sido publicado, no apartamento no qual sua saúde
precária a aprisionara. Uma vez cheguei a levá-la a um balé. "Minha
querida, aquela história da Távola Redonda foi superestimada, sabe?",
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 45

ela disse, com seu hábito encantador de desbancar glórias do passa-


do. "Era só um bando de pessoas atrás de um almoço grátis dizendo
'Viu só que coisa engraçada eu disse ontem?' "
Grande parte das entrevistas a mim encomendadas refletiam o
interesse da mídia por celebridades: Mary Lindsay, esposa do recém-
eleito prefeito de Nova York, e o ator Michael Caine para a revista
do New York Times; Margot Fonteyn e Lee Radziwilll para a McCall's;
Paul Newman e uma nova estrela chamada Barbra Streisand para o
Ladies' Home Journal; e muitos outros. Eu passava pelos perigos típi-
cos de trabalhar para uma revista feminina. No caso da entrevista
com Paul Newman, minha tarefa era descobrir como "uma moci-
nha tão sem graça conseguiu fisgar o astro de cinema mais lindo do
mundo". Quando cheguei com a notícia de que Joanne Woodward
era pelo menos tão interessante quanto o marido — e se quiserem
realmente saber a verdade, a balança pendia mesmo era para o ou-
tro lado — meu editor disse que não escreveria uma coisa destas. As
leitoras da.Joumal se sentiriam ameaçadas por esposas interessantes.
O fato de conseguir que o artigo fosse apenas sobre Paul Newman,
para que o relacionamento entre o casal não fosse mal representado,
foi uma batalha difícil de ser ganha. Eu consegui incluir algumas
mulheres cujo trabalho eu admirava: Marisol como uma escultora
iconoclasta; Renata Adler como uma jovem escritora muito esperta,
crítica de cinema para o New York Times àquela época; Pauline Frederick
como uma excelente repórter de televisão mais velha que teria sido
um Walter Cronkite se fosse homem e tivessem permitido que ela
envelhecesse diante das câmeras; Barbara Walters como a primeira
mulher do Today Show que não era uma vencedora de concursos de
beleza e que na verdade fazia suas próprias reportagens. Mas não
foram tantas histórias assim. Eu na verdade não lutei o bastante. Sentia-
me grata pelos perfis de celebridades porque eles iam um passo além
das tarefas normais dadas a jornalistas mulheres e às quais eu, mui-
tas vezes, sucumbia.
Tais tarefas incluíam: a reportagem a respeito da venda de um
hotel que tinha como sua principal atração a cama onde dormiu Zsa
Zsa Gabor; uma ida a Londres para entrevistar um novo cabeleirei-
ro chamado Vidal Sassoon (que no final das contas era uma pessoa
séria embora a revista Glamour não estivesse interessada em como
era a vida num kibutz); uma história sobre o estilista Rudy Gernreich
46 GLORIA STEINEM

(que era um inovador na área de roupas confortáveis, mas uma lon-


ga discussão com a revista do New York Times conseguiu apenas a inclusão
de seus trajes de banho topless na reportagem). Há também um lon-
go artigo, que exigiu uma pesquisa interminável, a respeito de meias-
calças texturizadas, provavelmente o ponto mais baixo de minha carreira
de redatora. O último era uma peça para o New York Times, origem
de meus trabalhos mais frívolos e sedutores. Após recusar três ou
quatro matérias com tópicos tais como o perfil da Park Avenue (com
instruções expressas para parar quando a avenida chega ao Harlem
Espanhol, onde o número de leitores do Times diminui), eu pensei
"Bem, isso ê o New York Times", então me peguei escrevendo a res-
peito de algo para o qual eu não dava a mínima. O bom e velho
Times também tinha alta incidência de editores que pediam que você
os acompanhasse a um hotel à tarde ou para colocar suas cartas no
correio ao notarem que você estava de saída.
Para a revista Life, escrevi um artigo longo e semi-sociológico a
respeito da cultura popular, mas não sem antes ser mandada para
casa pelo primeiro editor com quem falei lá. ("Nós não queremos
uma carinha bonita," ele explicou. "Queremos um escritor.") Hou-
ve também diversos artigos protofeministas e filosóficos para a re-
vista Glamour, um pouquinho de sacarina, mas com um germe de
experiência pessoal ou sentimento verdadeiro. Até hoje encontro
mulheres aqui ou ali que me dizem que tiveram ou não tiveram um
caso, que saíram de casa ou fizeram o que quer que fosse porque um
daqueles artigos dizia que não tinha problema. Havia colunas cul-
turais para a revista Look; artigos sobre o mundo artístico ou sobre a
vida nas universidades para a Show e para a Esquire; projetos únicos
tais como o folheto para um show do conjunto Peter, Paul and Mary;
sem contar críticas literárias sobre o livro de quase todo o mundo.
Em outras palavras, eu vivia de escrever.
Mas a maioria desses trabalhos estava longe do que eu imagina-
ra quando fui morar na Índia após a faculdade. Lá, descobri que aquele,
e não o nosso, era o padrão de vida normal em quase todo o mundo.
Lá, mantive um diário e escrevia sobre o que era caminhar pelos conflitos
entre as castas do vilarejo com nada além de uma xícara, um sari e
um pente. Quando voltei para casa pela primeira vez, em 1958, tentei,
ingenuamente, vender alguns daqueles artigos, assim como um guia
que tentava convencer os ocidentais a conhecerem algo além do Taj
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 47

Mahal, mas eu ainda era desconhecida e os artigos muito precoces.


Nem mesmo os Beatles conheciam a Índia.
Na verdade, muito do meu trabalho anterior ao feminismo é
esquizofrênico, até mesmo se comparado à vida que eu estava le-
vando.
Eu era voluntária em campanhas políticas mas estava ao mesmo
tempo escrevendo quadrinhos e legendas satíricas para fotografias
de uma sucessora da revista Mad chamada Help!; entregando inú-
meras pizzas e cigarros para um grupo de porto-riquenhos radicais
chamado Os Jovens Lordes, que incluía algumas das predecessoras
do feminismo apesar do nome do grupo, ao ocuparem uma igreja
no Harlem Espanhol; escrevendo a respeito de comidas tradicionais
dos Natais de outrora para a revista Glamour; viajando debaixo de
um calor de mais de 40 graus na companhia de César Chavez e sua
Marcha dos Pobres, até a fronteira mexicana para organizar a cober-
tura do evento pela imprensa, enquanto escrevia sobre férias nos
trópicos; conseguindo o dinheiro para a fiança e coletando roupas
para trabalhadores migratórios que se organizavam em Long Island,
e simultaneamente entrevistando James Coburn a respeito de um
filme estilo James Bond.
Como uma das poucas "jornalistas-moças", eu também viajava
lado a lado com o beautiful people sobre o qual eu estava incumbida
de escrever e às vezes era fotografada como se fosse um de seus membros
de menor importância. Ao mesmo tempo, eu pagava US$ 62,50 por
mês por um apartamento conjugado que eu rachava com uma artis-
ta plástica enquanto meu American Express — no qual eu pendu-
rara todas as despesas da marcha até a fronteira mexicana que aque-
les trabalhadores rurais não teriam podido financiar — era cancela-
do pela administradora do cartão.
Grande parte da disparidade entre imagem e realidade era por
minha conta. Eu não me levava a sério o bastante para expressar aquilo
que eu pensava e com que me preocupava. Além do mais, errara
logo de cara ao aceitar fazer uma matéria para a revista Show para a
qual eu teria de trabalhar como Coelhinha no Playboy Club a fim de
escrever sobre como era a vida num daqueles clubes. É bem verdade
que devolvi o sinal que me foi dado para transformar a entrevista
em livro, evitando assim as pilhas de livros com o meu nome estam-
pado debaixo do título "Eu Fui Coelhinha da Playboy" e só Deus
48 GLORIA STEINEM

sabe que tipo de ilustrações. Logo comecei a ser identificada única e


exclusivamente devido ao tal artigo. Chegou a engolir meu primei-
ro artigo assinado, uma reportagem para a Esquive a respeito da re-
volução da pílula anticoncepcional, publicado um ano antes e que
atraíra muitos novos trabalhos. (Vejo que esse artigo de 21 anos de
idade termina da seguinte forma: "O único problema com mulheres
sexualmente liberadas é que não há um número suficiente de homens
sexualmente liberados". É interessante que eu tenha sido capaz de
tamanha lucidez sendo, ao mesmo tempo, tão cega para o resto.)
Perdi a oportunidade de escrever um artigo investigativo a respeito
da Agência de Inteligência dos Estados Unidos. Eu passara a duvi-
dar de que a Agência representasse o país de forma acurada após vê-
la em ação na Índia. Em vez disso, me foi sugerido que posasse de
garota de programa para denunciar a prostituição de alto nível.
A aurora do feminismo afinal me fez compreender que a repor-
tagem a respeito do falso glamour do Playboy Club e de sua explora-
dora política empregatícia fora útil. Posar de garota de programa
(algo que não fiz por ter achado a idéia insultante e assustadora) te-
ria sido uma tarefa digna de Nellie Bly. Mas naquela época eu ainda
não sabia me defender das piadinhas sexuais e da mudança de atitu-
de dos outros em relação a mim desde a publicação do artigo sobre
as Coelhinhas da Playboy. Meu coração ficava apertado cada vez que
me apresentavam como ex-coelhinha ou quando vi minha foto de
funcionária publicada na.Playboy sem maiores explicações. (Até mesmo
vinte anos depois, estas duas ocorrências se repetem. Esta última é
uma vingança contínua da revista.) Embora eu me identificasse
emocionalmente com outras mulheres, incluindo as Coelhinhas com
as quais trabalhei, eu fora criada para acreditar que a única chance
de ser levada a sério estava em provar que eu era diferente delas.
Foi só quando ajudei a fundar a revista New York em 1968, tor-
nando-me editora contribuinte e colunista política, que meu trabalho
de redatora e meus próprios interesses começaram a se fundir. Para
o primeiro volume da New York, escrevi um artigo curto intitulado
"Ho Chi Minh em Nova York" — uma provável experiência do miste-
rioso líder antícolonialista cuja afeição por seu país e respeitado status
como o "George Washington do sul da Ásia" eu conhecera durante
minha estadia na índia. Só consegui colocar essa e outras experiências
vividas nestes dois anos cruciais de minha vida uma década depois
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 49

de vivê-las. Também me ensinaram que uma mulher branca era menos


ameaçadora do que um homem branco e, assim, eu tinha maior facili-
dade em penetrar em diferentes culturas. Isso me ajudou quando,
após o assassinato de Martin Luther King — eu me encontrava frente
à televisão, muda —, recebi um chamado do editor da New York,
Clay Felker, exigindo que "eu me mandasse para o Harlem para conver-
sar com o povo". Eu sabia que, assim como na índia, eu estaria segura
contanto que me mantivesse na companhia de outras mulheres. Foi
também a primeira vez que me senti repórter. Quando o recém-eleito
presidente Nixon enviou Nelson Rockfeller num tour pela América
do Sul, a New York me incumbiu da missão de acompanhar a jorna-
da, no avião da imprensa. O resultado foi a narrativa de uma via-
gem extremamente impopular, "O Som de Uma Mão Aplaudindo".
Escrevi a respeito de John Lindsey como prefeito e Ed Koch como
deputado; a respeito dos veteranos feridos na Guerra do Vietnã que
foram enviados para um hospital do Queens diretamente dos cam-
pos de batalha para serem vítimas de um movimento pela paz, além
de vítimas da guerra. Escrevi a respeito da kwashiorkor, doença rela-
cionada à falta de proteínas no organismo que acreditávamos estar
restrita aos confins da África; a respeito das batalhas dos bairros pedindo
creches. Escrevi a respeito de protestos contra o Vietnã e as mobili-
zações pela paz e a respeito da atitude dos jornalistas a bordo de aviões
das campanhas presidenciais. Pela primeira vez, eu não escrevia a
respeito de uma coisa enquanto me preocupava com outra comple-
tamente diferente. Eu podia ir atrás de meus interesses pessoais.
Mesmo assim, foi só quando cobri uma audiência local sobre o
aborto para a New York que a política de minha própria vida come-
çou a explicar meus interesses.
Em protesto a uma audiência oficial, na qual quatorze homens e
uma freira foram convidados a depor sobre a liberalização das leis
antiaborto no estado de Nova York, um precoce grupo feminista pedia
que as mulheres dessem seu testemunho, que contassem suas expe-
riências pessoais com abortos ilegais. Sentei-me no porão de uma
igreja para ouvir mulheres contar, diante de uma platéia, o desespe-
ro de buscar auxílio; ouvi-as relatar os estupros por médicos antes
dos abortos, os avisos de que deveriam aceitar a esterilização como
preço pelo aborto e o risco que correram com procedimentos clan-
destinos, ilegais e arriscados. Era como os testemunhos que eu ouvi-
50 GLORIA STEINEM

ra durante as reuniões pelos direitos civis, no começo da década de


sessenta: relatos emotivos, fundamentados em verdades pessoais.
De repente, eu não estava mais aprendendo, intelectualmente,
o que estava errado. Eu sabia. Eu procurara e me submeteta a um
aborto assim que saí da faculdade. Não contei a ninguém. Se três de
cada quatro mulheres adultas passavam pela mesma experiência, por
que cada uma de nós era levada a se sentir só e criminosa? Como
poderíamos vir a ter algum poder se não tínhamos poder sobre os
próprios corpos?
Pesquisei muito a respeito de questões reprodutivas e outras
nascentes do feminismo e escrevi um artigo respeitável e objetivo
(não escrevi um eu em lugar algum) chamado "Depois do Movimento
Negro, o Movimento Feminista". Não continha nenhuma das emo-
ções que eu senti no porão da igreja e certamente não contava que
eu também fizera um aborto. (Embora o testemunho de outras
mulheres tivesse me deixado à vontade para contar a experiência pela
primeira vez na vida, eu ainda achava que redatores inspiravam mais
confiança quando escondiam suas experiências pessoais. Eu ainda tinha
muito o que aprender.) Mas previ que estas mulheres mais jovens e
mais radicais, saídas dos movimentos pacifistas e de direitos civis,
afetariam as reformistas de classe média da N O W — Organização
Nacional para Mulheres, juntando-se às mulheres pobres que já se
organizavam em torno de questões previdenciárias e da assistência
ao menor. O resultado seria um movimento de massa, importante e
duradouro.
Hoje em dia, esse artigo pareceria tão radical quanto o ar que
respiramos. Mas em 1970, um ano após sua publicação, ele recebeu
o Prêmio Penney-Missouri de Jornalismo por ser a primeira repor-
tagem a falar abertamente sobre a onda de feminismo. Meus cole-
gas e amigos homens, no entanto, receberam-no com imenso alar-
me. Muitos me levaram para um canto para perguntar, bondosa-
mente: Por que haveria eu de escrever a respeito destas coisas em
vez de escrever sobre algo sério, político e importante? O interes-
sante era que esses homens eram os mesmos que achavam que tra-
balhar como coelhinha para escrever um artigo longo, que recebeu
muita atenção da mídia, fora um excelente passo para minha carrei-
ra. Agora ficavam cheios de dedos em relação a um breve artigo es-
crito sobre um movimento político feminino.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 51

Pela primeira vez comecei a questionar a honra que me era con-


cedida como a única "moça repórter" no meio de tantos homens,
por mais talentosos e benevolentes que eles fossem. Toda a raiva que
eu suprimira, gerada por tantas experiências passadas, negadas ou
ignoradas, voltaram numa torrente: os apartamentos que não pude
alugar porque os senhorios supunham que uma mulher sozinha não
poderia pagá-lo (ou se pudesse devia ser prostituta); as matérias políticas
que davam para jornalistas homens, mais jovens e menos experien-
tes; o fato de suporem que as matérias que me davam eram devido
ao fato de eu ser "bonitinha" (até mesmo numa época em que, eu
subitamente me dei conta, todos os meus editores eram mulheres);
os salários mais baixos porque mulheres, na verdade, não precisam de
dinheiro; os comentários maldosos que acompanhavam qualquer
reconhecimento do meu trabalho ("mais fácil do que você imagina"
dizia uma legenda, sob uma fotografia minha publicada pela Newsweek
— legenda esta tirada de um comentário meu a respeito de ser re-
datora free-íancer, "é mais fácil do que você imagina"); os amigos bem
intencionados que me encorajavam a me casar com o homem com
quem eu estivesse saindo na época, contanto que tivesse talento ou
algum dinheiro; uma vida inteira tendo de sorrir ao ouvir piadas de
outros jornalistas a respeito de mulheres frígidas, louras burras e fi-
lhas de fazendeiros para poder ser aceita como "um dos rapazes".
E o pior de tudo: minha própria aceitação de todas as pequenas
humilhações e minha própria recusa em confiar na minha própria
compreensão emocional do que ocorria, ou até mesmo em minhas
próprias experiências. Por exemplo, eu acreditava que as mulheres
não se davam bem entre si, até mesmo quando algumas das pessoas
nas quais eu mais confiava eram mulheres. Eu concordava que as
mulheres eram mais "conservadoras", mesmo quando eu me identi-
ficava emocionalmente com todos os grupos discriminados. Eu aceitava
que as mulheres eram sexualmente "masoquistas", embora eu sou-
besse que a confiança e o carinho eram uma parte imprescindível de
minha atração sexual por um homem. É realmente inacreditável quanto
tempo passamos aceitando os mitos que opõem nossas próprias vi-
das, presumindo que somos nós as estranhas exceções. Uma vez que
a coisa foi se iluminando, eu não conseguia compreender como eu
não fora capaz de perceber tudo isso antes.
Comecei a ler todos os trabalhos feministas que me passavam
52 GLORIA STEINEM

pela frente e a conversar com todas as feministas ativas que vim a


conhecer. Para as poucas revistas que se interessavam naquela épo-
ca, escrevi artigos que refletiam esse movimento crescente: a possi-
bilidade de uma presidenta ocupar a Casa Branca para a revista Look,
mais artigos sobre a política sexual para a New York, um artigo intitulado
"Como Seriam as Coisas se as Mulheres Vencessem" que acompa- ]
nhava a sensacionalista chamada de capa a respeito de Kate Millett 1
— que escreveu A Política do Sexo, publicado em 1970, que estabe-
lecia o patriarcado como a base de todo o poder. (Mais tarde, desco-
bri que eu ganhava menos do que os jornalistas homens que escre-
viam um artigo parecido para a Time — o que foi mesmo que eu,
disse sobre mulheres vencerem?)
Mas a maioria das revistas dizia: "Eu sinto muito mas publica-
mos nosso artigo feminista no ano passado". Ou então: "Se publi-
carmos um artigo dizendo que as mulheres são iguais, teremos de
demonstrar nossa objetividade publicando um artigo logo a seguir
dizendo que não são iguais". Os editores que acreditavam que eu
possuía algum insight biológico em relação a alimentos, astros de cinema
e meias-calças texturizadas agora se perguntavam se eu, ou qual-
quer outra jornalista mulher, possuía a capacidade biológica de es-
crever, objetivamente, a respeito do feminismo.
Reações como essas me levaram a falar, em vez de escrever. Pa-
receu-me ser a única forma de relatar as realidades mais profundas
que eu vislumbrara na noite da audiência sobre aborto. Comecei a
aprender com outras mulheres, a decifrar a política que controlava
minha própria vida e a experimentar dizer a verdade em público.
Era o começo.
Mas não era o fim. O primeiro lampejo de consciência revela tanta
coisa que até parece o nascer do sol. Na verdade, parece mais uma
vela na escuridão.
Por exemplo, eu poderia ter juntado num livro aqueles perfis e
artigos muito antes que se tornassem obsoletos. Também poderia ter
tentado escrever um único trabalho que seria, em si, um livro. Por
que jamais fiz o primeiro? E por que, até mesmo agora, tanto tempo
depois, ao criar esta coletânea, continuo a negar-me o último?
Antes do feminismo eu dizia a mim mesma que meu trabalho
simplesmente não podia ser tão bom assim. Essa desculpa mascara-
va minha crença de que minha verdadeira identidade viria do ho-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 33

mem com quem eu me casasse, não do meu trabalho. Isso também


não deixava que eu admitisse ser insegura demais para me empe-
nhar num trabalho longo e solitário. Eu precisava do afago que vem,
freqüentemente, depois de cada artigo publicado.
Imediatamente após a aurora do feminismo, comecei a notar que
muitos de meus contemporâneos homens começavam a derrubar
florestas e encher livrarias com trabalhos em capa dura, embora não
escrevessem melhor do que eu. Muitos eram bem piores. Outros ti-
nham idéias imitadas que não pareciam justificar a morte de uma
árvore. Naquele primeiro lampejo de consciência, notei também que
a maioria tinha esposas, secretárias e namoradas que pesquisavam,
editavam e diziam coisas reverenciais tais como "Shhh, o Norman
está trabalhando". Enquanto isso, eu me sentia tão "não feminina"
em precisar admitir que eu também amava e era tão obcecada pelo
meu trabalho embora, ao contrário de meus colegas homens, jamais
pedisse ajuda a meus amantes para a pesquisa ou para o que quer
que fosse e raramente colocasse meu trabalho acima dos compro-
missos sociais dele. Eu jamais disse com firmeza "Quero trabalhar".
Ao contrário, eu ficava toda sem jeito, pedia desculpas e dizia "Eu
sinto muito. E que o prazo de entrega está muito próximo".
Só mais tarde é que fui compreender que a necessidade de emergên-
cias externas para justificar algo "não feminino" como o trabalho é
algo muito comum entre as mulheres, um fenômeno aqui explorado
no ensaio "A Importância do Trabalho". Na verdade, uma medida
da ingenuidade feminina é a incrível variedade de formas que encontra-
mos para invocar a autoridade masculina, as circunstâncias econômicas
ou outros motivos para justificar o que queremos fazer. Este subterfúgio
nos permite manter uma postura passiva, "feminina" enquanto nos
rebelamos secretamente. Como é o caso de grande parte dos logros,
e um gasto inútil de talento, invenção e tempo.
Só muito mais tarde é que fui compreender que minha resistên-
cia em levar a cabo um livro, ou qualquer atividade de longa dura-
ção — ou planejar qualquer meta futura—era mais um sintoma de
impotência. Mesmo depois que deixei de achar que minha vida seria
decidida pelo homem com quem me casasse (e como demorou esse
depois"), eu ainda tinha dificuldades em dizer "Eu quero estar em
tal posição daqui a cinco anos". Ou mesmo daqui a um ano. As res-
-----es de classe e raça fazem com que muitos homens sintam-se
54 GLORIA STEINEM

igualmente sem controle e sujeitos aos caprichos dos outros, mas


raramente no mesmo grau que as mulheres, treinadas para ser sujei-
tadas às necessidades de um marido real ou em potencial e dos fi-
lhos, ou do poder de classe e raça. Ao escrever "O Fator Tempo"
compreendi que o planejamento prévio é uma função de casta e de
classe em geral e que eu, como indivíduo, estou apenas começando
a compreender e a resistir a essa forma passiva de pensar.
A medida que as antigas suposições vão se esvaindo, cada cama-
da da nova observação contém uma verdade. A consciência crescen-
te se expande mas não nega a visão anterior. Por exemplo, ultima-
mente venho me perguntando o que há de tão sagrado num trabalho
escrito longo e contínuo. A vida não é sempre vivida em temas que to-
mam um volume inteiro. Formas mais curtas ou uma série de insights
em relação a um assunto podem ser igualmente úteis e dão à prosa
um pouco da economia e profundidade da poesia. A idéia da técnica
episódica talvez liberte alguns escritores homens que vêm lutando
para criar conexões lineares e de simplicidade pouco realista, para
não falar das inúmeras escritoras que trabalham à mesa da cozinha
com apenas algumas horas de concentração ao seu dispor antes das
crianças chegarem da escola. Afinal de contas, a espontaneidade, a
flexibilidade e o talento para viver o presente são o outro lado da
incapacidade de se controlar o tempo. Enquanto nós mulheres des-
cobrimos aquilo que precisamos aprender, não devemos jogar fora
ou subestimar a importância universal daquilo que já sabemos.
Por exemplo, quando me perguntam a respeito das recompen-
sas e dos castigos de uma vida, até aqui, tão diversificada, eu sinto
necessidade de desencavar temas contínuos e conclusões bem amar-
radas. Na verdade, penso em cenas intensas e recordações plausíveis
e as categorias de recompensa e castigo não são sempre claras. Al-
guns dos piores castigos acabaram por ser tio educativos que afinal
tornaram-se recompensas, enquanto algumas das supostas recom-
pensas foram, além de castigos, difíceis de ser combatidas por pare-
cerem recompensas. (Como, por exemplo, a solidariedade recebida
por causa dos problemas gerados pela fama é tão limitada quanto a
solidariedade prestada aos ricos.) Levando em conta a intenção de
castigar pelo que ela é, aqui estão algumas das piores cenas.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 55

• Acordar com o programa Today na TV e ver um comercial


para um romance apelativo que mostrava uma mulher se-
minua com cabelos e óculos iguais aos meus, debruçada lan-
guidamente sobre uma mesa na qual se encontrava um colar
com o símbolo do feminismo. Em off, a voz do locutor: "O
Símbolo. Ela usava os homens... mas preferia as mulheres."
Na verdade, esse exemplo de que "toda mulher rebelde é lés-
bica" acabou sendo uma lição muito útil. As mulheres que
ainda não haviam encarado o lesbianismo como uma ques-
tão do feminismo me escreveram para dizer que agora com-
preendiam que todas as mulheres podiam ser detidas ou
divididas por essa acusação até conseguirmos não nos sentir
insultadas, transformando o lesbianismo numa escolha hon-
rada.

• Abrir uma carta-circular de Natal enviada por um primo e a


esposa, que infelizmente possuía o mesmo sobrenome que
eu e, entre notícias variadas a respeito de pescarias e outras
atividades de aposentados, descobrir um anúncio de que ha-
viam, formalmente, me deserdado. Como feminista eu era
"desleal" a Deus, ao Homem e à Pátria. O tal anúncio ma-
goou minha mãe mas depois que eu descobri que eles ainda
eram segregacionistas e que haviam se desentendido com minha
avó por defender o direito da mulher ao voto, muitos anos
antes de meu nascimento, passei a considerar o episódio não
só uma honra mas também uma tradição familiar.

• Assistir Al Capp me denunciar na televisão como "a Shirley


Temple da Nova Esquerda" e alguém comparável a Richard
Speck, o sádico assassino de oito enfermeiras. Sim, claro. Al
Capp foi além e comparou "as líderes da liberação feminina"
com "assassinos em massa". Creio que a teoria seja que o fe-
minismo elimine mulheres. Mais tarde, descobri que sua carreira
como pessoa pública fora maculada com alegações e um pro-
cesso por assédio sexual a jovens em campus universitários onde
ele freqüentemente dava palestras. Mesmo assim, suas pala-
vras me magoaram.
GLORIA STEINEM

• Assistir Richard Speck explicar na televisão que nem todas


as mulheres que ele assassinara eram "como Gloria Steinem".
Embora estivesse sendo entrevistado na prisão, seu ódio pe-
las mulheres e seus atos genocidas não são exclusivos dele e
suas palavras me amedrontaram.

• Ouvir o ascensorista contar que um ocupante de uma sala


no mesmo prédio em que eu tinha escritório dissera: "Soube
que Gertrude Stein trabalha neste prédio. Como é que eu
nunca a encontro no elevador?" No começo achei a história
apenas engraçada. Mais tarde percebi que a imagem de uma
mulher rebelde continha todas as outras. E verdade. Todas
nós nos parecemos.

• Durante um discurso no Texas dei com dúzias de pessoas do


lado de fora do anfiteatro com cartazes: GLORIA STEINEM
É UMA HUMANISTA. Eu pensei: Puxa, legal, devem ser amigos.
Ao me aproximar, vi o ódio em seus rostos e me dei conta de
que eram direitistas fazendo piquete e para eles humanista —
ou qualquer palavra que signifique crer no ser humano em
vez de num deus autoritário — é a pior coisa que alguém
pode ser.

• Ser constantemente exposta pela direita (porque o feminis-


mo é "um complô da esquerda para destruir a família") e
ocasionalmente pela esquerda (porque o feminismo é "um
complô da direita para destruir a esquerda"). Foi daí que deduzi:
As Feministas Serão Culpadas Por Tudo.

• Ser acusada de ser agente do comunismo (porque fui a dois


Festivais da Juventude promovidos pelos soviéticos há déca-
das) e agente do governo (porque os americanos que compa-
receram aos tais festivais foram em parte subsidiados por
fundações que, erradamente, aceitaram fundos do governo
dos EUA). Ou ser acusada de ambas as coisas por apoiar os
direitos das lésbicas (que já foram chamadas tanto de "complô
comunista antifamília" quanto de "complô do FBI para de-
sacreditar o Movimento Feminista"). Acho tais acusações
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 57

descabidamente dolorosas. Todas sugerem que minha men-


te e meus atos não me pertencem.

• Ser acusada de "usar homens" para ter meus artigos publica-


dos, para conseguir algum avanço e até mesmo para ter êxi-
to como feminista — qualquer coisa. Como esta é uma acu-
sação constantemente feita a mulheres bem-sucedidas em
qualquer que for a área, talvez seja a raiz de todas as acusa-
ções. Enquanto forem raras as mulheres que se dão bem nes-
te mundo, até mesmo outras mulheres podem deduzir erra-
damente que elas seguiram ordens de homens para chega-
rem onde estão. A única pergunta a fazer seria: Que homens?

• Ver um número da revista Screw espalhada pelas bancas de


Nova York estampando o desenho de uma mulher nua com
os meus óculos e os meus cabelos, os lábios vaginais realça-
dos, uma coleção de pênis cuidadosamente desenhados em
torno da página e as instruções no cabeçalho: COLE O PÊ-
NIS NA FEMINISTA (uma alusão ao jogo infantil de colar
o rabo no burrico). Sentindo-me desamparada e humilhada,
mandei que um advogado enviasse uma carta ao editor da
Screw, Al Goldstein. Recebi uma caixa de bombons com um
bilhete: "Eat It" ("Coma", mas ao mesmo tempo "Vai se fer-
rar"). Só mesmo o humor de Bella Abzug me salvou da de-
pressão. Quando expliquei a ela a respeito do nu com deta-
lhes precisos da genitália com meu rosto e minha cabeça ela
disse, simplesmente, "e meus lábios".

Há também as ocasionais ameaças de bombas inventadas para


esvaziar recintos (normalmente avisadas por telefone por um auto-
denominado "Pró-Vida" que parece não enxergar a ironia de estar
ameaçando vidas), os artigos dolorosos que eu finalmente aprendi a
não ler por não haver nada que pudesse fazer a respeito, a frustração
de não poder ter direitos legais sobre minha própria vida e a raiva de
ter de assistir às questões relacionadas à sobrevivência de uma mulher
ridicularizadas ou mal interpretadas. Mas existe a enorme recompen-
sa de trabalhar em tempo integral com algo que me interessa de tal
forma que eu trabalharia até de graça. Há também o problema de se
58 GLORIA STEINEM

ganhar bem menos do que se ganharia trabalhando fora de um movi-


mento social. A recompensa financeira até não seria tão ruim se os
termos "rico e famoso" não fossem usados como frase única com tanta
freqüência que se tornou difícil separar "rico" de "famoso". Ser ressen-
tida por um dinheiro que não se tem não dá uma boa combinação.
Mesmo assim, todos os castigos tornam-se, de alguma forma,
mais fáceis de descrever do que as recompensas, embora estas signi-
fiquem muito mais. Talvez as mulheres estejam tão acostumadas à
melancolia — e mesmo a usar humor como um paliativo para a rai-
v a — que as vitórias e as celebrações parecem um território novinho
em folha. Na verdade, há muitas cenas e muitas recordações senso-
riais de recompensas tangíveis e emocionais.

• Ouvir cinco mulheres dizerem que amam seus empregos e


que não os poderiam ter se não fosse o feminismo: uma
comissária grávida, uma bombeira, a mais alta autoridade
feminina do estado de Nova York, uma carpinteira sindicali-
zada, a primeira astronauta — e ouvi-las todas num só dia.

• Ser parada na rua por um motorista de caminhão que me


disse que a mulher que amava e com a qual vivia há três anos
não queria se casar com ele e ter filhos porque ele não queria
que ela continuasse a trabalhar. Então ele assistiu a uma en-
trevista na qual eu perguntava aos homens como se senti-
riam se fossem exatamente as mesmas pessoas que eram hoje,
só que mulheres. Ele tentou fazer o exercício durante algum
tempo e mudou tanto que ele e a mulher em questão esta-
vam agora casados e felizes. Ele me agradecia, mas o milagre
da empatia foi todo dele.

• Ver todos os dias, a caminho do trabalho, uma mulher negra


de meia-idade que é guarda de trânsito. Ela é a Toscanini da
encruzilhada mais movimentada de Manhattan. Ela sorri para
mim e diz "Ferro neles" e me deixa com uma sensação absur-
da de orgulho feminino e bem-estar.

• Descobrir que meu excelente dentista se aposentou e deixou o


consultório para uma jovem calma e igualmente excelente.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 59

• Sair num tour pelo estado de Minnesota, indo do Iron Range


até os vilarejos rurais, e encontrar porões de igrejas e qua-
dras de esportes nas escolas cheios de homens e mulheres que
se autodenominam, com extrema simplicidade, feministas.

• Dar palestras em universidades que outros alunos denomi-


nam "conservadoras" ou "apáticas" e encontrar o pessoal do
departamento de Estudos Feministas e os funcionários ad-
ministrativos se organizando para protestar contra cinemas
que exibem filmes pornográficos, para criar uma linha direta
sobre estupro, os primórdios de uma creche que sirva a alu-
nos e professores, enfim, tudo aquilo que não existia há dez
ou até mesmo há cinco anos atrás.

• Conhecer um padre católico no meio-oeste americano que


reza para "Deus, nossa Mãe" como um tipo de reparação pelos
cinco mil anos de patriarcado e que me convidou ao púlpito
para pregar a homília; ler a declaração pública de um grupo
de freiras que se opunha à posição antiaborto do bispo; ouvir
uma rabina e uma cantora de coro conduzir um belíssimo e
inclusivo memorial pela morte da mãe de um amigo em Nova
York; conhecer uma sacerdotisa da igreja episcopal de Wa-
shington que rompeu barreiras para si mesma e para outras
movendo uma ação eclesiástica; e encontrar escolas de teolo-
gia e aulas de Bíblia que honram, como mártires, os milhões
de mulheres queimadas como bruxas por haverem resistido
a um deus cruel e patriarcal.

• Tomar aviões nos quais as comissárias me contam das últi-


mas ações por elas movidas e me colocam na primeira classe
embora eu tenha comprado um bilhete na classe econômica.
Elas comparecem às minhas palestras em suas noites de fol-
ga, em cidades que não conhecem, se oferecem como volun-
tárias para lobbies e me mandam para casa com pedacinhos
de papel com lembretes para que eu não me esqueça de que
precisam de notícias disso ou daquilo ou do endereço do grupo
feminista mais próximo.
60 GLORIA STEINEM

• Ouvir repetidas vezes "O feminismo salvou minha vida" ou


"Pela minha mãe, muito obrigada" ou "Passei a compreen-
der minha esposa melhor" ou "Minha filha será o que eu não
pude ser" — ser agraciada com a gratidão pessoal e os triun-
fes de estranhos cujas vidas se tornaram mais amplas pelo
feminismo.

• Sentada num ethnic hall em Detroit na comemoração dos dez


anos da revista Ms., sentir um tapinha no ombro dado por
uma mulher miúda de meia-idade e cabelos grisalhos, mãos
nodosas de quem trabalhou duro e um vestido de algodão
bem engomado que era claramente seu melhor vestido. "Eu
só queria que você soubesse", ela disse baixinho, "que você é
o que eu tenho dentro de mim." E num único momento to-
das as recompensas se revelam. Lembrando seu toque e suas
palavras, ainda sinto as lágrimas em meus olhos.

Tive um sonho repetidas vezes. Eu lutava com uma só pessoa ou


com várias, lutando, chutando e batendo com o máximo de força
possível porque tentavam me matar ou machucar alguém que eu
amava. Eu lutava com toda a força, com toda a fúria que me era
possível, com cada vez mais força. No entanto, por mais que eu lu-
tasse, elas simplesmente sorriam.
Nos anos setenta contei este sonho a outras mulheres e descobri
que elas tinham sensações semelhantes. Meu sonho era a represen-
tação clássica da raiva, da humilhação e da impotência.
Em algum ponto, nos anos que se seguiram, parei de ter este
sonho. Pensando na mulher de Detroit me dou conta hoje de que
associo seu desaparecimento com as palavras por ela proferidas. Elas
cristalizaram em um momento o que as mulheres podem e estão fazendo
umas pelas outras: estamos oferecendo umas às outras um poder novo
e pleno de compaixão.
Na verdade, mulheres e homens começaram a se resgatar das
prisões de papéis sociais que, de muitas formas, pequenas ou não,
lhes foram impostas. Espero que, nas páginas deste livro, você te-
nha um momento ou um fato ou uma idéia que lhe resgate.

_1983
Eu Fui Coelhinha da Playboy

Aceitei uma matéria munida de um enorme diário e o seguinte anúncio:

GAROTAS:
Será que as Coelhinhas da Playboy Realmente Têm Empregos
Glamourosos,
Conhecem Gente Famosa e Ganham Bem?

Sim, é verdade! Jovens atraentes podem ganhar entre US$ 200 e


US$ 300 por semana no fabuloso Playboy Club de Nova York,
deleitar-se com a glamourosa e excitante aura do show business e
ter a oportunidade de viajar para os outros Playboy Clubs espa-
lhados pelo mundo afora. Quer estejam servindo drinques, tiran-
do fotos ou recebendo nossos convidados à porta, o Playboy Club
é o palco e as Coelhinhas as estrelas.

O charme e a beleza de nossas Coelhinhas foram louvados na Time,


na Newsweek, na Pageant, e o apresentador Ed Sullivan denomi-
nou o Playboy Club "a maior e mais nova atração do show business".
O Playboy Club é hoje o local mais badalado de Nova York.

Se você é bonita e simpática, tem entre 21 e 24 anos, solteira ou


casada, este anúncio é para você. Não é necessário experiência
anterior.

Inscreva-se pessoalmente em ENTREVISTAS ESPECIAIS, sábado


e domingo, 26 e 27 de janeiro, das 10 às 15 horas. Favor trazer
maiô ou malha de ginástica.

THE PLAYBOY CLUB


East 59th Street n° 5
62 GLORIA STEINEM

QUINTA-FEIRA, 24 DE JANEIRO DE 1963

Decidi que me chamarei Marie Catherine Ochs. Trata-se, que meus


antepassados me perdoem, de um sobrenome de família. É do meu
ramo da família e conheço bem suas origens européias. Além do mais
soa quadrado demais para ser falso.

SEXTA-FEIRA, 25

Passei a tarde inteira inventando uma história pessoal para Marie.


Compartilhamos o mesmo apartamento, o mesmo telefone e as mesmas
medidas. Embora ela seja quatro anos mais nova do que eu (eu já
passei do limite de idade para ser Coelhinha), Marie e eu comemo-
ramos nossos aniversários no mesmo dia e estudamos na mesma es-
cola e na mesma faculdade. Mas ela não se deixou escravizar pelos
estudos — não, não Marie. Depois de um ano ela me largou, me
empurrando pelo caminho que me levaria a um bacharelado, e em|
barcou num vôo charter para a Europa. Ela não tinha um centavo,
mas curtos períodos trabalhando como garçonete em Londres, como
dançarina em Paris e secretária em Genebra foram o bastante para
bancar seus verões de rata de praia e suas outras escapulidas. Ela voltou
para Nova York no ano passado e trabalhou temporariamente como
secretária. Três amigos em comum concordaram em dar fortes reco-
mendações pessoais. Todos que a conhecem a adoram.
Amanhã é o grande dia. Marie sairá deste caderno pela primeira
vez e entrará no mundo real. Estou de saída para comprar uma malha
para ela.

SÁBADO, 26

Hoje vesti as roupas mais teatrais que pude encontrar, enfiei a ma-
lha numa bolsinha e caminhei até o Playboy Club. E impossível não
vê-lo. O discreto prédio de escritórios e a galeria de arte que ocupa-
vam o local foram transformados num reluzente retângulo de vidro.
O interior acarpetado de laranja é claramente visível, de fora, com
uma moderníssima escadaria flutuante espiralando clube acima pelo
centro. O efeito geral é alegre e surpreendente.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 63

Atravessei em direção ao clube onde um homem de meia-idade,


vestindo uniforme de guarda particular, sorriu e chamou:
Pst, pst, pst, pst, Coelhinha... —Ele ergueu o dedão e apontou
para a porta de vidro à esquerda. — As entrevistas são lá embaixo,
no Playmate Bar.
O interior do clube estava iluminado com tal dramaticidade que
levei alguns segundos para me dar conta de que estava fechado e
vazio. Desci uma pequena escadaria e fui cumprimentada por uma
tal Srta. Shay, uma mulher magra, de seus trinta anos, que encon-
trava-se atrás de uma escrivaninha no bar escuro.
— Coelhinha? —perguntou, asperamente. — Sente-se ali, pre-
encha este formulário e tire o casaco. — Pude ver que duas das mesas
já estavam ocupadas por outras garotas curvadas sobre o lápis. Olhei
para elas com curiosidade. Eu chegara bem no meio do horário de
entrevistas, esperando ver o maior número possível de candidatas,
mas havia apenas três. — Tire o casaco — a Srta. Shay repetiu. Ela
me examinou atentamente enquanto eu o fazia. Uma das garotas se
levantou e caminhou até a escrivaninha, os saltos altos de acrílico
estalando contra seus calcanhares, emitindo segurança e charme.
— Me diga uma coisa — ela disse. — Você vai querer as medi-
das com ou sem sutiã?
— Com — respondeu a Srta. Shay.
— Mas eu sou maior sem — a garota contrapôs.
— Está certo — disse a Srta. Shay, um tanto enfadada. — Sem.
Outras duas garotas desceram as escadas. Tinham uma aparên-
cia de frescor, não usavam maquiagem.
— Coelhinhas? — indagou a Srta. Shay.
— Não exatamente — disse uma, mas a outra pegou uma fi-
cha. Os cabelos longos e os mocassins denunciavam o status de uni-
versitárias.
O formulário de solicitação de emprego era curto: endereço,
telefone, medidas, idade e os três últimos empregos. Terminei de
preenchê-lo e resolvi ganhar tempo lendo um prospecto intitulado
SEJA COELHINHA DO PLAYBOY CLUB! O folheto continha,
er
n sua maioria, fotos: uma foto em grupo mostrava Coelhinhas "es-
colhidas de todos os cantos dos Estados Unidos" rodeando "o presi-
dente do Playboy Club e editor da revista Playboy, Hugh M. Hefner";
m
close de uma Coelhinha servindo um drinque a Tony Curtis "um
64 GLORIA STEINEM

devoto do Playboy Club que em breve estrelará um filme de Hugh


M. Hefner intitulado, apropriadamente, Playboy"; duas Coelhinhas
sorridentes ao lado de Hugh M. Hefner no "Playboy Show, exibido
em cadeia nacional"; Coelhinhas distribuindo exemplares da revista
Playboy num hospital para veteranos de guerra "em um dos inúme-
ros projetos comunitários dignos dos quais participam as Coelhinhas";
uma Coelhinha loura, de pé, diante de uma senhora de aparência
maternal, a "Mamãe Coelha", oferecendo "conselhos pessoais"; e na
última página uma garota de biquíni, agachada no convés de um
iate com a bandeira com o coelhinho da Playboy. O texto: "Quando
você se tornar uma Coelhinha, seu mundo será alegre, divertido e
sempre excitante". Citava um salário médio de duzentos dólares por
semana.
Mais uma garota desceu as escadas. Ela usava óculos de arma-
ção azul e um casaco muito menor do que ela. Eu a observei enquanto
perguntava, nervosa, à Srta. Shay se o clube aceitava garotas de de-
zoito anos.
— E claro que sim — respondeu a Srta. Shay. — Só não po-
dem trabalhar no turno da meia-noite.
Entregou uma ficha para a garota, olhou as pernas gorduchas e
não pediu que tirasse o casaco. Mais duas garotas entraram no bar,
uma vestindo legging rosa e a outra legging roxo.
— Nossa, esse lugar é um estouro — disse Rosa.
— Se achou isso aqui um estouro, devia ver a casa de Hugh Hefner
em Chicago — disse Roxa. A Srta. Shay olhou para elas com apro-
vação.
— Não tenho telefone — disse Armação Azul com tristeza. —
Posso dar o telefone do meu tio? Ele também mora no Brooklyn.
— Pode, então — disse a Srta. Shay. Ela pediu para que me
aproximasse, indicou um local a uns três metros de sua escrivaninha
e pediu para que ficasse ereta. Fiquei.
— Eu quero tanto ser coelhinha — disse Armação Azul. — Li
a respeito disso numa revista, lá na escola.
A Srta. Shay me perguntou se eu realmente tinha 24 anos.
— Está muito velha — ela avisou. Disse a ela ter achado que
passaria por um triz. Ela concordou com a cabeça.
— Meu tio passa o dia inteiro fora — disse a garota —, mas eu
irei para a casa dele e passarei o dia inteiro ao lado do telefone.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 65

Faça isso então, querida — disse a Srta. Shay e virou-se para


mim: - Tomei a liberdade de marcar uma hora para você na quar-
ta- feira às seis e meia. Entre pela entrada de serviço e vá até o sexto
andar. Procure a Srta. Burgess, a Mamãe Coelha. — Concordei e ela
acrescentou: — Você tem certeza de que não se inscreveu antes? Uma
outra Marie Ochs veio aqui ontem.
Fiquei perplexa. Como poderia Marie ter escapado das páginas
de meu caderno? Eu tive uma fantasia de trinta segundos baseada
em Pigmalião. Ou será que havia uma outra Marie Ochs? Possível
era, mas não provável. Decidi partir para a valentia.
— Que esquisito — murmurei. — Deve haver algum engano.
A Srta. Shay deu de ombros e sugeriu que eu trouxesse um maiô
ou uma malha na quarta.
— Posso ligar para cá? — perguntou Armação Azul.
— Não faça isso, querida — disse a Srta. Shay. — Deixe que
nós ligamos para você.
Deixei o clube preocupada com a expectativa de vida de Marie
Ochs. Será que eles descobririam tudo? Será que eles já sabiam? Quando
cheguei à metade do quarteirão, encontrei as duas universitárias. Esta-
vam encostadas num prédio abraçando o próprio corpo, às garga-
lhadas. E de repente eu me senti bem melhor a respeito de tudo aquilo.
Tudo, talvez, menos imaginar Armação Azul, em estado de alerta,
sentada ao lado do telefone do tio.

QUARTA-FEIRA, DIA 30

Cheguei ao clube, pontualmente, às seis e meia e os negócios pare-


ciam estar a todo vapor. Os clientes faziam fila, na neve, para entrar
e vários transeuntes encontravam-se do lado de fora, com o rosto
colado na vidraça. O ascensorista, um porto-riquenho bonito com
jeitão de Rodolfo Valentino, me enfiou no elevador com dois carre-
gadores negros uniformizados, cinco clientes de meia-idade, duas
Coelhinhas a caráter e uma matrona robusta vestindo vison. Para-
mos no sexto andar.
— E aqui que eu fico? — perguntou a matrona.
— E claro, amorzinho — disse o ascensorista. — Se quiser vi-
rar Coelhinha.
66 GLORIA STEINEM

Risos.
Olhei ao meu redor. Iluminação suave e tapetes macios haviam
sido substituídos por blocos de cimento sem pintura e lâmpadas
penduradas dos bocais. Havia uma porta marcada OELHINHAS;
dava para ver o contorno onde antes houvera um "C". Um aviso,
escrito à mão num pedaço de cartolina rasgada, dizia: BATAM!! Por
favor, meninas. Dá para cooperar?!! Passei pela porta e entrei num cor-
redor iluminado e cheio.
Duas garotas passaram por mim. Uma vestia apenas a calcinha
de um biquíni e a outra vestia meias arrastão de trama delicada e
saltos altos lilás. Ambas entraram correndo na sala de figurinos à
minha direita, berraram seus nomes, pegaram seus uniformes e vol-
taram correndo. Perguntei à responsável pela Srta. Burgess.
— Querida, acabamos de lhe entregar um presente de despe-
dida.
Outras quatro garotas saltitaram sala adentro pedindo suas fan-
tasias, golas, punhos e rabinhos. Vestiam meias-calças e salto alto e
nada da cintura para cima. Uma delas parou para examinar o qua-
dro no qual havia uma lista de "Coelhinha da Semana".
Dirigi-me à outra extremidade do corredor. Dava para um ca-
marim enorme cheio de armários de metal e diversas fileiras de mesas.
Havia bilhetes colados aos espelhos ("Alguém quer trabalhar no Nível
B no sábado?" e "Vou dar um festão na quarta em Washington Square,
todas as Coelhinhas serão bem-vindas"). Havia cosméticos espalha-
dos pelas bancadas e três garotas sentavam-se lado a lado colocando
cílios postiços com uma concentração de iogue. Parecia uma carica-
tura do camarim de artistas de teatro de revista.
Uma garota de cabelos muito ruivos, pele muito branca e uma
fantasia de Coelhinha de cetim preto deu as costas para mim e aguardou.
Entendi que queria que eu puxasse seu zíper, uma tarefa que levou
vários minutos de puxa e estica. Era uma garota grandalhona, de
aparência um tanto rude, mas a voz que me agradeceu era pequeni-
ninha como a de uma criança. Judy Holliday não poderia ter feito
melhor. Perguntei a ela a respeito da Srta. Burgess.
— Sei. Ela está no escritório — disse Vozinha de Bebê indican-
do uma porta de madeira com uma portinhola de vidro. — Só que
a nova Mamãe Coelha é Sheralee.
Através do vidro pude ver duas garotas, uma loura e uma more-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 67

na. Ambas pareciam ter vinte e poucos anos e não eram nada pare-
cidas com a matrona do prospecto. Vozinha de Bebê puxou e esti-
cou mais um pouco.
Este uniforme não é o meu — explicou. — É por isso que
está difícil de colocá-lo. — Ela se afastou estalando os dedos e can-
tarolando baixinho.
A morena saiu do escritório e se apresentou como a Mamãe Coelha,
Sheralee. Eu disse que a confundira com uma Coelhinha.
— Cheguei a trabalhar para o clube quando inaugurou no mês
passado — disse. — Mas agora vou substituir a Srta. Burgess. —
Ela indicou a loura que experimentava um conjunto bege de três
peças, provavelmente seu presente de despedida. — Terá de aguar-
dar um instante, querida.
Eu me sentei.
Às sete eu já tinha assistido a três meninas eriçarem os cabelos
até parecerem algodão doce e outras quatro encherem o sutiã com
lenços de papel. Até às 19:15, eu já havia conversado com outras
duas candidatas a Coelhinha, uma bailarina e uma modelo de meio-
expediente do Texas. Às 19:30 testemunhei a maior crise da vida de
uma Coelhinha que enviara a fantasia para a lavanderia com a aliança
de noivado presa com um alfinete pelo lado de dentro. Às 19:40 a
Srta. Shay subiu para avisar que "Não há mais ninguém além de Marie".
Às oito eu estava certa de que ela esperava pelo gerente do clube
para que ele dissesse que haviam descoberto minha verdadeira identida-
de. Às 20:15 finalmente fui chamada e estava nervosa além da conta.
Esperei enquanto Sheralee olhava minha ficha.
— Você não tem cara de 24 anos.
Bem, acabou por aqui, pensei.
— Parece bem mais jovem.
Sorri, incrédula. Ela tirou diversas polaróides de mim.
— É para os arquivos — explicou. Ofereci a história que eu criara
é datilografara com tanto esmero mas ela a devolveu sem nem olhar.
— Não gostamos que nossas garotas tenham histórias — ela
disse com firmeza. — Só queremos que você se adeque à imagem da
Coelhinha. — Ela me mandou para a sala de figurinos.
Perguntei se devia vestir a malha.
-—• Não perca tempo com isso — disse Sheralee. — Queremos
ver a imagem da Coelhinha.
68 GLORIA STEINEM

A chefe de guarda-roupa mandou que eu me despisse e come-


çou a procurar um uniforme do meu tamanho. Uma garota entrou
às pressas com uma fantasia nas mãos, berrando por ela como um
soldado ferido talvez pedisse auxílio médico.
— Estourei o zíper — ela chorava. — Espirrei!
— E a terceira vez esta semana — disse a chefe de guarda-rou-
pas. — Parece até epidemia.
A garota se desculpou, encontrou outra fantasia e saiu.
Perguntei se um espirro realmente podia romper uma fantasia.
— E claro que sim — ela assegurou. — Garotas resfriadas nor-
malmente precisam ser substituídas.
Ela me deu um uniforme de cetim azul. Estava tão apertado que
o zíper prendeu na minha pele quando ela foi fechá-lo. Ela me man-
dou segurar a respiração enquanto tentava outra vez. Após conse-
guir deu um passo atrás para me examinar com olhos críticos. A fantasia
era tão cavada que expunha meu quadril, assim como dez centíme-
tros de bumbum branco. As barbatanas da cintura teriam feito Scarlett
0'Hara desmaiar e a estrutura como um todo fora desenhada para
puxar todas as carnes do corpo na direção dos seios. Eu estava certa
de que seria perigosíssimo me abaixar.
— Nada mal — declarou a chefe de guarda-roupa e pôs-se a
enfiar um imenso saco plástico na parte de cima da fantasia. Colo-
cou uma faixa com orelhinhas de coelha em torno de minha cabeça
e um semicírculo de material macio preso com um gancho no local
mais arrebitado da parte traseira da fantasia. — Muito bem, queri-
da. Agora coloque os saltos e vá mostrar a Sheralee.
Olhei no espelho e a imagem da Coelhinha olhou para mim.
— Yocê está uma graça — disse Sheralee. — Encoste naquela
parede e sorria bem bonito para ver o passarinho.—Ela tirou várias
outras fotos com a polaróide.
A ruiva com voz de bebê entrou para avisar que ainda não en-
contrara uma fantasia que coubesse. Uma minúscula lourinha ves-
tindo cetim lilás tirou o rabinho e se empoleirou na mesa.
— Olha — começou — , não ligo para os deméritos, já recebi
cinco. Mas eu não ganho pontos por trabalhar horas extras?
Sheralee pareceu desconcertada e dirigiu-se a Voz de Bebê:
— As garotas novas acham que as garotas de Chicago recebem
tratamento especial e as mais antigas não treinam as novas.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 69

Deixa que eu treino estas pestinhas — disse Voz de Bebê.


Mas me arruma uma fantasia.
Eu me vesti e esperei. E prestei atenção:
Ele me deu trinta pratas e eu só fiz comprar cigarros para
ele.
Abaixa aí, meu docinho, e se enfia nesta fantasia.
Ah, sei lá. Acho que ele fabrica Leite de Magnésia ou coisa
parecida.
— Você sabia que tem gente que comete suicídio com estes sa-
cos plásticos?
— Aí o babaca pede Cortinas de Renda. Alguém lá já ouviu
falar em Cortinas de Renda?
— Eu disse a ele que nossos rabos eram de asbesto e ele quis
queimar o meu para ver se era verdade.
— Semana passada ganhei trinta pratas de gorjeta. Grande coisa.
Sheralee me chamou de volta ao escritório.
— Então você quer ser Coelhinha — ela disse.
— Oh, sim. Gostaria muito — respondi.
— Bem... — Ela fez uma pausa significativa. — Nós também
queremos que seja!
Fiquei perplexa. Não haveria mais entrevistas? Investigações?
— Chegue amanhã às três. Vamos tirar as medidas e pedir para
que assine algumas coisas. — Eu sorri e senti uma exultação tola.
Descendo as escadas e subindo Fifth Avenue. Saltitante eu vou, sou uma
Coelhinha!

QUINTA-FEIRA, DIA 31

Agora tenho duas fantasias de Coelhinha: uma de cetim laranja e


outra azul-rei. A escolha de cores e a qualidade do cetim são quase
as mesmas dos catálogos de material esportivo. Os corpinhos das
fantasias, pré-cortados para caber em corpos e seios de tamanhos
variados, são experimentados na mesma hora. Aguardei, de pé, no
piso de cimento, com os pés descalços e uma calcinha de biquíni. A
chefe de guarda-roupa me deu um tapetinho de banheiro.
Não dá para deixar uma Coelhinha novinha em folha pegar
gripe — foi o que disse. Perguntei se ela poderia seguir a linha
70 GLORIA STEINEM

do meu biquíni; a fantasia que eu experimentara no dia anterior era


mais cavada do que qualquer uma que eu vira em fotografias. Ela
riu. — Olha, querida, se você acha que aquela estava cavada, devia
ver umas que usam por aqui.
A fantasia foi aparada e apertada até estar com cinco centímetros
amenos do que minhas medidas em todos os locais, menos no busto.
— Aqui você vai precisar de espaço para enchimento. Quase
todo mundo enche. E é aqui que você guarda as gorjetas. Chamam
de "caixa forte".
Uma garota de cabelos negros e muito pó-de-arroz, vestindo uma
fantasia verde, parou à porta.
— Meu rabinho está caído — ela disse, arrumando-o com um
dedo. — Esses malditos clientes não param de puxar.
A chefe de guarda-roupa entregou-lhe um alfinete de fralda.
— E melhor arrumar um rabinho mais limpinho do que este,
meu anjo. Vai arrumar um demérito se andar por aí com um rabinho
maltrapilho destes.
Outras garotas apareceram pedindo fantasias, marcando o nome
num caderninho preso ao balcão. Descobri que não era permitido
sair do prédio com a fantasia e que cada uma pagava dois dólares e
meio pela manutenção e lavagem da mesma. As Coelhinhas tam-
bém pagavam cinco dólares por um par de meias-calças pretas e podiam
receber deméritos se usassem meias rasgadas. A chefe de guarda-
roupa me deu amostras de ambas as fantasias e me disse para man-
dar pintar os sapatos para que combinassem com a roupa. Pergun-
tei se o clube pagava a pintura dos sapatos.
— Você enlouqueceu, meu bem? Esse lugar não dá dinheiro para
nada. E certifique-se de que são saltos dez. Vai arrumar um demérito
se usar mais baixos.
Eu me vesti e fui ver a Mamãe Coelha. Sheralee estava sentada à
escrivaninha. Com os longos cabelos presos, parecia ter dezoito anos.
Ela me entregou um formulário rosa-choque no qual estava escrito
"Solicitação para Coelhinhas" e uma maletinha de plástico marrom
com a miniatura de uma garota nua e THE PLAYBOY CLUB es-
crito em laranja.
— Esta é a bíblia da Coelhinha — ela me disse muito séria. —
Quero que me prometa que vai passar o fim de semana inteiro estu-,
dando-a.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 71

O formulário tinha quatro páginas. Eu já inventara grande par-


te das respostas para a minha biografia mas algumas das perguntas
eram novas. Eu estava saindo com algum cliente do clube, se esti-
vesse, qual o nome dele? Nenhum. Pretende sair com algum clien-
te? Não. Tem ficha na polícia? Não. Deixei o espaço destinado ao
número de seguridade social em branco.
Subi um lance de escadas e entreguei o formulário à Srta. Shay.
A sala de chão de cimento estava pontilhada de escrivaninhas. Mas
a da Srta. Shay, como diretora de pessoal, ficava num canto. Ela vas-
culhou o formulário e tirou mais polaróides de mim.
— Traga o cartão de seguridade social amanhã, sem falta.
Eu me perguntei o que fazer sobre o fato de Marie Ochs não
possuir um. Um homem atarracado de terno azul, camisa preta e
gravata branca fez um gesto na direção de uma garota gorducha que
se encontrava logo atrás dele.
— O Sr. Roma disse que eu a trouxesse aqui e eu ficarei muito
grato por qualquer coisa que puder fazer por ela—ele disse, piscando.
— Em casos de extrema recomendação pessoal — disse a Srta.
Shay com enorme indiferença. — Nós fazemos a entrevista imedia-
tamente. — Ela fez sinal para Sheralee que levou a garota para bai-
xo. O homem pareceu aliviado.
Uma ruiva, acompanhada de dois homens, se aproximou mas a
Srta. Shay pediu-lhes que aguardassem. O mais jovem deu um soquinho
brincalhão no queixo da ruiva e sorriu.
— Você não tem com o que se preocupar, benzinho. — Ela o
olhou com desdém e acendeu um cigarro.
Assinei um formulário de imposto de renda, vale refeição, um
recibo referente aos vales, um formulário de solicitação de emprego,
um outro de seguro e uma autorização para a divulgação de fotografias
para qualquer finalidade — publicidade, editorial ou outra — que
escolhesse a Playboy Clubs International. Um jovem em mangas de
camisa, com aparência bastante apressada, entrou para dizer à Srta.
Shay que os dois homens que trabalhavam no porão iam pedir demissão.
Eles haviam esperado receber 75 dólares por seis dias de trabalho e
iam trabalhar apenas cinco por sessenta. Estavam descontentes e ti-
nham famílias para sustentar.
-Não posso mudar coisa alguma — ela disse, secamente. —
Eu me limito a pôr em prática as decisões do Sr. Roma.
72 GLORIA STEINEM

A Srta. Shay grampeou duas fotos polaróides à minha solicita-


ção de emprego e entregou-me os meus horários.
— Amanhã, irá ao Larry Matthews para lhe auxiliarem com a
maquiagem. Este fim de semana é para estudar a bíblia da Coelhinha
e marquei um horário na segunda para você fazer um exame médi-
co. — Ela chegou para frente e disse em tom de confidência:—Um
exame completo. Segunda-feira é o dia da palestra da Mamãe Coelha
e do Papai Coelho. Terça-feira é dia de Escola de Coelhinhas e quar-
ta você treinará no próprio bar.
Eu perguntei se a consulta podia ser feita com meu próprio médico.
— Não. Você precisa ir ao nosso médico para um exame espe-
cial. É obrigatório para todas as Coelhinhas.
A Srta. Shay me mandou assinar um último formulário, uma
requisição para que uma cópia do registro do nascimento de Marie
Ochs fosse enviada para o Playboy Club. Eu o assinei, esperando que
o estado do Michigan demorasse um pouco para descobrir que Marie
Ochs não existia.
— Enquanto isso, vou precisar ver sua certidão de nascimento.
Não podemos permitir que trabalhe sem que a vejamos.
Concordei em enviar uma carta urgente para casa para que a
enviassem.
É claro que não me permitiriam servir bebidas alcoólicas ou traba-
lhar à noite sem provar que era maior. Por que não pensei nisso antes?
Bem, o futuro de Marie talvez fosse curto mas talvez ela conse-
guisse ao menos terminar a Escola de Coelhinhas.

SEXTA-FEIRA, 1 DE FEVEREIRO

Experimentei cílios postiços no Larry Matthews, um salão de beleza


no Hotel West Side, que fica aberto 24 horas por dia. Enquanto uma
maquiadora separava os cílios com uma tesourinha, comentou que
uma garota acabara de ser despedida do clube "porque se recusara a
sair com um cliente Número Um". Eu disse que pensava ser proibi-
do sair com clientes.
— Você pode sim, contanto que ele seja um cliente "Número
Um" — ela explicou. — Os Número Um são gerentes do clube,;
repórteres e figurões.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 73

Expliquei que ser demitida por não sair com um deles me pare-
cia uma coisa muito diferente.
Bem — ela começou, pensativa —, acho que foi a maneira
que ela disse. Ela mandou ele se ferrar.
Paguei a conta. US$ 8,14 pelos cílios e por um ruge, mesmo
com os 25% de desconto para Coelhinhas. Recusara-me a investir
num batom mais escuro, embora "as garotas fossem despedidas por
estarem pálidas". Perguntei-me quanto as Coelhinhas geravam de
negócios para o Sr. Matthews. Será que houvera uma licitação de
salões de beleza para um negócio tão lucrativo?
Estou em casa e medi os cílios. Talvez eu não devesse me preo-
cupar tanto em ser reconhecida. Na parte mais longa, estes cílios
têm mais de dois centímetros de comprimento.

DOMINGO, DIA 3

Passei um domingo enriquecedor com a bíblia da Coelhinha, ou o


Manual da Coelhinha do Playboy Club, seu nome oficial. Da introdu-
ção ("Você tem o melhor emprego do país para uma jovem") ao apêndice
("Sidecar: Passe limão na borda do copo e polvilhe com açúcar"), é
um modelo de clareza.
Há pelos menos uma dúzia de suplementos que acompanham a
bíblia. Ao todo, dão uma idéia bem vivida das funções de uma
Coelhinha. Por exemplo:

.. .Você... é o único contato direto que grande parte dos leitores j amais
terá com os funcionários de Playboy... Dependemos de nossas Coe-
lhinhas para expressar a personalidade da revista.
...É esperado que as Coelhinhas contribuam com um número razoável
de aparições pessoais como parte de suas obrigações para com o clube.
...E bom lembrar às Coelhinhas que há maneiras muito agradáveis
de aumentar o volume de bebidas alcoólicas consumidas no clube e
assim aumentar os ganhos pessoais de cada uma, significativamente...
A chave para uma maior venda de bebidas é o Contato com o Cliente...
eles reagirão bem à sua tentativa de ser simpática... Deve fazer com
que pareça que as opiniões do cliente são muito importantes...
74 GLORIA STEINEM

...O Sistema de Incentivo é um método criado para recompensar as


Coelhinhas garçonetes que se esforçam um pouco mais... A Coelhinha
com a maior média de bebidas vendidas por cabeça vencerá... Prêmio
em dinheiro... a ser determinado pelo lucro geral com bebidas.

Há um problema em ser "simpática", em "mimar" o cliente e ao


mesmo tempo se recusar a sair com ele ou até mesmo a lhe dizer seu
sobrenome. O manual deixa bem claro que as Coelhinhas não deverão
jamais sair com alguém que conheceram no clube — cliente ou funcio-
nário — e acrescenta que uma agência de detetives chamada Willmark
Service Systems, Inc. foi contratada para se certificar de que tal não
ocorreria. ("E claro que não há como saber se você está sendo vigiada
por um representante da Willmark Service.") A explicação dada às
Coelhinhas é simples: "Os homens ficam muito empolgados em ter
Elizabeth Taylor como companhia, mas eles sabem que não podem
tocá-la ou fazer-lhe propostas. No momento em que eles sentirem
que alguma intimidade foi estabelecida, ela perderá a aura de glamour
que a envolve. É assim que deve ser com nossas Coelhinhas". Numa
carta anexa, escrita por Hugh Hefner e endereçada à Willmark, a
explicação é ainda mais simples: "Nosso alvará de funcionamento é
ameaçado cada vez que um de nossos funcionários se envolve diretamen-
te, auxilia ou é cúmplice de atos de prostituição..." Assim a Willmark
ficava instruída para "Usar seus representantes mais atraentes e simpáti-
cos para fazer propostas às Coelhinhas e até mesmo oferecer quantias
no valor de US$ 200,00, com a promessa de um encontro mais tar-
de fora do clube". Os representantes da Willmark são instruídos a
perguntar ao barman ou a qualquer outro funcionário homem "se
algumas das meninas estão disponíveis para uma 'noite divertida'...
Diga a ele que você a pagará bem ou então a ele por arrumá-la". Se
o funcionário funcionar como "procurador", a Willmark deverá no-
tificar ao clube imediatamente. "Nós, naturalmente, não tolerare-
mos que nossas Coelhinhas sejam comercializadas", escreve o sr. Hefner.
"E ansiamos por saber se tais coisas estão ocorrendo."
Se a idéia de ser comercializada não for o bastante para assustar
qualquer candidata a Coelhinha, há outras sugestões que o farão.
Os representantes da Willmark estão incumbidos de verificar se o|
saltos usados estão muito baixos, se as meias estão com o fio puxa-
do, se usam bijuterias, se as calcinhas estão à mostra, se as orelhinhas
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 75

stão tortas ou se não combinam com a fantasia, se a mesma está


uia se a Coelhinha esqueceu de usar crachá e se os rabinhos estão
"de acordo". Além disso: "Quando começar o espetáculo, verificar
se as Coelhinhas estão reagindo aos artistas. Quando for um show
cômico, é esperado delas que riam". Você poderá estar sendo obser-
vada pelo Grande Irmão da Willmark.
Na verdade, as Coelhinhas deverão sempre parecer contentes e
satisfeitas ("Pense em algo alegre e engraçado... o produto mais im-
portante que você está vendendo é sua personalidade") apesar de todas
as suas preocupações, incluindo o sistema de deméritos. Cabelos em
desalinho, unhas malcuidadas e maquiagem malfeita custam cinco
pontos no sistema de avaliação. Assim como chamar um chefe de
setor pelo primeiro nome, perder o horário com o maquiador, ou
comer na Sala da Coelhinha. Mascar chiclete ou comer durante o
expediente valem dez pontos na primeira ofensa, vinte na segunda e
demissão na terceira. Quem receber três multas "por não aparecer
para o turno e não encontrar substituta" não só será demitida como
também entrará na lista negra no caso de uma futura candidatura
para os demais clubes da rede. Atrasos na chegada ou após intervalos
custam um "demérito" por minuto de atraso, no caso de não seguir
as instruções de um chefe de setor, quinze. "O valor em dólar de
cada 'demérito'", diz a bíblia, "dependerá do gerente geral de cada
clube."
Uma vez que o sistema tiver sido assimilado, há instruções para cada
trabalho específico. As Coelhinhas Recepcionistas recebem o cliente e
checam seus chaveiros, onde está escrito o tipo de clientes que são; as
Coelhinhas Fotógrafas operam as Polaróides; as Coelhinhas Cigarreiras
explicam por que um maço de cigarros não pode ser comprado sem um
isqueiro Playboy; as Coelhinhas Chapeleiras aprendem o sistema do guarda-
volumes; as Ccelhinhas daLojinha vendem produtos Playboy; as Coelhinhas
da Lojinha Ambulante carregam produtos Playboy em cestas e as
Coelhinhas Garçonetes devem decorar treze páginas de drinques.
A sobrevivência de uma Coelhinha depende de outras coisas além
de peitos com enchimento.
Nota: A Seção 523 afirma: "Funcionários devem entrar e se diver-
tir como clientes normais se forem convidados de clientes Núme-
ro Um'. Seriam estes os tais figurões dos quais falara minha
maquiadora?
76 GLORIA STEINEM

MANHÃ DE SEGUNDA, DIA 4

As onze fui ao consultório do médico indicado pelo clube, localizado


num hotel da vizinhança. ("Vinte deméritos para quem faltar a uma
hora marcada.") A enfermeira me mandou preencher um histórico
médico. "Você sabe que isto inclui um exame interno? Venho ten-
tando conseguir que a Srta. Shay avise às moças." Eu disse que sabia
mas que não compreendia por que haveria de ser necessário. "E para
seu próprio bem", ela disse, indicando o caminho até uma sala que
continha um armário de remédios, uma balança e uma mesa para
exames ginecológicos. Vesti um roupão e aguardei. Pareceu-me que,
ultimamente, eu vinha passando grande parte de meu tempo tiran-
do a roupa, esperando, ou ambos.
A enfermeira voltou acompanhada do médico, um senhor ro-
busto, de seus sessenta anos, com a pele rosada de um bebê.
— Então você vai ser Coeíhinha—ele disse com animação. —
Acabo de voltar de Miami. Bonito o clube de lá. Cheio de belíssimas
Coelhinhas.
Eu estava prestes a perguntar se ele possuía uma franquia, e se
percorria o país de costa à costa, mas ele me interrompeu para per-
guntar se eu estava gostando da vida de Coeíhinha.
— Bem, é mais animado do que ser secretária — respondi, e ele
me mandou sentar na beirada da mesa. Enquanto ele socava minhas
costas e me auscultava, de repente me passou pela cabeça que todas as
Coelhinhas de Nova York haviam se sentado naquele mesmo lugar.
— Agora vem a parte que todas as meninas detestam — disse
ele, tirando sangue do meu braço para realizar um exame Wassermann.
Eu disse que um exame de sangue para determinar se alguém é por-
tador de doenças venéreas me parecia um tanto sinistro.
— Não seja boba — disse ele. — Todos os funcionários têm de
passar por isso. Pelo menos você sabe que todo mundo do clube é
saudável. — Eu disse que o fato de serem ou não saudáveis não me
afetava em coisa alguma e que eu tinha objeções quanto a ser sub-
metida a tais exames. Silêncio. Ele me mandou ficar de pé para "po-
der ver se suas pernas são tortas".
— Então está bem. Eu tenho de ser submetida ao Wassermann.
E o exame ginecológico? É exigido de todas as garçonetes do estado
de Nova York?
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 77

— E qual é o problema? — indagou ele. — É de graça e para o


bem de todo o mundo.
.— Como? — perguntei.
— Olhe — ele começou com impaciência —, nós sempre cons-
tatamos que as garotas que objecionam com mais veemência têm
algum motivo... — Ele fez uma pausa carregada de significados ocultos.
Também me detive. Eu tinha duas escolhas: ir até o fim ou sair em
sinal de protesto. Mas em sinal de protesto contra o quê?
De volta à recepção, a enfermeira me entregou um bilhete, que
eu deveria entregar à Srta. Shay, dizendo que eu havia passado nos
exames preliminares. Enquanto eu vestia o casaco, ela telefonou para
o laboratório para que viessem buscar "um exame de sangue e um
papanicolau". Perguntei por que faziam estes exames mas nenhum
de urina? Não era ele, afinal, o mais comum dos exames de labora-
tório?
— É para a sua proteção — disse ela com firmeza. — Além do
mais, quem paga é o clube.
Na recepção do hotel fui até o telefone público para ligar para a
Saúde Pública. Perguntei se exigiam que as garçonetes da cidade de
Nova York fossem submetidas ao teste Wassermann.
— Não.
Então quais eram os exames médicos necessários?
— Nenhum — foi a resposta.

TARDE, SEGUNDA, DIA 4

A palestra da Mamãe Coelha acabou sendo uma conversa informal,


e
por diversas vezes interrompida, na salinha sem janela de Sheralee.
Havia outras sete candidatas, duas das quais a caráter. Havia tam-
bém uma loura de traços delicados, a modelo do Texas que eu já
conhecera, uma garota enorme de cabelos muito longos que disse
ser assistente de mágico, uma garota quadradona vestindo conjunto
quadriculado, uma morena bonita que não tirava o casaco.
Em grande parte, Sheralee só fez repetir a bíblia das Coelhinhas,
m
as alguns pontos eram novos.
78 GLORIA STEINEM

1. Devido à existência de um salário mínimo na cidade de Nova York,


precisamos receber um salário de cinqüenta dólares por uma se-
mana de quarenta horas. Recebemos gorjetas mas o clube fica com
50% dos primeiros trinta dólares pagos com cartão de crédito, 25 %
dos totais de até sessenta dólares e 5% daí em diante. "Isso quer
dizer metade de tudo que ganhamos", sussurrou uma das meninas
fantasiadas. "Mas quem é que ganha mais de trinta dólares por dia?"
2. Podemos ficar com todas as gorjetas que nos são dadas em espé-
cie mas se indicarmos preferência por gorjetas em espécie, sere-
mos demitidas.
3. "Não sei se vocês sabem o que quer dizer 'média de bebida'", disse
Sheralee. Ela então pôs-se a explicar que se tratava do número de
drinques por cliente. "Mas se vocês trabalharem bem, os clientes
repetirão os pedidos e vocês recebem méritos pelo trabalho. Cem
méritos é igual a 25 dólares."
4. Se formos nos encontrar com maridos e namorados após o trabalho,
devemos fazê-lo a duas quadras do clube. Os clientes não devem
nos ver encontrando outros homens.
5. Não devemos jamais deixar dinheiro em nossos armários. Duas
meninas foram demitidas recentemente porque foram pegas rou-
bando.
6. Devido aos "problemas especiais de Nova York", não podemos
ser multadas em dinheiro pelos deméritos, assim, podemos comprá-
los de volta com méritos. "Se cem méritos é igual a 25 dólares",
perguntei, "não dá no mesmo?". Sheralee disse que não.
7. Clientes Número Um recebem tratamento diferenciado. Por exem-
plo, devemos trazer-lhes telefone, bloco de papel e caneta imediata-
mente. A Playboy International então "absorve" seus gastos. Cha-
veiros com o número um são dados aos executivos de todos os
clubes, a membros importantes da imprensa e a alguns outros
VIPs. Podemos também dar-lhes nossos nomes ou sair com eles.
A assistente de mágico perguntou se era esperado que saíssemos
com eles.
— E claro que não — respondeu Sheralee.
— Mas um dos chefes de seção ficou com raiva de mim porque
eu não dei meu nome a um cliente Número Um. Expliquei
que era casada mas ele disse que eu tinha de dar meu nome do
mesmo jeito.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 79

Sheralee disse que estava certa de que o chefe de setor se expres-


sara mal.
Você jamais precisará fazer o que não quer — ela disse com
doçura.
8. O apartamento de Vic Lownes é usado para as festas promocionais
da Playboy em Nova York, assim como a casa de Hugh Hefner é
usada em Chicago. ("O Sr. Lownes administrava os clubes" ex-
plicou Sheralee. "Mas agora ele está ligado, basicamente, à revis-
ta.") Quando formos a tais festas, não poderemos levar homens.
"Nem mesmo nossos maridos?", perguntou a assistente de má-
gico. "Homem algum. Absolutamente nenhum. Mas é claro que
não precisam ir se não quiserem", respondeu Sheralee.

Todas descemos à sala VIP para a palestra do Papai Coelho, mas


antes uma Coelhinha parou na porta do escritório de Sheralee e gri-
tou "Gloria!" Eu gelei. Depois de uma eternidade, a Coelhinha sen-
tada a meu lado respondeu. Eu aprendi a responder quando me chamam
de Marie. Agora preciso não reagir quando me chamam de Gloria.
Não havia Papai Coelho e sim duas séries de slides com uma
narrativa gravada e um fundo musical de jazz. Uma das palestras
falava, de forma muito generalizada, sobre as Coelhinhas. Não con-
tinha nada de novo, a não ser que quando os clientes tentassem for-
çar uma intimidade, devíamos dizer "Senhor, não é permitido pôr as
mãos nas Coelhinhas". A segunda parte da palestra do Papai Coelho
era chamada "O Coquetel da Coelhinha". Ensinava a encher bande-
jas, preencher comandas e colocar os drinques na mesa. A narrativa
não estava sincronizada aos slides, a sala estava gelada e eu saí de lá
com uma dor de cabeça de matar.
Sheralee disse que a Srta. Shay queria me ver. Meu coração ficou
apertado.
O escritório principal continuava aquele caos iluminado com
empadas fluorescentes mas a Srta. Shay parecia uma ilha de tran-
qüilidade. Ela me disse que eu precisaria de uma identidade para
entrar e sair do prédio. Entreguei-lhe o bilhete do médico e meu
número de seguridade social de verdade. Expliquei que perdera o
cartão. Ela pareceu desconfiar mas aceitou o número.
Eu quis perguntar o porquê dos exames da manhã mas decidi
esperar um pouco. Se eu chamasse atenção para mim mesma, talvez
80 GLORIA STEINEM

apenas lhe lembrasse que não entregara a certidão de nascimento.


Disse a ela que meu arquivo estava completo, a não ser por uma
abreugrafia, e saí da sala. É difícil crer que a eficientíssima Srta. Shay
não me pegará logo logo. Mas vou ficando até me descobrirem.

TARDE, TERÇA, DIA 5

Ao meio-dia de hoje esperei numa fila para fazer uma abreugrafia


grátis na Saúde Pública, falando baixinho: "O Flamingo leva cereja,
laranja e uma rodela de limão. O Mist leva gotas de limão e o London
Docks, licor". Estas pequenas pérolas de sabedoria foram tiradas da
minha listagem de drinques e, assim como todos os outros docu-
mentos contidos naquela maletinha de plástico marrom, seriam matéria
de uma prova escrita às três da tarde.
Fui ver Sheralee e ela me cumprimentou apressada: "Ah, meu
docinho, estou completamente desesperada\" Precisava de uma garo-
ta maior de 21 anos para trabalhar na chapelaria das sete e meia da
noite às quatro da manhã. Será que eu poderia ajudá-la? É claro que
sim, eu respondi, se ela achava que eu daria conta do recado. "Ah,
mas é claro que dá, meu bem", ela disse. "É muito simples." Meus
sapatos da cor da fantasia ainda não estavam prontos mas, enfim, eu
poderia usar os pretos, ela disse. Era só me apresentar para a maquiagem
às sete. Fiquei surpresa e entusiasmada. Eu ia ter pelo menos uma
noite no bar. Sim, se eu conseguisse me esquivar da Srta. Shay.
A prova era na verdade uma lista de 61 perguntas com respos-
tas curtas. Nossa classe de oito meninas escrevia furiosamente en-
quanto Sheralee lia as perguntas em voz alta. Eu podia ver que a
modelo texana estava perplexa, sua boca encontrava-se levemente
aberta. A Coelhinha chamada Gloria mordia os nós dos dedos. De-
cidi que não seria boa idéia demonstrar muita sabedoria e errei seis
perguntas de propósito. Corrigimos as provas umas das outras e le-
mos os resultados em voz alta. A minha prova foi a melhor da clas-
se, com nove erros, e o resto errou quatorze ou mais. Texas errou
quase trinta. Quando o clube diz que uma Coelhinha é escolhida
pela "1) Beleza 2) Personalidade 3) Habilidade", deve haver algum
significado nesta ordem.
Fomos até a cobertura, uma sala grande no quarto andar com
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 81

nainéis iluminados representando telhados. Sheralee nos colocou em


fileira e começou a nos perguntar a respeito de drinques.
— O que é Fleischmann's?
__ Gim.
— O que é Vat 69?
— Ainda não estudei isso — disse Texas.
— Uísque — disse a morena bonita.
— O que é Courvoisier?
— Eu sei. Eu decorei. É... conhaque — disse Gloria.
— O que é Piper Heidsieck? — A lourinha delicada não sabia.
— Você nunca bebeu champanhe? — perguntou Sheralee. A
loura respondeu que não. — Parece ginger ale, só que custa muito,
mas muito dinheiro.
Depois de várias rodadas de perguntas, todo mundo fora capaz
de responder pelo menos algumas. Menos Texas. Ela baixou a cabe-
ça tingida com hena e Sheralee admoestou-a duramente.
Uma garota negra, muito pálida e muito alta, entrou e se apre-
sentou como nossa treinadora. Ela era magra e frágil como uma
manequim de passarela e muito bonita.
— É uma das Coelhinhas mais antigas do clube — disse Glo-
ria. — Todos a adoram.
— Os homens chamam as garotas de cor de Coelhinhas de Cho-
colate — disse uma outra, rindo.
Passamos uma hora apressada aprendendo a pose da Coelhinha
(uma pose de modelo, com o quadril projetado para fora) e o mer-
gulho da Coelhinha (uma forma de curvar o corpo levemente para
trás para que nossos seios não saltem para fora da fantasia quando
colocamos os drinques sobre as mesas baixas).
— Boa-noite, senhor, sou sua Coelhinha, Marie. Poderia me
m
ostrar seu chaveiro de sócio, por favor? O senhor possui chaveiro
ou este é um chaveiro emprestado? Obrigada. O que posso lhe tra-
zer?
Nada de desvios. Perguntei-me se a uniformidade não haveria
oe cansar os clientes. "Posso lhe trazer mais alguma coisa, Sr. Jones?"
Muito obrigada, Sr. Jones. Venha nos fazer outra visita." Eu estava
sendo programada.
Em casa, eu me escondo por trás de uma máscara com cílios
Postiços. O escritório do clube estará fechado quando eu chegar:
82 GLORIA STEINEM

nenhuma Srta. Shay para me proibir de trabalhar. Pelo menos mi-


nha carreira incluirá uma noite de "Contato com o Cliente".

NOITE, TERÇA, DIA 5

A sala das Coelhinhas estava um caos. Puxa daqui, puxa dali até a
chefe de guarda-roupa fechar minha fantasia azul-rei. Desta vez ela
permitiu que eu colocasse meu próprio enchimento e eu consegui
me safar com apenas metade de um saco plástico. Coloquei a gola e
prendi a gravatinha-borboleta e os punhos com abotoaduras de
coelhinho. Meu crachá foi colocado num arranjo de fitas, tal qual
uma medalha daquelas que põem em cavalos quando vencem corri-
das, e preso logo acima do quadril, à direita. Uma mudança no re-
gulamento interno acabara de mudar os crachás do lado esquerdo
para o direito. A chefe de guarda-roupa também me entregou uma
jaqueta porque fazia menos de dez graus negativos e eu deveria me
posicionar ao lado da porta de entrada. A tal jaqueta era um pedaci-
nho de pele branca artificial que cobria os ombros mas deixava o
decote cuidadosamente à mostra.
Fui até Sheralee para ser inspecionada.
— Você está uma graça — disse ela e me aconselhou a guardar
o dinheiro que trouxera dentro da fantasia. — Tiraram coisas do armário
de outras duas garotas. —Ela então acrescentou que eu deveria di-
zer ao chefe da portaria quanto eu trouxera em dinheiro. — Senão
vão achar que você roubou gorjetas.
É que as Coelhinhas Garçonetes podiam guardar gorjetas em
espécie (embora o clube ficasse com cinqüenta por cento das gorje-
tas das contas pagas com cartão de crédito), mas as Coelhinhas
Chapeleiras não podiam ficar com gorjeta alguma. Em vez disso, elas
recebiam doze dólares por oito horas de trabalho. Eu disse a ela que
um salário de doze dólares por dia era bem menos do que os duzen-
tos a trezentos dólares mencionados no anúncio.
— Ora meu anjo, você não vai trabalhar sempre na chapelaria
— ela disse. — Assim que você começar a trabalhar nas mesas, da
tudo no mesmo. Você vai ver.
Dei mais uma olhada no espelho. Uma criatura com cílios de
dois centímetros, orelhas de cetim azul e seios que pareciam saltar
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 83

do decote olhou para mim. Perguntei a Sheralee se precisávamos de


tanto enchimento assim.
É claro que sim — ela respondeu. — Quase todas as garo-
tas enchem e enchem mais um pouco. É assim que uma Coelhinha
deve ser.
A porta do elevador abriu no mezanino e fiz minha estréia pro-
fissional no Playboy Club. Estava cheíssimo, barulhento e mui-
to mas muito escuro. Bem próximo de mim, havia um grupo de
homens com crachás de uma mesma empresa na lapela.
Olha só a minha Coelhinha — disse um deles, atirando os
braços em torno do meu pescoço, como se fôssemos jogadores de
futebol deixando o campo.
— Por favor, senhor — eu disse e balbuciei a frase mágica que
aprendêramos na palestra do Papai Coelho. — Não é permitido pôr
as mãos nas Coelhinhas. — Seus comparsas riram às gargalhadas.
— Aí meu velho, que bronca você levou, hein? — disse um deles.
Puxou meu rabinho enquanto eu me afastava.
Com as frases da Coelhinha ecoando em minha mente desci as
escadas em caracol, acarpetadas, que separavam o mezanino ("Sala
de Estar, Piano Bar, o bufê está servido") e o lobby ("Entreguem seus
casacos e sentem-se imediatamente no bar"), separados da rua por
uma vidraça de pé direito duplo. A alternativa seria uma escadaria
larga ao fundo do lobby, mas ela também podia ser vista da rua. To-
dos nós, clientes e Coelhinhas, fazíamos parte de uma imensa vitri-
na. Fui ver o chefe do lobby.
— Olá, Coelhinha Marie — ele disse. — Como vão as coisas?
Respondi que tinha quinze dólares na fantasia.
— Pode deixar que eu me lembro — disse ele e tive a humi-
lhante visão de uma fileira de Coelhinhas Chapeleiras tendo os bus-
tos inspecionados.
Havia um paredão de homens impacientes aguardando na Cha-
Pelaria. A Coelhinha Chapeleira-chefe, uma lourinha importada de
Chicago "para dar um jeito nas coisas", me disse para pegar os tíquetes
e gritar o número para os dois "cabideiros" que se encontravam atrás
do balcão.
Eu lhe dou meu número se você me der o seu — disse um
senhor calvo, virando-se para a platéia, à espera de aplausos,
depois de uma hora auxiliando homens com casacos, cachecóis
84 GLORIA STEINEM

e chapéus, o corre-corre aliviou o bastante para que a Coelhinha de


Chicago conseguisse me ensinar como pregar números em lapelas
com alfinetes ou enfiá-los no forro dos chapéus. Ela me ensinou mais
algumas frases mágicas. "Muito obrigada, senhor. Aqui está seu
tíquete." "A Coelhinha de Informações encontra-se no andar de bai-
xo, à sua direita." "Eu sinto muito, não estamos autorizadas aguar-
dar casacos de senhoras." (A Chapelaria estava disponível para mu-
lheres apenas se o clube não estivesse cheio e se os casacos não fos-
sem de pele.) Ela enfatizou que eu deveria colocar todas as gorjetas
numa caixinha presa à parede, sorrir com gratidão e jamais dizer ao
cliente que a gorjeta ficava para o clube. Ela caminhou até a outra
metade da chapelaria ("Os tíquetes azuis são na sala ao lado, senhor")
e mandou uma Coelhinha suíça, alta e grandalhona, substituí-la.
Atendemos a um pequeno grupo de clientes e conversamos um
pouco. Voltei à minha constante preocupação de que alguém entra-
ria, me reconheceria e gritaria "Gloria!" Se era verdade que uma repórter
de jornal e outra de revista haviam tentado se tornar Coelhinhas e
falharam, a gerência do clube devia estar de olhos bem abertos para
tal possibilidade. Eu vira um número grande o suficiente de filmes
de Sydney Greenstreet para me preocupar com a reação do clube.
Se algum conhecido entrasse, eu teria de repetir "Deve haver algum
engano" diversas vezes e esperar o melhor.
A turma do jantar foi chegando e logo vinte homens aguarda-
vam. Trabalhávamos rapidamente, mas com tantos casacos entran-
do e saindo a coisa ficou confusa. Um cliente cambaleava atrás do
balcão em busca de um chapéu perdido e outros dois reclamavam
em voz alta que já esperavam há dez minutos. "Essa fila que se for-
ma fora do Playboy Club é só porque tem gente esperando o casa-
co", disse um. Um homem de terno azul de seda estendeu o braço
para apertar meu rabo. Desviei e abri o casaco para que um senhor
calvo, com o bolso cheio de esferográficas, pudesse vesti-lo. Ele o
vestiu, de trás para frente, de forma a me abraçar. O cabideiro gri-
tou com um pesado sotaque espanhol: "Deixe-a em paz" e o senhor
o mandou calar a boca. Três mulheres com estolas de vison aguarda-
vam seus maridos. Elas nos encaravam, não com inveja e sim com
frieza, como se estivessem se comparando à Coelhinha suíça e a mim-
Lá em cima, na parede oposta, uma câmera nos vigiava a todos, trans-
mitindo a cena em telas embutidas, espalhadas pelas paredes do clube
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 85

Havia até uma tela acima da calçada. Um aviso dizia: "Esta câmera
do circuito interno de TV transmitirá sua entrada para todo o clu-
be» Sentia-me como se estivesse caminhando nua através das mul-
tidões e a única forma de recuperar minhas roupas seria passando
nela escadaria da gaiola de vidro. A medida que mais homens esten-
diam casacos em minha direção, eu me virava para o cabideiro para
pedir mais tíquetes.
Não se preocupe — disse ele gentilmente. — Você logo se
acostuma.
O movimento ficou mais calmo. Perguntei à Coelhinha suíça se
ela estava gostando do trabalho.
— Não muito — ela respondeu, dando de ombros. — Fui aero-
moça durante algum tempo, mas depois que você conhece Hong
Kong já viu de tudo.
Um homem se aproximou para tirar o casaco. Virei-me e dei de
cara com duas pessoas que eu conhecia bem, um executivo da tele-
visão e a esposa. Mantive os olhos baixos enquanto pegava o tíquete
e dei-lhes as costas enquanto o cabideiro procurava o casaco, mas
tive de encará-lo outra vez para devolver o mesmo. Meu amigo televisivo
olhou diretamente para mim, deu-me cinqüenta centavos de gorje-
ta e se afastou. Nem ele nem a esposa me reconheceram. Foi depri-
mente ser uma zé-ninguém fantasiada de Coelhinha, mas era tam-
bém uma vitória. Para comemorar, ajudei um homem magro, de
aparência tímida, a enrolar um cachecol azul e branco no pescoço e
perguntei-lhe se o cachecol era da Universidade de Yale. Ele me olhou
assustado como se tivesse sido reconhecido num baile de máscaras.
Não havia relógios em nenhum lugar do clube. Perguntei ao
cabideiro que horas eram. "Uma hora", ele respondeu. Eu estava
trabalhando há cinco horas, sem intervalo. Meus dedos estavam fu-
rados e doloridos, de tanto empurrar alfinetes através de papelão,
meus braços doíam com o peso dos casacos e eu estava gelada com o
vento glacial que soprava pela porta cada vez que um cliente a abria,
equilibrada em sapatos de cetim de salto dez, eu morria de dor nos
pés. Aproximei-me da Coelhinha de Chicago para perguntar se eu
Podia descansar um pouco.
'— Pode. Mas é meia hora para comer e só.
Depois da Sala da Coelhinha havia uma sala de funcionários onde
nossos vales nos proporcionavam uma refeição gratuita por dia. Eu
86 GLORIA STEINEM

aproximei uma cadeira portátil de metal de uma mesa longa e sem


adereços, tirei meus sapatos, cuidadosamente, e sentei-me ao lado
de dois homens negros uniformizados. Olharam para mim compa-
decidos enquanto eu massageava os pés. Um deles era jovem e bas-
tante atraente e o outro, de meia idade, tinha os cabelos grisalhos
nas têmporas. Como todos os funcionários do clube, pareciam ter
sido selecionados devido à aparência física. O mais velho me aconse-
lhou a rolar garrafas no chão, com os pés, como forma de relaxa-
mento, e a comprar palmilhas ortopédicas para os sapatos. Pergun-
tei o que faziam.
— Somos lixeiros — disse o mais jovem. — Pode não parecer
grande coisa, mas é um trabalho mais fácil que o seu.
Disseram que eu deveria comer alguma coisa e indicaram o en-
sopado de carne que comiam em pratos de papel.
— Sexta-feira tem peixe, mas dia sim dia não é este mesmo
ensopado — disse um deles.
— O mesmo, só que pior — o outro arrematou e riu.
O mais velho disse que sentia pena das Coelhinhas, muito em-
bora algumas gostassem de "exibir sua beleza". Ele me aconselhou a
ter cuidado com os pés e a tentar evitar duplas-jornadas.
Quando desci outra vez, tentei classificar os clientes enquanto
pegava seus casacos. Com a exceção de alguns casais de adolescen-
tes, a clientela era praticamente composta de executivos de meia-
idade. Menos da metade estava acompanhada de mulheres e o resto
chegava em grupos enormes que pareciam ser subsidiados por em-
presas. Vi apenas quatro do tipo que aparecia representado nos anúncios
do clube — o jovem, esbelto e bem-vestido Homem Urbano. Os]
quatro estavam acompanhados de mulheres esguias e elegantes que
pareciam um tanto chocadas com os enchimentos de nossas fanta-
sias e com a maquiagem chamativa. As esposas menos seguras não
se comparavam a nós e pareciam supor que seus maridos se sentiri-
am atraídos por nós. Assim, chegavam para o lado e emanavam ti-
midez e vergonha. Apenas alguns clientes, pouquíssimos, tanto ho-
mens quanto mulheres (contei dez ao todo), não olharam para nós
como objetos e sim, possivelmente, como seres humanos.
A Coelhinha suíça foi descansar e o cabideiro resolveu me dar
um singelo sermão. Segundo ele, eu era tola de colocar todo o di-
nheiro na caixa. As gorjetas vinham em dinheiro. Se não pegasse-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 87

mos um pouco para nós mesmos, será que o homem que o contava
não o faria? Eu disse para ele que tinha medo de que revistassem por
dentro da minha fantasia e que eu não queria ser demitida.
Eles só revistam de vez em quando — ele me assegurou. —
Bem, de qualquer forma, você me dá o dinheiro. Eu encontro você
lá fora e nós o repartimos.
Meus pés doíam, meus dedos estavam grudentos de tantos for-
ros de chapéus suarentos e minha pele estava arranhada pelas bar-
batanas da fantasia. Até mesmo o intervalo de meia hora para jantar
fora tirado do meu horário de trabalho. Assim, o clube ficava com
oito horas completas de trabalho. Meu ressentimento era grande o
bastante para me fazer aceitar a oferta que ele me fazia. Mas mesmo
assim não valia a pena ser demitida por roubo. Disse a ele que era
nova e que ainda estava nervosa demais para levar a sugestão a cabo.
— Você se acostuma — ele disse. — Um sábado desses, a cha-
pelaria arrecadou mil dólares em gorjetas. E você sabe quanto nos
pagam. Pense nisso.
Eram quase quatro da manhã. Fim de expediente.
O chefe do lobby veio nos dizer que haviam contado dois mil cli-
entes naquela noite. Eu disse que era um bom número.
— Não — ele discordou. — Quatro mil é um bom numero.
De volta à Sala da Coelhinha, devolvi minha fantasia e me sen-
tei, imóvel, cansada demais para me mexer. O espartilho deixara marcas
verticais nas minhas costelas e o zíper deixara um vergão na minha
coluna. Reclamei para a Coelhinha que se encontrava ao meu lado,
igualmente imóvel, que a fantasia era apertada demais.
— É — ela concordou. — Muitas garotas reclamam que ficam
dormentes do joelho para cima. Acho que comprime algum nervo
ou coisa parecida.
A rua estava deserta mas havia um táxi vazio do lado de fora, ao
lado da saída de funcionários. O motorista mostrava uma nota de
dólar pela janela aberta.
— Tenho mais quatro destas aqui — ele disse. — Não é o bas-
tante?
Continuei a andar.
— Qual é? — ele insistiu, irritado. — Você trabalha aí dentro,
não trabalha?
As ruas estavam bem-iluminadas e reluzentes com o gelo. Ao
88 GLORIA STEINEM

percorrer a última quadra, antes de chegar a casa, passei por um carro


inglês. O motor estava ligado e havia uma mulher atrás do volante.
Seus cabelos eram muito louros e o casaco de um vermelho chamativo.
Ela olhou para mim e sorriu. Eu devolvi o sorriso. Ela me pareceu
disponível e estava. De nós duas, ela me pareceu a mais honesta.

QUARTA, DIA 6

Levantei-me a tempo de correr de volta para o clube para o treina-


mento de mesa e já cheguei com a sensação de que não tinha dormi-
do em casa. Enquanto vestia a fantasia, uma das Coelhinhas lia um
tablóide intitulado 0 Guia de Shows de Leo Shull em voz alta.
— Escutem só isso aqui: "Embora mil garotas tenham sido en-
trevistadas para trabalhar no clube e haja 125 trabalhando lá atual-
mente, a excelente freqüência do Playboy Club, as filas e a multidão
de clientes que se aglomeram à porta todos os dias, exigiram a
contratação de outras cinqüenta Coelhinhas".
Eu soubera por Sheralee que havia 103 garotas trabalhando no
clube. Perguntei à garota que estava lendo se realmente havia ne-
cessidade de contratar mais cinqüenta. Provavelmente, ela respon-
deu, pois o clube abrira com 140 Coelhinhas e quase 50 haviam se
demitido.
Outra garota discordou.
— Eu ouvi dizer que vinte foram demitidas e outras quarenta
pediram demissão. Mas eu acho que foram até mais, porque nós so-
mos cem agora e muitas são Coelhinhas novas.
Eu disse que ia perguntar à Srta. Shay quantas garotas haviam
se demitido, só de curiosidade.
— Nem se dê ao trabalho — disseram-me. — Aqui ninguém
nos conta nada mesmo.
Peguei o jornal e continuei a ler:
— "As garotas, na opinião deste repórter, são as mais lindas ja-
mais reunidas sob um mesmo teto. A maioria tem nível superior e
modos esmerados. São treinadas para oferecer o melhor serviço pos-
sível... Ganham de três a dez vezes mais do que ganhariam em ati-
vidade similar. A média de ganhos é entre duzentos e trezentos do-
j^MÓMAS DA TRANSGRESSÃO 89

lares e as Coelhinhas conhecem pessoas extremamente atraentes."


O artigo terminava com o endereço do clube e como se inscrever.
De duzentos a trezentos dólares de quanto em quanto tem-
0 p perguntou a Coelhinha dissidente. — Eu recebi 108 dólares
esta semana e a garota que mais ganhou recebeu 145.
Perguntei se ela era garçonete e ela disse que sim.
. Da próxima vez que este Leo Shull vier aqui — disse a dis-
sidente — , vou perguntar onde ele arrumou estes números.
Cuidado — disse a dona do jornal. — Ele é cliente Número
Um.
Sheralee me chamou em seu escritório. Continuava desesperada
por uma garota "de mais de 21 anos" que pudesse trabalhar até às
quatro da manhã. Será que eu não trabalharia na chapelaria outra
vez? Eu pesei a proposta. Era mais uma chance de trabalhar antes
da Srta. Shay se lembrar de que eu ainda não lhe entregara a certidão
de nascimento. Por outro lado, eu sairia do treinamento para Coelhinha
Garçonete às seis e começaria uma jornada integral às sete e meia.
Meus pés continuavam tão inchados que eu mal conseguia calçar os
saltos dez exigidos e estava com um curativo enrolado na cintura no
local onde a fantasia apertara e ralara minha pele. Decidi apostar
que não seria descoberta durante mais algum tempo e expliquei meu
cansaço a Sheralee. Será que não daria para ela encontrar outra?
— Vou tentar — ela disse, aborrecida. — Mas se não conse-
guir, estou contando com você.
Tomei o elevador até o mezanino mais uma vez e caminhei até a
escada em caracol. Descer aquela escadaria, fantasiada, em plena luz
do dia, me pareceu ainda mais surrealista com dúzias de transeuntes
em seu horário de almoço olhando para dentro. Um dos chefes de
seção me aguardava na base da escada.
— Suba e desça outra vez — ele disse, mostrando a multidão
que se juntava na rua. — Refresque os olhos desse pessoal.
De acordo com a bíblia da Coelhinha, desobedecer um chefe de
setor equivalia, automaticamente, a quinze deméritos. Procurei uma
desculpa.
Olhe — eu disse. — Estou atrasada para o encontro com
um cliente Número Um.
— Vá em frente, pequena — ele disse, sorrindo com aprova-
ção— Mexa-se.
90 GLORIA STEINEM

Desci as escadas e caminhei para o fundo do lobby, onde se en-


contrava o Playmate Bar, local do treinamento. Ele estivera escu-
ro e deserto quando eu entrara nele por ocasião de minha primeira
entrevista e a parede por trás do bar reluzia com ampliações de trans-
parências coloridas de Coelhinhas seminuas da revista Playboy.
Dirigi-me à área de serviço, ao fundo do bar, para arrumar uma
bandeja na qual coloquei uma toalhinha de bar, um isqueiro Playboy
e todos os outros itens exigidos pela Escola de Coelhinhas. Minha
Coelhinha Treinadora me entregou suas comandas e me mandou segui-
la enquanto visitava suas mesas. Ao chegar a cada mesa, ela dizia:
"Esta é a Coelhinha Marie e ela é uma Coelhinha em treinamento".
Dois homens me disseram que se eu fizesse tudo o que eles mandas-
sem eu iria bem e que a primeira coisa a fazer seria livrar-me da mal-
humorada Coelhinha Treinadora.
— Não se preocupe com esses imbecis. Passam a tarde inteira
enchendo a cara e se acham muito espertos.
Perguntei se eles não poderiam ser homens da Willmark. Se não
estariam sendo difíceis apenas para testá-la.
— Não seja tola. E fácil identificar os homens da Willmark. Eles
nunca tomam mais que um drinque.
Duas de suas mesas estavam vazias e ela me mandou atender
quem quer que se sentasse nelas. Meus dois primeiros clientes car-
regavam pastas plásticas e usavam buttons de veteranos de guerra nas
lapelas. Aproximei-me deles, cheia de confiança, e embarquei dire-
to no ritual de garçonete.
— Boa tarde, senhores, eu sou sua Coelhinha, Marie — eu dis-
se, e coloquei um guardanapo diante de cada homem ("este proce-
dimento indica ao chefe do setor quais clientes já foram servidos"),
tendo o cuidado de olhar direto para eles ao fazê-lo ("olhe nos olhos
do cliente imediatamente"). — Eu poderia ver seus chaveiros, por
favor?—Um dos clientes me entregou o chaveiro do Coelhinho junto
com a chave de um quarto no Hotel Astor. Eu a devolvi e comecei a
preencher a comanda.
— Bem — ele disse, batendo na mesa, deliciado. — Pelo me-
nos eu tentei.
— E verdade — disse o outro. — Você não pode nos dar seu
endereço mas nada impede que se lembre do nosso.
Enchi os copos de gelo, gritei o pedido de dois Old Fashioneds
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 91

no bar e perguntei como devia colocar o "lixo" necessário nos drinques


a gíria apropriada para enfeites de copo.
Com as mãos, tá pensando o quê? — disse o barman. Peguei
duas rodelas de laranja e cutuquei uma cumbuca já cheia de suco até
encontrar duas cerejas.
Com os drinques equilibrados na bandeja eu me aproximei dos
dois veteranos.
— Você é casada? — perguntou o batedor de mesas. Respondi
que não. — Bem, que importância teria se fosse? Eu também sou
casado! — Enfiando o quadril na mesa, dobrei os joelhos, inclinei o
corpo para trás dando o Mergulho da Coelhinha e coloquei os drinques
direto nos guardanapos. Senti-me como uma idiota.
— Você está se saindo muito bem — minha Coelhinha Treina-
dora sussurrou com doçura e gritou: — Um J & B, uma Coca-Cola
e dois martínis — para o barman.
Atendi outros três grupos, todos homens. Dois disseram "Se você
é minha Coelhinha, eu posso levá-la para casa?" Outro me pergun-
tou se minha foto estava sobre o bar.
Os veteranos me deixaram um dólar de gorjeta. Agradeci e dis-
se que eram meus primeiros fregueses. O batedor de mesa deu um
soco no braço do colega e se dobrou de tanto rir.
— Esta garota — ele disse, ainda às gargalhadas —, é uma
Coelhinha virgem! — Ele secou as lágrimas dos olhos.
Às seis horas devolvi minhas comandas para a Coelhinha Trei-
nadora. Todas as gorjetas das contas pagas com cartão ficariam para
ela, presumivelmente como prêmio pelo meu treinamento. Eu disse
a ela que os veteranos haviam me deixado um dólar.
— Pode ficar — ela disse, magnanimamente. Eu o enfiei no
cofre", como vira as outras Coelhinhas fazer, e subi para me trocar.
Estava tirando o saco plástico de dentro do decote quando a Srta.
Shay entrou na Sala da Coelhinha. Eu jamais a vira aqui. Teriam minhas
credenciais sido descobertas? Era possível que não tivesse sabido do
meu turno de emergência na chapelaria, mas era provável que sou-
besse que eu estaria servindo drinques na noite seguinte, de oito à
meia-noite. Ela se deteve ao chegar ao meu lado.
Continue assim — disse ela em tom de confidência. — Ouvi
dizer que você é uma ótima Coelhinha.
92 GLORIA STEINEM

Decidi perguntar a respeito da "Outra Marie Ochs" que ela


mencionara na primeira entrevista.
— Que outra Marie Ochs?—ela perguntou, sumindo para dentro
do escritório da Mamãe Coelha.
Estou em casa e Sheralee acaba de telefonar avisando que en-
controu outra garota para o turno na chapelaria. Minha sorte conti-
nua firme.

QUINTA, DIA 7

Cheguei à Sala da Coelhinha uma hora mais cedo para ver se conse-
guia descobrir alguma coisa a respeito de minhas irmãs coelhas. O
jornal as descrevera como universitárias, atrizes, artistas e até mes-
mo lingüistas. Perguntei a uma Coelhinha que se sentara a meu lado
sobre as lingüistas. Ela disse que era verdade, que havia umas es-
trangeiras trabalhando na sala VIP. (Conforme eu lera na bíblia,
"VIP são as iniciais de Very Important Playboy, é claro".) Na verdade,
era necessário falar inglês com sotaque estrangeiro para trabalhar
no salão em questão, que se especializava em jantares e ceia da meia-
noite. E as Coelhinhas que trabalhavam lá ganhavam bem?
— Na verdade não. Só cabem cinqüenta pessoas no salão e como
é jantar, o entra e sai é bem menor. E bem melhor servir drinques e
se livrar dos boçais rapidinho. — Então perguntei a respeito das
universitárias.
— Ah, claro. Acho que tem umas três ou quatro que freqüen-
tam aulas durante a semana e trabalham nos fins de semana.
E como é que elas conseguiam trabalhar só nos fins de semanas,
as noites de maior movimento e de melhores gorjetas?
— Escuta aqui, colega, tem gente aqui que pode escolher os
horários que quiser e o resto tem de agüentar uma semana de almo-
ços ou aquela porcaria de chapelaria. Na maioria são as garotas de
Chicago ou alguém que tem prestígio junto à gerência.
Perguntei se isso não seria por estarem trabalhando há mais tempo-
— Claro — ela disse, procurando um lugar para colocar as
orelhinhas em cima do cabelo armado. — Só que tal sistema não
deveria existir. "Vocês são todas tratadas da mesma forma", é isso.
que nos dizem.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 93

perguntei o que ela fizera antes de se tornar Coelhinha.


Nada de mais. Fui modelo um tempo.
E o que ela esperava que ser Coelhinha lhe traria?
Pensei que talvez desse para economizar algum dinheiro para
tirar umas fotos e fazer um book para poder virar modelo de verdade.
Mas depois de três meses fazendo isso aqui, quero mesmo é me ca-
sar. Tem caras para os quais eu nem olharia antigamente que hoje
em dia não me parecem tão ruins assim.
Fui para o outro lado da mesa, onde quatro garotas comiam
rosquinhas e bebiam chocolate ("comer na Sala da Coelhinha... cin-
co deméritos"), e me apresentei como sendo uma Coelhinha nova.
Todas se apresentaram pelo primeiro nome. Elas pareceram satisfei-
tas com a interrupção e me ofereceram uma rosquinha. Perguntei
mais uma vez a respeito das universitárias.
— É, tem mesmo algumas por aí — disse uma delas. — Eu
conheci uma outro dia que está fazendo um curso de fotografia.
Perguntei o que elas haviam feito antes de se tornarem Coelhinhas
e o que gostariam de fazer no futuro. Três delas disseram que gostariam
muito de ser modelo — não de alta-costura e sim para anúncios ou
para confecções. A quarta disse que era casada, que tinha um bebê e
que estava apenas ganhando uns trocados como Coelhinha porque
não tinha treinamento para mais nada. Elas fizeram perguntas a meu
respeito e repeti o que escrevera no formulário de solicitação de empre-
go, um histórico provável porém nada impressionante para uma Coe-
lhinha: que eu trabalhara como garçonete (era verdade, embora durante
a faculdade), que eu dançara em boates e que sonhara em ser baila-
rina profissional um dia (também era verdade, embora eu tenha
precisado trocar algumas datas para poder diminuir a idade) e que
meu trabalho mais recente fora como secretária (não era verdade,
mas era a única coisa para a qual eu conseguira arrumar referências).
- Nossa, você já fez coisa à beça — disse a candidata a modelo
de confecção. — Se você sabe bater à máquina para que diabos quer
ser Coelhinha?
Eu disse a elas que tudo que eu ouvira dizer a respeito do clube
me parecera magnífico. Li para elas o mais recente Playboy Club News:
nossas garotas não abrem mão de salários altos pelo glamour. Uma
Coelhinha ganha facilmente duas vezes o salário semanal de uma
secretária... Sem contar a vantagem a mais que é a possibilidade
94 GLORIA STEINEM

de ser descoberta. Muitas Coelhinhas se transferiram para o ramo


artístico e hoje podem ser vistas em filmes, em shows ou como mo-
delos..." Fez-se um breve silêncio.
— Bem... E verdade — disse uma delas. — Se eles dizem isso
é porque deve ter acontecido com algumas garotas. — Uma outra
disse que uma das Coelhinhas de Chicago saíra na capa da Playboy
há mais ou menos um ano e que estava para sair outra vez logo logo.
— É isso aí — disse a terceira. — Mas ouvi dizer que é só por-
que estão com poucas Coelhinhas e estão tentando recrutar mais.
Eram quase oito da noite, hora de vestir a fantasia laranja bri-
lhante (esperava que fosse mais confortável do que a azul-rei) para
servir drinques na Sala de Estar.
Mais uma vez eu tinha uma Coelhinha Treinadora cujas coman-
das eu usava. Também fiquei com um grupo de mesas só para mim,
já que uma das Coelhinhas Garçonetes faltara.
— Era só o que faltava — comentou a Coelhinha Treinadora.
— Uma garota sofre um acidente de carro e tinha de ser justamente
no meu turno.
Minhas mesas encontravam-se no "Cantinho dos Quadrinhos",
um canto decorado com quadrinhos emoldurados tirados da Playboy.
Como era bem ao fundo do bar, com quatro degraus a serem subi-
dos, era considerada uma área difícil. A técnica da Coelhinha para
carregar bandejas envolvia ter de carregar as bandejinhas redondas
equilibradas lá em cima, na palma da mão esquerda, enquanto olhá-
vamos direto para frente andando de maneira elegante e levemente
rebolativa. O Passo da Coelhinha. Parecia ser muito simples, mas.
depois de uma hora carregando bandejas cheias de cubos de gelo,
garrafas de drinques semiprontos e meia dúzia de drinques de cada
vez, meu braço esquerdo começou a tremer e o sangue parecia que
jamais voltaria às pontas dos dedos.
Além do mais, eu ainda não fora paga. Reclamei para minha
Coelhinha Treinadora mas ela disse que eu não tinha motivos para
reclamar. As Coelhinhas contratadas antes da inauguração do clube,
em dezembro, haviam treinado durante três semanas sem serem pagas.
Realmente aprendi muito. Atendi 22 clientes, derramei dois
drinques (um em mim mesma e um no cliente) e recebi duas canta-
das. Os músicos do bar me ensinaram que existe o "Tema do Playboy >
com a seguinte letra:
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 95

Se o seu amor é um Playboy


Afrouxe as rédeas um pouquinho.
Se os olhos dele vagarem, minha querida,
Seu amado não passa
De uma criaturinha ranzinza
Que se derrete por um pouco de brilho.
Então, se você estiver amarrada,
Lembre-se de que ele é um Playboy
E que a garota que fizer dele um homem caseiro
O terá para sempre.
Fale sempre docemente,
Por mais indiscreto que ele seja
E nunca deixe que a vida perca a leveza.

Uma das muitas tarefas dos homens da Willmark é se certificar


de que este hino seja tocado no começo e no fim de cada show, todas
as noites — tal qual um hino nacional.

SEXTA-FEIRA, DIA 8

Terminei minha primeira noite como Coelhinha Garçonete profis-


sional e minhas atenções estão quase totalmente voltadas para os
meus pés. Doem como dentes podres. Estão tão inchados que não
consigo calçar os tênis. Meu maior medo é de que a curvatura tenha
desabado. Não obstante, lembranças desta noite vão e voltam em
minha mente.
Item. Eu servi todas as mesas do Cantinho dos Quadrinhos, o
dobro de ontem, das sete e meia da noite às quatro da manhã, sem
descanso. Equilibrando bandejas abarrotadas com uma das mãos, eu
ja tinha feito dezesseis viagens de ida e volta ao bar até que perdi as
contas. Três clientes deixaram cair drinques, gelados, nas minhas costas
eu so comi duas azeitonas a noite inteira. Por que será que não
esisti, não me joguei no chão e esperneei ou pedi demissão? Queria
saber.
Item. O barman da Sala de Estar é um artista. Rápido, elegante,
exato e calmo, ele controlou a sala praticamente sozinho. "Na se-
mana passada, incluindo horas extras e bônus, recebi 180 dólares",
96 GLORIA STEINEM

ele me disse. "E olha que eu sou o barman mais bem pago da casa."
Perguntei a ele por que não pedia demissão. "E exatamente o que
vou fazer", ele respondeu.
Item. Os funcionários beliscam comida roubada do bufê dos clientes
em pratos comunitários. Somos uma grande família.
Item. Recebi 29,85 dólares de gorjeta, tudo em notas de um dólar
e moedas. Aumentam a prosperidade mas tornam a fantasia des-
confortável. Perdi dois quilos ontem à noite.

SÁBADO, DIA 9

A curvatura do meu pé não desabou. Calcei galochas (os únicos sa-


patos grandes e largos o bastante para caberem meus pés) e fui ao
calista ("Todas as garotas do Copa são minhas clientes"), que me disse
não haver nada de errado com meus pés, a não ser trabalho demais,
saltos muito altos e cansaço muscular. "Com um trabalho desses",
ele disse, todo contente, "seu pé é bem capaz de aumentar algumas
pontuações."
Trabalhei na Sala de Estar outra vez esta noite. Peguei empres-
tado um par de sapatos três pontuações acima da minha, protegi
minhas costelas com gaze por dentro da fantasia e convenci os auxi-
liares de garçom a me ajudar a carregar as bandejas mais pesadas. Só
assim consegui sobreviver à noite. Mas fui recompensada com as
seguintes informações:

1. Uma Coelhinha que já tenha posado para o pôster central da re-


vista Playboy recebe cinco dólares a mais, por dia, do que as ou-
tras. Ela também é obrigada a se apresentar aos clientes da se-
guinte forma: "Eu sou Sue, Coelhinha da revista Playboy" em ve
de "Eu sou sua Coelhinha, Sue" e precisa autografar o pôster e
questão se o cliente pedir.
2. Com o intuito de apaziguar os ânimos dos nova-iorquinos qu
compraram chaveiros esperando freqüentar um clube privé, Hugh
Hefner declarou que clientes não-associados "devem obter um
passe provisório válido apenas por uma noite e precisam pagar
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 97

no ato do pedido, em espécie". Ao contrário das instruções do Sr.


Hefner, as Coelhinhas são encorajadas a cobrar depois de servirem
os drinques, mas poucas fazem isso. A maioria deixa que os clientes
acumulem a dívida e paguem tudo de uma vez como qualquer
portador de chaveiros. Para dizer a verdade, as Coelhinhas prefe-
rem servir não-sócios por saberem que estes pagarão em espécie
e que a gorjeta das contas pagas com cartão serão compartilha-
das com a casa.
3. Coelhinhas e serventes vivem um relacionamento de amor e ódio.
Um bom servente pode enriquecer uma Coelhinha se ele manti-
ver as mesas limpas para a chegada de novos clientes. Um mau
servente pode roubar as gorjetas em espécie antes que a Coelhinha
a veja e insistir que ela tomou um "cano" do cliente. Assim, uma
Coelhinha poderá passar uma noite inteira bajulando um mole-
que que ela nem sonharia em tratar bem fora do clube. E um
relacionamento complicado, mas íntimo, nos mesmos moldes de
muitas mulheres e seus cabeleireiros, um sabe tudo sobre a vida
do outro.
4. Muitas Coelhinhas acham sacos plásticos perigosos como enchi-
mento porque fazem suar, e conseqüentemente perder peso quando
mais se precisa de energia. Dão preferência a lenços de papel e
algodão.
5. A forma de conseguir uma comidinha, mesmo sendo Coelhinha
Garçonete, é afaná-la do bufê dos clientes (sob pena de demissão
instantânea, é o que diz um memorando recente) e escondê-la na
despensa. Assim você belisca um pouco cada vez que passar. Quase
ninguém vai à sala dos funcionários para comer ensopado.

DOMINGO, DIA 10

Chegueia casa Às quatro da manhã e tinha de estar de volta ao clu-


be, fantasiada, às onze para posar para fotos de publicidade. A prin-
cípio fiquei furiosa (são 25 deméritos para quem faltar), mas uma
vez que já levantara e saíra de casa, fiquei contente. Era a primeira
vez em quase três dias que eu via a luz do dia.
O fotógrafo da Playboy estava ajeitando uma garota na imensa e
curvilínea escadaria ao fundo do lobby. Cada uma de nós tirava uma
98 GLORIA STEINEM

série de fotos ridículas: sentada nas escadas com as pernas esticadas,


em pé com a mão no corrimão ("chegue o corpo para frente um
pouquinho, querida, só da cintura para cima"), e descendo as esca-
das com a bandeja lá no alto.
Perguntei ao fotógrafo para que serviriam as fotos. "Não sei",
respondeu. "Ordens de Chicago." Por força do hábito, as Coelhinhas
novas tinham de assinar uma cessão de direitos de todas as fotos.
Perguntei se nossas fotos acabariam em alguma promoção do clube
ou na própria revista. Ninguém sabia dizer.
Uma voz me chamou das profundezas do Bar. Era a Srta. Shay,
sentada à mesma mesa na qual eu a vira da primeira vez aguardan-
do para entrevistar candidatas a Coelhinha. Os fotógrafos pediram
para colocarem música. "Marie tocará para nós", ela disse. "Marie
toca piano muito bem, não é, querida?" Não, respondi, não sei tocar
nada. "Mas eu tenho certeza de que você me disse que tocava piano
durante a entrevista", ela disse com firmeza.
O esquecimento de minhas credenciais, a outra Marie Ochs e
agora a história do piano. Pensei nas diversas vezes em que eu vira a
aparentemente eficiente Srta. Shay chamar serventes pelo nome er-
rado. Pela primeira vez eu tive a certeza de que, a não ser que al-
guém me reconhecesse, eu trabalharia no Playboy Club o tempo que
quisesse.
Lá fora o sol brilhava e me perguntei quanto tempo eu gostaria
de ficar. Já que Marie não seria descoberta, Marie teria de pôr um
fim à sua própria carreira. De acordo com os horários desta semana,
eu teria de trabalhar no almoço, quatro horas por dia, e só. Não era
incumbência das mais invejadas mas me daria mais tempo para con-
versar com as Coelhinhas.
Decidi que Marie viveria até sexta-feira.

SEGUNDA, DIA 11

Um artigo do Metropolitan Daily foi o assunto do dia na Sala da Coe-


lhinha. Duas ex-Coelhinhas estão processando o clube devido a gorjetas
atrasadas e "informação enganosa" em relação à quantia que um
Coelhinha pode ganhar. Uma delas disse ao repórter que ela recebe-
ra cinco ameaças de morte, imediatamente após entrar com a ação.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 99

Eu conheci Phyllis Sands — disse uma Coelhinha. — Mas


não sei quem é essa Betsy McMillan que recebeu as ameaças. — Ela
olhou bem as fotos das duas. — Elas se certificaram de que as fotos
eram boas para publicação.
— Por que, ela achava que as tais ameaças podiam ser mero
golpe publicitário?
— Ué, e eu lá sei? — ela disse, sacudindo os ombros. — Vai ver
que não disseram a ela que o clube ficaria com metade das gorjetas ou
talvez o salário seja muito mais baixo do que ela esperava. Mas, por
outro lado, talvez ela tenha mandado o namorado fazer ameaças pelo
telefone só para seu nome aparecer no jornal. Vai saber!
Desci até a Sala de Almoço e comecei a pôr a mesa. Das seis outras
Coelhinhas que trabalhavam ali, eu conhecia três: uma Coelhinha
chinesa, uma outra que anunciou em alto e bom som que não preci-
sava encher o decote e a ruiva grandalhona com Voz de bebê que eu
conhecera no primeiro dia, na Sala da Coelhinha. O chefe do setor
dividiu as mesas e nos sentamos na beirada do palco para esperar os
clientes. A Coelhinha sem enchimento comentou que as gorjetas eram
bem melhores em Chicago.
— Os caras são mais burros por lá — ela disse. — Quer dizer,
é mais fácil fazer com que acreditem que você sairia com eles, assim
te dão uma gorjeta maior.
— O clube de Miami também é uma droga — disse Vozinha
de Bebê. — Uma vez nós nos juntamos e avisamos que iríamos em-
bora se não nos pagassem melhor. Eles nos mandaram ir em frente,
contratariam outras garotas.
— Será que não foi um blefe duplo, hein? — comentei.
— E verdade. Ia custar caro para o clube se nós todas nos de-
mitíssemos ao mesmo tempo. Mas eles iam fazer o quê? — disse
uma Coelhinha de cabelos escuros.
— Ah, sei lá. Talvez mandassem buscar Coelhinhas em outros
clubes — disse Vozinha de Bebê. — A gente sempre se dá mal. —
Htavia um piano no meio do palco e ela fingiu que estava tocando
Jazz para a sala toda. — Lá-lá-lá-ri-rá — ela cantarolou.
Uma Coelhinha de cabelos compridos foi até lá e fingiu, com
enorme destreza, que estava fazendo um striptease.
— Me pediram para posar para a revista uma vez — ela con-
tou. - Agora não chamariam mais. Eu emagreci tanto...
100 GLORIA STEINEMI

A Coelhinha de cabelos escuros disse a ela que não tinha impor-


tância porque eles sempre faziam foto-montagem. Ela própria co-
nhecia a garota que fazia os seios. Eu disse que duvidava muito que
fosse verdade, que há limites para o que se pode fazer com airbrush.
— E eles devem usar garotas diferentes — disse a stripper. —.
Os seios que saem na revista são de tamanhos diferentes.
— Eles sã-ããão de tamanhos diferentes — cantou Voz de Bebê,
levantando-se para fazer seu próprio striptease. Ela tirou a gravata-
borboleta, a gola e os punhos e os jogou para fora do palco seguindo
cada movimento com um experiente rebolado.
— O.K., garotas — disse o chefe do setor com a voz gelada. —
Chega. — Três clientes de meia-idade, os primeiros do corre-corre
da hora do almoço, encontravam-se à porta, apertando os olhos para
enxergar na penumbra do salão.
— Pronto — disse Vozinha de Bebê, enojada. — Os babacas
chegaram.
Servir o almoço durante quatro horas não seria o bastante para
reabrir todas as feridas dos meus pés. Mas as pilhas e mais pilhas de
rosbife (é só isso que servimos, e é por isso que o chefe deste setor é
chamado de "O Rei do Rosbife") faziam pesar mais a bandeja do que
os drinques. Os clientes eram todos homens. As esposas e namora-
das que apareciam à noite estavam ausentes nos almoços. Um clien-
te me disse várias vezes que era vice-presidente de uma companhia
de seguros e que me pagaria para servir durante uma festa particu-
lar em seu hotel. Um outro se levantou da cadeira, depois do quarto
martíni, e se pôs a cafungar o meu pescoço. Quando me afastei ele
se zangou de verdade.
— Por que você acha que eu venho aqui? — indagou. — Para
comer rosbife?
Às três, quando a última mesa fora limpa, eu voltei à Sala da
Coelhinha. A chefe de guarda-roupas me parou.
— Minha filha — ela disse —, essa fantasia está enorme eml
você.
Era verdade, eu perdera quatro quilos desde que a vestira pela
primeira vez. Era também verdade que, pela primeira vez, estava
apenas tão desconfortável quanto uma cinta apertada. Ela apertou a
cintura com alfinetes e me mandou tirar a fantasia.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 101

Vai estar cabendo como uma luva quando você chegar para
trabalhar amanhã. Vou ter de apertar cinco centímetros de cada lado.
Eu tirei o Playboy Club News do meu armário e li em voz alta:
"O mundo do Playboy Club é cheio de bons shows, lindas
garotas e playboys que gostam de se divertir. É uma festa contínua.
As alegres Coelhinhas sentem-se como se fossem um dos convida-
dos..."
Minhas colegas da Sala de Almoço começaram a rir.
— E que festão — disse Vozinha de Bebê. — Nem sair com os
clientes se pode.
Perguntei se algum homem da Willmark já tentara pegá-la.
— Nããão — ela respondeu, pensativa. — Mas um cara ofere-
ceu duzentos dólares para uma garota se ela prometesse encontrá-lo
depois do trabalho. E ela aceitou—Vozinha de Bebê disse com des-
prezo. — Ela devia saber que só mesmo um imbecil ou um homem
da Willmark ofereceria dinheiro antes.

TERÇA, DIA 12

Duas das minhas colegas da Escola da Coelhinha, Gloria e a assis-


tente de mágico, juntaram-se a nós na Sala de Almoço. Peguei-me
explicando como servir o rosbife e como convencer os clientes de que
estava malpassado, bem-passado ou ao ponto, embora estivessem
todos, na verdade, idênticos.
Era dia do aniversário de Abraham Lincoln e o movimento esta-
va fraco. Ouvi a Coelhinha sem enchimento explicar que gostava de
homens mais velhos porque "eles te dão dinheiro".
— Saí uma vez com um velho que conheci no clube e arrumei
mais duas Coelhinhas para os amigos dele. Sabe que ele me deu um
cheque de cem dólares só porque foi com a minha cara?
A Coelhinha sem enchimento explicou também que um dos
executivos da casa lhe havia dado setecentos dólares para comprar
um vestido.
- Eu tinha quinhentos dólares e comprei um vestido de 1.200
-e ele me levou a uma festa vestindo o tal vestido.
Uma Coelhinha de cabelos escuros disse que conhecia o mesmo
cara de Chicago.
102 GLORIA STEINEM

— Você e todo mundo — disse a Coelhinha sem enchimento.


— Se você fosse contar todas as Coelhinhas que saíram com o cara...
A Coelhinha de cabelos escuros estava pensativa.
— Nós tivemos um caso muito louco durante três semanas. Foi
loucura mesmo. Eu deveria saber que não ia dar em nada...
— Todas as garotas acham que vai dar em alguma coisa — disse
a Coelhinha sem enchimento em tom de consolo. — Mas nunca dá.
— Conversaram sobre o apartamento imenso do executivo, sobre
sua fortuna e impulsos românticos. Ele me pareceu um extermina-
dor.
Sem Enchimento se levantou para servir um cliente e a Coelhinha
de cabelos escuros olhou para ela com desdém.
— Duvido que ele tenha dado setecentos dólares para ela -
declarou com firmeza. — Ninguém arranca um centavo dele.

QUARTA, DIA 13

Completei a lista de enchimentos de decotes:

1. Lenços de papel
2. Sacos plásticos
3. Algodão
4. Rabos de Coelhinhas
5. Espuma
6. Lã de carneiro
7. Absorventes íntimos cortados ao meio
8. Lenços de seda
9. Meias de ginástica

Descobri também que não só podemos sair com clientes Núme-


ro Um como com qualquer um a quem estes nos apresentem. Pode-
mos sair também com quem quer que conheçamos nas festas de Vic
Lownes. Mas, no entanto, há limites para esta pesquisa.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 103

SEXTA, DIA 15

A Sala de Almoço estava cheia de homens bebendo sem parar por-


que é sexta-feira. Carreguei pratos de rosbife e a alternativa especial
de sexta-feira: truta. Coelhinha Gloria estava de pé, com uma ban-
deja cheia de xícaras esperando que a cafeteira fosse enchida.
— Sabe o que nós somos? — perguntou, indignada. — Garço-
netesl
Sugeri que nos juntássemos ao sindicato.
— Sindicatos só servem para tirar o seu dinheiro e não deixar
que você trabalhe dois turnos — disse Vozinha de Bebê.
A assistente de mágico estava servindo uma mesa ao lado da minha
e concordava, sinceramente, com um cliente que dizia que nossas
fantasias eram "tão inteligentes e realçam tão bem as formas femi-
ninas". Ela tentava tanto fazer as coisas com "graça", como manda-
va a bíblia, que não era nada eficiente como garçonete. Ao nos pro-
gramar com o que era, nas palavras de uma outra Coelhinha, "um
glamourzinho de merda", o clube muitas vezes se prejudicava.
Foi meu último dia de almoços e isso me deixava muito conten-
te. De alguma forma, os puxões nos rabinhos, as cantadas, os belis-
cões e os olhos esbugalhados eram bem mais deprimentes quando o
sol brilhava além das paredes daquela sala sem janelas.
Encontrei Sheralee em seu escritório e contei a ela a história que
eu escolhera porque deixava as portas abertas caso eu precisasse de
mais informações: minha mãe estava doente e eu precisava passar
algum tempo em casa.
— Justo agora que estamos com uma falta enorme de Coelhinhas!
—ela exclamou, consternada, e perguntou quando eu estaria de volta.
Eu disse que não sabia, mas que ligaria. Ela me entregou o salário
da primeira semana: 35,90 dólares pelas duas noites na Sala de Es-
tar. Perguntei a respeito da primeira noite na chapelaria.
— O treinamento não é remunerado — ela disse. Protestei que
não fora treinamento. — Vou falar com o contador — concordou,
sem muita convicção.
104 GLORIA STEINEM

QUINTA, DIA 21

Quase uma semana se passou. Liguei para Sheralee para dizer que
voltara para buscar algumas roupas mas que precisava pedir demis-
são. Ela me implorou para trabalhar no bar mais uma noite. Por al-
gum motivo (será que eu aprenderia alguma coisa nova?) eu me peguei
aceitando.

SEXTA, DIA 22

Mas foi exatamente a mesma coisa:

CHEFE DE SETOR: "AS suas mesas são aquelas: quatro de quatro e três
de dois".
CLIENTE: "Se você é minha Coelhinha, posso levá-la para casa?"
BARMAN: "Eles não param de mudar o tamanho das doses: sobe, desce,
desce e sobe. É de enlouquecer".
COELHINHA: "Trabalhei na festa.privé da LoLo Cola e ganhei seis latas
de brinde. Grande coisa".
CLIENTE: "Estou no Hotel New Yorker. Quarto 625. Você vai lembrar?"
HOMEM: "Se mocinhas fossem grama, o que seriam os mocinhos?"
COELHINHA: "Deixa eu ver... Cortadores de grama?"
HOMEM: "Não. Gafanhotos!"

Aviso na parede da despensa:


ESTE É O SEU LAR. NÃO JOGUE BORRA DE CAFÉ NA PIA.

SERVENTE: "Tem dinheiro saindo pelos lados da sua fantasia, meu anjo",
COELHINHA: "Ele é mesmo um cavalheiro. Trata você bem, quer tenha
dormido com ele ou não".

Eram quatro da manhã quando entrei na Sala da Coelhinha para


tirar a fantasia. Uma loura bonita juntava duas cadeiras para dor-
mir. Ela prometera substituir outra garota no almoço, depois de oito
horas no bar, e não teria tempo de ir até em casa. Perguntei por que
ela fazia uma coisa dessas.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 105

— Bem, a grana não é ruim. Ganhei duzentos dólares na se-


mana passada.
Finalmente eu encontrara alguém que ganhava o mínimo do salário
prometido. Mas para isso ela trabalhava sem parar.
No escritório de Sheralee havia um quadro com uma lista das
cidades onde seriam inaugurados os próximos clubes (Pittsburgh,
Boston, Dallas e Washington) e um papel amarelo intitulado O QUE
É UMA COELHINHA?
"Uma Coelhinha do clube", dizia o texto, "assim como a Coelhinha
da revista é... linda, atraente... Nós faremos o que estiver em nosso
poder para transformar você, Coelhinha, na garota mais invejada da
América por trabalhar no lugar mais glamouroso e excitante do
mundo."
Entreguei minha fantasia pela última vez.
— Tchauzinho, querida — despediu-se a loura. — Te vejo nos
quadrinhos.

— 1963

PÓS-ESCRITO

Efeitos deste artigo a curto prazo:

1. Recebi uma longa carta de Hugh Hefner dizendo que "a his-
tória do exame médico ao qual as garotas se submetiam an-
tes de começar a trabalhar me levaram a eliminá-lo". (Ele
continuava a achar que era "uma boa idéia", e observou que
não era a primeira vez que o exame era "mal-interpretado e
transformado em algo duvidoso".) Ele incluiu também os
primeiros quatro mandamentos de sua "Filosofia do Playboy".
Durante grande parte da carta de três páginas, no entanto,
ele insistiu em que não se importara nem um pouco com o
artigo.
2. Uma ação judicial, por calúnia e difamação, no valor de um
milhão de dólares foi movida contra mim e contra um jornal-
zinho de Nova York, hoje extinto, que comentara meu arti-
106 GLORIA STEINEM

go e o fato de o gerente do clube de Nova York ter sido acu-


sado de manter claras relações com a Máfia. Embora tais ale-
gações não tivessem saído do meu artigo, incluíram-me no
processo como forma de me incomodar. Passei muitas horas
desagradáveis depondo e sendo ameaçada com punições. Fi-
nalmente, o jornal fez um acordo sem me mencionar. Ou-
tros jornalistas me contaram que este tipo de ação, com ou
sem base na verdade, era uma forma usada com freqüência
para desencorajar ou punir jornalistas.
3. Servi de testemunha para a Divisão de Bebidas Alcoólicas do
estado de Nova York para identificar as instruções escritas
que me foram passadas como Coelhinha para que servissem
de prova num processo contra o Playboy Club por ter um
alvará de funcionamento como bar público embora se anun-
ciasse na imprensa como clube privé. Isto se relacionava ao
fato do Playboy Club ter subornado autoridades para obter
o alvará para a venda de bebidas alcoólicas e em seguida ter
usado as provas deste suborno contra as mesmas autorida-
des. A Divisão de Bebidas Alcoólicas do estado de Nova York
contra-atacou com o processo do público versus privé no qual
eu servi de testemunha. Os advogados me disseram que ou-
tras Coelhinhas haviam sido procuradas mas tiveram medo
de testemunhar, até mesmo tendo apenas que identificar as
instruções escritas nas quais nos instruíam a ressaltar a natu-
reza privada e exclusiva do clube. Eu assistira a tantos julga- i
mentos em filmes nos quais a justiça vencia no final que con-
cordei. Depois do advogado do Playboy Club ter passado um
tempo considerável tentando provar que eu era mentirosa,
uma mulher de moral duvidosa, comecei a entender por que
as outras Coelhinhas haviam se recusado a testemunhar. No
final, o Playboy Club manteve o alvará.
4. Muitas semanas de ligações obscenas e ameaçadoras feitas por
um homem com grande conhecimento interno do Playboy
Club.
5. O súbito desaparecimento de matérias jornalísticas sérias porque I
eu me tornara uma Coelhinha — o motivo não tinha a me-
nor importância.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 107

Alguns dos efeitos a longo prazo:

1. Meus pés aumentaram uma pontuação devido aos saltos al-


tos e às horas seguidas carregando bandejas pesadas.
2. A satisfação de saber, vinte anos depois, que o estado de Nova
Jersey decidira que a Playboy Enterprises não estava apta a
operar um cassino em Atlantic City devido ao fato de have-
rem subornado autoridades para obter um alvará para servir
bebidas alcoólicas. Tal decisão perdurará até que a Playboy
Enterprises deixe de pertencer ao Sr. Hugh Hefner.
3. A revista Playboy continua a publicar uma foto minha, como
Coelhinha, no meio de fotos ainda mais pornográficas de outras
Coelhinhas. A versão de 1983 era que meu artigo "aumen-
tara o número de candidatas a Coelhinha". A versão de 1984
trazia uma foto tirada num jantar quando eu levantei os bra-
ços e meu vestido de noite escorregou, revelando parte de
meu seio. Tratava-se de um jantar beneficente para a Funda-
ção Ms. para Mulheres e também meu aniversário de cin-
qüenta anos. Nenhuma outra publicação usou essa foto. Mas
a Playboy não esquece jamais.
4. Trinta anos de ocasionais telefonemas de Coelhinhas de on-
tem e de hoje com histórias sobre as condições de trabalho e
as exigências sexuais sofridas. Nos primeiros anos, as Coelhinhas
se impressionavam com o fato de eu ter usado meu próprio
nome no artigo. Uma delas disse ter sido ameaçada "com ácido
atirado na cara" por ter reclamado das Coelhinhas serem usadas
sexualmente. Outra citou ameaça idêntica por ter sugerido
que as Coelhinhas se sindicalizassem. Todas ficaram surpre-
sas de encontrar meu nome no catálogo telefônico. Even-
tualmente, precisei trocar o número e fazer com que não cons-
tasse mais do catálogo.
5. Em 1984, foi feita uma dramatização deste artigo para a te-
levisão, estrelando Kirstie Alley, então uma atriz desconhe-
cida, no meu papel como repórter. Tinha um título horren-
do "A Bunny's Tale" (a frase, falada, tem duplo sentido: "His-
tória de uma Coelhinha" ou "O Rabo de uma Coelhinha"),
mas o filme era bom. Sua qualidade deveu-se, principalmente,
ao fato de a diretora Karen Arthur ter reunido as mulheres
108 GLORIA STEINEM

não só para ensaiar como também para se conhecerem —


algo praticamente inexistente na televisão. Uma antiga
Coelhinha do Chicago Playboy Mansion ofereceu-se para ser
diretora técnica. Ela vira muitas jovens serem destruídas por
drogas e queria ajudar-nos a mostrar a realidade dos basti-
dores da vida destas mulheres. Mesmo dizendo estar rece-
bendo ameaças pelo telefone, ela ficou no set: uma réplica exata
do Playboy Club de Nova York, construído pelos esboços do
arquiteto responsável. Dizem que Hugh Hefner usou suas
influências na televisão para pressionar a rede ABC a não ir
adiante com a produção do filme. Mas o mesmo foi exibido e
passou na ABC durante quatro anos e é reprisado até hoje
no canal Lifetime. No ano passado uma moça que trabalha
num café perto de minha casa me contou que o filme signi-
ficara muito para ela. Seu namorado também o assistira e
finalmente compreendera o que ela passava como garçone-
te. Isso significou muito para mim.
Me dar conta de que toda mulher é uma Coelhinha. Depois
que o feminismo entrou em minha vida, parei de me arre-
pender por ter escrito este artigo. Graças à versão para tele-
visão, tive o imenso prazer de me relacionar com mulheres
que talvez não leriam um livro ou uma revista feminista ma
que reagiram positivamente às raras condições de trabalho
razoáveis e a um grupo de mulheres que se apoiam umas i
outras.

1995
Em Campanha

Os trechos que se seguem, editados deforma a manter ordem cronológica, fo-


ram tirados de artigos sobre George McGovern, Eugene McCartby, Martin
Luther King Jr. (com a co-autoria de Lloyd Weaver),John Lindsay, Nelson
Rockfeller, Robert Kennedy e Richard Nixon. Ao escrever estes artigos, eu
jamais imaginaria que políticas aparentemente transitórias teriam impacto
tão permanente.

JULHO, 1965

Estou no aeroporto de Boston aguardando uma carona para Vermont


e tenho à minha frente alguns dias como espectadora de interessantes
conversas políticas. O Professor John Kenneth Galbraith e família ti-
veram a gentileza de convidar a mim, uma jornalista nova e pouco
conhecida, para participar de uma reunião anual de fim de semana
em sua fazenda, em Vermont. Passei as últimas semanas ansiosa pela
ocasião.
Examino os passageiros que desembarcam do vôo, vindos de
Washington, DC, mas não vejo ninguém que talvez seja o desco-
nhecido escolhido pelos Galbraith para alugar o carro que nos leva-
ra a Vermont — o senador democrata de Dakota do Sul. Há apenas
um homem alto, magro e meio encurvado que vasculha, ele tam-
bém, a multidão. Pelo menos ele levanta a vista de vez em quando
das pastas que retira de uma maleta velha e estufada.
O homem caminha em minha direção. É mais jovem do que
parecera de longe. O terno amarrotado e grande demais parece ter
sido comprado por catálogo, via correio, e o delata, claramente, como
um homem que não dá a menor bola para roupas.
— Olá, sinto não tê-la visto antes — ele disse, pronunciando
sílabas de maneira lenta e arrastada. — Meu nome é George
McGovern.
110 GLORIA STEINEM

Nada de "senador", nada de coisa alguma. Estou um pouquinho


decepcionada. Não que eu tenha conhecido muitos senadores na vida
mas este aqui, definitivamente, não possui o physique du role. Além
do mais, ele tem uma dificuldade enorme em localizar o balcão da
locadora de carros e acaba me fazendo sentir o mais bem viajado e
eficiente dos seres se comparada a ele.
Já no carro, aos poucos vou esquecendo que ele não possui estilo
e passo a prestar atenção ao que diz. A viagem é longa, mas o tempo
voa: três horas de um despretensioso bate-papo político no qual está
pressuposto que eu sou um ser humano no mesmo nível que ele.
Assim, ele me permite participar e aprender alguma coisa.
De modo geral, McGovern conversa sobre a atual estratégia do
senado para falar de paz e de acordos, na força histórica de Ho Chi
Minh, nas intenções que o Presidente Kennedy tivera em relação à
política externa, antes de sua morte, e de outras influências na guer-
ra do Vietnã. Mas ele também me dá cuidadosos conselhos sobre
que médico consultar a respeito de um problema de coluna que vai
e volta, sente imensamente que eu não vá conhecer a esposa e suas
filhas por estarem de férias em Dakota do Sul e repete várias anedo-
tas galbraithianas, de verões passados, com claro deleite. Quer fale
sobre os senadores afetados pelo alcoolismo ("a doença política", se-
gundo McGovern) ou suas próprias opiniões sobre diversos líderes
nacionais, ele não demonstra ser uma pessoa desconfiada e pouco
franca, o que eu sempre espero de políticos.
Ele também dirige em alta velocidade e falta de atenção enquanto
fala, e me incumbe da difícil tarefa de decifrar os mapas das estradas
secundárias de Vermont. Para minha surpresa, eu li os tais mapas
corretamente, pela primeira vez na vida, um feito que devo, em parte,
à confiança depositada em mim. Também ofereci algumas teorias
políticas pessoais e fico cada vez mais impressionada com o tal homem.
Como ele não é opressivo, como não usa o estilo "líder", ele me per-
mite, e provavelmente a outros, ouvi-lo e segui-lo com respeito.
No entanto, voltarei ao papel de ouvinte assim que o seminário
de astros políticos começar. Além de Galbraith e Arhtur Schlesinger
Jr., há outros estudiosos de Harvard e do governo Kennedy, além de
uma variedade de vizinhos que aparecem para filar uma ou outra
refeição. McGovern é a única outra pessoa que fica igualmente con-
tente ouvindo ou expondo suas teorias. Ele parece ser um estranho
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 111

respeitado que se diverte com as batalhas retóricas deste sofisticado


grupo embora não deseje juntar-se a ele.
Somente quando entramos no assunto recrutamento para guerras
é que eu, a mais jovem do grupo por muitos anos, tenho coragem de
me expor. Digo que acho que um maciço movimento de resistência
ao recrutamento está prestes a começar. Pela primeira vez, tornou-
se respeitável e até mesmo digno de admiração que um jovem se
case, finja ter a saúde delicada ou ser homossexual, enfim fazer qual-
quer coisa para evitar matar e ser morto nesta guerra imoral.
Em apuros, tentei documentar o que dizia. Em troca, ouvem-
me com atenção e tolerância. Alguns até sorriem. Certamente, o grupo
inteiro concordaria que esse movimento de resistência ao recruta-
mento militar é de fato interessante mas que haverá de se limitar
aos sofisticados grupos pacifistas, como os de Nova York. Não era
provável que se tornasse um movimento em massa.
Foi a reação de todos, menos de McGovern.
— É verdade, vai mesmo acontecer — ele disse com tristeza.
— Sinto isso no país inteiro. Os garotos estão prontos para pagar o
preço da resistência. Eles simplesmente não aceitarão esta guerra como
aceitaram as outras, ou mesmo a Coréia.
No domingo ele acrescenta o assunto a um discurso que está
escrevendo e mostra para o grupo, pedindo críticas. Eu o leio e me
surpreendo com o ataque direto e irado à política de Johnson em
relação ao Vietnã. Assustada por ele, sugiro que se proteja explican-
do a falácia da teoria do Efeito Dominó: o argumento de que o Vietnã
comunista dará início a uma inevitável corrente de quedas de gover-
nos. O discurso será, sem dúvida, usado contra ele.
Ele me ouve com atenção e em seguida diz que não poderá lançar
mão de tanta cautela. O discurso será feito com sua ira intacta. Embora
eu tenha sido escalada no papel da nova-iorquina radical, suspeita
de queimar a bandeira nacional em praça pública, por alguns dos
convidados, McGovern se revelou uma pessoa menos cautelosa do
que eu. Mais tarde, quando pesquisei seu registro de votos no senado,
descobri por que ele está tão acostumado a estar na vanguarda. Em
1963, na companhia do amigo e aliado político Jack Kennedy, ele
medicou seu primeiro discurso no senado para avisar à casa que o Vietnã
era um erro dos mais trágicos e que "nos perseguirá por cada canto
deste globo revolucionário". Em 1964, enquanto outros políticos ainda
112 GLORIA STEINEM

lamentavam "o problema do negro", McGovern, na época em seu


primeiro mandato como senador, condenava "o racismo do branco".
A carona de volta ao aeroporto de Boston se atrasa. McGovern
esqueceu de desligar a chave do carro alugado e a bateria arriou.
Galbraith usa seu carro para empurrar o alugado por quilômetros e
mais quilômetros de estradas de terra até a garagem mais próxima.
O senador parece envergonhado.
Começo a compreender que ele possui o mesmo problema que
eu. Ele é ótimo em situações de emergência mas péssimo com coisas
do dia-a-dia.
Ao pegarmos a estrada de volta para Boston, ele conversa um
pouquinho do amadurecimento resultante de se forçar a penetrar
campos por ele desconhecidos. Ele acredita que ainda estaria em alguma
cidadezinha do interior da Dakota do Sul, por exemplo, se sua timi-
dez não o tivesse levado a competir nos debates da escola como um
doloroso antídoto. Eventualmente, sua habilidade em apresentar um
argumento convincente encheu o garoto quieto e franzino de con-
fiança. (Um dos únicos debates que ele perdeu foi para Eleanor
Stegeberg, com quem se casou posteriormente. Ela crescera tendo
um fazendeiro muito político como pai e estava acostumada a deba-
ter na mesa do jantar.) Ele "morria de medo de voar", então se obri-
gou a tirar um breve. Aliviado, pensou que jamais teria de pilotar
outra vez, mas o fato de ter o breve o tornou candidato a piloto de
bombardeiro durante a Segunda Guerra Mundial.
— Venci o medo de voar mas ficava apavorado a cada missão
de bombardeio. O homem que não admite seus medos é um tolo.
Eu não o faria outra vez, mas aprendi minha lição a respeito da guerra.
Hoje entendo que os homens que mais a amam são aqueles que ja-
mais lutaram.
Teimoso, tenaz, persistente. A maneira de tentar fazer o carro
pegar ou de perseguir uma questão política era, provavelmente, tão
característica como a forma com que reagiu ao medo de voar ou de
falar em público. Por mais lento ou hesitante que parecesse, ele ja-
mais desistia.
Despedi-me e lhe agradeci pela carona. Ao se afastar, no aeroporto,
parece um passageiro comum, cansado como qualquer outro. Mas
eu sei que em sua mente há raiva e senso histórico. Eu me pergunto
como este homem despretensioso e honesto tornou-se político.
2ytEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 113

SETEMBRO DE 1967

Aj Lowenstein e outros da campanha de Dump Johnson incluíram


o nome de McGovern na lista dos que poderiam entrar nas eleições
primárias para desafiar a política de LBJ em relação ao Vietnã. Al
chegou a lhe perguntar mas, aparentemente, a conservadora equipe
de McGovern na Dakota do Sul era completamente contra. (Um
deles anunciou incrédulo: "George, tem um judeu de Nova York que
quer que você se candidate à presidência".)
No final, McGovern decidiu que a preocupação de sua equipe
em relação à sua difícil reeleição era acertada. Além disso, ele acre-
ditava que o verdadeiro desafio a ser enfrentado por Lyndon Johnson
ainda era Bobby Kennedy. Creio que ele tenha mandado Al conver-
sar com o Senador Eugene McCarthy de Minnesota, também incluído
na lista. Ele não estava prestes a tentar uma reeleição e estava enfu-
recido o bastante com o presidente (que o levara a crer que seria seu
vice-presidente para em seguida escolher Humphrey) para se delei-
tar com a idéia de envergonhar Johnson em Nova Hampshire.
Além disso, McCarthy não morria de amores pelos Kennedy por
considerá-los "maus católicos" e não se importava se Robert Kennedy
era ou não o adversário mais lógico. Pena que McGovern recusou.
Teria sido um breve agito, mas talvez o país tivesse se dado conta de
quem era Robert Kennedy, descrito como "o único homem decente
do senado". Hoje ele é a obscuridade em pessoa.

ABRIL DE 1968

As cortinas se abriram às 19:15 horas. Assim, o prefeito John Lindsay


não ouviu o primeiro boletim e não soube que Martin Luther King
tora baleado. As oito e meia, no Alvin Theatre, no meio de um nú-
mero musical chamado Spring in the City, um detetive negro ouviu o
Segundo boletim e se embrenhou pelas fileiras de cadeiras.
Não era a primeira vez que Ernest Latty, um policial à paisana,
que servia de assistente e guarda-costas, levava à atenção do prefei-
to alguma situação de emergência no meio de uma peça de teatro,
de um discurso público ou de uma noite de sono, mas havia uma
urgência toda especial em seu rosto quando se inclinou por cima de
114 GLORIA STEINEM

Walter e Jean Kerr, sentados no corredor, para entregar um bilhete


para o Prefeito, pedindo que deixasse o teatro. Lindsay se voltou para
a esposa e ela fez sinal para que partisse, que ela ficaria. Boa idéia,
ele pensou; era uma importante estréia para o ator Tom Bosley, um velho
amigo, e não seria de bom-tom se ambos se retirassem.
Mas todos os pensamentos relacionados a musicais e estréias
deixaram sua mente quando ele leu sobre o assassinato de King,
compreendeu a enormidade do fato e, imediatamente, começou a
sentir a perda. Ele pensou: É assombroso: não é verdade. Tal qual Kennedy.
Ele pensou: Uma reação impensada, em todo o país. Ele pensou: E aqui
também.
Queria ir ao Harlem, disso tinha certeza. Alguns tipos de arrua-
ças — em virtude do alto número de ratos, da coleta de lixo, recla-
mações sobre o sistema de previdência social, por exemplo — co-
meçavam em guetos mais jovens e mais voláteis tais como Brownsville
ou Bedford-Stuyvesant e se espalhavam para o Harlem por simples
contágio. Mas este, o prefeito sabia, nasceria no coração do Harlem,
a mais antiga e politicamente sensível concentração de líderes ne-
gros de todo o país. Se acontecesse. 'Além do mais", ele disse aos
assistentes, amargamente, "alguém precisa ir lá. Alguém branco precisa
encarar aquela emoção toda de frente e dizer que sentimos muito."
A viagem transcorreu em silêncio. O aroma doce da primavera
tornava o silêncio das ruas ainda mais sinistro. Na delegacia de po-
lícia, no centro do Harlem, Lindsay recebeu um boletim da inteli-
gência dizendo que a área estava "esquentando" e deixou o carro com
um preocupadíssimo Dave Garth atrás do volante na Eighth Avenue
com 125th Street, onde o povo começava a se juntar. Ele começou a
conversar com as pessoas, duas em duas, de três em três, a apresen-
tar suas condolências, dirigindo-se aos poucos para a Seventh Avenue
para que uma multidão não se formasse.
As lágrimas jorravam pelos rostos das mulheres. Grupos se jun-
tavam silenciosamente do lado das lojas de discos, onde os alto-fa-
lantes noticiavam a violência em outras cidades ou as palavras gra-
vadas do próprio Martin Luther King, de vez em quando abafadas
pelo som de sirenes — um incêndio começara há poucas quadras
dali — ou pelo staccato de ligações policiais de uma patrulha estacio-
nada próximo dali.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 115

Numa faculdade da zona residencial da cidade algumas centenas de


estudantes assistiam a um show de dança e música afro-americana
quando alguém adentrou o auditório e anunciou que o Dr. King estava
morto.
Ao deixarem o auditório no meio do show, os quase duzentos
estudantes, brancos e negros de mãos dadas, marcharam pela Convent
Avenue até chegar à 125th Street e alcançarem Lindsay, que lhes
pediu para dispersarem.
— Nós paramos — contou uma participante da marcha —, mas
outras pessoas nos haviam seguido, sabe, e então aquilo tudo come-
çou.
"Aquilo tudo" eram os saques esporádicos, as pedras atiradas e
os cerca de cinqüenta incêndios noticiados naquela noite. A jovem
estudante ficava cada vez mais chocada e confusa à medida que a
marcha ia entrando num mundo iluminado pelas luzes vermelhas
das radiopatrulhas, da fumaça que se espalhava, da sirene dos cami-
nhões de bombeiros.
— Ele não concordava com a violência — ela disse a respeito
de King. — Não é certo que estejam fazendo isto.
Como tantos outros, estes andarilhos eram fruto da Revolução
Black Power. Seus heróis eram Stokely Carmichael, Malcolm X e
LeRoi Jones. Num mundo estudantil povoado por Camus, Fanon e
Malraux, Martin Luther King parecia um substituto débil para a
militância. Não obstante, o sonho de King era maior do que o so-
nho dos pais da revolução.
— Para mim chega — disse um rapaz bem vestido. — Eles são
capazes de fazer uma coisa dessas com um homem como King... com
um homem como King.
Para os líderes, os heróis do ativismo, o dilema era bem pior. Em
seus meios mais íntimos, a grande maioria, até mesmo Rap Brown,
admitia que esperaram, do fundo do coração, que King estivesse certo.
— Agora—explicou o autor Addison Gayle, um militante negro
—, todos nós sentimos medo. Passamos a ter de acreditar em nossa
Própria retórica.

A uma da manhã de sexta-feira, lixo e cacos de vidro sujavam as


principais ruas da cidade mas grande parte da multidão de duas horas
atrás havia dispersado. Não houve um distúrbio de verdade. Até então.
116 GLORIA STEINEM

Em Gracie Mansion, Lindsay ordenou que um turno extra de


garis estivesse nas ruas, de vassoura em punho, às seis da manhã, de
modo a apagar todos os vestígios da violência da noite anterior. Ele
aprendera, durante dois outros verões "quentes", que os habitantes
das favelas, ao depararem com limpeza e ordem ao acordarem, fi-
cam mais propensos a manter as coisas desta forma. (A conseqüên-
cia normal da maioria dos distúrbios era a recusa dos garis, e de outros
funcionários da prefeitura, de entrar na área atingida. Em Newark,
estado de Nova Jersey, os manifestantes estavam continuamente ir-
ritados pelo lixo nas ruas, assim como pelos tanques.) A psicologia
do desespero é uma coisa delicada.

Às oito e meia da noite de sexta-feira, Jesse Gray, líder dos inquili-


nos do Harlem, foi para a esquina da 125 th Street com Lenox para
encorajar o povo a aguardar o carro de som e o comício que ele orga-
nizara. Jesse começou:
— O homem branco desembarcou do Mayflower atirando e
matando índios. Hoje, o seu objetivo é exterminar os negros. Há
quatro anos, no dia dezenove de julho de 1964, fizemos esta obser-
vação publicamente... já faz quatro anos e há mais guardas brancos
na rua do que em 1964.
O orador seguinte foi Charles Kenyatta, comandante de espada
em punho de um grupo paramilitar intitulado os Harlem Mau Maus.
Ele usava a retórica de revolução — um líder militante precisava
estar à frente de seus seguidores—mas pedia ao povo que se acalmasse.
— Deixe que eu lhes diga uma coisa—ele começou. — Se esta
cidade precisa ser demolida, que o façamos no centro da cidade. Eu
estou dizendo a todos estes líderes para lutar ou para ficar de bico
calado, porque revoluções não têm líderes.
Livingston Wingate, antigo diretor do Har-You-Act, era o próximo.
— Irmãos e irmãs da colônia do Harlem — começou. — Mais
uma vez eles nos colocaram numa crise, mas nós somos os filhos da
crise. Antes do homem branco assassinar King, eles assassinaram seu
movimento... King apenas lhes acenava com uma Constituição que
lhes pertence... E eles a agarraram, a colocaram nos bolsos das cal-
ças e o crivaram de balas.
A voz dele foi sumindo enquanto a multidão gritava em uníssono:
— Queremos o branquelo! Queremos o branquelo!
I^MÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 117

O comércio estava movimentado no sábado, tanto no Harlem quanto


no Brooklyn. As lojas, carbonizadas, estavam sendo limpas e vigia-
das por guardas de olhar plácido. O Harlem voltava à sua condição
normal, à simples luta diária pela sobrevivência.

No Centro Comunitário para Ação Jovem em Bedford-Stuyvesant,


numa loja saqueada chamada Winston's TV, e onde quer que as pessoas
parassem para conversar, Lindsay proferia sermões instantâneos en-
quanto descia Fulton Street.
— Por que não volta para Gracie Mansion?—berrou um homem
naquilo que foi um dos poucos maus momentos do dia. Na esquina
de Bedford Avenue, Chuck Willis, um funcionário da força-tarefa,
encontrava-se em meio a um dos grupos do prefeito, assim como o
assessor de Lindsay, Barry Gottehrer. Nenhum dos dois viu um senhor
idoso ser atropelado por um carro até que Lindsay correu para ajudá-
lo. Aparentemente, após tantas peregrinações a pé, ele havia adquirido
os olhos de um salva-vidas num domingo de sol. Chamaram uma
ambulância e Lindsay ficou ao lado do velhinho até que ela chegasse.
Em Washington houve gás lacrimogêneo e tiroteios, tropas cer-
cando a Casa Branca e tanques em New Hampshire Avenue. Em
mais de quarenta cidades americanas houve distúrbios sérios o bas-
tante para algum tipo de lei marcial, e a presença de armas normal-
mente reservadas para os campos de batalha. Em Nova York, a maior
de todas as cidades, o lugar onde todos esperavam que algo aconte-
cesse, não eclodiram distúrbios.
O motivo real foram os próprios habitantes dos guetos. O con-
trole face ao terror veio de quem menos se esperava, de grupos ines-
perados. Outros motivos foram menores, mais tênues, porém igual-
mente importantes: as ruas varridas, a tentativa de reconciliação, uma
linha direta 24 horas no ar, a prontidão da força-tarefa do prefeito, e
a eleição de um prefeito que podia e que se dispunha a ir aos bairros
onde vivem os pobres.
Nova York precisará de muita sorte para que todas estas varian-
tes funcionem outra vez.

"A paciência de um povo oprimido não pode durar para sempre."

— Martin Luther King Jr.


118 GLORIA STEINEM

JUNHO, 1968

Quando Robert Kennedy foi baleado, eu assistia à cena de sua vitó-


ria californiana pela televisão. E continuei a assistir. E de repente
não havia mais nada a fazer. Nada mais que valesse a pena. Fiquei
ao lado da tela de vidro a manhã inteira e grande parte do dia se-
guinte, e do dia que se seguiu a este, assistindo a cada passo trágico
se desdobrar em uma tragédia ainda maior. Então revivi a soma fi-
nal de todos estes passos cada vez que sua essência, gravada e edita-
da, era reprisada.
Foi uma vigília quase tão longa quanto a que vivemos na morte
do Presidente Kennedy: nossa versão de cerimônias arcaicas, cujo
conforto se encontra na repetição do ritual e numa espécie de auto-
hipnose. Às vezes, esta proximidade eletrônica ajuda a manter a sa-
nidade do país inteiro. Se tivéssemos apenas ouvido falar daquela
loucura ocorrida em Dallas — privados da dignidade civilizada do
enterro do Presidente Kennedy no qual nos agarrarmos —, talvez
tivéssemos dado início a uma corrente de vinganças mais aterrorizantes
do que as que se seguiram à morte de Lincoln.

Antes das primárias de New Hampshire, tínhamos o hábito de nos


reunir depois do trabalho na imensidão vazia do terceiro andar do
quartel-general da campanha presidencial de McCarthy, em Columbus
Circle. Éramos um grupo de redatores e editores com visões políti-
cas bastante diferentes, em particular no que dizia respeito ao valor
da campanha anti-Vietnã. No entanto, todos tínhamos algo em co-
mum: o desespero.
Suponho que nossa presença ali excluísse, por um lado, repre-
sentantes do establishment, e por outro lado tipos antivoto. No en-
tanto, representávamos quase tudo o que havia: aqueles que odia-
vam Bobby ou aqueles que rezavam para que Bobby se declarasse
candidato, velhos liberais para os quais lutar contra um dos seus
representava uma batalha quixotesca e plena de valentia, os radicais
da Nova Esquerda para os quais trabalhar dentro de um sistema acabava
dando no mesmo, até mesmo uma republicana, que esperava forta-
lecer a causa antiguerra e assim conseguir a nomeação de Nelson
Rockfeller. Nós colocávamos maltrapilhas cadeirinhas de armar em
um círculo, evitávamos discutir nossas diferenças e nos concentra-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 119

vamos na esperança mútua de transformar as eleições primárias para


presidente numa vitrina para a campanha anti-Vietnã.
O mais estranho era que nenhum dos presentes às reuniões de
brainstorming da campanha presidencial de McCarthy era, na verda-
de, a favor de McCarthy. Sabíamos que ele fazia afirmações cautelo-
sas porém exatas a respeito da guerra. Sabíamos, pelo seu registro
de votos no Senado, tratar-se de um homem decente, mas não de
um revolucionário. E, acima de tudo, sabíamos que estava disposto
a se candidatar para as primárias de New Hampshire. A alternativa
era um presidente que não tinha palavra e cujo ego, de tamanho
considerável, parecia atrelado a um mecanismo de "busca e destrui-
ção". McCarthy podia não ser o melhor, mas era claramente melhor.
Então decidimos gostar dele e assim foi.

• Em janeiro de 1966, ele começara a discursar, corajosamen-


te, contra o envolvimento americano no Vietnã. (E claro que
Galbraith já começara a aconselhar o Presidente Kennedy a
este respeito em 1962 e que McGovern começara a criticar
nossa presença no Vietnã no Senado em 1963 — mas ne-
nhum dos dois topara o desafio de se candidatar em New
Hampshire.)

• Ele foi um crítico precoce e lúcido do complexo militar-in-


dustrial. (Mesmo assim destinou verbas para o Vietnã, assim
como quase todo mundo. Votou também a favor da defesa
civil e do Conselho de Controle a Atividades Subversivas e
para o Conselho Nacional para a Promoção de Prática com
Rifle, assim como todos os outros senadores.)

Ele era um intelectual, um professor que escrevia livros e os


próprios discursos, um poeta que vivia na companhia de poetas
e filósofos. (Pouco importa que sua prosa fosse excessivamente
simples e sua poesia matreira. Quantos políticos penduram
um retrato de Sir Thomas More em seu gabinete em vez de
dos usuais líderes de partido?)

• Ele escrevera o famoso discurso de candidatura para Adiai


Stevenson em 1960 — "Não rejeitem este homem que nos
120 GLORIA STEINEM

fez sentir orgulho de sermos democratas" — correndo assim


um enorme risco político. (E claro que McCarthy compare-
cera àquela convenção como a provável escolha de Lyndon
Johnson para a vice-presidência, que esperava ser nomeado
no caso de um empate entre Stevenson e Kennedy. Mesmo
assim, este possível estímulo adicional não invalida a força
daquele grande discurso.)

Em fevereiro, o senador veio a Nova "York. Haveria um jantar


de captação de recursos para a sua candidatura, algumas entrevistas
coletivas, uma caminhada pelo Garment District (uma caminhada
pelo Harlem seria impossível porque os grupos negros não estavam
interessados em patrociná-la), e uma reunião com os cabos eleitorais
potencialmente influentes.
Qualquer um dos presentes naquela última reunião haverá de
se lembrar do talento de McCarthy para espalhar entusiasmo. Wyatt
Cooper escrevera uma apresentação graciosa e elogiosa. Praticamente
todos, da centena de presentes, estavam predispostos a gostar e a
apoiar McCarthy devido ao seu histórico e ao que estava fazendo em
New Hampshire. Mas depois de alguns minutos de discurso, a es-
perança e o entusiasmo começaram a se esvair. Ele era cauteloso, pouco
inspirado e seco.
No meu caso, a manhã seguinte foi ainda pior. Acompanhada
de três outros jornalistas voluntários, nós todos trabalhando num
suplemento de jornal destinado aos estados onde haveria eleições pri-
márias, eu me reuni com McCarthy no hotel onde se hospedava, o
St. Regis. Cada um de nós fez perguntas nas áreas fortes do senador,
com o intuito de incluirmos citações suas no suplemento. Em seguida
a cada pergunta, McCarthy virava-se para o coordenador da campanha,
Blair Clark, ou para um jovem assessor de imprensa, e dizia: "Acho
que mencionamos isso num discurso para o Senado" ou "Lembram-
se daquele artigo que a Look não publicou? Peguem uma cópia para
eles." Nós fizemos perguntas e mais perguntas. Nós nos viramos do
avesso com perguntas. (Existe uma gravação deste fiasco em algum
lugar; poderia ser vendida como um disco de piadas.) Jamais recebemos
uma só resposta espontânea. Finalmente, cheguei a uma pergunta
que ele ainda não podia ter respondido. Qual era a diferença entre a
eleição primária de New Hampshire e as campanhas passadas para
o congresso?
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 121

— Não existe diferença alguma — ele disse sem entusiasmo.


.— É exatamente a mesma coisa.
Em termos espirituais, McCarthy me faz lembrar de um distin-
to funcionário de um banco, que costumava se recostar na cadeira,
juntar os dedos em forma de pirâmide, e dizer a meu pai: "Não, eu
não lhe concederei um empréstimo".
Foram os jovens, é claro, que transformaram McCarthy num
símbolo de esperança. O governo Kennedy, venerado com uma afeição
nostálgica, parecia velho, rançoso. Quando, no dia 16 de março, Bobby
Kennedy finalmente anunciou, tarde demais, sua candidatura à pre-
sidência, a depressão foi generalizada. Eu entendia perfeitamente por
que ele, tendo muito mais a perder do que McCarthy, deixara-se seduzir
por maus conselhos e recusara-se a lançar sua candidatura em New
Hampshire. Mas ele perdera seus eleitores.
No quartel-general de McCarthy, no entanto, não bastava apoiá-
lo como candidato. Era necessário também que se fosse contra a
pessoa de Robert Kennedy. O ambiente estava saturado de superi-
oridade moral. McCarthy, que fora algo entre um homem decente
e a única opção, era agora a inexpugnável salvação da lavoura Sua
presença em New Hampshire anulara todos os seus defeitos, as-
sim como a ausência de Kennedy anulara todas as virtudes deste.
A escolha de um ou outro candidato, cujas plataformas políticas
não eram assim tão diferentes, fez com que amigos deixassem de se
falar e objetivos comuns fossem esquecidos. As fofocas a respeito de
quem trocara de lado tornaram-se, subitamente, tão interessantes
quanto quem estava tendo um caso com quem. Mas a tolerância era
bem menor.
Finalmente resolvi me afastar completamente, argumentando
que já havia gente demais trabalhando nas duas campanhas. Fui tra-
balhar com César Chavez. E foi o líder dos trabalhadores migratórios
da Califórnia, num estilo parecido ao de Mahatma Ghandi, que me
convenceu de que a compaixão de Kennedy e sua singular capacida-
de de se identificar com os excluídos eram fatores muito mais im-
portantes do que ter ou não ter se candidatado em New Hampshire.
A posição dos candidatos em relação ao Vietnã podia até ser mais ou
menos a mesma, assim como seus registros de votos em assuntos
Racionados aos direitos civis, mas apenas Kennedy tinha creden-
ciais de embaixador junto à colônia negra americana, uma verdadei-
122 GLORIA STEINEM

ra nação dentro da nação. Apenas Kennedy fora ao auxílio dos tra-


balhadores migratórios mexicanos da Califórnia quando estes fize-
ram greve, mesmo sabendo que grande parte dos agricultores da região
apoiava o partido democrata. Alguns simpatizantes de Kennedy
repetiam sem parar, "Ele pode vencer". Faziam-lhe, na verdade, um
desserviço. O mais importante era que ele deveria ganhar.
A época das primárias no Oregon, McCarthy começara a atacar
Kennedy, não só politicamente como também pessoalmente. ("Bobby
não pode ser Jack e não quer ser ele mesmo".) Adiai Stevenson, um
político espirituoso, usara seu humor contra si próprio. McCarthy o
usava para ridicularizar os outros. Tudo bem. Mas para que ser tão
cruel à pessoa de Kennedy e deixar Hubert Humphrey, o verdadeiro
oponente de McCarthy na questão Vietnã, sair ileso?
E mesmo assim McCarthy declarou, em sua primeira entrevista
após a morte de Robert Kennedy, que uma coisa boa deixara a Terra
e que ele tentaria preencher a lacuna deixada. Naquele momento
eu, e muitos outros, teria voltado a apoiá-lo. Negros e pobres com-
preendiam Bobby, embora muitos outros apenas começassem a fazê-
lo. Mas McCarthy não compreendia. "Gene ficou chocado pelo país",
um amigo explicou, "e deprimido de ter de começar a campanha
toda outra vez. Quando Bobby era vivo, ele o considerava um de-
magogo e pensa assim até hoje."
Após sofrermos a passagem de Johnson pela presidência—cujo
desempenho envolveu o coração mas nenhuma estrutura moral —
talvez estivéssemos prestes a ser submetidos a uma estrutura moral
e nenhum coração. Desejando saber se este era o caso, aceitei cobrir
a campanha de McCarthy da forma mais antiquada possível: man-
tendo um diário.

JULHO DE 1968

Dia Um. O avião de campanha do senador vai de Washington a


Pittsburgh hoje e volta em seguida. E então começa aquilo que a
equipe da campanha chama de "a asa sul de McCarthy": os estados
da Virgínia, da Geórgia e de Kentucky. Sentada à sua frente, vejo
McCarthy curvado na cadeira como um Ray Milland caipira. Muito
do ressentimento que sinto se esvai. Compreendo agora por que os
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 123

críticos são tão mais cruéis com diretores e dramaturgos do que com
atores: é impossível ser severo demais com aqueles que desnudam
sua vulnerável forma humana diante dos olhos de todos. Olhando
dois anúncios pró-Rockfeller e Humphrey através de pesados óculos
de leitura, os antiquados suspensórios esticados sobre a camisa bem
engomada e os ombros ossudos, ele mais parece o pai de alguém,
um homem amado e cansado, conferindo as contas do mês com imenso
cuidado. Um pouco deslocado, um pouco remoto, ele parece ser o
tipo de homem que lê jornal na praia calçando mocassins com a roupa
de banho.
Dia Dois. Seja em Nova York, ontem em Pittsburgh, ou neste
instante no avião, as divisões da equipe são interessantes. A equipe
itinerante, os contratados locais e a vanguarda, todos parecem divi-
dir-se em duas categorias: os fiéis, ou seja, aqueles que encaram a
campanha como uma cruzada, e os pragmáticos, aqueles que vêem
McCarthy apenas como a melhor alternativa. Os fiéis não são críti-
cos e chocam-se com as opiniões dos pragmáticos (eles próprios res-
ponsáveis pela alcunha de "fiéis"). Os dois grupos tendem a escolher
as palavras na presença do outro. Os dois grupos se preocupam com
a influência do outro sobre o candidato.
Além desta divisão há uma outra, entre os membros da equipe
que permanecem em contato direto com McCarthy (a maior parte
do tempo dentro do avião) e os contratados locais ou do quartel-
general. O primeiro grupo tem uma postura muito mais distante
do que o segundo. Não porque seu entusiasmo por McCarthy seja
menor, mas porque dedicam-se a imitar seu estilo pessoal. Portanto,
escarnecem dos que demonstram alguma emoção. Este modo de ser,
distante, discreto e levemente cínico, parece natural em McCarthy
mas fica muito estranho em seus jovens assessores. Além disso, não
passam uma imagem de entusiasmo pelo candidato. "Os moleques
são eficazes em proporção direta à distância que mantêm de McCarthy",
observou um dos integrantes de nossa comitiva.
— Dêem uma olhada nesse avião — disse um dos assessores,
que não era um dos Fiéis. — Nós podíamos ter qualquer figura de
respeito a bordo, Mike Harrington, Galbraith, Pat Moynihan, mas
nao temos quase ninguém. McCarthy acha que não precisa deles.
Dia Três. Charles Callahan, um jovem calado, um verdadeiro
rochedo de Gibraltar, assessor pessoal de McCarthy, disse que pode-
124 GLORIA STEINEM

rei acompanhar o vôo para Atlanta esta tarde. Como sempre acon-
tece em aviões de campanha, tanto a equipe quanto a imprensa con-
centram-se em quem está monopolizando as atenções do candidato.
Noto que, em comparação aos tempos anteriores a New Ham-
pshire, McCarthy deu início a um processo peculiar aos meios artís-
tico e político: ele está se transformando numa estrela. O tom bran-
co-acinzentado de sua pele foi substituído por um bronzeado discre-
to mas por igual, os cabelos prateados estão mais compridos e não
mais gomalinados. As meias não são mais curtas, de seda, com relojinhos
bordados nas laterais. Além de terem espichado o bastante para su-
mirem por dentro das barras das calças, são de tricô. Mas a meta-
morfose vai além, tem mais a ver com coisas interiores, com mu-
danças causadas pelo constante escrutínio do público e das atenções
obsessivas de uma equipe. Talvez a mudança seja o poder.
Eu pergunto:
— Há impressões errôneas em outros artigos que talvez queira
corrigir com este? — Esta foi uma pergunta estudadíssima, um ver-
dadeiro tiro certeiro. Tirando comentários sobre o tempo, as recla-
mações em relação à imprensa parecem ser a unanimidade mundial.
Ele responde daquela maneira aparentemente branda.
— As pessoas só se interessam pelo número de delegados, sabe?
Está errado. E cedo demais para isso. Comparecer a comícios e con-
versar com delegados é ótimo, mas o importante mesmo é ficar de
olho nas pesquisas de opinião. Elas é que contam. Veja só os jornais,
o New York Times, por exemplo. Sua principal preocupação é pregar
como as coisas deveriam ser. Cada vez que faço algo que, segundo
eles, eu não seria capaz de fazer por não ser um candidato sério, eles
encontram uma outra coisa qualquer. É bem capaz de eu ir parar na
Casa Branca e ainda assim não ser considerado "sério". — Ele deu
um de seus típicos meio-sorrisos sardônicos.
Conversamos um pouco a respeito da notícia de hoje, de que ele
demitira alguns de seus jovens assessores.
— Não é mudança de imagem ou conspiração, como os jorna-
listas preferem acreditar. Nós tivemos enorme sucesso desde o frio
de New Hampshire por termos contratado jovens. Então para que
mudar? Trata-se de um conjunto de elementos: alguns de cunho
econômico e os outros como parte de uma estratégia normal de re-
dução de pessoal, após as primárias. E ainda há os que parecem ra-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 125

tos de praia em pleno inverno. Deviam voltar para casa e arrumar


empregos. Gostam de ficar por perto, sem fazer coisa alguma.
A imagem do rato de praia me surpreende. Será que ele real-
mente vê a garotada pacifista, aquela turma de funcionários bem-
apessoados, como vagabundos de praia?
— Bem, não. Nem todos são assim. Mas eles realmente deviam
voltar para casa. Às vezes você também tem de se livrar dos que são
bons. Simplesmente não dá para separar os que você quer manter
dos que quer demitir.
Então, fiz uma jogada ambígua, perguntei se ele estava satisfei-
to por não ter sido escolhido para vice-presidente na chapa de Lyndon
Johnson em 64.
— Sim — ele respondeu, igualmente ambíguo. — Vice-presi-
dentes não criam políticas.
Mas será que tal candidatura não teria erradicado todo o apelo
anti-sistema que ele hoje irradiava?
— Hmmmm — veio a resposta. Esperei. A chave, eu desco-
brira depois da outra entrevista, na qual o bombardeamos com per-
guntas, era esperar. — Eu teria tido de permanecer em silêncio —
disse finalmente, pedindo mais um refrigerante.
Eu queria que ele dissesse que teria renunciado. Ou que teria
protestado contra a guerra. Ou que teria promovido o impeachment
de Johnson. Que pelo menos ele não teria mostrado o entusiasmo
de Humphrey pelo "refreamento do comunismo". Mas o governo
Johnson e a guerra do Vietnã eram, sem dúvida, favoráveis aos de-
mocratas.
Também aprendi, através de perguntas e silêncios, que a maio-
ria das personalidades que ele admirava já haviam se tornado figu-
ras históricas. Mesmo assim, ele lamentava não ter conhecido CS.
Lewis, disse que gostaria de conhecer Isaiah Berlin e Pablo Casais
( Tenho um carinho especial por violoncelistas") e "como todo mundo"
(seria esta uma referência ao tipo de citação que Bobby Kennedy
acolheria?) admirava Camus. O desejo de tornar-se jogador de bei-
sebol durara pouco mas ele sempre quisera ser professor, dentro ou
tora da Igreja Católica. Não tinha nenhum interesse particular na
Ásia ou na África.
O único país subdesenvolvido que eu gostaria de conhecer
- ele respondeu com excentricidade — é a Irlanda.
126 GLORIA STEINEM

Gostaria de ter vivido em outra época?


— Não — respondeu. — Gosto do presente.
Silêncio. Eu disse que Bobby escolhera a Grécia de Péricles —
uma resposta interessante — porque os homens desta época de ouro
podiam ser líderes, artistas e tudo ao mesmo tempo.
— E claro — respondeu, distante. — Uma era de heróis. Não
gostaria disto. Talvez a Inglaterra, numa época em que não tenha
havido heróis. Ou nacionalismo. Talvez entre os séculos XI e XVI,
época em que a língua inglesa foi desenvolvida por homens como
Chaucer e Langland e Shakespeare. E Erasmus, não esqueçamos de
Erasmus. Teria sido uma época interessante de se viver. Uma boa
época para intelectuais.
Chegamos ao aeroporto onde aguardam as inevitáveis banda, faixas
e máquinas fotográficas.
— Não gosto de comícios em aeroportos — McCarthy decla-
rou, ressentido. — Não há tempo para se dizer coisa alguma e ainda
se tem de apertar mãos.
No Restaurante Pascal Brother, em Atlanta, uma construção nova
e vistosa, localizada num bairro negro onde Martin Luther King dava
as suas entrevistas coletivas, McCarthy enfrentou a primeira pergunta
hostil desde a sua candidatura. Pergunta: "Por que é que os negros
devem votar em você?" Resposta: "Eu jamais disse que deveriam vo-
tar. Mas eu espero que um bom corte no inflado orçamento para o
Vietnã e a conseqüente utilização deste dinheiro para a resolução de
problemas urbanos e para a diminuição da pobreza signifiquem algo
para eles".
Do lado de fora do hotel onde estávamos hospedados, um garo-
tinho de rosto doce teve a cabeça acariciada por McCarthy. Foi a primeira
vez que o vi tocar alguém por livre e espontânea vontade. Limpou
as mãos na perna das calças ao entrar no carro.
Passamos a noite sentados no quarto de McCarthy, os assessores
e eu. O candidato estava animado, um estado demonstrado por um
humor cáustico e uma rara disposição para puxar conversa. Com as
longas pernas esticadas e um gim-tônica aguado na mão, ele res-
pondeu algumas perguntas e arrancou freqüentes gargalhadas.
— Os Moose. Está aí uma história ridícula. Alguém me disse
que o Moose Club tinha muitos associados em Minnesota e que se
eu me tornasse sócio, estaria ajudando muito à minha candidatura.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 127

Então me associei ao clube. Isso já faz anos. Nem sei se estou em dia
com as mensalidades. Agora Eric Sevareid vem dizer que não há negros
entre os Moose. Se ele resolver criar caso por causa disso, acho que a
CBS terá de colocá-lo na rua.
No lobby, na companhia dos redatores de discurso, descobri o motivo
do bom humor de McCarthy. Segundo a opinião pública, pela pri-
meira vez desde o início da campanha ele estava à frente. Segundo
Harris, ele estava pelo menos quatro pontos à frente de Humphrey.
Talvez tenha sido por isso que ele atacou Humphrey com seu
humor mordaz pela primeira vez.
— Eu nomeei Hubert em 52 — contou a um grupo de demo-
cratas de Fulton. — E ele já estava maduro na ocasião.
Quando McCarthy, o candidato pacifista, balbuciou seu famoso
epigrama, "a única motivação política válida é a vingança", não de-
veríamos ter achado que estava apenas brincando.

Esta semana fui a um daqueles programas de rádio transmitidos de


madrugada — desses que vai ao ar tão tarde que você se convence
de que não há ninguém ouvindo e passa a falar francamente. Eu deveria
estar falando a respeito de um artigo que acabara de escrever a res-
peito da candidatura de McCarthy.
— E bem provável—eu me ouvi dizer—que George McGovern
seja o verdadeiro Eugene McCarthy.
Nos dias que se seguiram recebi duas dúzias de telegramas e
telefonemas. Parece que há um pequeno movimento clandestino pela
candidatura de McGovern à presidência. A estratégia é a seguinte:
como McCarthy não consegue atrair nenhum novo delegado há se-
manas, Humphrey provavelmente vencerá no primeiro turno. A única
esperança são as centenas de eleitores de Kennedy e os indecisos que
não querem se comprometer com McCarthy ou Humphrey. Uma
terceira força poderia atrair os votos destes delegados e vencer no
primeiro turno.
O telefonema mais prático de todos foi da Força de Ação Kennedy,
uma centena de ativistas e agentes do Corpo da Paz americano, re-
patriados, à procura de um candidato realmente pacifista desde a
morte de Bobby. Eles haviam pesquisado os registros de votos de
diversos candidatos, e decidiram que McGovern seria a melhor op-
ção e vinham se reunindo com o intuito de mapear uma estratégia
128 GLORIA STEINEM

para levá-lo a se candidatar. Será que eu poderia dar uma mãozinha,


passando a mensagem adiante?
A idéia é maluca, mas o desespero é geral. Por que não?
Estamos num restaurante ruim mas elegante em Capitol Hill.
McGovern e sua secretária-assistente, Pat Donovan, me ouvem re-
citar os argumentos de seus possíveis voluntários. Torna-se óbvio que
Pat concorda com a candidatura e sua presença me deixa mais à vontade
para sugerir ao senador esta estranha campanha de três semanas.
McGovern ouve. Digo-lhe que a garotada ex-Kennedy tem mais
de dois mil voluntários só em Nova York e que estão fazendo um
rateio para abrir o comitê Recrute McGovern e que há grupos simi-
lares na Califórnia. Eles concederam uma entrevista coletiva para
anunciar suas intenções e estão providenciando uma enquete telefô-
nica para descobrir quantos dos delegados de Nova York poderiam
ser atraídos. Alguns ex-Humphreys e ex-McCarthys juntaram-se a
eles.
Ele assente com a cabeça, sério, mas é impossível saber se está
satisfeito ou não. Sim, trata-se realmente de um passo que há tem-
pos pensa em dar. Ele recebera um cheque de cinco mil dólares de
um correligionário da Dakota do Sul, a ser descontado apenas se usado
em sua candidatura à presidência. Além do mais, McCarthy confes-
sara a McGovern ter plena consciência de que não tinha a menor
chance de vencer Humphrey; apenas fazia o que era esperado de forma
a não desapontar aqueles que o apoiavam. (Tal confissão surpreen-
dera e preocupara McGovern. A garotada pacifista e os grupos
antiguerra ainda tinham fé na possibilidade de McCarthy vencer e
McGovern se pergunta o que aconteceria se soubessem da verdade.)
Mas existe uma outra crise. Um dos filhos de McGovern, Terry,
de dezenove anos, foi presa na Dakota do Sul por porte de maconha.
Como sua prisão parece ter motivação política (o procurador do es-
tado admitiu que ela estava sendo vigiada "há meses"), McGovern
tornou-se ainda mais cônscio do preço pago por sua família pelo
emprego que ele escolheu. Sua principal preocupação no caso de Terry,
uma garota sensível que leva tudo muito a sério, é o desespero da
menina por ter colocado a carreira do pai em risco.
A família decide ir para um lugar isolado em Black Hills, para
onde se retiram em momentos de grandes decisões. McGovern diz
que voltará com um veredicto a respeito da candidatura.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 129

AGOSTO DE 1968

Na sala de reunião do senado, cercado pela família e por uma mul-


tidão de câmeras de televisão, McGovern anunciou sua candidatura
à presidência. As contribuições e os telefonemas já começaram a chegar
ao seu escritório em Washington e ao comitê Recrute McGovern,
em Nova "Vbrk. Poucas pessoas tinham ouvido falar deste homem
mas, aparentemente, a expressão de honestidade e a maneira direta
de falar contrastam com os rodeios verbais de Nixon, com a lingua-
gem bombástica de Humphrey e com o elitismo de McCarthy. A
mensagem é a seguinte: "Vietnã: a mais desastrosa mancada políti-
ca e militar de nossa experiência como nação. Esta guerra precisa
terminar já — não no ano que vem ou daqui a dois anos. Precisa
terminar agora. Além disso, precisamos concentrar os recursos espi-
rituais e políticos desta nação de forma a erradicar os embaraçosos
resquícios de racismo e pobreza que ainda afligem nossa terra".
Terry permaneceu a seu lado. Em algum lugar de Black Hills,
apesar da culpa de estarem colocando ainda mais um fardo sobre as
costas do outro, parecem ter chegado a algum acordo.
Política é uma coisa muito pessoal. Ted Kennedy, que McGovern
mal conhece, lhe telefonou dando seu apoio quando Terry foi presa.
Uma certa dúvida paira no ar — McGovern perguntou-se em voz
alta se Ted Kennedy não seria apenas o fruto da criação de uma equipe.
Mas a verdade é que a ligação fez com que McGovern mudasse de
idéia a respeito de Ted Kennedy.

Com ou sem declaração, ficou bem claro que pouquíssimas pessoas


neste país, e na imprensa, sabem quem diabos é George McGovern.
O hábito de trabalhar sozinho não ajuda muito.
McGovern, simplesmente, parte do princípio de que seus vo-
luntários farão tudo o que for preciso. Como há muito pouca gente
trabalhando na campanha, nós todos acabamos por fazer um pouco
de tudo. Até agora eu já escrevi folhetos, já servi na vanguarda, já
captei recursos e fiz lobby junto aos delegados, já servi de boy e de
assessora de imprensa — tudo isto consecutiva ou simultaneamen-
te- Eu tento me convencer de que está sendo educativo.
Por exemplo, era necessário que organizassem almoços com os
grandes meios de comunicação de Nova York: o New York Times, a
130 GLORIA STEINEM

Time, e assim por diante. Tais reuniões fazem parte do ritual espera-
do de um candidato à presidência.
Aparentemente, no entanto, a presença de mulheres em tais
eventos não faz parte do ritual. Eu ainda dupliquei o erro ao chegar
acompanhada de uma outra mulher: uma perita em relações públi-
cas que também trabalhava como voluntária na campanha de
McGovern. O resultado foi algum constrangimento, especialmente
no caso da Time, e uma infinidade de piadas sobre mulheres. (Houve
também grande hesitação quanto a nos servir cerveja preta e charu-
tos, e editores que se desculpavam a cada vez que usavam a palavra
"porra".) A outra mulher não se importou nem um pouco, endure-
cida que já estava pelas situações que enfrentava no dia-a-dia de seu
trabalho. Mas eu fiquei surpresa com a condescendência dos edito-
res e com o baixíssimo nível intelectual das perguntas que faziam.
Seria este o ápice jornalístico pelo qual tanto almejamos?
Até mesmo Pierre Salinger, que viera a pedido de McGovern,
interrompia discussões importantes para fazer piadas políticas, pre-
faciando cada uma com um pedido de desculpas "às senhoras". Um
dos editores chamou atenção para o fato da revista ter se livrado das
garçonetes "com o intuito de evitarmos problemas de decoro". (Nossa
comida foi servida por atenciosos senhores uniformizados.)
Estranhamente, McGovern pareceu não notar coisa alguma. Ele
simplesmente foi em frente com extrema seriedade e eficiência.
Fumei metade do charuto, bebi metade da cerveja e consegui
tirar McGovern de lá a tempo para aparecer num piquete da União
dos Trabalhadores Rurais. Mas acho que não nasci para isso.

AGOSTO A OUTUBRO DE 1968

Chicago. Será que a palavra sempre trará à lembrança máscaras de


gás e poças de sangue em Michigan Avenue? Tenho a impressão de
que muitos de nós dividirão as vidas em "antes" e "depois" desta dita
convenção democrática. Além de seu entusiasmado apoio à guerra
do Vietnã, Hubert Humphrey precisa redimir-se por ter se recusado
a pedir ao Prefeito Daley que controlasse a agressividade de sua polícia
e que parasse o derramamento de sangue nas ruas.
O mais incrível de tudo é que muitas autoridades tentam negar
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 131

a realidade do que aconteceu em Chicago e dizem que a televisão


exagerou. Eu acho até que a televisão minimizou o acontecimento.
A verdade foi bem pior.

• McGovern, debruçado na janela de seu quartel-general no


Hotel Blackburn, aos berros, xingando a polícia por estar
cercando indivíduos. Os policiais usavam luvas com pesos de
metal nas pontas, cacetetes e tudo a que tinham direito.
Deixaram que um homem e uma mulher se esvaíssem em
sangue na calçada. Era, e já estava sendo há dois dias, um
verdadeiro motim policial. Mais tarde, a equipe que se en-
contrava no quarto ficou surpresa com duas coisas: com o
palavreado de McGovern e com sua confissão de jamais ter
testemunhado a brutalidade da polícia.

• Todos os dias, durante a convenção, Galbraith se levantava e


dizia: "Mande George falar alguma coisa amável a respeito
de Gene". Obediente, McGovern elogiava a bravura de
McCarthy por ter enfrentado o frio de New Hampshire sozi-
nho. Mas não adianta de coisa alguma. McCarthy gosta de
McGovern um pouco mais do que gostava de Robert Kennedy.
Eu me pergunto se ele perdoará os dois por terem dividido
entre si o apoio dos eleitores antiguerra.

• A reunião dos delegados da Califórnia foi o mais alegre e


construtivo acontecimento de Chicago. Foi também a única
vez em que os candidatos foram vistos juntos num debate.
Humphrey defendeu a política de Johnson em relação ao Vietnã,
assim como "a democracia de bases amplas" de Saigon. Não
era exatamente uma posição popular, considerando-se que
esta era a delegação mais contrária à guerra de toda a con-
venção. Além do mais, seu estilo alegre, de bom moço ameri-
cano, não era condizente com a seriedade do assunto. McCarthy
atacou McGovern mais do que a Humphrey ou a Johnson.
Deixou bem claro que não via necessidade de explicar suas
decisões quanto às diversas políticas. Quando os delegados o
questionavam ele dizia com imensa frieza: "Eu já deixei mi-
nha posição muito clara quanto a isso".
GLORIA STEINEM

Os discursos de ambos os candidatos foram prelúdios per-


feitos para o de McGovern, a quem foi dada a liberdade de
ser quem ele realmente é. Ele demonstrou ira pelo absurdo
desperdício de vidas no Vietnã, foi incisivo nas questões re-
lacionadas à convenção — tais como a resistência de todos
em receber a delegação da Geórgia por esta ter Julian Bond
à sua frente — e mostrou-se caridoso para com os indivíduos
de boa vontade que cometeram erros, incluindo Hubert
Humphrey. As diferenças não poderiam ter ficado mais cla-
ras. A delegação adorou: aplaudia e gritava a cada resposta.
No final, os delegados que já tinham se comprometido com
McCarthy tiveram de ser dissuadidos de trocá-lo por McGovern.
Afinal de contas, os dois senadores estavam do mesmo lado,
pelo menos do ponto de vista técnico, para vencer no pri-
meiro turno. Sem contar que um tipo de derrota como esta
teria irritado o ânimo de McCarthy ainda mais.
A sala estava abarrotada de gente e o debate foi televisio-
nado para toda a nação. Foi um desses momentos carrega-
dos de energia, no qual se assiste ao nascimento de uma pes-
soa ou de uma idéia. Como num passe de mágica, McGovern
transformara-se em candidato à presidência.

• Em seu discurso de nomeação, o Senador Ribicoff atacou o


Prefeito Daley e todos os representantes do establishment pre-
sentes à convenção. "Com George McGovern no poder", ele
disse simplesmente, "não seríamos expostos a táticas da Gestapo
nas ruas de Chicago". Ninguém ficou mais surpreso do que
quem estava nos bastidores, tomando fôlego após preparar o
discurso do senador. Até o ultimo minuto, Ribicoff parecera
estar mais preocupado em usar ou não os óculos. Simples-
mente não havia material explosivo algum no discurso que
fora batido e aprovado. Frank Mankiewicz o encorajara a fa-
lar da violência enquanto aguardavam a vez de discursar.

• Apesar de seu enorme esforço para vencer no primeiro tur-


no, Humphrey ficou com a nomeação. McGovern demons-
trou dúvida ao dar o braço a Humphrey num gesto de união
contra Nixon, gesto este que McCarthy recusou-se a fazer.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 133

De volta a Nova York, grupos anti-Vietnã começaram a considerar


a possibilidade de que Nixon, não tendo compromisso pessoal com
a guerra, talvez a terminasse antes de Humphrey, que a defendera
publicamente durante seu período na vice-presidência. Afinal, o apático
Senador Eugene McCarthy quisera ter sido o vice-presidente de Johnson
embora tivesse acabado como símbolo da oposição à política de Johnson
em relação ao Vietnã. Robert Kennedy, que começara como um de-
dicado anticomunista, até mesmo convidando Joe McCarthy para
ser padrinho de seu primeiro filho, acabou sendo o único político
americano a se preocupar com o destino dos cidadãos vietnamitas,
assim como dos soldados americanos. (Eu sempre achei que a mu-
dança ocorrera quando ele tinha 29 anos e teve a vida salva por um
médico comunista durante uma viagem para a União Soviética; mas
tais explicações não servem para os cientistas políticos.) Até mesmo
Strom Thurmond, um arquissegregacionista e defensor dos direitos
do estado, fora reformista e discípulo de Franklin Roosevelt.
Considerando que todos estes homens haviam percorrido os
meandros da política com tanta desenvoltura, não seria possível que
Nixon fizesse o mesmo?
Embora muitos dos desapontadíssimos correligionários de Kenne-
dy, de McCarthy e de McGovern ainda encarassem Nixon com um
misto de medo (será que ele ainda acreditava que os Adiai Stevensons
espalhados pelo mundo afora "espalhavam propaganda pró-comu-
nista?") e tédio (será que teríamos paciência para assistir à experiên-
cia humana reduzida a meros clichês durante quatro anos?), ele era,
subitamente, a única alternativa. Será que não seria melhor ter um
homem pragmático, com alguma filosofia, que prestava atenção às
pesquisas de opinião, na presidência do que um ideólogo como
Humphrey, que ainda parece acreditar que os Estados Unidos de-
vem ser os policiais do planeta?
Além disso, Nixon parecia estar fadado à presidência a despeito
de tudo o que fizéssemos. Quanto mais especulávamos, menos in-
formações pessoais e fatos incontestáveis obtínhamos a seu respeito.
Como a única voluntária que também escrevia artigos para a im-
prensa, fui designada para ser a Manchurian Candidate — como no
filme de John Frankerheimer, uma pessoa contrária à sua candida-
tura, plantada ali para vigiá-lo — a bordo do avião da campanha de
Nixon durante alguns dos dias mais importantes do outono. Eu deveria
134 GLORIA STEINEM

ser correspondente pessoal, incumbida de registrar algo além das


notícias circunspectas que se lê no The New York Times, ou seja, o
comportamento de Nixon, o ambiente ao seu redor e anedotas que
talvez revelassem algum traço de caráter.
Quinta. Durante banquetes organizados em diversas cidades, um
circuito interno televisionava um jantar de mil dólares por cabeça
em Nova York e, simultaneamente, um banquete para Agnew, em
Los Angeles. Foram arrecadados, aproximadamente, cinco milhões
de dólares mas o impacto sobre mim foi uma nostalgia instantânea.
Lembranças de uma infância passada no meio-oeste americano, onde
os freqüentadores de tais banquetes eram os respeitáveis cidadãos
para os quais meus colegas do segundo grau (descendentes de hún-
garos e poloneses que jogavam futebol americano e odiavam negros)
trabalhavam, em fábricas e postos de gasolina. Nada mudara: as
bochechas rosadas, as faixas dos smokings ou os corações de John Dewey.
Como poderiam suas imagens ter permanecido congeladas, inalteradas
desde 1952?
O ponto mais alto da noite foi um Nixon bronzeado e animadíssimo
no palco com os braços jogados para o alto e os dedos em forma de
V, subindo e descendo, numa estranha bênção para receber a ovação
dos presentes. Era claro que se sentia em casa. Ele era, como dissera
Art Linkletter no discurso de apresentação, "um homem cuja hora
chegara".
E então seguiu-se o que os jornalistas ao meu redor chamaram
de O Discurso: aquela coleção de generalidades políticas, tão inexo-
ravelmente iguais, que os jornalistas poderiam acompanhar o can-
didato em uníssono e interpretar cada mudança de última hora com
a habilidade de um kremlinólogo. Assim, uma frase aparentemente
inócua, como a paráfrase de Nixon para uma citação de Teddy Roosevelt,
"Este não será um bom país para se viver até que seja um bom país
para todos nós vivermos", tem mais significado quando omitidas no
sul do país. Outras frases feitas, tais como "O mais importante di-
reito do cidadão é o direito à segurança", ganham maior importân-
cia por serem deixadas no discurso.
Logo percebo que ouviremos mais algumas pérolas:
— E eu lhes digo que quando a capital de uma nação torna-se
a capital mundial do crime, quando os motoristas de Washington
precisam andar com troco extra e armas por medo de assaltos, quando
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 135

há distúrbios em trezentas cidades e o presidente dos Estados Uni-


dos já não pode mais ir a uma cidade sem temer uma demonstração,
quando um paisinho de segunda categoria tal como a Coréia do Norte
consegue seqüestrar um de nossos navios em alto mar ... E nesse
momento que os sem voz, os esquecidos da sociedade devem se le-
vantar e exigir mudança!
— Eu prometo restaurar a glória da América como potência
militar de primeira grandeza... Não podemos perder numa mesa de
negociação aquilo pelo qual nossos garotos morreram no Vietnã.
— Muitos me acusam de não falar de questões atuais. Bem, eu
mandei minha equipe contar o número de questões políticas sobre
as quais falei e eles encontraram 167 questões. É claro que Hubert
já esteve dos dois lados em cada uma destas questões, portanto ele
tem o dobro.
— Eu sei que parecemos estar passando por tempos difíceis, mas
agora vou dizer algo que talvez os surpreenda. Como um estudioso
da história, que já viajou este mundo inteiro, eu diria que os Estados
Unidos de 1968 são o melhor lugar e a melhor época de se viver.
Ele fez mais alguns afagos na platéia de mil dólares por cabeça
("O sucesso por vocês obtido vai muito além dos sonhos de qual-
quer americano. Os participantes deste jantar são as pessoas mais
sortudas de todo o mundo. Vocês estão participando dos maiores eventos
de suas vidas"). E o resto foi apenas uma lista dos lugares por onde
passara em campanha.
Tive a impressão de que, se não tivesse estado com o bloquinho
de anotações em punho, eu não teria a menor idéia do que ele dissera.
Só o que restou foi uma impressão de autoconfiança. Eu me virei
para um garçom, talvez a única outra pessoa que não ouvira isso tudo
anteriormente. O que achou do discurso de Nixon? "Esse cara", ele
disse, colocando uma pesadíssima bandeja sobre os ombros, "é um
babaca tão grande que não deve nem saber o que quer dizer babaca."
Este aqui não era, definitivamente, um dos sem-voz do qual falara
Nixon.
Sexta. Hoje iremos para a Filadélfia em um dos imensos jatos
Sugados pela campanha e batizados com os nomes de suas filhas: o
Tricia e o Julie. À bordo, a equipe, o Serviço Secreto e a imprensa. (O
David — assim batizado em homenagem ao noivo de Julie, David
^isenhower — se juntará a nós para um tour ao meio-oeste na sema-
136 GLORIA STEINEM

na que vem. Ter o nome estampado no avião da campanha do sogro


me parece uma pressão enorme para o noivado de um jovem de vin-
te anos.) Depois de um desfile sob uma chuva de confete e serpenti-
na, um show televisionado para todo o estado, a comitiva inteira passaria
a noite no Marriott Motor Hotel antes de começar um tour de ôni-
bus que percorrerá nove shopping centers. O público-alvo deste tour
são os americanos brancos de classe média.
No avião descubro que as chances de conseguir uma entrevista
exclusiva são quase zero. Mesmo as coletivas só são concedidas de-
pois que um bando de jornalistas de prestígio o ameaça com man-
chetes tais como: NIXON SE ESCONDE DA IMPRENSA. Foi com
Herb Klein, o inteligentíssimo e educadíssimo assessor de imprensa
de Nixon, que registrei meu pedido de entrevista. Klein sente-se tão
confiante de que não haverá controvérsias ou crises que permite-se
passar grande parte do tempo em Nova York. Assim, deixa os con-
tatos diários com a imprensa nas mãos de Pat Buchanan, antigo jor-
nalista e conselheiro do grupo Jovens Americanos pela Liberdade,
que é chamado quando a imprensa se torna barulhenta, e Ron Zeigler,
antigo coordenador da conta da Disneylândia na J. Walter Thompson,
chamado quando a imprensa está calma.
— Não se preocupe — disse um simpático jornalista do meio-
oeste. — Não aprenderia muita coisa mesmo. A técnica dele é pe-
gar a primeira pergunta e espremer até a última gota. Acho que ele
não usa o Instituto de Comportamento do Meio-Oeste como Reagan
usou. Sabe como é, eles colocam cartões de computador com diver-
sas questões políticas e acabam com todos os posicionamentos polí-
ticos cabíveis às mentes mais conservadoras. Reagan simplesmente
tirava os resultados do bolso cada vez que lhe fazíamos uma pergun-
ta. Mas esta campanha está sendo coordenada por dois psicólogos
escondidos numa sala, em algum lugar. Eu tenho certeza.
Nas diversas paradas feitas pela campanha naquele dia, Nixon
disse ser a favor de deixar o controle de armas de fogo a critério de
cada estado mas que era a favor de instituírem sentença de prisão
obrigatória para todos os crimes cometidos com arma de fogo. A
respeito de Johnson e Humphrey, disse que "Nem eu nem o Gover-
nador Agnew estamos colocando em questão a lealdade dos dois"
("Fico contente de não haver traidores concorrendo este ano", mur-
murou um correspondente da Time, à minha esquerda.). Nixon dis-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 137

se que a poluição do ar e da água poderia ser mais bem resolvida


através de "incentivos fiscais à indústria" e não através de leis fede-
rais. Ele confirmou a opinião de que o professor da Universidade de
Rutgers que falara bem dos vietcongues deveria mesmo ser demiti-
do (o que de fato ocorreu) e reiterou que não sabia dizer qual seria
sua política em relação ao Vietnã enquanto as negociações continu-
assem em Paris.
Voltei para o hotel me sentindo deprimida. Estamos voltando
aos anos cinqüenta.
— E um fenômeno pelo qual todos nós passamos assim que
entramos nesse negócio — disse um jornalista inglês. — E como
reentrar na atmosfera terrestre. Como podemos ver nesta campa-
nha, e na maioria dos países do ocidente no presente momento, estamos
prestes a entrar numa era de reação.
Sábado. Um evento sem precedentes na campanha Nixon: uma
visita a um bairro negro. Imprensa e equipe saíram em massa de
três ônibus no Progress Shopping Plaza, um empreendimento loca-
lizado na Filadélfia, contendo escritórios e um shopping, construído
inteiramente com capital negro e administrado por negros. O Reve-
rendo Leon Sullivan — um homem confiante, bem apessoado e cla-
ramente muito acostumado a lidar com o homem branco — mos-
trou a um nervosíssimo Nixon, que não parava de exclamar "oooohs"
e "aaaahs", as plantas do empreendimento. Era realmente impressio-
nante: supermercados, lojas, pequenas confecções e pequenas fábri-
cas de componentes eletrônicos. O Reverendo Sullivan explicou tudo
em seus mínimos detalhes enquanto Nixon murmurava "Hummmm,
claro, claro", "Mas que interessante" ou "Certo, certo" e esfregava as
mãos suarentas uma na outra. O candidato deixava claro sua vonta-
de de dizer alguma coisa.
— O que vocês precisam — disse Nixon com seriedade — é de
poder econômico. — Alguns dos jovens que cercavam Sullivan pa-
receram incrédulos. O Reverendo se limitou a sorrir, deixando que
O Homem, em pé no meio de um shopping center de milhões de dó-
lares inteiramente financiado com dinheiro de negros, fizesse um
discurso de civismo digno de um aluno do segundo grau. — Eu dis-
se uma vez e repito, há uma porta pela qual vocês ainda não passa-
ram. Oh, é claro que vocês já fizeram conquistas importantes, mas
uma porta ainda precisa ser aberta, a porta do capitalismo negro. O
138 GLORIA STEINEM

garoto da favela precisa ter esperança de um dia poder ser proprie-


tário da venda da esquina, ele precisa ter algo pelo que lutar. É disso
que se trata o meu programa de capitalismo negro. Vocês precisam
entrar nessa parada.
Nixon deu um passo atrás, aparentemente muito impressiona-
do por ter pronunciado uma frase tão atual. Sullivan sorriu cordial-
mente.
— Tem razão — disse o Reverendo dando um tapinha nas cos-
tas de Nixon que o impulsionou alguns centímetros adiante. — É
por isso que os afro-americanos devem trabalhar: pelo poder negro e
pelo poder verde. E por isso que eu sou politicamente independente.
Ou Nixon ficou desalentado pelo "politicamente independen-
te" ou então ele jamais ouvira a expressão "afro-americano". Mas a
verdade é que seu "Ah, sim claro", tornava-se cada vez mais nervo-
so. O bate-papo então mudou de rumo e falaram a respeito do fato
de ambos terem sido nomeados Jovens Destaques do Ano pela Câ-
mara de Comércio de Juniores.
— Diga uma coisa... — disse Nixon. — Você deve conhecer
um outro rapaz que foi Jovem Destaque do Ano. Sabe quem, não é
mesmo? Aquele que tinha um gancho no lugar de um dos braços.
— Sullivan pareceu perplexo e disse que não, que não se lembrava
do referido jovem. Nixon insistiu que deveriam se conhecer embora
não tivessem sido eleitos no mesmo ano e não houvesse motivo al-
gum para serem amigos. Ele insistiu em descrever o outro homem,
gesticulando muito para mostrar como era o gancho. Sullivan disse
que não, que realmente não conhecia o tal homem, e depois de mais
uns tapinhas nas costas a reunião chegou ao fim. Mas não antes que
todos compreendessem o porquê de Nixon haver ligado um homem
ao outro. Pele negra e um gancho no lugar do braço: é certo que
dois homens com deficiências físicas tais se conheceriam.
Segunda. Nesta campanha fácil e bem lubrificada, Nixon passou
a manhã em seu apartamento estilo França-provençal, cercado de
presentes enviados por celebridades. É uma exibição na qual Pat Nixon
constantemente troca as peças: de seu mandato como vice-presidente
há as fotos com chefes de estado, quatro vistas emolduradas do Pa-
lácio de Buckingham, enviadas pela Rainha Elizabeth, uma coleção
permanente com duzentas miniaturas raras de elefantes e suas peças
favoritas: dois quadros assinados por D.D. Eisenhower e um perga-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 139

minho floral assinado por Madame Chiang Kai-shek. A mudança


de vice-presidente de trinta mil dólares anuais para advogado de
duzentos mil dólares por ano significou muito para o candidato.
Convidados dizem que ele às vezes passa os olhos pelos dez cômodos
irretocáveis, acarpetados de dourado, localizados no número 810 da
Fifth Avenue e diz: "Não é lindo? Eu não tenho sorte de estar aqui?"
Um jornalista me contou que Nixon costumava pedir aos con-
vidados de sua casa na Califórnia para tentarem adivinhar o preço
de um móvel especialmente caro, como se fosse em um programa
de televisão. O jornalista encarou o fato como uma demonstração
de pequenez e falta de sofisticação, mas eu achei o fato enternece-
dor. Pelo menos demonstrava que Nixon não fingia o quanto isto
tudo significava para ele.
Quarta. Esta campanha é dirigida como a IBM. Existe um de-
partamento de idéias cuja responsabilidade é "empacotar e vender o
candidato". Há um departamento de produção encarregado de cap-
tar recursos, criar cronogramas para a campanha, lidar com a im-
prensa e cuidar de todos os outros elementos que envolvem a pro-
dução de uma cota de votos em cada estado.
Os assessores mais próximos dele não falam de assessoria e sim
de "programação do candidato". O comando é claramente corporativo,
com John Mitchell, um advogado de Wall Street, de seus cinqüenta
anos de idade, sócio de Nixon, como "presidente do conselho", ou
seja, no comando das idéias e da produção.
O tratamento dado à imprensa é impecável. Você gostaria de
saber o conceito do Sr. Nixon em relação à presidência? Eis o funcio-
nário responsável pela área. Saber o que acha das barreiras comerci-
ais e do fluxo do ouro? Eis aqui o funcionário responsável por isso.
(O fato é que não há um só negro na equipe e nem mesmo um re-
presentante das classes trabalhadoras.) A bagagem nunca se perde,
há serviços de telégrafo para todos os lados e me ligaram duas vezes,
de manhã e à noite, para se certificarem de que eu sabia de uma
mudança no cronograma.
É tudo muito agradável e sedutor, mas há a suspeita de nós, jor-
nalistas, sermos prisioneiros e da equipe ser o pessoal da carceragem.
Há a suspeita de que se disséssemos: "Eu não gosto de Richard Nixon",
seria o mesmo que dizer "Pode me chamar de Napoleão". Os carce-
reiros simplesmente sorririam um sorriso de "Já ganhamos", nos dariam
140 GLORIA STEINEM

as chaves do quarto e simplesmente continuariam com seu trabalho


normal.
Na verdade, o mais impressionante em relação a esta equipe é a
falta de interesse demonstrada pelo que quer que o candidato faça.
No avião de campanha de Kennedy, ou até mesmo no de McCarthy
ou de Rockfeller, havia uma sensação de sermos o grupo dos enjeita-
dos. Por mais interessantes que fossem as discussões dos jornalistas,
por mais interessantes que fossem os jantares, o candidato e seus
escolhidos estavam se divertindo mais em outro lugar. Isso não acontecia
no avião de Nixon. Aqui, os jornalistas sentem-se os melhores do
mundo e comparecer a um comício ou mesmo a uma entrevista ex-
clusiva é apenas parte de um serviço enfadonho.
De vez em quando, um dos muitos jornalistas que trabalharam
na Casa Branca chama os outros veteranos para um "lembretezinho":
toca uma fita de Johnson falando e todos se regozijam por não esta-
rem lá. De vez em quando, mesmo sabendo que não seria a melhor
das idéias, os jornalistas se lembram de histórias das primárias re-
centes: Bobby, um dia antes da primária de Oregon, sentado numa
mala no corredor, cantando "Where Have Ali The Flowers Gone"
{Onde Foram as Flores?) acompanhado por alguém ao violão. Bobby,
em visita de três dias aos índios da Dakota do Sul, respondendo às
objeções da equipe de que não havia votos ali: "Seus filhos da puta,
vocês não dão a mínima para o sofrimento de outros seres huma-
nos". Eles contam suas histórias e ficam alguns momentos em silên-
cio, enquanto cada um tenta pensar em alguma coisa engraçada para
dizer.
De certa forma, tanto Kennedy quanto Nixon receberam perfis
escritos inexatos, produto do desconforto dos jornalistas com seus
próprios sentimentos. Muitos deles amavam Bobby e tomavam ex-
tremo cuidado em ocultar tal fato através de críticas. Muitos deles
desgostam ou sentem desdém por Nixon e por isso dão imenso peso
às suas opiniões. Este desejo de equilibrar as coisas pode até ser ine-
vitável, mas é enganoso. Nós, que descobrimos quem era Kennedy
apenas após sua morte, talvez só venhamos a saber quem é Nixon
depois que assumir a presidência.
Quinta. Depois de Seattle e Denver, com meia dúzia de paradas
e novas versões nixonianas de O Discurso a cada uma, acho que es-
tou começando a compreender o seu novo estilo de discursar.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 141

Demonstra uma melhora acentuada sobre 1960. O Novo Nixon


desistiu da postura "mantenha os braços ao longo do corpo" recomen-
dada pelo professor de oratória da escola secundária. Mas o que não
aparece nos breves takes televisivos é a diferença entre forma e conteúdo.
Ao pronunciar a frase "devemos erguer os braços" ele era perfeita-
mente capaz de estender os dois braços para baixo. Ao dizer "o mundo
inteiro" ele talvez abraçasse o próprio corpo. Ao dissertar a respeito
do primeiro de dois pontos, ele talvez esticasse o dedo médio. Ao
erguer o braço com vigor para dar ênfase a pontos importantes, ele
talvez erguesse o braço cedo demais e pausasse visivelmente para se
coordenar outra vez. Este é um homem que, a um grau extraordiná-
rio, criou-se; um homem que deu duro e que nunca pára de se em-
penhar para se tornar o ideal do homem público que tem na cabeça.
Seus colegas dizem que ele possui um dos Qls mais altos de
Washington. Os oficiais do Departamento de Estado, que o instruem
a respeito de certos assuntos antes de suas muitas viagens como vice-
presidente, se impressionavam por ele sempre ter feito "o dever de
casa". Nos últimos anos como advogado, outros advogados comen-
taram sua habilidade de compreender toda a essência de um proble-
ma rapidamente e analisar em seguida o que funcionou e o que não
funcionou. Se algo pode ser aprendido, Nixon o aprenderá.
Mas se algo tiver de ser compreendido, Nixon—e possivelmente
a nação inteira — poderá estar com sérios problemas. Ele se empe-
nhou de tal forma para se aprimorar que enterrou o instinto e a es-
pontaneidade.
— Ele tem maior domínio sobre os problemas econômicos da
África do que qualquer outro político americano — disse uma auto-
ridade em visita. — Mas não entende os africanos.
Através dos anos, seus assessores fizeram de tudo para humanizar
sua imagem com elementos que iam de hobbies (em 1960, um deles
disse que Nixon era asseado demais e sugeriu uma atividade suja tal
como criar galinhas) a fazê-lo posar com roupas esportivas. Ontem,
durante o tour dos subúrbios, anunciaram nos três ônibus que Nixon
perdera uma das abotoaduras. ("A próxima novidade vai ser que ti-
raram os clips de papel das casas do paletó do Wallace", comentou
um dos jornalistas.) A ênfase agora era na imagem de estadista em
vez de, como diria Nixon, "bom coleguinha". O candidato demons-
tra sentir-se bem mais à vontade com tal postura.
142 GLORIA STEINEM

Mas há uma questão filosófica que jamais será respondida: se urna


árvore caísse na floresta e não houvesse ninguém ali para ouvir sua
queda, teria ela feito algum ruído? Uma pergunta que ele faz brotar
em nossas mentes por estar sempre tão inexoravelmente cônscio,
política e pessoalmente, de como os outros o vêem. Quando Nixon
está sozinho numa sala, haverá alguém presente?
Sexta. Tivemos uma coletiva ao lado do avião porque houve uma
verdadeira confusão por ele não ter concedido uma ontem. Os jor-
nalistas queriam uma resposta para as acusações de George Bali, que
acabaram de chegar via telégrafo, de que Nixon não possuía o cará-
ter ou os princípios para lidar com uma crise mundial na condição
de presidente e que Agnew era um "político picareta de quarta ca-
tegoria". Quando ele finalmente se posicionou nos degraus da aero-
nave para responder às perguntas, os jornalistas estavam furiosos o
bastante para trazer de volta o Velho Nixon. Ele os acusou de porem
palavras em sua boca e seu rosto chegou a tremer com a tensão que
sentia. E então ele de repente se controlou e acrescentou: "Mas é
claro que têm todo o direito de pôr palavras em minha boca, rapa-
zes. Afinal de contas, é o seu trabalho".
Num auditório de Tampa, no estado da Flórida, para o comício
daquela noite, as arquibancadas estavam cheias de cadeiras de ar-
mar, formando um sólido vale de pessoas. Max Frankel, do The New
York Times, atirou uma nota em nossa direção: "Dou um dólar para
quem encontrar um rosto negro nesta multidão".
Um coral de vozes começou a cantar "The Battle Hymn of the
Republic" (Hino de Batalha da República). Passei alguns instantes
sem entender. "Eles não deviam cantar isso", disse um jornalista do
meio-oeste, bem baixinho. "Não pertence a eles." Dia 8 de junho,
enterro de Bobby Kennedy, um longo e vagaroso cortejo fúnebre e
seu hino favorito. As antigas esperanças que eu conseguira esquecer
desde a primeira fase de reentrada, há uma semana, se apossaram de
mim mais uma vez. Só que com mais intensidade.
O Governador Kirk e Nixon se abraçavam. Uma faixa dizia REGIS-
TREM COMUNISTAS, NÃO ARMAS DE FOGO. De repente me
pareceu que estávamos cercados de pessoas conservadoras, antivida, e
xenófobas — ou talvez fossem pessoas boas cujos instintos xenófobos
eram exacerbados de propósito — e que o inimigo estava prestes a
vencer. E não era apenas vencer esta eleição, mas também o poder de
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 143

se impor, aqui e em muitos outros países do mundo onde as ondas de


reação começavam e continuariam durante muito tempo. O hino conti-
nuou, assim como os gritos por Nixon. Não se tratava da vitória de
um homem e da morte de outro. Era a morte do futuro e da juventude
de cada um, porque talvez já estaríamos bem velhos quando os conser-
vadores saíssem do poder para o retorno dos homens compassivos.
Sábado. Acordei esta manhã num motel em Key Biscayne, onde
os profissionais de imprensa serão mimados durante uma semana.
Aos meus sonhos, misturei a frase "Nixon tem medo de debater com
Humphrey. Por quê?" Eu tinha a impressão de que eu repetira esta
frase sem parar enquanto sonhava e continuei a repeti-la acordada.
Um pequeno avião sobrevoava o motel com um alto-falante, e um
barco com equipamento de som navegava de um lado para o outro
na praia.
Como sempre o pessoal de Humphrey calculara mal. Nixon não
se encontrava hospedado no hotel e sim com Bebe Rebozo, um mi-
lionário local e amigo de longa data que tinha uma sofisticada casa
de veraneio nas redondezas.
Mas as reações sempre são sinceras quando acordamos e me descobri
torcendo pelo aviãozinho cuja presença fora mal planejada. O slogan
era ridículo mas fiquei feliz em ouvi-lo. Não há escolha racional en-
tre o Homem de Plástico e o Leão Covarde e sim uma escolha afetiva.
Qual a vantagem de se ter inteligência e pragmatismo quando es-
tão a serviço de maus instintos?

JULHO 1969

A política do inesperado. Chappaquiddick aconteceu na semana


passada.
Entre as repercussões do fato estão uma nova olhada para
McGovern e novas possibilidades presidenciais. Ironicamente, ele
dissera a Ted Kennedy que deveria haver diversos candidatos na próxima
eleição "caso algum de nós atropele um poste no caminho de casa".
Agora há uma reunião para discutir a campanha em potencial
do próprio McGovern. Ele me telefonou para que me juntasse ao
grupo que está sendo formado pelo Senador Ribicoff e pediu para
que cada um de nós pensasse de antemão no que teria a dizer.
144 GLORIA STEINEM

A verdade é que não penso em política, pelo menos não da for-


ma convencional como teria pensado cinco ou seis meses atrás, des-
de que acordei para o fato de que minha posição, assim como a de
qualquer mulher, é profundamente política. Disseram-me que isto
é a Aurora do Feminismo.
Pensei nisso quando desliguei o telefone. Há seis meses eu teria
ficado honrada com o convite de McGovern para comparecer a uma
reunião de verdade (ou seja, de homens e portanto adulta), mas cheia
de dúvidas quanto a conseguir contribuir de maneira séria (ou seja,
masculina). Eu captara tantos recursos e fizera tanto trabalho políti-
co quanto qualquer outra pessoa durante a última e breve campa-
nha presidencial de McGovern e mesmo assim fora tratada como uma
pária frívola por grande parte da equipe senatorial de McGovern.
No entanto, eu me recusara a encarar a realidade do fato. Na verda-
de, um de seus principais assessores só parou de dizer "tire-a daqui"
quando descobriu que fora eu quem trouxera o maior contribuinte
individual da campanha: um imigrante judeu de setenta anos de idade,
açougueiro, que se comprometeu pelo telefone a doar dez mil dóla-
res sem pedir qualquer favor especial, apenas porque queria que as
tradições libertárias que o trouxeram para o país fossem preserva-
das. Não obstante, o assessor não queria ver mulheres envolvidas
em política e disse ter medo de que alguém achasse que eu estava
tendo um caso com o candidato.
Até mesmo na Dakota do Sul, onde muitos de nós fomos para
ajudar na reeleição McGovern para o Senado, apesar da convicção
dos eleitores conservadores de que "George se tornara hippie, como
um candidato pacifista" em Chicago, achei que deveria me vestir com
desleixo (cheguei ao cúmulo de sair para comprar um traje marrom
para esconder minhas formas) e me escondia pelos cantos.
Estes eventos eram ecos de todas as campanhas políticas nas quais
eu trabalhara como voluntária, de Estudantes por Stevenson em 1952
a McGovern. Como outras mulheres, ou eu ficava nas margens fa-
zendo trabalhinhos sem importância ou era mantida numa sala afastada
porque: a) talvez fosse contraproducente admitir que uma mulher
estava escrevendo discursos ou participando de decisões políticas e
b) se ela tinha menos de sessenta anos e não sofria de acne terminal,
alguém talvez pensasse que ela estava tendo um caso com o candi-
dato.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 145

Eu não só suprimira anos e anos de raiva pelo privilégio de ser


voluntária numa campanha, como também definira política de for-
ma extremamente limitada, como sendo eventos longínquos que
ocorrem em Washington, Saigon ou na prefeitura. Eu não conse-
guia admitir que qualquer relacionamento de poder nesta vida é
político, que política inclui quem lava a louça todas as noites ou quem
está ganhando metade do salário de um homem, tendo o mesmo
emprego. Ou, mesmo, de quem é esperado que assuma os papéis de
serviço e apoio em todos os lugares, incluindo campanhas políticas.
Esta é uma compreensão que devo àquelas mulheres valentes
cujas reuniões comecei a cobrir no inverno passado. Muitas delas eram
mais jovens do que eu. A maioria saíra dos movimentos pacifistas e
de direitos civis onde haviam se dado conta de que até mesmo estes
grupos idealistas e dignos de admiração relegavam as mulheres ao
mimeógrafo e à cafeteira. Era preciso formar um movimento lidera-
do por mulheres que combatesse o sexismo. Elas mudaram minha
vida. Eu jamais serei a mesma.
É por isso que estou ansiosa para ir à reunião. Em primeiro lu-
gar, eu poderei finalmente parar de sugerir as coisas com hesitação e
humor. Isso, por si só, fará com que eu economize muito tempo.
Não obstante, parto, feliz da vida, numa última viagem política
convencional para realizar uma reportagem, me juntando às dúzias
de jornalistas que irão seguir Nelson Rockfeller pela América Latina
numa missão diplomática que ele aceitou do Presidente Nixon, o
mesmo homem que fora seu adversário político durante tantos anos.
Mas, por outro lado, haveria alguém mais confiável do que Nel-
son Rockfeller? Tem boas intenções, é cheio de energia e possui um
quê de semideus. Caminhando pelo mundo afora com as pernas das
calças agitando ao vento e as mãos imensas estendidas num perpé-
tuo cumprimento, ele é o incansável político e um rico exemplar da
nossa era.
A pergunta é: confiável para quem? Ao entrevistá-lo entre um
país e outro, descubro que este candidato pacifista de um ano atrás
está ajudando Nixon a usar de violência para conseguir votos para
os mísseis antibalísticos. Além do mais, Rockfeller parece tão feliz
de ter recebido uma missão internacional, que prefere ignorar o quão
pouco popular é a sua missão. Até mesmo a Venezuela, país no qual
ele é proprietário de um rancho monumental há trinta anos e onde
146 GLORIA STEINEM

chama os líderes locais por apelidos, cancelou sua visita. Condenan-


do tal resistência popular como sendo "de inspiração comunista", ele
não parece se importar que os poucos países que nos recebem provi-
denciem verdadeiros exércitos para nos escoltar e peçam que nosso
avião da Pan American pouse em bem-guardadas bases militares.
No Haiti ele posa num "sorridente abraço com o decrépito e tirâni-
co Duvalier", como disse a legenda da revista Life algum tempo depois.
Infelizmente os haitianos são trazidos em caminhões para encherem
as ruas em "espontâneas" boas-vindas.
Esta derradeira e longuíssima viagem faz com que eu note que
estou cansada de me sentir alienada dos líderes que estou acompa-
nhando. Assim como ocorreu no avião de Nixon, um dos assessores
principais está convencido de que ligo de antemão para avisar os horários
aos manifestantes. A única diferença é que há um jornalista negro
no avião de Rockfeller que é também, é claro, suspeito de fazer o
mesmo. Nenhum de nós telefonou para quem quer que seja, mas
talvez devêssemos fazê-lo.
Também estou cansada de ser a única mulher dentre os profis-
sionais de imprensa. ("Você consegue fazer 25 flexões?", o assessor
de imprensa de Rockfeller me perguntou muito sério quando fui pedir
credenciais. "Não", eu respondi, "Não consigo fazer nenhuma". "É
uma pergunta que eu faço a todas as jornalistas mulheres", ele ex-
plicou, alegremente, "e torço para elas dizerem que não conseguem".)
Chego a casa e escrevo o que, espero, será minha última reportagem
política tradicional: "Nelson Rockfeller na América Latina — o Som
de um Aplauso Solitário".

AGOSTO DE 1969

No fim de semana de Vermont deste ano (que está se tornando, rapida-


mente, a única tradição da minha vida), McGovern tenta justificar o
fato de Ribicoff ter deletado meu nome da lista de convidados para
a reunião de planejamento para a candidatura de McGovern. Ribicoff
dissera simplesmente: "Nada de garotas". Segundo McGovern, ele
explicara a Ribicoff em seguida que eu fizera parte de sua vanguarda,
que eu ajudara a escrever seus discursos, que eu captara recursos e
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 147

tudo o mais. Ribicoff ouviu tudo pacientemente e em seguida repe-


tiu: "Nada de garotas".
Além do mais, McGovern está rodeado de novos talentos políti-
cos. Ao olhar para Gaibraith, Dick Goodwin e dois assessores, eu
me pergunto qual o propósito de minha presença. Eu, claramente,
não aprofundei a compreensão deste grupo no que diz respeito à
influência do sistema político sobre as mulheres. (Em grande parte,
a culpa é minha: não tive a confiança ou a consciência necessárias
para fazê-lo.) Venho trabalhando com o mesmo empenho que os
homens, trabalhando mais horas e captando mais recursos que a maioria
deles, mas apesar destas ações tão meritórias, não abri as portas para
outras mulheres. McGovern, por exemplo, jamais teria permitido
que Ribicoff saísse com um "Nada de negros" ou um "Nada de ju-
deus", mas "Nada de garotas" é, por algum motivo, aceitável.
Não que o incidente tenha tido tanta importância assim, ou mesmo
que a atitude de McGovern seja ruim. Já aceitei dúzias de situações
parecidas e McGovern, como chefe da Comissão de Reformas que
está mudando as regras de representação para a próxima conven-
ção, é um dos poucos políticos empenhados em aumentar a partici-
pação política das mulheres. Acho que é justamente pelo fato de a
reunião ser um incidente comum e por McGovern ser o melhor po-
lítico deste bando que me sinto tão alienada.
Eu me dou conta de que, a não ser que as mulheres se organi-
zem, que dêem apoio umas às outras, nada de básico vai mudar. E
me pergunto: Será que as mulheres, eu inclusive, estão dispostas a encarar
isto?

AGOSTO DE 1971

Mais um fim de semana em Vermont. Nada mudou mas tudo está


diferente.
McGovern está aqui mas, tendo declarado oficialmente sua intenção
de disputar a presidência desde janeiro de 1970, ele é agora um sério
candidato pelo Partido Democrata. Sabendo que encontraria resistência
no partido e que teria de conseguir o apoio das bases, ele embarcou
na mais longa campanha da história da presidência. Adeus aos ter-
nos largões de 1965. Cabelos mais longos e costeletas compensam a
148 GLORIA STEINEM

calvície incipiente. Henry Kimmelman, o garboso coordenador de


finanças de McGovern, começa a transformá-lo em candidato.
O ponto alto destes dois dias será um jantar beneficente para a
candidatura de McGovern: há gente vindo de todos os lados para
tomar ponche no pasto dos Galbraith. Fui recrutada para ser uma
dos muitos oradores — que mudança. Há dois anos, eu teria decla-
rado insanidade mental ou doença para não ter de me expor diante
de um grupo maior do que quatro pessoas, mas recentemente ve-
nho me juntando a uma outra mulher para falar do movimento fe-
minista. (Faz parte da teoria de McGovern que o crescimento de
um ser humano só ocorre com a conquista do medo.)
Estou certa de que o que me levou a ser incluída foi a recente
atividade política feminina. Depois de anos de planejamento e mui-
to trabalho, mês passado realizamos a reunião de fundação do Co-
mitê eleitoral Político das Mulheres, em Washington. Embora o
Secretário de Estado, William Rogers, e o Presidente Nixon tenham
dito à imprensa que a fotografia da Deputada Shirley Chisholm, de
Bella Abzug e de outras fundadoras do comitê eleitoral parecesse
"burlesca", alguns integrantes da imprensa noticiaram com serieda-
de este novo esforço eleitoral.
Está claro que ninguém sabe que a liderança entre mulheres de
todas as raças e entre homens negros e de cor permanece não explo-
rada. Em deferência a isto, assim como apoiei a candidatura simbó-
lica, e mesmo assim importante, de Shirley Chisholm, acabei elo-
giando McGovern por ser "o melhor candidato homem e branco".
Ele ri ao ouvir isto, sem se sentir envaidecido ou desconcertado.
Ele talvez seja um dos raros líderes que conseguirá tolerar uma mudança
tão fundamental.

FEVEREIRO DE 1972

Agora é McGovern e não McCarthy no frio de New Hampshire. Venho


trabalhando para Chisholm nos estados nos quais ela concorre nas
primárias e por McGovern onde ela não está. Portanto, estou aqui
para apoiar McGovern. Cinco reuniões de campanha em um dia e
me pergunto como os candidatos conseguem gostar ou mesmo so-
breviver numa dieta como esta.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 149

A vanguarda desta viagem é uma mulher. Assim como a candidata


a delegada com quem falei no comício. Há mulheres envolvidas em
quase todas as áreas da campanha aqui e elas acreditam que McGovern
favoreça as mudanças econômicas e legislativas das quais necessitam.
Mas, como tem acontecido em outros estados, as mulheres são colo-
cadas em posição de trabalhadoras e não de estrategistas, especial-
mente se depender dos homens jovens, e por vezes arrogantes, que
coordenam a campanha.
— McGovern é bom — a candidata a delegada me explicou
—, mas deveria disciplinar a equipe. Se os coordenadores de campa-
nha que trouxe consigo tivessem a mesma atitude com relação a homens
negros que demonstram em relação a todas as mulheres, estariam
na rua.
É doloroso ouvir isto, mas já se tornou um tanto familiar. Pro-
meto pedir ajuda à equipe em Washington mas temo que apenas as
mulheres de lá me darão ouvidos. Pergunta: Será que elas têm al-
gum poder?

MARÇO DE 1972

O telefone toca. E McGovern de algum aeroporto solitário, dando


telefonemas políticos. Ele me agradece por um discurso de captação
de recursos na Flórida e por New Hampshire dizendo, com certa
surpresa, que questões relacionadas aos direitos da mulher haviam
demonstrado ser extremamente eficazes contra o deputado McCloskey,
um republicano liberal que ameaçara tomar uma porcentagem crucial
apoio antiguerra de McGovern em New Hampshire.
Espero que McCloskey consiga enxergar sua própria insensatez
ao responder de forma leviana às diversas questões de igualdade. Na
verdade, McCloskey, que manteve a campanha no mesmo rumo dias
depois, admitiu que grande parte da resistência que enfrentou pelo
caminho era proveniente do sexo feminino.
Já que estamos falando deste assunto, menciono os problemas
da campanha. McGovern me soa um tanto resignado. Afinal de contas,
New Hampshire chegou ao fim. Não há mais com o que se preo-
cupar.
150 GLORIA STEINEM

Está havendo muita pressão para eu me tornar delegada de McGovern.


É páreo duro, pois tanto Chisholm quanto McGovern estarão na cé-
dula no estado de Nova Yark. Se eu concorrer como delegada de
Chisholm, há pouca chance de vencermos mas talvez qualquer mu-
lher que seja de alguma forma conhecida do público deva se ofere-
cer para concorrer em sua chapa.
Eu, pessoalmente, me sentiria muito mais à vontade compare-
cendo à convenção como membro da imprensa.

ABRIL DE 1972

Compareci à reunião da minha zona eleitoral e acabei me tornando


delegada de Chisholm. Acho que foi o tom de surpresa na voz de
McGovern que me levou a decidir: a surpresa pela força das ques-
tões relacionadas aos direitos da mulher em New Hampshire ou então
de um único discurso na Flórida para angariar dez mil dólares para
os cofres da campanha. Ele ainda não entende o enorme apelo do
movimento feminista.
Há muitos grupos pressionando a posição de McGovern para a
direita. A candidatura de Chisholm é uma das poucas forças na es-
querda e praticamente a única que focaliza as questões das mulheres
e de outros grupos de pouco poder.
Talvez sirva para educar McGovern e o país.

JUNHO DE 1972

Uma dúzia de membros do Comitê Eleitoral Nacional de Mulheres


reuniu-se com McGovern em Washington. O objetivo era testar seu
conhecimento nos diversos assuntos de interesse das eleitoras, da
previdência ao orçamento militar. As representantes do comitê elei-
toral fizeram o mesmo com todos os outros candidatos.
Após alguma discussão sobre a nomeação de mulheres para os
altos escalões do governo, algo com que McGovern concordou plena-
mente, entramos na área mais sensível: o aborto. O problema é que,
a princípio, McGovern inspirara esperança, para em seguida arrefe-
cer. Meses depois de haver tomado, silenciosamente, a posição de
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 151

que esta era uma decisão individual, não um assunto legislativo, ele
se viu brutalmente atacado por grupos antiaborto durante as pri-
márias. Sem ter o mesmo instinto a respeito desta questão que pos-
sui no que diz respeito à guerra ou à economia, ele fez algo muito
atípico para ele próprio: voltou atrás. Primeiro, disse que era um assunto
que cabia a cada estado decidir e depois sugeria o oposto criticando
Nova York diretamente por ser excessivamente liberal. Como resul-
tado, sua posição não pareceu consistente ou simpática a nenhum
dos dois lados da questão.
Como forma de resolver o dilema, sugeri o termo "direito
reprodutivo", constante do próprio estatuto do comitê eleitoral. Talvez
pudesse ser adaptado para alguma plataforma política. Por exem-
plo: "O Partido Democrata se opõe à interferência do governo na
liberdade reprodutiva e sexual do cidadão americano como indiví-
duo". Isto englobava o assunto em todas as suas proporções por in-
cluir o verdadeiro apelo das leis que regem o controle de natalidade,
as leis de eugenia que permitem a esterilização involuntária e as leis
relacionadas à escolha sexual — todas preocupações tanto masculi-
nas quanto femininas. No item aborto, incorporamos uma pesquisa
do Instituto Gallup que mostrava 57% de todos os cidadãos ameri-
canos e 54% de todos os cidadãos americanos católicos acreditando
ser uma escolha individual, sob orientação médica, e não uma esco-
lha do governo. Além disso, assumia também uma posição contra a
interferência do governo com a qual tanto a esquerda quanto a di-
reita concordariam.
McGovern ouvia com atenção, como é seu costume, e disse que
gostava da formulação, que pensaria a respeito e que nos daria uma
resposta naquela mesma noite.
O único ponto de discórdia durante a reunião foi quanto à re-
presentação feminina na equipe de campanha. Betty Friedan, exage-
radamente loquaz com seu estilo frenético, disse a ele para ter "mais
mulheres visíveis na campanha, porque neste instante simplesmen-
te não há nenhuma". McGovern respondeu dizendo que aquilo era
uma grande asneira e você não sabe do que está falando". E na ver-
dade, Jean Westwood, uma das principais estrategistas políticas da
campanha, assim como várias outras mulheres influentes da equipe
de McGovern, encontravam-se na sala.
Uma delas foi ao auxílio de Betty acrescentando que, embora
152 GLORIA STEINEM

estivessem na campanha, as mulheres não eram sempre ouvidas.


McGovern, pessoalmente, estava sempre pronto para ouvir, ela ex-
plicou, naquilo que se tornara um truísmo da campanha, mas levar
as questões da mulher, assim como as assessoras da campanha, a sério
não havia sido inculcado o bastante nas mentes da equipe.
A reunião foi desorganizada porém útil. McGovern pareceu dis-
tante e um tanto impaciente, mas ainda assim pronto para ouvir e
para mudar. Apenas Shirley MacLaine, voluntária pró-McGovern,
parecia incomodada ao final. Embora ela concordasse pessoalmente
com o direito à liberdade sexual e reprodutiva, temia que Nixon,
que favorecia políticas restritivas em todas estas áreas, usasse estas
questões contra McGovern. E segundo ela proteger McGovern era
o objetivo pelo qual qualquer princípio ou questão política deveria
ser sacrificado.
Teria eu sido infectada pelo vírus da campanha em meus dias
pré-feministas? Era possível. Eu levara muito tempo para descobrir
que ninguém se pronunciaria a favor de tais questões se os eleitores
interessados não o fizessem. Demorei ainda mais tempo para com-
preender que podiam ser vitoriosas.
Uma frase perturbadora voltou à minha mente quando eu ia saindo.
Quando perguntamos a McGovern sua posição em relação à previ-
dência social, ele pareceu perplexo: "Por que é que este grupo se preo-
cuparia com esse assunto?" Se ele não encara a previdência social como
uma questão feminista, de que forma anda a comunicação?

Shirley MacLaine cortou o item liberdade reprodutiva do rascunho


de McGovern para a plataforma democrata sem, segundo ela pró-
pria, a ciência ou a instrução de seu candidato. As mulheres têm medo
de arriscar a aprovação masculina a tal ponto que nem os esperamos
dizer não. Ou então nós os protegemos, nem que para tanto diga-
mos não para nós mesmas.
Mas Jennifer Wilke, uma jovem delegada do Alasca, empenhou-
se e conseguiu assinaturas suficientes para reintroduzi-la como princípio
político minoritário, tirando as palavras "e sexual" porque, no meio
tempo, representantes da comunidade,^ haviam lançado seus pró-
prios princípios políticos.
Assim, o direito à liberdade reprodutiva aparecerá na conven-
ção da mesma forma. E o forte do movimento das mulheres: algu-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 153

mas de nós não mais aceitará que nos digam o que fazer, nem mes-
mo de uma outra.

JULHO DE 1972

Durante a semana, antes da convenção de Miami, o Comitê eleito-


ral vem se reunindo para planejar.
Na verdade, já conseguimos muito mais do que esperávamos,
pois mulheres de todo o país passaram pela Aurora Feminista e se
dispuseram a trabalhar. Por exemplo:

1. Quarenta por cento dos delegados serão mulheres, em compara-


ção aos 14% de 1968. O Comitê eleitoral aumentou a cifra
pressionando o Comitê Democrata Nacional a forçar o cum-
primento das regras da Comissão de Reformas de McGovern
e a realizar sessões de treinamento para delegados em todo o
país. Mas foram as mulheres, individualmente, que assumi-
ram os riscos e, por mais precário que seja o apoio, ingressa-
ram em suas estruturas políticas locais, aconteça o que acon-
tecer em Miami.
2. Haverá uma mulher co-presidindo a convenção: Yvonne
Brathwaite, uma jovem negra que integra o legislativo da
Califórnia e que é candidata a um assento no Congresso.
3. Existe um princípio político feminino que inclui todas as
questões cruciais, exceto a liberdade reprodutiva, já incluída
no relatório geral exatamente como saiu do Comitê da Pla-
taforma. A deputada Bella Abzug organizou outros mem-
bros do Comitê da Plataforma para incluir os princípios.
4. A maioria dos desafios a serem vencidos por delegações que
não possuem uma representação justa já o foram, ou pelo menos
algum acordo foi negociado com o Comitê de Credenciais.

A convenção está fadada a ser muito diferente da de 1968, quando


a maioria das mulheres compareceu a almoços e desfiles de moda
organizados para "as esposas".
Mas ainda estamos assustadas. Eu, particularmente, estou as-
sustada porque sou uma das duas porta-vozes do comitê eleitoral
154 GLORIA STEINEM

eleitas para coordenar nossas forças nas convenções Democrata e


Republicana, respectivamente. Mesmo sem termos a experiência, o
dinheiro ou as informações computadorizadas disponíveis às outras
forças desta convenção, teremos de criar uma luta unificada em pelo
menos quatro questões: qualquer desafio que tenha sobrado às de-
legações com poucas integrantes mulheres, o princípio reprodutivo,
um princípio para os pobres que contenha melhores provisões em
relação à previdência social do que o relatório da maioria e, se tiver-
mos coragem, a vice-presidência.

Se permitirem que Barnum & Bailey interpretem uma trama de


Stendhal, talvez transforme-se em algo parecido com a convenção
democrata de 1972. Minhas recordações são de ter passado quatro
dias sem dormir, sem conseguir telefonar para quem quer que fosse,
infindáveis maquinações para conseguir passes, disputas internas
sangrentas entre quatro mulheres do Comitê eleitoral, frustração,
raiva e, estranhamente, quando tudo terminou, uma sensação de
realização e de comunidade. Por exemplo:

• Escolhemos o desafio da Carolina do Sul como nosso estan-


darte na luta pelos direitos da mulher em parte porque uma
vitória instituiria a definição de "affirmative action" (prática
usada nos EUA através da qual grupos normalmente discri-
minados — particularmente devido a raça ou sexo — são
favorecidos para preencher uma vaga numa companhia) que
teria auxiliado todos os grupos tradicionalmente excluídos.
A primeira experiência de realismo político ocorreu quando
um delegado da Carolina do Sul, em discurso contra nosso
desafio, sugeriu que mulheres brancas começariam a substi-
tuir homens negros, uma tática clássica de desunião. A im-
plicação era falsa (o recurso afirmava explicitamente que o
equilíbrio racial deveria permanecer intocado) e particular-
mente irritante quando as mulheres, negras e brancas, haviam
escolhido este teste justamente porque representava uma
aliança.
Teria a tática nos vencido? Jamais saberemos. Como os
estrategistas de McGovern ficaram nervosos com a possibili-
dade de mudança no número total de votos necessários para-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 155

constituir-se a maioria — como precedente para o principal


desafio da Califórnia — começaram a retirar seus votos no
meio da votação nominal da Carolina do Sul.
Sentimos o que era ser uma bola de futebol entre as for-
ças pró-McGovern e anti-McGovern. A questão em si—assim
como a promessa de auxílio de McGovern — não significava
coisa alguma.

• O princípio político da mulher passou maravilhosamente bem,


como era de se esperar. Em 1968 não houvera uma só palavra
a respeito da mulher na plataforma do Partido Democrata.
Teríamos comemorado se não estivéssemos tão ocupadas.

• O desafio à delegação de Chicago, liderada pelo Prefeito Daley


— um grupo com pouquíssimas mulheres, minorias étnicas
e jovens — recebeu apoio. O grupo que não era de Daley
levou as cadeiras. O espírito que reinara em 1968 estava,
oficialmente, morto.

O consenso nas reuniões das delegadas mulheres, organizadas pelo


Comitê eleitoral, fora lutar a favor do princípio das minorias no que
dizia respeito à reprodução humana. Ocorreu que foi apoiado por
nove votos a um. Nós, certamente, lutamos, com três delegadas
mulheres discursando eloqüentemente a seu favor como um direito
constitucional. Um fanático pró-vida discursou de maneira inflamada
e Shirley MacLaine também discursou pela oposição dizendo que
este era, sem dúvida, um direito fundamental mas que não perten-
cia à plataforma.
Longe de amargarmos a humilhante derrota que temíamos e de
arriscar os esforços anteriores para impedir que a legislação antiaborto
passasse na justiça, nós nos sobressaímos. Ficou claro que teríamos
ganho se as forças de McGovern não tivessem instruído seus dele-
gados e os deixasse votar de acordo com a própria consciência. A
questão de liberdade reprodutiva foi mencionada numa plataforma
política nacional pela primeira vez.

Depois que Shirley Chisholm decidira não se candidatar à vice-pre-


sidência, tivemos apenas uma tarde para lançar a candidatura de
156 GLORIA STEINEM

Francês "Sissy" Farenthold. Ela fora candidata ao governo do Texas


e criara uma aliança sem precedentes que incluía mulheres, jovens,
negros, latinos e outros trabalhadores. Suas qualificações eram tão
boas quanto as de Tom Eagleton, a escolha de McGovern. Como
ele, ela era católica e vinha de um estado do Sul e não era uma figu-
ra mais obscura do que ele.
Não havia tempo para lobbies, então os oradores que discursariam
a seu favor foram escolhidos para encarnar os comitê eleitorais de
maior importância.
Em uma investida final e gloriosa, nosso sistema de contatos
construído às pressas funcionou. A maioria das mulheres não ouvira
falar de Sissy Farenthold até Miami mas confiavam nas informações
de sua líder na assembléia o suficiente para votar em outra mulher.
Embora Farenthold tenha chegado em segundo lugar — McGovern
obviamente controlava o número de votos necessário para que Eagleton
obtivesse a nomeação — ela derrotou diversos homens que estavam
em campanha há meses.
Como resultado, os entrevistadores estavam menos aptos a per-
guntar de maneira desdenhosa se "Haveria uma mulher qualifica-
da?"
Fannie Lou Hamer, conhecida e querida líder política do Mississippi,
cuja plataforma principal era o direito dos negros à cidadania, e uma
das fundadoras do Comitê Eleitoral Nacional de Mulheres, fora uma
das nomeadoras da campanha de Farenthold. "Eu sei que é difícil",
ela disse, "para uma mulher branca do Sul lutar como ela luta". Depois
do voto, ela acrescentou: "Nós venceremos da próxima vez".

É a manhã seguinte a estes acontecimentos tão vultosos e estamos


todas roucas e trêmulas de exaustão. John Conyers, brilhante depu-
tado negro do estado do Michigan, conseguiu marcar uma audiên-
cia com McGovern para nossa Comissão Clearinghouse — um gru-
po que luta pelos direitos civis, das mulheres e de outros grupos re-
formistas que vêm coordenando outros esforços antes e durante esta
convenção.
Finalmente, nos levam a uma sala pequena. McGovern se en-
contra em mangas de camisa e de repente não é mais um candidato
distante e sim um rosto calmo e familiar do passado.
Discutimos a coordenação futura e ele pede a Gary Hart, urn
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 157

dos principais membros da equipe e um dos rapazes arrogantes que


dificultaram ávida das mulheres que trabalhavam na campanha, para
se desculpar pela citação "incorreta" na qual ele afirmara não haver
um número suficiente de mulheres com experiência política ou que
soubessem se organizar.
Mulheres com idade o bastante para ser sua mãe ou avó, e que
passaram a vida inteira se organizando, aceitam suas desculpas de
bom grado.
McGovern se detém à saída e fica em silêncio. É um momento
estranho e comovente, é como se eu fosse um lembrete dos sete lon-
gos anos que se seguiram desde 1965 e que o tempo varrera, subita-
mente, como uma onda, trazendo uma maré de recordações. A sala
fica em silêncio.
— É incrível, não é mesmo — eu digo, sem saber o que dizer.
— Depois de Chicago, é tão difícil crer.
— Sim — ele concorda finalmente. — É difícil acreditar. Mas
ainda temos um longo caminho pela frente.
Se há agitação, ou até mesmo raiva ao redor de McGovern, é
porque ele inspira esperança, coisa que Nixon não inspira. E a espe-
rança é uma emoção indomável.
Mas eu nunca mais deixarei de notar a ausência de mulheres como
eu fiz certa vez no avião da campanha de Nixon. Tampouco exclui-
rei as mulheres quando almejar o retorno de "homens compassivos".
As mulheres não mais serão copeiras que não entendem de polí-
tica ou jornalistas inseguras que não conseguem enxergar a nossa
metade do mundo. Nenhum líder é perfeito. Precisamos aprender a
ser nossas próprias líderes.
Irmandade*

Há muitos e muitos anos (uns três ou quatro), eu sentia um pra-


zer seguro e justificado em dizer as coisas que são esperadas de uma
mulher. Lembro-me, com certa dor, de dizer:

— Meu trabalho não interferirá em meu casamento. Afinal de


contas eu posso ter uma máquina de escrever em casa.
Ou:
— Não quero escrever sobre coisas de mulher. Quero escrever
sobre política externa.
Ou:
— As famílias negras foram forçadas a aceitar um sistema
matriarcal, então é compreensível que as mulheres negras se escon-
dam por trás de seus homens.
Ou:
— Eu sei que estamos ajudando grupos latinos que são injus-
tos com as mulheres, mas a cultura deles é assim.
Ou:
— Quem vai querer se associar a um grupo de mulheres? Eu
nunca fui de me associar a coisa alguma, e você?
Ou (me gabando):
— Ele disse que eu escrevo como um homem.

Suponho que fique claro, pelo tipo de afirmações que escolhi, que
eu estava secretamente fugindo do que era esperado de mim. Eu não
era casada, ganhava a vida numa profissão da qual gostava e tinha

*A autora fala aqui de um sentimento e de uma descoberta únicos ao contingente feminino. A


tradução do termo sisterhood como "irmandade" não seria, portanto, apropriada no contexto deste
ensaio por incluir o sexo masculino. Assim foi cunhado o termo "irmandade" para designar a sadia
resistência feminina ao status quo. (N. da T.)
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 159

amigos fora do grupo racial ao qual pertenço. Eu havia basicamen-


te, embora em silêncio, optado por permanecer fora do papel "femi-
nino". Por isso mesmo, era necessário que eu repetisse a sabedoria
popular e até parecesse o mais convencional possível se quisesse evi-
tar alguns dos castigos reservados pela sociedade para quem não faz
o que ela dita. E assim aprendi a fingir meu conformismo com suti-
leza, lógica e humor. Às vezes até eu mesma acreditava no papel.
Se não fosse pelo movimento feminista, talvez eu ainda estives-
se fingindo. Mas as idéias deste turbilhão que varreu o ponto de vis-
ta feminino são contagiantes e irresistíveis. Elas atingiram as mu-
lheres tal qual uma revelação religiosa, como se tivéssemos deixado
um quarto escuro para nos expormos ao sol.
A princípio, minhas descobertas pareciam puramente pessoais.
Mas na verdade eram descobertas que muitos milhões de mulheres
fizeram e continuam a fazer. Simplificando enormemente as coisas,
é mais ou menos assim: as mulheres são em primeiro lugar seres
humanos, e diferem dos homens em termos ligados, principalmen-
te, ao ato da reprodução da espécie. Compartilhamos os sonhos, as
capacidades e as fraquezas de todos os seres humanos, mas uma oca-
sional gravidez aqui e ali, assim como outras diferenças visíveis, vêm
sendo usadas — de forma mais abrangente, embora menos brutal,
do que a utilização de diferenças raciais — para criar um grupo "in-
ferior" e uma complicada divisão de trabalho. Esta divisão continua
por um motivo claro e muitas vezes inconsciente: o lucro social e
econômico dos homens, de um patriarcado como grupo.
Uma vez que a revelação feminista se instaurou, reagi de forma
até previsível. A princípio fiquei impressionada com a simplicidade
e a clareza de uma revelação que finalmente dava sentido às minhas
experiências pessoais. Eu não conseguia entender como não perce-
bera isto tudo antes. Em seguida, eu me dei conta da distância que
havia entre esta visão de vida e o sistema que nos rodeia e o quão
difícil seria explicar a aurora feminista, quanto mais conseguir que
as pessoas (em especial, embora não exclusivamente, os homens)
atentassem para considerar uma mudança tão dramática.
Mas tentei explicar. Só Deus sabe {ela sabe) que as mulheres tentam
de tudo. Nós fazemos analogias com outros grupos que foram marcados
pela subserviência, como forma de ajudar as imaginações menos fa-
vorecidas. Suprimos fatos intermináveis e estatísticas de injustiças e
160 GLORIA STEINEM

repetimos tudo até nos sentirmos como verdadeiros bancos de da-


dos. Podemos contar com o método de inversão. (Se houver um ho-
mem dentre meus leitores para o qual todas as minhas afirmações
pré-revelação parecem perfeitamente lógicas, por exemplo, que ele
substitua "mulher" por "homem" em cada frase lida — ou ele por
eu — para ver como se sente: "Meu trabalho não interferirá em meu
casamento"; "Grupos de latinas que maltratam os homens..." Acho
que deu para entender.)
Usamos, até mesmo, a lógica. Se uma mulher passa um ano
cuidando e amamentando uma criança, por exemplo, é dela a res-
ponsabilidade primordial de criar esta criança até a idade adulta. Isto
é lógico pela definição masculina, mas freqüentemente força as mu-
lheres a aceitar que criar os filhos é sua única função na vida, levan-
do-as a não fazer qualquer outro tipo de trabalho ou a não desejar a
maternidade. Não seria igualmente lógico dizer que uma criança tem
um pai e uma mãe e que, portanto, ambos são responsáveis pela sua
criação — e que o pai deveria compensar aquele ano extra da mu-
lher passando mais do que a metade do tempo com a criança? A lógica
depende do lógico em questão.
De vez em quando estas tentativas de explicar funcionam. Mas
em geral tenho a impressão de que as mulheres falam urdu e a maioria
dos homens pali.
Alegre ou dolorosa, ambas as reações à nossa descoberta trouxe-
ram uma grande recompensa: o nascimento da irmandade.
Primeiro, compartilhamos a hilaridade do crescimento e da
autodescoberta, a sensação de que as vendas caíram de nossos olhos.
Quer estejamos dando ou recebendo esta nova sabedoria de outras
mulheres, o prazer que todas sentem é comovente.
Num segundo estágio, quando já estamos exaustas de tanto re-
virar fatos e argumentos para os homens que achávamos tão adian-
tados e inteligentes, fazemos uma outra descoberta simples: muitas
mulheres compreendem. Podemos compartilhar experiências, fazer
piadas, pintar quadros e descrever humilhações que significam mui-
to pouco para os homens, mas as mulheres compreendem.
O mais estranho destas conexões profundas e pessoais entre as
mulheres que vivem sob um regime patriarcal é que elas constante-
mente saltam barreiras de idade, grupo sócio-econômico, experiên-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 161

cia de vida, raça e cultura — todas as barreiras que, numa sociedade


masculina ou mista, parecem impossíveis de transpor.
Eu lembro de ter me encontrado com dois grupos de mulheres
do Missouri que, por terem vindo em número igual de uma cidade-
zinha do interior e de um campus universitário, pareciam estar divi-
didas em donas de casa de luvas brancas e estudantes calçando boots
de soldados e usando palavras tais como "imperialismo" e "opres-
são". Elas haviam se juntado para criar uma creche, mas a reunião
parecia fadada ao fracasso até que três das meninas de botas come-
çaram a discutir entre si a respeito de um jovem professor. Como
líder dos radicais do campus universitário, ele acusava todas as mu-
lheres que se recusavam a imprimir folhetos no mimeógrafo de não
se dedicarem de corpo e alma à causa. E quanto às creches, ele acha-
va que o fato destas permitirem que as mulheres disputem com os
homens no mercado de trabalho traria a temida "feminização" do
homem e da cultura americana.
— Ele parece até o meu marido — disse uma das mulheres de
luvas brancas. — Quer que eu faça docinhos para vender e que peça
dinheiro de porta em porta para o Partido Republicano dele.
As jovens foram espertas o bastante para continuar daí. Que dife-
rença fazia se usavam botas ou luvas brancas se todas estavam sendo
tratadas como serventes ou como crianças? Antes de se separarem,
discutiam assuntos que afetavam a todas elas igualmente (tal como
o mito do orgasmo vaginal) e planejavam se reunir uma vez por semana.
— Os homens acham que somos apenas aquilo que fazemos para
eles—explicou uma das donas de casa. — Só vamos descobrir quem
somos se nos juntarmos a outras mulheres.
Até mesmo barreiras raciais se tornam menos intransponíveis
quando descobrimos a reciprocidade de nossa experiência como
mulheres. Durante uma reunião organizada por empregadas domésticas
negras que haviam formado uma cooperativa no estado do Alabama,
uma dona de casa branca me perguntou a respeito das sessões de
autoconsciência ou dos grupos de discussão que são, muitas vezes, o
caminho orgânico que leva ao feminismo. Expliquei que enquanto
os homens, até mesmo homens dos grupos "errados", normalmente
tinham um local — um bairro, um bar, uma esquina, qualquer coi-
sa — onde podiam se reunir para ser eles mesmos, as mulheres de
todos os grupos tinham a tendência de se isolar em casa, com suas
162 GLORIA STEINEM

famílias. Mulheres se isolam de outras mulheres. Nós não temos


esquinas, bares, escritórios ou território algum reconhecidamente
feminino. Os grupos de discussão eram um esforço pela criação de
algo nosso, um local livre — uma oportunidade ocasional de se ser
completamente honesta e de apoiar nossas irmãs.
Enquanto eu falava do isolamento, da sensação de haver algo er-
rado conosco se não estivermos satisfeitas em sermos donas de casa e
mães, as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto desta mulher tão
digna, deixando-a tão surpresa quanto nós. Para as negras, um pouco
da distância se encurtou ao verem uma mulher branca chorar.
— Ele faz a mesma coisa com nós duas, meu bem — disse a
negra sentada ao seu lado, abraçando-a. — Não importa se está na
sua cozinha ou na de outra pessoa, não somos tratadas como gente
da mesma forma. O trabalho da mulher simplesmente não conta.
A reunião terminou com a dona de casa organizando um grupo
de apoio de mulheres brancas para tirarem de seus maridos um salá-
rio digno para as empregadas domésticas e para as ajudarem a lutar
contra as autoridades locais que se opunham a tais aumentos. Era
um grupo de apoio sem o qual as empregadas domésticas não veriam
sua pequena e valente cooperativa sobreviver.
Quanto ao argumento do "matriarcado" que eu engolia tão bem
nos meus tempos de pré-feminismo, agora compreendo por que tantas
mulheres negras se ressentem dele. Sinto que é uma forma que os
sociólogos brancos encontraram de fazer com que a comunidade negra
sinta que seu estilo de vida é inferior ao do patriarcado branco. "Se
eu acabar fazendo papa de milho para revolucionários", explicou uma
poeta negra de Chicago, "esta revolução não é minha. Homens e
mulheres negros precisam trabalhar juntos. Não dá para haver li-
berdade para metade de uma raça." Na verdade, algumas negras se
perguntam se o fato de criticarem a força que elas são obrigadas a
desenvolver não seria uma forma de manter metade da comunidade
negra trabalhando abaixo de sua capacidade e por um salário menor
e de atribuir os sofrimentos do homem negro à mulher negra, em
vez de irem direto à real fonte: o racismo.
Recordando todas aquelas coisas pré-aprovadas pelo sexo mas-
culino que eu citava antigamente, a dificuldade básica me parece
clara: a falta de estima pelas mulheres, qualquer que seja nossa raça,
e por mim mesma.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 163

Este é o castigo mais trágico que a sociedade inflige a grupos de


segunda classe. No final das contas, a lavagem cerebral funciona e
nós mesmos passamos a acreditar que nosso grupo é inferior. Se
obtivermos algum sucesso neste mundo, passamos a nos ver como
"diferentes" e não queremos mais nos relacionar com nosso grupo.
Queremos nos identificar com o que está acima, não abaixo (este era
claramente meu problema ao não querer me associar a grupos de
mulheres). Queremos ser a única mulher do escritório, a única famí-
lia negra da quadra, o único judeu do clube.
A dor de recordar todos os anos desperdiçados e imitativos é imensa.
Tentar escrever como um homem. Medir o meu valor e o de outras
mulheres pelo nosso grau de aceitação por homens — socialmente,
na política e em nossas profissões. E tão doloroso quanto ouvir duas
mulheres adultas competirem entre si com base no status de seus
respectivos maridos, como serventes cujas identidades dependem da
riqueza ou das conquistas de seus empregadores.
Esta falta de auto-estima que nos coloca para baixo ainda é a
maior inimiga da irmandade. Mulheres que aceitam as expectativas
da sociedade encaram as não-conformistas com compreensível alar-
me. Aquelas mulheres barulhentas e pouco femininas, elas dizem a si mesmas.
Elas só nos trarão problemas. As mulheres que se rebelam silenciosa-
mente, rezando para que ninguém note, ficam ainda mais alarma-
das porque acham que têm mais a perder.
O status quo se protege castigando todos aqueles que o desafiam,
especialmente as mulheres, cuja rebelião atinge a mais fundamental
das organizações sociais: os papéis sexuais que convencem a metade
da população de que sua identidade depende de estar no trabalho ou
na guerra em primeiro lugar, e a outra metade de que ela deve servir
em todo o mundo como mão-de-obra gratuita ou mal paga.
Na verdade, parece não haver castigo para homens brancos que
cheguem perto do ridículo e da crueldade reservada às mulheres que
se rebelam. Mulheres atraentes ou jovens que agem com segurança
são consideradas estranhas ou controladas por algum homem. Se são
bem-sucedidas, só pode mesmo ter sido através de algum favor se-
xual, graças a algum homem. Mulheres mais velhas, ou considera-
das pouco atraentes pelos padrões masculinos, são acusadas de agi-
tem por serem amargas, por não conseguirem um homem. Qual-
quer mulher que escolha se portar como um ser humano completo
164 GLORIA STEINEM

deve ser avisada de que os exércitos do status quo a tratarão como


uma piada de mau gosto. Ridicularizar é a arma mais natural e a
primeira a ser usada, a oposição mais séria virá em seguida. Esta mulher
precisará de irmandade.
Tudo isso aqui tem o intuito de servir como aviso. As recompen-
sas são mais freqüentes do que os castigos.
Eu pessoalmente posso começar a admitir minha raiva e a usá-la
de forma construtiva. Antigamente eu teria deixado que submer-
gisse, que supurasse e se transformasse em culpa, ou então eu a acumula-
ria até explodir de forma destruidora.
Conheci mulheres valentes que estão explorando os limites de
sua possibilidade como ser humano, sem a história para guiá-las e
com uma coragem de se expor que acho comovente.
Não acho mais que não existo, o que é a minha versão da falta
de auto-estima que aflige a tantas mulheres. (Se os padrões mascu-
linos não eram naturais para mim — sendo eles o único padrão exis-
tente —, como poderia eu existir?) Isto significa que estou menos
apta a precisar de valores e de aprovação externa e que estou menos
vulnerável aos argumentos clássicos. ("Se você não gosta de mim não
deve ser mulher de verdade", diz um homem que está tentando se
aproximar sexualmente. "Se você não gosta de mim não deve se re-
lacionar bem com ninguém", diz qualquer um que conheça bem a
arte da chantagem.)
Às vezes consigo encarar os homens como seres iguais e assim
consigo gostar deles como seres humanos, como indivíduos.
Descobri uma política que não é intelectual ou superposta. E
uma política orgânica. Finalmente compreendo por que passei anos
de minha vida, inexplicavelmente, me identificando com os grupos
"excluídos". E simples, eu também pertenço a um. E sei que será
necessária uma aliança de tais grupos para chegarmos a uma socie-
dade na qual ninguém nascerá num papel de segunda classe devido
às diferenças visíveis tais como raça, sexo ou o que quer que seja.
Não me sinto mais estranha quando estou só ou na companhia
de um grupo de mulheres. Eu me sinto ótima.
Sou constantemente levada a descobrir que tenho irmãs.
Estou começando, só começando, a descobrir quem sou.

— 1972
Reunião de Ex-Alunas

Uma semana antes de nos reunirmos para comemorar 25 anos de


formatura, uma repórter de Washington me telefonou para dizer que
estava escrevendo um artigo no qual perguntava por que tantas
mulheres bem-sucedidas estudaram em Smith College.
— Como, por exemplo?—perguntei com cautela, pressentin-
do a armadilha.
— Como Nancy Reagan e Barbara Bush — ela respondeu. —
Você não acha incrível que as duas mulheres mais influentes do país
tenham estudado na mesma faculdade?
Há uma pequena pausa durante a qual nós duas esperávamos
que eu encontrasse uma forma diplomática de desafiar a definição
de "mais influentes".
— Escute aqui — eu disse, finalmente. — Você acha que al-
gum jornalista está entrevistando os colegas de escola do Sr. Thatcher
para descobrir se foram treinados para casarem-se com chefes de Estado?
O Sr. Thatcher é um dos homens mais influentes da Inglaterra?
A jornalista riu. Concordava que a idéia do artigo era um tanto
idiota, especialmente porque ela estudara em Smith e sabia que as
coisas não eram bem assim. Mas havia sido encomendado pelo edi-
tor.
— Você sabia que Jean Harris estudou em Smith? — ela acres-
centou, seca.
Não, eu não sabia. Talvez a ligação entre Jean Harris, Nancy
Reagan, Barbara Bush e outras colegas famosas fosse a mesma para
mim e para a jornalista: eram todas campeãs olímpicas do tradicio-
nal jogo feminino de transferência do ego para o corpo de um ser
humano do sexo masculino. Foi esta terrível familiaridade com o referido
jogo que fez com que tantas mulheres, especialmente as mais ve-
lhas, se sentissem desconfortáveis e solidárias quando a humilhação
romântica sofrida por Jean Harris foi exposta na imprensa. Ela disse
166 GLORIA STEINEM

que quisera suicidar-se quando atirou, acidentalmente, no Dr. Tarnower


o amante de longa data que começara a se interessar por uma mu-
lher mais jovem. Talvez quisesse mesmo se matar. Talvez o Dr. Tarnower
tivesse se tornado ela própria.
Deixamos esta ligação perturbadora de lado e passamos a algo
mais ameno. Mesmo nos anos quarenta, quando Nancy Reagan e
Jean Harris eram alunas, Smith, assim como outras faculdades ex-
clusivamente para mulheres, produzia um número desproporcional
de estudiosas e profissionais, especialmente em áreas consideradas
"pouco femininas" tais como as ciências e a matemática. Embora Smith
se orgulhasse de ter mais homens do que mulheres em seu corpo
docente — uma prova de seriedade salientada no catálogo da facul-
dade até mesmo quando eu a freqüentei, nos anos cinqüenta — e
embora nenhuma mulher tivesse sido reitora de Smith até a chega-
da da atual, em 1975, tínhamos mais professoras e mais exemplos
femininos a seguir do que as instituições mistas teriam nos propor-
cionado. Igualmente importante era o fato de jamais corrermos o
risco de nos sentirmos deslocadas numa sala de aula onde a maioria
era de homens. E esta a sina de tantas mulheres que freqüentam
faculdades e universidades mistas, especialmente em áreas como as
ciências e a matemática.
Mas até mesmo enquanto eu e a jornalista discutíamos os inte-
ressantes motivos pelos quais Smith produzia um número inusitado
de mulheres independentes e competentes, ambas sabíamos que mesmo
todas elas juntas davam menos matérias na imprensa do que uma
Nancy Reagan. Qualquer Primeira Dama, independentemente do
que fizer ou deixar de fazer, está mais propensa a encabeçar a lista
de Mulheres Mais Admiradas do País do que qualquer mulher que
tenha chegado ao topo sozinha.
Esta mensagem da sociedade é especialmente dolorosa para
mulheres que foram encorajadas a lutar pela eminência e pelo pra-
zer das conquistas pessoais, para em seguida serem subordinadas aos
filhos e à carreira do marido. "Se quisermos ter filhos cultos", nos
diziam em Smith durante os anos cinqüenta, "devemos ter mães cultas'
Esta forma impossível de resolver a tensão existente entre materni-
dade e outras aspirações resultava nas notas da Revista Trimestral
de Ex-Alunas, ano após ano: "Sophia Smith Jones, formanda de 1956,
terminou o doutorado, fez trabalho voluntário e lecionou em diver-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 167

sos lugares enquanto criava os quatro filhos e seguia o marido, John,


em sua carreira corporativa".
O que me levou à reunião foi a pergunta que a jornalista não
fez: Como conseguimos sobreviver à ambigüidade da mensagem que recebe-
mos durante nossos estudos superiores?

A coisa mais importante de uma reunião de ex-alunas de uma faculdade


só de mulheres é quem não comparece. "Meu Deus, e quem ia querer
ir?", era uma pergunta freqüente. "Vai ser tão deprimente." O mo-
tivo era constantemente algum microcosmo de desprezo pelas mulhe-
res: por nós mesmas e por outras. Algumas diziam que não queriam
ir porque nada mais eram do que donas de casa. Outras porque se
divorciaram e deixaram de ser donas de casa. Umas porque haviam
engordado demais e outras porque eram bem-sucedidas em suas car-
reiras e supunham que as outras tentavam caber na imagem da típica
"Smith girl", imagem na qual ainda acreditávamos, quer conhecês-
semos ou não alguém que se encaixasse nela. Algumas das feminis-
tas em atividade da turma de formandas de 1956 tentaram ampliar
aquilo que era, segundo elas, uma discussão inadequada a respeito
do problema do duplo papel: "Podemos Mesmo Fazer Tudo?" O tempo
de discussão era muito limitado. Pelo menos uma delas achou que
havia resistência a tópicos controversos tais como legislação, sexua-
lidade e outros. Sua frustração foi tal que ela não apareceu.
No final, 220 das 657 integrantes vivas da Turma de 1956 apa-
receram, incluindo algumas que haviam sido desdenhosas a princí-
pio. Mesmo assim, a porcentagem era mais baixa do que a da maio-
ria das reuniões de 25 anos das faculdades exclusivas para homens.
Um total de 323 mulheres havia respondido a um questionário
intitulado "Onde Estamos Agora?" que três colegas de turma haviam
se empenhado em elaborar. Como ocorreu na reunião, o grupo mais
mal representado foi os 5 % que não se casou. Elas estavam menos
propensas a responder ao questionário do que aquelas que haviam
sido casadas ao menos uma vez (incluindo os 10% que haviam sido
casadas duas ou mais vezes). Oitenta por cento das que responde-
ram estavam casadas na época e apenas 42% tinham trabalho re-
munerado em tempo integral, com outros 3 1 % trabalhando meio
expediente. Tornava-se claro que a imagem da "formanda bem-su-
cedida de Smith" atraía mais aquelas que achavam se enquadrar.
168 GLORIA STEINEM

Mas quando chegamos aos quartos dos alojamentos, carregados


de uma familiaridade tão estranha, naquele verdejante campus uni-
versitário da Nova Inglaterra que um dia nos pertencera, as mulhe-
res que haviam trazido seus maridos eram alvo de pequenas recla-
mações. Ter marido é uma coisa, trazê-lo é outra. Cônjuges, filhos e
amantes não incomodam em reuniões para homens, mas este defi-
nitivamente não é o caso em reuniões de mulheres. "Isso acontece
porque as mulheres levam as reuniões dos homens a sério, mas a
recíproca não é verdadeira", disse uma colega de turma cujo alinha-
díssimo exterior escondia um coração rebelde. "Além do mais", dis-
se ainda, "família quer dizer apoio e platéia para o sexo masculino.
Para as mulheres, significa apenas mais trabalho."

Nós nos reunimos num hotel local para o jantar da turma. Foi uma
reunião barulhenta, com mulheres inseguras olhando umas às ou-
tras com discreta curiosidade enquanto insistiam bravamente em que
todas nós estávamos "iguaizinhas aos tempos de escola".
Na verdade, apenas com base na aparência, a diferença de idade
entre algumas de nós poderia ser de vinte anos. A garçonete achou
que algumas tinham vinte e tantos anos enquanto outras pareciam
bem mais velhas do que nossos 46 anos de idade.
Sem o batom escuro, as golas redondas e os penteados dos anos
cinqüenta, no entanto, a maioria de nós parecia bem mais jovem
do que os poucos maridos presentes. Eles tinham uma aparência
assustadoramente paternal. Ficou claro que muitas de nós haviam
escutado os conselhos que nos mandavam casar com homens mais
velhos, mais sábios e mais altos, que pesassem mais e ganhassem
mais do que nós. Segundo o questionário da turma, a maioria dos
nossos maridos se encontrava numa faixa etária entre os 48 e os 62
anos.
O acontecimento central da noite foi um outro pequeno choque
de idades. Tínhamos, agora, a mesma idade que a reitora da facul-
dade. Como Jill Ker Conway era a primeira mulher a ocupar tal posição
em Smith e se formara em 1956 numa universidade da Austrália,
nós a nomeamos membro honorário de nossa turma.
Em troca, ela nos falou de seus anseios pessoais, dos sonhos de
aventura de uma infância vivida numa fazenda isolada na Austrália)
daquilo que almejara como estudante e como jovem estudiosa e as
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 169

barreiras de sexo que haviam se colocado em seu caminho.* Como


professora universitária, ela fizera enormes pressões em nome das
outras integrantes mulheres do corpo docente e das funcionárias do
campus e este ativismo acabou resultando em seu primeiro cargo
administrativo. Como estudiosa e historiadora, ela se resignara à idéia
de permanecer solteira e até hoje se surpreendia com um marido e
colega que dava tanto valor ao seu trabalho quanto ao dele próprio.
Como não podia ter filhos, ela reconhecia que sua carreira seria difícil
ou até mesmo impossível para grande parte das mulheres que os têm.
Quando ela fez um apelo por um modelo social de trabalho menos
obsessivo e menos masculino, foi ovacionada. Quando contou que
fizera uma enquete entre profissionais mulheres de diversas áreas,
que gastavam uma média de trinta mil dólares por ano com empre-
gados em geral, a platéia inteira gemeu. Quando admitiu que, no
início do casamento, achara que precisava, ela própria, lavar os ba-
nheiros — até que seu marido a deteve dizendo que não se casara
com ela para ter banheiros limpos — fez-se um silêncio de pura in-
veja.
E claro que ela nada disse a respeito da responsabilidade de um
homem criar os filhos, lavar banheiros, ou da necessidade de limitar
sua carreira, como as mulheres vêm fazendo tradicionalmente, quando
não há dinheiro disponível para a contratação de empregados. Ao
descrever seu dia como reitora, do cantar do galo até a meia-noite,
ela não mencionou suas constantes brigas com os membros conser-
vadores do corpo docente de Smith, contrários às cadeiras do curso
de Estudos Feministas, ou com as ex-alunas que reclamam das alu-
nas lésbicas que não sentem mais necessidade de esconder sua ver-
dadeira identidade.
— E porque ela é uma manipuladora fantástica — uma recém-
formanda explicou mais tarde. — Ela não quer alienar maridos ou
desagradar contribuintes. Ela deve ser a melhor captadora de recur-
sos da história de Smith.
Mas a Reitora Conway conversara conosco com intimidade, com
compreensão, de uma forma feminista, dizendo que o pessoal era
Político, conseguindo assim nos emocionar.

* Esta jornada aparece de maneira detalhada em The Road from Coorain (A Estrada de Coorain), o
comovente primeiro volume de sua autobiografia (Nova York: Knopf, 1989)-
170 GLORIA STEINEfo

— Estou tão feliz de ter trazido meu marido — disse uma mu-
lher, com os olhos cheios de lágrimas. —Venho tentando dizer a ele
como me sinto há vinte anos.

Eu temera que o fato de não ter marido ou filhos, além de ser uma
personalidade pública, me isolasse das mulheres que haviam sido minhas
amigas. Eu me esquecera do fenômeno das reuniões de ex-alunas:
você é jogada de volta ao mesmo ponto no qual se encontrava há 25
anos. As madeleines de Proust são tão especiais quanto uma hora pas-
sada num alojamento de faculdade.
Também descobri que ser famosa não é o pior crime que uma
mulher possa cometer. Talvez porque ser famosa, assim como ser
qualquer coisa que não esposa, ainda seja controverso e, portanto,
na melhor das hipóteses, uma faca de dois gumes. Não, o pior dos
crimes é ser magra. Como compreendo este desconforto sentido na
presença de pessoas magras (passei a vida inteira lutando contra os
quilinhos a mais e são poucos os minutos do dia em que não penso
em comida), empenhei-me em explicar que o fato de estar magra
não significava não ser louca por comida, da mesma forma que estar
sóbria não quer dizer que não se é alcoólatra.
Apesar de tudo, não era sempre que eu conseguia me sobrepor
à barreira dos quilos. A única colega que escreveu um comentário
hostil posteriormente (que eu comparecera à reunião "não para ver
e sim para ser vista") não comentou eventos ou conversas, apenas
que eu era "um anacronismo dos anos 70, vestindo calças jeans de
estilista famoso, tamanho 38, e falando de irmandade". (Na verda-
de, nem eram tamanho 38 nem tampouco de algum estilista famo-
so, mas compreendi o que quis dizer.)
Não obstante, foi um fato concreto — os cartazes do Desfile do
Dia das Ex-Alunas — que mais me ensinou.

Começando pelas formandas mais velhas, este tradicional desfile através


do campus inclui todas as turmas presentes. Cada grupo tem as cores
de sua turma numa faixa amarrada sobre roupas brancas e usa um
símbolo de sua era. As formandas do dia seguinte desfilam por últi-
mo. Seus vestidos brancos iam de elegantíssimos vestidos de estilistas
conhecidos a lençóis roubados, desafiadoramente, dos alojamentos.
Mas todas elas carregavam uma rosa.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 171

É uma tradição que depende, em parte, do sentimento e, em


parte, da imaginação de cada uma para criar fantasias e cartazes. (Eu
me lembro, com gratidão, da faixa carregada por umas mulheres muito
idosas e um tanto dissolutas que encabeçaram o desfile quando eu
ainda era aluna: POUCOS SÃO OS HOMENS AINDA VIVOS QUE
SE LEMBRAM DAS "MENINAS" DE 1895). É também um even-
to no qual as mudanças sociais se tornam visíveis. Os grupos só co-
meçam a exibir alguma diversidade racial depois de 1960. Na mi-
nha turma, por exemplo, havia apenas uma estudante negra, nenhuma
latina, e apenas uma asiática que não era estrangeira. (No primeiro
ano de faculdade eu perguntara a um professor por que nenhuma
das garotas negras da minha cidade, que solicitaram uma vaga em
Smith, fora selecionada para admissão. A resposta foi um misto de
sexismo com racismo: era preciso muito cuidado com a instrução de
meninas negras porque não havia um número suficiente de homens
negros de nível superior para elas.) A turma a se formar a seguir
contrasta drasticamente, com 29% de suas mulheres de cor.
Junto com Phyllis Rosser, colega de turma e da revista AÍÍ., eu
ajudara a criar cartazes que, esperávamos, diminuiria o número de
anos entre nós e as manifestantes mais jovens e mais velhas.

A SEGUNDA ONDA DO FEMINISMO SAÚDA A PRIMEIRA.

SOBREVIVEMOS A JOE MCCARTHY SERÁ QUE SOBREVIVEREMOS


A REAGAN E À MAIORIA PELA MORALIDADE?

A TURMA DE 56 RECORDA SUAS IRMÃS QUE MORRERAM DE


ABORTOS ILEGAIS. NÃO DEIXEM QUE ACONTEÇA OUTRA VEZ!

AS MULHERES SE TORNAM MAIS RADICAIS À MEDIDA


QUE ENVELHECEM.

Tínhamos plena consciência de que estes slogans eram bem mais


políticos do que "Foco 56", o tema escolhido pelo comitê organizador
da reunião, que troçava do uso de bifocais na meia-idade. Foi justa-
mente por isso que trouxéramos cartazes — com apenas duas cópias
de cada um, pois o tempo fora escasso. Considerando o resultado do
questionário, não achávamos que nossos cartazes causariam muita
172 GLORIA STEINEM

controvérsia. A Turma de 1956 votara contra Reagan numa propor-


ção de quase 3 para 1, e 98% acreditava que o aborto deve ser uma
escolha segura e legal.
Quando colocamos as cópias de nossos cartazes sobre a grama,
no local onde a Turma de 56 se reunia, as mulheres os levantaram
com entusiasmo. O único outro slogan significativo era CRESCENDO
EM LIBERDADE OUTRA VEZ, uma possível referência a uma segunda car-
reira. Muitas gemeram ao ler um outro cartaz AGORA NOSSA IDADE É
IGUAL AO TAMANHO DO SUTIÃ.
E, mesmo assim, notei que diversas mulheres apontavam para
nossos cartazes. Um frio no estômago me dizia que algo estava erra-
do. Ignorei o fato como sendo um resquício do ser passivo que eu
fora em 1950, que jamais carregaria cartazes e que pensava que o
direito ao voto fora um "presente" que nos deram.
Uma das integrantes do comitê da reunião se aproximou com
um olhar severo. Quem autorizara estes cartazes? Meu coração su-
biu à garganta. Ela disse que todos os slogans haviam sido aprovados
com meses de antecedência.
— Por quem? — Quis saber uma outra carregadora de faixas.
— Nós não escolhemos estes cartazes como turma.
Nossa autoridade se afastou para consultar outros membros do
comitê. Retornou dizendo que a desaprovação de uma única colega
da Turma de 56 seria o bastante para não podermos carregar nossos
slogans. (Não que fossem dignos de desaprovação, mas era possível
que alguém desaprovasse.) Com todo receio de causar conflitos que
eu tivera nos idos dos 50 despencando mais uma vez sobre a minha
cabeça, expliquei que nós não estávamos censurando os cartazes de
mais ninguém e nem estávamos pedindo que carregassem os nos-
sos. Será que a liberdade de expressão não permitia que cada uma
carregasse o que bem entendesse?
Chegou-se a um acordo: uma outra integrante do comitê suge-
riu que caminhássemos ao final de nossa turma de forma a não in-
terferir com a ordem dos cartazes do tema "Foco". Concordamos.
Mas outras conferências se deram enquanto caminhávamos e o
acordo foi desfeito. Teríamos de andar no final do desfile de forma a
não podermos ser associadas a nossa turma. Eu disse que isso nos
poria em maior evidência ainda, mas a primeira autoridade falou mais
alto. Nenhum cartaz seria carregado se não tivesse sido aprovado
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 173

pelo comitê da reunião ou se desagradasse a qualquer uma. Como


toda a minha coragem tivesse, surpreendentemente, se esvaído, eu
concordei.
— Ela não pode nos forçar a desfilar longe de nossa turma —
insistiu uma desconhecida que carregava um dos nossos cartazes, muito
mais valente do que eu, diga-se de passagem.
— Vamos desfilar onde nos der na telha — outras mulheres
gritavam. A esta altura eu me sentia culpada por ter trazido os car-
tazes e por ter aceitado a situação. Acabei me juntando às rebeldes
quando nossa turma começou a desfilar.
O comitê enviou uma jovem mestre de cerimônias, aluna da
faculdade, para impedir nossa passagem.
— Olha, eu acho isso uma idiotice — disse ela, gentilmente —,
mas elas dizem que precisam esperar aqui até o final do desfile.
E assim ficamos, aguardando às margens do desfile quando a
Turma de 1966 passou. Boletins sobre nossa situação haviam pene-
trado a multidão. Estas mulheres, dez anos mais jovens, haviam decidido
nos convidar para desfilar com elas e abriram espaço para nós ao seu
lado.
— Ficamos tão felizes em vê-las — disse uma delas enquanto
fazíamos fila, com as faixas azuis um tanto gritantes dentre as ver-
melhas que as outras usavam. — Uma colega de turma tentou in-
duzir um aborto e morreu. Fizeram de tudo para abafar o caso mas
nós soubemos.
Ao atravessarmos o campus, vagarosamente, gritos e aplausos
eclodiram da assistência ao enxergarem nossos cartazes.
— Muito bem!
— Já não era sem tempo!
— Isso mesmo!
Uma senhora surgiu da multidão para nos dizer que éramos "o
único grupo digno de toda a maldita parada". Quando finalmente
passamos em frente à casa da reitora, onde as novas formandas aguar-
davam, houve saudações especiais e punhos erguidos por um grupo
de estudantes negras, e mais aplauso das outras formandas e de suas
famílias. Ao chegarmos ao nosso destino, um quadrilátero central,
banhado pela luz do sol, toda a sensação de conflito se dissipara. A
maioria do nosso grupo de manifestantes tinha os olhos marejados
174 GLORIA STEINEM

— Vou levar meu cartaz para a formatura de meu filho, em Yale


— disse uma.
— Foi interessante assistir à reação de cada grupo — disse uma
outra. — Talvez as mais quietinhas tenham desaprovado o que fize-
mos, mas a maioria me pareceu muito satisfeita.
— Tenho orgulho da minha turma — disse uma das integran-
tes da Turma de 66. — Todos acham um absurdo vocês terem sido
impedidas de desfilar ao lado da sua própria turma.
Como se em uníssono, defendemos nossas colegas da Turma de
1956.
— A maioria teria concordado — explicamos. — Só que nin-
guém perguntou a opinião delas.
Nenhuma de nós, por mais zangadas ou envergonhadas que es-
tivéssemos por termos sido afastadas, queria ver este momento de
comemoração transformado em divisão.

Um sinal fora enviado. Os ecos reverberaram durante o resto do fim


de semana.
Integrantes da turma de formandas daquele ano nos procura-
ram para explicar que haviam se reunido tarde da noite tentando
decidir se penduravam ou não uma faixa com os dizeres: EUA, FORA
DE EL SALVADOR, de um alojamento que ficava atrás da plataforma
onde se daria a formatura ao ar livre. Estavam divididas. Algumas
achavam que deveria haver unanimidade, não a prevalência da maioria,
mas que nenhuma faixa realmente significativa teria apoio unâni-
me.
— Você alguma vez conseguiu unanimidade em alguma coisa?
— uma delas perguntou.
— Acho que não — respondi. — Na minha opinião, a busca
pela unanimidade é, simplesmente, uma forma de evitar a contro-
vérsia e qualquer tipo de ação.
Elas decidiram pendurar o lençol transformado em protesto as-
sim como um que dizia ACABEM COM O HLA. A inclusão da chamada
emenda a favor da vida humana (Human Life Amendment), que
tornaria o aborto ilegal, em seu protesto havia sido inspirada em nossos
cartazes. Smith mudara, mas não o bastante para fazer com que suas
alunas levassem as questões femininas tão a sério quanto as mascu-
linas.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 175

Ainda mais tarde naquela noite, fomos procuradas por um gru-


po feminista da faculdade.
— Deveriam ter nos avisado com antecedência. Teríamos jun-
tado pelo menos mil pessoas — uma jovem ativista nos disse com
orgulho. — Nós jamais imaginamos que as ex-alunas fariam algu-
ma coisa.
Durante o café da manhã de despedida, no domingo, a integrante
do comitê que mais se opusera aos nossos cartazes disse:
— Não que a maioria de nós não concorde com tais sentimen-
tos. E só que estas coisas haviam sido decididas de antemão.
Nós lhe asseguramos que compreendíamos e esquecemos qual-
quer inimizade. Se tivéssemos feito uma enquete com a turma com
seis meses de antecedência, o que teria acontecido? Não sei. A ansiedade
que a possibilidade de conflito me fazia sentir continuava forte mes-
mo 25 anos depois, mesmo tendo tido mais chance de superar este
típico problema feminino do que a maioria. Talvez até mesmo uma
voz discordante tivesse sido demais.

Será que uma educação "feminina" rompe a ligação entre pensamento


e ação? Faculdades exclusivas para negros vêm sendo verdadeiras usinas
ideológicas para o movimento de direitos civis. Ensinavam história
da raça negra e orgulho da raça muito antes de tais cadeiras espalha-
rem-se pelos campus de todo o país. No entanto, faculdades para
mulheres raramente nos ensinaram a lutar por nós mesmas ou por
outras mulheres. Cursos de história da mulher, além de um corpo
docente e uma administração feministas, estão começando a mudar
tudo isso, mas muitas de nós ainda estão por superar as "vantagens"
de nossa educação tradicional.

Um pouco antes da reunião de ex-alunas, eu voltara a Toledo, no


estado de Ohio, onde passara grande parte de minha adolescência.
Encontrei-me com mulheres que não via desde o ginásio, mulheres
dos bairros operários dos quais eu lutara tanto para escapar. A maioria
não fizera faculdade ou então havia feito cursos em regime de meio
expediente e com grande dificuldade. Muitas precisavam trabalhar
duro para sustentar a si mesmas e às suas famílias.
Como grupo, estas mulheres eram vibrantes, escandalosas, cheias
de energia e autoconfiança. Muitas haviam processado as fábricas
176 GLORIA STEINEM

locais por discriminação sexual anos antes do feminismo reunir as


mulheres da classe média através da criação de grupos de autocons-
ciência. Outras haviam se organizado com grande sucesso contra um
regulamento antiaborto de Toledo. Um terceiro grupo voltava ago-
ra à universidade, abalando as estruturas das mulheres mais jovens
ou mais abastadas que conheciam nas aulas. Todas elas partiam do
princípio de que a instrução leva à ação.
Talvez mulheres abastadas como aquelas que criaram o tom so-
cial de Smith tenham algo em comum com as adolescentes desem-
pregadas dos guetos. Não foi permitido a nenhum dos dois grupos
desenvolver a autoconfiança que vem de saber que podemos nos
sustentar sozinhas.
No entanto, estas mesmas mulheres são levadas a se sentir es-
peciais, privilegiadas devido à instrução que receberam. Isolam-se
de grande parte do mundo pela sua classe social (ou melhor, pela
classe social de seus maridos), são as mais propensas a se casar com
homens que possuem carreiras absorventes e maior capacidade de
sustentar as esposas. Ao mesmo tempo, a sociedade não admite que
suas carreiras principais, criar filhos e administrar lares um tanto
complexos, sejam empregos de altíssimo valor econômico. E, na rea-
lidade, eles o são.
Acho que devemos nos orgulhar do fato de tantas das "Smith
girls" dos anos cinqüenta terem sobrevivido a uma educação que nos
treinou para nos adequarmos ao mundo, ou pelo menos a ter medo
do conflito proveniente de tentar fazer com que o mundo se adeqüe
a nós.
Que estranho descobrir, depois de tantos anos, que talvez eu deva
a minha própria sobrevivência justamente ao bairro do lado leste da
cidade de Toledo do qual eu tudo fizera para escapar.

— 1981
A Canção de Ruth (Porque Ela Não
Sabia Cantar)

Feliz ou infeliz, toda família é um mistério. Tudo o que temos a fazer


é imaginar o quão diferentes seriam os relatos de cada membro de
nossas famílias — que julgam nos conhecer — ao serem incumbidos
de nos descrever (o que fatalmente ocorrerá quando falecermos). A
pergunta é: Por que alguns mistérios são mais importantes do que outros?
O fim de meu Tio Ed foi um mistério de grande importância para
nossa família. Nós nos cansávamos de tanto especular por que ele deixara
de ser um jovem engenheiro brilhante para se tornar o biscateiro-mor
da cidade. Nos tempos de estudante ele fora um homem elegante e
tão imponente quanto Abraham Lincoln. A tal ponto, na verdade, que
fora eleito o "Mais bem vestido" pelos colegas de turma. O que teria
levado um homem destes a se transformar no ser barbado, de ar deso-
lado, que conhecemos? Por que teria ele deixado um filhinho e uma
esposa da classe social e da religião "certas", para se casar com uma
mulher muito menos instruída que ainda por cima era da classe social
e da religião erradas? O que o levara a criar uma segunda família ao
lado de um campo de pouso abandonado, num casebre cujas paredes
eram remendadas com placas de metal para conter a fúria do vento?
Por que será que ele jamais falou a respeito desta transformação?
Passei anos acreditando que tudo se dera por obra de algum acon-
tecimento secreto e dramático ocorrido durante o ano que ele passa-
ra no Alasca. Foi então que descobri que a viagem se seguira à mu-
dança e que provavelmente fora feita por este motivo. Os desconhe-
cidos para os quais trabalhava como o mais querido dos biscateiros
se referiam a ele como mais uma das tragédias causadas pela De-
pressão de 1929. Era bem verdade que o pai de meu Tio Ed, meu
avó por parte de pai, perdera tudo o que tinha com o desastre finan-
ceiro em questão e que morrera, dependendo de quem contasse a
178 GLORIA STEINEM

história, ou de pneumonia ou de um coração partido. Mas a Depres-


são também ocorrera muito depois da transformação do Tio Ed. Uma
outra teoria era que ele sofrerá de uma doença mental a vida inteira.
No entanto, ele era extremamente competente, tinha uma vida
independente e não pedia ajuda a quem quer que fosse.
Talvez ele tivesse sido enfeitiçado por algum professor radical du-
rante os primeiros anos do século, o ápice do flerte americano com a
anarquia e o socialismo. Esta era a teoria de um tio de parte de mãe.
Eu me lembro de que, por mais que o Tio Ed precisasse de dinheiro,
ele jamais cobrou mais do que matéria-prima mais 10%. E eu nunca
o vi calçar algo que não umas botas antiqüíssimas e macacões presos
estrategicamente por alfinetes de pressão. Será que ele realmente es-
taria tentando compensar a inexistência do socialismo nacional com o
socialismo individual? Se era esse o caso, por que haveria minha avó
— candidata a uma vaga no conselho de educação, em aliança com
anarquistas e socialistas — de acreditar tão pouco na capacidade de
discernimento do Tio Ed, que confiou a parte da herança que a ele
cabia à guarda de outra pessoa? E por que será que o Tio Ed não dava
a mínima atenção para opiniões e para atos políticos? Seria verdade
então que, como insistia um outro parente, o Tio Ed escolhera ser pobre
para desmentir o mito que liga judeus a dinheiro?
Anos após a morte do meu tio, perguntei a um dos filhos de seu
segundo casamento se ele encontrara a chave deste mistério fami-
liar. Não, ele respondera, ele jamais conhecera outra face do pai. Para
o meu primo, a pergunta jamais existira. Para o resto da família, a
resposta jamais existirá.

Eu também passei muitos anos sem conseguir imaginar minha mãe


de outra forma que não a pessoa na qual ela se transformou antes de
meu nascimento. Na minha infância, ela simplesmente era. Era uma
pessoa que exigia atenção, que exigia cuidados, uma inválida que
ficava na cama com os olhos fechados e os lábios se movendo em
respostas ocasionais às vozes que só ela ouvia. Era uma mulher para
quem eu levei um mar de café e uma infinidade de torradas, sanduí-
ches de mortadela e tortinhas — versão infantil de uma refeição de
verdade. Era uma mulher amável, inteligente e constantemente ater-
rorizada pelos seus próprios fantasmas. Quando emergia de seu mundo
interior, ela fazia um esforço enorme para limpar a bagunça espa-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 179

lhada pela casa. Nunca contávamos que chegasse ao fim de tarefa


alguma. De muitas maneiras, nossos papéis eram invertidos: eu era
a mãe e ela, a filha. Mas isso não ajudava em coisa alguma. Ela ainda
assim se preocupava comigo com toda a intensidade de uma mãe
assustada, além dos medos especiais tirados daquele mundo parti-
cular, cheio de ameaças e de vozes hostis.
Mesmo naquela época, acho que eu sabia que antes de eu nas-
cer, quando ela tinha trinta e cinco anos, ela fora uma jovem ousada
e cheia de vida que lutara para freqüentar a faculdade apesar de
pertencer à classe operária. Ela encontrara um trabalho do qual gos-
tava e que continuou a ter mesmo depois de se casar e ter minha
irmã. Ela tinha trinta anos quando desistiu de sua própria carreira
para ajudar meu pai a administrar um hotel de veraneio no estado
do Michigan — o mais prático de todos os sonhos que ele tivera —
fazendo de tudo, desde a contabilidade até o gerenciamento do bar.
A família deve ter assistido àquela mulher vibrante, divertida, amante
da boa leitura transformar-se numa mulher que tinha medo da soli-
dão, que não conseguia se apegar à realidade por tempo bastante
para manter um emprego e que perdera o poder de concentração de
tal forma que não mais conseguia ler.
E, no entanto, eu não me lembro de especulação familiar alguma
a respeito da transformação de minha mãe. Para os mais gentis, para
os que gostavam dela, essa nova Ruth era apenas um acontecimento
triste, talvez vítima de uma doença mental, um problema familiar que
precisava de aceitação e de cuidados até que seu estado melhorasse
devido a algum processo natural. Para os menos gentis, e para os que
se ressentiam da independência que ela um dia tivera, ela mesma escolhera
o fracasso; era uma pessoa que morava numa casa imunda, uma mu-
lher que simplesmente se recusava a retomar o rumo de sua vida.
Ao contrário da história de Tio Ed, ninguém tentava explicar a
fonte dos problemas de minha mãe através de algum acontecimento
externo. O fato de ter desistido da carreira jamais foi mencionado como
um paralelo pessoal à Depressão de 1929. (Nem tampouco discutia-
se a Depressão em si, embora minha mãe, como milhões de outras
mães, tivesse alimentado a família com sopa de batatas e cortado co-
bertores para fazer roupas de inverno para minha irmã.) Os seus me-
dos reais, de dependência e de pobreza, não eram páreo para as possí-
veis crenças políticas de meu tio. As esperanças reais, inspiradas por
180 GLORIA STEINEM

editores que a elogiavam como jornalista, não eram levadas a sério


da mesma forma que a possível influência de um professor radical.
Até mesmo a explicação de uma doença mental parecia conter
mais culpa individual quando aplicada à minha mãe. Ela sofrerá a
primeira "crise nervosa", termo usado por ela e por todo mundo, antes
de eu nascer, quando minha irmã tinha mais ou menos cinco anos.
Essa "crise" se deu anos depois de tentar cuidar de um bebê, ser es-
posa de um homem gentil mas financeiramente irresponsável, com
a cabeça cheia de sonhos relacionados ao show business, e ainda tentar
manter seu adorado emprego como jornalista e editora de um jor-
nal. Após passar diversos meses num sanatório, declararam-na cu-
rada. Quer dizer, ela estava apta a cuidar de minha irmã, deixar a
cidade e o emprego que ela tanto amava para trabalhar com meu
pai numa área rural isolada, perto de um lago do Michigan. Ele ten-
tava transformá-lo numa estação de veraneio digno de receber as
grandes bandas da década de trinta.
Mas ela nunca mais deixou de ter crises de depressão, de ansiedade
e visões de um outro mundo que eventualmente a transformariam
na personalidade anulada da qual eu me lembro. E ela nunca mais
passaria sem uma garrafa que continha um líquido acre e escuro que
ela chamava de "remedinho do Dr. Howard", uma solução de hidrato
de cloral. Segundo vim a saber mais tarde, este era o ingrediente
principal dos "Mickey Finns" — bebida alcoólica à qual se acrescen-
ta um narcótico. Estas gotinhas de inconsciência provavelmente fi-
zeram de minha mãe e do médico os pioneiros do tranqüilizante
moderno. Embora amigos e parentes encarassem este remédio como
mais uma prova de fraqueza e de indulgência, para mim era um mal
embaraçoso, porém necessário. Ela ficava com a fala arrastada e a
coordenação motora afetada, fazendo com que os vizinhos e meus
colegas de escola acreditassem que ela era alcoólatra. Mas sem a droga
ela passava dias sem dormir, às vezes até mesmo uma semana, e seus
olhos febris passavam a enxergar apenas um mundo exterior no qual
guerras e vozes hostis ameaçavam as pessoas que ela amava.
Como meus pais tivessem se divorciado e minha irmã ido morar
numa cidade distante, eu e minha mãe passamos aqueles anos todos
sozinhas, vivendo da renda modesta gerada pelo arrendamento do que
sobrara das terras do Michigan. Eu me lembro de um fim de semana
prolongado de Ação de Graças, quando estava no oitavo ano, em que
jVíEMÓRíAS DA TRANSGRESSÃO 181

passei agarrada à minha mãe com uma das mãos e a Uma História de
Duas Cidades de Dickens com a outra, porque a guerra que eclodia do
lado de fora de nossa casa era tão real para ela que quisera escapar, me
levando consigo. Assim, atravessou a vidraça com o braço e se cortou.
Ela só conseguiu dormir quando finalmente concordou em tomar o
remédio. E só então, naquela tranqüilidade terrível que se segue à crise,
admiti para mim mesma o quão apavorada ficara.
Não é de se espantar que eu não me lembre de nenhum parente
ter tentado desafiar o médico que receitara o remédio ou ter per-
guntado se um pouco daquele sofrimento todo e das alucinações não
seria proveniente de uma superdose ou da abstinência do mesmo,
ou até mesmo ter consultado outro médico a respeito de seu uso. O
alívio que a droga trazia era tão nosso quanto dela.
Mas por que será que ela jamais voltou ao primeiro sanatório? Por
que será que jamais consultou outro médico? E difícil responder. Em
parte, era devido ao medo de que a dor voltasse. Por outro lado, havia
muito pouco dinheiro disponível e as suposições normais da família
de que uma doença mental é parte inevitável da personalidade de uma
pessoa. Ou talvez outros parentes temessem ter uma experiência como
a que eu tive, no calor desesperador do verão entre a quinta e a sexta
série, quando eu finalmente a persuadi a se consultar com o único médico
do sanatório do qual ela se lembrava sem medo.
Sim, respondeu o homem velho e brusco depois de vinte minutos
de conversa com uma mulher distante e tímida: o seu lugar é defini-
tivamente numa instituição governamental para doentes mentais. Ele
disse que eu deveria interná-la ali sem demora. Mas até mesmo na-
quela idade, as reportagens publicadas na revista Life e nos jornais me
mostravam os horrores que ocorriam dentro daqueles hospitais. Achando
não haver outra alternativa, levei-a para casa e nunca mais tentei.
Olhando para trás, talvez o principal motivo de minha mãe ter
recebido atenção mas não os cuidados adequados era simples: seu
funcionamento normal não era necessário para o mundo. É o mes-
mo que as mulheres alcoólatras que bebem em suas cozinhas, en-
quanto programas caríssimos são criados para executivos homens que
bebem. Ou, então, como as donas de casa que são controladas com
tranqüilizantes enquanto pacientes homens recebem a atenção de
terapeutas e muita atenção pessoal: o trabalho de minha mãe não
tinha importância para ninguém. Ela não era nem mesmo respon-
182 GLORIA STEINEM

sável pelo bem-estar de uma criança muito pequena, como fora o


caso durante a sua primeira internação. Meu pai continuara a trazer
as compras para casa e manteve aquele estranho lar funcionando até
eu ter oito anos e minha irmã partir para a universidade. Dois anos
depois, quando os racionamentos da guerra fecharam a estação de
veraneio e ele precisava viajar para vender e comprar no verão e no
inverno, ele disse: Como posso viajar e cuidar de sua mãe? Como
vou conseguir me sustentar assim? Era impossível fazer as duas coi-
sas. Eu não o culpei por nos deixar tão logo atingi uma idade que
me possibilitava levar as refeições para minha mãe e responder às
suas perguntas ("Sua irmã foi morta numa batida de automóvel?",
"Os soldados alemães estão aí fora?") Eu substituí meu pai, minha
mãe ficou com mais uma maneira de manter um tristíssimo status
quo e o mundo foi em frente sem ser incomodado.
E foi por isso que passamos nossas vidas, a de minha mãe dos 46
aos 53 anos idade, e a minha dos dez aos 17, completamente sós, a
não ser pela companhia uma da outra. Houve apenas um inverno são,
numa casa que alugamos perto da faculdade de minha irmã no estado
de Massachusetts, e um péssimo verão que passamos tomando conta
de uma casa nos arredores de Nova York, com minha mãe tendo alu-
cinações e minha irmã lutando para manter um emprego de verão na
cidade. Mas o resto dos anos, vivemos em Toledo, cidade natal dos
meus pais e na qual uma Ruth anterior trabalhara num jornal.
Primeiro nós nos mudamos para um apartamento de subsolo num
bairro nobre. Foi naqueles cômodos, atrás dos aquecedores, que tentei
ser criança pela última vez. Fingi estar muito mais doente de gripe
do que realmente estava, na esperança de que minha mãe voltasse
ao seu estado normal de repente e me trouxesse canja de galinha, à
la Hollywood. É claro que isto não aconteceu. Ela apenas se sentiu
pior ainda por não conseguir fazer coisa alguma a respeito. Parei de
fingir e raramente fiquei doente depois disso.
Mas durante grande parte daqueles anos ocupamos o andar su-
perior da casa onde minha mãe crescera e que meus avós deixa-
ram para ela. Era uma casa de fazenda, em ruínas, que fora engolida
pela cidade e cercada por casas mais novas e mais pobres. O movi-
mento de uma importante auto-estrada que passava por ali fez com
que a varanda da casa cedesse. Durante algum tempo, alugamos os
dois apartamentos dos andares inferiores para um operário de fábri-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 183

ca recém-casado e a família de um açougueiro das redondezas. En-


tão a saúde pública interditou nosso aquecedor pela última vez e o
selou de tal forma que nem o habilidoso Tio Ed conseguiu abri-lo
para produzir calefação ilegalmente.
Daquela casa, eu me lembro:
... de ficar deitada na cama em que eu dormia com minha mãe
para nos aquecermos uma à outra, ouvindo o rádio transmitir, de
manhã cedinho, o casamento da Princesa Elizabeth com o Príncipe
Philip. Enquanto isso, tentávamos ignorar, e assim nos proteger, do
barulho inconfundível que o operário do andar de baixo fazia ao es-
pancar e trancar a mulher grávida pelo lado de fora da casa.
... de pendurar cortinas de papel compradas no armazém da es-
quina, de empilhar livros e jornais no formato de poltronas e de co-
bri-los com colchas. De criar minha própria técnica para lavar a lou-
ça (que consistia em deixar que todas ficassem sujas e depois colocá-
las numa banheira) e depois ouvir os elogios de minha mãe pela ten-
tativa de manter a casa em ordem, de tentar ordenar o caos no qual
vivíamos. Pensando bem, acho que ela ficava ainda mais deprimida.
... de voltar de um show em um clube local onde eu e outras ve-
teranas de uma escola de sapateado local ganhamos dez dólares
por noite durante duas noites e encontrar minha mãe de lanterna
em punho, e sem casaco, me esperando no ponto de ônibus por es-
tar preocupada com minha segurança.
... de uma época boa quando a ousadia natural de minha mãe
emergiu e ela respondeu a um anúncio de jornal procurando um grupo
de atores para encenar dramas bíblicos em igrejas. Ela trabalhou numa
peça ridícula sobre a Arca de Noé chacoalhando folhas-de-flandres
nos bastidores, fingindo ser trovão.
... de ter sido mordida por um rato numa noite de verão. Eles
compartilhavam a casa e uma ruela aos fundos conosco. Foi uma noite
apavorante que se transformou numa noite comovente, com minha
mãe invocando uma reserva desconhecida de amor, transformando-
se num ser calmo e reconfortante que me levou à emergência de um
hospital apesar do horror que sentia de sair de casa.
... de pegar três livros por semana na biblioteca pública para neles
enfiar o nariz e descobrir, pela primeira vez, que não havia necessi-
dade alguma para tal. Minha mãe plantava malva-rosa no terreno
baldio ao lado de nossa casa.
184 GLORIA STEINEM

Mas houve também ocasiões nas quais ela acordava, assustada e


desorientada, na escuridão do início do inverno sem se lembrar que
eu trabalhava à tarde, depois da escola, e ligava para a polícia para
me acharem. Humilhada na frente dos meus amigos pelas sirenes e
pelos policiais, eu gritava com ela e ela abaixava a cabeça e dizia "Eu
sinto muito, sinto muito, sinto muito mesmo", da mesma forma que
fizera com meu amável pai nas raras vezes em que ele se descontro-
lara e a frustração que sentia o levara a gritar com ela. Talvez a pior
coisa do sofrimento é que um belo dia ele endurece os corações da-
queles que com ele têm de conviver.
E houve muitas, muitas vezes que eu a azucrinava até que as mãos
trêmulas preenchessem um cheque, numa quantia modesta, a ser
descontado no armazém da esquina, para que eu pudesse escapar para
o conforto das lanchonetes quentinhas com cheiro de rosquinhas fres-
cas no ar. No verão, eu escapava para o ar-condicionado das matinês
de sábado que eram janelas para um mundo diferente do meu.
Mas eu tinha uma tática especial para me proteger: eu estava
apenas de passagem. Eu era hóspede da casa. Talvez esta nem fosse
minha mãe de verdade. Embora eu soubesse muito bem que era fi-
lha dela, às vezes eu imaginava que fora adotada e que meus pais de
verdade me encontrariam um dia, uma fantasia que eu vim a desco-
brir ser muito comum. (Se as crianças escrevessem mais e os adultos
menos, talvez a adoção deixasse de ser um medo para se transformar
em esperança.) Eu certamente não lamentava pela vida desta mu-
lher que era, então, um pouco mais velha do que eu sou hoje. Eu só
me preocupava com os momentos nos quais ela piorava.
A piedade exige distância e a certeza da sobrevivência. Foi só
quando nossa casa foi vendida para a igreja ao lado, e demolida, e
minha irmã conseguiu o milagre de persuadir meu pai a me dar um
período de liberdade antes de entrar para a faculdade, levando mi-
nha mãe para passar um ano com ele na Califórnia, que eu pude pensar
no quão triste fora a vida dela. De repente eu me vi longe, em Wa-
shington, morando com minha irmã que rachava uma casa com di-
versos amigos. Enquanto terminava o segundo grau descobri, para
minha surpresa, que meus colegas de escola sentiam pena de mim
pela ausência da minha mãe. Eu também me dei conta de que, pelo
menos nos primeiros anos de infância, minha irmã conhecera uma
pessoa diferente que vivia dentro de nossa mãe, uma Ruth anterior.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 185

Esta era uma mulher que eu conheci pela primeira vez numa
instituição para doentes mentais nas redondezas de Baltimore, no
estado de Maryland. Era um lugar humano, com jardins e árvores,
onde eu a visitava todos os fins de semana durante o verão, depois
do primeiro ano de faculdade. Felizmente, minha irmã não conse-
guira trabalhar e tomar conta de nossa mãe ao mesmo tempo. Fin-
do o ano de meu pai com ela, minha irmã pesquisou hospitais com
todo o cuidado e sentiu coragem de romper com o hábito familiar
de apenas tolerar o estado de minha mãe.
A princípio, esta Ruth era a mesma mulher distraída e amedron-
tada com a qual eu vivera tantos anos. Em seguida, ela se tornou ain-
da mais triste por estar separada de nós pelos longos corredores do
hospital e por inúmeras portas trancadas. Mas aos poucos ela foi fa-
lando de sua vida e foi confidenciando lembranças que os médicos iam
despertando. Comecei a conhecer uma Ruth que eu jamais conhecera.
... Uma garota alegre de cabelos castanho-avermelhados que,
durante a escola secundária, gostara de ler e de jogar basquete; que
tentara dirigir o Stanley Steamer do tio, o primeiro carro do bairro;
que adorara jardinagem e as vezes vestia o macacão do pai, desafiando
a convenção da época; uma menina que tinha coragem de ir a bailes
apesar da igreja dizer que a música em si já era uma coisa pecamino-
sa, e cujo senso de aventura quase compensava a sensação de ser
desajeitada e feiosa ao lado da irmã, tão mais delicada e morena.
... Uma garotinha que acabara de aprender a andar mas que já
descobrira as áreas do corpo que lhe davam prazer. Era castigada pela
mãe com tanta violência que a força dos tapas a arremessavam do
outro lado da cozinha.
... A filha de um bem-apessoado engenheiro ferroviário e de uma
professorinha que acreditava ter se casado com alguém de uma clas-
se social inferior à sua. A mãe viajava com as duas filhas para a lon-
gínqua Nova York com passagens gratuitas às quais o marido tinha
direito para lhes mostrar os restaurantes e os teatros a que deveriam
aspirar — embora só pudessem ficar do lado de fora, na neve, olhando
para dentro.
... Uma boa aluna de Oberlin College, uma faculdade de filoso-
fa liberal que ela adorava, onde os colegas a apelidaram de "Billy";
uma aluna com um talento especial para a poesia e a matemática
que não se furtava de passar uma fina camada de Karo nas tampas
186 GLORIA STEINEM

das privadas do alojamento na noite de algum grande baile; uma


filha que voltara para Toledo para morar com a família e freqüentar
a universidade local quando o dinheiro da ambiciosa mãe — que
contara os centavos e economizara tudo o que tinha, que escrevera
os sermões do pastor para ganhar dinheiro e fizera as roupas das fi-
lhas para conseguir mandá-las para a faculdade — terminara. De
volta à cidade natal, Ruth trabalhou, em regime de meio-expedien-
te, como contadora de uma loja de lingerie freqüentada por mulhe-
res muito ricas. Ela ia e vinha das aulas e ainda ouvia os sermões da
mãe a respeito de tornar-se professora por se tratar de uma profissão
segura. Mesmo assim, era uma jovem rebelde o bastante para se
apaixonar pelo meu pai, um rapaz engraçado e espirituoso que era
editor do jornal da faculdade e péssimo aluno. Ele não tinha a me-
nor intenção de se formar e assim organizava todas as festas da fa-
culdade; tinha, ainda, o inaceitável defeito de ser judeu.
Segundo conta a lenda familiar, minha mãe se casou com meu
pai duas vezes: uma, secretamente, quando ele a convidou para se
tornar editora de literatura do jornal da faculdade e outra vez, um
ano depois, numa cerimônia pública à qual membros das duas famí-
lias recusaram-se a comparecer por tratar-se de um "casamento misto".
E eu também sabia que minha mãe obtivera certificado para lecionar.
Ela o usava para espantar inspetores de colégio quando, depois que
meu pai fechava a estação de veraneio durante o inverno, nós moráva-
mos num trailer e trabalhávamos na Flórida ou na Califórnia e depois
voltávamos, comprando e vendendo antigüidades pelo caminho.
Mas foi só durante as escapadelas do hospital, durante os fins de
semana — idas ao shopping, saídas para almoços e filmes —, que eu
descobri que ela ensinara cálculo durante um ano numa faculdade,
em deferência à insistência da mãe de que ela tivesse o magistério
"como garantia". E foi só então que me dei conta de que ela se apai-
xonara por jornais quando se apaixonou por meu pai. Depois que se
formou na universidade passou a escrever uma coluna de mexericos
para um tablóide local sob a alcunha de "Duncan MacKenzie", já
que não era de bom-tom que mulheres fizessem tal coisa. Logo de-
pois ela conseguiu trabalho como colunista social em um dos dois
principais jornais de Toledo. Quando minha irmã tinha quatro anos,
ela chegara ao invejado posto de editora da edição de domingo.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 187

poi uma experiência estranha, olhar fundo naqueles olhos castanhos


que me eram tão familiares e, subitamente, perceber que eram iguais
aos meus. Foi então que me dei conta, pela primeira vez na vida, de
que ela era realmente minha mãe.
Comecei a pensar nas muitas pressões que a teriam levado a ter
sua primeira crise nervosa: ter de deixar minha irmã sob os cuidados
de minha avó, cujos valores minha mãe não compartilhava. Tentar
manter um emprego que adorava mas ter de abandoná-lo, a pedido
do marido. Querer tentar a vida em Nova York com uma amiga e
ter se castigado pelo simples pensamento. Ter se apaixonado por um
colega de trabalho que a assustava por ser sexualmente mais atraen-
te do que meu pai, que lhe dava mais apoio profissional do que meu
pai e, enfim, muito provavelmente, o homem com o qual deveria
ter se casado. Finalmente, o fato de quase ter morrido de hemorra-
gia com um aborto espontâneo porque a mãe não acreditava em
médicos e recusou-se a chamar socorro.
Será que nos meses passados no sanatório lhe fizeram uma lava-
gem cerebral com algum método freudiano ou muito tradicional, de
forma a levá-la a fazer o que eram, para ela, péssimas escolhas? Eu não
sei. Mas isto importa muito pouco. Sem ter recebido apoio maciço para
fazer o contrário, ela já se convencera de que o divórcio estava fora de
cogitação. Não se podia deixar o marido por um outro homem, e cer-
tamente não se podia fazê-lo por um motivo tão egoísta como a pró-
pria carreira. Não se podia privar uma filha da presença do pai, e cer-
tamente não se poderia tirar uma garotinha do seu habitat natural para
jogá-la num futuro incerto em Nova York. Uma noiva deveria ser vir-
ginal (não "desbotada" como minha eufemística mãe teria dito), e se
seu marido fosse um ser doce mas inocente no que diz respeito ao pra-
zer feminino, ela deveria agradecê-lo por tamanha gentileza.
É claro que outras mulheres se extirparam dos trabalhos e das
pessoas que amavam e sobreviveram mesmo assim. Mas a história
que minha mãe me contou anos depois sempre simbolizou para mim
as forças temerárias que confabularam contra ela.

"Era o começo da primavera e nada abrira ainda. Não havia viva


alma a um raio de vários quilômetros. Passamos o inverno no lago,
de modo que eu ficava muito tempo sozinha enquanto seu pai
saía de carro a negócios. Você era bebê, sua irmã estava na escola
188 GLORIA STEINEM

e não havia telefone. A última gota foi quando o rádio quebrou.


De repente me pareceu que eu não falava com ninguém há sécu-
los — ou ao menos ouvia o som de outra voz.
"Eu te embrulhei toda, peguei o cachorro e fui caminhar pela
Brooklyn Road. Pensei em andar uns seis a oito quilômetros até o
armazém, para conversar e pedir que alguém me trouxesse de volta.
Fritzie corria na frente na estrada vazia quando de súbito um car-
ro surgiu do nada e veio descendo o morro a toda. Pegou Fritzie
de frente e o jogou no acostamento. Eu berrei e gritei com o motorista
mas ele não diminuiu. Ele nem olhou para trás. Ele nem ao me-
nos virou a cabeça.
"O pobre Fritzie estava todo quebrado e ensangüentado, mas ainda
estava vivo. Eu o carreguei e me sentei no meio da estrada, com
sua cabeça aninhada em meus braços. Eu ia fazer o carro seguinte
parar e ajudar.
"Mas nenhum carro passou. Fiquei ali sentada, horas, com você e
com Fritzie no colo. Ele choramingava e olhava para mim pedin-
do ajuda. Já estava escuro quando ele finalmente morreu. Eu o
arrastei até o acostamento e caminhei de volta para casa com você
e lavei o sangue das roupas.
"Não sei o que ocorreu naquele dia. Foi como um ponto de rup-
tura. Quando seu pai chegou em casa, eu disse: 'De agora em diante,
vou com você. Não vou atrapalhá-lo. Ficarei quieta, no carro. Mas
eu não vou agüentar ficar sozinha outra vez'."

Acho que ela me contou essa história para me mostrar que tentara
se salvar, ou talvez quisesse exorcizar uma lembrança dolorosa contando-
a em voz alta. Mas, ao ouvi-la, pude entender o que a transformara na
mulher da qual me lembro. Imagino uma figura solitária, sentada no
carro, suando no verão, encasacada no inverno, esperando que meu
pai saísse dos tantos antiquários, grata só de não estar sozinha. Como
eu era pequena demais para ficar em casa, eu os acompanhava. Eu
adorava ajudar meu pai a embrulhar e desembrulhar a porcelana e os
pequenos objetos que ele comprava em leilões e depois vendia para os
antiquários. Eu me sentia necessária e adulta. Mas às vezes passáva-
mos horas nos antiquários, horas até voltarmos ao carro e para minha
mãe, que estava sempre esperando, paciente e silenciosamente.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 189

No hospital e nos anos que se seguiram, quando Ruth me con-


tou as histórias do seu passado, eu perguntava: "Mas por que você
não foi embora? Por que não aceitou o emprego? Por que não se casou
com o outro homem?" Ela sempre insistia que não importava, que
ela tinha sorte de ter a mim e à minha irmã. Se eu a pressionasse um
pouco mais, ela acrescentava: "Se eu tivesse ido embora, você jamais
teria nascido".
Eu ficava quieta, sem jamais dizer o que pensava: Por outro lado,
talvez você tivesse nascido.

Eu gostaria de lhes dizer que esta história tem um final feliz. O melhor
que posso dizer é que o final é mais feliz que o começo.
Depois de meses e meses no hospital de Baltimore, minha mãe
passou dois anos sozinha, num pequeno apartamento. Eu estava na
faculdade e minha irmã morava nas redondezas. Quando sentia que
seus antigos temores voltavam a atormentá-la, ela mesma pedia para
voltar para o hospital. Ela já tinha quase sessenta anos quando deixou
o hospital e uma instituição de readaptação do doente à sociedade,
administrada pelos quacres. Contrariando as expectativas dos médi-
cos, de que ela passaria períodos cada vez menores fora do hospital,
ela jamais voltou. Viveu mais vinte anos. Passou seis destes anos numa
pensão na qual tinha privacidade e companhia, conforme quisesse. Mesmo
depois de minha irmã ter se mudado com o marido para uma casa
maior e ter transformado o porão num apartamento para minha mãe,
ela continuou a ter uma vida independente e muitos amigos. Ela tra-
balhava meio-expediente como balconista numa loja de porcelana, viajava
comigo uma vez por ano e chegou a ir à Europa com parentes. Parti-
cipava de reuniões em clubes para mulheres, encontrou uma igreja
multirracial que adorava e passou a freqüentá-la todos os domingos.
Fez meditação e leu muitos e muitos livros. Ela ainda não conseguia
assistir a filmes tristes, ficar sozinha com nenhum dos seus seis netos
quando eram pequenos, viver sem tranqüilizantes ou falar daqueles
tristes anos passados em Toledo. Os velhos medos ainda existiam em
algum canto de sua mente e cada dia era uma nova luta, uma nova
tentativa de mantê-los sob controle.
O pessimismo dos médicos era proveniente da duração da doença
de minha mãe. Na verdade, não conseguiam diagnosticar doença
alguma além de "ansiedade neurótica": baixa auto-estima, medo da
dependência, medo da solidão e uma constante preocupação com a
190 GLORIA STEINEM

falta de dinheiro. Ela também tinha crises do que é chamado hoje


em dia de agorafobia. Trata-se de um mal que afeta principalmente
mulheres dependentes. Consiste em medo de sair de casa e em
incapacitantes crises de ansiedade em público e lugares estranhos.
Uma vez perguntei a um dos médicos se ele diria que a alma
dela se despedaçara. "Este é um diagnóstico tão bom como qual-
quer outro", ele respondeu. "E é difícil remendar algo que está des-
pedaçado há vinte anos."
Mas quando ela deixou o hospital definitivamente, vislumbres de
uma outra mulher escapuliam de seu interior. Uma mulher que pos-
suía um humor um tanto cretino, ousadia e uma verdadeira paixão
pela sabedoria. Livros de matemática, de física, de misticismo ocupa-
vam grande parte do seu tempo. ("A religião", dizia com convicção,
"começa no laboratório.") Quando ela me visitava em Nova York, quando
tinha entre sessenta e setenta anos, sempre dizia aos motoristas de táxi
que tinha oitenta ("para eles dizerem que estou bem conservada"), e
convenceu o bilheteiro de um teatro de que tinha problemas de audi-
ção muito antes de tê-los de verdade ("assim eles nos dão lugares na
primeira fila"). Ela fazia amizade com facilidade, com a vulnerabilidade
e o charme de uma pessoa que depende da aprovação dos outros. Após
cada uma de suas visitas, os donos das lojas de diversos quarteirões
diziam "Sua mãe? E claro que eu conheço sua mãe!" Ela reclamava
que as pessoas de sua idade eram velhas e enfadonhas demais. Muitos
de seus amigos eram bem mais jovens do que ela. Era como se ela
tentasse recuperar os anos perdidos.
Ela demonstrava um deleite tão exagerado a cada presente rece-
bido que era irresistível presenteá-la. Eu adorava lhe mandar rou-
pas, bijuterias, sabonetes exóticos e novos tarôs para a sua coleção.
Ela adorava recebê-los, embora tanto ela quanto eu soubéssemos que
iam acabar guardados em caixas de papelão. Ela se correspondia em
alemão com nossos parentes europeus e escrevia cartas aos seus muitos
amigos, sempre naquela caligrafia dolorosamente lenta e trêmula.
Ela também adorava dar presentes. Apesar de sua eterna preocupa-
ção com as finanças, de guardar cada moedinha e de roubar pacotinhos
de açúcar dos restaurantes para levar para casa, ela comprava e fazia
presentes com todo o cuidado para os netos e para os amigos.
Grande parte do preço pago por tanta saúde foi o esquecimento.
À menor lembrança dos tempos de Toledo, ela mergulhava em de-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 191

pressão profunda. Houve tempos em que este fato me enchia de soli-


dão. Apenas duas pessoas haviam vivido a minha infância. Agora, só
uma de nós se lembrava. Nos anos que se seguiram, por mais que eu
implorasse a jornalistas para não entrevistar nossos amigos e vizinhos
em Toledo, para não publicar que ela fora hospitalizada, publicavam
coisas que a faziam sofrer e que a levavam a ter outras crises.
Por outro lado, era também filha de sua mãe e assim possuía uma
certa dose de orgulho e de pretensão social. Algumas de suas obje-
ções tinham menos a ver com depressão do que com orgulho ferido.
Por fim, ela me perguntava, zangada: "Será que eles não podiam ao
menos chamar nossa casa de 'traikr de veraneio?" O divórcio ainda
lhe causava vergonha. Ela dizia, sorridente, ao amigos: "Não sei por
que a Gloria vive dizendo que seu pai e eu nos divorciamos — isso
jamais aconteceu". Ela devia justificar esta mentirinha para si mes-
ma com o fato de ter passado por duas cerimônias de casamento,
uma secreta e a outra pública. Assim, ela só se divorciara uma vez.
Na verdade, eles se divorciaram definitivamente, e meu pai chegou
a ser casado por algum tempo com outra mulher.
Ela tinha orgulho de eu ser uma escritora publicada e comparti-
lhávamos muitos pontos de vista. Depois de sua morte, encontrei um
teste de moral entre mãe e filha que eu escrevera para uma revista.
Naquela caligrafia inconfundivelmente trêmula, ela marcara suas próprias
respostas, imaginara com precisão quais seriam as minhas respostas e
os resultados concluíam que nossas diferenças eram menores do que
as "normais para mulheres com uma diferença de vinte e tantos anos".
Não obstante, ela era bem capaz de colocar um nome inventado numa
etiqueta quando comparecia a alguma reunião do convencional clube
de mulheres que freqüentava com medo do sobrenome causar con-
trovérsia ou, pelo menos, perguntas. Quando eu finalmente tive cora-
gem de dizer a ela, em 1972, que ia assinar uma declaração pública de
mulheres que haviam feito aborto, pedindo a revogação das leis que o
faziam ilegais e perigosos, sua resposta foi contundente e o intuito de
machucar, claro. "Toda starlet diz que já fez aborto", ela disse. "É só
uma forma de conseguir publicidade." Eu sabia que ela concordava
que o aborto deveria ser uma escolha legal, mas eu também sabia
que ela não me perdoaria por envergonhá-la em público.
Na verdade, a capacidade de machucar com palavras aumentou
muito nos seus últimos anos de vida, à medida que se tornava mais
\
192 GLORIA STEINEM

dependente, mais concentrada em si mesma e mais propensa a preci-


sar da atenção dos outros. Quando minha irmã tomou a corajosa de-
cisão de estudar direito aos cinqüenta anos de idade, deixando minha
mãe numa casa não só cheia de adolescentes carinhosos, mas também
com uma acompanhante simpática paga por ela, minha mãe a levava,
freqüentemente, às lágrimas. Ela dizia que aquele era um lar sem amor,
sem comida caseira na geladeira, enfim, que era um lar sem família.
Como o argumento de não haver comida caseira no fogão não me afe-
tava em nada, ela arrumou uma forma criativa e diferente de me cas-
tigar. Disse que ia ligar para o New York Times e contar para eles o que
o feminismo fazia: deixava mulheres velhas e doentes sozinhas.
Um pouco desta amargura causada pela perda das faculdades
físicas e mentais foi resolvida com a internação num asilo perto da
casa de minha irmã, onde minha mãe não só recebia a assistência
em tempo integral da qual seu corpo debilitado precisava, como
também a atenção das carinhosas enfermeiras. Ela jogava todo o seu
charme para cima delas e as enfermeiras ficavam encantadas com
minha mãe. E ela ainda podia sair de vez em quando para compare-
cer ao casamento de algum membro da família. Se eu tinha alguma
dúvida sobre o quanto devemos às enfermeiras, aqueles últimos meses
as apagaram completamente.
Ela morreu um pouco antes de fazer 82 anos, num quarto de hos-
pital onde eu e minha irmã nos revezávamos. Tivemos algumas horas
sozinhas, enquanto minha irmã dormia e aquele velho coração parava
de bater, pouco a pouco. Minha mãe parecia perplexa de estar onde
estava e com tubos que invadiam seu corpo, mas ficou lúcida tempo
bastante para me dizer: "Eu quero ir para casa. Você me leva para casa,
por favor." Mentindo para ela, pela última vez, eu disse que levaria.
"Então está bem, querida", ela disse. "Eu confio em você." Estas fo-
ram as últimas palavras compreensíveis que ela pronunciou.
As enfermeiras deixaram que eu e minha irmã permanecêssemos
no quarto até muito tempo depois do último suspiro. Minha mãe nos
pedira isto. Um de seus muitos medos fora produzido por uma histó-
ria que ouvira na infância a respeito de um homem em estado de coma
que fora dado como morto e assim enterrado vivo. Ela também deixa-
ra em testamento um pedido para que nenhuma medida extraordiná-
ria fosse tomada para mantê-la viva e que suas cinzas fossem jogadas
sobre o mesmo córrego onde foram jogadas as do meu pai.
jylEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 193

O velório foi celebrado numa igreja episcopal que ela adorava por
darem de comer aos pobres, por deixarem que os sem-teto dormissem
em seus bancos e por ter sido processada pela hierarquia episcopal por
ter uma mulher pastora. Mas, acima de tudo, ela amava o carinho com
que a congregação a recebera, com que a buscavam em casa para levá-
la aos sermões. Eu acho que ela teria gostado da informalidade, tão no
estilo quacre, com a qual os freqüentadores da igreja se levantaram
para contar como se lembravam dela. Sei que ela teria gostado de haver
tantos amigos presentes. Foi para esta igreja que ela deixou parte do
que restara da propriedade do Michigan, com a esperança de que fos-
se transformada em acampamento multirracial, uma tentativa de fi-
car quite com os vizinhos que esnobaram meu pai por ser judeu.
Acho que ela também teria ficado contente com seu obituário.
Enfatizamos sua breve carreira como uma das primeiras jornalistas
mulheres e pedimos doações para os fundos para bolsistas de Oberlin
a fim de que outros pudessem freqüentar a faculdade que ela tanto
amara mas que tivera de deixar.

Sei que vou passar muitos anos tentando compreender o que sua vida
me deixou.
Compreendo agora por que os idosos sempre me comoveram mais
do que as crianças. O que me emociona são os talentos e as esperanças
trancadas em corpos que começam a falhar. Esse contraste pungente
me faz pensar em minha mãe, até mesmo quando estava com saúde.
Sempre senti atração por histórias de mãe e filha, sozinhas no
mundo. Assisti a Um Gosto de Mel diversas vezes, em versão teatral e
cinematográfica, e jamais deixei de sentir tristeza. Vi Gypsy também,
inúmeras vezes, e ia aos bastidores no final da apresentação. Vi o
filme também. Eu mentia para mim mesma dizendo que estava
aprendendo os passos de dança, mas na verdade meus olhos esta-
vam cheios de lágrimas.
Uma vez me apaixonei por um homem só porque nós dois fazía-
mos parte daquele grupo enorme e secreto de "filhos de mães lou-
cas". Compartilhávamos as histórias da vergonha que sentíamos por
viver em casas que ninguém podia freqüentar. Antes dele nascer, sua
mãe fora presa por ser uma pacifista convicta. Em seguida, casou-se
com o jovem e ambicioso advogado que a defendera, ficou em casa,
criou seus muitos filhos e foi enlouquecendo aos poucos, num outro
tipo de prisão. Eu me desapaixonei quando meu amigo quis que eu
194 GLORIA STEINEty

deixasse de fumar e parasse de falar palavrões e de trabalhar. A luta


da mãe não lhe ensinara coisa alguma além da autocomiseração.
Passei muitos anos obcecada pelo medo de acabar a vida numa
casa igual àquela de Toledo. Hoje vivo obcecada pelas coisas que poderia
ter feito pela minha mãe, ou pelas coisas que eu poderia ter-lhe dito.
Ainda não entendo por que tantos e tantos anos se passaram até
que eu enxergasse minha mãe como pessoa e antes de compreender
que muitas das forças de sua vida são ciclos compartilhados por muitas
mulheres. Como tantas outras filhas, eu não conseguia admitir que
o que acontecera com minha mãe não era de forma alguma pessoal
ou acidental. Assim, eu estaria admitindo que o mesmo poderia acon-
tecer comigo.
Pelo menos um mistério foi finalmente resolvido. Eu nunca com-
preendera por que minha mãe não recebera auxílio de Pauline, sua
sogra, uma mulher que ela parecia amar mais do que à própria mãe.
Minha avó paterna morreu quando eu tinha cinco anos de idade,
antes que os piores problemas de minha mãe começassem, mas muito
depois daquela primeira "crise nervosa". Eu sabia que Pauline fora
sufragista, que se apresentara no Congresso, que fizera comício a favor
do voto e que fora a primeira mulher eleita para o conselho de edu-
cação do estado de Ohio. Deve ter sido uma mulher corajosa e inde-
pendente e no entanto eu não me lembro de minha mãe jamais ter
dito que Pauline a encorajara ou a ajudara a ter vida própria.
Finalmente me dei conta de que minha avó jamais mudara a po-
lítica da própria vida. Era uma feminista que mantinha um lar ordeiro
para o meu avô e para os quatro filhos antifeministas, uma vegetaria-
na no meio de cinco homens carnívoros. Ela era tão convicta dos peri-
gos do álcool que não usava extrato de baunilha, só baunilha em pas-
ta, e mesmo assim servia carne e vinho para os homens da casa. Ela
fazia de tudo para manter intactos a vida e o conforto daqueles cinco
homens. Quando o voto foi conseguido, Pauline deixou suas ativida-
des feministas de lado. Minha mãe admirava enormemente o fato de
minha avó manter a casa em perfeito estado e de preparar as refeições
da semana inteira de uma só vez. Quaisquer que fossem seus tormen-
tos interiores Pauline era, aos olhos de minha mãe, uma mulher capaz
de fazer "de tudo". "Aonde fores, eu irei", dizia minha mãe à amada
sogra, citando a Ruth da Bíblia. No final, é capaz de minha avó ter
sido apenas mais uma das culpas que minha mãe carregara.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 193

Como tantas sufragistas, minha avó parece ter sido feminista publi-
camente e isolacionista na vida privada. Isso, em si, deve ter sido he-
róico e o máximo que poderia ser esperado, mas o voto e o direito le-
gal ao trabalho não eram o único auxílio de que minha mãe precisava.
Assim, o mundo perdeu um ser único chamado Ruth. Embora ela
quisesse ter morado em Nova York, embora quisesse ter podido viajar
nela Europa, ela se tornou uma mulher que temia atravessar a cidade
num ônibus. Embora ela tivesse dirigido o primeiro Stanley Steamer,
casou-se com um homem que jamais permitiu que dirigisse.
Só me resta imaginar o que ela poderia ter sido. Existem pistas,
provenientes dos momentos de alegria e humor.
Depois de passar tantos anos amedrontada, ela me acompanhou
a Oberlin quando fiz uma palestra naquela faculdade. Ela se lem-
brava de toda a história da faculdade, do fato de ter sido a primeira
a aceitar negros e a primeira a aceitar mulheres. Ela respondeu às
perguntas dos alunos com a dignidade de uma professora, a preci-
são de uma jornalista e um charme único.
Quando ela ainda podia fazer viagens a Washington e pesquisar
em suas bibliotecas, tornou-se perita em genealogia, deleitando-se
principalmente com os grandes moleques e os rebeldes da família.
Havia uma história que ela contava com enorme satisfação. Uma
vez, antes de eu nascer, ela preparou uma refeição enorme para os
integrantes de alguma banda famosa, hospedada na estação de ve-
raneio de meu pai. Como eles não tivessem raspado o prato, ela ti-
rou uma espingarda da parede e a apontou para suas cabeças até
comerem cada migalha de pão-de-ló com morangos. Só então ela
contou que a arma não estava carregada.
Embora sexo fosse um assunto que não gostasse de discutir, ela
apreciava muito os homens sensuais. Quando um amigo meu veio
me visitar e quis conversar sobre culinária, ela ficou furiosa. ("Ele
entrou nessa cozinha para falar de ensopado!") Mas ela o perdoou quando
saímos para nadar. Ela sussurrou: "As pernas dele são maravilhosas!"
No seu aniversário de 75 anos, ela jogou softball com os netos na
praia e sentiu imenso orgulho de ter arremessado bolas ao mar.
Até mesmo no último ano de vida, quando minha irmã a levou
Para conhecer a nova e luxuosíssima casa do vizinho, ela olhou as
listras verticais de um quadro abstrato pendurado no corredor e dis-
se, azeda: "O que é isso aí, o código de barras com o preço?"
196 GLORIA STEINEM

Ela se preocupava muito em ser aceita pela sociedade, mas nun-


ca deixava de aceitar alguém por motivos superficiais. Pobreza, esti-
lo ou falta de instrução não eram empecilhos para uma nova amiza-
de. Embora ela vivesse numa sociedade de maioria branca e se preocu-
passe por eu namorar homens "da raça errada", da mesma forma que
ela se casara com um homem "da religião errada", ela aceitava cada
um como indivíduo.
"Ele é muito escuro, é?", ela me perguntou, preocupada, a res-
peito de um amigo. Mas depois de ter conhecido esta pessoa "muito
escura", ela disse: "Mas que rapaz gentil e simpático!"
Embora meu pai fosse o lado judeu da família, foi minha mãe
que me ensinou a ter orgulho das tradições do judaísmo. Foi ela que
me encorajou a ouvir uma peça radiofônica a respeito dos campos de
concentração, quando eu era pequena. "Você precisa saber que coi-
sas como essa acontecem", ela disse. Mas ela sempre fazia esse tipo
de coisa para ensinar, jamais para assustar.
Foi ela que me apresentou aos livros, que me ensinou a respeitá-
los. Ela recitou para mim os poemas que sabia de cor e me incutiu a
idéia de jamais criticar alguém sem antes "ter caminhado em seus
sapatos".
Foi ela que resolveu vender a casa de Toledo, o único lar que possuía,
determinada a me ver começar a faculdade. Ela encorajou as duas
filhas a sair de casa para ter os quatro anos de independência que lhe
foram negados.
Após a sua morte, eu e minha irmã encontramos o diário que
escrevera na única viagem que fez à Europa. Ela falara muito pouco
sobre a viagem por ter sempre detestado as pessoas que passavam
horas falando de suas viagens e mostrando slides. Mesmo assim, ela
escrevera um ensaio intitulado "Vovó vai à Europa". Depois de tan-
tos anos, ela ainda se via como escritora. E, no entanto, jamais mos-
trou o diário a ninguém.
Sinto saudades dela, mas talvez não tanto depois da morte quanto
já sentia em vida. Morrer é menos triste do que se ter vivido tão
pouco. Mas pelo menos vamos todas questionar os mistérios das Ruths
de nossas famílias.
Se a sua canção inspira tal coisa, eu serei a primeira a dizer que
foi uma canção digna de ser cantada.
— 1983
Palavras e Mudança

Pense só: quem era você antes desta onda de feminismo?


A tentativa de lembrar o caminho de volta, através de antigas
realidades, antigos quartos, antigas convicções é o primeiro passo
em direção à mudança. Compartilhar tais medidas, da mesma for-
ma que aprendemos a compartilhar problemas e soluções, é prova-
velmente a maneira menos tendenciosa de trazer à tona nossa histó-
ria individual. Afinal, se pessoas com experiências diversas, com idades
e histórias pessoais diferentes, começarem a enxergar desenhos pa-
recidos nas mudanças que ocorrem em nossas vidas, e até mesmo
nas palavras que passamos a usar, então devemos estar no caminho
certo para um modelo histórico. Se escrevermos a respeito de nossas
experiências como as sentimos, então a história talvez deixe de se
limitar aos líderes nacionais ou às interpretações dos estudiosos ao
tentarem provar uma dada teoria. Podemos começar a criar uma história
da mulher e uma história do povo que é precisa e acessível.
Palavras e frases novas são uma medida orgânica de mudança.
Elas capturam transformações de percepção e, às vezes, da própria
realidade.
Hoje em dia usamos termos tais como "assédio sexual" e "mu-
lheres espancadas". Há alguns anos, isso era apenas "a vida".
Hoje em dia estamos nos transformando nos homens com os quais
gostaríamos de nos casar. Há alguns anos as mulheres eram treina-
das para se casarem com médicos, não a se tornarem médicas. Hoje
em dia colocar as palavras "de mulheres" depois de "centro", de "jornal",
de "rede" ou de "banda de rock" sinaliza uma escolha positiva. Antes
o feminismo tinha uma conotação negativa.
Hoje em dia fizemos a revolucionária descoberta de que nossos
filhos têm pai e mãe. Antigamente o gentil Dr. Spock responsabili-
zava única e exclusivamente as mães pelo bem-estar da criança.
Em 1972, do ponto de vista da NASA, a presença de uma mu-
200 GLORIA STEINEM

lher numa viagem espacial se daria por "diversão sexual", (durante)


"viagens de longa duração tais como expedições a Marte". Hoje em
dia, mulheres são simplesmente "astronautas".
Há até bem pouco tempo uma mulher mais velha num campi
universitário era vista com estranheza. Hoje em dia tantas mulheres
voltaram às universidades para terminar a educação universitária que
lhes foi negada, que a idade média de uma estudante de graduação
é de 27 anos. Faculdades são um recurso da comunidade e há uma
nova definição para a palavra "estudante".
Até os anos setenta, a maioria das faculdades jamais ouvira falar
em Estudos Feministas. Hoje em dia existem dezenas de milhares
de cursos do gênero em mais de mil campus universitários.
Há alguns anos subir na vida, para as mulheres, significava tor-
nar-se médica e não enfermeira, ser chefe e não secretária: era um
símbolo, não um movimento. Hoje em dia as enfermeiras fazem greve
e as secretárias se organizam. Há uma revolução no chamado gueto
do colarinho rosa e certos empregos deixaram de ter mais valor ape-
nas por serem tipicamente destinados a homens.
Arte, antigamente, era aquilo que um homem criava. Artesanato
era algo feito por mulheres e por nativos. Recentemente descobri-
mos que são a mesma coisa, trazendo assim técnicas do artesanato
para a arte e a arte para o dia-a-dia.
Hoje políticos antiigualdade preocupam-se com "o voto femini-
no" ou "a distância entre os sexos". Até os anos oitenta, analistas
políticos afirmavam que tal coisa não existia.
Nos anos setenta os policiais protestavam por terem de traba-
lhar com mulheres. Hoje em dia a polícia feminina atua em todas as
grandes cidades e a pâ\a.vta.polkeman transformou-se em "agente de
polícia".
Nos anos sessenta falava-se, nos Estados Unidos, de mulheres
brancas que controlavam a economia ou de mulheres negras que
formavam um matriarcado, dourando assim a amarga pílula da fal-
ta de poder com o mito do poder. Apenas duas décadas depois ho-
mens e mulheres concordam que a discriminação sexual existe e que
é errada.
Até os anos setenta, as mulheres precisavam escolher entre Miss,
para senhorita, ou Mrs., para senhora, identificando-se assim pelo
estado civil, coisa que os homens jamais fizeram. Hoje um terço das
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 201

mulheres americanas apoia o uso do termo Ms. como alternativa,


um paralelo exato a Mr. O termo é também apoiado por publica-
ções do governo, por empresas e pela mídia.
Nos tempos do pré-feminismo o estupro era o único crime pelo
qual as vítimas também eram julgadas. Hoje em dia a lei mudou e
provas são colhidas de maneira diferente, fazendo com que a violên-
cia sexual seja encarada e compreendida como o que é: um crime.
Hoje lésbicas conseguem manter empregos e a custódia dos fi-
lhos e muitas foram eleitas e ocupam cargos públicos — tudo isso
sem ter de se esconder ou mentir. Há uma década "lésbica" era uma
palavra secreta e "mãe lésbica" um oximoro.
Há alguns anos mulheres grávidas eram forçadas a deixar seus
empregos em definitivo e o termo "licença paternidade" não existia.
Hoje em dia a gravidez é apenas mais um motivo para se sair de
licença e algumas companhias, assim como alguns sindicatos, ofere-
cem um tipo de licença para os pais também.
Muitas dessas novidades estão tornando a língua precisa. Por
exemplo, substituiu-se congressman (deputado) por congresspeople (con-
gressistas) OU HOMENS TRABALHANDO por PESSOAS TRABALHAN-
DO — embora tais mudanças indiquem na realidade imensas dife-
renças de poder. Mas outros neologismos ainda serão necessários para
produzir uma nova esperança.

Antes da atual onda do feminismo ainda discutíamos "controle


populacional", a resposta bem informada à "explosão populacional".
Ambas eram frases negativas. A primeira indicava a necessidade de
forças externas e a segunda sugeria uma procriação sem fim e comple-
tamente impessoal. Embora fosse esperado das feministas posicionarem-
se a favor do "controle populacional", uma das suposições subjacentes
era a de que uma mulher não tinha capacidade de fazê-lo. Os homens
liberais, especialistas em população, partiam do princípio de que as
mulheres sentiam-se seguras ou completas apenas através da mater-
nidade, e assim teriam um número absurdo de bebês se lhes fosse dado
o poder de decidir (a não ser, é claro, que pudessem atingir um grau
mais alto de instrução, tornando-se assim mais racionais, ou seja, mais
parecidas com os homens). Por outro lado, homens extremamente
religiosos ou conservadores — que com freqüência pareciam ter a in-
tenção de aumentar seu contingente de fiéis — encaravam mulheres
202 GLORIA STEINEM

como criaturas potencialmente obcecadas por sexo: criaturas que evi-


tariam a gravidez por completo, comportando-se de forma pecami-
nosa e assim colocando em risco o patriarcado e toda a civilização.
Nos anos setenta, no entanto, o feminismo transformou a dis-
cussão ao popularizar o termo "liberdade reprodutiva" como frase e
como direito de cada ser humano. Esta posição "guarda-chuva" in-
clui anticoncepcionais e abortos seguros, assim como a liberdade de
recusar a esterilização forçada (de mulheres e de homens), e assis-
tência médica decente durante gravidez e parto. Em outras palavras,
"liberdade reprodutiva" fala do direito de cada um de ter ou não ter
um filho. Embora seja obviamente um direito de maior importância
para as mulheres do que para os homens, ele também os protege.
Além do mais, ajudou a construir uma nova confiança, uma nova
aliança entre mulheres de cor e mulheres brancas, neste país e no
mundo, que haviam suposto, e com razão, que o "controle populacional"
visava controlar alguns grupos mais do que outros.
Para a grande surpresa dos experts populacionais mais liberais, a
"liberdade reprodutiva" vem sendo exercida em qualquer lugar onde
seja ao menos tolerada. Os periódicos sobre população passaram a
publicar artigos que exprimiam uma certa perplexidade diante da
queda nas taxas de natalidade em todo o mundo, até mesmo em
partes do mundo onde o analfabetismo feminino ainda é tragica-
mente alto. Em 1979, durante uma conferência da ONU com mu-
lheres provenientes das Europas Ocidental e Oriental, concluiu-se
que as mulheres não limitavam o número de gestações apenas por
motivos de saúde. Do ponto de vista estatístico, muitas estavam fazendo
o que poder-se-ia chamar de "greve do bebê", provavelmente para
evitar a dupla jornada: ou seja, ter de trabalhar dentro e fora da casa.
Alguns países indicaram como solução que os homens compartilhassem
a criação das crianças de forma a aliviar o fardo das mulheres. Go-
vernos mais autoritários simplesmente tentaram proibir anticoncep-
cionais e o aborto de forma a garantir mais nascimentos. No ano de
1979, especialistas do governo americano começaram a falar aber-
tamente que a taxa de natalidade do país se tornara "pouco satisfatória".
Alguns líderes de direita da facção antiaborto diziam, apavorados,
que as diferenças culturais nas taxas de natalidade transformariam
os Estados Unidos num país "não branco". A pergunta do futuro e
clara: será que a liberdade reprodutiva fará com que a gestação e a
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 203

criação de uma criança se torne uma função valiosa e compensadora,


apoiada e auxiliada pela sociedade (como pregam as feministas)? Ou
será que as mulheres serão forçadas a ter filhos, especialmente aquelas
de raças "desejáveis" (como pregam os radicais de extrema direita)?
É óbvio que a "liberdade reprodutiva" é apenas uma forma de
expressar o que o feminismo vem prevendo há milhares de anos. Bruxas
e ciganas lutavam pela liberdade da mulher ao lhes ensinar o uso de
anticoncepcionais e do aborto. Foi esta sabedoria, principalmente,
que as transformou num anátema aos olhos dos patriarcas do passa-
do. Durante a onda mundial de feminismo do século XIX e do iní-
cio do século XX, pregar o "controle de natalidade", até mesmo para
mulheres casadas, era o bastante para colocar muitas feministas atrás
das grades.
Mas a contribuição moderna consiste em elevar a "liberdade
reprodutiva" a direito humano universal, pelo menos tão básico quanto
o direito de expressão ou o de reunião. Independentemente do esta-
do civil, da necessidade racista de limitar-se ou de aumentar-se cer-
tas populações, ou das metas nacionalistas de ter-se mais ou menos
soldados e operários, cada mulher tem o direito de decidir como haverá
de usar o próprio corpo. Homens que desejam filhos devem, no mínimo,
encontrar mulheres dispostas a tê-los. Isso parece ser uma reivindi-
cação pelo menos razoável. E os governos que desejam taxas mais
altas de crescimento populacional devem tomar medidas mais hu-
manas, tais como a redução de taxas de mortalidade infantil, a melhoria
da assistência médica oferecida à gestante, a divisão dos cuidados
para com a criança através da criação de creches e da promoção da
igualdade da responsabilidade do pai e da mãe, além de medidas
que visem maior longevidade das populações.
É óbvio que o poder de veto reprodutivo por parte das mulheres
é exatamente o que os supremacistas do sexo masculino mais temem.
E por isso que seus impulsos autoritaristas são tão claramente con-
trários a qualquer sexualidade que não for voltada para o nascimen-
to dentro de uma família patriarcal (isto é, contrários ao sexo
extraconjugal, ao homossexualismo e ao lesbianismo, assim como
aos anticoncepcionais e ao aborto). Esta compreensão ajudou as fe-
ministas a enxergarem o porquê de adversários, com preocupações
aparentemente tão díspares quanto anticoncepcionais e homos-
sexualismo, serem quase sempre os mesmos. Ajudou-nos também a
204 GLORIA STEINEM

nos colocar, unidas, ao lado de qualquer sexualidade escolhida livre-


mente como forma legítima da expressão humana.
Nos últimos anos termos tais como "amante" (quer refira-se a
alguém do mesmo sexo ou não), "preferência sexual" e "direitos dos
homossexuais" passaram a ser amplamente usados. "Homofobia" foi
um termo inventado para descrever o medo irracional da expressão
sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, um medo tão comum no
passado que não precisava de nome. Houve também o desafio de
expressões que se tornaram comuns devido à sua intensa repetição,
tais como "lésbica que odeia homens". Conforme demonstrou Rita
Mae Brown, não são as lésbicas que odeiam os homens e sim as mulheres
que dependem deles e que estão, portanto, mais propensas a sentir
mágoa e raiva deles.

Nos anos sessenta, todo sexo praticado fora do casamento era cha-
mado de Revolução Sexual, uma expressão não feminista que sim-
plesmente queria dizer maior disponibilidade feminina, do ponto de
vista masculino. Ao final dos anos setenta, o feminismo trouxe a
compreensão de que liberação significava poder de escolha, de que a
sexualidade, para homens e mulheres, não deveria ser forçada ou
proibida. Com isso em mente, palavras como "virgem", "celibato",
"autonomia", "fidelidade", e "compromisso" passaram a ter um sig-
nificado positivo. Palavras condenáveis tais como "frígida" e "ninfo-
maníaca" estão sendo substituídas por palavras que omitam qual-
quer julgamento, tais como "pré-orgásmica" e "sexualmente ativa".
De fato, do ponto de vista médico, "ninfomaníaca" é um termo
inexistente, cujo intuito era condenar qualquer mulher que gostasse
de sexo ou que fizesse cobranças sexuais.
Pode ser que levemos algum tempo para entender os motivos
pelos quais tantas mulheres começam a manter seu nome de batis-
mo (em vez de chamá-lo de nome de solteira, com todas as implica-
ções de um sistema de dois pesos e duas medidas sexuais para ho-
mens e mulheres). Algumas mulheres até mesmo trocaram os no-
mes "patriarcais" por nomes "matriarcais" ("Mary Ruthchild, filha de
Ruth"), ou passaram a seguir a tradição de substituir os nomes dos
antigos senhores escravagistas por nomes de lugares ou por letras
(por exemplo "Judy Chicago" ou "Laura X"). Muitas tentaram resol-
ver o dilema do nome dando o passo reformista de simplesmente
acrescentar o sobrenome do marido ("Mary Smith Jones"). Mas tal opção
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 205

continuou a evidenciar a desigualdade do casamento, a não ser que


o marido também adotasse os dois nomes.
São raros aqueles que conseguiram interromper o fluxo patriar-
cal do nome. Os filhos ainda recebem apenas o sobrenome do pai e
o sobrenome da mãe como algo dispensável, no meio. Resta ao fu-
turo encontrar uma maneira de legalizar uma forma igualitária, como
alguns países europeus já fizeram, dando aos filhos o sobrenome do
pai e da mãe como forma de indicar a verdadeira filiação (e de elimi-
nar a necessidade de explicações constantes tais como "esta é minha
filha do primeiro casamento" ou "este é meu filho do segundo"). Os
filhos deveriam ter o direito de escolher o nome, quer fosse o dos
pais ou um outro inteiramente novo, quando tivessem idade bas-
tante para tirar a carteira de Seguridade Social ou de se registrar como
eleitor. Afinal de contas, todos nós deveríamos ter o direito de esco-
lher o próprio nome. O poder de nomear é um poder profundo.

Como adjetivo, "pró-escolha" começou a substituir "pró-aborto", este


último tendo sido um termo criado pela mídia para sugerir uma
apologia ao aborto, em oposição a um apoio a uma escolha legal.
Quando o intuito era apresentar a palavra "aborto" como uma esco-
lha honrosa, havia frases como "aborto seguro e legal". E uma déca-
da que começou com a necessidade de provar que o freudiano "or-
gasmo vaginal" é algo neurologicamente inexistente, além de expli-
car o "orgasmo clitoriano" como algo literalmente verdadeiro, ter-
minou de maneira mais justa com o "orgasmo" (sem a necessidade
de adjetivos) sendo mais discutido e mais tido.
O espírito feminista recuperou algumas palavras com desafio e
humor. "Bruxa", "cadela", "sapatão" e outros epítetos antes consi-
derados pejorativos começaram a figurar como valentes nomes de
pequenos grupos feministas. Algumas artistas mulheres criaram o
termo "arte da boceta" para suas novas imagens, como forma de celebrar
a. descoberta de que nem todos os símbolos sexuais são fálicos. O
humor encorajou a invenção de termos tais como jockocracy (jockocracia,
de jock, coloquial para atleta) para descrever uma certa obsessão
masculina por esportes e por vitórias. Há também o termo "per-
didismo", um reconhecimento amargo do desconforto cultural fe-
minino com algo tão pouco feminino como o sucesso. "Supermãe e
Supermulher" são palavras que nos aliviaram profundamente por
206 GLORIA STEINEM

identificarem a Esposa e a Mãe Perfeitas, além da Profissional Per-


feita, como meta humanamente impossível.
Women's Lib ou Women's Libber foram termos que trivializavam a
luta das feministas. (Alguém usaria o termo "Libber Algeriano"? ou
"Negros Lib"?) Seu uso diminuiu, mas ainda não desapareceu.

A natureza do trabalho é uma das principais áreas da nova compreensão,


a começar pela própria palavra. Antes do feminismo, "trabalho" era
amplamente definido como aquilo que um homem fazia ou viria a fazer.
Portanto "a mulher trabalhadora" era alguém que trabalhava fora do
lar por dinheiro, de forma masculina. Embora ainda seja assustadora-
mente comum, o termo está sendo combatido, principalmente pelas
donas de casa, que trabalham mais do que qualquer classe de traba-
lhadores e mesmo assim são consideradas pessoas que "não trabalham".
As feministas costumam falar em "trabalho realizado dentro do lar"
ou "fora do lar", de trabalhadores "remunerados" e "não remunera-
dos". A atribuição de um valor financeiro ao trabalho realizado dentro
do lar muito faria para transformar o casamento numa aliança iguali-
tária, terminando assim a escravidão semântica inerente à expressão
"mulheres que não trabalham". Começaria também a desembaraçar
o problema do "papel duplo", exercido por milhares de mulheres que
trabalham dentro e fora do lar. A definição da manutenção humana e
dos cuidados com o lar como trabalho esclarece que os homens po-
dem e devem realizar tais atividades tanto quanto as mulheres.
"Salários iguais por trabalhos iguais", um conceito introduzido
nos anos sessenta, não chegou a ajudar as mulheres nos empregos
onde elas predominam e nas ocupações não sindicalizadas do "gueto
do colarinho rosa", outro termo novo. Os colarinhos azuis, predo-
minantemente homens, em geral ganham muito mais do que qual-
quer mulher no desempenho de uma atividade tipicamente femini-
na. O que foi que "salários iguais" conquistou, por exemplo, para
uma enfermeira que recebia o mesmo salário, baixíssimo, que a co-
lega que trabalhava ao seu lado? "Salários iguais por atividades aná-
logas" tornou-se a nova meta. Estudos comparativos vêm demons-
trando que as atividades exercidas em grande parte por homens exi-
gem menos instrução e um menor número de habilidades específi-
cas do que as atividades exercidas principalmente por mulheres, com
remuneração bem mais baixa.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 207

Muitas idéias vêm sendo transformadas por meio do acréscimo de um


adjetivo crucial: women's — significando da mulher, de mulheres, fe-
minino, feminista. Banco de mulheres, música de mulheres, estudos
feministas, comitê eleitoral de mulheres. Isso sugere um conteúdo novo
e variado: assistência ao menor, jornada de trabalho flexível, novas li-
nhas de crédito, novos simbolismos, novas letras de música. Esses grupos
fizeram experiências com novas estruturas. Quer tenha sido devido à
crença da hierarquia estar fundamentada no patriarcado ou devido a
um desconforto inconsciente para com a autoridade, grupos de mu-
lheres freqüentemente transformam organizações verticais em estru-
turas laterais. É mais provável ouvir-se coletivo, comunitário, grupo
de apoio, grupo de constituintes e troca de habilidades do que quadro
funcional, credenciais ou frentes de comando. Embora estas novas formas
sejam condenadas por serem pouco práticas, sua habilidade de tornar
um indivíduo mais produtivo — aliada à atual crise de produtividade
das formas tradicionais e hierárquicas da indústria—fizeram com que
alguns consultores da área de gerenciamento começassem a encará-
las como novas possibilidades.
Resumindo, contar a verdade e criar instituições alternativas co-
meçou a delinear e a dar valor à cultura feminina, um grupo de pers-
pectivas que diferem do tradicional e do masculino não em virtude da
biologia, mas do condicionamento sexual. Nós temos muito o que
aprender, assim como os homens. Juntos, podemos criar uma cultura
que combine os traços mais úteis e mais criativos de cada uma.
Poder começa a ser redefinido. As mulheres explicam, com enor-
me cuidado, que queremos controle sobre nossas vidas e não con-
trole sobre os outros.
A linguagem também vem sendo usada para colocar o fardo de
volta aos ombros certos. Pensão alimentícia é, às vezes, chamada de
salário atrasado ou indenização. Se até mesmo o Departamento do
Trabalho dos Estados Unidos calcula o valor de reposição salarial de
uma dona de casa em dezoito mil dólares anuais, por que não have-
ria uma esposa de ter o direito de receber salários atrasados? Da mesma
forma, feministas deixaram de implorar junto às corporações e gru-
pos profissionais que fizessem contribuições e começaram a pedir in-
denizações por danos causados a mulheres. Estudos Feministas, Black
Studies — Estudos da Raça Negra —, Estudos dos Nativos Ameri-
canos e outros eram referidos como estudos reparadores, de forma a
208 GLORIA STEINEM

colocar a culpa em seu devido lugar e demonstrar que tais cursos


terão de ser integrados aos currículos básicos e à história da humani-
dade. A autodescrição do autoritário retrocesso antiigualdade como
pró-família fez com que muitas femininas passassem a ter o cuidado
de usar o plural famílias para demonstrar que há formas diferencia-
das de família. A unidade patriarcal aceita pela direita (o pai ganha
o pão e a mulher fica em casa com as crianças) exclui aproximada-
mente, 85 % dos lares americanos. Compreender o que a direita quer
dizer com "família" nos ajuda a compreender por que, do ponto de
vista deles, todas as garantias dos direitos individuais femininos e
infantis seriam antifamília, da Emenda de Igualdade de Direitos às
leis contra abusos cometidos com menores.
E claro que a grande importância da palavra é o seu poder de
exclusão. O homem e a família do homem fizeram com que as mulheres
se sentissem excluídas. Gente e humanidade são termos mais inclusi-
vos, assim como releituras do tipo "Paz na Terra para o Povo de Boa
Vontade". As feministas tentam educar, pedindo aos homens que se
imaginem recebendo diplomas com títulos tais como Solteirona de
Artes ou Senhora em Ciências para, em seguida, dar um duro tremen-
do por uma irmandade. Será que eles não se sentiriam nem um
pouquinho excluídos?
As minorias raciais, tanto homens quanto mulheres, já foram descritas
no negativo como sendo "não brancos" (será que nos referiríamos aos
brancos como "não negros"?), e de qualquer forma aqueles que são
considerados minorias, neste país, são na verdade a maioria em todo o
mundo. De forma a serem mais exatas e mais inclusivas, culturalmente
falando, as feministas adotam a descrição "gente de cor". Durante um
certo tempo foi empregado Quarto Mundo para descrever o que ha-
via em comum entre "todas" as mulheres da sociedade patriarcal, in-
dependentemente de raça, mas o termo foi apropriado para designar
as nações mais pobres, menos industrializadas, que não eram incluí-
das entre as nações "em desenvolvimento" ou no "Terceiro Mundo".
Dando continuidade a esta referência, as mulheres hoje, muitas vezes,
se incluem no "Quinto Mundo" — por sermos a metade da popula-
ção mundial usada como mão-de-obra barata, que tem o menor aces-
so possível ao capital e à tecnologia onde quer que estejamos.
Como forma de superarmos as barreiras, as feministas tentaram
ser sensíveis aos nossos próprios hábitos divisórios: por exemplo, o
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 209

hábito racista de usar imagens de escuridão ou de negritude como


negativas ("o lado negro do ser humano", "um coração negro",
"blackmail, em inglês, que significa chantagem) e a brancura como
sendo positiva ("uma mentirinha branca", "magia branca"). Se um
grupo precisa de adjetivos (um poeta asiático-americano), então to-
dos devem precisar (um professor euro-americano).
Da mesma forma, qualificado parece ser usado apenas para de-
signar grupos excluídos, como se os homens brancos já fossem mão-
de-obra qualificada ao nascerem. Eles são considerados seres madu-
ros e bons profissionais (o trabalhador, o médico, o poeta), enquanto
nós, o resto, precisamos de um indicador que via de regra até nos
des-qualifica (trabalhadora mulher, médico negro, poeta mulher).
As grandes dificuldades em tornar a língua mais precisa muitas
vezes incluem a invenção de alternativas tais como chairperson, em
vez de chairman, ou spokesperson, em vez de spokesman — respectiva-
mente, presidente e porta-voz. Torna-se claro que apenas as organi-
zações destinadas exclusivamente a um dos sexos terão cargos deno-
minados chairwoman ou chairman. Uma organização integrada exige
que suas posições possam ser galgadas por qualquer um de seus
membros, por isso o uso de chairperson, ou melhor ainda simples-
mente chair. Mas dado o desequilíbrio de poder, esses termos que
independem de gênero às vezes são usados para neutralizar as mu-
lheres e deixar os homens como o status quo. Assim, uma porta-voz,
em inglês, poderá ser chamada de spokesperson, enquanto um porta-
voz homem continuará a ser um spokesman. As mulheres podem até
ter se tornado pessoas, entretanto os homens continuam a ser men.
Nós mulheres em alguns casos contribuímos para nossa própria
exclusão ao tentarmos saltar para as palavras livres de gênero cedo
demais. Humanismo foi uma tentação em particular (como na frase:
"Não sinta-se ameaçado, as mulheres estão na verdade falando de
humanismo"). Androginia também gerava a esperança de que cul-
turas femininas e masculinas poderiam se integrar perfeitamente mas,
como o lado feminino da equação ainda precisa se fortalecer, "andro-
ginia" ainda tende a se referir ao masculino. Como conceito, tam-
bém exacerba os níveis de ansiedade ao invocar uma visão unissex
ou dessexuada, o oposto exato da individualidade e da liberdade que
o feminismo tem em mente.
Na vida ou na língua, a integração sem a igualdade de poderes
210 GLORIA STEINEM

significa o retorno às nossas posições originais na hierarquia. Uma vez


que isto for aprendido, estaremos menos propensas a deixar que o medo
de conflito nos force a uma pretensa unidade como mankind — não
no sentido de humanidade, e sim no sentido de gênero masculino —
ou mesmo a uma falsa unidade com o gênero feminino. Esta lição aju-
da a esclarecer a necessidade de conscientização através da linguagem
específica. "Os árbitros serão escolhidos por mérito", por exemplo, é
uma frase perfeitamente aceitável. O único problema é que estamos
tão acostumados a visualizar árbitros homens que uma frase na qual o
gênero está ausente talvez não faça nada para treinar nossa consciên-
cia. Talvez precisemos passar algum tempo usando frases como "um
árbitro será escolhido pelos méritos dela ou dele" para nos forçar a
reconhecer a existência de juízas, assim como talvez precisemos men-
cionar raças de forma a tornar a diversidade visível.
Outra confusão simbólica foi a invenção do termo porco chauvinista,
um híbrido produzido por meio da combinação do feminismo com a
retórica esquerdista, o que em si já é antifeminista. Neste caso, o
intuito é reduzir o oponente a algo abaixo de humano, como pri-
meiro passo na tentativa de justificar a violência contra as mulheres.
(Depois de anos sendo tratadas como gatinha, cadela e vaca, é com-
preensível que tenhamos querido virar a mesa, mas isto deveria ter
nos ensinado o quão desumano é este tipo de tratamento.) Os poli-
ciais foram chamados de pigs (porcos), nos anos sessenta — como na
frase "Fora, porcos!" —, assim, todos os homens preconceituosos se
fundiram em um durante algum tempo; um período felizmente já
passado.
Na realidade o termo porco chauvinista, em si, já é um problema.
Como chauvinista se referisse a um superpatriota, tudo o que dizía-
mos era que tal homem era obcecado pela lealdade a seu país. Em
vez deste termo, muitas feministas passaram a empregar male supre-
macist, ou seja, aquele que prega a supremacia masculina, uma des-
crição mais exata para o problema em questão. Alguns destes pre-
gadores da hegemonia masculina se aproveitaram do erro inicial e
passaram a usar gravatas e broches com os dizeres "Eu sou um porco
chauvinista". Esta é claramente uma indicação da falta de seriedade
com que o feminismo é tratado. Muito poucos homens declarariam
com igual entusiasmo "Eu sou anti-semita" ou "Eu sou racista".
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 211

Mulheres espancadas é uma expressão que denomina um importante


tipo de violência ocultado por tanto tempo. Ela nos ajudou a enca-
rar o fato de que, segundo as estatísticas, o local mais perigoso para
uma mulher é a sua própria casa e não as ruas. Assédio sexual no local
de trabalho também expunha uma forma de intimidação à qual um
terço de todas as mulheres que trabalham são submetidas. O ato de
nomear permitiu que as mulheres se expusessem e que recursos ju-
rídicos fossem criados. Ao identificarmos a pornografia (literalmente
"escrever a respeito da escravidão feminina") como a pregação do
ódio pelas mulheres e, portanto, muito diferente de erotismo, que contém
uma conotação de amor e de reciprocidade, deu-se também início à
compreensão de que a pornografia é uma das principais formas pe-
las quais a violência e a dominação são ensinadas e aceitas. Isto faz
com que ela seja tão socialmente danosa quanto a literatura nazista
para os judeus ou a literatura da Ku Klux Klan para os negros.
Até mesmo a escravidão sexual feminina (anteriormente conheci-
da pelo termo racista, do século XIX, escravidão branca por ser a única
forma de escravidão à qual brancas também eram sujeitadas) foi exposta
por esta onda do feminismo. Sabemos, hoje, que ela prospera em
muitas cidades onde a prostituição e a pornografia são negócios ren-
táveis e fatos da vida internacional.
Como resposta a tais conscientizações de injustiça, não é à toa
que radicalismo tenha perdido um pouco de sua equiparação com o
excessivo e o pouco razoável. Ao expormos as injustiças do sistema
de castas sexuais e de seu papel como raiz de outras injustiças natu-
rais baseadas em raça e classe social, o feminismo radical construiu as
bases para uma plataforma comum entre mulheres de origens dife-
renciadas. Ao desafiar esta estrutura masculino-feminina, dominan-
te-passiva por ser a principal causa e justificativa para a violência,
também foi provado que o radicalismo pode tomar outras formas que
não a violência, mas que ele é necessário como a única maneira de
desafiar as origens da própria violência.
Estas novas ligações feministas entre mulheres ainda são tênues.
O feminismo era internacional — e portanto antinacional — du-
rante sua última arrancada maciça no século XIX e princípio do sé-
culo XX. (Se chamamos esta de a primeira onda do feminismo, é ape-
nas porque vivemos num país tão jovem. A revolução feminista vem
sendo uma recorrência contagiante e progressiva na história há mi-
212 GLORIA STEINEM

lhares de anos.) A última onda conquistou para muitas mulheres do


mundo a identidade jurídica como seres humanos e não como pro-
priedades de outrem. Agora procuramos completar este passo por
todas as mulheres, e também conquistar a igualdade jurídica. Mas
ainda haverá muitas outras ondas feministas até que a cultura da
hegemonia masculina se desmantele.
Nesta onda, as palavras e a consciência abriram o caminho para
que a realidade possa segui-las. Ao medirmos a distância entre o novo
e o velho, evocamos uma parte única da história existente dentro de
cada uma de nós.

— 1979 e 1982

PÓS-ESCRITO

Doze anos depois, muitos leitores já não podem mais responder à


pergunta: "Quem era você antes desta onda de feminismo?" Eles
simplesmente já nasceram com algum grau de consciência feminis-
ta, e assim possuem melhores expectativas e não sofrem mais de um
problema cultural feminino conhecido como gratidão terminal, duas
condições necessárias para o longo caminho a ser trilhado.
Por exemplo: Sim, muitas mulheres estão se tornando os homens
com os quais gostariam de ter se casado, mas poucos homens estão
se tornando as mulheres com as quais gostariam de se casar. Isto deixa
as mulheres com dois trabalhos: um fora do lar e o outro dentro do
lar, um problema que as mulheres pobres sempre tiveram, mas que
agora começa a ser compartilhado pelas mulheres da classe média
— o que deve significar que, juntas, conseguiremos resolvê-lo. A
um nível mais profundo, muitas de nós criamos nossas filhas de uma
maneira mais parecida com a criação de nossos filhos. Até que os
homens sejam socializados para criar filhos e para cuidar do lar, tan-
to quanto as mulheres, este fardo duplo continuará a limitar as
mulheres, a privar as crianças do carinho paterno e a perpetuar os
papéis sexuais.
Em muitas áreas há hoje um maior reconhecimento das formas
que polarizavam — tais como escolhas bipolares do tipo isto ou aqui-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 213

lo —, que moldavam ou dividiam a natureza humana em "femini-


na" e "masculina" que começam a desaparecer ou a se fundir em "e",
a representar a ausência da hierarquia e um paradigma completo e
inclusivo. Nas ciências, a nova física e a teoria do caos dinamitaram as
antigas suposições lineares, mecânicas e hierárquicas. Nos ajudaram
a pensar em relações e não em classificações. Cientistas feministas nos
oferecem a dependência de campo: a compreensão de que nada pode
ser estudado fora de contexto. No campo da sexualidade, a suposi-
ção de que uma pessoa precisa ser homossexual ou heterossexual começa
a se desprender o suficiente para incluir tanto a tradição milenar do
bissexualismo quanto um novo grupo de indivíduos que se considera
transgênero, para ultrapassar o que um dia pareceu ser um limite
imutável. Muitos grupos integrantes do movimento de gays e lésbi-
cas já acrescentaram estas duas palavras às suas descrições. Muitos
casais hoje tendem a se referir ao outro como parceiro ou. parceiro de
vida, um relacionamento que vai além da conotação limitada de amante.
Homofóbico juntou-se a heterossexista, forma de descrever uma pessoa
ou uma instituição que coloca a heterossexualidade no centro, ou
que pressupõe que todas as outras sexualidades são periféricas ou
inexistentes. Ao mesmo tempo, preferência sexual é freqüentemente
substituída por identidade sexual, uma forma de incluir tanto aqueles
que nasceram com uma sexualidade específica quanto aqueles que
acham tê-la escolhido.
Até mesmo a heterossexualidade começa a mudar a sua lingua-
gem, com casais casados preferindo o termo parceiro, em vez de ma-
rido e mulher, tão carregados de conotações culturais. Outros ten-
tam substituir os termos dominantes/passivos da sexualidade suge-
rindo termos como envolvimento no lugar de penetração ou, pelo me-
nos, abandonando antigas gírias que sugeriam que o sexo tem a ver
com conquista.
Estamos também examinando a forma com que a linguagem
permitia que a vítima fosse identificada, e não o algoz. Além de fa-
lar de quantas mulheres foram estupradas, por exemplo, começamos a
falar em quantos homens estupram. Em vez de falarmos do porquê das
mulheres não abandonarem ou não conseguirem abandonar situações violen
tes, começamos a nos perguntar por que os homens são violentos. O pró-
prio termo violência doméstica começou a parecer trivial e inadequa-
do, como se esta fosse uma violência menor. Como a violência den-
214 GLORIA STEINEM

tro de um lar é na verdade o laboratório e a origem de grande parte


da violência, quer esta se refira ao comportamento criminoso ou às
diversas suposições da política externa, violência original tornou-se
uma alternativa. Nestes doze anos, os crimes motivados pelo ódio final-
mente começaram a incluir crimes cometidos contra mulheres, as-
sim como aqueles cometidos contra uma dada raça, religião, grupo
étnico ou sexualidade. Todas estas outras categorias eram levadas mais
a sério, no passado, por incluírem homens entre suas vítimas. Ter-
rorismo passou a denominar também os bombardeios às clínicas de
aborto e não apenas atos tidos como políticos segundo a definição
masculina.
Acadêmicas feministas trouxeram para o feminismo um grupo
de palavras imitativas mas talvez necessárias. Desconstrução é o ato
de divorciar algo de seu contexto original. Expressões como a força
motriz feminina são substituídas simplesmente por poder problematizar
surge no lugar de apenas falarmos de problemas e de suas raízes; e
até mesmo práxis feminista onde prática feminista bastaria. A lingua-
gem acadêmica, assim como a linguagem em geral, muitas vezes ofusca,
distancia e retira a introvisão e a informação do alcance dos leitores
mais necessitados. Mas talvez isto tudo seja preciso para conseguir-
mos galgar posições e sermos levadas a sério nos meios acadêmicos.
Por outro lado, o termo "politicamente correto", cunhado como
forma autocrítica e humorística de descrever os esforços de um mo-
vimento em ser inclusivo, tornou-se sério à medida que os grupos
que apóiam a exclusão o transformaram em acusação.
Se alguém duvidava da importância da linguagem, tais dúvidas
foram afastadas pela direita, que insiste em usar termos como mãe
não-casada e filhos ilegítimos em vez de mãe solteira e filhos. Como re-
presentante da única religião do mundo a ter status permanente de
observador nas Nações Unidas, o Vaticano decidiu se opor às frases
direitos reprodutivos e saúde reprodutiva e até mesmo ao uso da palavra
gênero em documentos da ONU. Torna-se claro, assim, que a decisão
de quais palavras usar decide quais sonhos podemos sonhar.
Pense nas mudanças já feitas ou nas mudanças que ainda estão
por vir na sua própria linguagem. Elas são uma boa indicação de
onde estamos e onde ainda precisamos chegar.

— 1995
Celebrando o Corpo Feminino

Quanto tempo faz desde a última vez que você passou alguns dias
na companhia de outras mulheres: tirando e botando a roupa, to-
mando banho, descansando — aquela união confortável que parece
bem mais comum aos vestiários masculinos?
Para mim, o mais perto que cheguei de uma experiência como
esta foi na aula de ginástica no científico. Mas isso foi durante os
repressivos anos cinqüenta, quando até mesmo as mais ousadas se
escondiam por trás de toalhas. Outras de nós sentiam-se tão insegu-
ras em relação às mudanças de nossos corpos adolescentes (ou à falta
de mudança) que tomavam banho de calcinha—ou então agüenta-
vam o desconforto das roupas de ginástica úmidas debaixo da roupa
só para não terem de se despir.
Acho que já devíamos ser mais adultas e mais abertas quando
chegamos à faculdade. Não obstante, para as mulheres o esporte,
além de pouco feminino, tornou-se uma coisa antiintelectual. Estas
eram duas excelentes desculpas para evitar a maioria das situações
de nudez casual entre mulheres. E assim continuávamos a esconder
os corpos imperfeitos em que no fundo, acreditávamos, estava todo
o nosso valor.
E foi bem tarde que vim a ter uma experiência básica, humana e
reconfortante que deveria ter sido comum durante toda a minha vida.
Graças a alguns dias passados num spa antiquado, na companhia de
umas noventa mulheres, descobri uma consciência simples e visceral,
tão crucial quanto a do tipo verbal. Assim como muitas das experiên-
cias básicas que uma mulher é encorajada a não ter, esta trouxe força
(através da auto-aceitação) e raiva (por que não aprendi isso antes?).
É um truísmo dizer, por exemplo, que pouca roupa causa mais
impacto do que nenhuma. Mas no caso específico das mulheres su-
tiãs, calcinhas, biquínis e outros tipos de roupas são lembretes visuais
de uma imagem feminina idealizada e comercial à qual nossos cor-
216 GLORIA STEINEM

pos reais e tão variados jamais conseguiriam se adequar. Sem essas


referências visuais, o corpo de cada mulher pode ser aceito como é.
Deixamos de nos comparar. Começamos a nos aceitar como únicas.
Ninguém comentava tais eventos, é claro. Eles simplesmente
aconteciam. Quanto mais horas e dias passávamos juntas, transitando
entre vestiário e aula de ginástica ou piscina e sauna, menos lançá-
vamos mão dos pedacinhos de seda ou do elástico dos modelos variados
de nossas roupas de baixo. A nudez era aceitável. As malhas de gi-
nástica também. Cobriam o corpo confortavelmente ao invés de
cortá-lo em tiras horizontais. Mas aos poucos biquínis minúsculos,
anáguas avantajadas, cintas e outra parafernália começaram a desa-
parecer de nossos corpos e de nossos armários como a roupa de com-
bate de uma guerra que não precisávamos mais lutar.
— Eu sempre gostei de lingerie chique — disse uma mulher.
— Mas estou começando a me sentir esquisita nelas.
— Mas é por isso que meu marido gosta de ligas pretas — dis-
se uma mulher saída dos quadros de Rubens. —Justamente porque
fica esquisito.
— Vocês já ouviram a história de Judy Holliday? — perguntou
uma mulher enquanto despia a malha suada. — Ela foi fazer um
teste para um filme e o chefe do estúdio começou a correr atrás dela,
em volta da escrivaninha. Então ela simplesmente enfiou a mão dentro
do vestido, arrancou o enchimento e disse: "Tome, acho que é isso
que o senhor está querendo".
— Meu Deus — disse uma mulher de seios enormes que, pelos
padrões da revista Playboy, deveria se sentir muito satisfeita. — Se
eu ao menos pudesse fazer isso!
Aos poucos as cicatrizes de operação de apêndice, as estrias, as
cicatrizes de cesariana e coisas do gênero iam causando menos ver-
gonha. Embora eu sempre tivesse me ressentido do sistema de dois
pesos e duas medidas antropológico no qual as cicatrizes masculinas
são marcas de coragem e experiência, mas as das mulheres são feias,
começo a me dar conta de que eu mesma vinha encarando estas fe-
ridas com olhos masculinos. Cicatrizes de duelos, cicatrizes de guer-
ra, cicatrizes de violência, cicatrizes tribais de iniciações dolorosas.
Estas imagens são, em parte, o motivo pelo qual eu supunha que
tais marcas são provas de violência nos homens assim como nas
mulheres.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 217

Mas muitas cicatrizes femininas possuem um contexto diferen-


te, e assim uma força emocional própria. Estrias, cicatrizes de cesa-
rianas são muito diferentes das cicatrizes deixadas por acidentes, por
guerras e por brigas. Elas evocam coragem sem violência, e mesmo
assim é mais provável que provoquem vergonha em quem as tem
do que vontade de se vangloriar. Isto dá a elas uma força comovente,
nem doce nem amarga. E como caminhar por um cômodo no qual
algo de muito emocionante ocorreu.
Há outras cicatrizes cirúrgicas que me assustavam também, embora
não fossem tão plenas de significado como as de parto. Quantas
mulheres sobrevivem até mesmo ao preço físico da pele esticada além
de seus limites? Após uma cesariana, de onde é que as mulheres ti-
ram a coragem para tentar mais uma ou até várias outras?
É verdade que existem sociedades tribais que tratam as mulheres
que dão à luz como guerreiros honorários. Mas isso é honrar demais a
guerra. Dar à luz é mais digno de admiração do que conquistar algu-
ma coisa, é mais extraordinário do que a autodefesa e exige mais cora-
gem do que ambos. E mesmo assim uma das feministas mais fortes e
mais gentis que eu conheço ainda se esconde por trás de um maiô para
ocultar as cicatrizes das duas cesarianas que fez. E uma das feministas
mais hipócritas que eu conheço (isso, uma dessas que amam o femi-
nismo mas que odeiam as mulheres) fez plástica para remover a mi-
núscula cicatriz que fazia de seu rosto um rosto marcante.
Talvez só consigamos nos sentir à vontade com nós mesmas quando
conseguirmos encarar nossas cicatrizes como marcas de experiência.
Muitas vezes, são marcas de experiências compartilhadas por outras
mulheres, assim passaremos a enxergar nossos corpos como capítu-
los únicos de uma história compartilhada.
Para tanto, precisamos estar juntas sem constrangimentos. Pre-
cisamos da visão constante de realidades diversas para gastar a ima-
gem plástica, perfeita e estereotipada com a qual fomos ensinadas a
nos comparar. A meta impossível do "como devemos ser" age como
um disco quebrado em nossas mentes. Serão necessárias muitas imagens
de uma nova intimidade para deixar-nos surdas aos seus apelos de
uma só vez.
Então, de um começo tardio, eu celebro diversas mulheres.
218 GLORIA STEINEM

• Uma alegre setentona de cabelos grisalhos, curtos e cacheados,


presos para trás com uma fita laranja, vestia uma malha
acetinada verde que envolvia seu abdome avantajado como
uma segunda pele. Com ela, eu aprendo a beleza de um ven-
tre que não é liso. Com ela, eu também aprendo que uma
bisavó pode tocar os pés com mais flexibilidade do que eu e
ainda me deixa sem fôlego numa aula de aeróbica.

• Uma massagista, pequenina e sólida, de mãos fortes, que sonha


em comprar uma mesa para massagens portátil para poder
montar um negócio próprio. "A avó do meu namorado sofre
muito com artrite, mas eu massageio suas mãos todos os dias
para que não doam", ela me explicou. Ela também tem clientes
insones que ela massageia até induzir um sono livre de dro-
gas e clientes com dolorosos nós de tensão que ela relaxa com
pressão direta. Concordamos que, se todo mundo fosse bem
massageado uma vez por dia, haveria menos guerras no mundo.
Com ela, eu aprendo que pode haver uma satisfação de irmã
e não subserviência em servir aos corpos de outras mulheres.

• Duas amigas que não falam coisa alguma além de espanhol.


Sua chegada causa um certo mal-estar entre as mulheres do
vestiário. Com elas logo aprendemos que a linguagem do corpo
e dos gestos é universal.

• Uma mulher com as formas perfeitas de um ovo que se senta


ereta e serenamente, nua, todos os dias, ao sol. Com ela eu
aprendo, sem sombra de dúvida, que a única coisa que torna
a imagem do Buda crível são as curvas dos seios e do ventre
de uma mulher.

• Uma jovem alta, elegante e linda cujas pernas parecem de-


penduradas do tronco, tal qual um espantalho, saltita na aula
de dança. Mulheres mais velhas e mais gordinhas movimen-
tam-se com uma graça muito maior e, Deus é testemunha,
com muito mais ritmo. Com ela eu aprendo que a beleza está
impressa na pele, mas o ritmo está impresso na carne.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 219

• A atendente do vestiário, uma senhora de seus cinqüenta anos


e menos de um metro e meio de altura, corre oito quilôme-
tros todos os dias. Ela explica: "Meu marido corria comigo
mas parou. O vento frio congelava no pulmão dele." Temos
discutido a necessidade desse spa em oferecer algo como judô
ou qualquer outro tipo de aula de autodefesa. Ela concorda.
Por quê? Porque foi atacada no estacionamento por um ho-
mem de um metro e oitenta que carregava um tijolo na mão.
Mesmo assim ela o espantou com táticas de autodefesa que
incluíram um belíssimo golpe na virilha. Com ela, eu apren-
do que uma mulher pequena pode fazer com um homem o
mesmo que uma bala num pote de gelatina.

• Uma seriíssima diretora de atividades físicas tenta convencer


as clientes mais tradicionais de que um corpo em forma vai
além da balança e da fita métrica. Como a gerência do spa ain-
da está convencida de que os homens se internam em busca
de forma e saúde e que as mulheres vão em busca de beleza e
paparicação, ela sente imenso alívio quando eu reclamo do fato
de que os homens fazem testes cardiovasculares e de flexibili-
dade muscular enquanto as mulheres precisam requerê-los e
pagar uma taxa extra. Juntas aprendemos o valor ativista da
pressão interna e externa em qualquer que seja o sistema.

• Uma mãe alta e tranqüila, de cabelos escuros, e sua filha, alta


e tranqüila, de cabelos escuros, que conversam a respeito do
trabalho que ambas realizam como assistentes sociais. Em
grande parte elas parecem ser companheiras em sua necessi-
dade de falar. O corpo de uma mulher deu à luz uma amiga.

• Uma advogada criminal de personalidade forte e pensamen-


to rápido quer saber como utilizar seus conhecimentos legais
para ajudar outras mulheres. Em sua nudez, ela relaxa o bas-
tante para nos brindar com o seguinte epigrama: "A maioria
dos homens quer que a esposa tenha um trabalheco."

• Uma seriíssima consultora de beleza fazendo limpeza de pele


enquanto discursa sobre cirurgia plástica. "Eu já vi todos os
220 GLORIA STEINEM

tipos possíveis de cicatrizes: implantes nos seios, retirada de


papadas, plástica facial, retoques nas pálpebras. Uma mu-
lher que veio para cá fez uma operação de pálpebras tão ruim
que não consegue mais fechar os olhos." Eu espero ouvir al-
gum tipo de ressentimento em relação às mulheres que têm
pouca coisa a fazer além de passar o rosto em revista. Ledo
engano o meu. "Coitadinhas", ela diz, continuando, cheia de
razão. "Eu não queria estar no lugar delas por todo o dinhei-
ro do mundo." Mais silêncio. "Mas eu bem que estou pen-
sando em tirar esta papada que eu tenho."

• Umas mulheres se encontram na sauna, cada uma imersa na


sua própria nuvem de vapor, com seus próprios músculos
doloridos e seus próprios pensamentos. Duas recém-chega-
das são recebidas com atenção pelas veteranas que já chega-
ram há um ou dois dias.
— Comecem no primeiro banco, quanto mais subirem,
mais quente fica.
— Passem gelo na testa.
— Não fiquem mais de cinco minutos no primeiro dia.
Juntas, formamos um pequeno mundo de vapor com ta-
manhos e formatos e cores diferentes: um lugar silencioso no
qual nos importamos com o bem-estar de pessoas que mal
conhecemos. O vapor que nos envolve parece comunicar nossos
pensamentos.
— E tão bom poder vir para cá sozinha ou com um gru-
po de mulheres — diz uma voz, vinda das brumas.
— Sem ter que achar que ficou doida — emenda outra
voz.
— Achei que ia sentir vergonha — diz uma voz jovem.
—Eu nunca fiquei assim, com um bando de mulheres, sabe...
Risadas saem do Buda vaporoso que se encontra num canto.
— Querida — ela diz —, é pegar ou largar.

Quando volto para casa, com o corpo livre de açúcares, livre de ca-
feína e relativamente saudável, pergunto a mulheres mais jovens o
que sentem diante da nudez de outros corpos femininos. Eu parto
do princípio de que esta geração se sentiria mais à vontade com o
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 221

corpo alheio do que a minha, mas as freqüentadoras mais jovens do


spa abalaram as bases dessa minha convicção. De respostas variadas
eu constato que, embora ninguém mais tome banho de calcinha, esta
forma de conscientização não verbal ainda não faz parte das vidas
das mulheres mais jovens.
— Não existe local algum onde possamos estar juntas desta forma
— uma aluna do segundo grau diz, pensativa. — Os esportes não
nos interessam e eu não conheço ninguém que freqüente uma aca-
demia ou uma sauna. Simplesmente não ocorre.
Neste meio tempo duas editoras me lembraram de uma noite
num banho turco em Jerusalém, que acabou se transformando num
dos pontos altos de um tour feminista por Israel, organizado pela revista
Ms. alguns anos atrás. Criou um elo inesperado entre pessoas que
não se conheciam, bem no começo da viagem, uma irmandade ins-
tantânea. Além da constatação da beleza inerente do corpo femini-
no. As poucas mulheres ausentes na ocasião sentiram-se levemente
excluídas da intimidade do grupo pelo resto da viagem.
Ouvi esta mesma história quando o grupo voltou para casa, mas
acho que não ouvi direito. Como tantas experiências pelas quais
passamos, é uma experiência mais fácil de ser absorvida do que de
ser explicada.
Mas hoje eu sei: sei que gordos ou magros, maduros ou não, nossos
corpos não nos deixariam tão desconfortáveis se compreendêssemos
o lugar que ocupam no variado arco-íris de corpos femininos. Até
mesmo as grandes beldades tornam-se menos distantes e as mastecto-
mias menos aterrorizantes quando paramos de imaginá-las e as en-
caramos como na verdade são.
Mudar a artificialidade das imagens criadas pela mídia ajudaria,
mas não é o bastante. Como crianças que olham fotografias de ho-
mens e mulheres realizando trabalhos não-tradicionais — mulheres
empunhando maçaricos, por exemplo, e homens trocando fraldas de
bebês — mas que voltam a inverter estes papéis em sua mentes se-
manas depois, nós só conseguimos reter uma imagem quando a ex-
perimentamos por completo. Um remédio unídimensional não pode
c
ürar um mal tridimensional.
Hoje, como a heroína adolescente de Gypsy, que só toma consciência
do próprio corpo depois que começa a fazer stripteases, um número
enorme de mulheres só tem a experiência do corpo feminino, do nosso
222 GLORIA STEINEM

e do de outras mulheres, em cenários sociais ou entre quatro pare-


des. Isto ocorre apenas quando estamos isoladas do mundo, em
ambientes artificiais, expostas aos olhos masculinos ou ao julgamento
convencional.
Um pouquinho dessa proximidade mostraria à Família de Mu-
lheres o quão bela cada uma de nós é, e como nenhuma de nós é
igual.

1981
A Importância do Trabalho

No final dos anos setenta, o The Wall Street Journal criou uma série
em oito partes, todas matérias de primeira página, dedicada à "mu-
lher trabalhadora". Ou seja, à invasão da mulher no mercado de tra-
balho como sendo a maior mudança no cotidiano dos americanos
desde a Revolução Industrial.
Muitas mulheres receberam a série de reportagens e a definição
com cinismo. Afinal de contas, as mulheres sempre trabalharam. Se
todo o trabalho produtivo que as mulheres realizam no lar, pela
manutenção do bem-estar de outros seres humanos, recebesse o va-
lor monetário que lhe é devido, o Produto Nacional Bruto subiria
em 26%. Mas acontece que as mulheres, especialmente mulheres
brancas, estão mais propensas hoje em dia a deixar o emprego de
dona de casa — um emprego mal remunerado, de pouca segurança
e de alto risco (embora ainda tentemos explicar que é uma atividade
perfeitamente aceitável e que o verdadeiro problema está na recusa
do mundo masculino em realizá-lo e lhe dar um preço) — por ativi-
dades mais seguras, mais independentes e remuneradas fora do lar.
É óbvio que a verdadeira revolução do trabalho não ocorrerá até
que todo o trabalho produtivo seja remunerado — isto inclui a cria-
ção dos filhos e outras atividades exercidas dentro do lar—e os homens
sejam integrados no mundo feminino da mesma forma que as mu-
lheres passem a ser incluídas no mundo masculino. Mas a mudança
radical anunciada pelo Journal, e pela imprensa em geral, faz parte
de um longo processo de integração: a invasão, sem precedentes, de
mulheres de todas as raças a ocupações assalariadas, à força de tra-
balho que fora até então constituída e definida por homens. Já so-
mos quase 4 1 % do mercado de trabalho, a proporção mais alta em
toda a história. Considerando o fato das mulheres serem, também,
69% da "força de trabalho desencorajada" (ou seja, indivíduos de-
224 GLORIA STEINEM

sempregados mas que não fazem mais parte das estatísticas de de-
semprego por já terem desistido de procurar), além de haver uma
taxa de desemprego feminino oficial consideravelmente mais alta do
que a masculina, fica claro que podíamos fazer este número crescer
o suficiente para passarmos a ser metade da força de trabalho até
1990.*
Confrontados com a determinação feminina de nos tornarmos
um pouco independentes e sermos mais bem pagas e respeitadas pelo
trabalho que realizamos, os especialistas se apressaram em pergun-
tar: "Por quê?" É uma pergunta poucas vezes feita aos trabalhadores
do sexo masculino cuja motivação básica, a sobrevivência e a satisfa-
ção pessoal não são jamais questionadas. Na verdade, homens só são
encarados com estranheza e passam a motivar estudos sociológicos e
artigos em jornais apenas quando não trabalham. Isto ocorre mes-
mo quando os homens em questão são ricos e não precisam traba-
lhar ou então quando são pobres e não conseguem trabalho. Mesmo
assim, pesquisadores de opinião pública e sociólogos já fizeram de
tudo para demonstrar que as mulheres trabalham fora por extrema
necessidade financeira, ou, se persistimos apesar da existência de um
homem empregado em nossas vidas, é pelo simples desejo de "com-
prar umas coisinhas a mais" para nossas famílias, ou até mesmo de-
vido à boa e velha inveja do pênis.
Entrevistadores dos departamentos de recursos humanos, e até
mesmo nossas próprias famílias, ainda perguntam às mulheres re-
muneradas o grande "por quê?" Se temos filhos pequenos, ou se rea-
lizamos um trabalho considerado "de homem", esse tipo de pergun-
ta torna-se ainda mais freqüente. São versões condescendentes ou
acusadoras de "O que uma garota tão bacana como você está fazen-
do num lugar como este?" que ainda não desapareceram dos escri-
tórios ou das fábricas.
E como respondemos a estas suposições de que "trabalhamos"

*Esta estimativa acabou sendo ultrapassada. Em 1990, mulheres de todas as raças constituíam
57,5% da força de trabalho. De acordo com as estatísticas do Ministério do Trabalho americano,
este número cresceu um pouco nos anos 90 e a projeção é que chegue a 6 3 % até o ano de 2005-
Não obstante, a mídia vem enfocando uma tendência estatisticamente insignificante de mulheres
que decidiram deixar o mercado de trabalho para criar os filhos — uma escolha que deveria estar
ao alcance dos pais de qualquer criança, especialmente dada a ausência de horários flexíveis e de
creches adequadas —, em vez de falar do lado positivo, do que faz as mulheres permanecerem na
força de trabalho remunerada.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 225

apenas por necessidade, seja ela extrema ou meramente peculiar?


Devemos achar que estamos com a razão quando respondemos que
é tão natural nós termos um trabalho remunerado quanto nossos
maridos, quer tenhamos filhos pequenos em casa ou não? Será que
podemos ter ambição profissional sem nos preocuparmos em nos
tornarmos "pouco femininas"? Quando nos deparamos com o cres-
cente ressentimento dos homens em relação à competição feminina
na força de trabalho (muitas vezes na forma de acusações, cujo in-
tuito é incutir a culpa, tais como "Você está tirando o emprego de
um pai de família" ou "Está fazendo um grande mal aos seus próprios
filhos"), seria melhor dizermos apenas que um emprego decente é
direito de todo ser humano?
Temo que a resposta seja não. Como indivíduos e como movimento,
temos a tendência de nos esconder por trás de alguma versão de uma
defesa taticamente questionável: "Mulhertrabalhaporqueprecisané?"
Esta frase, que já se tornou uma única palavra, uma tecla única na
máquina de escrever, é uma forma econômica de afirmarmos o que a
sociedade considera feminino, ou seja, a passividade e o auto-sacrifício.
Ao sermos atacadas, nossa tendência ainda é nos apresentarmos como
escravas da necessidade econômica e da devoção à família. Assim,
"Mulhertrabalhaporqueprecisané?" tornou-se algo fácil de se dizer.
Como é o caso de muitos truísmos, este é facilmente demonstrável
pelas estatísticas. Necessidade econômica é realmente o motivo mais
consistente que leva uma mulher a trabalhar. Em 1976, por exem-
plo, 43% de todas as mulheres que integravam a força de trabalho
remunerada eram solteiras, viúvas, separadas ou divorciadas e tra-
balhavam para sustentar a si próprias e a seus dependentes. Outros
2 1 % eram de mulheres casadas com homens que haviam ganhado
menos de dez mil dólares no ano anterior, o mínimo, àquela época,
para se sustentar uma família de quatro. Na verdade, se levarmos
em conta as pensões recebidas pelos homens, ações da Bolsa, pro-
priedades e várias outras formas de riqueza acumulada poderíamos
provar, estatisticamente, que existem mais mulheres que necessitam
trabalhar (ou seja, que não possuem riqueza acumulada, ou maridos
que possam sustentá-las com seu trabalho ou riqueza pessoal) do que
homens. Se fôssemos perguntar a algum grupo: "Você tem certeza
de que precisa deste emprego?", é aos homens que devíamos per-
guntar.
226 GLORIA STEINEM

Mas a primeira fraqueza do argumento "trabalha porque preci-


sa" está na sua ambigüidade. Qualquer um que já tenha sentido na
pele o que é precisar viver dos fundos previdenciários do governo ou
de qualquer forma de dependência, capaz de minar a confiança de
qualquer um, sabe que qualquer emprego é melhor do que uma esmola,
mesmo quando esta nos é dada por um parente. E no entanto a von-
tade e a autoconfiança necessárias para se trabalhar podem diminuir
à medida que a dependência e o medo crescem. Talvez isto explique
por que, ao contrário do que sugere o argumento "precisamos tra-
balhar", as esposas de homens que ganham menos de três mil dóla-
res por ano estão menos propensas a trabalhar do que as esposas de
homens que ganham dez mil dólares ou mais por ano.
Além disso, a maior proporção de esposas que trabalha fora en-
contra-se nas famílias com uma renda familiar de 25 a 50 mil dóla-
res por ano. É esta estatística que alguns sociólogos usam para pro-
var que o trabalho da mulher serve basicamente para alçar a família
às classes média e média alta. Assim, os ganhos de uma mulher pre-
vêem a família de "luxos" e de "coisinhas a mais". E uma interessan-
te faca de dois gumes esta. Transforma-nos em seres secundários dentro
de nossas próprias famílias, além de fazer com que nossos empregos
sejam os primeiros a serem sacrificados em tempos difíceis. Somos
até capazes de aceitar esta interpretação, até certo ponto (pelo me-
nos até sermos demitidas para que um homem ocupe nosso lugar),
porque preserva o ego de nossos maridos no papel de principal pro-
vedor da família e ainda nos dá um motivo seguro e "feminino" para
manter nossos empregos.
Mas existem certas recompensas que não confessamos. Segundo
The Two-Career Couple [Um casal, duas carreiras], de Francine e Douglas
Hall: "Mulheres que trabalham por escolha própria, até mesmo em
trabalhos tidos como repetitivos, de colarinho azul, sentem-se mais
satisfeitas com suas próprias vidas do que aquelas que são donas de
casa em tempo integral."
Além da satisfação pessoal existe também a necessidade, por parte
da sociedade, dos talentos de todos os seus membros. Digamos que
empregos fossem preenchidos apenas com base no critério necessi-
dade, tanto para homens quanto para mulheres, e houvesse apenas
um disponível por família. Seria absurdo não termos acesso às habi-
lidades de, por exemplo, uma Eleanor Holmes Norton, a respeitada
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 227

presidente da Equal Employment Opportunity Commission [Co-


missão pelas Oportunidades Iguais de Empregos].* Precisaríamos,
neste caso, questionar a importância da atividade exercida por seu
marido, Edward Norton, também um respeitado advogado? Como
os homens ganham, em média, quase o dobro que as mulheres, a
esposa está sempre mais propensa a abrir mão de seu emprego do
que o marido. O que quer dizer isto, que este país poderia sobrevi-
ver sem os seus milhares de enfermeiras, professoras e secretárias?
Ou que os poucos homens que ganham mais do que as esposas de-
veriam desistir de seus empregos?
Foi este tipo de desperdício de talentos humanos em escala genera-
lizada que traumatizou os milhares de desempregados e subempregados
americanos durante a Depressão. Naquela época, a regra de um
emprego por família parecia pelo menos justificada, embora o con-
ceito servisse para demitir apenas as mulheres, criar dependências
intoleráveis e desperdiçar os talentos femininos dos quais a nação
tanto precisava. A experiência da Depressão, mais a energia e o exemplo
das mulheres que foram finalmente autorizadas a trabalhar quando
a Segunda Guerra Mundial trouxe a diminuição da mão-de-obra
disponível, levou o Congresso a repensar o significado da meta de
empregos para todos no Ato Econômico de 1946. Empregos para
todos era oficialmente definido como "empregos para aqueles que
querem trabalhar, independentemente deste ser, por alguma defi-
nição, necessário. Esta meta aplica-se tanto aos homens quanto às
mulheres". Como passamos por um momento de renovadas dificul-
dades econômicas e retorna o ressentimento em relação às mulheres
que trabalham fora — trazendo de novo a necessidade do trabalho
da mulher —, precisamos desta meta agora mais do que nunca. As
mulheres encontram-se mais uma vez numa situação ambígua: pe-
dem para sermos fortes e em seguida nos castigam por esta mesma
força.
É claro que qualquer coisa menos significativa do que um com-
prometimento do governo e do povo com a definição de emprego
para todos de 1946 colocará a sobrevivência do grupo mais fraco,
não importa quem o represente, em cheque. Quase tão importante
quanto as penalidades financeiras é o sofrimento proveniente de ser

Ela é hoje deputada por Washington D.C. no Congresso americano.


228 GLORIA STEINEM

excluído de um emprego remunerado e reconhecido. Sem ele, per-


demos muito do auto-respeito e a habilidade de provar para nós mesmos
que estamos vivos e que nossa existência faz alguma diferença no
mundo. Esta é uma realidade compartilhada tanto pela anfitriã das
classes abastadas como pelo metalúrgico desempregado.
Mas não vai ser nada fácil abrir mão da defesa passiva do
"mulhertrabalhaporqueprecisané?"
Quando uma mulher que luta com unhas e dentes para susten-
tar os filhos e os netos com pensões da previdência vê a vizinha tra-
balhar como garçonete, embora o marido desta esteja empregado,
ela talvez se ressinta. E a garçonete (é claro que não seria o caso do
marido da mesma) se sentiria culpada. No entanto, a não ser que
nos vejamos obrigados a dar empregos para todos aqueles que que-
rem e podem trabalhar, aquela mulher que vive dos fundos previ-
denciários do governo poderá se sentir penalizada por uma política
que permite apenas um emprego público por família. Ela e a filha
terão de chegar a uma decisão dolorosa e divisiva sobre qual das duas
tentará obter o precioso emprego, e assim a família terá de sobrevi-
ver apenas com um salário.
O emprego, como direito do ser humano, é um princípio que se
aplica tanto aos homens quanto às mulheres. O fenômeno da "mu-
lher trabalhadora" (ou seja, a mulher cujo trabalho é remunerado)
vem sendo considerado responsável por tudo, do aumento do nú-
mero de casos de impotência sexual masculina (que, aliás, segundo
foi descoberto, deve-se às inúmeras drogas indicadas para a hiper-
tensão) ao aumento do preço da carne bovina (que na verdade ocor-
reu devido aos altos custos de energia elétrica e às restrições à im-
portação, não devido à recusa das mulheres em preparar carnes mais
baratas e de preparo mais demorado). A não ser que encaremos o
emprego como parte integrante do direito de todo cidadão à auto-
nomia e à satisfação pessoal, continuaremos a ser vulneráveis a idéias
alheias quanto àquilo que é necessário e ao peso da necessidade de cada
um.
De alguma forma, as mulheres que não precisam trabalhar para
sobreviver, mas que escolhem fazê-lo mesmo assim, estão perto de
garantir que este direito seja estendido a todas as outras. É fácil ata-
car e se ressentir das mulheres cujos maridos possuem uma boa situação
financeira. É mais fácil ainda se ressentir das herdeiras das grandes
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 229

fortunas, embora sejam os herdeiros que se beneficiam e que con-


trolam tais fortunas. (Não existe um Fundo das Irmãs Rockfeller e
não existe nenhuma J. P. Morgan & Filhas. Os genros é que dor-
mem com alguém para chegar ao poder.) Mas impedir que uma mulher,
cujo marido ou pai é rico, ganhe seu próprio sustento e sinta a
autoconfiança que provém de uma atividade profissional própria é
criar nela a necessidade de um poder que ela não obterá e torná-la
mais reticente em dividi-lo. Além do mais é desperdiçar, para sem-
pre, seus talentos únicos.
Talvez as feministas modernas sejam culpadas de uma espécie
de esnobismo às avessas, que fez com que não dessem as mãos às
mulheres e às filhas de homens ricos. E, no entanto, foram mulheres
como estas que recusaram as restrições de classe social e que finan-
ciaram a revolucionária onda do sufrágio.
Para a maioria de nós, no entanto, "mulhertrabalhaporqueprecisané?"
ainda é verdadeiro o bastante para ser um raciocínio tentador.
Mas se usarmos este raciocínio sem lutar pelo direito do ser hu-
mano ao emprego, uma coisa bem mais abrangente, jamais alcan-
çaremos este direito. Seremos sempre vítimas do argumento errô-
neo de que a independência de uma mulher é um luxo ao qual ela
poderá se dar apenas em épocas de estabilidade econômica. Assim,
as alternativas às demissões não serão estudadas e a ameaça do de-
semprego continuará a ser usada para fazer com que quem estiver
empregada aceite salários mais baixos. Assim, jamais conseguiremos
corrigir o verdadeiro custo, tanto para as famílias quanto para a na-
ção, de mulheres dependentes e de um imenso desperdício de ta-
lentos.
O pior de tudo é que talvez jamais consigamos achar que em-
pregos produtivos e dignos devam fazer naturalmente parte de nos-
sas vidas e que são um dos prazeres mais básicos da vida.

— 1979
O Fator Tempo

Planejar acontecimentos com antecedência é uma medida de classe.


Os ricos, e até mesmo a classe média, podem fazer planos para suas
gerações futuras, enquanto os pobres planejam apenas semanas ou
dias.
Lembro-me de ter me deparado com este insight tranqüilo num
livro de sociologia e de sentir por ele uma identificação instantânea.
Sim, claro, nossa noção de tempo é em parte uma função do poder
— ou a falta deste poder. Pareceu-me uma afirmação verdadeira até
mesmo no contexto econômico que o autor tivera em mente. "Os
donos das fábricas as entregam nas mãos dos filhos e dos netos", eu
me lembro de ouvir um garoto dizer com amargura quando eu ain-
da estava no segundo grau. "Neste lado da cidade a gente só planeja
o que vai fazer sábado à noite."
Mas também me parecia verdadeiro em relação à maioria das
mulheres que eu conhecia — incluindo eu mesma —, independen-
temente da classe social à qual pertencem. Embora tivesse deixado
para trás o bairro operário no qual crescera, freqüentado a universi-
dade, me tornado jornalista e membro da classe média, eu ainda não
me sentia capaz de planejar coisa alguma com antecedência. Eu pre-
cisava ser flexível. Em primeiro lugar para poder pegar aquele avião
para realizar um trabalho (mesmo sabendo que os escritores homens
que eu conhecia planejavam livros e outros projetos a longo prazo) e
depois para poder adaptar minha carreira às prioridades de um eventual
marido e de filhos (embora eu tivesse uma vida que muito me satis-
fazia sem um nem outro). Entre os resultados desta insegurança es-
tavam uma impressionante falta de planejamento profissional e pe-
nalidades menores tais como a falta de uma poupança, a falta de um
seguro de vida e o fato de viver num apartamento que não possuía
nem mesmo os móveis mais básicos.
MEMÓRIAS DE TRANSGBESSÕES 231

Por outro lado, eu tinha amigas casadas com homens cujos pla-
nos profissionais a longo prazo eram compatíveis com os delas e mesmo
assim elas viviam a vida, dia após dia, em função das necessidades
dos maridos e dos filhos. Além disso, o único colega homem que
compartilhava ou que compreendia esta sensação de impotência era
um bem-sucedido jornalista e crítico literário negro que admitia, mesmo
depois de vinte anos de carreira, planejar apenas um trabalho de cada
vez, jamais esquecendo a dependência que sentia em relação aos editores
brancos.
Torna-se claro que há mais neste medo do futuro do que a con-
vencional definição de classes sociais consegue explicar. Há também
as castas: as indeléveis marcas de sexo e raça que acarretam toda uma
constelação de imposições culturais contra o poder, até mesmo o poder
limitado de controlar a própria vida.
Ainda não examinamos a noção de tempo e o planejamento do
futuro como função da discriminação, mas já começamos a lutar com
eles, conscientemente ou não. Como um movimento, as mulheres
tornaram-se dolorosamente conscientes de um excesso de reação e
de viver de emergência em emergência, com muito pouca iniciativa
e ação planejada. Por isto, sofremos tantas perdas para uma direita
tão menor porém mais consistente e arraigada.
Embora o hábito cultural de vivermos no presente e de passar-
mos um verniz no futuro sejam enraizados, começamos a desafiar o
castigo cultural sempre à espera das mulheres "insistentes" e "egoís-
tas" (e dos ambiciosos homens das minorias étnicas) que tentam romper
as barreiras para controlar suas próprias vidas.
Mesmo assim, escritoras e teóricas do feminismo tendem a se
esquivar do futuro despejando suas habilidades analíticas na tenta-
tiva de compreender o que há de errado com o presente ou com re-
visões históricas e críticas de influentes pensadores homens do pas-
sado. Os livros grandes, originais e certamente corajosos desta onda
do feminismo contêm mais diagnósticos do que receitas. Precisamos
de planejadoras pragmáticas e de futuristas visionárias, mas alguém
consegue imaginar um plano de cinco anos para o feminismo? Tal-
vez o mais próximo a que consigamos chegar seja à arquitetura visionária
ou à ficção científica feminista, mas estas, em geral, evitam passos
práticos como ir daqui até lá.
É óbvio que muitas de nós precisam expandir a noção de tem-
232 GLORIA STEINEM

po, ter coragem de planejar o futuro até mesmo quando a maioria


ainda luta para manter a cabeça acima do nível da água no presente.
Mas isto não significa uma imitação do hábito culturalmente mas-
culino de planejar o futuro, de viver no futuro e assim viver uma
vida adiada. Isto não implica sacrificarmos nossa espontaneidade e
nossa percepção sensível do presente, produto de anos de uma orien-
tação profissional com pouca base na realidade, de pressões corporativas
para trabalharmos hoje por uma recompensa que chegará após a
aposentadoria, ou, menos lógico ainda, de religiões patriarcais que
cobram obediência hoje em troca de recompensas pós-morte.
Na verdade, a habilidade de viver no presente, de tolerar as in-
certezas e mesmo assim permanecer aberta, espontânea e flexível —
características consideradas culturalmente femininas das quais os
homens precisam, embora seu desenvolvimento lhes seja com fre-
qüência negado. Se os homens passassem mais tempo criando filhos
pequenos, por exemplo, estariam forçados a desenvolver mais paciência
e flexibilidade. Se nós mulheres tivéssemos mais poder para plane-
jar o uso dos recursos naturais e outros processos a longo prazo —
ou até mesmo para planejar nossos próprios trabalhos e vidas
reprodutivas —, teríamos maior sensação de controlar o futuro.
Essa obsessão de reagir ao presente, à moda feminina, ou a ob-
sessão de controlar e viver no futuro, à moda masculina, são grandes
desperdícios de tempo.
E o tempo é tudo o que temos.

— 1980
Homens e Mulheres Conversando

Houve uma época (alguns anos atrás) em que a crença, por parte
dos psicólogos, de que a forma que escolhemos para nos comunicar-
mos uns com os outros era, em grande parte, uma função da perso-
nalidade. Se certos estilos de conversação fossem mais comuns a um
sexo do que a outro (uma maneira de falar mais agressiva e mais abstrata
para os homens, por exemplo, e mais pessoal e ambígua para as
mulheres), isto nada mais era do que um tributo à influência da bio-
logia em nossas personalidades.
Conscientemente ou não, as feministas sempre desafiaram esta
hipótese. Muitas de nós aprenderam uma grande lição nos anos ses-
senta, quando toda uma geração ergueu a voz contra as injustiças da
guerra e contra as injustiças de raça e classe social. No entanto era
menos provável que as mulheres, mesmo usando as mesmas pala-
vras e o mesmo estilo de suas contrapartes masculinas, fossem ouvi-
das ou levadas a sério. Ao tentarmos falar a respeito desta ou de outras
frustrações, multiplicavam-se os ouvidos moucos e a freqüência do
ridículo e de oposição para quem falava. Apenas reuniões exclusivas
às mulheres e confissões mútuas confirmaram o que pensávamos ser
uma experiência pela qual passávamos sozinhas. Foram também estes
primeiros grupos de conscientização feminina que começaram a con-
firmar a existência de uma forma mais cooperativa e menos combativa
de falar, um estilo alternativo que vem fortalecendo muitas mulhe-
res desde então.
O problema é que esta forma culturalmente diferente de falar
continua a ser quase que apenas feminina. É verdade que ajudou
inúmeras mulheres a compreenderem umas às outras e a elaborar
estratégias de ação. Mas como influência sobre a fala considerada
culturalmente masculina permanece tão distante quanto as versões
domésticas do passado.
234 GLORIA STEINEM

Um dos motivos do atraso de mais ou menos uma década para


desafiar as formas existentes de conversar faz grande sentido tático.
Nossa primeira tarefa foi mudar as próprias palavras. Não nos sen-
tíamos incluídas (e estudos de uso da língua mostram que, de fato,
não éramos incluídas) em centenas de termos supostamente generalistas
tais como o homem e ele, a fraternidade entre homens e chefe de Estado.
Tampouco podíamos deixar de perceber os paralelos raciais ao ser-
mos chamadas de "meninas" até mesmo quando já somos idosas, ou
apenas pelo primeiro nome, ou através de nossa ligação pessoal (ou
a falta da mesma) com um membro do grupo dominante.
Por mais difícil que tenha sido (e ainda seja), este ato radical de
tomada do poder para darmos nomes a nós mesmas e às nossas ex-
periências foi mais fácil do que enfrentar a política da conversação.
A documentação de padrões de fala de toda uma sociedade exigiu
pesquisas e levantamentos caros. A documentação do sexismo das
palavras e mesmo a busca de alternativas exigiram apenas uma co-
rajosa estudiosa e um dicionário (o trabalho pioneiro de Alma Graham
para a McGraw-Hill, Guidelines for Equal Treatment ofthe Sexes [Li-
nhas Gerais para o Tratamento Igual dos Sexos]). Este foi um dos
bons motivos econômicos pelos quais estes trabalhos figuram entre
os primeiros a serem escritos por estudiosas feministas.
Em retrospectiva, a segunda causa para o atraso faz menos sen-
tido do ponto de vista feminista: a grande popularidade dos treina-
mentos para a aquisição de uma nova autoconfiança. Embora mui-
tas mulheres precisem ser mais seguras (ou até mesmo mais agressi-
vas, por mais controversa que seja esta palavra), muitos cursos de
autoconfiança ensinavam as mulheres a jogar o jogo existente e não
como mudar regras. Ao contrário do ataque feminista à linguagem
sexista, que exigiu dos homens um novo comportamento, o treinamen-
to da autoconfiança era mais reformista do que revolucionário. Pro-
movia uma mudança unilateral, apenas para as mulheres, confirmando
assim que o estilo de comunicação masculino era o único modelo
adulto e verdadeiramente eficaz. E certo que muitas mulheres, indi-
vidualmente, receberam um auxílio que lhes era necessário, e que
muitos homens passaram pela experiência educativa de encontrar
uma mulher segura pelo caminho. Porém o impacto maior foi o re-
forço do jogo masculino, do falar politicamente através da imitação.
Desde então, no entanto, algumas estudiosas feministas tiveram
JSÍEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 235

o tempo e os recursos necessários para documentar padrões de con-


versação de grupos mistos, e de um só sexo, tanto nos Estados Uni-
dos quanto na Europa. Estudos tradicionais, influenciados pelo fe-
minismo, também começaram a encarar os estilos de conversação
como funções de poder e de meio. Por exemplo, funcionários muitas
vezes se aprofundam em discussões se o assunto foi puxado pelos
seus empregadores, em vez do contrário. Os mais velhos se vêem no
direito de interromper os mais jovens livremente, e os subordinados
são mais bem educados do que seus chefes. Como as mulheres com-
partilham de todos os hábitos de oratória dos menos poderosos, e
até mesmo atravessam os limites de classe social e status que nos dividem,
seria isto um fato acidental?
Mesmo as novas pesquisas, influenciadas pelo feminismo, ainda
têm um longo caminho a ser percorrido no que diz respeito à
neutralização das predisposições masculinas contidas nos estudos
existentes. Por exemplo, falar é visto como um ato importante e positivo
enquanto o ato de escutar não é um tópico de estudos muito explo-
rado.
Não obstante, foi realizado um número satisfatório de estudos
em que diversos estilos de oratória foram documentados e algumas
das deficiências da comunicação masculina foram sublinhadas. Isto
serve para nos dar algumas idéias de como unir estilos de forma a
dar uma gama muito maior de alternativas de comunicação, tanto
para homens quanto para mulheres. Aqui estão alguns mitos, ver-
dades e soluções práticas.

Você já pressupôs que as mulheres falam mais do que os homens? Já pressupôs


que elas dominam conversas por não dominarem coisa alguma em suas vi-
das? Se você já pensou assim, saiba que não está sozinho. Os pesqui-
sadores da diferença de linguagem entre os .sexos começaram seu
trabalho com esta suposição em mente. Assim como muitas femi-
nistas, que explicavam uma suposta verborragia feminina como com-
pensação pelo fato de não podermos agir.
No entanto, quando Dale Spender, feminista e estudiosa aus-
traliana, pesquisou a loquacidade para o seu livro, Man Made Language
[Linguagem criada pelo homem}, ela concluiu que "talvez mais do
que em qualquer outra área de pesquisa, os resultados obtidos con-
tradizem diretamente o estereótipo ao qual estamos acostumados...
236 GLORIA STEINEM

Não há um estudo que prove que as mulheres falam mais do que os


homens e há inúmeros estudos que demonstram que os homens fa-
lam mais do que as mulheres".
Tal conclusão mostrou-se verdadeira nos casos em que se pedia
aos objetos do estudo para conversar com um gravador, sem interação
de grupo; na comparação de homens e mulheres falando na televi-
são; na medição de trechos de conversa em grupos mistos (até mes-
mo entre deputados dos sexos masculino e feminino); em discussões
em grupo quando o assunto era considerado particularmente femi-
nino. Num seminário sobre sexismo e educação, realizado em Lon-
dres, por exemplo, cinco dos homens presentes falaram mais do que
as 32 colegas do sexo feminino juntas.
Alguns estudos do silêncio masculino em casais heterossexuais
parecem contradizer tais resultados. No entanto, o estudo de Spender
conclui que grande parte da fala feminina numa conversa a dois dedica-
se a puxar a participação masculina, a fazer perguntas, a apresentar
uma gama de assuntos até que um seja aceito por ele, ou para de-
monstrar interesse pelos assuntos por ele apresentados. Torna-se claro
que o silêncio masculino (ou o silêncio de um membro de qualquer
grupo dominante) não é necessariamente o mesmo que estar ouvin-
do. Pode ser uma expressão de rejeição em relação ao interlocutor,
uma recusa de se tornar vulnerável através da revelação do seu eu ou
uma demonstração de que esta conversa não lhe interessa. Da mes-
ma forma, o fato de um grupo subordinado falar não evidencia, ne-
cessariamente, poder. Talvez o motivo oculto seja uma tendência
sherazadiana à intriga, uma necessidade de sobrevivência, ou sim-
plesmente uma forma de explicar e justificar as próprias ações.
Além de falar mais, os homens interrompem as mulheres com
mais freqüência do que o contrário. Isto é verdadeiro tanto em gru-
pos quanto a dois. Os homens interrompem falas femininas com menos
conseqüência social do que o contrário. Os homens também tendem
a interromper as mulheres mais do que elas interrompem umas as
outras.
Ademais, os membros do sexo masculino estão mais propensos
a policiar o assunto de uma conversa em grupos mistos. Um estudo
de famílias da classe operária demonstra que as mulheres se aventu-
ram a conversar sobre tópicos "masculinos" tais como política ou
esportes e que os homens podem vir a juntar-se a uma discussão "fe-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 237

minina" sobre acontecimentos domésticos. Porém, em ambos os casos,


foram os homens que ridicularizaram ou repreenderam os não-con-
formistas, aqueles que iam longe demais. Até mesmo durante o tal
seminário sobre sexismo realizado em Londres, por exemplo, as ex-
periências concretas das participantes mulheres foram suprimidas a
favor das conclusões abstratas e gerais preferidas pelos homens. Os
poucos homens presentes estabeleceram o padrão para as mulheres
que ali se encontravam.
Qual a origem do mito da verborragia feminina e da dominação
da conversa? Por que será que esta suposta particularidade feminina
é tão difundida que muitos sociólogos a aceitam como possível jus-
tificativa para a violência de alguns homens em relação às esposas
— como fazem, também, algumas mulheres que já sofreram agres-
sões físicas?
A desconfortável verdade é possivelmente o fato da fala femini-
na ser medida não em relação à quantidade de falas masculinas e
sim em relação ao silêncio esperado de uma mulher.
Na verdade, as mulheres que aceitam e que se propõem a pro-
var a falácia do mito da verborragia feminina talvez paguem o mais
alto dos preços. Ao tentarmos ser a exceção, nós nos calamos. Se isso
é verdade, a comparação de nosso comportamento pessoal com si-
tuações reais e estudos reais deveria nos trazer algum alívio e ser uma
confirmação de sentimentos não expressados.
Não estamos ficando loucas se, por exemplo, ao tomarmos a palavra
num grupo, nos sentirmos tão expostas como solistas na ribaka. Não
estamos enlouquecendo ao sentirmos que há anos de pensamentos
não expressados presos em nossas mentes, que começam a jorrar de
nossas bocas numa confusa torrente quando finalmente nos deixam
falar.
Ao pararmos de buscar a aprovação dos outros, sufocando aqui-
lo que pensamos ou imitando a norma masculina de comunicação
abstrata e segura, muitas vezes descobrimos que é mais fácil dizer
simplesmente aquilo que precisa ser dito, e assim tornarmo-nos dignas
de respeito e de aprovação. A perda da insegurança e do medo nos
leva a nos concentrarmos no conteúdo daquilo que falamos em vez
de nos concentrarmos em nós mesmas.
A bem desenvolvida habilidade feminina de ouvir, talvez a real
fonte da tão comentada "intuição feminina", não deve ser ignorada.
238 GLORIA STEINEM

Devemos preservá-la para nosso próprio uso e ensiná-la aos homens.


Devemos fazê-la presente em nosso trabalho e em nosso dia-a-dia.
Isto só acontecerá quando aceitarmos seu valor. A cultura feminina
tem muito a contribuir à cultura dominante. Além disso, as mulhe-
res talvez se sintam mais à vontade em falar tanto quanto os ho-
mens, em escolher os assuntos a serem conversados e até mesmo em
interromper, vez ou outra, se acharmos que desta forma estaremos
ajudando os homens a prestarem mais atenção e a se tornarem ou-
vintes mais retentivos. Estamos concedendo-lhes a honra de nos
comunicarmos com maior honestidade e estamos tratando-os da forma
que gostaríamos de ser tratadas. Afinal de contas, se uma quantida-
de maior de homens se tornasse ouvintes sensíveis, eles também te-
riam nossa famosa "intuição".

Aqui estão alguns exercícios básicos para se atingir um equilíbrio na fala.


Experimente gravar uma conversa à mesa do jantar ou durante uma
reunião (sob o pretexto de gravar os fatos, para que os participantes
não se policiem em relação à sua política de conversação). Depois,
faça com que o grupo em questão ouça a fita gravada. Peça-lhes para
somarem o número de minutos falados, as interrupções e as apre-
sentações de assuntos por cada um dos sexos. Ou então dê fichas de
pôquer para cada participante da discussão e faça com que cada um
entregue uma ficha todas as vezes que falar. Veja quem fica sem fi-
chas primeiro. Ou então quebre a barreira para aqueles que rara-
mente falam, fazendo uma pergunta que cada participante terá de
responder com dados pessoais, mesmo que se trate de uma simples
apresentação. (Dizem que o Partido dos Trabalhadores inglês só se
materializou depois que os representantes das facções dissidentes
trocaram a mesa de reunião por uma sala maior. Este ato de comu-
nhão dissolveu o isolamento pessoal de cada um, da mesma forma
que uma rodada de conversa ajuda a quebrar o gelo.)
Se estes métodos exigirem mais planejamento do que você pode
fazer, ou se estiver tentando atingir uma pessoa em particular, expe-
rimente algumas ações individuais. Discutir os resultados de uma
pesquisa sobre quem fala mais pode engendrar discussões muito
saudáveis para homens e mulheres. Se um integrante de um dado
grupo raramente fala, tente direcionar algumas de suas observações
para ela (ou ele). Por outro lado, se um homem (ou mulher) é um ás
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 239

das interrupções, tente reclamar sobre isto diretamente, interrom-


pendo-o. Cronometre o número de minutos que essa pessoa passa
falando ou simplesmente prestando pouca atenção ao que dizem os
outros. Se alguém lhe interromper diga, divertida, "Essa foi a pri-
meira" e prometa fazer algum estardalhaço quando as interrupções
somarem três. Mantenha a contagem de assuntos "bem-sucedidos",
some-os por sexo e anuncie o resultado da contagem ao final da dis-
cussão.
Se as perguntas e comentários que se seguem a cada palestra vierem
principalmente de homens, chame atenção para o que está aconte-
cendo. Talvez seja um momento de aprendizado para todos os pre-
sentes. A prevalência de interlocutores do sexo masculino em pla-
téias mistas já fez com que algumas oradoras feministas reservassem
tempo igual para as perguntas feitas por mulheres.
Para demonstrar a importância de ouvir, tente perguntar o con-
teúdo de uma palestra dada por oradores homens e oradores mulhe-
res. Esperemos que você não descubra o que há de mais comum:
que os homens se lembram do que os oradores homens dizem com
mais facilidade do que o que dizem oradoras mulheres. E que as
mulheres também se lembram do que disseram os oradores homens
com maior facilidade. E ainda que as mulheres ouvem e guardam as
palavras de ambos os sexos com maior facilidade do que os homens.
Verifique a política de suas próprias ações. O seu nível de ansie-
dade (e seus instintos de anfitriã) a faz tremer nas bases quando as
mulheres falam e os homens ouvem, embora o contrário não ocor-
ra? Os homens parecem falar daquilo que sabem durante horas en-
quanto as mulheres os ouvem atentamente. Mas as mulheres pare-
cem falar por pouco tempo na presença de um homem antes de se
sentirem ansiosas, antes de começarem a se desculpar e a encorajar
os homens a falar. Se você começar a se sentir desconfortável, sem
motivo, por ter de fazer um homem prestar atenção no que está di-
zendo, tente o seguinte exercício: continue a falar e apoie suas irmãs
que fazem o mesmo. Brinde os homens com o mesmo tratamento
que eles dedicam às mulheres. Estará dando a eles uma oportunida-
de de aprendizado.

Temos aqui algumas crenças populares: (1) As mulheres falam de si mesmas,


personalizam os tópicos de conversa efofocam mais do que os homens. (2) Os
240 GLORIA STEINEM

homens preferem falar a grupos compostos exclusivamente de homens do que a


grupos mistos e as mulheres preferem grupos mistos a grupos compostos apenas
por mulheres. (3) lnterlocutoras e assuntos pertinentes às mulheres são preju-
dicados pelo estilo "feminino" de apresentação. Como você já deve ter
adivinhado, a maioria das provas existentes demonstra o oposto das
três crenças citadas.
Após gravar os temas de conversação de grupos compostos de
um só sexo e de grupos mistos, por exemplo, a psicóloga social Elizabeth
Aries descobriu que os homens, em grupos exclusivamente mascu-
linos, estão mais propensos a falarem de si próprios do que as mu-
lheres em grupos exclusivamente femininos. Homens tendem a
mencionar suas próprias histórias como forma de demonstrar supe-
rioridade ou agressividade enquanto as mulheres as usam para de-
monstrar uma reação emocional ao que os outros dizem.
Phil Donahue, um dos mais experientes entrevistadores do país,
resume as diferenças culturais entre homens e mulheres da seguinte
forma: "Se você se encontra numa situação social e um grupo de
mulheres está conversando e uma delas diz 'Eu fui atropelada hoje',
todas as outras vão dizer, 'Você está brincando! O que foi que acon-
teceu? Onde foi que aconteceu? Você está bem?' Na mesma situa-
ção, entre homens, se um deles dissesse: 'Fui atropelado hoje' eu garanto
que haverá um outro homem no grupo que dirá Ah é? Espera só até
eu contar o que aconteceu comigo."
Se a quantidade de coisas ditas a respeito de si próprio é a medi-
da da "personalização" da conversa, e se a autopromoção através da
invocação das fraquezas de outros for uma característica de fofoca,
então os homens são bem mais "fofoqueiros" do que as mulheres.
Especialmente se incluirmos aqui a vangloria sexual.
Além do mais, os assuntos apresentados por homens em grupos
mistos têm muito mais chance de "pegar" do que os assuntos apre-
sentados por mulheres. Conforme concluiu Aries, as mulheres, em
grupos mistos, tendem a interagir mais com homens do que com
outras mulheres. Portanto, não seria pouco razoável concluir que grupos
mistos passam mais tempo discutindo as vidas e os interesses dos
homens do grupo do que os das mulheres presentes.
Por outro lado, a pesquisa de Aries, e de outros, demonstra que
as mulheres tendem a discutir as relações humanas. Como "relações"
e "relacionamentos" costumam ser considerados "fofoca", do ponto
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 241

de vista masculino, este talvez seja o motivo dos homens dizerem


que as mulheres "personalizam" tudo. Os oradores de seminários
comentam com freqüência que as mulheres de uma platéia costu-
mam fazer perguntas práticas a respeito de suas próprias vidas en-
quanto os homens fazem perguntas abstratas. Quando o assunto é
feminismo, por exemplo, as mulheres perguntam especificamente
como colocar em prática as idéias ali discutidas. Os homens são mais
capazes de dizer algo como "Mas qual será o impacto do feminismo
na família americana?"
Para citar Donahue, que lida com platéias femininas, em sua
maioria: "Eu sempre me senti um pouco ansioso com a possibilida-
de de fazer um programa à noite com um auditório masculino. O
problema, na minha opinião — e isto é uma generalização — é que
os homens tendem a fazer discursos enquanto as mulheres fazem uma
pergunta, ouvem a resposta e fazem uma contribuição à conversa.
Em inúmeras situações, eu já tive homens nas platéias que se levan-
taram e afirmaram: 'Não sei por que vocês estão discutindo isso. A
resposta é a seguinte...', dizem, dando início a um minidiscurso."
Aries também documentou um estilo de conversação e de lide-
rança mais cooperativo e mais rotativo em grupos formados exclusi-
vamente por mulheres: o hábito, consciente ou não, de falarem uma
de cada vez. Assim, as mulheres preferem conversar em grupos de
mulheres devido à vantagem concreta de poderem falar e de pode-
rem ser ouvidas. Por outro lado, Aries confirmou as pesquisas que
demonstram que grupos formados por homens possuem hierarquias
mais estáveis, com um ou mais interlocutores dominando a conver-
sa grande parte do tempo.
Aries demonstra que, não por acaso, os homens preferem a va-
riação e a oportunidade para falar a um grupo misto. Assim, combi-
nam a seriedade de uma presença masculina com um maior número
de estilos. E ainda, conforme acrescenta Spender, causticamente, têm
a garantia de pelo menos alguns espectadores não competitivos.
A brandura, a escolha "feminina" dos adjetivos e uma maior atenção
à gramática e à cortesia provocam pesadas críticas à elocução femi-
nina. O lingüista Robin Lakoff foi pioneiro em demonstrar a fala
feminina" como uma faca de dois gumes, exigida das meninas e o
principal motivo de, ao chegarem à idade adulta, não serem levadas
tão a sério quanto os homens e não conseguirem ser firmes. (Mas o
242 GLORIA STEINEM

próprio Lakoff parece partir do princípio de que a fala feminina deve


ser criticada por ser deficiente, enquanto a linguagem masculina é a
norma, escapando assim de qualquer comentário equivalente.) O
sociólogo Arlie Hochshild cita também algumas técnicas de sobre-
vivência usadas pelas minorias étnicas que as mulheres de todas as
raças parecem também usar: fingir-se de desentendida, dissimular,
por exemplo, ou expressar a aprovação por outros freqüentemente.
Mas seja esta crítica ao que é considerado culturalmente o mo-
delo feminino de elocução justificada ou não, evidências demonstram
que a rejeição do modo de falar de uma mulher é, muitas vezes, uma
maneira de culpá-la ou de dispensá-la sem precisar lidar com o con-
teúdo daquilo que diz.
Por exemplo, interlocutoras mulheres estão mais propensas a ouvir
frases como "Esta é uma colocação muito interessante, mas você não
está conseguindo fazê-la de forma eficaz", ou "O seu estilo é agres-
sivo/débil/gritado/sussurrado demais". E com críticas do gênero que
políticos homens muitas vezes dispensam comentários sérios feitos
pelas suas colegas ou que muitos maridos ignoram os argumentos
de suas esposas.
São críticas do gênero que fazem com que candidatas mulheres
sejam rejeitadas sem que lidem com a substância das questões por
elas levantadas. Quando Bella Abzug, do estado de Nova York, e
Gloria Schaeffer, de Connecticut, se candidataram ao Senado dos
Estados Unidos no mesmo ano, foi dito que ambas possuíam um
estilo pessoal que comprometia sua eficácia como interlocutoras. Abzug
era "abrasiva e agressiva demais" e Schaeffer "feminina e quietinha
demais". Estilo tornou-se o "x" da questão junto à mídia e este "x"
foi parar nas pesquisas de opinião. Ambas foram derrotadas.
Há outras três anomalias que desmascaram estas críticas "supos-
tamente" construtivas. Em primeiro lugar, elas raramente são ex-
pressadas quando a mensagem da mulher não desafia o poder mas-
culino. (Com que freqüência a fúria de uma mulher é criticada quando
usada em defesa da família? Com que freqüência mulheres da direi-
ta são criticadas por serem agressivas demais em sua oposição ao aborto?)
Em segundo lugar, é muito raro que uma crítica seja acompanhada
por um apoio verdadeiro, até mesmo quando o crítico (ou crítica) se
diz solidário. (Muitas candidatas a cargos políticos dizem que são
criticadas quanto às suas técnicas de captação de recursos em vez de
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 243

pelo dinheiro em si, até mesmo por aqueles que concordam com suas
visões políticas.) E, finalmente, quase todo mundo, independente-
mente do status social, se vê no direito de criticar. (Professoras uni-
versitárias contam que têm seu estilo pedagógico criticado por jo-
vens alunos assim como chefes mulheres recebem críticas de seus
subordinados).
Da mesma forma que os homens de um grupo consideram um
tópico de conversa mais interessante se este não for apresentado por
uma mulher (mesmo se o mesmo assunto for ^apresentado por um
homem), ou uma questão política "mais importante" do que qual-
quer uma de interesse feminino, há também um estilo melhor e mais
eficiente do que aquele usado por uma mulher.
Os homens nos apoiariam, sim, se nós soubéssemos pedir este
apoio. É uma forma sutil e eficiente de não só culpar a vítima como
também fazer com que a vítima se culpe.

0 que podemos fazer para eliminar estes estereótipos? Fazer a ata de uma
reunião ou anotar a proporção de fofocas e auto-referências mascu-
linas/femininas durante uma semana seria educativo. Fazer com que
os homens passem um dia sem usar palavra alguma terminada em
"ção" e outras generalidades talvez os encoraje a dizer o que pensam
sem se esconderem por trás de generalizações. Deixar de usar frases
tais como "Bem, é só a minha opinião..." e outras autodesvalorizações
do gênero, para encorajar outras mulheres a confiarem em suas con-
vicções pessoais.
Como exercício pessoal, tente combater abstrações escorregadias
com exemplos tangíveis. Quando David Susskind e Germaine Greer
foram convidados para a mesma apresentação histórica num programa
de televisão, por exemplo, Susskind usou afirmações gerais e pseu-
docientíficas a respeito das mudanças emocionais sofridas mensal-
mente pelas mulheres como uma forma de se esquivar das injustiças
citadas por esta mulher de assombrosa inteligência. Finalmente, Greer
virou-se para ele educadamente e disse: "Então me diga uma coisa,
David. Você sabe me dizer se eu estou menstruada ou não?" Ela não
só eliminou qualquer dúvida que porventura houvesse surgido de-
vido às afirmações de Susskind, como também manteve o espírito
belicoso do outro sob controle pelo resto do programa.
Os próprios homens estão se esforçando para romper com as
244 GLORIA STEINEM

generalizações e a competitividade que uma cultura patriarcal lhes


impõe. Algumas reuniões de grupos de conscientização masculina
promovem a comunicação de forma mais aberta e mais pessoal. Numa
força de trabalho diversificada, outros simplesmente começam a se
acostumar com estilos mais variados.
Muitas mulheres tentam romper as barreiras que nós mesmas
mantemos erigidas. Por exemplo, o fato das mulheres preferirem falar
entre si tem muito a ver com a economia gerada pela exposição de
experiências análogas. Além do mais, os grupos menos poderosos
sempre conhecem os grupos mais poderosos melhor do que vice-versa
— os negros aprenderam a conhecer os brancos para sobreviverem
e as mulheres aprenderam a conhecer os homens. Somente o grupo
dominante pode se dar ao luxo de encarar os menos poderosos como
um mistério. Na verdade, a idéia de "diferença" e do Misterioso Outro
são justificativas necessárias para o desequilíbrio e para a falta de empatia
que lhes é necessária.
Um dos resultados é que, mesmo quando o grupo que detém o
poder se dispõe a escutar, o outro se desespera em ter que falar: é
difícil demais de explicar. O reconhecimento deste conhecimento
desigual encoraja uma mulher a falar de si mesma para os homens,
pelo menos de forma a igualar o tempo que os homens passam fa-
lando de si próprios. Afinal, eles não podem ler nossos pensamen-
tos.
Em questões de estilo, a inversão dos papéis pode ser esclarecedora.
Peça, por exemplo, a um homem que critica as mulheres "agressi-
vas" para tentar discutir uma questão política séria "como uma dama".
Uma candidata mulher poderia, também, pedir aos seus críticos para
escreverem um discurso no estilo que, segundo eles, ela deveria usar.
Dar o troco na mesma moeda estabelece a empatia. Há uma certa
satisfação em se dizer, bem no meio de um inflamado discurso mas-
culino: "Eu suponho que você esteja querendo dizer alguma coisa
com isso tudo mas você não está se expressando muito bem. Se você
desse mais exemplos pessoais. Se você mudasse um pouco a lingua-
gem, o timing e, talvez, até mesmo o terno..."
Finalmente, se toda a conversa do mundo falhar, tente a mesma
mensagem por escrito. O intuito é fazer com que a mensagem che-
gue ao ouvinte, mesmo se este não conseguir separá-la do emissor.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 245

As vozes finas das mulheres e as mais graves dos homens são produto dafi-
siologia. Como vozes graves são mais agradáveis e autoritárias, oradoras mu
sempre enfrentarão problemas. Além do mais, as expressões faciais e os gesto
das mulheres simplesmente não são tão fortes... e assim por diante. É verda-
de que o tom de voz é, em parte, criado pela constituição da gargan-
ta e pela ressonância dos ossos. Embora haja uma enorme gradação
masculina e feminina de tons de voz, assim como de altura, força e
outros atributos físicos, nós partimos do princípio de que os homens
possuem um tom de voz mais grave do que o das mulheres.
Na verdade, ninguém sabe exatamente até que ponto a voz com
a qual falamos é imitativa e culturalmente produzida. Estudos rea-
lizados com meninos, antes da puberdade, demonstram que seu tom
de voz pode mudar, antes mesmo de ocorrerem as mudanças fisioló-
gicas responsáveis por tal mudança. Eles estão, na verdade, imitan-
do os homens à sua volta. Dale Spender cita um estudo de homens
que não eram mudos mas que nasceram surdos e eram, portanto,
incapazes de imitar sons. Alguns deles jamais passaram pela mu-
dança de voz dos adolescentes.
Qualquer que seja a mistura de fatores culturais e fisiológicos,
no entanto, o mais importante é que a aceitação do tom de voz é
definitivamente cultural. Assim sendo, está sujeita a mudança.
No Japão, por exemplo, a voz tradicionalmente aguda e sussur-
rante das mulheres é considerada um atributo sexual da maior im-
portância. (Durante uma pesquisa de opinião pública, a maioria dos
homens japoneses respondeu que considerava "a voz" o atributo se-
xual mais importante.) Embora sejam treinadas para falar com tons
mais agudos, as mulheres japonesas, assim como suas irmãs em grande
parte do mundo, falam em tons mais graves na ausência de homens.
São até capazes de modificar a linguagem que usam. Por exemplo,
as fitas de um grupo de colegiais japonesas, gravadas por um jorna-
lista, foram motivo de escândalo no país: elas usavam verbos e ter-
minações de palavras masculinos num país onde a língua é formal-
mente dividida em masculino e feminino. Sendo assim, é possível
que os homens japoneses achem as vozes agudas atraentes não pelo
que são em si e sim pela promessa da tradicional subserviência que
elas contêm.
Algumas mulheres americanas também cultivam vozes agudas,
mfantis ou sussurrantes à Ia Marilyn Monroe. Muitas vezes, sabe-
246 GLORIA STEINEM

mos que uma mulher está ao telefone com um homem porque sua
voz fica mais fina — assim como a dele se torna mais grave.
Um estilo vocal infantil ou "feminino" torna-se uma desvanta-
gem, no entanto, quando uma mulher tenta assumir um papel adulto,
ou um papel de poder. A televisão manteve as mulheres longe de
seus noticiários durante muito tempo alegando que suas vozes eram
agudas demais, irritantes demais e sem autoridade alguma para dar
credibilidade às notícias a serem dadas. Até hoje, as vozes femininas
são consideradas mais apropriadas para as notícias de interesse hu-
mano, para as notícias "leves", enquanto os homens ainda anunciam
as notícias "sérias". Nos primórdios da televisão, as mulheres podiam
apresentar o boletim meteorológico, desde que de forma bastante
sexy. Quando a meteorologia em si e os mapas meteorológicos en-
traram em voga, no entanto, a maioria dos canais trocou as mulhe-
res por homens. Oitenta e cinco por cento das vozes usadas em anúncios
televisivos é de homens. Até mesmo quando o produto anunciado é
destinado às mulheres. Mesmo se tratando de ceras e detergentes, a
voz da perícia e da autoridade é provavelmente masculina.
A longo prazo, os homens podem sofrer mais com as restrições
culturais em relação ao tom de voz do que as mulheres. O estudo da
lingüista Ruth Brend sobre modelos de entonação de homens e
mulheres nos Estados Unidos revelou que as mulheres usam quatro
tons diferentes na oratória normal. Os homens usam apenas três.
Esta diferença não é resultante de uma fisiologia diferenciada, pois
os homens possuem à sua disposição quatro tons. O que acontece é
que eles raramente usam o mais agudo de todos. Assim, as mulhe-
res podem falar com os tons mais agudos que possuem e com os mais
graves com algum grau de aceitação pública mas os homens usam
apenas os mais graves. É aceitável bajular a classe dominante atra-
vés da imitação de seu modo de falar, assim como é aceitável que as
mulheres vistam calças compridas e que os negros falem e se vistam
como os brancos do establishment. Mas é menos aceitável que homens
vistam roupas femininas, que brancos adotem o linguajar dos ne-
gros e um estilo "de rua" ou que os homens imitem ou pareçam as
mulheres. (Exceções da classe alta, tais como as apresentações de tra-
vestis promovidas pelo Hasty Pudding Club da Universidade de
Harvard ou pelos ricos homens do Bohemian Grove da Califórnia,
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 247

parecem indicar que até mesmo para ridicularizar o sexo feminino é


necessária uma certa segurança financeira. Tais coisas são bem menos
passíveis de acontecer em boliches e bares da classe trabalhadora.)
Ao pagarem o preço da masculinidade, os homens, como gru-
po, estão perdendo a variedade de seu linguajar, assim como a habi-
lidade de expressar uma ampla gama de emoções. Sem contar o fato
de uma maior proporção de sons monocárdios usados pelo sexo
masculino ser penosa para o ouvido público.
Da mesma forma, a expressividade física pode ser encarada como
"feminina". As mulheres podem ser vivazes. A nós é permitida uma
variedade bem maior de expressões faciais e de gestos. Os homens
precisam ser como pedras. Muitos homens emotivos e expressivos
sentem-se certamente aprisionados por uma crença como esta.
O lado negativo disso tudo é que esta maior gama de expressões
femininas é usada para ridicularizar as mulheres e tachá-las de emo-
cionalmente instáveis. Esta triste observação foi feita por Nancy Henley
em Body Politics: Power, Sex and Nonverbal Communication [A política
do corpo: poder, sexo e a comunicação não-verbal]. "A expressividade
facial feminina", ela explica, "foi dada uma gama de possibilidades
muito maior do que à dos homens, incluindo no estereótipo dos se-
xos não só as expressões agradáveis, como também as negativas, como
o choro." Os homens são encorajados a evitar o choro e outras ex-
pressões de sua emoção, na infância. As mulheres, que mantêm a
habilidade humana de chorar, são constantemente comparadas às
crianças.
Não obstante, esta maior expressividade feminina nos permite
reconhecer expressões físicas quando as vemos. Henley cita um es-
tudo que demonstra que mulheres de todas as raças e homens ne-
gros identificam indícios emocionais não-verbais com mais facilida-
de do que os homens brancos. As mulheres não são tão prisioneiras
da máscara petrificada necessária para manter o controle e têm mais
necessidade, como forma de sobrevivência, de prestar atenção.
Resumindo, as mulheres precisam afirmar e expandir sua expres-
sividade mas os homens estão abrindo mão de uma das melhores
maneiras de captar e de enviar sinais para o resto do mundo.

Não podemos trocar nossas cordas vocais (nem as nossas nem as deles), mas
podemos nos certificar de que as mesmas estão sendo bem usadas. Tente gra-
248 GLORIA STBINEM

var mulheres conversando entre si e depois grave estas mesmas mulheres


conversando com homens. E uma excelente maneira de descobrir se
estamos emitindo dicas tonais no estilo "gueixa". Algumas mulhe-
res negligenciam seus tons de voz mais graves. Outras, especialmente
quando tentam ser levadas a sério, compensam um suposto excesso
de emoção restringindo-se a sons monocárdios "razoáveis". Os ho-
mens também mudam sob pressão de uma prova gravada: vê-se o
contraste, por exemplo, de seu enfado quando conversam entre si e
sua expressividade quando conversam com crianças. Muitos atores,
homens e mulheres, são testemunhos vivos do quanto e com que
rapidez — com esforço, exercício e liberdade — um tom de voz pode
mudar.
O mais importante de tudo é lembrar-se de que não há nada de
errado com as vozes femininas. Não há assunto ou emoção que elas
não consigam expressar. Isto é da maior importância para mulhe-
res-símbolos. As primeiras mulheres a entrarem nas faculdades de
direito e de administração, nas salas de diretorias ou nas linhas de
montagem, contam que o som de suas próprias vozes é sempre um
choque — o que é na verdade uma enorme barreira para responder-
mos às perguntas em sala de aula, para defender esta ou aquela po-
lítica ou participar de discussões nos sindicatos. Pode levar algum
tempo para que as palavras ditas numa voz feminina sejam levadas
a sério, mas o fato das cabeças se voltarem para ver de onde vem
aquele som tão incomum é também um tributo à dona, vista como
uma corajosa pioneira.
A invenção das câmeras de vídeo é uma grande descoberta para
a compreensão e para a transformação de nossas expressões não-ver-
bais. Assistir às provas incontrovertíveis de como nos comunicamos
com os outros pode ser mais útil do que anos de análise. Muitos homens
e meninos se beneficiariam enormemente de exercícios de expres-
sividade tais como mímica ou a comunicação com crianças. Mulhe-
res e meninas podem libertar seus movimentos através dos esportes,
podem fazer um esforço consciente para ocupar mais espaço, senta-
das ou de pé, e para usar a linguagem corporal que usamos apenas
quando nos sentimos à vontade, na companhia de outras mulheres.
Muitas de nós tirariam grande proveito de assistir às apresentações
de transformistas e, assim, aprender as muitas maneiras com que
nós mesmas fomos treinadas para ser transformistas.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 249

A questão não é se o estilo cultural de um dos sexos é ou não supe-


rior ao outro. O atual estilo "feminino" pode ser mais indicado para,
digamos, as artes cênicas, para os diagnósticos médicos e para a re-
solução de conflitos. Este estilo aperfeiçoou a expressividade emocional,
a atenção com o ato de ouvir e uma forma especial de deixar o ad-
versário com sua dignidade intacta. O atual estilo "masculino" é mais
indicado para, digamos, a instrução de procedimentos em geral, para
equipes cirúrgicas e para outras situações que exigem um comando
hierárquico, sem contar para entrevistas de emprego. Este estilo
aperfeiçoou o pensamento linear e abstrato, os comandos que exi-
gem rapidez e disposição para falar de si mesmo ou de apresentar
opiniões com segurança. Mas nós jamais atingiremos a gama com-
pleta de expressões humanas se as mulheres imitarem o "estilo" do
homem adulto. Precisamos ensinar tanto quanto aprender.
Um ataque feminista à política de falar e ouvir é um ato radical.
É uma forma de transformar a barca cultural na qual a comunicação
instantânea e a mudança antropológica a longo prazo ocorrem. Ao
contrário da palavra escrita, ou das imagens visuais, ou qualquer forma
de comunicação que se divorcie de nossa presença, falar e ouvir não
permite que nos escondamos. Não há página neutra, imagem, som
ou mesmo substantivos sem gênero para nos proteger. Exigimos sermos
aceitas e compreendidas por todos os sentidos e para todo o nosso
ser.
E é precisamente isto que torna a mudança tão difícil. E tão
importante.

— 1981
A Política da Alimentação

Para grande parte da metade feminina do mundo, a comida é o pri-


meiro sinal de nossa inferioridade. E através dela que percebemos
que nossas próprias famílias consideram o corpo feminino menos
merecedor, menos necessitado e menos valioso.
Em muitos países pobres, as mães amamentam os filhos duran-
te dois anos ou mais, especialmente diante da escassez ou da incer-
teza de um outro tipo de alimento. Enquanto isto, as filhas são ama-
mentadas metade do tempo ou até menos.
0 que ocorre na mente de uma menina a quem é negado o corpo da pró-
pria mãe ou na mente do irmão com quem o mesmo não ocorre?
Na índia, ou em outros países onde os pobres são levados a deci-
sões muitas vezes dolorosas, o infanticídio feminino ocorre, muitas vezes,
por meio da negação de uma alimentação quase inexistente e do tra-
tamento médico. Esta prática é tão comum que a proporção de oito
mulheres para cada cem homens é normal em algumas partes do país.
Segundo os economistas, a escassez aumenta o valor de um arti-
go. Esta regra, no entanto, não parece se aplicar quando o artigo em
questão é a mulher.
E esperado das mães que têm meninas, por mais debilitado que
seja o seu estado de saúde, que tenham filhos e mais filhos até gera-
rem um macho. As famílias dos noivos continuam a exigir da famí-
lia da noiva um dote. Se alguém parece pagar o preço da escassez é
a própria mulher. As noivas podem ser seqüestradas de bairros vizi-
nhos. O peso de ter filhos pode ser aumentado pelo fato dos irmãos
do marido não terem esposas.
A crença cultural de que uma mulher vale menos do que um ho-
mem é tão enraizada que muitas mulheres a aceitam e a perpetuam.
"A distribuição de comida dentro de uma família surge de uma
autoprivação deliberada por parte das mulheres", foi a conclusão de
um estudo sobre nutrição realizado na índia em 1974. Isto se dá "por-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 251

que elas acreditam que os membros produtivos da família (e os inte-


grantes do sexo masculino que são geradores de riqueza em potencial)
valem mais do que aqueles que realizam as tarefas do lar ou que po-
dem gerar filhos. Ambas são consideradas atividades sem valor eco-
nômico".
Mas o que acontece com o ânimo das mulheres que não só se privam como
também policiam a privação de suas filhas? Até mesmo num país mais
rico e mais bem-afottunado, como os Estados Unidos, nós talvez sai-
bamos mais do que queiramos admitir. Escravas negras e servas bran-
cas eram anunciadas como reprodutoras ou trabalhadoras e também
como trunfos por comerem menos do que os homens e por custarem
menos do que os homens. Em outros tempos, as fazendeiras das regiões
limítrofes, entre civilização e colonização, nos Estados Unidos, serviam
os homens e os meninos em primeira mão e com maior abundância.
No entanto, o resultado do trabalho braçal que realizavam e do nú-
mero de filhos que tinham era que a maioria das famílias tinha duas
mães. Muitos homens casavam-se duas vezes para substituir a primei-
ra esposa, morta em decorrência de um parto, de doenças ou de exces-
so de trabalho. Em nossas próprias lembranças estão as esposas e as
filhas dos imigrantes que serviam seus pais e irmãos em primeira mão
para em seguida comer os restos por eles deixados. Até mesmo hoje,
muitas donas de casa guardam o melhor pedaço de carne para "o ho-
mem da casa" ou para "os garotos em idade de crescimento" com muito
mais freqüência do que para as filhas em idade de crescimento ou para
si próprias. Milhões de mulheres que vivem dos fundos previdenciários
sobrevivem com uma dieta pobre, basicamente de amidos, que pode
causar danos permanentes a seus corpos e aos filhos que trazem na
barriga. Mas mesmo assim, a gordura que exibem é interpretada como
sinal de indulgência. Mesmo mulheres abastadas aceitam a idéia de
que os homens precisam de mais proteína e de mais força. Elas engor-
dam comendo açúcar ou enfraquecem fazendo dieta enquanto prepa-
ram maravilhosos pratos para o resto da família. Uma mulher que viva
sozinha se predispõe mais a preparar pratos diferentes para um convi-
dado homem do que para uma convidada mulher? E para ela mesma?
Talvez a comida seja o primeiro sinal de respeito — ou da falta do mesmo —
com o qual encaramos nosso corpo e o dos outros.
É claro que as mulheres sempre se rebelaram. Deduzimos isto
porque conhecemos a nós mesmas. Podemos deduzir isto também
252 GLORIA STEINEM

através dos elaborados sistemas usados para punir as mulheres que


se rebelam.
Em muitas regiões da África e da Ásia, sérios tabus reservam as
maiores fontes de energia e de nutrição para os membros do sexo
masculino. Carne vermelha, peixe, aves, ovos, leite e até mesmo algu-
mas frutas e legumes são proibidos para as mulheres em algumas par-
tes do mundo. A explicação para estes tabus é um eufemismo (que a
carne vermelha deixará as mulheres "parecidas demais com os homens"),
ou então jogam com os maiores medos de uma mulher (que tomar
leite destruirá o valor de uma mulher por torná-la estéril), mas estas
restrições culturais são muito enraizadas. Algumas estudantes da África
mantêm estas restrições mesmo depois de muitos anos vivendo na Europa
ou nos Estados Unidos. Outras dizem ter sentido ansiedade e náusea
quando se forçaram a comer um ovo ou uma laranja pela primeira vez.
Com ou sem tabus, o próprio alimento pode ser usado como cas-
tigo e como recompensa. Em muitas culturas, os maridos e os pais
racionam a comida, guardada numa dispensa que apenas eles podem
abrir. As esposas precisam responder não só pelo que comem, mas tam-
bém pelo que as crianças e os criados comem. Até mesmo em socieda-
des mais abastadas, as esposas são treinadas ou recompensadas com o
convite para "comer fora" ou então recebem um orçamento muito restrito
para a alimentação da família e precisam responder por tudo o que for
gasto dentro de casa. Em tempos de inflação, espera-se que as mulhe-
res estiquem um dinheiro cada vez mais escasso com uma engenhosidade
jamais vista. Quando o preço dos alimentos subiu vertiginosamente
nos anos setenta, um estudo de famílias da Grã-Bretanha demons-
trou que 75 % dos maridos não aumentaram a soma destinada às compras
para a casa. Não é de se estranhar que a comida tenha se tornado o
fator de identificação número um para as mulheres.
Algumas culturas vão além de controles externos. Em algumas
sociedades tribais da Etiópia, o ingresso de uma menina na idade
madura e na idade matrimonial é marcado pela extração de diversos
dentes cruciais, um ritual realizado em nome da beleza mas que di-
ficulta, permanentemente, o consumo dos disputadíssimos cortes de
carne. Um sorriso banguela é considerado feminino, assim como as
pesadas tornozeleiras que as mulheres usam a partir da puberdade.
(Pense também nos pezinhos amarrados das chinesas das classes al-
tas.) Nestas mesmas tribos, os enfeites masculinos se resumem a
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 253

pinturas corporais ou a cabeleiras ornadas com barro e tranças —


nada que restrinja os movimentos, a alimentação ou a liberdade.
Privar as mulheres de uma nutrição igual aumenta a oferta de
alimento para os homens e diminui a energia de rebelião das mu-
lheres e das filhas. Mas como ocorre em qualquer tipo de opressão,
a longo prazo, torna-se uma tática perigosa. Para todos.
Mulheres mal alimentadas dão à luz crianças menos saudáveis:
tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino. Mesmo as cultu-
ras nas quais a mulher grávida é recompensada com uma alimenta-
ção mais rica, isto raramente remedia os danos já causados em nome
da política sexual. Em casos extremos, um alto índice de mortalida-
de infantil, o subdesenvolvimento do cérebro do feto e doenças rela-
cionadas à deficiência de proteínas são resultantes da má nutrição
da mãe. E nenhum destes problemas escolhe o sexo que irá afetar.
Não precisamos olhar muito além de nossos próprios quintais
para encontrar um índice de mortalidade infantil e uma deficiência
de proteína que ultrapassa os de outras nações industrializadas. Os
Estados Unidos estão produzindo gerações de uma subclasse empo-
brecida. E no entanto a resistência política a cupons de alimentação,
a somas adequadas para as pensões previdenciárias e mesmo a pro-
gramas de alimentação restritos às crianças, às gestantes e às mu-
lheres que ainda amamentam ainda é crescente. Assim como a re-
sistência a programas de treinamento profissional, a creches e a multas
por discriminação sexual no trabalho, que representam formas de
apoio às mulheres e a seus filhos.
A curto prazo, a desculpa usada para não investir nas áreas cita-
das acima é econômica. Precisamos economizar. No entanto, este
argumento jamais é apresentado quando a palavra de ordem é au-
mentar os gastos militares. A perda certa e imediata do potencial de
um ser humano é considerada menos importante do que a possível
perda de uma superioridade militar.
E isto nos faz pensar: Será que o medo, consciente ou inconsciente,
de uma mulher independente é tão grande que poderá levar nossos
líderes pró-família a optar pela dependência feminina acima dos in-
teresses nacionais a longo prazo? Será que são capazes de usar o exemplo
da mulher pobre — ou de qualquer mulher que não consiga sobre-
viver sem a boa vontade e sem a proteção dos homens — como um
lembrete constante para nos manter na linha?
254 GLORIA STEINEM

Mas as mulheres podem, sem dúvida, aprender através da política da


alimentação que os interesses próprios não são tudo. As vezes o único caminho
é a rebelião.
Os fatos nos convencem da necessidade de nos rebelarmos.
O Mito. Homens precisam de mais comida e de uma alimenta-
ção mais bem balanceada porque trabalham mais.
O Fato. Segundo a ONU, as mulheres realizam um terço do tra-
balho remunerado em todo o mundo e dois terços de todo o trabalho,
remunerado ou não. Em sociedades industrializadas, tais como os Es-
tados Unidos, as donas de casa trabalham mais do que qualquer outro
grupo de trabalhadores: uma média de 99,6 horas por semana. Na
América Latina, as mulheres compõem pelo menos 50% do trabalho
no campo e até mesmo 90% na África e na Ásia. Em muitas socieda-
des, como a nossa, a maioria das mulheres possui dois empregos, den-
tro do lar e fora, enquanto os homens possuem apenas um.
O Mito. Considerando a fome e a desnutrição sofrida por grande
parte do mundo, é um equívoco enfocar a forma de distribuição dos
alimentos. A primeira e única questão deveria ser como produzir mais
comida.
O Fato. A terra já produz alimento bastante para todos os seus
habitantes. As políticas de distribuição são o maior motivo para a existên-
cia da fome. Segundo estudos concluídos pela Fundação de Nutrição
da Suécia, e outros grupos, há alguns anos, o uso do alimento e da
fome como arma política é ainda mais destrutivo do que a guerra bacte-
riológica ou do que as armas que atingem a todas as pessoas de ma-
neira igual. Isto ocorre justamente porque restringir a alimentação afeta,
em primeiro lugar, gestantes, mulheres que amamentam e crianças.
0 Mito. Não existe uma atitude consistente com relação às mu-
lheres. Algumas culturas gostam de mulheres roliças enquanto ou-
tras gostam de mulheres magras. E tudo uma questão de preferên-
cia pessoal e estilo.
O Fato. O que é raro e possuído apenas pelos poderosos é cobiçado
como símbolo de poder. Assim, nas sociedades pobres, onde há falta
de alimentos, o ideal de beleza feminino é roliço, por estar disponível
apenas para as classes mais altas. Paxás, chefes de tribos africanas e os
barões da economia americana engordavam suas mulheres a força para
usá-las como testemunho de sua riqueza. Em sociedades mais bem
afortunadas, nas quais as mulheres engordam de tanto comer amidos
jVíEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 255

e açúcares, as magras são artigo raro e invejado. Não obstante, os de-


nominadores comuns são a fraqueza, a passividade e a falta de força.
Ricas ou pobres, a beleza feminina é equacionada com a subserviência
aos homens. Mulheres de classes mais baixas, que realizam trabalhos
braçais e desenvolvem algum grau de força, são levadas a invejar esta
fraqueza. As camponesas do Oriente Médio invejavam a proteção e a
restrição dos véus usados pelas mulheres de propriedade dos homens
mais ricos da sociedade e, assim, passaram a imitá-lo. Operárias das
fábricas americanas, assim como as mulheres do campo, talvez inve-
jem a magreza e a artificialidade das ricas. Para aquelas que desempe-
nham um papel duplo, que possuem um trabalho remunerado e ain-
da cuidam dos filhos, uma vida como reprodutora e anfitriã de um
homem de posses pode parecer algo desejável, em comparação.
A liberdade é algo a ser imaginado.
Mas graças às contagiantes idéias do feminismo, as imaginações
vêm funcionando em tempo integral.
Mulheres pobres exigem uma forma prática de controlar os inú-
meros partos que colocam suas vidas em perigo assim como uma
melhoria da alimentação tanto da mãe quanto do bebê para fazer
com que aquele número reduzido de crianças seja mais saudável e
tenha mais chance de sobreviver. O enfoque principal das mulheres
de países mais pobres e agrícolas é também importante para as po-
bres de países industrializados como os Estados Unidos. Talvez até
saibamos que as mulheres das camadas mais pobres do país ainda
não têm acesso ao controle de natalidade e a abortos seguros. Mas
será que sabemos que médicos africanos em treinamento diagnosti-
caram kwashiorkor, doença que provoca o amarelamento da pele e
aquela barriga inchada tão típica do quadro de fome africano, nos
centros das cidades americanas?
Nós, mulheres, só precisamos de força — de saúde, de múscu-
los, de resistência — se quisermos mudar o mundo.
Será que pensamos nisto quando pensamos em beleza? Ou desejamos calorias
vazias? Ou passamos nossa política alimentar para nossos filhos e irmãs mais
novas?
Vamos precisar de muito alimento para fazer crescer a mais lon-
ga revolução do mundo.

— 1980
Criando Redes

Se você sair viajando por este país não terá como escapar: nos anos
oitenta e noventa, a criação de redes é o que a conscientização foi
nos anos setenta. E a forma principal de nós mulheres descobrirmos
que não somos loucas, e sim o sistema. E a forma, também, de des-
cobrirmos que grupos de apoio mútuo podem provocar mudanças
que até as mulheres mais corajosas não conseguiriam sozinhas.
Se nós já passamos pela conscientização (ou pelo clube do livro
feminista, pelos grupos de apoio às mães — ou qualquer que seja o
nome que damos para a célula revolucionária de nossas vidas), então
as redes de mulheres, formadas em torno do trabalho ou de qual-
quer outra questão que atinja a todas, talvez apóie o próximo passo
lógico para nosso ativismo e aprendizado. Se não usufruímos das
preciosas revelações, capazes de preservar a sanidade de qualquer uma,
que surgiram (e ainda surgem) em tais grupos de conscientização,
então a discussão de nossas verdades pessoais dentro dessas redes talvez
produza revelações similares e nos dê um apoio parecido.
Mas há um problema. Ao contrário dos antigos grupos de
conscientização, as novas redes são freqüentemente encaradas como
uma imitação das táticas do establishment. Algumas realmente ex-
cluem mulheres malsucedidas em vez de derrubar barreiras para as
mulheres como um grupo, mas muitas sofrem de problemas relaciona-
dos à imagem e outros problemas provenientes do termo em si. Redes
ou mesmo redes das velhas garotas evocam ecos dos antigos clubes dos
velhos garotos. Embora a conscientização também seja derivativa,
como conceito, suas referências incluem a "amargura verbal" da
Revolução Chinesa, os "testemunhos" do movimento de direitos ci-
vis negros, os grupos de apoio dos Alcoólatras Anônimos e outros
modelos de transformação. As redes podem invocar o status quo.
Isto é, até você colocar o "de mulheres" logo a seguir. E até você
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 257

se dar conta de que "rede" pode ser usado genericamente para in-
cluir qualquer coisa, de alianças nacionais especializadas tais como o
National Women's Health Network (Rede Nacional de Saúde da
Mulher) ou o Feminist Computer Technology Project (Projeto Fe-
minista de Tecnologia de Computadores) ou locais de intercâmbio
tais como o Fórum das Mulheres, em Nova York ou o Fórum de
Mulheres Executivas, na Filadélfia.
Na psicologia da nomeação, tenho notado que as redes que exi-
bem Fórum no título parecem ser as mais elitistas, enquanto aquelas
que incluem termos tais como Grupo de Apoio ou Comitê eleitoral pa-
recem ser as menos elitistas. As redes locais, que incluem entre seus
membros as mais bem-sucedidas profissionais de uma dada ocupa-
ção, tendem a considerar o status ingrediente imprescindível, enquanto
as redes que se organizam em torno de uma questão ou de uma ins-
tituição específica tendem a incluir todas as mulheres afetadas por
aquilo.
O mais importante é o uso constante, por parte das mulheres,
do termo rede como verbo, formar redes, e não como um substanti-
vo isolado. É um processo, e não o produto final. Neste sentido, for-
mar redes torna-se algo solto e lateral, um contraste com o estilo
fechado e hierárquico das contrapartes masculinas tais como associações
profissionais, ordens fraternais, diretorados e as próprias redes dos velhos
garotos.
Para ser sincera, no entanto, há um problema de conteúdo, ou
seja, um problema com as realizações práticas das redes. Quando
suas organizadoras dependem de empregos em atividades de domí-
nio primordialmente masculino, as redes passam por fases dolorosas
nas quais a aprovação passa a ter enorme importância. Assim, crêem
que o melhor mesmo é portar-se como "boas meninas". Ou seja, ao
limitarem-se à definição mais restrita de "questões trabalhistas", ao
evitarem identificar-se com outras mulheres como grupo, ao evita-
rem o uso de palavras como "feminista" e ao negarem apoio às ques-
tões aparentemente "não relacionadas" tais como o Equal Rights
Amendment — ERA, emenda da constituição americana que exi-
gia direitos iguais para as mulheres — e a liberdade reprodutiva,
todas as oposições do establishment desaparecerão.
Normalmente este estágio dura pouco. Quando o dinheiro e o
poder estão em jogo, a maioria das "boas meninas" logo descobre
258 GLORIA STEINEM

que a oposição permanece firme e forte. Até mesmo a visão de uma


mesa cheia de mulheres almoçando juntas já é o bastante para ba-
lançar chefes homens. Quando Mary Scott Welch formulou uma
descrição de redes bem-sucedidas, formadas pelas mulheres da
Equitable Life Assurance e as United Storeworkers, ela também re-
latou histórias de empregadores menos iluminados que rasgavam avisos
de reuniões e enviavam "espiãs" para comparecer a reuniões um tanto
inocentes. A timidez e a conformidade das mulheres em algumas
redes ligadas às atividades profissionais é alarmante. Talvez seja este
o perigo inevitável de uma organização que gire em torno de em-
pregos dos quais dependemos mas que não controlamos.
Este comportamento cuidadoso é com freqüência condenado por
outras mulheres como sendo imitativo do sexo masculino (o que não
quer dizer que as mulheres estejam procurando a aprovação mascu-
lina e não a feminina), quando na verdade trata-se de um comporta-
mento culturalmente muito feminino. Um grupo análogo, masculi-
no, ficaria bem menos preocupado com a simpatia e com a aprova-
ção ao lidar com um empregador poderoso, e estaria bem mais pro-
penso a procurar o poder coletivo.
Pobres, negros, latinos e outros grupos de homens discrimina-
dos parecem conseguir identificar seus interesses próprios com mais
facilidade do que a maioria das mulheres, qualquer que seja a raça
destas. É difícil imaginar uma organização de executivos de impren-
sa, judeus, que não apoiasse sua inclusão na constituição americana,
por exemplo. É difícil também imaginar um repórter negro que se
recuse a se associar à National Association for the Advancement of
Colored People (Associação Nacional para o Progresso das maiorias
raciais), porque precisasse demonstrar objetividade no que diz res-
peito aos eventos relacionados ao racismo. E no entanto, recente-
mente, reuni-me com um grupo de sofisticadas mulheres da imprensa
nova-iorquina, quase todas extremamente feministas, que "furaram"
o boicote pró-ERA aos estados que se recusavam a ratificar a emen-
da. Estas mulheres compareceram a uma reunião de negócios orga-
nizada em um destes estados sem nem ao menos protestar. E uma
das mais proeminentes mulheres da televisão americana, que se diz
feminista, insiste que não pode contribuir para grupos pró-igualda-
de, que não pode nem mesmo se juntar ao National Organization
for Women por precisar narrar eventos antiigualdade. Ainda há re-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 259

des de profissionais mulheres que discutem se devem ou não incluir


a controversa palavra mulheres no nome de seus grupos.
Por motivos tristes, embora óbvios, as mulheres (especialmente
mulheres brancas, seduzidas pelo acesso aos poderosos) formam o
único grupo discriminado cujos membros parecem acreditar que, se
não se levarem a sério, outra pessoa o fará.
E quanto ao acesso, podíamos ouvir os valiosos conselhos de Carolyn
Reed, líder do National Committee on Household Employment
(Comissão Nacional do Emprego Doméstico): "Como trabalhadora
do lar, eu jamais confundi acesso com influência."
Os problemas das redes devem servir para acautelar, não para
desencorajar. Carol Kleiman descreve centenas de grupos variados e
bem-sucedidos no livro Women's Networks: the Complete Guide to Getting
a Betterjob, Advancingyour Career and Feeüng Great as a Woman Through
Networking {Redes de mulheres: o guia completo para conseguir um
emprego melhor, progredir em sua carreira e sentir-se ótima como
mulher através da formação de redes]. Quer estejam organizadas em
torno de alcoolismo ou arquitetura, estudos do feminismo ou contra
a violência, elas tendem a incluir, de forma pouco convencional,
mulheres que compartilham dos mesmos interesses sem barreiras de
raça, idade, sexualidade, invalidez ou instrução. Normalmente, ten-
tam inventar estruturas abertas e táticas flexíveis para progredirem
individualmente e para ajudar suas irmãs a progredir.
Na verdade, há diferenças reais e funcionais entre redes incum-
bentes, que tentam proteger o poder, e redes insurgentes, que fa-
zem o possível para dividi-lo.
Talvez déssemos mais valor às irmãs que formam redes se com-
preendêssemos o valor, para nossa própria sobrevivência, de termos
um território feminino como este se tentássemos especificar e hon-
rar as seguintes distinções:

As mulheres tendem a definir o poder de forma diferente. Dadas as noções


de masculinidade, a natureza hierárquica das corporações e a prevalência
da riqueza herdada, as tradicionais definições de poder têm muito a
ver com a habilidade de dominar outros e de se beneficiar, indevi-
damente, de seu trabalho. Isto é algo extremamente distante da
meritocracia que o establishment prega, e não leva a uma estrutura e
competição muito democráticas. Na verdade, excluindo os herdei-
260 GLORIA STEINEM

ros das grandes fortunas e os gestores de investimentos de um porte


tal que não ter lucro é até um desafio, a maioria das redes dos velhos
garotos seriam dizimadas. Estou sendo otimista ao supor que os em-
presários sobreviveriam, mas as responsabilidades iguais pela cria-
ção de seus próprios filhos também os demoveriam de seus cargos.
Por outro lado, as mulheres vêm definindo poder como a habi-
lidade de usar seus próprios talentos e de controlar a própria vida.
Quando nos sentimos tentadas a agir de maneira tradicionalmente
considerada dominadora, conforme definição do poder vigente, os
castigos culturais por um comportamento tão "pouco feminino" são
tão grandes que tendemos a voltar atrás, até mesmo quando a situação
não nos é favorável, lançando mão da culpa e da manipulação silen-
ciosa.
Muitas vezes, a utilização do poder pelas mulheres é tão dife-
rente que consultores da área de gerenciamento vêm estudando o
estilo administrativo feminino como fonte de um maior cooperativismo
e colaboração no trabalho. Por exemplo, o hábito de dizer, "Isto pre-
cisa ser feito" em vez do habitual "Você tem de fazer isto" ou então
aceitar elogios por um trabalho bem-feito mencionando o nome de
todos que contribuíram para o projeto.
Até mesmo nossa lamentadíssima e destrutiva inabilidade de
delegar tem seu lado positivo. Podemos acabar trabalhando tanto
ou mais do que nossos funcionários, o que já é, em si, um enorme
exemplo de liderança.
É óbvio que precisamos aprender o lado útil de um estilo mais
hierárquico, mais "masculino". Mas nossa necessidade não é maior
do que a dos homens de aprender o lado útil do nosso estilo.
Quando o assunto é conteúdo, a convicção feminina de que o
poder deve ser obtido por merecimento (especialmente por mulhe-
res) leva a uma ênfase na excelência, ao conhecimento e ao aprendi-
zado individual. Uma rede de mulheres de alto nível que já ocupam
posições em diretorias de empresas reúne-se freqüentemente com o
simples intuito de ouvir palestras das melhores economistas e admi-
nistradoras do mercado. (Elas não faziam a menor objeção em ouvir
palestras dos melhores profissionais masculinos destas duas áreas, mas
decidiram que eles tendiam à condescendência.) A porcentagem de
mulheres do nível gerencial que voltam às faculdades em busca de
especialização e treinamento avançado em suas áreas é muito supe-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 261

rior à de homens que ocupam as mesmas posições, embora as com-


panhias subsidiem os estudos dos últimos com maior freqüência.
Quando mulheres trabalham em grupos ou se tornam maioria,
em vez de serem dispersadas pelas estruturas existentes, suas dife-
renças tornam-se mais visíveis. As hierarquias enfraquecem, ficam
mais passíveis de se basearem em quem trabalha mais e não num
status trazido do mundo exterior. (Até mesmo as poucas redes de
profissionais de uma dada área, que usam o salário como critério para
as candidatas a membro, normalmente dizem "deveria estar ganhando"
— um reconhecimento de que poucas mulheres ganham o que
merecem ganhar.) Nas reuniões, o tempo destinado às formalidades
ou ao uso de títulos é encurtado para dar mais espaço à louvação
daqueles que realizaram um bom trabalho.
Talvez o mais notável de tudo seja que estas redes muitas vezes
incluam em suas metas aquilo que pouquíssimos grupos do establishment
considerariam: alçar outras mulheres ao poder.
Como um grupo de imigrantes unido pelo apoio mútuo, as
mulheres podem ajudar umas às outras com formas de elocução, com
maneiras de aumentar a autoconfiança, com soluções para proble-
mas profissionais, avisos de empregos ou listas de empresas e servi-
ços de propriedade feminina que devam ser usados como forma de
apoio à iniciativa feminina. Considerando o fato de termos sido trei-
nadas para procurar a perícia e a autoridade masculina, é uma vitó-
ria que tentemos dar poder umas às outras como profissionais ao
preferirmos médicas e ginecologistas mulheres (pelas quais, atual-
mente, a procura é maior do que a oferta), rabinos mulheres e pas-
toras para cerimonias em grupo, analistas financeiros mulheres quando
estamos investindo, afinadoras de pianos mulheres, pilotos de aviões
mulheres, seguranças mulheres e carpinteiras para o lar e para o es-
critório.
— Não estamos baixando o padrão ao qual estamos acostuma-
das — disse uma mulher de Houston, criticada por ter escolhido
uma arquiteta para trabalhar para o seu grupo. — Na verdade, é
bem capaz de estarmos aprimorando nosso padrão. Podemos afir-
mar, com base em dados estatísticos, que profissionais mulheres ti-
veram de se esforçar bem mais do que os homens para chegarem
onde estão.
Até mesmo as habilidades mais tradicionais passam a ter um novo
262 GLORIA STEINEM

significado. Por exemplo, uma estilista aposentada contribui há anos


para o guarda-roupa da deputada que apóia. Uma dona de casa de
Minnesota aumenta a eficácia política de Koryne Horbal — ex-re-
presentante dos Estados Unidos na Comissão das Nações Unidas sobre
a Situação da Mulher — ajudando-a a responder sua prodigiosa cor-
respondência.
Cada vez mais encaramos o ato de alçar outra mulher ao poder
como uma dádiva recíproca. Isto está muito longe da clássica defini-
ção de poder de Tom Wolfe que é "manter todo mundo debaixo do
chicote!"

Mesmo quando as redes de ativistas começam exclusivas, elas se tornam in-


clusivas, o que é realmente uma boa tática. Suponhamos que você orga-
nizasse uma rede de todas as mulheres vice-presidentes em Los Angeles.
Seria interessante e os membros poderiam trocar paralelos úteis. No
entanto, não aprenderiam nada de novo sobre suas próprias compa-
nhias e, se recebessem auxílio para fazerem alguma jogada profissional
importante, seria para darem um passo lateral.
Suponhamos então que cada uma destas vice-presidentes fizesse
parte de uma rede dentro de sua própria companhia, de mulheres
hierarquicamente abaixo delas (incluindo a secretária do presiden-
te) e acima delas (incluindo uma integrante do conselho). Torna-se
claro que a vice-presidente poderá obter informações da secretária
do presidente, além de ter um acesso um tanto incomum a um membro
do conselho. Se ela quiser crescer dentro da companhia, terá uma
oportunidade maior de saber quais cargos estão disponíveis. Se ela
quiser sair da companhia, poderá ter a valiosa recomendação daque-
la que é membro do conselho. Ao mesmo tempo, o membro do con-
selho terá tido uma experiência de primeira mão com a companhia
pela qual responde legalmente e a secretária, uma possibilidade de
promoção e um acesso a pessoas que estão no topo do mundo
corporativo.
Esse cruzamento de fronteiras tem um valor ainda maior em áreas
onde o número de mulheres ainda é pequeno. De acordo com o
Departamento de Estatísticas Trabalhistas dos Estados Unidos, apro-
ximadamente 48% dos empregos são conseguidos através de conta-
tos pessoais. Como raramente integramos as linhas masculinas de
comunicação pessoal, é melhor que criemos as nossas.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 263

No Grupo de Mulheres de Imprensa de Nova York, por exem-


plo, as mulheres se levantam durante dispendiosos almoços men-
sais, algo conhecido como "quadro de avisos", para anunciar cargos
que precisam ser preenchidos e para elogiar o talento de suas cole-
gas. Como algumas executivas mulheres começaram como secretá-
rias, elas talvez tenham uma melhor compreensão da importância
desta ocupação e uma percepção da mesma como um degrau para a
promoção e como valiosa fonte de conselhos. "Secretárias sabem de
tudo", explicou a associada de uma rede de uma universidade que
inclui o corpo docente, as esposas dos integrantes do corpo docente
e as funcionárias administrativas e dos refeitórios. "Nós lhes damos
respeito, apoio e oportunidades profissionais. Elas nos contam o que
realmente está acontecendo."
Aqui vão alguns exemplos desta transposição de barreiras:

• A esposa de um executivo forçou o marido a aumentar o sa-


lário de sua secretária.

• Uma funcionária do governo americano, por conta própria,


ligou para grupos de prevenção ao estupro para avisar onde
havia fundos disponíveis para seu uso.

• A riquíssima ex-dona de um jornal e uma antiga oficial do


Departamento de Justiça — ambas mulheres das quais se es-
peraria uma certa distância — protestaram pelo tratamento
editorial da revista Savvy para com as secretárias. ("Minha
querida", reclamou a ex-dona de jornal, "eles só falam de como
conseguir uma boa secretária e não de como tratá-las melhor.")

• Diversas feministas negras fizeram lobby junto a deputados


brancos e diversas feministas brancas fizeram lobby junto a
deputados negros (ambas por concordância mútua) com o
intuito de educar os homens a respeito das questões femini-
nas sem que estes se sentissem ameaçados pelas "suas" mu-
lheres.

• Uma rede de acadêmicas de alto nível apóia, apesar de um


certo risco profissional, um processo por discriminação sexual
264 GLORIA STEINEM

movido contra a Cornell University pelas mulheres de seu


corpo docente.

• Um pequeno comitê eleitoral feminino de uma enorme or-


ganização política da Califórnia fez um lobby interno e conse-
guiu que parassem de apoiar candidatos que se opunham à
liberdade reprodutiva.
A rede de uma universidade da Costa Leste exemplificou as vir-
tudes táticas deste tipo de diversidade. Em primeira instância as alunas
protestaram contra a ausência de ginecologistas nos serviços de as-
sistência médica do campus e até mesmo deixaram de pagar certas
taxas cobradas pela universidade. Nada aconteceu. Em seguida, as
mulheres do corpo docente passaram meses documentando a exis-
tência de um critério diferenciado para a obtenção de promoções na
universidade. Nada aconteceu. Finalmente, as telefonistas e outros
funcionários que ocupavam cargos mal remunerados no campus pe-
diram aumento. De novo, nada aconteceu. Mas quando estes três
grupos formaram uma rede de apoio mútuo e nem mesmo um só telefo-
nema foi recebido ou dado naquela universidade, algo aconteceu: de re-
pente cada um dos grupos obteve pelo menos uma de suas reivindi-
cações. No entanto, as telefonistas teriam sido demitidas se tives-
sem feito greve sozinhas, sem o apoio dos corpos docente e discente.
Alunos e professores, por outro lado, talvez ainda estivessem ten-
tando conseguir que suas reivindicações fossem levadas a sério se não
fosse o apoio das telefonistas.
Finalmente, a habilidade feminina de construir pontes com suas
experiências pessoais beneficia, muitas vezes, os homens. As mulhe-
res da rede de televisão americana CBS organizaram um serviço de
empregos e de orientação profissional que os homens, hoje em dia,
também usam. Algumas vezes, estas pontes construídas por mulhe-
res são internacionais. O Movimento de Paz Irlandês foi criado por
mulheres católicas e protestantes, e mulheres árabes e israelenses ja
se reuniam muito antes de Camp David. Já se falou, até mesmo, na
criação de uma plataforma comum por feministas americanas, israe-
lenses e da OLP.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 265

As redes são um território psíquico. As mulheres de todas as raças são


o único grupo discriminado que não possui um território próprio,
uma nação própria ou mesmo um bairro. Até mesmo homens sem
poder podem apontar para algum ponto do globo terrestre, no
passado ou no presente, onde tinham autoridade — um lugar para
onde ir, mesmo que só na imaginação e sentir respeito próprio. Em
seus países, aqueles homens possuem bairros e bares por onde po-
dem transitar, livres. Mas é muito raro que as mulheres tenham o
mesmo.
Num patriarcado, a casa de um homem, por mais pobre que seja,
é o seu castelo. Mas nem mesmo o corpo de uma mulher rica é seu.
E por isso que os grupos organizados por e para mulheres são
tão importantes. São o nosso território psíquico, um lugar onde po-
deremos descobrir quem somos, quem poderemos ser como seres hu-
manos completos. Elas nos ajudam a ir além de uma posição secun-
dária na família e no trabalho, a deixar as tirânicas expectativas da
sociedade para trás.
Elas também nos forçam a desenvolver as qualidades e habilida-
des que, em grupos mistos, designamos aos homens.
Algumas horas por semana, ou por mês, formando um territó-
rio psíquico poderão nos fazer sentir que não estamos sozinhas. Po-
dem fixar uma nova realidade em nossas mentes, numa era em que
os líderes nacionais e os jornais estão cheios de suposições quanto a
"o que a maioria dos americanos quer" ou mesmo quem esta maio-
ria de americanos é.
Mas nossa necessidade pode ir mais fundo do que a necessidade
de um território próprio. Como muito poucas de nós crescemos com
mães que tiveram poder, muitas vezes nos sentimos sem mãe. Tal-
vez, sentindo a liberdade e o apoio destes grupos organizados por e
para mulheres, estamos nos tornando mães umas das outras.
Se for assim, esta é uma necessidade que também transpõe fron-
teiras.
Devaki Jain, uma respeitada economista indiana e amiga de longa
data, passou os últimos vinte anos trabalhando como feminista em
áfeas como planejamento familiar, assistência médica e empregos.
Embora todas estas áreas sejam de grande importância, ela concluiu
que o maior fator para o progresso de uma mulher é o seguinte: um
grupo organizado por mulheres, que se encontre fora de seu contex-
266 GLORIA STEINEM

to familiar ou profissional; que haja pelo menos uma estrutura na


vida de cada mulher que seja livre para as mulheres.
Na Índia, esta estrutura pode ser uma cooperativa de artesãs ou
uma rede social, um grupo de mulheres que conversam ao lado do
poço onde pegam água ou uma associação profissional. Mas sem esta
fonte de confirmação e de apoio mútuo, as mulheres raramente sen-
tem-se confiantes o bastante para fazer valer os direitos que já pos-
suem, e muito menos fortes o bastante para exigir mais.
Em algum canto de nossas vidas, todas nós precisamos de um
lugar livre, de um território psíquico. Você tem o seu?

— 1982
Transexualismo

'No ginásio, eu tentei jogar basquete e tentava agir como um menino.


Foi desastroso... Sou mulher há três anos e minha vida é incrivelmente
satisfatória."

— transexual feminino

"Desde que me entendo por gente, eu tinha a fantasia de ser homem...


A cirurgia foi um milagre... Minha namorada depende da minha
força."

— transexual masculino

Desde que um oftalmologista que jogava tênis chamado Richard


Raskind submeteu-se a uma cirurgia genital, a uma terapia hormonal
e a uma mudança no guarda-roupa e tornou-se uma oftalmologista
que joga tênis chamada Renee Richards, o transexualismo tornou-
se fato na consciência pública.
Ao contrário de Christine Jorgensen, que fez a mesma jornada
transexual e escreveu um livro a respeito nos anos cinqüenta, Renee
Richards chegou em meio a uma onda nacional de feminismo que
desafiava tanto a justiça quanto as bases biológicas dos papéis sexuais.
Ao contrário de Jorgensen, portanto, Richards não só é tratada como
uma exceção bizarra como também um exemplo de troca dos papéis
sexuais (e portanto uma assustadora insistência de onde o feminismo
pode levar), ou como uma prova viva de que o feminismo não é neces-
sário. Afinal, se um homem quer tanto ser mulher, por que é que as
mulheres que nasceram mulheres não estão satisfeitas com o que têm?
Acima de tudo, Richards foi recebida com publicidade e com
surpreendente aceitação. Embora eu tenha certeza de que ela sofreu
com o escárnio e com a atenção do público, o número e a identidade
das pessoas que a apoiaram é realmente incrível. Tenistas profissio-
268 GLORIA STEINEM

nais e jornalistas esportivos, que haviam lutado com unhas e dentes


contra a igualdade para as mulheres no esporte, e principalmente
contra um valor monetário igual para prêmios masculinos e femini-
nos, agora se mobilizavam pelo direito de Richards de jogar em cam-
peonatos femininos. Atacavam as jogadoras que se opunham decla-
rando serem elas contra as liberdades civis, más perdedoras ou co-
vardes que tinham medo de perder. O New York Times, ao qual as
mulheres pedem para ser tratadas de Ms. e ainda assim são tratadas
de Mrs. ou Miss, não só trocou o nome Renee Richards (como o de
outros transexuais) como também o gênero de todos os pronomes
que se referiam a ela nos artigos escritos a seu respeito. A televisão,
assim como outras áreas da imprensa, produziu uma pequena ex-
plosão de matérias sobre o transexualismo, embora os primeiros ra-
pazes a desafiar o papel masculino tradicional, recusando-se a lutar
no Vietnã, tenham esperado meses, em alguns casos anos, por uma
cobertura solidária ou mesmo explicativa. E, finalmente, todas as
ativistas que apareciam num programa de entrevistas qualquer eram
bombardeadas com perguntas a respeito de Renee Richards.
Foi a enorme quantidade de publicidade que me deixou descon-
fiada. Tratava-se, no mínimo, de uma tática para desviar as atenções
dos problemas da desigualdade sexual. Afinal, os cerca de dez mil
americanos que se vêem como membros do sexo oposto, além dos
cerca de três mil que se submeteram a uma cirurgia transexual, não
são o bastante para equilibrar o número de donas de casa que traba-
lham sem remuneração, ou as que trabalham fora por um salário^
desigual, ou as que sobrevivem dos fundos previdenciários e lutam
para criar os filhos. Portanto, quando eu era brindada com as inevi-
táveis perguntas a respeito do transexualismo, eu simplesmente
defendia o direito dela de mudar seu próprio corpo se assim desejas-
se mas mencionava o fato de ela ser uma exceção e de ter muito pouco
a ver com a luta da maioria das mulheres.
Quanto mais eu ouvia estas perguntas, no entanto, mais eu me
dava conta de que havia uma outra coisa acontecendo. Para princí-
pio de conversa, apenas os transexuais femininos se tornavam famo-
sos. Embora haja mulheres que se submeteram a cirurgias drásticas
e tratamentos de hormônio para tornarem-se homens e que divul-
garam esta mudança, seus nomes não eram de domínio público.
Jorgensen e Richards eram conhecidas em todo o mundo, assim como
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 269

James Humphrey Morris, escritor e ex-oficial do exército inglês que


se tornou Jan Morris, o melhor exemplo de transexualismo da In-
glaterra. Além disso, as perguntas sobre tênis continham um certo
glamour, como se Richards tivesse mudado sua identidade apenas para
provar que qualquer homem, mesmo um ex-homem, podia derro-
tar uma mulher.
À medida que eu mergulhava mais fundo nesta questão, descobri
que transexuais eram práticos lembretes não só do quão desejável é o
papel feminino tradicional como também eram o tipo de transforma-
ção sexual que a maioria dos entrevistadores conseguia aceitar e ima-
ginar. Parecia fácil um homem desistir de seu papel superior para se
tornar mulher. Assustador era, sem dúvida, mas não era nenhum grande
desafio. Para uma mulher, emergir de sua inferioridade e atingir a
masculinidade era algo impensável, impossível. Era um feito além de
gigantesco. Os homens não estavam prontos para aceitar e encarar
uma ex-mulher como igual, mas esperavam que as mulheres aceitas-
sem e se sentissem honradas em ter, entre elas, um ex-homem.
As tenistas, no entanto, tinham argumentos bem diferentes. Se-
ria justo terem de enfrentar nas quadras uma pessoa treinada física e
culturalmente, durante quarenta anos, como homem? Como os ne-
gros que questionaram a justiça de um livro como Black Like Me [Ne-
gro como eu}, escrito por um branco que escureceu a pele química e
brevemente, as mulheres chamavam atenção para o fato de que a ex-
periência de uma vida não pode ser duplicada porque assim se quer.
Por que deveria a seriedade conquistada pelo tênis feminino, a duras
penas, ser transformada num circo sensacionalista em função de um
transexual? E finalmente, conforme explicou uma tenista: "Se não a
deixarem jogar como mulher, talvez deixem que jogue como homem.
Assim, uma mulher, mesmo que falsificada, talvez derrote um homem."
Mas as provas mais claras vinham dos testemunhos dos próprios
transexuais, alguns de partir o coração. Quando comecei a ler a lite-
ratura médica e jornalística e a fazer entrevistas, um tema surgiu.
Não importava o quão diferentes suas histórias pessoais fossem, ou
as suas personalidades. Não importava se suas jornadas eram de homem
para mulher ou de mulher para homem, todos diziam estar absolu-
tamente convictos de que suas verdadeiras personalidades lhes haviam
sido negadas ou restringidas pelo papel sexual que lhes fora dado ao
nascerem. "Eu pensava como um homem", disse um transexual bio-
270 GLORIA STEINEM

logicamente nascido mulher. "Eu me sentia como uma mulher", disse


uma transexual biologicamente nascida homem. Numa marcante
tese de doutorado, Jan Raymond, especialista em ética médica do
Boston College, analisou a fundo as entrevistas feitas com transexuais
e constatou que certos temas repetiam-se sem parar. As expressões
mais comuns eram a sensação de ter uma mente feminina num cor-
po masculino, ou vice-versa. Mas, como Raymond demonstrou, "A
mente feminina num corpo masculino só faz sentido como conceito
numa sociedade que aceita a realidade de ambos".
Em outras palavras, transexuais estão dando um valor excessivo
ao poder do papel sexual. Para poderem libertar suas verdadeiras
personalidades, precisaram mutilar seus corpos cirurgicamente, pois
qualquer coisa é válida para conseguir desta sociedade preconceituosa
— na qual as menores diferenças, hormonais e genitais, ditam toda
uma vida e as personalidades — o direito de ser quem se é, indivi-
dualmente, como ser humano.
Raymond compreende esta esmagadora força da sociedade que
faz com que o transexual escolha este castigo para si mesmo, mas
chora a perda de indivíduos que talvez pudessem ter se tornado crí-
ticos e rebeldes desta sociedade sexualmente estereotipada. Em vez
de aceitar a idéia de "uma mente feminina num corpo masculino"
através da mutilação do ser físico, eles poderiam desafiar a noção de
haver uma mente feminina ou masculina. Talvez pudessem ter mos-
trado que o sexo é um dos muitos elementos que formam cada indi-
víduo.
Por este motivo, Iam Raymond também critica o meio médico
que cresceu em torno da procura (e dos altíssimos honorários) por
cirurgias transexuais, além dos tratamentos hormonais de longa
duração. Em vez de servir às necessidades reais, sem duvida menos
lucrativas, que poderiam fazer uso de suas habilidades cirúrgicas e
de terapia hormonal, alguns médicos estão ajudando um grupo de
indivíduos em sua tentativa desesperada de se adequar a uma socie-
dade injusta. Trata-se de um grupo restrito de médicos bem-sucedi-
dos que ela chama de "o império transexual". *
E claro que nem toda cirurgia sexual e terapia hormonal é usada
para esta finalidade. Crianças nascidas com genitália ambígua são

* Raymond, Jan, The Transexual Empire [O império transexual]. Boston: Beacon Press, 1979-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 271

salvas pela mesma técnica, assim seus seres exteriores podem se adequar
à estrutura cromossomal ou às suas capacidades reprodutivas. Há
também os adultos que não poderiam, de outra forma, desempe-
nhar as únicas funções físicas realmente ditadas pelo sexo: a fecun-
dação, pelo homem, e a gestação, pela mulher.
De certa forma, os próprios transexuais dão uma contribuição
positiva ao provarem que os cromossomos não são tudo. Ao ignora-
rem esta estrutura interna, que não podem mudar, e enfocando as
aparências externas do corpo e a socialização, eles demonstram que
tanto homens biológicos como mulheres biológicas possuem, den-
tro de si, qualidades do sexo oposto e, assim, toda a gama de possi-
bilidades do ser humano. Infelizmente, a imprensa não divulga este
lado da questão. Ao contrário, o transexualismo é usado, em grande
parte, como um testemunho da importância dos papéis sexuais con-
forme os dita uma sociedade com imagem, genitais e comportamento
"masculino" e "feminino".
Mas a questão principal é se alguns indivíduos estão sendo for-
çados a se mutilarem pelos preconceitos que os rodeiam e se esta
automutilação é então utilizada e divulgada para provar a veracida-
de de tais preconceitos.
As feministas têm razão de se sentirem desconfortáveis com a
necessidade e com o uso do transexualismo. Mesmo se protegermos
o direito de cada indivíduo bem informado de chegar a esta decisão
e de ser identificado da forma que ele ou ela desejar, precisamos deixar
claro que, a longo prazo, esta não é uma das metas feministas. A
questão é que a sociedade se transforme a tal ponto que uma mu-
lher possa "jogar basquete" e que um homem não precise "ser o mais
forte". É melhor exteriorizar a raiva e usá-la para transformar o mundo
do que prendê-la dentro de si e usá-la para mutilar nossos corpos de
forma a se adequarem ao que espera a sociedade.
Neste meio tempo, não deveríamos nos surpreender com a quan-
tidade de publicidade e de exploração comercial conferida a um punhado
de transexuais. Os tradicionalistas dos papéis sexuais reconhecem um
tributo político quando o vêem.
Mas a questão permanece: se o sapato não nos cabe, será que
precisamos encurtar o pé?

— 1977
Por que as Jovens São Mais Conservadoras

Se me perguntassem há uma década ou mais, eu certamente diria que


o campus universitário é o primeiro lugar onde se deve procurar por
uma feminista ou por qualquer outra revolução. Eu também teria suposto
que as mulheres em idade universitária, assim como os homens em
idade universitária, estariam muito mais propensos a ser ativistas e a
ser mais abertos do que seus pais. Afinal, há uma tradição longa e bem
divulgada de revoltas em campus, dos estudantes da França medieval,
que sugeriram a "heresia" de que a universidade se separasse da Igre-
ja, às revoltas estudantis anticolonialistas da índia inglesa; dos estu-
dantes que lideraram a revolução cultural da República Popular da
China às demonstrações estudantis contra o xá do Irã. Até mesmo nos
Estados Unidos, onde a tradição de ativismo estudantil é bem mais
restrita, os movimentos populares que pediram o fim da guerra do
Vietnã tinham como símbolo os protestos dos campus universitários e
a desconfiança de qualquer um com mais de trinta anos.
Foi só depois de muitos anos de viagens como palestrante do
feminismo que fui compreender que estava errada a respeito das
mulheres; ou pelo menos no que diz respeito à ação das mulheres
em prol de si mesmas. No ativismo, assim como em tantas outras
áreas, eu fora educada para achar que o padrão cultural masculino
era a norma ou, então, o único. Se os anos estudantis representavam
o pico da rebelião e da abertura às mudanças para os homens, o mesmo
deveria se aplicar às mulheres. Na verdade, depois de uma década
de ouvir todo o tipo de mulheres — durante palestras ao meio-dia,
organizadas por funcionários de escritórios e dadas em meio a lanchinhos
tirados de sacos de papel, às conversas que varavam a noite nos cen-
tros universitários para mulheres; dos grupos de auto-ajuda dedica-
dos às donas de casa aos comícios universitários — eu já me conven-
ci de que o oposto é, com maior freqüência, verdadeiro. As mulhe-
res devem ser o único grupo a se tornar mais radical com o passar
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 273

dos anos. Embora algumas jovens feministas sejam uma enorme exceção
a esta regra, as mulheres, em geral, não se permitem desafiar a po-
lítica de suas próprias vidas até bem mais tarde.
Pensando bem, eu me dou conta de que eu mesma segui este
modelo. Os anos que passei na faculdade foram cheios de incertezas
e de um conservadorismo pessoal típico de quem busca a aprovação
dos outros e tenta se adequar ao papel de adulta e de mulher, quer
isto signifique encontrar um homem rico para sustentá-la ou um radical
que precise ser sustentado. Não obstante, continuei a acreditar que
uma juventude desbravadora e uma velhice conservadora eram a norma
para todo o mundo e que eu devia ser apenas um acidente, um caso
isolado e digno de culpa. Embora todas as generalizações baseadas
na cultura feminina possuam numerosas exceções, e jamais devam
ser usadas como desculpa ou muleta emocional, acho que seríamos
menos severas com nós mesmas e com outras estudantes, que nos
sentiríamos melhor em relação ao nosso potencial de mudança à medida
que envelhecemos — e creio também que devamos educar os jorna-
listas que anunciam a morte do feminismo devido ao fato de seu
epicentro não se encontrar nos campus universitários — se nos
conscientizássemos do fato de que, para a maioria das mulheres, o
tradicional período universitário é uma época cautelosa e pouco rea-
lista. Pense bem no seguinte:
E possível que, como universitárias, as mulheres sejam tratadas
com mais igualdade do que jamais serão tratadas. Em primeiro lu-
gar, por sermos consumidoras. As faculdades ficam extremamente
satisfeitas com as mensalidades que pagamos, ou que nossos pais ou
o governo pagam por nós. Com as taxas populacionais caindo devi-
do a um maior controle das mulheres sobre o número de filhos que
terão, ou não terão, este dinheiro torna-se ainda mais vital para a
sobrevivência daquela dada instituição. No entanto, ao contrário de
outros consumidores, alunos são transitórios demais para ter poder
como grupo. Se nossas mensalidades são pagas pelas nossas famílias,
nosso poder torna-se ainda menor.
Como jovens mulheres, quer sejamos estudantes ou não, estamos
no estágio mais valioso para uma cultura dominada pelo sexo mas-
culino: estamos em nosso ápice como trabalhadoras, como esposas,
como parceiras sexuais e como reprodutoras.
Isto quer dizer que ainda não passamos pelos eventos que mais
274 GLORIA STEINEM

radicalizam uma mulher: a entrada na força de trabalho remunera-


da e a descoberta de como as mulheres são tratadas como trabalha-
doras; o casamento e a descoberta de que esta também não é uma
parceria justa; ter filhos e descobrir a quem cabe criá-los ou não criá-
los; e a descoberta de que envelhecer é muito mais penoso para as
mulheres do que para os homens.
Além disso, as novas ambições alimentadas pelo renascimento do
feminismo podem fazer com que as mulheres se comportem um pouco
como um típico grupo de imigrantes. Ficamos determinadas a provar
nosso valor, almejamos a excelência acadêmica e nos preparamos para
carreiras interessantes e bem-sucedidas. E mais sacrifícios são feitos
para demonstrar novas habilidades e talvez para mitigar as suspeitas
de que as mulheres necessitam de mais e melhores credenciais do que
os homens. Assim, nosso tempo torna-se reduzido para o ativismo.
Na verdade, talvez ainda nem tenhamos consciência de sua necessidade.
Indo mais além, o próprio progresso que nos levou a carreiras
antes consideradas exclusivamente masculinas, algo considerado re-
volucionário para as mulheres, pode ser interpretado como sendo
conservadorismo e conformismo pelos críticos que observam de fora.
Para estes, supondo que o radicalismo masculino seja a medida da
mudança, qualquer preocupação para com uma carreira é demons-
trativo de "conservadorismo universitário". Na verdade, deixar a
faculdade pode ser considerado um ato radical para os homens, mas
entrar na faculdade é um ato radical para as mulheres. O progresso
se encontra na direção da qual não viemos.
Como a maioria dos grupos que acabaram de chegar à cena, ainda
precisamos equilibrar nossa fé na instrução e nos diplomas. Por exemplo,
a porcentagem de mulheres matriculadas em universidades vem cres-
cendo na mesma proporção que o número de homens matriculados
vem caindo. O número de mulheres ingressando nas universidades
americanas em 1978 foi, pela primeira vez, maior do que o número
de homens.* Esta esperança de se destacar num jogo masculino é,
provavelmente, reforçada pelas pressões culturais existentes sobre

*Isto deve-se também ao retorno de mulheres mais velhas às universidades, uma tendência que
continua em alta. Em 1990, de acordo com o Centro Nacional para Estatísticas Educacionais, um
terço de todas as mulheres matriculadas em instituições de ensino superior tinham pelo menos
trinta anos de idade — o dobro, proporcionalmente, do que em 1970, antes do impacto do
movimento feminista.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 275

as jovens para serem "boas meninas" e obedecerem às regras impos-


tas por outrem.
Embora saibamos, intelectualmente, que precisamos criar no-
vos jogos, com novas regras, talvez ainda não tenhamos absorvido
fatos tais como: a enorme taxa de desemprego entre mulheres com
doutorados; a baixíssima média salarial de mulheres de todas as ra-
ças com diplomas universitários, se comparado às suas contrapartes
masculinas com instrução até o segundo grau ou menor; aquele teto,
em nível gerencial médio, no qual até mesmo as formandas das fa-
culdades de administração contratadas com enorme entusiasmo ba-
tem suas cabeças depois de cinco ou dez anos no mercado; e as pio-
neiras, em profissões consideradas não tradicionais para mulheres,
que são as primeiras a serem demitidas em tempos de recessão. É
triste, mas talvez precisemos sentir pessoalmente algumas destas re-
alidades na pele antes de aceitarmos a idéia de que ações judiciais,
ativismo e pressão em grupo terão de acompanhar nossa excelência
individual e nossos diplomas recém-impressos.
E então chegamos ao feminismo de culpa, em versão estudantil.
Se as coisas não correm conforme planejado, a culpa deve ser nossa.
Se nossas mães não "fizeram coisa alguma" com a instrução que re-
ceberam, elas devem ter sido culpadas. Se não conseguimos estudar
com o afinco desejado (afinal as mulheres precisam ser mais bem
preparadas que os homens), e ter relacionamentos pessoais e sexuais
significativos ao mesmo tempo (porque, segundo dizem, as mulhe-
res precisam mais de um relacionamento do que um homem), então
nos sentimos inadequadas, como se cada uma de nós fosse individual-
mente culpada por um problema cultural.
Hei de visitar um compus onde as mulheres não estejam preocu-
padas com a possibilidade de combinar casamento, filhos e carreira.
Ainda hei de pisar num compus universitário onde os homens este-
jam preocupados com a mesma coisa. E no entanto as mulheres con-
tinuam a sofrer de culpa terminal devido a este problema do papel
duplo até que os homens sejam encorajados, pressionados ou de al-
guma forma forçados, individual e coletivamente, a se integrarem
as "tarefas femininas" de criar os filhos e de cuidar da casa. Até en-
tão, e até que mudem os modelos profissionais para permitir a pais
e mães serem responsáveis pelos filhos de maneira equivalente, as
crianças vão continuar a crescer com a idéia de que apenas as mu-
276 GLORIA STEINEM

lheres podem ser atenciosas e carinhosas e que apenas os homens


podem ser intelectuais e ativos fora do lar. E assim, cada uma das
metades do mundo continuará a limitar seu completo potencial como
ser humano.
Finalmente, há aquele treinamento político, interior, que atin-
ge as mulheres na adolescência e aos vinte e poucos anos: as incontáveis
formas de lavagem cerebral às quais somos submetidas para acredi-
tarmos que precisamos de um homem ao nosso lado para possuir-
mos uma identidade. Isto ocorre tanto em nossas vidas pessoais como
em nossas vidas profissionais e o oposto, o fato de homens depende-
rem de uma mulher para terem identidade, é um tanto infreqüente.
Afinal, se vamos entrar num sistema matrimonial legalmente pro-
jetado para uma pessoa e meia, se vamos nos submeter a uma eco-
nomia na qual uma mulher ainda ganha 59 centavos para cada dó-
lar ganho por um homem,* e se vamos trabalhar principalmente em
atividades de apoio e como assistentes, ou como co-diretoras e vice-
presidentes, então precisamos ser convencidas de que não somos seres
completos sozinhas.
Para se certificarem de que nos perceberemos como meias pes-
soas e que continuemos viciadas na obtenção de uma identidade através
dos serviços que prestamos aos outros, a sociedade faz de tudo para
transformar as jovens em "viciadas em homens"; isto é, seres vicia-
dos na presença e na aprovação masculina. Tanto profissional como
pessoalmente, precisamos de um homem ao nosso lado, tanto no sentido
figurado quanto no sentido literal, quer seja no trabalho, aos sába-
dos à noite ou por toda a vida. (Se os homens se dessem conta de
que não faz a menor importância quem é este homem, compreen-
deriam que este vício também os despersonaliza.) Considerando o
perigo que representa, para uma sociedade dominada por homens,
se as jovens deixassem de absorver esta mensagem política, não é à
toa que aquelas que tentam abandonar o vício — e, pior, as que tentam
ajudar outras mulheres a abandoná-lo — provavelmente serão tra-
tadas como estranhas ou como perigosas por todos, dos pais aos co-
legas.
Quando toda essa pressão mistura-se com pouca experiência, não

*Segundo as estatísticas mais recentes do Departamento de Estatísticas Trabalhistas, de 1992, as


mulheres estão ganhando 72 centavos para cada dólar ganho por um homem.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 277

é de se estranhar que as jovens estejam menos propensas a apoia-


rem-se mutuamente. Até mesmo aquelas que advogam metas fe-
ministas evitam o rótulo de "feminista". É válido querer remunera-
ção justa, igual à dos homens, para si própria (uma pequena refor-
ma tomaria conta disso), mas não é válido querer remuneração justa
e igual à dos homens para as mulheres como grupo (o que implica-
ria uma verdadeira revolução econômica). Algumas se escondem por
trás de obsessões profissionais individualizadas como forma de evi-
tar a perigosa descoberta da experiência em comum com outras
mulheres, como grupo. Outras se escondem por trás de um cômodo
"Eu não sou feminista, mas..." Há ainda outras que se tornam poli-
ticamente ativas, mas apenas em questões que suas contrapartes do
sexo masculino levam a sério.
A mesma lição a respeito do conservadorismo das jovens pode
ser aprendida através da história do feminismo. Se não tivessem con-
seguido me convencer de que o estereótipo masculino da juventude
como sendo o tempo "natural" para se ser livre e rebelde, como sen-
do um tempo para "se fazer de tudo", possibilitado pela garantia de
poder e de segurança mais tarde, eu teria compreendido o modelo
observando os movimentos de mulheres do passado.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a onda do feminismo do século
XIX foi começada por mulheres mais velhas, que já haviam passado
por experiências radicalizantes tais como o casamento e a transfor-
mação legal em bens móveis de seus maridos (ou então a experiên-
cia igualmente radicalizante de não se casar e de ser tratada como
sokeironas). Muitas delas haviam integrado os movimentos aboli-
cionistas e conhecido os paralelos entre sexo e raça. Em outros paí-
ses, esta onda foi comandada por mulheres que já estavam além do
ponto de pressão do casamento e do conservadorismo.
Analisando os primeiros anos desta segunda onda, toma-se cla-
ro que grupos de ativismo feminino e de conscientização da condi-
ção feminina foram organizados por mulheres que já haviam passa-
do pelo movimento de direitos civis ou donas de casa que descobri-
ram que a criação dos filhos e a culinária não davam vazão a todos os
seus talentos. Enquanto na maioria dos campi universitários circula-
riam nomes de clínicas de aborto ilegais, secretamente (afinal de contas,
um aborto poderia diminuir nosso valor para um possível casamen-
to), mulheres um pouco mais velhas convocavam a imprensa para
278 GLORIA STEINEM

divulgar a realidade dos abortos (incluindo aqueles aos quais elas


próprias se submeteram, embora isto significasse confessar ter co-
metido um ato ilegal) e para exigir reformas ou a revogação de leis
antiescolha. Embora o estupro tenha sido uma epidemia silenciosa
nos campi universitários durante muito tempo, mulheres mais jovens,
vítimas de estupro, ainda sentem receio, compreensivelmente, de
mencioná-los. As próprias universidades encorajam este silêncio para
manter a reputação de lugar seguro junto aos pais, que são aqueles
que pagam as mensalidades. Foram necessárias muitas palestras fora
do compus, protestos contra as leis que exigem prova física e contra
os procedimentos da polícia em casos de estupro e testemunhos diante
de legisladores estaduais para que grupos estudantis exigissem das
administrações das universidades e da força policial local mais pro-
teção contra estupros. Na verdade, o date rape — um fenômeno co-
mum nas universidades, no qual a jovem é estuprada pelo rapaz com
quem está saindo pela primeira ou segunda vez e às vezes até mes-
mo currada por diversos estudantes em uma das fraternity houses (as-
sociações masculinas que se concentram em casas alugadas que pas-
sam a representar aquela agremiação) — ainda está passando por
um processo de exposição. O estupro marital, questão legal mais
sensível, começou a ser exposto alguns anos antes. Nos casos de
mulheres espancadas e à exposição de maridos e amantes como sen-
do estatisticamente mais propensos a espancar suas mulheres do que
atacantes desconhecidos nas ruas, a questão parece ser tratada prin-
cipalmente como uma preocupação distante dos campi. No entanto,
em muitas universidades nas quais dei palestras, há pelo menos um
caso vivo, nas lembranças do corpo discente, de uma jovem espancada
ou assassinada por um amante ciumento.
Este modelo cultural de conservadorismo jovem transforma o
fato das mulheres mais velhas estarem retornando às universidades
em algo de grande importância. Elas são exemplos vivos e ativistas
pragmáticas que radicalizam mulheres jovens o bastante para serem
suas filhas. O campus está se transformando num local de importan-
tes alianças entre as gerações.
Nada disso deve denegrir os corajosos esforços das jovens e as
inúmeras transformações por elas provocadas. Muito pelo contrá-
rio, elas devem ser encaradas como sendo ainda mais notáveis por
sobreviverem às pressões conservadoras, reconhecendo problemas
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 279

sociais pelos quais elas mesmas ainda não passaram e organizando-


se com sucesso em meio a um corpo estudantil sempre transitório.
Todos os cursos de história da mulher, todas as linhas diretas de apoio
aos casos de estupro, todos os jornais universitários que finalmente
começam a dar todas as notícias; todas as professoras feministas cujos
empregos foram conseguidos ou mantidos devido às pressões dos alunos
e todos os administradores cuja consciência foi aberta de uma vez
por todas; todos os orientadores que deixaram de dar conselhos
ocupacionais diferenciados a homens e mulheres; todos os processos
jurídicos fomentados por energias estudantis contra fundos de ativi-
dades atléticas desiguais e exigências para entrada em cursos de pós-
graduação — todas estas conquistas são ainda mais impressionantes
se analisadas em relação ao modelo de ativismo feminino.
Finalmente, ajudaria lembrar que uma revolução feminista lembra
muito pouco uma revolução de estilo masculino. Da mesma forma,
a atitude mais radical de uma mulher em relação à mãe (ou seja, a
de unirem-se, como mulheres, para ajudarem-se mutuamente a con-
quistar algum poder) não se parece muito com a atitude mais radi-
cal que um homem possa tomar em relação ao pai (ou seja, romper
a ligação pai-filho com o intuito de separar as identidades ou assu-
mir o poder existente).
São estes conflitos pai-filho, em nível nacional e de geração, que
geraram a definição convencional de revolução. No entanto, estas vêm
se desenrolando há séculos, sem que o papel da metade feminina que
compõe o mundo tenha mudado. Estas revoluções têm, também, fa-
lhado na redução dos índices de violência da sociedade, pois tanto os
pais quanto os filhos incluem algum grau de agressividade e de supe-
rioridade em relação às mulheres em sua definição de masculinidade,
preservando assim o modelo antropológico de dominação.
Além disto, aquilo que os atuais líderes e teóricos definem como
revolução é um pouco mais do que a conquista do exército inimigo ou
a. tomada das estações de rádio. As mulheres têm muito mais em mente
do que isto. Precisamos virar o sistema de castas sexuais vigente, a
estrutura de poder mais difundida na sociedade, de cabeça para baixo.
Isto significa ter de transformar os valores patriarcais daqueles que
administram as instituições, sejam eles politicamente de "direita" ou
de "esquerda", pais ou filhos. Este lado cultural da mudança é extre-
mamente profundo e com freqüência encarado como algo excessiva-
280 GLORIA STEINEM

mente íntimo. Talvez seja, também, ameaçador ser considerado sé-


rio ou mesmo possível. Apenas os conflitos entre homens são "sérios".
Apenas as conquistas de instituições existentes são "possíveis".
É por isto que a definição de "político", no campus assim como
em outros lugares, tende a ser limitada a quem é candidato a reitor
ou quem está protestando contra os investimentos corporativos na
África do Sul, ou qual seria o lado "moralmente correto" de uma
revolução convencional, preferivelmente uma que ocorra a milhares
de quilômetros de distância.
Além de importantes, tais atividades são as mais confortáveis
para os jovens. Elas proporcionam uma sensação de virtude sem in-
comodar demais as estruturas de poder de nosso dia-a-dia. Até mes-
mo quando as forças mais constantes presentes nos campi se concen-
tram em torno de questões feministas, elas podem ser tratadas como
apolíticas e invisíveis. Ao ser perguntado "O que está acontecendo
neste campus?" um universitário poderá responder "O movimento
antinuclear" — mesmo que isto venha a ser um protesto de duas
horas de duração, enquanto equipes estudantis antiestupro estejam
patrulhando o campus há dois anos e a cadeira de estudos feministas
esteja transformando os livros que lemos.
Não é à toa que os jornalistas e sociólogos que procuram a revo-
lução nos campi universitários muitas vezes não enxergam a profun-
didade das mudanças e da atividade feminista. As próprias mulhe-
res podem desconsiderá-la, encarando-a como sendo pouco política,
pouco séria. E certo que as propostas de mudança raramente se
manifestam através de bombardeios a edifícios ou da queimada de
carteiras de reservista em praça pública. Na verdade, ela vai muito
além de protestar um sintoma temporário — como, por exemplo, o
alistamento ou os gastos militares—e desafia o paradigma que concede
a um grupo o direito de dominar um outro, que é a doença em si.
A grande tarefa das jovens é resistir às pressões, é desafiar as
definições. Seu sucesso crescente é um milagre de paciência e de coragem
que deveria nos encher, todas, de orgulho. Mas elas, também, preci-
sam saber que poderão se tornar mais radicais com o passar dos anos.
Um dia, um exército de mulheres grisalhas poderá silenciosa-
mente conquistar o mundo.

1979
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 281

PÓS-ESCRITO

Há mais dois motivos pelos quais este padrão cultural entrou em


maior evidência nos últimos quinze anos; além de um estágio que
precede o início deste conservadorismo de papéis sexuais.
Em primeiro lugar, estudos têm demonstrado que a forma e o
conteúdo da instrução em si tende a diminuir a auto-estima femini-
na. Como as mulheres muito raramente são citadas como autorida-
des em livros didáticos — e no meio acadêmico seja muito menos
provável que elas sejam as autoridades, tanto na sala de aula quanto
na administração —, muitas jovens passam a acreditar que, embora
tirem boas notas, decorando os feitos e os pensamentos de outros,
não poderão atingir metas ou criar sozinhas.
Em segundo lugar, há hoje uma maior compreensão do predo-
mínio e do impacto dos abusos generalizados cometidos contra me-
nores, e particularmente dos abusos sexuais. Nestes, dois terços das
vítimas são mulheres e nove décimos dos algozes são homens. Im-
potência, culpa, vergonha, afastamento e uma sensação de não se
ter valor algum, a não ser sexual: todos estes são resultados que se
tornam mais evidentes com o despertar sexual na adolescência. No
entanto, o confronto dos abusos sofridos e a cura dos seus efeitos
raramente começa até que a jovem se torne independente de sua
família. Se o abuso sofrido foi especialmente cruel, talvez sejam ne-
cessários muitos anos de distância e de uma sensação de segurança,
ou talvez comecem apenas com a morte do pai ou da mãe, ou de
outra pessoa que praticou os abusos.
Por ambos os motivos, nós mulheres podemos levar mais tempo
para tornarmo-nos ativas em prol de nós mesmas. Mas há outras
reflexões que podem diminuir o tempo de espera. A pesquisa de Carol
Gilligan demonstrou que, muitas vezes, há uma maior noção do ser
antes dos onze ou doze anos, época em que o papel feminino é assu-
mido. Se esta voz pudesse ser apoiada e fortalecida, os anos de res-
trições sexualmente definidas poderiam ser diminuídos. Não só quando
estão prestes a terminar, mas antes de seu começo.

— 1995
O Erótico vs. O Pornográfico

Olhe ou imagine duas pessoas fazendo amor. Fazendo amor mesmo.


Estas imagens podem ser diferentes, mas é muito provável que haja
prazer mútuo e toque e calor, uma empatia pelo corpo e pelos ter-
minais nervosos de cada um. E provável que haja uma sensualidade
compartilhada e uma sensação espontânea de que as duas pessoas
estão praticando o ato porque querem.
Agora olhe ou imagine imagens de um ato sexual no qual exista
força, violência ou símbolos de poder desigual. Eles podem ser bem
claros: chicotes e correntes e até mesmo tortura e assassinato, apre-
sentados de forma sexualmente excitante, uma ciara evidência de
ferimentos e contusões ou o poder de um adulto usado, sexualmen-
te, contra uma criança. Podem ser mais sutis: o uso de classe social,
raça, autoridade ou posições que demonstrem claramente quem é o
dominador e quem é o dominado. É possível que as cenas de nudez
sejam desiguais: o corpo de uma das pessoa está exposto enquanto a
outra continua escondida na armadura de suas vestimentas. Ou, en-
tão, haverá uma mulher só, exposta para um espectador que não vemos
mas cujo poder pressentimos, fazendo de tudo para agradá-lo. (É
interessante que, mesmo nas ocasiões em que a mulher pode ser vis-
ta, é freqüente sabermos se ela lá se encontra para o seu próprio prazer
ou para o de outra pessoa.) Claro ou sutil, não há equilíbrio de poder
ou reciprocidade. Na verdade, muito da tensão e do enredo é prove-
niente da nítida impressão de que uma pessoa está dominando a outra.
Estes dois tipos de imagem são tão diferentes quanto o amor é
diferente do estupro, como a dignidade é diferente da humilhação,
a parceria da escravidão, o prazer da dor. E no entanto, são confun-
didos, são agrupados sob os rótulos de: "pornográfico", "obsceno",
"erótico" ou "sexo explícito", devido ao fato de sexo e violência se-
rem perigosamente entrelaçados e confundidos. Afinal, é a violência
do ato ou a ameaça desta violência que faz com que um grupo de
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 283

seres humanos mantenha o domínio sobre um outro. Entre homem


e mulher, a ameaça deverá ser maior em circunstâncias íntimas e quando
corre-se o perigo de reconhecer a humanidade do outro.
Esta confusão do sexo com a violência torna-se mais clara atra-
vés do sado-masoquismo. A inabilidade de demonstrar empatia pelo
"sexo oposto" chegou a tal ponto que um torturador, ou até mesmo
um assassino, pode acreditar que a dor ou a perda da vida da vítima
é o destino da mesma. A vítima, por sua vez, poderá ter sido de tal
forma privada de sua auto-estima, ou de relacionamentos humanos
positivos, que ela própria espera a dor ou a perda de liberdade como
preço pela intimidade ou por qualquer migalha de atenção. Não
obstante, é improvável que até mesmo o masoquista espere a mor-
te, e, no entanto, os snuff movies e grande parte da atual literatura
pornográfica insistem que uma morte lenta, proveniente da tortura
sexual, é o auge do orgasmo, o prazer definitivo. É claro que trata-
se de uma forma de "suicídio" reservada para as mulheres. Embora
os homens tenham maior propensão a se matarem, o suicídio mas-
culino raramente é apresentado como um ato sexualmente prazeroso.
O sexo é, também, confundido com violência e agressão na cul-
tura.pop, assim como em respeitadas teorias de psicologia e de com-
portamento sexual. A idéia de que a agressividade faz parte da sexua-
lidade masculina "normal" e que a passividade feminina ou a neces-
sidade da agressividade masculina faz parte da sexualidade feminina
"normal" faz parte da cultura patriarcal na qual vivemos, dos livros
com os quais nos instruímos e do ar que respiramos.
Até mesmo as palavras que nos ensinam para expressar nossos
sentimentos estão impregnadas destas mesmas suposições. Frases
sexuais são os sinônimos mais comuns para conquista e humilhação
(ser possuída, ser comida); uma mulher sexualmente agressiva ou
até mesmo expressiva pode ser tachada de puta ou até mesmo de
ninfomaníaca. Um homem sexualmente agressivo é considerado nor-
mal e até mesmo digno de admiração. Descrições sexuais, cientifica-
mente aceitas, podem perpetuar os mesmos papéis. Por exemplo,
diz-se que uma mulher é penetrada por um homem embora ela tam-
bém pudesse tê-lo envolvido.
É óbvio que separar o sexo da violência — da violência ou de
sua ameaça — levará muito tempo. E o processo sofrerá resistência
por desafiar o âmago do domínio e do centralismo masculinos.
284 GLORIA STEINEM

Mas temos a sabedoria para nos guiar: a sabedoria comum de


nossos próprios corpos. A dor é um aviso de danos sofridos, um avi-
so de perigo. Se não for misturada ao carinho que recebemos na in-
fância, é pouco provável que confundamos dor com prazer. Ao des-
cobrirmos nossa vontade própria e nossa força, somos capazes de
descobrir nossa própria iniciativa e nosso prazer sexual. Como os homens
não conseguem mais dominar e precisam encontrar uma identidade
que não dependa da superioridade, eles também descobrem que a
cooperação é mais interessante do que a submissão, que a empatia
com o parceiro sexual realça o seu próprio prazer e que a ansiedade
no que diz respeito ao seu desempenho sexual tende a desaparecer
junto com as noções estereotipadas da masculinidade.
Mas as mulheres serão as principais combatentes desta nova re-
volução sexual. É a nossa liberdade, nossa segurança, nossa vida e
nosso prazer que estão em jogo.
Nesta onda de feminismo, começamos pela tentativa de separar
o sexo da violência nas áreas em que o perigo físico era, e é, mais
imediato. Desafiando a crença de que o estupro é um crime biologi-
camente irresistível para o criminoso, e possivelmente provocado pela
vítima; recusando-nos a permitir que o espancamento de mulheres
por homens seja classificado de "violência doméstica" e, assim, ig-
norado pela lei; expondo a prostituição forçada e a escravidão sexual
como crimes nacionais e internacionais. Com exceção dos atos de
violência de homens para com suas esposas e parceiras, estes desafios
foram facilitados por homens que queriam castigar outros homens
por terem se apossado de suas propriedades femininas. As mulheres
raramente têm poder para protegerem-se umas às outras.
Diante de tantos exemplos da guerrilha antimulher, chegamos
diretamente à propaganda que ensina e legitima todas elas: a por-
nografia. Pelos mesmos motivos que usamos para diferenciar o estu-
pro do sexo, nos demos conta de que precisávamos separar as repre-
sentações pornográficas de sexo, como uma arma antimulher, das
imagens de uma sexualidade escolhida e mútua.
Felizmente, há também sabedoria na origem das palavras. Por-
nografia vem do grego porné (meretriz, prostituta ou detento do sexo
feminino) e graphos (escrever sobre ou descrever). Portanto, porno-
grafia significa a descrição da compra do sexo, que em si já demons-
tra o desequilíbrio de poder, ou da escravidão sexual.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 285

Esta definição inclui todos estes tipos de degradação, a despeito


de serem as mulheres escravas e os homens os captores, ou nos raros
exemplos onde o oposto ocorre. Há também a pornografia homos-
sexual na qual um homem assume o papel "feminino" da vítima,
assim como o erotismo homossexual no qual dois homens dão-se prazer,
mutuamente. Há também a pornografia na qual os papéis se inver-
tem, com uma mulher de chicote em punho para castigar um ho-
mem, embora seja significativo o fato de que trata-se de um gênero
criado pelos homens, para o seu próprio prazer e não criado por ou
para as mulheres. É um gênero que permite ao homem ser vítima,
embora sem o perigo real. Há a pornografia lésbica, onde uma mu-
lher assume o papel "masculino", de vitimar outra mulher, assim como
o erotismo lésbico. O fato das mulheres raramente escolherem o papel
de algoz não se dá por motivos de superioridade biológica, mas em
função de uma cultura que está muito menos propensa a viciar uma
mulher em violência e dominação. Mas, qualquer que seja o sexo
dos participantes, toda pornografia é uma imitação do paradigma
homem-mulher, algoz-vítima e quase toda ela representa ou sugere
mulheres em cativeiros e homens em posição de domínio.
Até mesmo a Comissão Presidencial sobre Obscenidade e Por-
nografia, de 1970, cujo relatório foi acusado de suprimir ou ignorar
provas da ligação eventual entre a pornografia e a violência pratica-
da contra as mulheres, definiu o tópico de seu estudo como sendo
uma descrição pictórica ou verbal caracterizada pela "representação
degradante ou humilhante do papel e da posição do ser humano do
sexo feminino".
Resumindo, a pornografia nada tem a ver com sexo. Ela tem a
ver com um desequilíbrio de poder e exige que o sexo seja usado
como forma de agressão.
A palavra erótico pode nos ajudar a diferenciar sexo de violência
e, assim, a salvar o prazer sexual. Vem do grego eros (desejo sexual
ou paixão, nome dado em homenagem a Eros, filho de Afrodite), e
contém em si a idéia do amor e da reciprocidade, da escolha positiva
e do desejo pelo outro. Ao contrário da referência da palavra porno-
grafia à prostituta, erótico deixa o sexo do indivíduo em aberto. (Na
realidade, talvez devamos esta conotação de poder compartilhado
ao fato dos gregos considerarem o amor de um homem por outro
homem mais digno do que o amor por uma mulher, mas pelo me-
286 GLORIA STEINEM

nos a palavra não é tendenciosa.) Embora tanto o erótico como o


pornográfico refiram-se freqüentemente a representações verbais ou
pictóricas de comportamento sexual, os dois conceitos são tão dife-
rentes quanto cômodos onde as portas se encontram abertas e cô-
modos nos quais as portas se encontram trancadas. O primeiro pode
ser o lar de alguém enquanto que o segundo só pode ser uma prisão.
O problema é que há tão pouco erotismo. Nós mulheres rara-
mente nos sentimos livres, poderosas e seguras o bastante para sair
em busca de prazeres eróticos em nossas próprias vidas e muito menos
para criá-los no cinema, nas revistas, nos livros de arte, na televisão,
na cultura pop. São poucos os autores e cineastas homens que conse-
guiram escapar dos ditames da sociedade e muito menos imaginar o
caminho da identidade feminina. Mesmo as representações de cenas
sexuais entre homens e mulheres e entre mulheres recaem freqüen-
temente sobre o paradigma dominante-passivo. Muitas mulheres,
hoje, tentam representar o sexo igual e erótico—quer seja com homens
ou com outras mulheres — mas isto ainda não penetrou a cultura
popular.
E o problema é que há tanta pornografia. Esta corrente subter-
rânea de propaganda antimulher tem existido em todas as socieda-
des patriarcais, mas a comunicação em massa, as grandes corporações
e um retrocesso social contra a igualdade feminina a transformaram
numa inundação da qual não conseguimos escapar: nas ruas, nos
cinemas e até mesmo dentro de nossas casas. Talvez isto nos seja útil
a longo prazo. Não podemos mais fingir que a pornografia não exis-
te. Precisaremos enfrentar nossa própria humilhação e nossa própria
tortura todos os dias, nas capas das revistas e nas telas das televi-
sões, ou então combatê-la. São raras as bancas de jornal que não
mostram corpos femininos acorrentados e presos, com os órgãos se-
xuais expostos para um espectador masculino no papel do conquis-
tador, feridas ou de joelhos, gritando de dor real ou fingida, fingin-
do gostar daquilo que as está matando ou machucando. As mesmas
imagens se encontram em cinemas, muitos deles integrantes do grande
circuito, e respeitáveis quartos de hotel em circuitos fechados de TV
para homens em viagens de negócios. São trazidas para dentro de
nossas casas não só em revistas como em fitas de vídeo e canais de
televisão a cabo. Até mesmo os vídeo-games oferecem mulheres sor-
ridentes, amarradas com cordas e figuras masculinas com ereções.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 287

O objetivo do jogo é estuprar a mulher o máximo de vezes possível.


(Como grande parte da pornografia existente, trata-se de um jogo
fascista do ponto de vista racial, assim como sexual. A mulher sorri-
dente é uma donzela indígena e o estuprador é o General Custer —
general do exército americano na Guerra da Secessão, morto numa
emboscada pelos peles-vermelhas, que defendiam suas terras. O jogo
chama-se "A Vingança de Custer".) Embora os snuff movies, nos quais
mulheres de verdade são evisceradas e, em seguida, mortas, tenham
sido forçados a desaparecer no submundo (em parte porque os túmulos
de muitas das mulheres assassinadas foram descobertos ao redor do
barracão de um dos cineastas deste gênero), a produção de filmes
que retratam a tortura-assassinato continua firme e forte. (Snuff é o
termo pornográfico que descreve o assassinato de mulheres por pra-
zer sexual. Não nos concedem a seriedade de tratamento que garan-
tiria o uso da palavra assassinato.) E há também a pornografia infan-
til, filmes e revistas que mostram homens adultos despindo, acariciando
e abusando sexualmente de crianças, muitas vezes sob o excitante
tema de "pais" estuprando suas "filhas". Algumas revistas de por-
nografia infantil oferecem dicas explícitas de como usar uma criança
sexualmente sem deixar evidência física do estupro. A premissa bá-
sica é que o testemunho de uma criança é ainda menos digno de
crédito do que o de uma mulher adulta. Pelo que temos visto nas
raras instâncias em que os casos de abuso sexual infantil chega à jus-
tiça, isto é verdade.
Some as vendas da indústria pornográfica, de revistas como Playboy
e Hustler, a clássicos do cinema tais como Love Gestapo Style, Gargan-
ta Profunda e Angels in Pain, e o total chegará à perturbadora cifra de
dez bilhões de dólares — mais do que as vendas de todos os filmes conven-
cionais e de toda a indústria fonográfica junta. Isto sem contar o fato de
que muitos filmes convencionais e imagens musicais são, também,
pornográficos, das capas genocidas tais como a famosa I'm "Black
and Blue" from the Rolling Stones — and I Love It! (que retrata uma
mulher negra, seminua, amarrada a uma cadeira) às centenas de fil-
mes de sexo-e-terror para adolescentes nos quais jovens mulheres
são mortas de maneira sádica e o estupro aparece não como crime e
sim como forma de excitamento sexual. Há também um número
cada vez maior de filmes e programas de televisão, destinados ao grande
público, que ajustam a pornografia de forma a fazê-la passar por algum
288 GLORIA STEINEM

tipo de padrão, além das vendas de material supostamente literário


tais como A história de 0 ou as obras do Marquês de Sade.
Se a propaganda nazista, que justificava a tortura e o assassinato
dos judeus, fosse tema de metade de nossos filmes e revistas mais
populares, será que não nos sentiríamos ultrajados? Se a propagan-
da da Ku Klux Klan, pregando e glamourizando a escravidão de negros,
fosse assunto de elogiadíssimos romances "clássicos", será que não
protestaríamos? Sabemos que este tipo de propaganda precede e
justifica massacres organizados e linchamentos, tendo o racismo como
pano de fundo. Sabemos que assistir a um filme violento faz com
que os espectadores se tornem mais propensos a tolerar a violência,
a cometê-la e a acreditar que a vítima mereceu o tratamento recebi-
do. Por que é que a propaganda de agressão sexual contra mulheres
de todas as raças é a única forma de ódio que "a sabedoria popular"
não encara como perigosa? Por que é que a pornografia é a única
violência presente na mídia que serve de válvula de escape para apa-
ziguar a agressividade de uma forma que chega muito próxima de
representá-la?

A primeira razão é a confusão feita entre todo o sexo não procriativo


e a pornografia. Qualquer descrição de comportamento sexual, ou
mesmo de nudez, pode vir a ser considerada pornográfica ou obsce-
na (uma palavra do latim que significa sujo ou contendo imundície) por
aqueles que insistem que o único objetivo moral do sexo é a procria-
ção dentro do casamento, ou até mesmo que a retratação da sexua-
lidade e da nudez são contra os preceitos de Deus.
Na verdade, os seres humanos parecem ser os únicos animais que
experimentam o mesmo ardor sexual e o mesmo prazer quer pos-
sam conceber ou não. Outros animais passam por cios ou estros,
períodos nos quais a atividade sexual está concentrada. Os humanos
não passam por isto. Assim como desenvolvemos capacidades úni-
cas, tais como a linguagem, a capacidade de planejar, de lembrar e
de inventar, através de nossa evolução, nós também desenvolvemos
a sexualidade como forma de expressão, como forma de comunica-
ção separada da reprodução. Para os seres humanos, a sexualidade
pode também ser uma forma de união, de dar e de receber prazer,
diminuindo diferenças, descobrindo similaridades e comunicando
emoções.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 289

Desenvolvemos isto e outros dons humanos através de nossa


habilidade de transformar o mundo à nossa volta, a nos adaptarmos
a ele fisicamente, a mudar outra vez, a nos readaptarmos e então, a
longo prazo, afetarmos nossa própria evolução. Mas como resultado
emocional desta rota em espiral, distanciando-nos dos outros ani-
mais, parecemos nos alternar entre períodos nos quais exploramos
nossas habilidades únicas e sentimentos de solidão no desconhecido
que nós mesmos criamos, um medo que muitas vezes nos atira de
volta ao consolo do mundo animal, procurando uma similaridade
que não existe.
Por exemplo, a separação da palavra "divertimento" da palavra
"trabalho" é uma invenção humana. Assim como a diferença entre
arte e natureza, entre a realização intelectual e a realização física.
Como resultado, celebramos o divertimento, a arte e a invenção como
algo prazeroso, como um salto importante ao desconhecido. E no
entanto, uma preocupação temporária pode nos encher de nostalgia
por um passado primitivo, e a convicção de que sobrevivência, a
natureza e o trabalho físico são mais dignos ou até mesmo moral-
mente mais corretos.
Da mesma forma, exploramos nossa sexualidade como algo que
possa ser separado da concepção: uma ponte prazerosa, cheia de empatia
e de extrema importância entre nós e os demais seres de nossa espé-
cie. Inventamos os anticoncepcionais — algo que provavelmente já
existia em outra forma, dado que nossos ancestrais compreendiam o
processo de concepção e de nascimento —, de forma a estendermos
e a protegermos esta dádiva única que é a sexualidade humana como
forma de comunicação. No entanto, algumas vezes temos a suspeita
atávica de que o sexo não é completo, de que não é legal ou até mesmo
não é a intenção de Deus, se não terminar em concepção.
Não é à toa que os conceitos diferenciados de "erótico" e "por-
nográfico" podem ser confundidos. Ambos partem do princípio de
que o sexo pode ser separado da concepção; de que a sexualidade
humana possui usos e metas adicionais. Este é o principal motivo
pelo qual, mesmo na cultura do presente, ambos podem ser conde-
nados como sendo obscenos e imorais. Uma condenação generaliza-
da de tudo o que for sexual mas que não leve ao nascimento de uma
criança (e ao casamento patriarcal, para que as crianças possam ser
"possuídas") vem crescendo devido ao atual retrocesso contra a in-
290 GLORIA STEINEM

dependência feminina. Por medo de que a estrutura patriarcal seja


afetada se nós mulheres realmente tivermos autonomia para decidir
nossos futuros sexuais e reprodutivos (isto é, se controlamos nossos
corpos e a maneira pela qual nos reproduzimos), grupos contrários à
igualdade feminina não só condenam a educação sexual e o planeja-
mento familiar como sendo "pornográfico", como vêm, também,
usando leis contra a obscenidade para proibir que informação sobre
anticoncepcionais seja enviada pelo correio. Seu alvo é qualquer ato
sexual ou nudez que se encontre fora do contexto patriarcal de casa-
mento e nascimento. Na verdade, Phyllis Schlafiy denunciou certa
vez que o movimento feminista como um todo era "obsceno" e a
Moral Majority (Maioria Moralista) e a Christian Coalition (Coalizão
Cristã) e outros grupos do gênero estão tentando reimpor a virgin-
dade, a abstinência e a repressão.
Não é surpreendente que este retrocesso religioso tenha uma
contrapartida secular e intelectual que se calca principalmente na
aplicação do comportamento "natural", do mundo animal, a seres
humanos. Isto é, em si, questionável, mas estudos no estilo dos de
Lionel Tiger deixam sua motivação ainda mais clara pelos animais
escolhidos e os hábitos enfatizados. Por exemplo, alguns primatas
do sexo masculino carregam e geralmente fazem as vezes da "mãe"
dos rebentos, leões machos cuidam de seus filhotes, elefantes fêmeas
lideram o clã e pingüins machos fazem de tudo, exceto dar à luz, de
chocar os ovos até sacrificar suas próprias membranas para alimen-
tar os recém-nascidos. Talvez seja por isto que tantos defensores da
supremacia masculina gostam de discutir babuínos e chimpanzés
(estudados em condições atípicas geradas pelo cativeiro) cujo com-
portamento demonstra, convenientemente, a dominação masculi-
na. A mensagem aqui é que as fêmeas da espécie humana devem
aceitar seu "destino" animal de ser sexualmente dependente e de se
dedicar ao nascimento e à criação de seus rebentos.
A defesa contra esse tipo de repressão leva à tentação de sim-
plesmente reverter as condições e declarar que todo o sexo não-
procriativo é bom. Na verdade, no entanto, esta atividade humana
pode ser construtiva ou destrutiva, moral ou imoral, como qualquer
outra. O sexo como forma de comunicação pode enviar mensagens
tão variadas quanto o prazer mútuo e a dominação, a vida e a mor-
te, o "erótico" e o "pornográfico".
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 291

O segundo tipo de problema não é proveniente daqueles que se


opõem à igualdade feminina em áreas que não as sexuais, quer usem
Deus ou a natureza como pretexto, e sim de homens (e, também, de
algumas mulheres) que se apresentam como aliados das liberdades
civis e do progresso. Suas objeções podem vir travestidas de uma
preocupação para com a privacidade, afirmando que os movimentos
contrários à pornografia invadem o comportamento sexual do indi-
víduo e a filosofia do "faça o que lhe der tesão". Pode ser uma preo-
cupação com preconceitos relacionados à classe social, com base no
fato que a pornografia nada mais é do que o "erotismo do trabalha-
dor". Às vezes o argumento é simplesmente que os próprios objetores
gostam de pornografia e que portanto ela deve ser aceitável. Fre-
qüentemente, no entanto, esta resistência se prende, ou se esconde,
a uma preocupação com a censura, a liberdade de imprensa e a Pri-
meira Emenda.
Em cada caso, estas objeções liberais deveriam ser mais fáceis de
combater do que aquelas provenientes da direita, com menor base
na realidade. É verdade que a independência e a autonomia de uma
mulher seriam incômodas à estrutura patriarcal. Assim, a direita deve
realmente estar preocupada. Mas não é verdade, no entanto, que a
pornografia deva ser uma preocupação particular. Se fosse apenas
uma questão de homens imprimindo literatura supremacista mas-
culina em seus próprios porões, para dar vazão às suas próprias ob-
sessões sexuais, as mulheres sentiriam dor e se retrairiam, mas não
haveria a raiva, o ultraje e o medo produzidos pelo confronto da
pregação do fascismo sexual em nossas bancas de jornal, nas telas de
cinema, nos aparelhos de televisão e nas ruas. E uma indústria de
muitos bilhões, que envolve política, pelo menos para decidir se, como
vem sendo o caso, os crimes cometidos na produção e venda da por-
nografia permanecerão impunes. As regras relacionadas à exposição
pública de material pornográfico não são cumpridas, a exploração
de crianças e a escravidão sexual à qual são submetidas para a sua
utilização na pornografia permanecem impunes. O uso de adoles-
centes, fugidos de casa, para os mesmos fins é ignorado pela polícia
e até mesmo a tortura e o assassinato de prostitutas para a excitação
sexual masculina é obscurecida por alguma idéia atenuante de que a
mulher foi quem pediu.
Em todas as outras áreas de privacidade, a limitação é uma trans-
292 GLORIA STEINEM

gressão dos direitos, das vidas e da segurança dos outros. Isto deve
servir também para a pornografia. Hoje em dia, ela se tornou isen-
ta, quase "abaixo da lei".
No que diz respeito ao preconceito de classe, simplesmente não
é correto dizer-se que a pornografia é o erotismo com um menor nível
de instrução. Das origens das palavras às formas que são normal-
mente usadas, torna-se claro que há uma diferença de contexto, e
não apenas de ordem artística e econômica. A pornografia envolve
dominação e muitas vezes a dor. O erotismo envolve a reciprocidade
e sempre o prazer. Qualquer homem sensível à condição feminina
saberá a diferença entre um e outro apenas de olhar uma fotografia
ou de assistir a um filme e colocar-se-á na pele da mulher. Talvez o
mais revelador de todo o argumento seja que ele é feito em nome da
classe trabalhadora pelos liberais pró-pornografia que fazem parte
das classes média e alta.
E claro que a idéia de que gostar de pornografia a torna aceitá-
vel é de fato uma difundida idéia masculina. A partir de Kinsey, as
pesquisas demonstram que os compradores de material pornográfi-
co são quase sempre homens e que a maioria dos homens se excita
com ele. Enquanto isto, a maioria das mulheres acha a pornografia
enfurecedora, humilhante e de maneira nenhuma excitante. A vera-
cidade de tal afirmação foi demonstrada apesar do fato de as mulhe-
res terem sido expostas a material de sexo explícito que possivel-
mente incluía o erotismo, pois Kinsey e os demais pesquisadores não
fizeram distinção alguma entre um e outro. Se os raros exemplos
que mostram o ato sexual como sendo prazeroso para ambas as par-
tes fossem completamente suprimidos, talvez a pornografia servisse
de terapia pró-aversão sexual para a maioria das mulheres. E no entanto,
os homens, e alguns psicólogos, insistem em chamar as mulheres de
pudicas, anti-sexo e rígidas por elas não se excitarem diante da ima-
gem de sua própria dominação. É muito pouco provável que estes
mesmos homens argumentassem que a literatura racista e anti-semita
é aceitável porque lhes dá prazer. O problema é que a degradação
de mulheres de todas as raças ainda é tida como normal. Um siste-
ma de dominação masculina ensina aos homens que a dominação
sobre as mulheres é normal. E é exatamente isto que faz a pornogra-
fia.
Não obstante, há algumas poucas mulheres bem-intencionadas
MEMÓRLAS DE TRANSGRESSÕES 293

que se excitam com a pornografia e que se enfurecem com aquelas


que não se excitam. Parte desta raiva é devido a uma má interpreta-
ção: as objeções feitas à pornografia não visam condenar mulheres
criadas para acreditar que sexo e dominação são sinônimos, pois to-
das nós internalizamos um certo grau de machismo embora nos es-
forcemos muito para nos libertarmos disso. A raiva de outras é re-
sultado de se subestimarem: o fato de se excitarem fantasiando uma
cena de estupro não significa querer ser estuprada. Como demons-
trou Robin Morgan, a característica mais distinta da fantasia é que
aquele que fantasia está sempre no controle da situação. (Tanto ho-
mens quanto mulheres fantasiam "violações" nas quais permanece-
mos passivos enquanto o outro realiza nossos desejos não expressa-
dos — mas continuam sendo os nossos desejos.) E um pouco da rai-
va, especialmente no caso de mulheres que se consideram feminis-
tas, vem de uma recusa em diferenciar entre o que pode ser verda-
deiro hoje e o que poderá ser desejável no futuro. Por exemplo, di-
gamos que uma mulher só se sinta atraída por homens mais altos,
mais gordos e mais velhos embora tenha consciência de que estas
restrições superficiais aos homens que ela escolhe amar ou com quem
escolhe dormir não existirão num futuro mais livre e menos estereo-
tipado. Ou, em casos mais sérios, ela pode se sentir atraída por um
homem cruel e distante porque ainda está tentando fazer com que
um pai cruel e distante a ame, embora compreenda que um futuro
de reciprocidade seja possível e preferível. Da mesma forma, algu-
mas lésbicas podem seguir o modelo masculino-feminino, muitas vezes
nosso único modelo de relacionamento íntimo, heterossexual ou não,
e ainda assim escolhê-lo livremente e igualmente. No entanto, con-
seguem enxergar estes velhos modelos com clareza e se esforçam para
ter um futuro sem eles. Não que as mulheres que se sintam atraídas
pela pornografia não possam ser feministas, mas a pornografia deve
ser reconhecida pelo seu impacto na segurança e na igualdade das
mulheres.
Finalmente, há o argumento de que as campanhas feministas
antipornografia vão contra a Primeira Emenda. Embora esta seja a
oposição mais respeitada e mais divulgada, é também a de menor
base na realidade. Grupos feministas não estão lutando pela censura
da pornografia através da proibição, da mesma forma que não estão
lutando para que a literatura nazista ou a propaganda racista da Ku
294 GLORIA STEINEM

Klux Klan não sejam publicadas. Para princípio de conversa, qual-


quer definição de pornografia dentro de uma sociedade machista (ou
a literatura racista em uma sociedade racista) pode muito bem ser
usada para castigar ainda mais aqueles que não têm poder naquela
sociedade. Expressões do homossexualismo masculino e feminino
podem ser consideradas mais "pornográficas" do que snuff movies e
cursos de educação sexual nas escolas mais obsceno do que servidão
sexual, da mesma forma que as afirmações contra euro-americanos
são passíveis de ser repreendidas com maior severidade do que afir-
mações que denigram a imagem dos afro-americanos. Além do mais,
a censura, em si, até mesmo em definições apropriadas, talvez só sirva
para empurrar a pornografia para o submundo e, como no caso do
tráfico de drogas, fazer com que se torne ainda mais rentável. O mais
importante de tudo é que a Primeira Emenda faz parte de uma de-
claração de direitos individuais contra a intervenção do governo, direitos
estes que o feminismo busca expandir e não contrair. Um exemplo é
a luta pelo direito de decidir se uma mulher terá filhos e quando os
terá. Quando protestamos contra a pornografia e instruímos os ou-
tros a este respeito, como estou fazendo agora, estamos fortalecen-
do a Primeira Emenda por estarmos lançando mão da mesma.
O único passo legal sugerido pelas feministas até hoje é que os
pornógrafos acusados de assassinato, violência física e seqüestro não
permaneçam impunes. Que não permaneçam impunes aqueles que
usam menores de idade. Que as leis e os códigos éticos em relação à
pornografia sejam obedecidos em vez de serem desrespeitados como
são, devido a subornos junto às autoridades competentes e aos
estratosféricos aluguéis pagos aos senhorios da pornografia. Que sejam
obedecidas as leis que exigem que material pornográfico não seja
exposto em locais públicos, onde não se pode desviar o olhar. E que
os regulamentos de direitos civis, como os propostos em Minneapolis,
que permitem processos civis contra os produtores de qualquer tipo
de pornografia (e de qualquer literatura que denigra e exprima ódio
por um grupo em particular) contanto que possa ser demonstrado
em juízo que os mesmos contribuíram para um crime.* Nenhuma

*Para um histórico desta lei controvertida e mal interpretada, aprovada pelo Conselho Municipal
de Minneapolis e vetada pelo prefeito — assim como o resumo de uma pesquisa realizada sobre a
pornografia —, ver Franklin Mark Osanka e Sara Lee Johann, Sourcebook on Pornograpby [Livro-
fonte sobre a pornografia], (Lexington, Massachusetts: Lexington Books, 1989).
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 295

destas medidas implica a proibição da publicação de tal material,


não implica censura. A maioria destas medidas apenas pede que os
responsáveis pela produção pornográfica não mais fiquem imunes
perante a lei, por crimes cometidos em sua produção e distribuição.
Talvez o motivo da controvérsia sobre a Primeira Emenda tenha
pouca substância. Talvez não passe de uma cortina de fumaça. Da
mesma forma que as primeiras campanhas feministas contra o estu-
pro foram condenadas por alguns integrantes dos movimentos civis
como uma atividade que acabaria por colocar apenas homens de cor
e pobres atrás das grades, ou em perpetuar a pena de morte, pena
prevista por estupro em alguns estados à época, a campanha anti-
pornografia encontra hoje a mesma resistência. Quando as vítimas
de estupro começaram a se expor, no entanto, o público veio a saber
que psicólogos brancos, educadores e outros profissionais eram tão
capazes de ser estupradores quanto homens pobres ou de cor. Além
do mais, a mudança da definição patriarcal de estupro, criando graus
diferenciados de violência sexual, fez com que a lei ficasse mais rea-
lista e, assim, mais fácil de ser cumprida. A pena de morte por estu-
pro deixou de existir e a lei passou a proteger também os homens
contra crimes sexuais.
Embora não existam estatísticas sobre os compradores de por-
nografia, aqueles que servem a esta clientela — os balconistas, os
donos de cinemas especializados, os vendedores de fitas de vídeo, os
serviços de remessa postal e coisas do gênero — observam com fre-
qüência que são pessoas distintas, profissionalmente bem situadas,
bem vestidas, que carregam maletas e têm a pele branca e códigos
postais em locais habitados pela classe média. Por exemplo, a últi-
ma locação de um snuffmovie que mostrava um assassinato de verda-
de foi feita por um dos sócios de uma respeitada firma de advocacia
de Nova York para a sessão mensal de filmes .pornográficos por ele
organizada. Este evento mensal incluía a presença de seu círculo de
amigos, integrado por outros advogados e por juizes. Um dos pre-
sentes afirmou que muitos pareciam "envergonhados" e que "não
sabiam o que dizer". Mas, no entanto, nenhum dos presentes foi capaz
de objetar e muito menos de denunciar a fita como prova de assas-
sinato para a polícia. Embora grande parte da preocupação com a
censura seja sincera — o resultado de falsos relatórios que afirmam
que as campanhas antipornografia feministas na verdade pediam
296 GLORIA STEINEM

censura ou a confusão de tais campanhas com grupos de direita que


definem a pornografia de forma errônea e que querem a sua censura
—, muito disto parece querer encobrir a preservação do status quo
pornográfico por uma aliança da direita com a esquerda que depen-
de desta gigantesca indústria, quer seja psicológica ou financeira-
mente.
Na verdade, os argumentos contra a pornografia são tão suspei-
tos quanto as distinções entre "virgem e puta", uma escolha que
precisava ser feita pelas mulheres no passado. A direita diz que tudo
aquilo que não for virginal ou maternal é pornográfico e assim pro-
move campanhas contra a sexualidade e a nudez em geral. A esquerda
diz que todo sexo é bom e promove campanhas para protegê-lo. As
mulheres que se sentem ameaçadas ao se verem na posição de víti-
ma e os homens que se sentem humilhados ao se verem na posição
de algoz, têm uma longa tarefa à sua frente. Na verdade, a porno-
grafia existirá enquanto os meninos forem criados para acreditar que
devem controlar ou conquistar mulheres como prova de sua "mas-
culinidade", e enquanto a sociedade recompensar homens que acre-
ditam que o seu sucesso, e até mesmo o seu funcionamento — sexual
ou não — depende da subserviência feminina.
Mas pelo menos agora temos palavras para exprimir nosso ul-
traje e para separar sexo de agressão. Temos coragem de protestar
contra a pornografia publicamente, de retirar revistas e filmes do
gênero de nossas casas, de boicotar seus fornecedores e até mesmo
de repreender amigos e parentes da mesma forma que faríamos se
estivessem apoiando e se deleitando com literatura nazista ou com
os ensinamentos do Klan.
Mas até finalmente conseguirmos abolir a dominação masculi-
na que equacionou a sexualidade à violência e à agressão, haverá mais
pornografia e menos erotismo em nossas vidas. Haverá um pouco
de assassinato em nossas camas e muito pouco amor.

— 1977, 1978 e 1993'


Marilyn Monroe: A Mulher que Morreu
Cedo Demais

Matinê de sábado—não interessa quão mal realizados ou inacreditáveis


os enredos, eles representavam uma fuga do bairro em que eu vivia
e de todas as minhas dores adolescentes. Seriados que jamais termi-
navam, Doris Day—que nunca voltava atrás —, programas de turismo
pouco sofisticados, filmes de ficção científica nos quais se podia ver
o zíper nas fantasias dos monstros: eu os adorava todos, eu acredita-
va em tudo o que via e jamais sonhava em deixar o cinema antes da
tela estar completamente vazia.
Mas eu deixei Marilyn Monroe na tela uma vez. Lembro-me dela,
lá, enorme como uma colossal boneca, afetada, sussurrante e, sim-
plesmente, totalmente vulnerável. Olhando-a, eu senti raiva, e até
mesmo humilhação, embora não tenha compreendido por quê.
Afinal de contas, Jane Russell estava no mesmo filme (uma ver-
são de mau gosto de Gentlemen Prefer Blondes), portanto não se trata-
va apenas da vulnerabilidade que as duas mulheres bem avantaja-
das pareciam compartilhar. (Se as espectadoras preferem atrizes menores
e menos exuberantes — como as Audrey Hepburns do mundo —,
não é porque invejamos os dotes físicos das outras, como acreditam
os homens. É simplesmente porque preferimos nos identificar com
mulheres com as quais não precisemos nos preocupar, mulheres que
não pareçam estar em perigo constante.) Comparada a Marilyn, Jane
Russell parecia ter seu corpo sob controle, até mesmo durante as
situações mais absurdas exibidas neste filme.
Talvez fosse a insegurança, visível nos olhos daquela enorme,
louríssima criança-mulher. Era a terrível necessidade de aprovação
que a diferenciava de Jane Russell. Que ousadia a dela, expor a ca-
rência que tantas mulheres sentem mas tentam de todas as formas
ocultar! Que ousadia a dela, uma estrela de cinema, demonstrar uma
insegurança daquelas!
300 GLORIA STEINEM

Assim, eu não gostava dela e sempre evitava assistir aos seus fil-
mes. Se fizessem piadas a seu respeito, se ridicularizassem seu nome
e sua imagem, logo me juntava aos insultos. Eu contribuía nas risa-
das, no ridículo, nos insultos, provando assim ser nada como ela. Nada
mesmo.
Deixei meu bairro anos depois, assim como ela escapara de uma
vida tão pior, sublinhada pela falta de amor, por abusos sofridos na
infância e por lares adotivos. Não escapei, como ela, através de calen-
dários com fotos nuas e pequenas participações em filmes. (Mesmo
que existissem tais possibilidades para meninas bonitinhas em Toledo,
Óhio, eu jamais teria tido coragem de demonstrar tal vulnerabilidade.)
Eu era americana o bastante para sonhar em ingressar no show business.
Os garotos do meu bairro sonhavam em escapar de uma vida de tra-
balho nas fábricas através dos esportes. As meninas, as que imagina-
vam algo além de um bom casamento, sempre sonhavam em entrar
para o mundo do show business. Mas depois de fazer parte do circuito
de show business de Toledo, como bailarina, durante o segundo grau,
até eu fui capaz de perceber que havia poucas esperanças de que eu
seguisse tal carreira. No final, foi a sorte, uma mãe que sempre me
apoiou e uma certa facilidade com as palavras que me libertou. Esta
mesma facilidade fez com que eu demonstrasse uma competência maior
do que na verdade tinha nos exames de admissão para a faculdade,
para os quais estava completamente despreparada.
Mas as meninas que passam de raspão em exames de admissão
para as faculdades não são mais seguras do que aquelas que, como
Marilyn, apresentam-se diante de jurados de concursos de beleza.
Na próxima vez que a vi, eu era uma respeitável aluna, assistindo
aos celebrados atores do Actors Studio encenarem duas peças de te-
atro de altíssimo nível (naquele dia, apresentaram Arthur Miller e
Eugene O'Neill). Ela também era aluna, pupila de Lee Strasberg,
líder do Actors Studio e guru americano do método Stanilavski, mas
o status de estrela de cinema e de símbolo sexual fazia com que ela
não fosse levada a sério, até mesmo naquela época. Deixavam que
ela assistisse, mas não deixavam que encenasse com os colegas.
Então nós duas ficávamos ali, sentadas, ambas pasmas, creio eu,
na presença de gente do teatro como Ben Gazarra e Rip Tom, ambas
inseguras diante do mundo masculino da Alta Cultura, ambas que-
rendo sumir.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 301

Lembro de ter achado que Strasberg e seus atores sentiam imenso


prazer em ignorar esta poderosa estrela de cinema que viera até eles
para aprender. O modo com que a cumprimentavam era de uma
informalidade completamente estudada, os cochichos a respeito de
sua presença me pareciam um tanto inseguros e condescendentes
demais. Embora ela permanecesse no fundo da sala, com os cabelos
louros escondidos num lenço negro e o corpo num imenso suéter da
mesma cor e calças compridas, ela aos poucos foi se tornando uma
verdadeira presença, talvez porque os outros se esforçassem tanto
para não encarar, para ignorá-la, para demonstrarem-se impassíveis.
Ao sairmos daquela sala miserável, em fila indiana, ao final da
apresentação, Marilyn ouvia, atenta ao post-mortem profissional de
gente como Ben Gazarra e outros que caminhavam diante de nós
enquanto ela passava os dedos nervosamente num rosto que era
luminoso até mesmo sem maquiagem; parecia querer se esconder,
parecia querer se desculpar por estar ali. E de repente fiquei feliz
por ela não ter participado, por não ter se sujeitado às críticas des-
te grupo de urubus. (Talvez a minha tenha sido uma reação de lei-
ga, mas o fato é que eu não me sentira à vontade vendo Strasberg
encorajar uma cena de amor, muito íntima, entre um ator e uma
atriz para em seguida estraçalhá-los com humilhante autoridade.)
Invocando toda a confiança que me foi possível, eu perguntei àquela
mulher loura, que caminhava à minha frente, se ela podia se ver
atuando diante deste grupo.
— De modo algum — Marilyn disse, numa voz infantil que
era bem menos sussurrante do que no cinema. — Admiro este pes-
soal demais. Simplesmente não sou boa o bastante para eles. — Após
alguns segundos de silêncio, ela acrescentou: —Lee Strasberg é um
gênio, sabe? Minha intenção é fazer tudo o que ele me mandar fa-
zer.
Eu achava seu casamento com Arthur Miller perfeitamente com-
preensível, acredito que outras mulheres achavam o mesmo. Mes-
mo aquelas que se sentiram ameaçadas, quando Miller dispensou
uma mulher de meia-idade para casar-se com uma mulher mais jo-
vem e mais giamourosa, compreendiam. Se você não consegue que
seu trabalho seja levado a sério, se possui um complexo de inferiori-
dade intelectual e emocional, então case-se com um homem que é
objeto da seriedade que lhe foi negada. É uma opção feminina tradi-
302 GLORIA STEINEM

cional — bem mais aceitável do que tentar atingir uma identidade


sozinha.
E claro que Marilyn não passou a ser encarada com mais serie-
dade e não passou a ser vista como uma intelectual. Mulheres não
são encaradas com seriedade por associação sexual, da mesma forma
que não o são por seu trabalho árduo. (A não ser que o homem sério
morra e nos condenemos a ser as guardiãs da chama para sempre.
Como já disse Margaret Mead, as viúvas são praticamente as únicas
mulheres honradas com a autoridade.) Até mesmo a valente recusa
de Marilyn em se deixar intimidar por ameaças de que jamais volta-
ria a trabalhar no cinema caso se casasse com Miller — que era cha-
mado de "subversivo" na época, sendo inclusive convocado a teste-
munhar diante da Comissão de Atividades Não-Americanas — foi
encarada como um ato de bravura menor do que a recusa de Miller
em se apresentar diante da Comissão. Na verdade, o ato de bravura
de Marilyn quase não foi noticiado.
Talvez nem ela levasse sua própria bravura a sério. Ela poderia
estar abrindo mão de seu ganha-pão, de um trabalho que significa-
va tanto para ela, mas ela teria aberto mão disto tudo para se casar.
Como a Sra. Arthur Miller, ela se retirou para uma fazenda de
Connecticut e tentou limitar sua vida aos hábitos solitários do mari-
do, ao trabalho dele, aos amigos dele, aos dois filhos dele. Ela só deixou
sua aposentadoria auto-imposta para atuar no filme The Misfits, es-
crito por seu marido, quando ambos precisaram de dinheiro.
Por outro lado, a interpretação do público foi um tanto diferen-
te. Ela não passava de uma atriz egocêntrica que forçara um dos maiores
dramaturgos americanos a escrever um roteiro sob medida para seus
limitados dotes de atriz. Era isto que noticiavam as colunas de fofo-
ca nos Estados Unidos e na Europa. Mas as atitudes da própria Marilyn
desmentiam tais fofocas. Em seus dois casamentos anteriores, com o
operário de uma fábrica de aviões, aos dezesseis anos e mais tarde
com Joe DiMaggio, um grande jogador de beisebol, ela rompera com
o mundo e colocara todas as suas energias em ser uma boa dona de
casa. Quando isto não funcionou, ela se culpou, e não o papel em si,
acrescentando mais um fracasso à sua lista de inseguranças. "Eu te-
nho fantasias demais para ser dona de casa", ela disse a uma amiga,
com tristeza. E finalmente, a um entrevistador, ela disse: "E, eu acho
que eu. sou uma fantasia."
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 303

The Misfits pareceu revelar algumas das facetas da verdadeira


Marilyn: sinceridade, inocência, uma fé imensa que sobreviveu a
inúmeras experiências ruins, uma grande gentileza em relação a outras
mulheres, um grande respeito pela vida das plantas e dos animais.
Pela primeira vez, ela não apareceu apenas como símbolo sexual e
vítima e eu não senti vergonha de assisti-la para poder constatar que
ela sabia atuar. Comecei a ver seus filmes mais antigos, aqueles pou-
cos nos quais, ao contrário de Gentlemen Prefer Blondes, ela não foi
contratada para atuar como transformista.
Para mim, assim como para tantas pessoas, ela era uma presen-
ça no mundo, uma força vital.
Através dos anos, fui descobrindo outras dicas de seu verdadeiro
caráter. Quando Ella Fitzgerald, uma artista negra e talvez a maior
cantora de música popular, não fora aceita para cantar numa impor-
tante casa noturna de Los Angeles, nos anos cinqüenta, Marilyn te-
lefonou para o proprietário e prometeu sentar-se numa mesa da pri-
meira fila todas as noites se ele deixasse Ella cantar. O proprietário
contratou Ella, Marilyn manteve-se fiel à sua promessa, a imprensa
foi à loucura e, como Ella recordou, grata: "Depois disso, eu nunca
mais precisei cantar numa casa pequena."
Ainda mais comovente foi a última entrevista concedida por
Marilyn. Ela implorou ao repórter que a finalizasse com: "O que
realmente quero dizer é que o mundo precisa encontrar uma maior
afinidade entre os seus povos. Todos: estrelas de cinema, trabalha-
dores, negros, judeus, árabes. Todos nós somos irmãos... Por favor,
não me transforme numa piada. Termine esta entrevista com aquilo
no qual eu realmente acredito."
E, então, ela se foi. Eu me lembro de quando me contaram. Eu
estava em meio a uma caótica reunião estudantil, na Europa, quan-
do me disseram que ela estava morta. Eu me lembro do momento
exato, naquele 5 de outubro de 1962. Lembro das pessoas à minha
volta, lembro da sala onde eu estava. Depois disso descobri que muitas
pessoas se lembram, como eu, daquele momento. É um fenômeno
normalmente reservado para a morte de parentes e de presidentes.
Ela era uma atriz, uma pessoa que não afetaria o destino de nin-
guém, e no entanto a sua energia e a sua incrível sinceridade peran-
te a vida a ligou tanto a estranhos. Dias após a descoberta de seu
corpo, oito mulheres jovens e lindas tiraram a própria vida em inci-
304 GLORIA STEINEM

dentes claramente parecidos com o de Marilyn. Algumas delas dei-


xaram bilhetes, de forma a deixar a ligação bem clara.
Dois anos depois, a peça autobiográfica de Arthur Miller, Afim
the Fali, trouxe Marilyn de volta à vida. Mas de alguma forma esta
Maggie não parecia a mesma pessoa. Ela possuía a insegurança pa-
tética de Marilyn, a mesma necessidade de usar sua. persona sexual
para ser reconhecida e para se sentir viva. Mas, talvez naturalmente,
a peça fosse sobre o sofrimento de Miller, não o de Marilyn. Ele pa-
receu incluir na peça alguns de seus próprios atos destrutivos. (Ele
mantivera um diário a respeito de sua esposa, a respeito da estrela
de cinema, por exemplo. A descoberta do diário foi, emocionalmen-
te, um duro golpe para Marilyn e o começo do fim do casamento.
Fez com que ela se perguntasse se seu marido a estava usando, como
tantos homens a usaram, só que de uma forma mais intelectual.) Não
obstante, a mensagem da peça era basicamente a visão de Miller de
suas tentativas de apoiar uma criatura com infindáveis inseguran-
ças; uma pessoa condenada, muito além do apoio que ele podia lhe
proporcionar, por uma misteriosa falta de confiança.
Para as mulheres, esta falta de confiança era menos misteriosa.
Diana Trilling, que jamais a conhecera pessoalmente, escreveu um
artigo logo após a sua morte que, segundo alguns dos amigos de
Marilyn, era um retrato mais fiel do que o de Miller. Ela falava do
"escárnio público do desejo de Marilyn em se instruir"; da consciên-
cia sexual que veio de fora para dentro, da reação masculina, "dei-
xando nela um enorme vazio quando uma verdadeira sexualidade
teria lhe dado uma noção de si própria, com coerência, com conteú-
do". Ela questionou se Marilyn realmente quisera morrer ou se ape-
nas desejara dormir, perder a consciência, naquela noite de sábado.
Trilling também registrou uma identificação com a solidão de
Marilyn, sentida por tantos e tantos desconhecidos ("especialmente
em mulheres protetoras, às quais aquela vulnerabilidade toda atin-
gia em cheio"). Tanto é verdade que nós fantasiávamos uma manei-
ra de salvá-la, se ao menos tivéssemos estado presentes. "Mas nós
éramos os amigos", escreveu Trilling, "dos quais ela jamais soube."
"Ela era uma mulher incomum, um pouco à frente de seu tem-
po", disse Ella Fitzgerald. "E ela nem sequer sabia disso."
Agora que a visão das mulheres em relação à própria imagem
está mudando, pensamos mais uma vez na vida de Marilyn Monroe
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 305

Será que esta confiança recém-adquirida pelas mulheres, com ou sem


a aprovação masculina, teria ajudado esta talentosa mulher de 36
anos de idade a se firmar sozinha? A resistir à insegurança e ao es-
cárnio? A deixar de depender de seus atrativos sexuais como a única
forma de se sentir viva — e assim enfrentar o envelhecimento cora-
josamente? Como a habilidade de gerar um filho lhe foi negada, será
que estas novas idéias a teriam ajudado a descobrir que ser mulher
inclui muito mais? Será que ela teria desafiado os analistas freudianos
aos quais recorria em momentos de sofrimento?
Acima de tudo, nos perguntamos se o apoio e a amizade de ou-
tras mulheres a teriam ajudado. Suas primeiras experiências com o
sexo masculino não foram boas. Ela era filha ilegítima de um ho-
mem que se recusou a contribuir até mesmo para o seu enxoval de
bebê; as recordações mais antigas da mãe de Marilyn de seu próprio
pai, avô de Marilyn, era dele atirando um gatinho numa lareira du-
rante um acesso de fúria. A própria Marilyn disse ter sido atacada
sexualmente por um pai adotivo quando ainda era criança e que se
casou aos dezesseis anos porque outra família adotiva já não podia
criá-la. E no entanto ela se via forçada a depender da boa vontade e
do reconhecimento masculinos para se sentir segura. Dependia de-
les até mesmo para ser interpretada através da palavra, por medo de
que a competição sexual fizesse com que entrevistadoras mulheres a
odiassem. Mesmo se quisessem, as mulheres presentes em sua vida
não tinham o poder de ajudá-la. Em filmes, em fotos e livros, depois
de sua morte e mesmo antes, ela era sempre fora vista por olhos
masculinos.
Chegamos tarde demais. Não podemos saber se poderíamos ter
ajudado Norma Jean Baker, ou a Marilyn Monroe na qual se trans-
formou. Mas não é tarde demais para fazer o que ela nos pediu. Fi-
nalmente, podemos levá-la a sério.

— 1972

Eu gostaria de agradecer à co-fundadora e editora da revista Ms., Harriet


Lyons, que deu a idéia para este artigo.
Um Vôo com Patrícia Nixon

Em 1968, durante os dez dias passados no avião da campanha Nixon, como


repórter da revista New York (ver artigo intitulado "Em Campanha"), pedi
uma entrevista com Richard Nixon e me deram Patrícia Nixon em seu lugar.
O artigo resultante foi um longo apanhado sobre Nixon e sua equipe, porém
este trecho causou maior impacto do que todo o resto. Fico triste que o tom impes-
soal deste artigo não me tenha permitido dizer que passei a gostar bem mais de
Patricia Nixon após esta entrevista. Eu achei ter compreendido seu ressenti-
mento e me compadeci dela. Porém, meu mais profundo pesar encontra-se no
fato de ter tentado formar um elo pessoal e cordial com ela em vão.

De Denver, de volta aos nossos três jatos, para comparecer a um comício


de adolescentes (alunos de escolas particulares e paroquiais, em sua
maioria) em St. Louis. E depois mais um vôo para Louisville, Kentucky,
para viajar no último grande barco fluvial do Mississippi. O primei-
ro trecho deste vôo resultou numa entrevista com Pat Nixon.
Ela trabalhara durante a faculdade, tentara ser atriz e finalmente
tornara-se professora de datilografia e estenografia de um pequeno colégio
da Califórnia; casou-se com seu marido após um namoro de dois anos
— ao que parece, um tanto relutante —, aos 28 anos de idade (ele a
pedira em casamento na primeira vez em que saíram juntos); e fora
apresentada por ele, em seu famoso discurso de Checkers, como "uma
grande estenógrafa". Ela compartilhava de todas as calúnias e de to-
dos os elogios sem jamais parecer, para o público, ser um indivíduo.
Eu estava ansiosa por conhecê-la, mas todos os outros que já a haviam
entrevistado disseram que ela era um verdadeiro sonífero.
Ela estava sentada na frente do avião, com as mãos sardentas
perfeitamente postas, os tornozelos perfeitamente cruzados e um sorriso
público, enquanto um garboso assessor presidencial me sentava a
seu lado. Eu não queria fazer as mesmas perguntas que ela já res-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 307

pondera com tanta indiferença que eram, tantas vezes, a respeito de


seu marido ("Eu só acho que ele daria um excelente presidente") ou
("Pergunte a Dick a este respeito"), e sim fazer perguntas que dis-
sessem respeito a ela.
Ao explicar a respeito das dúvidas que eu sentia em escrever artigos
usando outros artigos como base, perguntei a ela se havia algum erro
que persistia em aparecer nos jornais que eu devesse tomar cuidado
para não repetir. "Não, não", ela disse, alisando a saia. "Vocês, se-
nhoras da imprensa, fazem um bom trabalho. Acho que os artigos
têm sido muito bons." Ela queria dizer com isso que gostava de to-
dos os artigos escritos até então? "Bem, na verdade não tenho tido
tempo de ler muita coisa." (Outras "senhoras da imprensa" haviam
me contado que ela lia tudo e que ficara incomodada com um artigo
de Seattle que a retratou como um ser catatônico, que nada fazia
além de sorrir.) Mas ela gostava dos artigos de campanhas passadas?
"Sim, é claro, não tenho objeção alguma quanto ao que já foi escri-
to. Eu sei que vocês fazem o que podem e a grande maioria é sempre
muito amável." Passamos mais algum tempo falando sobre isso. Então,
ela era a única pessoa que eu jamais conhecera, incluindo eu mesma,
que gostava de tudo que já fora escrito a seu respeito. Detectei um
breve lampejo de irritação nos olhos castanho-esverdeados — o pri-
meiro sinal de vida.
Mas depois de um interrogatório muito longo, descobri apenas
o seguinte: Não, ela nunca ficava enfadada durante as campanhas,
ela jamais levava livros nas viagens, não tinha necessidade de outras
distrações. ("Os comícios sempre me interessam, são sempre dife-
rentes. Alguns são ao ar livre, outros não. As vezes apenas os idosos
comparecem, outras vezes só os jovens, como hoje".) Haveria algo
de especial que ela gostaria de realizar com a influência que teria
como Primeira Dama. ("Acho que uma pessoa precisa apenas ser ela
mesma.") Mas estava feliz por estar recebendo "tanto treinamento
em primeira mão" para ser anfitriã de tantas futuras solenidades. Seu
único outro interesse era na educação. ("Como professora eu concor-
do com o programa de educação de Dick em 100%. Eu gostaria de
me dedicar a um programa que oferecesse oportunidades iguais, para
todos, nas áreas educacional e profissional. Eu não gosto deste siste-
ma atual, que leva tantos a desistir de estudar.") Ela escrevia um diário
sobre sua vida como a Sra. Nixon para as suas filhas, mas jamais usava
308 GLORIA STEINEM

anedotas, é claro, porque assim teria de escrever os nomes de pes-


soas reais. Ela gostava de peças de teatro, especialmente My FairLady,
e vira Hello Dolly! três vezes: duas vezes com convidados e uma por-
que "uma amiga da família", Ginger Rogers, estava no elenco. ("Eu
acho que já há muita seriedade no mundo e não precisamos vê-la
também no teatro.") Ela gostava de romances históricos, especial-
mente das vidas da rainha Vitória e de Mary Todd Lincoln, gostava
também dos romances de Thomas Wolfe, mas raramente tinha tempo
para ler "por divertimento" ou para comparecer a desfiles de moda.
("Eu sou um tanto desprendida com estas coisas. Eu me ocupo, sim-
plesmente, de nossos tantos amigos. Em vez de passar horas almo-
çando, gosto de levá-los a um parque, a um museu. Acho que nós
todos achamos isto mais interessante do que conversar apenas.") Não
há conflito de gerações algum em sua família. ("Ora, outro dia mes-
mo Tricia e Julie decidiram não ir a uma de suas festas. Então eu
perguntei: 'Vocês não vão sair?' E elas responderam: 'De modo al-
gum, preferimos mil vezes ficar em casa e jantar com você e papai'.")
A figura histórica feminina que ela mais admira e gostaria de ser é a
Sra. Eisenhower. Por quê? "Porque ela significava tanto para os jo-
vens.")
Cada uma destas respostas exigira diversas perguntas. Ela não
me pareceu satisfeita de estar sendo inquirida daquela forma, para a
obtenção de informações subjetivas tais como aquilo com que ela se
identificava, além de suas filhas e seu marido. (Esta ela não respon-
deu de forma alguma.) E eu não fiquei nada contente com as respos-
tas insossas que ia recebendo. A Sra. Eisenhower foi a última gota.
Eu estava na faculdade durante o governo de Eisenhower e não
acho que a Sra. Eisenhower tivesse alguma influência especial sobre
os jovens. "Não?" Fez-se uma longa pausa. "Ora, mas eu acho que
teve", ela disse, finalmente. "Os jovens a admiravam pela valentia
demonstrada durante todos os anos em que o marido passou longe,
na guerra." Uma pausa ainda mais longa. Nós nos olhamos, cansa-
das e desconfiadas, enquanto eu procurava um assunto novo.
E então as comportas se abriram. Não de forma descontrolada,
mas numa voz baixa e cheia de ressentimento. Como uma longa
acusação, nas quais as palavras simplesmente fluíam.
— Eu nunca tive tempo de pensar em coisas como estas: em
quem eu gostaria de ter sido, quem eu admiro, ou mesmo para ter
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 309

idéias. Nunca tive tempo de sonhar em ser outra pessoa. Precisava


trabalhar. Meus pais morreram quando eu era adolescente e tive de
trabalhar enquanto fazia faculdade. Levei um grupo de pessoas até
Nova York, de carro, para conseguir fazer um treinamento como técnica
de raio-X, para assim poder pagar a faculdade. Trabalhei num ban-
co enquanto Dick servia o exército. Eu poderia ter ficado sem fazer
coisa alguma durante aquele tempo, mas trabalhei no banco e con-
versei com as pessoas e fui aprendendo todos os seus hábitos engra-
çados. Hoje tenho amigos em todos os países do mundo. Não me
recostei na cadeira para pensar em mim mesma, nas minhas idéias
ou no que gostaria de fazer. Nada disso, continuei interessada em
gente. Eu continuei a trabalhar. Aqui mesmo, no avião, carrego esta
pasta comigo e cada vez que me sento, escrevo bilhetes de agradeci-
mento. Todo mundo gosta de receber um bilhetinho pessoal. Não
tenho tempo para me preocupar com quem admiro ou com quem
me identifico. Minha vida nunca foi fácil. Não foi nada como a de
todos vocês... todas essas pessoas que sempre receberam tudo de
bandeja."
O assessor fazia sinais para mim, em vão, já há algum tempo.
Havíamos aterrissado, parado na rampa e eu estava interferindo na
rotina toda. A Sra. Nixon mexeu no antiquado anel de diamantes
por um momento e, em seguida, com seu sorriso público firmemen-
te colado aos lábios, deu um tapinha em meu braço. "Espero vê-la
em breve; de verdade. Agora adeus, cuide-se", ela disse, frase-pa-
drão em cima de frase-padrão. "Gostei muito de nosso bate-papo.
Cuide-se."
Pela primeira vez eu consegui enxergar a ligação entre a Sra. Nixon
e o marido: eram duas pessoas decididas e profundamente desconfiadas
de que "aqueles que recebiam tudo de bandeja" — nas palavras dela,
"garotos glamourosos", e "garotinhos bem relacionados", nas pala-
vras dele — conseguiriam, de alguma forma e com grande destreza,
passar à frente deles, apesar de todo o trabalho que tiveram. Como
penetras numa festa, eles se apoiavam num mundo excessivamente
crítico. Deve ter sido um inferno todo especial para eles, uma candi-
datura tendo os Kennedys como oponentes, como se todas as suas
desconfianças se provassem reais.

— 1968
A Verdadeira Linda Lovelace

Lembra-se de Garganta profunda} Aquele filme que transformou o


pornô em chique: foi o primeiro filme para homens que saiu do cir-
cuito pornô para atingir uma platéia muito maior. Embora tenha
sido feito em 1972 como filme de segunda que custou apenas qua-
renta mil dólares e levou uns poucos dias para ser realizado, ele ter-
minou a década com uma renda de aproximadamente seiscentos
milhões de dólares de bilheteria. Esta cifra inclui o filme em si, as
seqüências, as fitas cassete, as camisetas, os adesivos de carro e os
acessórios sexuais. Na verdade, o filme foi brindado pela mídia com
uma aprovação divertida e passou a fazer parte da nossa linguagem
e de nossa consciência, quer tenhamos visto o filme ou não. Dos
seriíssimos jornalistas do caso Watergate, que trabalhavam para o
Washington Post e que imortalizaram o nome "Garganta Profunda"
ao dá-lo ao seu principal informante, aos vulgares pornocratas da
revista Screw — o que, numa escala de machismo, deve ser algo como
a distância entre A e B —, parceiros improváveis, na mídia, trans-
formaram este filme de mau gosto numa piada suja universal e numa
central de lucros internacional.
No coração desta piada suja e altamente rentável encontrava-se
Linda Lovelace (nascida Linda Boreman), cujo rosto inocente e cheio
de frescor é o grande responsável pelo sucesso do filme. Ela oferecia
aos espectadores a excitante ilusão de que até mesmo a vizinha da
casa ao lado talvez adorasse ser objeto de atos sexuais à moda pornô.
Usar Linda Lovelace no filme foi idéia de Gerry Damiano, dire-
tor e roteirista de Garganta profunda. "A coisa mais incrível a respei-
to de Linda, a coisa realmente incrível", ela lembra de tê-lo dizer a
Lou Peraino, que financiou o filme, "é que ela ainda tem uma apa-
rência doce e inocente." Mesmo assim, Peraino (que mais tarde foi
preso pelo FBI por atividades junto ao crime organizado da indús-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 311

tria ilegal de filmes) reclamou que Linda não era a "loura peituda"
que ele imaginara para o filme. Ele continuou a reclamar até mesmo
depois que a mandaram servi-lo sexualmente.
Na verdade, foi ao assistir Linda atuar publicamente como pros-
tituta que Damiano teve a idéia inicial de Garganta profunda. Ele
compareceu a uma festa na qual os homens faziam fila para serem
beneficiários de um truque de engolidora de espadas sexuais que
Linda aprendera com o marido e guardião, Chuck Traynor. Rela-
xando os músculos da garganta, ela aprendera a receber o mergu-
lho profundo de um pênis sem engasgar; para ela, uma desespera-
da técnica de sobrevivência, mas para os clientes uma constante
fonte de divertimento e novidade. E assim inspirado com tanta
criatividade, Damiano imaginou o roteiro para um filme, algo quase
tão perfeito quanto a completa eliminação do clitóris como fonte
de prazer por Freud, inventor do orgasmo vaginal. Damiano deci-
diu contar a história de uma mulher cujo clitóris se encontrava na
garganta e que, por isso, estava sempre ávida por fazer sexo oral
com homens.
Embora esta ficção fisiológica sobre uma mulher fosse bem me-
nos ambiciosa do que a ficção de Freud sobre todas as mulheres, este
filme pornô teve um impacto audiovisual brutal. Tratou-se de um
instrumento educacional que a teoria freudiana não teve.
Literalmente milhões de mulheres foram levadas aos cinemas por
seus namorados ou maridos para ver Garganta profunda (sem contat
as prostitutas, levadas pelos cafetões) para aprender o que uma mulher
poderia fazer para satisfazer um homem se ela realmente quisesse. Este
valor instrutivo parece ter sido o principal motivo da popularidade
do filme para sua projeção além do universo normal de uma platéia
exclusivamente masculina.
E claro que se a espectadora fosse uma verdadeira desmancha-
prazeres, ela poderia se identificar com a mulher exibida na tela —
sentir sua humilhação, o perigo, a dor —, mas o rosto sorridente e
feliz de Linda Lovelace servia também para acabar com a empatia.
Ela está ali porque quer. Quem a está forçando? Olha só como ela sorri. Está
vendo só como mulheres de verdade gostam disso?
Oito anos depois, Linda deu uma resposta, humilhante e dolo-
rosa, para a pergunta em Ordeal [Provação], sua autobiografia.
Não obstante, é importante compreender o quão difícil deve ter
312 GLORIA STEINEM

sido, naquela época (e provavelmente ainda é, no caso das outras


vítimas), conhecer a verdade.
No auge da popularidade de Garganta profunda, por exemplo,
Nora Ephron escreveu um artigo sobre ter ido assisti-lo. Ela estava
decidida a não reagir como "estas feministas enlouquecidas que saem
por aí criando caso, fazendo críticas políticas sobre filmes não políti-
cos". Não obstante, ela ficou apavorada diante da cena em que um
consolo oco, de vidro, é inserido na vagina de Linda Lovelace e em
seguida enchido com Coca-Cola — bebida através de um canudo
cirúrgico. ("Eu não conseguia parar de pensar", ela confessou, "no
que aconteceria se o vidro quebrasse.") Sentindo raiva e humilha-
ção, seus amigos homens lhe disseram que ela estava tendo uma reação
excessiva e que a cena da Coca Cola era "hilariante". Como redato-
ra, conseguiu uma entrevista telefônica com Linda Lovelace. "Eu não
tenho inibição alguma em relação ao sexo. Eu só espero que todo
mundo que for ver o filme... perca um pouco de suas inibições."
E assim Nora escreveu um artigo que supunha que Linda fosse
rainha pornô por vontade própria e que vivesse feliz, ganhando
"US$250 por semana... e participação na bilheteria". Ela descreveu
sua reação como sendo de uma "feminista puritana que perdera o
senso de humor ao assistir um filminho de sacanagem".
O que ela não sabia (e como poderia qualquer entrevistador sa-
ber?) era que Linda, mais tarde, incluiria esta resposta na lista das
muitas ditadas por Chuck Traynor para ocasiões jornalísticas como
aquela. Ele a castigava se mostrasse qualquer emoção inaceitável
(quando, por exemplo, ela chorou ao ser currada por cinco homens,
num quarto de hotel, fazendo com que um dos clientes se recusasse
a pagá-la). Na verdade, ela fora espancada e estuprada tantas vezes
e com tal regularidade que sofreu danos retais além de lesões per-
manentes às veias da perna.
O que Nora não sabia era que Linda também escreveria a res-
peito de suas três tentativas de fuga e dos três retornos forçados a
uma vida de servidão sexual: primeiro traída por outra prostituta;
em seguida a própria mãe, convencida pelas declarações solenes de
Chuck de que se arrependera e de que era inocente, revelou onde
Linda estava escondida; e finalmente pelo seu próprio medo, de es-
tar ameaçando a vida dos dois amigos que lhe deram refúgio quan-
do souberam que ela havia sido forçada a fazer um filme de sexo com
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 313

um cachorro — Traynor estacionou sua caminhonete na frente da


casa dos amigos com o carro cheio, acreditava Linda, de sua coleção
de granadas e metralhadoras.
Até hoje, estes e outros fatos sobre Traynor devem ser lidos pre-
cedidos pelas palavras "acusado de". Devido ao longo período pas-
sado por Linda no mais profundo pavor, aos limites de tempo im-
postos pela lei e pelo fato de Traynor a ter forçado a se casar com ele,
era difícil processá-lo. O livro de Linda documenta mais dois anos
de medo, sadismo e prostituição forçada. Traynor disse que as acu-
sações de Linda eram "tão ridículas que eu não posso levá-las a sé-
rio". Ele também disse que "quando eu comecei a sair com Linda ela
era muito tímida, ficava chocada em ver um homem nu... eu criei
Linda Lovelacé".
O que Linda conta desta criação inclui uma arma apontada para
a sua cabeça e ter de trabalhar sendo vigiada através de um buraco
na parede para que ela não escapasse e ter uma mangueira d'água
enfiada no ânus se se recusasse a oferecer divertimentos tais como
despir-se em restaurantes e para motoristas em auto-estradas.
Ordeal é um livro difícil de ler. Deve ter sido mais difícil ainda
de escrever. Mas Linda diz que queria se livrar para sempre da idéia
de que ela se tornou "Linda Lovelacé" de livre e espontânea von-
tade.
Teria ela escrito o livro por dinheiro? Ela certamente precisa muito
de dinheiro para si, para o filho de três anos de idade, para o filho
que está por nascer e para o marido, Larry Marchiano, um amigo de
infância, instalador de TVs a cabo, cujo emprego foi posto em jogo
quando seus colegas de trabalho descobriram sobre o passado de Linda.
Durante algum tempo, eles sobreviveram graças aos fundos previ-
denciários do governo americano. Mas Linda conta ter recusado uma
proposta de um milhão de dólares para estrelar um outro filme como
Garganta profunda. (Por esta filmagem, Linda recebeu mil e duzen-
tos dólares que, como o dinheiro ganho como prostituta, ela jamais
viu.) "Eu não faria nada daquilo outra vez", ela afirma. "Nem se me
dessem cinqüenta milhões de dólares."
Um outro motivo para escrever Ordeal torna-se claro a partir da
resposta de Linda a um cartão-postal escrito por uma jovem que foi
coagida a se prostituir, uma mulher que disse ter tido coragem de
ftigir depois de ver Linda na televisão. "As mulheres precisam que
314 GLORIA STEINEfct

alguém lhes dê coragem para fugir, de alguém que lhes diga que é
possível recobrar a auto-estima", ela conta. "Significou muito para mim
receber aquele cartão-postal."
Ironicamente, sua única esperança de fuga veio justamente do
surpreendente sucesso de Garganta profunda. Ela se tornara uma
propriedade valiosa. Precisava ter contato com gente que vivia do
lado de fora, num mundo que, segundo ela, lhe fora negado até mesmo
via rádio e jornal. Hoje, ela diz, lucidamente: "Eu agradeço a Deus,
hoje, por não fazerem snuff movies naquela época."
Ela diz que escapou fazendo Traynor acreditar que poderia con-
fiar nela, um pouquinho mais a cada vez, até que foi deixada, sem
vigias, num quarto de hotel, durante os ensaios para a versão teatral
de Linda Lovelace. Após a fuga, ela passou semanas escondida, sozi-
nha, em quartos de hotel, convencida de que poderia ser espancada
ou morta por esta quarta escapada, mas sentindo-se mais forte, des-
ta vez, por ter de se preocupar apenas com a própria vida. Ela pas-
sou muito tempo escondida, com a ajuda e os disfarces conseguidos
por uma secretária que se compadecia dela, a secretária da Linda
Lovelace Enterprises, o novo e bem-sucedido empreendimento de
Traynor (mas ela não conseguiu ajuda alguma da polícia pois, se-
gundo eles, não podiam fazer nada para protegê-la "até que um homem
armado esteja na mesma sala que você"), antes que o terror dimi-
nuísse até um medo renitente. Traynor continuou a telefonar e a su-
plicar pelo seu retorno. Ele a processou por quebra de contrato. Mas
ele também encontrara uma nova mulher para estrelar seus filmes
pornô: Marilyn Chambers, a modelo que apareceu em Behind the Green
Door (Por trás da porta verde}, um filme, comparativamente, não
violento.
E então, de repente, ela soube através do advogado de Traynor
que ele concordaria em assinar o divórcio. As ameaças e as súplicas
pararam.
Não mais precisando se esconder e se disfarçar finalmente, ela
tentou transformar sua identidade criada em atuação de verdade no
filme Linda Lovelace for President [Linda Lovelace para presidente},
uma comédia que não deveria ter cenas de sexo explícito. Mas ela
descobriu que os produtores que lhe ofereciam papéis esperavam,
em troca, sua nudez. Ela compareceu ao Festival de Cannes mas fi-
cou deprimida por ser aceita dentre celebridades que ela tanto res-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 315

peitava. "Eu participara de um filme nojento com gente nojenta...


Afinal, o que é que este pessoal estava fazendo, vendo um filme da-
queles?"
Quando ela começou a dar suas próprias respostas para as per-
guntas e a tentar explicar os anos de coação, descobriu que os jorna-
listas tornavam-se mais relutantes em publicar suas palavras. Sua
história era deprimente, não tinha nada de glamourosa ou excitan-
te. Como ela havia sido passada de mão em mão como uma moeda
sexual, às vezes entre homens famosos, havia também o medo de
processos.
Foi só em 1978, ao ser entrevistada por Mike McGrady, um res-
peitado jornalista de Long Island, para onde ela se mudara com o
novo marido, que sua história aos poucos veio a público. McGrady
acreditou no que ela contava. Com o intuito de convencer um edi-
tor de que a história tinha credibilidade, ele a submeteu a um inter-
rogatório de onze horas com um detetor de mentiras, realizado pelo
ex-chefe de poligrafia da procuradoria de Nova York, um teste que
incluiu um enorme número de detalhes e uma brutal reinquisição.
Mas mesmo com estes resultados, e o próprio McGrady como cola-
borador, diversas editoras recusaram o manuscrito. Finalmente, Lyle
Stuart, um destemido editor que aceita assuntos muitas vezes sen-
sacionalistas ou controvertidos, não só acreditou na história como
também aceitou publicá-la.
E assim, nos perguntamos: será que um prisioneiro político,
homem, contando uma história parecida, teria tanta dificuldade em
ser acreditado? Ordeal ataca o mito do masoquismo feminino, que
insiste em que as mulheres gostam de ser dominadas sexualmente e
de sentir dor, muito embora a prostituição e a pornografia sejam
indústrias construídas tendo este mito como base. Quando lhe per-
guntaram o porquê de não ter tentado fugir antes, Linda respon-
deu: "Eu posso compreender por que algumas pessoas têm dificul-
dade em aceitar a verdade. Quando eu era mais nova, quando ouvia
falar no estupro de uma mulher, eu sentia, no fundo do meu ser, que
aquilo jamais aconteceria comigo. Eu jamais permitiria que acontecesse.
Agora eu me dou conta de que isto faz tanto sentido quanto dizer
que não se permitirá que uma avalanche aconteça."
E há outras vítimas anônimas da servidão sexual: as jovens lou-
ras do Minnesota Pipeline, fugidas das cidadezinhas escandinavas das
316 GLORIA STEINEM

regiões rurais de Minnesota, que são drogadas e deixadas "no pon-


to" por cafetães e levadas para o Times Square; as mães, recebendo
ajuda financeira da previdência, pressionadas a abrir mão da ajuda e
prostituírem-se; as dançarinas "exóticas", importadas de países mais
pobres para atuarem em filmes pornô e dançarem em boates de topless;
as vítimas de tortura cujos assassinatos foram filmados, na América
Latina, para snuff movies que seriam importados pelos Estados Uni-
dos, ou as outras, cujos corpos foram encontrados ao redor do barra-
cão de um cineasta da Califórnia; o corpo de uma prostituta, encon-
trado sem cabeça e sem mãos, num Hotel de Times Square, uma
lição para outras mulheres que ousassem desobedecer seus cafetães.
Talvez uma delas seja a próxima das muitas mulheres sem voz, uma
das muitas mulheres culpadas pelos crimes aos quais foram subme-
tidas, a começar a falar e a colocar a culpa onde ela realmente per-
tence... Talvez o exemplo de Linda as faça sentir que, ao escolherem
retornar, alguma sociedade as aceitará. Até aqui, no entanto, elas
continuam a ser desacreditadas quanto as mulheres estupradas e
espancadas o foram até poucos anos atrás.

Para divulgar seu livro, Linda vai ao programa de televisão de Phil


Donahue; fica em silêncio, quando não fala com uma voz suave. Por
baixo das calças compridas ela usa meias cirúrgicas para proteger as
veias danificadas por espancamentos, durante os quais ela se enco-
lhia como um feto, para proteger o ventre e os seios dos chutes e dos
socos. Ela explica isto em resposta a uma pergunta de Donahue. Ela
provavelmente precisará ser operada após o nascimento do bebê. O
silicone injetado em seus seios, por um médico (que, como tantos
outros profissionais ao qual foi levada, foi pago com os serviços se-
xuais de Linda), começa a se deslocar de forma bastante dolorosa e
ela talvez precise de outra cirurgia no local.
No entanto, Donahue, normalmente um entrevistador sensível,
começa a fazer perguntas psicológicas a respeito de seu histórico pessoal:
Ela se dava bem com os pais? Eles conversavam com ela sobre sexo?
Será que o que sofreu não teria a ver com o fato de ter ficado grávida
aos dezenove anos de idade e dado à luz um bebê entregue para adoção
pela própria mãe?
Algumas das mulheres na platéia decidem seguir esta linha de
interrogação. Elas foram pobres. Elas tiveram pais severos e autori-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 317

tários e, no entanto, elas não fizeram parte do submundo do filme


pornô. O ambiente fica carregado de autocongratulação. Donahue
fala da tragédia das adolescentes grávidas, e o que os pais podem
fazer para impedir que suas filhas tenham um destino como o de
Linda.
Como Traynor fizera celebrar uma cerimônia de casamento em
dada época (Linda diz que ele o fizera para se certificar de que ela
não testemunharia contra ele em acusações de porte de drogas), ela
precisa concordar com a cabeça quando se referem a ele como "seu
marido". Quando se refere a ele, no entanto, chama-o de "Mr. Traynor".
Linda ouve pacientemente as dúvidas e as objeções, mas nunca
desiste de tentar fazer a platéia compreender. Se outra mulher tives-
se conhecido um homem que "se excitasse com a dor", conforme Linda
descreveu em seu livro, talvez se encontrasse na mesma posição de Linda.
Não, ela nunca o amara, ele era objeto de seu ódio e de seu terror.
Sim, ele fora muito agradável, um verdadeiro cavalheiro quando se
conheceram. Eles nem tinham relações sexuais. Ele oferecera a ela
um apartamento, um refugio do regime severo e infantil sob o qual
ela vivia em casa. E então ele deu uma guinada de 180 graus. Ela se
tornou, ela diz baixinho, uma prisioneira silenciosa. Uma prisionei-
ra da violência imediata e do medo de sofrer algo muito maior.
Ela descreve a sensação de isolamento, de ser controlada a tal
ponto que não podia ir ao banheiro sem a permissão de Traynor. Não
tinha escolha. Podia ter acontecido com qualquer uma. Ela diz isto sim-
plesmente e repete inúmeras vezes, e afinal a mensagem parece pe-
netrar nas mentes de muitas das mulheres presentes na platéia. Mas
no caso de algumas, a mensagem jamais penetra. Donahue conti-
nua a fazer perguntas sobre sua infância, sobre sua história pessoal.
O que a levou a tal coisa? Como devemos criar nossas filhas para
que não tenham o mesmo destino? Para alguém que aceita a histó-
ria de Linda como verdadeira, as perguntas dele são enfurecedoras.
E como se ele estivesse perguntando "O que, na sua história pessoal,
a levou a um campo de concentração?"
Ninguém pergunta como podemos parar de criar homens como
o Chuck Traynor da descrição de Linda. Ou o que levou milhares de
pessoas a assistir Garganta profunda. Ou o que fazer a respeito dos
milhares de homens "normais" que acham que um pouquinho de
violência e de agressão durante o ato sexual é aceitável.
318 GLORIA STEINEM

Uma mulher da platéia pergunta se este não é um assunto a ser


tratado pelas feministas. Linda responde que sim, que ela ouvira falar
em grupos antipornografia, que estava tentando entrar em contato
com Susan Brownmiller, autora de Against Our Will [Contra a nossa
vontade}. Este livro definitivo sobre o estupro levou Brownmiller a
atacar outros tipos de violência pornográfica às quais mulheres são
sujeitadas.
Mas fica claro que, para Linda, é uma nova esperança, uma nova
ligação.
Para as mulheres que desejam apoiar Linda hoje e salvar outras
mulheres usadas sexualmente contra a sua vontade, talvez esta seja a
maior tristeza de todas. Em momento algum durante os meses em
que sofreu e sonhou com a fuga, nem mesmo nos anos de silêncio que
se seguiram, Linda recebeu algum sinal do mundo exterior de que as
mulheres se fortaleciam como um grupo ou que feministas, ou algo
denominado o movimento feminista, estivessem ali para ajudá-la.
É lógico que uma vítima do anti-semitismo saberia que há uma
comunidade judia pronta para ajudá-la e que uma vítima do racis-
mo procuraria o movimento de direitos civis. Mas os grupos femi-
nistas ainda não são fortes o bastante para serem considerados uma
presença no mundo da pornografia, da prostituição e do genocídio;
ou até mesmo no mundo dos que dependem financeiramente dos
fundos previdenciários do governo e no mundo dos trabalhadores
pobres, ao qual Linda se juntou. Mesmo hoje, grande parte da ajuda
e do apoio por ela recebidos vem de homens compassivos: de McGrady,
que acreditou em sua história, do marido, que perde os empregos
que consegue por defender a honra da esposa, do Deus masculino
de sua infância obediente e católica, para o qual ela rezava, nos dias
passados como prisioneira sexual e para quem continua a rezar em
sua vida de dona de casa e mãe.
Até mesmo seu sentimento de traição é ligado ao pai, não à mãe.
Durante o longo interrogatório diante do detetor de mentiras, a única
hora em que ela chorou e realmente desmoronou foi quando mencio-
naram, de forma absolutamente inócua, o nome de seu pai. "Eu es-
tava assistindo àquele filme, Hardcore", ela explicou, "no qual George
C. Scott procura a filha, sem parar. Por que é que meu pai não saiu
à minha procura? Ele viu Garganta profunda. Ele deveria ter sabi-
do... Ele deveria ter feito alguma coisa. Qualquer coisa!"
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 319

Afinal, quem de nós teve mães poderosas o bastante para nos


salvar, para fazer o que quer que fosse? Nós nem mesmo esperamos
por isso. Na mitologia, Deméter salva sua filha, estuprada e seqües-
trada pelo rei do Mundo Subterrâneo. Ela era uma mãe forte e iras-
cível, que transformou a terra em inverno, enfurecida com o destino
de sua filha. Será que, hoje em dia, uma mãe poderosa poderia sal-
var a filha do mundo subterrâneo da pornografia? Nem mesmo
Hollywood inventaria uma trama destas.
Mas Linda começou a revelar sua raiva, mesmo que apenas ao
falar do medo que sente por outras mulheres, à medida que a por-
nografia torna-se mais violenta. "Daqui a pouco", ela diz, em voz
baixa, quase que para si, "vão começar a vender pele de mulheres
nos acostamentos das auto-estradas."
E pelo menos as mulheres têm começado a se juntar para salvar
umas às outras, como irmãs. Existem centros para mulheres espancadas,
com números de telefone divulgados para as vítimas e abrigos se-
cretos para os quais elas não serão seguidas. É um sistema que tal-
vez também funcionasse para as vítimas da pornografia e da prosti-
tuição, se existisse e se as mulheres soubessem de sua existência.
Neste meio tempo, Linda faz uma pausa das constantes faxinas
realizadas em sua minúscula casa em Long Island ("Eu limpo tudo
duas vezes por dia", ela diz com orgulho) para dar entrevistas, para
divulgar sua mensagem de esperança a outras mulheres que talvez
estejam vivendo em servidão sexual, neste instante, e para dar pa-
lestras a respeito da pornografia, com outras mulheres das quais se
tornou amiga. Ela continua a responder às perguntas, muitas delas
feitas por entrevistadores bem menos compassivos do que Phil
Donahue.
Como pode ela escrever um livro destes sabendo que seu filho
poderá lê-lo algum dia? "Eu já expliquei a ele", ela diz com firmeza,
"que umas pessoas machucaram a mamãe muito, há muito tempo.".
Como pode o marido dela suportar viver com uma mulher com um
passado sexual como o dela? ("Não foi sexual. Eu nunca senti prazer
nenhum, jamais tive um único orgasmo, nada. Eu aprendi a fingir
que sentia prazer para não ser castigada por fazer um péssimo tra-
balho.") E a mais freqüente das dúvidas: Se ela realmente queria fugir,
por que não fugiu mais cedo?
Linda tenta explicar da melhor forma possível. Observando-a
320 GLORIA STEINEM

falar, eu vejo que a pergunta deveria ser outra: Onde foi que ela encon-
trou coragem para fugir?
Bem no fundo da paciência com que ela responde às perguntas
— resultado de toda uma infância sendo treinada para ser uma "boa
menina", o que contribui para que tantas de nós nos tornemos víti-
mas — há uma força e uma teimosia que são, em si, a resposta. Ela
vai conseguir que as pessoas compreendam. Ela não desistirá.
No microcosmo desta mulher reside um milagre que nos é fa-
miliar: a maneira pela qual as mulheres sobrevivem e voltam à luta.
E lutar é preciso.

Garganta profunda continua a passar num cinema de Nova York, e


provavelmente em muitas outras cidades do mundo. No filme, vêem-
se claramente as luxações nas pernas de Linda, corroborando a sua
versão de que foi mantida prisioneira durante as filmagens. Será que
os espectadores percebem as luxações, ou apenas o sorriso estampa-
do em seu rosto?
Ainda não houve alegação de invasão de privacidade ou outros
meios legais que conseguisse impedir a exibição do filme, em parte
porque o estatuto de limitações já venceu e em parte porque a his-
tória de Linda, sobre aprisionamento, vai contra muitos mitos sexuais.
Se eu não tivesse entrevistado outras pessoas que confirmaram par-
te de sua história, eu também teria acreditado não ser possível que
algo assim acontecesse. E assim, muito dinheiro continua a ser ganho
à custa da imagem da humilhação desta mulher.
Garganta profunda popularizou um novo gênero de pornografia.
Além de todos os outros tipos de estupro, agora há a nova ambição
de estuprar a garganta. Romances pornográficos tratam do tema
infindavelmente. Alguns médicos das emergências de alguns hospi-
tais acreditam que há um aumento no número de vítimas de sufocação.
E quanto a Chuck Traynor, ele ainda é marido e agente de Marilyn
Chambers.
Larry Fields, colunista do Philadelphia Daily News, lembra-se da
entrevista que fez com os dois para a sua coluna, na época em que
Marilyn fazia um número musical numa casa noturna local. Traynor
vangloriou-se de ter ensinado a Linda Lovelace tudo o que ela sabia,
mas que "Marilyn tinha algo que Linda jamais tivera, talento".
Enquanto Traynor respondia às perguntas por Marilyn, ela pe-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 321

diu-lhe permissão para ir ao banheiro. Tal permissão lhe foi negada.


"Agora não", Fields lembra dele ter falado. E quando ela reclamou
que estava prestes a entrar em cena: "Fica aí, sentadinha, e cala a
boca."
Quando Fields também reclamou, Traynor foi firme. "Eu não
dou palpite em como você escreve sua coluna", ele disse, enfurecido,
"Então não venha meter o bedelho em como eu trato minhas mu-
lheres".

— 1980

PÓS-ESCRITO

Depois de muitos problemas de saúde devido aos castigos físicos por


ela sofridos, e do assédio freqüente por ser constantemente reconhe-
cida, Linda, o marido e os dois filhos adolescentes vivem uma vida
tranqüila, longe de Nova York. Embora ela ainda seja vítima de
flashbacks, quando a mídia despeja seqüestras, assassinatos e violên-
cia doméstica, ela viaja para contar sua experiência e para testemu-
nhar em tribunais sobre as realidades da prostituição e da pornogra-
fia. Usar a própria vida para ajudar aos outros é o estágio final da
cura. E quanto àqueles que criaram Garganta profunda, ainda não há
maneira legal de fazê-los pagar pelos danos que provocaram e de
proibir a exibição do filme.

— 1995
Repensando Jackie

Em 1964, quando Jacqueline Bouvier Kennedy ainda estava resguar-


dada, durante seu ano de luto, escrevi um longo artigo sobre esta
mulher que eu mal conhecia. A matéria em questão consistia em
registrar as opiniões de diversos amigos seus, de parentes, adversá-
rios, políticos, e diversas figuras públicas a respeito de uma pergun-
ta que parecia ocupar o tempo de grande parte da mídia em todo o
mundo. O que será que esta viúva de 35 anos faria da vida agora?
A maioria das pessoas achava que ela devia atuar na área inter-
nacional, como pessoa pública. Servir como embaixadora, tornar-se
uma espécie de Eleanor Roosevelt em versão glamourosa, casar-se
com Adlai Stevenson (para transformá-lo, outra vez, num candida-
to presidencial viável), todos constavam da lista.
Algumas outras pessoas, especialmente seus amigos e parentes,
achavam que ela já fizera o suficiente pelo mundo. Um correspon-
dente da Casa Branca disse que, em seu papel de viúva, ela salvara a
sanidade mental de toda a nação, comportando-se com um verda-
deiro senso de história, com dignidade e com coragem nos eventos
públicos durante a morte e o enterro do marido. Robert Kennedy
reagiu como se a pergunta não tivesse a menor importância, dei-
xando transparecer a admiração que sentia pela cunhada. "Jackie sempre
manteve sua própria identidade", ele explicou, "e sempre foi dife-
rente."
E quanto ao objeto de especulação, ela nada dizia. Enquanto estivera
na Casa Branca ela reagira com humor a perguntas similares sobre o
seu futuro. "Eu simplesmente me aposentarei, em Boston", ela dis-
sera, "e tentarei convencer John Jr. de que seu pai foi presidente um
dia." Como seu ano de luto excluísse entrevistas (e, na realidade, ela
deu muito poucas declarações públicas desde então), a primeira dica
de suas atividades futuras encontrava-se em seu interesse pela con-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 323

tinuação do trabalho do marido. "Ele mudou nosso mundo", ela disse,


com firmeza, "e eu espero que as pessoas se lembrem dele e sintam
sua falta por este motivo." A segunda dica estava no seu futuro como
nós o imaginaríamos se fosse uma pessoa menos famosa: como mãe
viúva com dois filhos para criar. "Eu estava lendo Carlyle", ela disse
a um jornalista, "e ele diz que cada um deve cumprir com os deveres
que estão mais próximos de nós. A coisa que está mais próxima de
mim são as crianças."

Em retrospectiva, a coisa mais interessante sobre a enxurrada de


diretrizes e sugestões para o seu futuro foi o que deixamos de fora.
Com a possível exceção de Robert Kennedy, ninguém jamais men-
cionou a possibilidade dela viver a própria vida. Olhando para trás,
como feminista, eu me dou conta de que nem eu nem nenhuma
das pessoas que entrevistei concedeu-lhe a honra de considerá-la
um ser humano independente. Ninguém pensou na pessoa que ela
teria sido se não tivesse se casado com um futuro presidente. É bem
verdade que ela deve ter mudado durante os anos do governo
Kennedy e devido a todos os fatos pessoais e históricos neles in-
cluídos, mas ela era bem mais do que a soma de tudo isso. E no
entanto todos nós nos comportávamos como se ela não pudesse
(ou não devesse) criar um futuro independente da poderosa ima-
gem de Kennedy.
Foi esta recusa em enxergá-la como um ser independente que
aumentou o choque do público quando ela se casou com Aristóteles
Onassis. Sem a compreensão de seus problemas pessoais e de seu
dia-a-dia, para não falar no preço de simplesmente existir como o
mais famoso símbolo da era Kennedy, seu segundo casamento não
fez o menor sentido. Este é um problema compreensível por qual-
quer mulher que já viveu a experiência de ser tratada como uma pessoa
completamente diferente porque a identidade do homem que se
encontra ao seu lado mudou.
Mesmo quando ela ficou só outra vez após a morte de Onassis,
as especulações a respeito de seus futuros planos pareciam dividir-se
em duas linhas: Será que ela se tornaria uma Kennedy outra vez (ou
seja, mais politizada, americana e séria) ou continuaria a ser uma Onassis
(ou seja, mais social, internacional e simplesmente rica)?
O que ninguém previu foi seu retorno ao mundo editorial, no
324 GLORIA STEINEM

qual ingressara brevemente após a faculdade, um emprego que ela


poderia ter tido por conta própria. E foi exatamente o que fez.

A caminho do trabalho, todos os dias, eu passo por um minúsculo


restaurante, na verdade não passa de um balcão, especializado em
hambúrgueres gigantes. Na vitrina, há a ampliação de uma foto de
jornal na qual Jackie encontra-se sozinha, sentada ao balcão. Ela apenas
segura uma xícara de café, obviamente sem saber da câmera, e no
entanto a foto foi tirada e publicada sem a sua autorização e agora é
exibida para promover a venda de hambúrgueres.
Este pequeno símbolo de uma vida, na qual os momentos ínti-
mos estão sempre prestes a tornar-se públicos, me fez pensar nos
atrativos de uma vida passada numa ilha grega, com um amigo for-
te e protetor — especialmente nos anos que se seguiram ao assassi-
nato, quando multidões a aguardavam do lado de fora do edifício
onde morava, todos os dias. Isto também me fez considerar, seria-
mente, a força e a firmeza que lhe foram necessárias para ingressar
no mundo do trabalho normal. Ela está empregada, já há quatro anos,
algo que seus críticos ou desconhecem ou preferem ignorar.
Primeiro, ela precisou sobreviver aos observadores obcecados, aos
fotógrafos que ainda se escondem em cada esquina, e às eventuais
especulações dos jornais sobre o assassinato de Kennedy ou sobre a
vida pessoal de Jack Kennedy, a enxurrada de livros a respeito de
seus dois maridos e os filmes nos quais alguma jovem atriz faz fama
encenando algum trecho de sua vida. Além disso, ela precisou apre-
sentar-se, absolutamente vulnerável, diante de um grupo de profis-
sionais editoriais céticos que agiam como se duvidassem de sua ha-
bilidade, um grupo dado à boataria. Suponho que haja, também,
muitos amigos ocasionais e colegas que a respeitem e gostem dela,
mas que tendem a não demonstrá-lo. Temo ser uma destas pessoas.
E uma peculiaridade do fato de conhecê-la e de almoçar com ela
eventualmente o medo que se tem de mencionar o encontro em unia
conversa e parecer prepotente.
Apesar de todos nós, no entanto, ela aos poucos foi encontrando
seu próprio rumo.
Em 1975, um pouco depois da morte de Onassis, Dorothy Schiff,
então uma bem-sucedida editora no New York Post, a convidou para
almoçar com a sugestão de que se candidatasse para o Senado, con-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 325

tra Daniel Patrick Moynihan. Jackie recusou a sugestão imediata-


mente mas passou a tarde percorrendo, entusiasmada, as instalações
editoriais do Post assim como a gráfica do jornal. Conforme explicou
a Dorothy Schiff, o dia passado ali lembrou-lhe dos bons tempos de
jornalista, em Washington. Naquela mesma época Jackie contribuiu
com um artigo bem escrito, mas sem assinatura, para a New Yorker
na abertura do Centro Internacional de Fotografia, um projeto de
seu amigo Cornell Capa. Mas nenhum destes dois eventos preparou
muitos de seus amigos, e muito menos o público, para a decisão que
ela logo anunciou de ingressar na Viking Press como consultora
editorial. Diversos colunistas mostraram-se chocados. Nenhum de
seus maridos fora do ramo editorial. O que a levava a achar que podia
simplesmente seguir uma carreira só dela? Houve muita especula-
ção sobre quanto ganharia e sobre quanto tempo duraria este capri-
cho. Como pais que não acreditam que seu filho já esteja crescido o
bastante para freqüentar a escola, câmeras de televisão e repórteres
aglomeraram-se na calçada para registrar seu primeiro dia de traba-
lho.
Apesar das dúvidas do público, ela continuou a trabalhar na Viking
quatro dias por semana, durante dois anos, telefonando para o escri-
tório para pegar recados em seus dias de folga. Ela comparecia às
reuniões editoriais, sugeria idéias e autores, buscava seu próprio
cafezinho, fazia suas próprias ligações, esperava na fila da máquina
de Xerox para fazer suas próprias fotocópias, trabalhava em diversos
projetos editoriais e ganhava dez mil dólares por ano.
Nenhuma destas atividades diárias precisariam ser explicadas se
se tratasse de uma pessoa normal que "precisa trabalhar". Acabou,
no entanto, que seu comportamento pé no chão era contrário à ima-
gem que o público tinha dela. Assim como os depoimentos dos co-
legas sobre a atuação de Jackie como editora de um livro sobre a
história das mulheres americanas durante o século XVIII, chamado
Remember the Ladies [Lembrem das senhoras}. Ela apoiou a autora
em sua inclusão de mulheres das classes trabalhadoras, de negras e
de índias nas páginas do livro. Ela se debruçou sobre um manual
sexual do século XVIII procurando informações sobre uma raiz que
as mulheres mastigavam para induzir abortos; e, segundo Muffie
Brandon, uma das idealizadoras do livro, "se arrastava pelo chão,
fazendo o layout das fotos a serem incluídas".
326 GLORIA STEINEM

Quando transferiu-se para a Doubleday (em parte por ter feito


objeções à publicação de um romance da Viking, uma versão mal
disfarçada do assassinato de Ted Kennedy), tornou-se editora assis-
tente. Ela tinha liberdade de trabalhar em casa ou no escritório, de
estar na rua fazendo pesquisa ou almoçando com autores, com me-
nos perigo de ser acusada de diletantismo. O chão de seu aparta-
mento tornou-se coberto por imagens tiradas por Atget, um fotó-
grafo francês cuja coleção ela publicou, e pelos layouts de outros li-
vros. Mas muita gente, de todos os níveis do meio editorial, ainda se
espanta ao atender ao telefone e ouvir sua voz inconfundível, sem
ser anunciada por secretária alguma. E muita gente, em todo o mundo,
se surpreende ao saber que ela viaja para pesquisar suas idéias, para
caçar novos autores, para promover o lançamento de um livro — e
até mesmo pelo simples fato de estar trabalhando.

Não estou sugerindo que a Mulher Mais Famosa do Mundo seja como
todo mundo. Muito pelo contrário, ela não se parece com ninguém.
Parte daquilo que a faz única é a habilidade de distanciar-se de sua
imagem pública, de ignorar a curiosidade obsessiva de estranhos, e
de se recusar a ler quase tudo escrito a seu respeito.
Esta habilidade, certamente, a ajudou a sobreviver com a sanidade
e o senso de humor intactos. E provável que este seja o hábito que
mais irrita àqueles que gostariam de vê-la utilizar seu poder público
para diversos fins políticos. (Eu, por exemplo, adoraria que ela usasse
um pouco de sua influência para lutar em público por questões que
envolvem grupos sem poder, em geral, e mulheres, especificamente.)
Mas querer que ela use o poder de outras vidas pode chegar, injusta-
mente, perto de querer usá-la, por mais nobre que seja a causa.
Ela, pessoalmente, contribui financeiramente para diversos pro-
jetos, incluindo aqueles que ajudam mulheres a lutar por seus direi-
tos, mas ela não defende publicamente a Emenda de Igualdade de
Direitos que no íntimo apóia, ou qualquer outra plataforma políti-
ca. Através dos anos, ela se manteve fiel a projetos iniciados no go-
verno Kennedy, tal como a Restauração de Bedford-Stuyvesant, um
projeto de reforma do maior gueto negro de Nova York. Mas, pu-
blicamente, sua imagem está ligada a eventos artísticos e culturais,
interesses pessoais seus há muito. Salvar os prédios de Nova York
para a Sociedade Municipal de Arte ou a Rua 42 de sua decadência
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 327

como centro de pornografia e crime — estes são os projetos com os


quais ela se ocupa, em silêncio.
É este o tipo de indivíduo que ela é: nem Kennedy, nem Onassis
e nem mesmo sua própria glamourosa imagem pública; ela é uma
mulher única que continua a ser séria, trabalhadora, sensível, en-
graçada e até mesmo um pouco chocante. (Em conversas, ela é o
tipo de pessoa a quem você se pega dizendo coisas que apenas pen-
sara, coisas indiscretas que só mesmo a suave rebeldia de Jackie nos
encorajariam a dizer.) Ela é, entre as amigas, um silencioso grupo de
conscientização concentrado em uma só mulher, dando força para
uma esposa rica caminhar com os próprios pés, ajudando uma ami-
ga recém-divorciada a conseguir o primeiro emprego. Ela é criativa,
inteligente e consistente em seus interesses, leal aos amigos, extre-
mamente exigente no que diz respeito à lealdade dos outros e o re-
servado foco central de uma tempestade pública.
Seu exemplo traz perguntas interessantes para que cada uma de
nós nos questionemos. Dadas as opções de usar o poder de Kennedy
ou de viver o estilo de vida como uma Onassis, quantas de nós teria
escolhido recorrer a nossos próprios talentos e a carreiras menos es-
petaculares? Quantas de nós teria sido forte o bastante para esco-
lher nosso próprio trabalho sobre uma influência herdada?
A longo prazo, a insistência dela em desenvolver um trabalho só
seu pode vir a ser muito mais útil às outras mulheres do que o uso
de qualquer poder convencional por ela recusado.

— 1979
Alice Walker: Você Conhece Essa Mulher?
Ela Conhece Você

Deve haver milhares de pessoas espalhadas pelo país que pensam


ser as únicas a saber o quão importante e única é Alice Walker como
escritora.
Talvez "escritora" seja até mesmo uma palavra distante. Viajan-
do e ouvindo os depoimentos de tantas pessoas, através dos anos,
noto que os leitores da obra de Alice Walker tendem a falar dela
como se fosse uma amiga: alguém que os salvou da passividade ou
da raiva, alguém que lhes ensinou a sensualidade ou o amor pró-
prio, o humor ou a redenção.
— Eu me tornei uma pessoa bem melhor — explicou um ro-
mancista jovem e revoltado, diante de uma sala cheia de colegas —
desde que passei a seguir as orientações e me submeti a uma dieta
recomendada por Alice Walker. — Esta foi a única apresentação que
ele fez antes de Alice Walker se levantar para ler um texto diante de
uma platéia formidável, e ele tinha razão. Quando ela terminou a
leitura, um conto comovente sobre a morte de um velhinho desco-
nhecido, heróico e muito amado, a competição e a raiva reinantes
naquela sala haviam diminuído consideravelmente.
— Enquanto leio seus romances, me vejo completamente des-
percebida de seu estilo — disse uma crítica literária, que é também
escritora. — E como um copo que contém o que ela quiser que você
enxergue lá dentro. E, no entanto, eu sou capaz de ler alguns pou-
cos parágrafos escritos por ela e dizer: "Isto aqui foi escrito por Ali-
ce."
— Não há dúvidas de que ela não é a única autora que enxerga
a crueldade individual e as injustiças sociais — explicou uma mu-
lher que envelheceu na luta pelos direitos civis em geral e das mu-
lheres negras em particular. — Mas ela é a única a ver as coisas por
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 329

inteiro: o que acontece com os negros neste país, com as mulheres


em todo o mundo; os ultrajes contra a história e contra a Terra; tudo.
E no entanto ela me ensinou que a crueldade por si só se destrói, o
que me faz ter fé para continuar a lutar. Ela pega as pessoas mais
irremediáveis e depois escreve sobre as suas redenções. Isto me faz
acreditar em mudanças, e permite que eu também mude. Ao termi-
nar de ler algo escrito por Alice, eu não sou jamais a mesma pessoa
que era quando comecei a ler.
Já ouvi muitos comentários parecidos nos últimos dez anos, mais
ou menos. Como muitos sabem que eu trabalho na Ms., que já pu-
blicou textos de Alice Walker e da qual ela é editora contribuinte há
alguns anos, sou receptora acidental de testemunhos pessoais, onde
quer que eu vá. Quando os leitores desconfiam que eu talvez conhe-
ça Alice pessoalmente, os comentários transformam-se em pergun-
tas: Quando é que ela vai lançar outro livro? Por que é que os livros
dela não estão à venda em todas as livrarias? E interessante, mas não
ouço as perguntas normais feitas sobre celebridades, como: Como é
Alice Walker pessoalmente? Os leitores acham que já a conhecem
através de sua obra. Mas as incontáveis vidas tocadas pela sua obra
formam uma rede pequena, secreta e ampla que atinge quase todas
as universidades e lugarejos.
É claro que a existência de tais leitores, até mesmo aqueles que
não se conhecem, significa que Alice Walker não é, na verdade, uma
autora secreta. Seus três romances, três livros de poesia e duas cole-
tâneas de contos venderam e receberam críticas favoráveis. Ela tam-
bém editou uma seleção de textos de Zora Neale Hurston, folclorista
negra e escritora até então esquecida da década de trinta, e escreveu
a introdução da biografia de Hurston. Para os leitores mais jovens,
ela escreveu a biografia de Langston Hughes. Sua primeira coletâ-
nea de contos, In Love and Trouble {Apaixonada e em apuros], ga-
nhou o Prêmio Rosenthal do Instituto Nacional de Artes e Letras.
Seu segundo romance, Meridian [Meridian], é muitas vezes citado
como o melhor romance do movimento de direitos civis e é adotado
tanto em cursos de história americana como em cursos de literatura.
Revolutionary petunias [Petunias revolucionárias], seu segundo livro
de poesia, recebeu o Prêmio Lillian Smith e foi indicado para o Prê-
mio Nacional do Livro.
Mas sua visibilidade como um dos maiores talentos dos Estados
330 GLORIA STEINEM

Unidos é obscurecida por um preconceito já conhecido: a literatura


criada por escritores brancos, do sexo masculino, é a norma, assim,
mulheres negras (e todas as mulheres de cor) são duplamente mar-
ginalizadas e "especiais". Foi só de uns tempos para cá que roman-
cistas como Toni Morrison ou Maya Angelou começaram a ser lidas
além das restrições subliminares que surgem quando o adjetivo ne-
gra passa a qualificar o substantivo autora. (Apenas os homens bran-
cos dispensam adjetivos. Talvez devêssemos começar a nos referir a
Norman Mailer et al. como escritores brancos do sexo masculino.) Na verdade
Cadê Bambara, June Jordan, Paule Marshall, Ntozake Shange e outras
valiosas escritoras americanas da atualidade não têm acesso ao mer-
cado principal (e o mercado principal não tem acesso a elas) porque
existe um preconceito contra a universalidade daquilo que elas têm
a dizer. E assim foi com todas as Zora Neale Hurstons e Nella Larsens
do passado, cujas obras deixamos que saíssem de circulação e de nossas
mentes.
Até mesmo havendo cadeiras de estudos feministas e sobre ne-
gros feministas nas faculdades, e outros cursos que deveriam ser
chamados de "cursos reparadores", vai demorar até que mude a crença
acadêmica e cultural existente de que um americano pode cruzar as
barreiras de país, tempo e língua para se identificar com Dostoiévski
ou Tólstoi, mas não se pode esperar que ele caminhe até a casa ao
lado para cumprimentar Baldwin ou Ellison; que uma mulher possa
e deva se identificar com protagonistas masculinos, mas há algo de
pervertido em esperar-se que um homem veja a vida através dos olhos
de uma mulher. E claro que Alice Walker também cria protagonis-
tas masculinos, como fez em seu primeiro romance, The Third Life
Of Grange Copeland [A terceira vida de Grange Copeland], mas ali,
ela enfrentou um preconceito semelhante. Sim, artistas homens podem
criar mulheres, mas como pode uma escritora, sendo mulher, ter
autoridade bastante para criar um homem crível?
Como sempre, o povo está à frente de seus líderes, e os leitores
à frente de acadêmicos e críticos. E verdade, e importante, que um
número desproporcional de pessoas que procuram os livros de Alice
Walker, tão difíceis de encontrar, sejam mulheres negras. Afinal de
contas, ela chega à universalidade pelo caminho desta experiência e
é até mesmo valente o bastante para escrever a respeito de temas
delicados tais como sexo inter-racial na América ou a opressão femi-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 331

nina na África. ("Você tem alguma idéia do que ela significa para nós?",
uma aluna do Spelman College me perguntou certa vez com os olhos
cheios de lágrimas.) Mas mulheres com formações pessoais diferen-
tes também sentem uma ligação com Alice Walker. A luta por trabalhos
e mentes próprias, pela nossa vulnerabilidade física, a dívida para
com nossas mães, as realidades do parto, as amizades entre as mu-
lheres, o destrutivismo dos homens que amamos — que nos tratam
como seres menores do que eles — a sensualidade, a violência: to-
dos estes são os temas básicos de sua ficção e de sua poesia. Em The
Third Life of Granje Copeland, ela expôs a violência contra mulheres,
anos antes de começarmos a contar, em público, a verdade sobre
espancamentos pelas mãos de maridos e amantes. Em termos de crítica,
o romance pagou seu preço por estar muito à frente de seu tempo.
Na verdade, o grande poder de sua obra está em falar da experiência
feminina, ultrapassando as barreiras de raça e classe social.
E ela jamais desiste. Nenhum personagem feminino pode esconder-
se por trás de um papel sexual, assim como um personagem negro
não pode se esconder por trás de um estereótipo de raça.
Como disse o jovem romancista: "Eu me tornei uma pessoa bem
melhor", o que parece ser a reação freqüente de seus leitores homens
e negros. Eles comentam a forma carinhosa com a qual ela usa o inglês
do povo negro, a compreensão que ela tem do que dá certo e do que
não dá, entre homens e mulheres, e o tratamento lúcido que ela dá
à vida dos negros nas zonas rurais do Sul do país, onde grande parte
de seus personagens cresceu.
É verdade que um número desproporcional de críticas negati-
vas veio de homens negros. Mas estes poucos críticos parecem rea-
firmar sua convicção de que os homens negros devem ter acesso a
tudo aquilo que os brancos já tiveram, incluindo a dominação femi-
nina. Eles demonstram seu medo de que as verdades contadas por
uma negra sejam mal usadas por uma sociedade racista, e perplexi-
dade diante do "estilo de vida" de Alice, um eufemismo usado para
o fato dela ter passado dez anos casada com um branco, ativista de
direitos civis. Quem fez esta última observação foram críticos que,
como já escreveu Alice, "já tiveram um casamento inter-racial e que,
além do mais, seguiam, embevecidos, cada palavra escrita por Richard
Right, Jean Toomer, Langston Hughes, James Baldwin, John Williams
e LeRoi Jones, para mencionar, apenas, alguns e que por sinal já ti-
332 GLORIA STEINEM

veram ligações inter-raciais... Eu, mulher e negra, ousei usar das mesmas
prerrogativas que eles".
Por outro lado, Alice também aponta que: "Pelo menos estes
críticos negros me levam a sério o bastante para exporem sua fúria.
A maioria dos brancos demonstra apenas perplexidade."
E quanto aos leitores homens e brancos, a primeira barreira na
qual esbarram é a convicção de que os livros de Alice "não foram
escritos para nós". Após lerem uma obra de Alice, no entanto, eles
muitas vezes dizem ter uma melhor compreensão da raiva negra ou
uma nova convicção de terem sido privados de uma visão integral
do mundo; é uma ironia, se considerarmos os medos expressados pelos
críticos negros. Susan Kirschner, professora de inglês que estudou
todas as críticas publicadas a respeito de Meridian, concluiu que o
único crítico a examinar os temas morais do romance com serieda-
de, que não se limitou a descrever a trama, foi Greil Marcus, crítico
branco do New Yorker.
Afinal, quem seria capaz de não compartilhar da ira da poeta
que escreveu:

passo horas sentada, olhando minha própria mão direita


me perguntando se ela me ajudaria a atirar no juiz
que nos chamou de chimpanzés, sentado por trás de seu pódio
e será que me ajudaria a despejar o doce arsênico
no bule de café do governador
ou a colocar cianureto no seu.
não precisa me dizer;
eu compreendo que estas são fantasias clichês
de vinte e cinco milhões de esperanças
que desabrocham espontaneamente para a vida
a cada geração.
é difícil para mim escrever
aquilo que todo mundo já sabe;
mesmo assim, me parece
que já perdoei os mortos
o suficiente. *

*" 10 de janeiro de 1973", Good night Willie Lee, 1'll See You In the Morning [Boa noite Willie Lee, nos
vemos pela manhã] (Nova York: Dial, 1979)-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 333

E quem poderia resistir a este espírito rebelde:

Em mim há uma fúria de desafiar


a ordem das estrelas
apesar de seus belos desenhos.
Para ver se os Deuses, que hoje prometem
de tronos humanos,
conseguem que sua vontade sufoque a minha ânsia
de ousar
e de pressionar
para dar ordens à anarquia
à qual eu serviria. *

E quem não gostaria de pronunciar estas palavras:

Eu aprendi a não me preocupar com o amor;


e sim a honrar a sua chegada
com todo o coração.
A examinar a escuridão dos mistérios
do sangue
com obediência impensada e
o torvelinho,
de conhecer a carga de sentimentos
rápidos e fluidos
como a água.
A fonte parece ser
uma inexaurível mina d'água
dentro de nossos seres
gêmeos e tríplices;
a nova face que eu mostro
a você
ninguém no mundo
jamais
viu. **

Rage" ("Fúria"), Revolulionary Petunias & OtherPoems [Petúnias Revolucionárias e Outros Poemas)
(Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1973).
*"New Face" (Nova Face), Revolulionary Petunias & Other Poems [Petúnias Revolucionárias e Outros
Poemas) (Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1973).
334 GLORIA STEINEM

Suspeitei durante muito tempo de que uma convenção da rede


de leitores de Alice Walker formaria um grupo tão imenso quanto
diversificado. Talvez se parecesse um pouco com o próprio país.

É possível que seu contingente de leitores esteja prestes a se expan-


dir. A Cor Púrpura, terceiro e mais recente romance de Alice Walker,
poderá se tornar um evento literário do tipo que transforma uma
reputação restrita, embora intensa, em popular.
Para princípio de conversa, o estilo de A Cor Párpura é irresistível.
A narradora é Celie, a mais oprimida e derrotada das mulhe-
res. Como ela precisa lutar contra as situações mais improváveis e
como não tem com quem falar, ela escreve sobre a vida com enor-
me sinceridade e um realismo pé no chão à guisa de cartas a Deus.
Quando ela descobre que sua amada irmã, Nettie, não está morta
e sim vivendo na África, ela começa a escrever as cartas para Nettie.
(Fica claro que a autora está nos dizendo algo sobre a origem de
Deus — sobre aquelas ocasiões nas quais precisamos inventar um
amigo invisível e poderoso e quando não precisamos mais inventá-
lo.) A questão é que, quer alguém venha a ler suas palavras ou não,
Celie precisa confirmar sua própria existência escrevendo o que pensa
e sente. Como uma Sherazade cujo inimigo se encontra em todos
os lugares, menos em sua mente, ela escreve a história para salvar
a própria vida.
O resultado é um romance absolutamente sincero, surpreendente
e lírico, que é a bem-sucedida culminação de viagens cada vez mais
longas para fora do inglês padrão e para o coração do linguajar de
seus personagens. Neste romance, ela dá um salto completo. Não
há narrador na terceira pessoa para distanciar o leitor de sentimen-
tos e eventos. Nós estamos dentro da cabeça de Celie, vendo através
de seus olhos, sofrendo e rindo com ela, observando o mundo com
uma clareza que talvez só nos seja possível de baixo para cima.
Mais adiante, Celie impõe-se como narradora séria com o dom
de promover uma inesperada mudança de rumo e da essência do caráter
de uma pessoa em algumas poucas palavras. Como E. L. Doctorow
em Ragtíme, o ritmo do contar dá ainda mais substância ao suspense-
O que Ragtime fez com o ritmo dos acontecimentos e os capítulos,
Celie faz com a escolha de uma linha, uma frase, um verbo. É um
romance rápido, compacto, que só poderia mesmo ser escrito por
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 335

poeta. Se Deus estivesse recebendo aquelas cartas, Deus certamente


se viciaria nelas.
Com este romance, críticos deveriam compreender por que Ali-
ce sempre preferiu descrever o linguajar de seus personagens como
"inglês do povo negro" e não "dialeto", uma palavra que, ela acredi-
ta, foi usada de forma condescendente e quase sempre, racista. Quando
Celie conta ou registra conversas de amigos, não há apóstrofes e
contrações acanhadas para termos certeza de que a escritora na ver-
dade sabe ortografia e gramática, e não há aspas para nos manter
longe do que lemos. Celie simplesmente escreve as palavras como
elas soam aos seus ouvidos e como ela as sente. Ela literalmente es-
creve com o coração. Logo, o leitor começa a se perguntar por que
uma pessoa haveria de escrever de outra forma.
Como sempre acontece na obra de Alice Walker, A Cor Púrpura
assiste ao crescimento e à redenção das pessoas, ou então ao seu murchar
e implodir. Depende da forma com que trabalham ou deixam de
trabalhar as questões morais de suas vidas. Como sempre, no entan-
to, esta moralidade não é um conjunto de ditames externos. Não
importa se você ama pessoas que a sociedade diz que não pode amar,
ou que você tenha ou não tenha filhos com mais de uma destas pes-
soas. Não importa se você tem dinheiro, se freqüenta a igreja ou se
obedece à lei. O que importa é que você não seja cruel e destrutivo,
que não esconda a verdade daqueles que precisam conhecê-la, que
não reprima os desejos ou os talentos de alguém, que não extraia
mais do que você precisa da Natureza ou negligencie seus próprios
desejos e talentos. Trata-se de uma moral orgânica de dignidade, de
autonomia, e de equilíbrio.
O que também importa é o reconhecimento de que todo o mundo,
não importa o quão mau ou passivo pareça ser por fora, possui pos-
sibilidades de redenção em seu interior.
Talvez seja por isso que Alice nos coloca nas mãos pouco confiáveis
de Celie. Como a filha adolescente de uma paupérrima família sulis-
ta, ela é trabalhadora, triste, quieta e não é bonita. Nas primeiras
páginas ela é estuprada mais de uma vez pelo marido da mãe, é for-
çada a deixar a escola que tanto ama por estar grávida, é privada até
mesmo dos dois filhos nascidos dos estupros e se casa com um viúvo
que a usa como serva para cuidar de seus muitos filhos. Sua vida parece
sem esperança, sem alegria, uma vida que chegou ao fim.
336 GLORIA STEINEM

Na verdade, o maior perigo desse livro é que as primeiras pági-


nas levem os leitores a desistir de lê-lo, tal o desespero que é lê-las.
Mas os avisos de seu violento padrasto de que não contasse a
ninguém "a não ser a Deus" é o que a leva a escrever suas cartas
secretas. Ela escreve tudo, sobrevive aos freqüentes espancamentos
do marido tornando-se "como uma árvore" e quebra a cadeia de cruel-
dade se recusando a infligir seu próprio sofrimento a outra mulher.
Celie se salva através de pequenos atos de empatia e de cora-
gem. Ela resiste ao marido, o viúvo Sr. , um homem tão duro
e cruel que ela se recusa a escrever seu nome. (Ao final do romance,
o Sr. já se tornou um homem até bonzinho chamado Albert.
É assim que funciona o poder de redenção de Alice.) Celie também
é forçada a servir de enfermeira para Shug Avery, a mulher que seu
marido na realidade ama. Trata-se de uma cantora local que possui
o talento de Bessie Smith e a independência de Zora Neale Hurston.
O amor que Celie vem a sentir por Shug é correspondido com ir-
mandade e sensualidade. Quando Celie descobre que o Sr.
interceptou todas as cartas escritas pela irmã Nettie, da África, fa-
zendo com que ela pensasse que a irmã estivesse morta, sua ira fi-
nalmente rompe a passividade. Sua vontade é matá-lo, e só não o
faz porque é impedida por Shug, que encontra formas mais eficien-
tes de castigá-lo. Afinal, Celie descobre que impor-lhe sua vontade,
que rir dele e simplesmente abandoná-lo aos seus próprios pecados
também o mudariam.
Isto é apenas uma amostra da trama. Nenhum romance russo
conseguiria superar este com relações familiares mais complexas, com
uma gama tão ampla de assuntos abordados e coincidências huma-
nas. A estes prazeres novelísticos, adicione uma pitada de senso de
humor e a expectativa de que a justiça vença, ambos toques muito
americanos, além de uma sucinta discussão sobre a existência de Deus,
da política da religião e das ocorrências diárias que freqüentam os
noticiários, tudo isso puramente Alice. (Há também diversas sur-
presas que, assim como na vida real, parecem inevitáveis quando
olhamos para trás.) Mas, o que quer que esteja acontecendo, a tra-
ma e suas idéias continuam a se desenrolar com uma economia de
palavras que segue as regras que regem a arte de Picasso. Todas as
linhas são necessárias. Nada pode ser suprimido sem que mude o
sentido por completo.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 337

Depois de recuperadas, as cartas de Nettie expandem a história


além da zona rural do Sul dos Estados Unidos para a Inglaterra e a
África. Seu relato passo a passo do que acontece quando uma plan-
tação de borracha de propriedade inglesa compra o vilarejo onde ela
vive como missionária explica mais sobre os bastidores e maquina-
ções do colonialismo do que muitos tomos acadêmicos. Por este motivo,
o capítulo em questão deveria ser incluído nos cursos sobre a econo-
mia internacional. O senso de equilíbrio moral e de retribuição da
autora é tão contagiante que nos pegamos questionando se a Ingla-
terra não estaria pagando por antigos pecados coloniais numa ver-
são mais ampla do que o marido de Celie está pagando pelas cruel-
dades às quais a submeteu.
Ao final do romance, compreendemos que este pedacinho de terra,
pobre e anônimo, localizado no Sul dos Estados Unidos é, na verda-
de, o mundo — e vice-versa. As conversas entre Celie e Shug nos
trazem questões filosóficas, éticas e metafísicas, tudo isto na lingua-
gem de uma contadora de histórias, na linguagem do coração. A cor
párpura, uma cor raramente encontrada na natureza, passou a sim-
bolizar o milagre das possibilidades humanas.
Na tradição de Gorky, Steinbeck, Dickens, Ernest Gaines, Hurston,
Baldwin, Ousmane Sembene, Bessie Head e muitos outros, Alice
Walker escreveu um romance que cria empatia, um romance sobre
a mais pobre dos pobres. Ao contrário da maioria dos romances que
expõem a injustiça entre raças e classes, no entanto, A Cor Púrpura
não trata as injustiças cometidas por homens com relação às mulheres
como sendo secundárias ou naturais. E ao contrário de muitos romances
pseudofeministas, não exclui certas mulheres devido à raça e classe
social. O que o faz igualmente incomum dentre os livros sobre os
pobres e os impotentes é o fato de não ser escrito sobre um grupo e
destinado a um outro grupo, ou seja, ser escrito sobre o pobre para a
classe média. E um romance populista, no melhor sentido da pala-
vra. Quem faz parte da história também sentiria prazer em lê-la.
Na verdade, é difícil imaginar alguém neste país que não seria
tocado por este romance.

Alice e eu estamos sentadas em seu apartamento em São Francisco,


tomando chá e nos preparando para darmos início à entrevista. Nós
já trabalhamos juntas, freqüentamos as mesmas festas e participa-
338 GLORIA STEINEM

mos de passeatas durante uma década, mas a verdade é que esta é a


segunda ou terceira vez que conversamos a sós. Como tantos outros,
eu acho que a conheço através de sua obra, mas será que a conheço
realmente?
Por exemplo, esta é a primeira vez que me encontro num ambiente
completamente criado por Alice. Há um pequeno cômodo com uma
imensa bancada de madeira, onde ela trabalha; um quarto que Rebecca,
sua filha de doze anos, pintou com um arco-íris; o quarto da própria
Alice, com uma cama antiga de madeira, talhada à mão, que ocupa
quase o quarto inteiro; uma cozinha abarrotada de ervas frescas e
potes de barro do Mississippi; e uma sala com um sofá enorme, plantas,
mantas, uma cadeira de balanço antiga e muitos, muitos livros.
Apesar da cidade grande lá fora, Celie, Nettie e Shug se sentiriam
em casa aqui. O ambiente é acolhedor, tranqüilo e sólido, com foto-
grafias do Sul rural e arte feminina pendurada nas paredes para o
deleite de Celie, muitos livros e gravuras africanas para Nettie e cores
vivas e sofisticação suficientes para agradar a uma cantora de blues
como Shug.
— Os personagens do livro se dispuseram a me visitar — Alice
explicou —, mas só depois que eu parei de interrompê-los com lei-
turas de poemas e palestras e viagens de avião. — Mais do que a
maioria dos romancistas, ela sente que seus personagens possuem
uma vida independente, que eles criam vida em sua cabeça e saem
por aí, sozinhos. — Eles exigiram muito silêncio e muita atenção.
Durante um período, quando Rebecca veio para cá, após passar um
tempo com o pai, cheguei a pensar que até ela poderia ser demais.
Quando ela chegou a casa um dia parecendo ter apanhado, dizendo
"Não se preocupe, mãe. Você devia ver o estado do outro cara!" Pronto,
Celie gostou dela na mesma hora.
"Se você passar um bom tempo em silêncio, as pessoas simples-
mente começam a chegar, em sua cabeça. Faz com que acredite que
o mundo foi criado em silêncio.
É surpreendente ver que Alice soa tão unicamente como ela mesma.
Nos três anos desde que saiu de Nova York, onde eu moro, as vozes
de seus personagens passaram a soar mais familiares aos meus ouvi-
dos do que a voz dela. Compreendo que eles são partes mas que Alice
é o todo.
— Escrever A Cor Púrpura foi escrever na primeira língua que
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 339

aprendi — explicou Alice, a caçula de oito de uma família de lavra-


dores arrendatários da Geórgia. — Precisei viver muito para adqui-
rir sabedoria mas a escrita, em si, foi fácil. Chegou uma hora que eu
senti uma fúria imensa pelo fato dos negros e das outras pessoas de
cor, que possuem um outro padrão lingüístico, não poderem sim-
plesmente escrever da forma natural e fluida com que falam.
Ela parece completamente integrada ao seu passado e, no en-
tanto, nenhum habitante de sua cidadezinha ou de sua numerosa
família jamais tornou-se poeta ou escritor. Isto me fez querer saber
se ela, como tantas pessoas criativas, já se sentira tão diferente que
teria acreditado ter sido "achada" ou adotada.
— As vezes eu achava que tinha nascido naquela família por
engano — ela admite. — Eu sempre parecia precisar de mais silên-
cio e de mais tranqüilidade do que o resto. Isto é uma coisa muito
difícil de se ter, morando com dez pessoas, divididas em três ou qua-
tro cômodos. Então eu encontrava um pouquinho de privacidade ca-
minhando pelos campos. Eu tinha de pegar água no poço, então este
era também um tempo que tinha para mim mesma. Eu passava tanto
tempo ao ar livre que quando comecei a escrever e me peguei escre-
vendo meu primeiro livro de poemas, Once {Uma Vez}, debaixo de
uma árvore no Quênia, aquilo me pareceu perfeitamente normal.
"Eu tinha também professores incríveis. Quando eu tinha qua-
tro anos e minha mãe precisou ir trabalhar no campo, a professora
do primeiro ano deixou que eu freqüentasse suas aulas. Durante todo
o primário, e depois o segundo grau e a faculdade, houve sempre
um, às vezes até dois professores que me salvaram da sensação de
solidão; da dúvida de que o mundo que eu tentava alcançar talvez
nem existisse.
"E claro que todas as escolas que freqüentei eram negras e que
isso nos dava a sensação de pertencerem a nós mesmos. Se havia carteiras
ou um palco, era porque os homens da comunidade haviam se jun-
tado para construí-los. Meus pais promoviam o que chamavam de
reuniões, para angariar fundos para a escola primária quando eu a
freqüentei. Havia muita disposição para a auto-ajuda e um senti-
mento de comunidade.
"Meus professores me emprestavam livros. Jane Eyre foi minha
amiga durante muito tempo. Os livros tornaram-se meu mundo porque
o mundo no qual eu vivia era difícil de se viver. Minha mãe traba-
340 GLORIA STEINEM

lhava como doméstica e ficava fora de seis e meia da manhã até depois
que escurecia. Como uma de minhas irmãs fora morar no Norte e a
outra se tornara esteticista, eu era responsável pela casa e pela comi-
da. Eu tinha doze anos e quando voltava da escola encontrava uma
casa vazia, para limpar e cozinhar. E ninguém dava muito valor à
luta que era manter aquilo tudo. Eu sentia muita falta de minha mãe.
Ouvimos ecos das histórias de Alice e seus personagens estão todos
presentes. Como Celie, ela começou a escrever como forma de so-
breviver.
— Dos oito em diante, passei a escrever num caderno. Eu o
encontrei há pouco tempo e fiquei surpresa, os poemas eram horrí-
veis, mas eram poemas. Há até um prefácio no qual agradeço a to-
dos que foram forçados a me ouvir ler aquele material: minha mãe,
minha professora e meu tio Frank, que era cego.
Como o narrador de seus muitos poemas e histórias, ela tinha
uma mãe em cuja coragem e sabedoria ela se apoiava. E ainda se
apóia. Aos quase setenta anos, ainda vivendo na mesma cidadezinha
da Geórgia, sua mãe já está fraca demais para trabalhar. Alice a vi-
sita com freqüência. Ela conta os dois presentes que sua mãe lhe deu
com sacrifício, uma maleta e uma máquina de escrever, claramente
uma permissão para se aventurar e para trabalhar. Seu pai, que morreu
há nove anos, era um homem perturbado e complicado, de quem
ela diz ter sido muito próxima quando criança, mas ele não soube
compreender a mulher na qual a filha se transformou.
No ensaio "O País de Meu Pai São os Pobres", ela escreve sobre
a separação que nenhum dos dois quis, uma distância entre pai e
filha que a pobreza extrema e o sacrifício para o progresso da gera-
ção seguinte tantas vezes cria.
Como Meridian, a personagem principal de seu segundo romance,
ela ganhou uma bolsa e foi para Spelman, uma faculdade para mu-
lheres negras, em Atlanta. Para Alice, a oportunidade era parte de
um resultado irônico de um acidente ocorrido na infância e que a
deixara "deficiente".
Aos oito anos, enquanto brincava com os irmãos mais velhos,
ela foi ferida com um tiro de espingarda de chumbinho. Ficou cega
do olho direito. Um médico local previu que ela eventualmente per-
deria também a visão do outro olho e, embora estivesse enganado,
ela viveu com este medo durante muitos anos.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 341

Ela também precisou viver com um tecido morto que cresceu


por cima do olho cego como uma enorme catarata.
— Eu rezava todas as noites para acordar um dia e descobrir
que a pele sumira — ela recorda. — Eu não conseguia olhar direta-
mente para ninguém porque me achava feia. Flannery O'Connor diz
que um escritor precisa ser capaz de encarar os outros, para ver tudo
o que está acontecendo. Eu jamais levantava a vista.
— Quando fiz quatorze anos, fui para a casa de meu irmão Bill
para cuidar de seus filhos durante o verão. Ele me levou a um hospi-
tal, onde retiraram grande parte daquele tecido. Eu me transformei
em outra pessoa.
— Logo fui para casa, comecei a namorar o rapaz mais bonito e
quando chegou a época de me formar no segundo grau, eu era a me-
lhor aluna da turma, fora eleita "a mais popular" e coroada rainha
da turma!
Ela ri de si mesma, mas muito do medo daqueles anos ainda está
ali. Alice acaba de explicar um dos mistérios sobre ela mesma que a
sua obra não desvenda: porque ela jamais parece saber que é uma
belíssima mulher.
Talvez aqueles anos de infância também expliquem como ela con-
segue escrever de dentro da cabeça de alguém como Celie, alguém
que a sociedade exclui por ser pobre, negra e, ainda por cima, feia.
— Eu antigamente sonhava que vinha um ônibus pela estrada
— Alice diz, pensativa — e que o motorista descia bem no lugar
onde eu o aguardava, com minha sacola. Então ele estendia a mão
para que eu pagasse a passagem e eu colocava um olho ali.
"E claro que isto é verdade. Se eu não tivesse perdido a visão de
um dos olhos para sempre, eu não teria sido qualificada para a bolsa
de 50% com livros gratuitos que o Departamento de Reabilitação
do Estado da Geórgia dá para os seus "deficientes". A outra metade
da minha mensalidade veio da própria Spelman, devido às excelen-
tes notas tiradas no segundo grau, às enfáticas recomendações do
diretor da escola e dos meus professores e o fato de eu ter sido a melhor
aluna da turma e por não ser muito preta. Uma das minhas profes-
soras jura que entrou para a Spelman porque seus pais eram pobres
demais para colocar uma foto sua no formulário de solicitação de
vaga. Mas, num sentido bem literal, entrar na faculdade me custou
o olho da cara.
342 GLORIA STEINEM

E assim ela foi para a Spelman, o começo de uma longa jornada,


e então transferiu-se para Sarah Lawrence College em Nova York,
também com bolsa de estudos, foi para a África e voltou, como Nettie,
e trabalhou no movimento de direitos civis no Mississippi, como
Meridian. Ela escrevia o tempo todo.
Há outro mistério da Alice visível que só mesmo sua obra expli-
ca. Sentada à minha frente, ela tem a voz mansa, é suave e reticente.
Eu já a vi passar horas sem falar coisa alguma em reuniões, mesmo
que o assunto discutido seja de seu interesse. Um escritor já a cha-
mou de "guerreira improvável". E, no entanto, a fúria, a vingança e
os justificáveis assassinatos imaginários que povoam sua obra fazem
parte da mesma Alice. Você só precisa conhecê-la bem o bastante
para ver a raiva aflorar.
Eu me lembro de ter ouvido Alice após reunir-se com editores
para discutir um trabalho que lhe fora dado pela revista do The New
York Times sobre o Novo Sul. Eles lhe pediram para reescrever o arti-
go porque ela não incluíra "um número razoável de gente branca"
no ensaio. Depois de feito o erro, eles o pioraram observando que
afinal de contas ela fora "casada com um branco".
— Ele não é um grupo — ela disse, furiosa. — E Mel, uma
pessoa.
E mais tarde ela mandou uma carta para os mesmos infelizes
editores. Relatou os sete anos passados no Mississippi, enfrentando
xerifes sulistas com mangueiras e cachorros, e deixou claro que, em
geral, comparado ao almoço que tivera com eles, ela preferia a com-
panhia dos cães.
— É verdade que eu fantasio esquemas de vingança por injus-
tiças cometidas — ela diz, sorrindo de minha lembrança da furiosa
carta e sem sentir o menor remorso por tê-la escrito. — Imagine só
que maravilha deve ser a sensação de matar um homem branco que
lhe oprime. Eu sonhava em me sentar no colo de um político racista
com uma granada na mão e explodirmos os dois.
E significativo que, até mesmo na sua fúria mais assassina, ela
não consiga se imaginar matando outro ser humano sem se matar
junto. Como os protagonistas de Meridian e The Third Life of Grange
Cope/and, ela consegue apoiar o assassinato do inimigo por motivos
justificáveis, mas apenas se isto custar a vida do justo. Este equilí-
brio moral é o freio de seu desejo de vingança.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 343

— Ultimamente — ela acrescentou —, tenho acreditado que


somos ajudados quando lutamos. Quando um país ou uma pessoa
oprime um povo, o país ou a pessoa pagará por isto. Isso ocorre com
mais freqüência do que deixa de ocorrer. Ano após ano, os índios
morreram na Trilha das Lágrimas. Andrew Jackson, presidente àquela
época, precisou ser enfaixado tal e qual uma múmia para que suas
carnes permanecessem grudadas aos seus ossos.
"Acho que a ausência de negros no movimento nuclear tenha a
ver, também, com esta crença na justiça. Como o homem branco
viveu de violar a terra e depois de ameaçar a nós todos com a bom-
ba, por que não deixá-lo morrer com suas bombas? Por outro lado,
não queremos morrer com eles. É por isso que começamos a lutar
contra a guerra nuclear também.
Esta sede de justiça pertence a uma mulher cuja infância foi
pontuada por histórias de linchamentos e que, mais tarde, sentiu
que estas histórias estavam mal contadas. ("Quando jovens negras
eram estupradas e mortas e atiradas no rio", ela explica, "ninguém
dizia que haviam sido linchadas. Mas foram.")
Aos doze anos, as mesmas garotinhas com as quais brincara dia-
riamente tinham de ser chamadas de "Miss", uma mudança que ela
se recusou a fazer. Esta força e esta auto-estima foram criadas numa
pequena comunidade na qual quase todo mundo — pastores, pro-
fessores, vizinhos — eram negros. Adultos brancos não eram vistos
como indivíduos e sim como um grupo de adversários distantes.
E no entanto, quando estava na faculdade, ela recusou as honra-
das e a ajuda financeira da qual precisava desesperadamente por ter
achado que o reitor, negro, demitira Howard Zinn, um professor
branco, injustamente, por ser esquerdista demais, por ser engajado
demais nos movimentos de direitos civis, por fazer as alunas rirem
demais e por ser "incorreto" demais.
Depois de Sarah Lawrence, onde encontrou apoio para escrever
mas sentiu a alienação de estar, pela primeira vez na vida, numa
sociedade quase que completamente branca, ela passou as férias de
verão viajando pela África, com uma bolsa, procurando seu lar espi-
ritual. Mas ela era encarada como um tipo peculiar de americana
com mais freqüência do que como uma filha retornando ao lar. Ela
também sentiu o sofrimento das mulheres e a condescendência de
muitos homens.
344 GLORIA STEINEM

Um conto não publicado, escrito neste período, "O Suicídio de


Uma Garota Americana", descreve o encontro de uma jovem ame-
ricana com um estudante africano. Como ele se sente atraído mas ao
mesmo tempo agredido pela sua independência, ele a estupra. Como
um tipo de sacrifício escolhido, em nome da necessidade de poder
do rapaz, ela não opõe resistência. Depois que ele parte, ela liga o
gás e aguarda a morte, silenciosamente. É um conflito de vontades
e de valores que, hoje em dia, Alice não resolveria através da desis-
tência. No seu mais recente livro de poesias, Good Night Willy Lee,
I'll See You in the Moming, assim como em A Cor Púrpura, ela escreve
sobre o destino de algumas mulheres africanas com ironia e raiva.
— Precisamos desbancar este mito de que a África é o paraíso
dos negros, especialmente em se tratando de mulheres negras —
ela, hoje, afirma com convicção. —Nós temos sido as mulas do mundo
lá e as mulas do mundo aqui.
No Mississippi, no final dos anos sessenta, Alice começou a es-
crever sobre as vidas das mulheres simples do Sul; mulheres como a
sua mãe. Enquanto registrava eleitores e lutava pelos direitos
previdenciários, ela colecionava as histórias folclóricas que lhe con-
tavam e registrava detalhes do dia-a-dia do povo. Foi durante esta
pesquisa que descobriu Zora Neale Hurston, um surpreendente dado
novo para os autores brancos que registravam o folclore negro com
condescendência. A obra de Hurston tornou-se uma importante
influência na vida de Alice, assim como sua luta para vê-la reimpressa
e disponível ao grande público. Alice procurou o cemitério obscuro
e isolado no qual Hurston fora enterrada após morrer pobre, num
abrigo mantido pela previdência, e comprou uma lápide para hon-
rar aquela sepultura anônima.
Foi durante os anos passados no Mississippi que conheceu Mel
Leventhal, o advogado de direitos civis com quem foi casada duran-
te dez anos e o pai com quem Rebecca passa metade do tempo.
Continuam amigos, apesar do divórcio.
— Mel e eu vivíamos felizes há quase um ano — ela conta. —;
Mas ambos podíamos ver que, com base na história, não podería-
mos sair pelo mundo afora e fazer nosso trabalho político sem nos
casarmos. Assim, poderíamos também questionar as leis que proibiam
casamentos mistos, além do fato de realmente nos amarmos. Amor,
política e trabalho: uma incrível união de forças.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 345

"Ele foi a primeira pessoa a apoiar consistentemente minha luta


para escrever. Todas as vezes que nos mudávamos, a primeira coisa
que ele fazia era ajeitar um lugar onde eu pudesse trabalhar. Às ve-
zes ele se assustava com o que saía, mas estava sempre presente."
Embora ela diga que não consegue se imaginar casada outra vez,
vive há vários anos com Robert Allen, escritor e editor do The Black
Scholar. Eles mantêm apartamentos separados mas passam fins de
semana juntos no campo.
Uma vez que A Cor Púrpura foi jogado no mundo, Alice come-
çou a viajar para ler suas poesias e para dar palestras. Como Notável
Autora do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Univer-
sidade de Berkeley, ela deu um curso, "A Vida Interior: Visões do
Espírito", e também ensinou redação durante um semestre em Brandeis
University. Como professora, crítica literária e editora, ela apresenta
estudantes e leitores americanos a importantes autores africanos tais
como Bessie Head e Ama Ata Aidoo. Ela insiste em que autores negros
sejam incluídos em cursos de Estudos Feministas e que os cursos de
Estudos sobre Negros não negligencie as mulheres.
Mas lecionar e fazer leituras de poesias são principalmente for-
mas de financiar outros longos períodos de silêncio. ("Tudo", ela diz,
"sai do silêncio.") Ela está pensando em outro romance.
Nesse meio tempo, ela vem selecionando ensaios para o livro In
Search ofOur Mother's Gardem: A Colkction ofWomanüt Prose {Em busca
dos jardins de nossas mães: uma coletânea de prosa mulherista}. (Ela
prefere o termo "womanist" ["mulherista"] a "feminista" por achar
que soa mais forte e por ser mais inclusivo.) Ela também é politicamente
ativa, o mais ativa que uma pessoa solitária que detesta reuniões
consegue ser. Junto com a romancista Tillie Olson, Alice co-patro-
cinou uma reunião do Partido de Mulheres pela Sobrevivência, um
protesto contra o uso de armas nucleares. Esta preocupação com a
fragilidade de nosso futuro é tema de seus mais recentes poemas.
— Livros são subprodutos de nossas vidas — ela explica. —
Livrai-me dos escritores que dizem que não importa como vivem.
Não estou bem certa se uma pessoa ruim possa escrever um bom
livro. Se a arte não nos melhora, por que então ela existe?
Todo este falatório sobre ativismo de repente me faz lembrar de
uma viagem que fiz com Alice no começo dos anos setenta, para um
protesto comemorativo do aniversário de Martin Luther King. Eu
346 GLORIA STEINEM

me perdi de Alice nas ruas mas encontrei um grupo de estudantes


de Spelman que a estivera procurando. Elas sabiam cada palavra de
suas obras de cor e vieram para Atlanta com a esperança de conhecê-
la. Elas haviam até mesmo ido à casa onde Alice passara sua infân-
cia, na Geórgia, da mesma forma que Alice procurara o local em
que Zora Neale Hurston nascera.
Na época, eu me arrepiei com o paralelo, quando a obra de Ali-
ce era menos conhecida. E até mesmo agora a idéia não desapare-
ceu: será que a obra de Alice também poderá se perder? Como Hurston,
ela nos foi apresentada numa época em que seus anos produtivos
coincidiram com um movimento pela justiça social, mas o que acon-
teceria se esta coincidência deixasse de existir? Será que Ralph Ellison
tinha razão quando disse que os americanos rejeitam romances sérios
até que o seu momento tenha passado e eles tenham perdido sua
acuidade moral?
Talvez necessitemos de uma campanha igualmente enérgica para
colocar e manter bons livros em circulação da mesma forma que lutamos
para manter bons líderes no poder. Se críticos e acadêmicos inves-
tem em panteões literários mais seguros e mais distantes, nós tere-
mos de criar nossas próprias redes de distribuição e nossas próprias
editoras, como muitas feministas e outros grupos estão fazendo, além
de pressionar para mudar as que já existem.
Se assim for, eu sugiro um critério populista para aquilo que é
publicado: será que poderíamos confiar em um autor específico para
compreender as complexidades e realidades de nossas próprias vi-
das? Será que ela ou ele consegue nos enxergar com clareza, sem
preconceitos contra ou favor de nós, com compaixão no coração?
Acho que podemos confiar no fato de Alice nos conhecer. E po-
demos mudar para melhor se a conhecermos.

— 1982

PÓS-ESCRITO

Em 1983, A Cor Púrpura venceu o American Book Award e foi o


primeiro romance escrito por uma mulher negra a vencer o Prêmio
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 347

Pulitzer. O romance foi traduzido em todos os continentes, intro-


duzindo a fala do povo do campo, pela primeira vez, para muitos
leitores estrangeiros. Em 1985, foi transformado num clássico do
cinema, um processo que transformou em tema de seu mais recente
livro, The Same River Twice: Honoring the Difficult {O mesmo rio duas
vezes: celebrando o difícil]. Desde que escrevi este texto, ela escre-
veu mais dois romances, escreveu um livro a respeito da mutilação
genital feminina e realizou um filme sobre o mesmo assunto, e es-
creveu mais ensaios e muitos poemas. Espero que isto responda à
pergunta acima; a obra de Alice Walker não poderá ser perdida para
o mundo.

-1995
Houston e a História

Se o nosso Estado fosse uma democracia autêntica teria ainda de excluir


de nossas deliberações as mulheres que, para prevenir a queda da moralidade
e a ambigüidade das questões, não deveriam se misturarpromiscuamente
em encontros de homens.

— Tomas Jefferson

Em 1972 as Nações Unidas declararam que 1975 seria o Ano Inter-


nacional da Mulher. A reação não foi de todo boa entre as mulheres
do mundo. Seria isto como o Ano Internacional do Deficiente Físi-
co? Ou uma admissão de que todos os outros eram o Ano do Ho-
mem?
No entanto, muitos governantes começaram a coletar estatísti-
cas para apresentar na Conferência do Ano Internacional da Mulher
na Cidade do México, o que foi, em si, um resultado compensador.
Em alguns países, essa foi a primeira vez que a posição das mulheres
foi enfocada por uma pesquisa. Determinadas mulheres e suas orga-
nizações decidiram usar essa atenção mundial como uma oportuni-
dade para encontrarem-se e para avançarem a causa da igualdade de
qualquer maneira que lhes fosse possível. Neste país, o presidente
Ford designou uma Comissão do Ano Internacional da Mulher, com-
posta por 39 membros, para coletar estatísticas e recomendações e
viajar para a Cidade do México como delegadas. Milhares de mu-
lheres americanas também foram lá, para participar dos eventos extra-
oficiais que freqüentemente superavam em número e em importân-
cia os oficiais. Ao término daqueles poucos dias, pelo menos uma
outra conferência mundial tinha sido exigida, e o Ano Internacional
da Mulher se tornara a Década da Mulher.
Para muitas americanas, oficiais e extra-oficiais, essa foi a pri-
meira experiência de expansão mental em um encontro maciço e
352 GLORIA STEINEM

multicultural de mulheres. Também foi uma fonte de aprendizado.


A gama de questões discutidas foi tão diversa culturalmente quanto
espantosamente similar em relação aos problemas básicos das mu-
lheres em sociedades dominadas por homens. As divisões naciona-
listas entre mulheres, que concordavam sobre as coisas básicas, fo-
ram destrutivas e frustrantes. E, como as mulheres da maioria dos
países, a parte feminina dos Estados Unidos foi representada por uma
delegação e agenda nacional oficial que podia ou não ser o que tí-
nhamos em mente. Apesar das muitas comissões presidenciais e de
outros esforços de boa vontade para "estudar" as mulheres america-
nas, ninguém jamais nos perguntou coisa alguma.
Foi esse desejo de trabalhar nossas próprias agendas de assun-
tos, objetivos e cronogramas que motivou as congressistas Bella Abzug
e Patsy Mink, no início de 1975, quando rascunharam e tentaram
obter o apoio de outras congressistas para a Lei Pública 94-167 —
uma proposta para uma conferência pública, financiada pelo gover-
no em cada estado e território, que identificaria questões e elegeria
delegadas para uma Conferência Nacional de Mulheres. Como um
tipo de Convenção Constituinte para mulheres — uma compensa-
ção pelo fato dos patriarcas da Constituição terem excluído as mu-
lheres da primeira convenção —, este corpo nacional eleito recomen-
daria, então, ao Congresso e ao Presidente aquelas mudanças nas leis,
procedimentos governamentais, e na própria Constituição, que re-
moveriam as barreiras à igualdade das mulheres.
Depois da Cidade do México, houve entusiasmo e publicidade
internacional suficientes para forçar sua aprovação. É claro que o
Congresso não aprovou e não concedeu verbas até depois do ano do
bicentenário, em 1976, ano no qual a conferência estava prevista
acontecer, e sua modesta solicitação de verba de dez milhões de dó-
lares foi cortada para cinco milhões: menos do que o custo de enviar
um cartão-postal para cada mulher adulta do país. No entanto, uma
nova Comissão Internacional de Mulheres foi designada pelo presi-
dente Carter, desta vez com o propósito de realizar o complexo pro-
cesso de organizar uma conferência representativa em cada estado e
território e eleger delegadas em número proporcional às suas popu-
lações.
Graças ao entusiasmo, energia e sacrifício das mulheres que res-
ponderam ao apelo e gastaram meses em contatos e se organizando
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 353

dentro de seus próprios estados, algumas das 56 conferências de dois


dias de duração foram assistidas por nada menos que vinte mil mu-
lheres e homens interessados. Eles foram os maiores e mais repre-
sentativos encontros políticos, em termos econômico e racial, em nível
estadual, jamais realizados. O resultado não foi somente a identifi-
cação de barreiras à igualdade em 26 áreas, desde as artes e humani-
dades à assistência social, mais a eleição de duas mil delegadas que
foram as primeiras (e ainda as únicas) representantes políticas nacionais
nas quais famílias com rendimentos inferiores a vinte mil dólares ao
ano, minorias raciais e todas as pessoas acima de dezoito anos esta-
vam representadas em proporção às suas presenças reais na popu-
lação.
Uma vez em Houston, que sediou a primeira Conferência Nacional
de Mulheres em novembro de 1977, quinze mil participantes, in-
cluindo observadores de outros países, se reuniram aos dois mil de-
legados votantes. Um procedimento de debate e de votação cuida-
doso permitiu quatro dias de discussões e de votações sobre cada uma
das 26 áreas recomendadas pelas conferências de estado.* Embora
as mulheres e os homens contrários à igualdade também fizessem
um encontro de protesto em outra parte de Houston, liderados pelo
congressista de direita Robert Dorman e pela antifeminista Phyllis
Schlafly, suas visões eram justamente, talvez de forma desproporcional,
representadas por algumas das delegadas votantes. Em alguns esta-
dos, a invasão calculada e desproporcional de conferências por gru-
pos tais como os mórmons, batistas fundamentalistas, e, no Mississipi,
a Ku Klux Klan tinham conseguido eleger delegadas cujas posições
não iam de encontro às opiniões da maioria do estado que represen-
tavam, segundo pesquisas eleitorais e de opinião pública. No entan-
to, resoluções a favor da igualdade foram aprovadas e, de acordo com
as pesquisas de opinião nacional, realizadas após o encontro de Houston,
tiveram o apoio majoritário dos americanos, homens e mulheres.
Conforme informou a jornalista Lindsy Van Gelder, de Houston:
"Era como uma fila na caixa do supermercado de Qualquer Lugar,
EUA, transportando à arena política donas de casa e freiras, adoles-

*Para o texto completo deste Plano Nacional de Ação, ver Caroline Bird, What Women Want: The
National Women's Conference [O que querem as mulheres: a conferência nacional de mulheres] (Nova
York: Simon and Shustet, 1979).
354 GLORIA STEINEM

centes e cidadãos adultos, secretárias, fazendeiras e advogadas, pe-


les de mogno e branco e café com leite. Éramos um poema de Carl
Sandburg personificado só por mulheres."
Certamente a conferência de Houston foi muito mais represen-
tativa em termos de raça, classe e idade do que a Câmara de Depu-
tados ou o Senado americanos, e mais democrática em seus procedi-
mentos — de permitir debates no plenário, emendas, propostas
substitutas até encorajar o voto pela consciência individual mais do
que pelos blocos geográficos ou pela recompensa política — do que
as convenções presidenciais nacionais, que eram seu modelo mais
próximo. O longo e complexo caminho trilhado até Houston foi
freqüentemente frustrante e imperfeito, mas seus resultados impres-
sionantes surpreenderam muitos americanos, incluindo as mulheres
que mais se empenharam para fazê-la acontecer.
Se este projeto gigantesco começa a soar sem precedentes, exis-
tem muitos motivos fatuais pelas quais o é. Mas eventos compará-
veis aconteceram no passado. As mulheres agiram contra os siste-
mas políticos dominados pelos homens durante os séculos de suas
existências. Algumas destas ações foram, pelo menos, igualmente
impressionantes e, em seus próprios contextos, mais corajosas. Se
quisermos preservar o espírito de Houston, devemos estar cientes
de que eventos similares, mutantes e desafiadores, promovidos pe-
las mulheres, não foram registrados e foram suprimidos, ridiculari-
zados ou tratados com violência no passado.

Quando eu era estudante e aprendia a história americana nos livros


dos anos cinqüenta, li que às mulheres brancas e negras havia sido
"dado" o direito ao voto em 1920, inexplicavelmente cinqüenta anos
após ter sido "dado" aos homens negros o direito ao voto como re-
sultado de uma guerra civil lutada em prol deles. Aprendi pouco sobre
os muitos negros que tinham se revoltado e lutado por sua própria
liberdade, e nada sobre os mais de cem anos de luta travada por re-
des nacionais de mulheres brancas e negras que se organizaram e
palestraram no país pelo sufrágio da mulher e do negro numa época
em que nem se cogitava que elas falassem em público. Elas pressio-
naram seus legislativos, totalmente brancos e masculinos, fizeram
passeatas nas ruas, greve de fome e foram para a cadeia, e se opuse-
ram ao direito do país de "lutar pela democracia" na Primeira Guer-
MEMÓRIAS DF rRANSGRESSÕES 355

ra Mundial quando a metade feminina do mesmo não possuía ne-


nhum direito político. Em resumo, não aprendi que muitas gera-
ções de nossas antepassadas quase tinham parado o país a fim de
obterem identidade jurídica como seres humanos para as mulheres
de todas as raças.
Pelo menos o direito ao voto era citado nos livros de história como
sendo algo que as americanas nem sempre tiveram. Outras partes
daquela identidade jurídica — o objetivo da primeira longa onda de
feminismo do país — não foram mencionadas. A quantas de nós foi
ensinado o significado, para as mulheres, de ser propriedade huma-
na de seus maridos e pais, e de morrer uma "morte civil" sob a lei do
casamento? Era um status de mercadoria tão claro que os primeiros
senhores escravistas americanos do século XVII simplesmente ado-
taram-no, como observou Gunnar Myrdal, como a "analogia mais
natural e mais próxima" ao status jurídico dos escravos.* Como es-
tudantes, quantos de nós aprenderam que o direito à propriedade
de uma mulher adulta americana, o direito de processar, de assinar
testamentos, de guardar o salário que ganhou em vez de dá-lo ao
marido ou pai que a "possui", de ir à escola, de ter a guarda dos pró-
prios filhos, de deixar a casa de seu marido sem o perigo de ser for-
çada a retornar, de escapar ao direito do marido de discipliná-la fisi-
camente, de desafiar a prisão social de ser uma eterna menor se per-
manecer solteira ou uma não-pessoa jurídica se não casar—que todos
estes direitos tinham sido obtidos através de gerações de esforços de
um movimento independente e corajoso de mulheres?
Quando estudamos o progresso americano, em termos de liber-
dade religiosa, pudemos ler sobre as várias feministas do século XIX
que desafiaram a estrutura patriarcal da Igreja, que ousaram questionar
as retóricas das escrituras tais como a frase do Apóstolo Paulo: "Es-
posas, submetam-se aos seus maridos como a Deus"? Alguém nos
deu um livro chamado A Bíblia da mulher, uma revisão muito cora-
josa e sábia das escrituras feita por Elizabeth Cady Stanton?
Ao lermos sobre perseguição religiosa e política na América,
aprendemos que o frenesi das bruxas da Nova Inglaterra, com jul-
gamentos, torturas e fogueiras, eram grandes perseguições a mu-

*Gunnar Myrdal, An American Dilemma [Um dilema americano] (Nova York: Harper and Brothers,
1994), 1073.
356 GLORIA STEINEM

lheres sábias ou independentes, a parteiras que faziam abortos e


ensinavam a respeito de anticoncepcionais, a mulheres que desafia-
vam a estrutura de poder masculina de diversas maneiras?
Quando ouvimos falar das pessoas corajosas que acolhiam es-
cravos fugitivos, foi mencionado o papel de mulheres como Susan
B. Anthony, que escandalizou e alienou aliados abolicionistas aju-
dando não apenas os escravos negros como esposas e crianças fugiti-
vas que escapavam da brutalidade de maridos e pais brancos que as
"possuíam"?
E claro que registrar o fato de que tanto negros quanto mulhe-
res eram mercadorias jurídicas ou que seus mitos paralelos de inferio-
ridade "natural" eram (e às vezes ainda são) usados para tornar am-
bos uma fonte de mão-de-obra barata não deve ser confundido com
igualar os dois grupos. Negros e negras geralmente sofreram mais
restrições às suas liberdades, mais crueldade e violência abertas, e
tiveram suas vidas colocadas em maior risco. Ensinar uma menina
branca a ler poderia ser considerado perigoso e até mesmo pecado,
mas não era contra a lei, como era para os negros de muitos estados
do Sul. Era muito menos provável que mulheres brancas arriscas-
sem suas vidas ou fossem separadas de seus filhos do que os escravos
negros, e particularmente menos do que as negras que eram força-
das a gerarem mais escravos. Angelina Grimke, uma feminista su-
lista, corajosa e branca, que lutou contra a escravidão de sexo e raça,
sempre observava: "Não sentimos a chibata dos senhores de escra-
vos... não tivemos nossas mãos algemadas."*
No entanto, as mulheres brancas às vezes eram brutalizadas e
mortas em espancamentos domésticos "justificados", e vendidas como
trabalhadoras forçadas como punição pela pobreza, ou pelo envol-
vimento com um negro, ou por infringir a lei de obediência. O tra-
balho pesado combinado com os anos gerando crianças, à força, para
encher a nova terra de gente, pode ter levado a expectativa de vida
de mulheres brancas a cair abaixo da metade da dos homens bran-
cos. Os primeiros cemitérios americanos, repletos de mulheres jo-
vens que morreram de parto, comprovam o desespero que fazia com
que muitas mulheres procurassem parteiras em busca de métodos

* Angelina Grimke, em Elizabeth Cady Stanton et ai., The History of Woman Suffrage [A historia
sufrágio feminino], vol. 2 (Rochester: Charles Mann, 1899).
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 357

anticoncepcionais ou para fazer abortos. As punições mais típicas para


as mulheres brancas eram humilhação, perda da liberdade e da iden-
tidade, e ter sua saúde e espírito danificados. Como Angelina Grimke
explicou: "Eu fico muito feliz que nossa resolução nos una aos ne-
gros. Sinto que estivemos com eles: que o ferro entrou em nossas
almas... nossos corações foram esmagados."
Mas porque tantos dos meus livros de história presumiam que
as mulheres brancas e os negros não podiam ter questões em comum,
tanto que não relatavam as alianças contra a escravidão e o sufrágio
universal? Os historiadores parecem dar pouca atenção aos movi-
mentos dos sem poder. Talvez o desafio íntimo majoritário apresen-
tado pelas mulheres de todas as raças e homens de cor fosse (e ainda
é) menos assustador se simplesmente ignorado.
Certamente, as lições de história não eram ignoradas por serem
invisíveis na época. Grande parte da longa luta pela identidade fe-
minina e negra tinha sido travada como uma coalizão consciente e
funcional. ("Resolvido. Nunca poderá haver paz verdadeira nesta
República até que os direitos civis e políticos de todos os cidadãos
descendentes de africanos e todas as mulheres estejam praticamente
estabelecidos." Esta afirmativa foi feita por Elizabeth Cady Stanton
e passou numa convenção de Nova York em 1863.) Como muitas
das primeiras feministas, Stanton acreditava que preconceitos de sexo
e raça deveriam ser combatidos juntos, que ambos eram "produto
da mesma causa, e manifestavam-se da mesma maneira. A pele dos
negros e o sexo da mulher são usados como prova prima fade de que
eram feitos para serem subjugados aos homens saxões brancos".
Frederick Douglass, o escravo fugitivo que se tornou um líder nacional
do movimento abolicionista e para estabelecer a identidade de to-
das as mulheres, resumiu em sua autobiografia: "Quando a verda-
deira história da causa antiescravagista for escrita, as mulheres ocu-
parão um grande espaço em suas páginas, pois a causa do escravo
tem sido, especialmente, a causa da mulheres."* Quando Douglass
morreu, os jornais relataram seu luto como um "amigo das mulhe-
res" assim como um abolicionista pioneiro. E havia muitas outras
coalizões óbvias como esta.

* The Life and Times of frederick Douglass [A vida e os tempos de Frederick Douglass] (Nova York:
Collier, 1962), p. 469.
358 GLORIA STEINEM

Se um maior número de nós houvesse aprendido as origens pa-


ralelas dos movimentos abolicionista e sufragista, poderia ter sido
menos surpreendente quando um novo movimento chamado "liber-
tação das mulheres" surgiu com a politização das mulheres brancas
e negras nos movimentos de direitos civis da década de 1960. Cer-
tamente um conhecimento das palavras de Frederick Douglass po-
deria ter evitado que alguns homens brancos e negros, tanto nos
movimentos de direitos civis como no pacifista, sentissem que seu
poder depende do papel de cidadão de segunda classe das mulheres
ou de verem que eles mesmos travavam, às vezes, uma guerra sexual
contra as mulheres, nos vilarejos do Vietnã e em casa. Se às mulhe-
res tivesse sido ensinado que os sentimentos de conexão emocional
aos grupos sem poder eram lógicos — e que as mulheres também
não tinham poder enquanto casta, e que era compreensível seu apoio
quando as manifestações em favor da paz e dos direitos civis rejeita-
vam a violência como prova de masculinidade —, certamente eu e
as outras mulheres de minha geração teríamos gasto menos tempo
estranhando nosso intenso e inesperado sentimento de identificação
com todos os grupos "errados": o movimento negro, os trabalhado-
res migrantes, e homens contemporâneos que desafiavam o papel
"masculino" ao se recusarem a lutar no Vietnã.
No entanto, as sufragistas eram freqüentemente retratadas como
intelectuais chatas e ridículas nos livros de história: certamente não
eram as heroínas necessárias na América moderna onde as mulheres
eram, como nos diziam autoridades masculinas ressentidas, "as mais
privilegiadas do mundo". Algumas de nós foram desencorajadas a
explorar nossas forças humanas pelas acusações freudianas de inveja
do pênis, síndrome da mãe dominadora, carreirismo, matriarcado
negro que era (de acordo com alguns sociólogos brancos) mais peri-
goso para os homens negros do que o racismo, branco, somado a outras
ofensas dignas de punição. Os homens freqüentemente emergiam
da Segunda Guerra Mundial, da análise freudiana e de vestiários com
vagas ameaças de substituir qualquer mulher petulante por uma mais
subserviente — uma noiva da guerra da Ásia ou da Europa em vez
de americanas "estragadas", por exemplo, ou uma mulher branca
"feminina" para substituir uma "matriarca" negra ou mesmo algu-
ma "outra mulher", jovem e cheia de adoração, para substituir uma
esposa que ameaçasse sair de seu papel tradicional.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 359

Foram muitos anos dolorosos de reinvenção da roda antes que


reaprendêssemos as lições que nossas mães do passado poderiam nos
ter ensinado: que uma mitologia de inferioridade, baseada em sexo
e raça, era usada para transformar ambos os grupos em um gigan-
tesco sistema de apoio. Limitação intelectual, natureza infantil, fal-
ta de habilidades específicas (as mais bem pagas), natureza emotiva
e forte ligação com a natureza, inabilidade em conviver com seu próprio
grupo, atrasos crônicos e irresponsabilidade, satisfação com sua po-
sição "natural" — todos estes mitos paralelos foram usados em al-
gum grau contra mulheres de todas as raças e homens de cor.
"O paralelo entre mulheres e negros é a mais pura verdade da
vida americana, pois juntos eles formam a mão-de-obra não-remu-
nerada ou mal remunerada da qual a América depende." Esse foi
Gunnar Myrdal, escrevendo em 1944, num obscuro apêndice ao seu
estudo pioneiro sobre o racismo, An America Dilemma £Um dilema
americano}. Mesmo nos anos sessenta, quando descobri aquelas pa-
lavras (e queria muito tê-las lido anos antes), eu ainda não sabia que
Susan B. Anthony tinha colocado a mesma questão, mais sucinta-
mente, quase um século antes de Myrdal. "A mulher," ela disse, "tem
sido a maior trabalhadora não-remunerada do mundo."
Os movimentos atuais de justiça racial e sexual vêm obtendo
algum sucesso em pressionar para a criação de cursos de história das
mulheres, dos negros, dos hispano-americanos, dos americanos na-
tivos, e muitos outros, mas essas matérias ainda tendem a ser maté-
rias especiais, estudadas somente por aqueles com grande interesse
e menor necessidade. Eles raramente são parte integrante e inescapável
dos livros de história americana lidos por todos os estudantes.
Se o passado recente de nosso próprio país ainda está incomple-
to para muitas de nós, sabemos menos ainda sobre outros países e
sobre épocas mais remotas.
O que sabemos sobre as rainhas guerreiras africanas de Daomé,
que lideraram seus exércitos contra invasores coloniais? Ou as mu-
lheres do mercado da África Ocidental moderna que gerenciam os
negócios diários de seus países? Se sabemos pouco sobre o relaciona-
mento dos caçadores de bruxas da Nova Inglaterra com a política
patriarcal, quanto sabemos sobre as mais de oito milhões de mulhe-
res que foram queimadas na Europa medieval num esforço de elimi-
nar uma religião que honrava o poder das mulheres e da natureza?
360 GLORIA STEINEM

Se não conhecemos nem mesmo a Bíblia das mulheres de Stanton,


que mostra uma versão muito menos patriarcal dos ensinamentos
de Jesus. Se as excepcionais mulheres americanas que eram explora-
doras, foras-da-lei, fazendeiras, piratas, editoras, soldadas e inven-
toras estão sendo redescobertas somente agora, o que dizer sobre aquelas
nações e tribos americanas nativas que equilibravam a autoridade
masculina e feminina muito mais do que as culturas européias "avan-
çadas" que invadiram seu território?
Como interpretar a descoberta de que muitos dos "ídolos pa-
gãos", "falsos deuses" e "templos pagãos" tão desprezados pela tra-
dição judaico-cristã e pela Bíblia atual eram representações do po-
der feminino: um deus com um útero e seios? Como nossa visão da
Pré-História mudará, agora que os arqueólogos descobriram que alguns
esqueletos há muito foram vistos como masculinos — por causa dos
ossos fortes e largos e das armas e pergaminhos com os quais foram
enterrados — são na realidade de mulheres? (Aqui, a famosa desco-
berta arqueológica conhecida como o Homem de Minnesota foi re-
centemente renomeada de a Mulher de Minnesota. Na Europa, des-
cobriram que as sepulturas de jovens guerreiros mortos em batalhas
continham esqueletos de mulheres.) Agora que estamos começando
a redescobrir a interdependência dos sistemas de castas sexuais e raciais
na nossa própria história, e os paralelos com as formas modernas de
discriminação no trabalho, irão os cursos de ciências políticas expli-
car que a estrutura do poder que depende da "pureza" da raça e da
classe — tanto faz que sejam os brancos do Sul dos Estados Unidos
e da África do Sul ou os arianos na Alemanha nazista — precisa co-
locar grandes restrições à liberdade das mulheres a fim de manter a
"pureza" nas gerações futuras? Finalmente, seremos autorizadas a
confrontar esses sistemas de castas juntas, e portanto de forma bem-
sucedida a longo prazo, em vez de enfrentar as táticas constantes de
dividir para conquistar a curto prazo?
Tais revoltas contra os sistemas de casta baseados no nascimen-
to têm sido sempre internacionais — e contagiantes. Os movimen-
tos anticolonialistas contra a dominação externa de uma raça por outra
têm se aprofundado em movimentos contra a dominação interna de
uma raça ou sexo por outra. Juntos, compõem os movimentos mais
profundos e vitais deste século. Eles estão mudando tanto as nossas
esperanças para o futuro quanto nossas premissas sobre o passado.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 361

Mas algumas revelações podem ser ao mesmo tempo com-


pensadoras e enfurecedoras. Parece que nossos ancestrais sabiam tanto
que nunca deveríamos ter precisado reaprender.
Entre as resoluções no Plano de Ação Nacional adotadas em
Houston, por exemplo, havia ecos da primeira onda de feminismo
americano. A alta incidência de mulheres espancadas, a inadequação
das leis para protegê-las e a relutância da polícia em interferir —
todos estes fatos são vistos por muitas americanas como descobertas
novas e chocantes. Se soubéssemos mais sobre a história dos direitos
jurídicos dos maridos de "possuir" a esposa, e portanto "discipliná-
las" fisicamente com a permissão explícita da lei, poderíamos ter
descoberto esta forma importante de violência muito mais cedo. A
perda, pela esposa, de seu próprio nome, de sua residência jurídica,
linhas de crédito, e muitos outros direitos civis poderiam ter sido
partes menos inevitáveis de um casamento se tivéssemos sabido que
nossas leis estão enraizadas no precedente da lei comum ("marido e
mulher são uma pessoa perante a lei... a do marido") que as mulhe-
res americanas e inglesas do século XIX tanto lutaram para refor-
mar. Nós poderíamos ter sido mais bem preparadas para argumen-
tos contra a afirmação de que a Emenda de Igualdade de Direitos
"destruiria a família" ou tornaria as mulheres "como homens" se
soubéssemos que as mesmas acusações, quase palavra por palavra,
tinham sido levantadas contra o movimento do sufrágio. (A possi-
bilidade de haver duas opiniões políticas numa só família era consi-
derada um caminho certo para a sua destruição. Nossas próprias
ancestrais foram chamadas de "mulheres assexuadas", "inteiramen-
te carentes de atração pessoal" que tinham somente sido "desapon-
tadas em seus empreendimentos para se apropriar das calças", tudo
porque desejam votar e ser proprietárias.) Mesmo a alegação de que
a Emenda de Igualdade de Direitos minaria os direitos estaduais e
constituiria uma "tomada de poder federal" é uma repetição do ar-
gumento de que os direitos civis de voto deveriam ser deixados in-
teiramente com os estados; um obstáculo que levou as sufragistas a
prosseguir estado por estado, e atrasar o enfoque sobre a Emenda
Dezenove da Constituição por muitos anos.
De alguma forma, a unidade representada pela resolução das
mulheres das minorias — talvez o maior feito da Conferência de
Houston, porque uniu americanos de cor pela primeira vez, da Ásia
362 GLORIA STEINEM

a Porto Rico — foi também o maior exemplo do alto preço da histó-


ria perdida. Afinal, as mulheres negras haviam sido unha e carne com
a abolição e o sufrágio porque sofreram tanto a discriminação quan-
to a invisibilidade. ("Existe um grande debate sobre a conquista de
direitos pelos homens de cor", avisou Sojourner Truth, a grande fe-
minista negra e líder antiescravagista, "mas nenhuma palavra sobre
as mulheres de cor".)* Quando os líderes políticos americanos des-
truíram a coalizão pelo sufrágio universal adulto oferecendo o voto
a seu segmento menor — por exemplo, para homens negros — mas
recusando sua concessão à metade feminina do país, as mulheres negras
foram forçadas a fatiar suas identidades dolorosa e artificialmente.
Elas precisavam escolher entre apoiar seus irmãos no que era, como
dizia um slogan, "a hora do negro", muito embora nenhuma mulher
negra fosse incluída; ou, como Sojourner Truth, advogar "manter o
embalo ... porque se esperarmos até que pare, levará um bom tem-
po para as coisas caminharem novamente". Quando ficou claro que
os homens negros teriam direito ao voto primeiro, apesar do que
qualquer mulher pudesse dizer, as mulheres negras foram isoladas
mais ainda por algumas sufragistas brancas que, amarguradas pela
deserção dos aliados brancos e negros, começaram a usar o argumento
racista de que o voto das mulheres brancas "instruídas" era necessá-
rio para contrabalançar o voto dos homens negros "sem instrução".
As divisões se aprofundaram. As previsões de Sojourner Truth de que
levaria "um bom tempo para as coisas caminharem novamente" se
as duas grandes causas paralelas fossem divididas tornaram-se ver-
dadeiras. Não foi senão meio século mais tarde, muitos anos após a
morte de Sojourner Truth, que mulheres de todas as raças tiveram
direito ao voto.
Muitas cicatrizes da divisão entre mulheres brancas e negras
permanecem. Também permanece o argumento cruel e falso de que
as mulheres negras devem suprimir seus próprios talentos em prol
dos homens negros, enfraquecendo assim a comunidade negra pela
metade. Os homens brancos "liberais" tentaram uma tática de divi-
dir para conquistar separando homens negros, e, de muitas manei-
ras tristes, venceram.

*Sojourner Truth, em Stanton, vol. 2, 193.


MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 363

Quando o primeiro prelúdio reformista ao feminismo iniciou outra


vez, no começo e no meio dos anos sessenta, tratava-se principalmente
de um protesto das donas de casas brancas de classe média contra a
"mística feminina" que as mantinha presas nos subúrbios. Para as
mulheres negras, que geralmente não tinham escolha a não ser entrar
na força de trabalho, aquilo era um estilo de vida que algumas inve-
javam e poucas podiam almejar. Somente após o movimento dos direitos
civis e a emergência do feminismo novamente, no fim dos anos ses-
senta — com a análise de todas as mulheres como uma casta, não
somente como uma minoria privilegiada e integracionista —, as li-
gações orgânicas entre os movimentos contrários às castas raciais e
sexuais voltaram a crescer. Apesar do racismo duradouro na socie-
dade, apesar de uma estrutura econômica e social que explora as divisões
raciais entre mulheres e também fabrica tensões sociais e econômi-
cas entre mulheres e homens negros, o movimento de mulheres tem
se tornado o mais integrado do país, econômica e racialmente — o
que não significa que é suficientemente diversificado. Apesar do ar-
gumento duradouro de que a supremacia masculina é uma norma
social à qual todos deveriam aspirar, o movimento negro e seus líde-
res políticos agota incluem mais mulheres do que suas contrapartes
brancas — mas mesmo assim está longe de um equilíbrio.
Para essa onda de feminismo, Houston foi o primeiro marco público
de uma longa jornada através das barreiras sociais, uma jornada tão
cheia de suspeitas. Pelo menos, houve um número suficiente de
mulheres de cor (mais de um terço de todas as delegadas e portanto
em proporção maior do que na população) com voz forte: não ape-
nas as mulheres afro-americanas, mas as hispânicas (de chicanas a
porto-riquenhas, de latinas a cubanas) como a segunda maior mino-
ria americana, as mulheres da Ásia, do Alasca, e nativas americanas
de muitas nações diferentes, que se reuniam pela primeira vez. Como
essa viagem teria sido menos perigosa se tivéssemos mantido as pontes
do passado, sem precisar construir novas estradas de coalizões atra-
vés do que parecia ser, para nós, um deserto sem mapa.

Para mim, Houston e todos os eventos que a cercaram tornaram-se


um marco de minha história pessoal, uma espécie de pedra angular
que divide nosso sentido de tempo. Calcular a data de muitos ou-
tros eventos agora significa lembrar: foi antes ou depois de Houston?
364 GLORIA STEINEM

A razão muito tem a ver com o aprendizado. Olhando para trás,


percebo ter sido cética sobre o tempo e o esforço investidos nessa
Primeira Conferência Nacional de Mulheres. Poderia uma conferên-
cia patrocinada pelo governo ser populista e inclusiva? Mesmo após
as conferências estaduais terem confirmado que a combinação de
esforços públicos e privados estava funcionando, eu ainda temia o
ponto culminante em Houston, como se se tratasse da aproximação
de um julgamento. Será que este enorme encontro atrairia atenções
nacionais e internacionais apenas para realçar a desordem? Será que
o barulho da contraconferência antiigualdade, da direita, seria to-
mado como prova de que "as mulheres não conseguem conviver entre
si"? Eu trabalhara durante todo aquele ano de conferências estaduais
e de preparo, mas à medida que Houston se aproximava eu teria
dado tudo para parar de me preocupar, evitar conflito, ficar em casa,
ou apenas atrasar indefinidamente esse evento sobre o qual eu tanto
me interessava.
Pensei que meus medos fossem racionais e objetivos. Não eram.
Sim, eu aprendi, afinal, que mulheres individualmente podiam
ser competentes, corajosas e leais umas com as outras. Apesar de crescer
sem a experiência de mulheres em posições de autoridade munda-
na, eu aprendera isso. Mas ainda não estava certa de que as mulhe-
res, como grupo, poderiam ser competentes, corajosas e leais umas
com as outras. Não acreditava que pudéssemos conduzir eventos
grandes e complexos, em toda a nossa diversidade, e escrever uma
história nossa.
Mas podemos. Houston nos ensinou isso. A questão é: será essa
lição novamente perdida?

— 1979
O Crime Internacional da Mutilação Genital

Robin Morgan e Gloria Steinem*

Aviso: Estas palavras são dolorosas de ler. Elas descrevem fatos da vida tão
longínquos quanto nosso mais apavorante pensamento e tão próximos quanto
qualquer negação da liberdade sexual das mulheres.

A medida que você for lendo isto, aproximadamente 75 a cem


milhões de mulheres no mundo estão sofrendo com os resultados da
mutilação genital.** As variedades principais deste costume ampla-
mente difundido são:

1. "Circuncisão" sunna, ou remoção do prepúcio e/ou ponta do


clitóris.
2. Clitoridectomia, ou extírpação de todo o clitóris (o prepúcio
e as glandes), mais as partes adjacentes dos pequenos lábios.
3. Infibulação (do latim fibula, ou "gancho"), i.e., a remoção de
todo o clitóris, dos grandes e pequenos lábios — mais a jun-
ção das laterais esfoladas da vulva através da vagina, onde
são amarradas com espinhos ou costuradas com categute ou
linha. Uma pequena abertura é preservada inserindo-se uma
lasca de madeira (comumente um palito de fósforo) na ferida
durante o processo de cicatrização, permitindo, portanto, a
passagem de urina e do sangue da menstruação. Uma mu-
lher infibulada precisa ser cortada para permitir a relação sexual,

*Embora este artigo seja fruto de uma parceria, decidimos publicá-lo como parte de nossas coleções
respectivas devido à importância do assunto.
**Estimativas de 1992 da Organização Mundial de Saúde e da Agência Americana para o
Desenvolvimento Internacional.
366 GLORIA STEINEM

e cortada ainda mais para permitir-lhe dar à luz. Freqüen-


temente essa abertura é fechada novamente após o parto, e
portanto, a mulher pode estar sujeita a tais procedimentos
repetidamente durante sua vida reprodutiva.
A idade na qual estes ritos de mutilação sexual são executados
varia de acordo com o tipo de procedimento e a tradição local. Uma
mulher pode ser submetida a tal rito logo após o quarto dia de vida,
ou na puberdade, ou após ter tido seu primeiro filho. Em muitas
regiões, no entanto, o ritual é realizado quando a criança se encon-
tra entre as idades de três a oito anos, e pode ser considerada suja,
imprópria e inadequada para o casamento se não for realizado.
Aos leitores para quem tais costumes surjam como uma horripi-
lante novidade, é vital reconhecermos imediatamente a conexão entre
essas práticas patriarcais e as nossas próprias. Elas são diferentes no
escopo e no grau, mas não no tipo. As mulheres americanas e euro-
péias não só têm experimentado a clitoridectomia física, legitimada
por Freud,* mas os textos médicos ocidentais do século XIX tam-
bém proclamavam a mutilação sexual como um tratamento aceito
para a "ninfomania", a "histeria", a masturbação, e outros compor-
tamentos não-conformistas. De fato, existem mulheres vivendo nos
Estados Unidos e na Europa, hoje, que têm sofrido essa forma (as-
sim como outras formas mais familiares) de cirurgia mutiladora,
ginofóbica e medicamente desnecessária. Como prática geral e
precondição para o casamento, no entanto, alguns pesquisadores citam
provas recentes de mutilação genital em regiões tão diferentes quanto
a Austrália, Brasil, Malásia, Paquistão, e entre um segmento dos cristãos
Skoptsi da União Soviética. Em El Salvador, não é raro para uma
mãe fazer, com uma lâmina de barbear, o sinal da cruz no clitóris da
filha pequena por razões tais como "fazer com que ela seja uma tra-
balhadora dedicada e mantê-la afastada de idéias impróprias". Mas
as autoridades internacionais de saúde encontraram as maiores pro-
vas de tais costumes no continente africano e na península arábica.
A maioria das mutilações acontece sem anestesia, em casa (na cida-
de ou vilarejo), mas muitas são realizadas atualmente nos hospitais

*A eliminação da sexualidade clitorideana é uma precondição necessária para o desenvolviment


feminilidade." Sexuality and lhe Psychology ofLove [Sexualidade e a psicologia do amor] (Nova v>
Macmillam, 1963).
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 367

como procedimentos aprovados. Esses ritos também não estão limi-


tados a uma religião; são praticados por alguns povos islâmicos, al-
guns cristãos cópticos, membros de várias religiões indígenas, alguns
católicos e protestantes, e alguns Fellasha, um segmento judeu an-
tigo que vive nas montanhas da Etiópia.
A forma mais comum no continente africano é a clitoridectomia,
que é praticada em mais de 26 países do leste da África e Mar Ver-
melho até a costa atlântica, e do Egito, ao norte, a Moçambique, no
sul, também incluindo Botsuana e Lesoto. De acordo com Awa Thiam,
o escritor senegalês, a clitoridectomia — na forma de exclusão com-
pleta ou na variante mais "moderada", sunna — também pode ser
encontrada nos Iemens, na Arábia Saudita, Iraque, Jordão, Síria, e
sul da Argélia. A infibulação parece ser padrão em todo o leste —
Somália, grande parte da Etiópia, Sudão (apesar de legislação de 1946
que a proíbe), Quênia, Nigéria, Mali, Burkina Faso, e partes da Costa
do Marfim. Muitos grupos étnicos têm versões locais: alguns caute-
rizam o clitóris com fogo ou esfregam um tipo especial de urtiga
pelos órgãos para destruir as terminações nervosas; alguns estancam
o fluxo de sangue com compostos feitos de ervas, leite, mel, e algu-
mas vezes cinzas e excreções animais.
As conseqüências de tais práticas para a saúde incluem fatalida-
des primárias devido ao choque, hemorragia ou septicemia e com-
plicações posteriores tais como a má formação genital, menarca atrasada,
dispareunia (dor durante a relação sexual), complicações pélvicas
crônicas, incontinência, calcificações nas paredes vaginais, fístulas
retovaginais, cistos e abcessos na vulva, retenção urinaria recorrente
e infecção, formação de quelóide e cicatrizes, e uma gama completa
de complicações obstétricas. Há também grande probabilidade de
danos ao feto (por infecção) durante a gravidez e à criança na hora
do parto. As respostas psicológicas entre as mulheres vão de trauma
temporário e frigidez permanente a psicoses. Os oficiais de saúde
suspeitam de uma alta taxa de mortalidade, embora existam poucos
registros de fatalidade disponíveis devido à informalidade ou ao se-
gredo que cerca o costume em muitas áteas.
Embora tais práticas sejam freqüentemente descritas como "cir-
cuncisão feminina", o grau de dano não é comparável, nem de per-
to, à circuncisão masculina. Certamente, os dois procedimentos es-
tão relacionados: ambos são amplamente praticados sem necessida-
368 GLORIA STEINEM

de médica e são provas extremas de subserviência à autoridade pa-


triarcal — tanto tribal, religiosa quanto cultural — sobre todas as
funções sexuais e reprodutivas. Mas aí termina o paralelo. A clito-
ridectomia é mais análoga à penisectomia do que à circuncisão: o
clitóris tem tantas terminações nervosas quanto o pênis. Por outro
lado, a circuncisão masculina envolve cortar a ponta do "capacete"
de pele que cobre o pênis, uma área cujo número de terminações
nervosas é análogo àquele do lóbulo da orelha, mas não prejudica o
pênis. Esse procedimento não destrói a capacidade da vítima de ter
prazer sexual; de fato, alguns justificam a prática aumentando o prazer
ao expor mais a área sensível. A denominação errônea de "circunci-
são feminina" parece avançar dos motivos políticos conscientes para
os inconscientes: fazer parecer que as mulheres estão meramente
experimentando algo que os homens também experimentam — nem
mais nem menos.
A política também é evidente na atribuição desse costume. O
nome sudanês para infibulação credita-o ao Egito ("circuncisão faraô-
nica"), enquanto os egípcios chamam a mesma operação de "circun-
cisão sudanesa". A mais moderada, a "circuncisão sunna", foi reco-
mendada pelo profeta Maomé, que, segundo dizem, aconselhou:
"Reduza, mas não destrua", portanto, reformando, e legitimando o
ritual. Essa versão foi denominada sunna, ou tradicional, talvez numa
tentativa de aplacar tradicionalistas rígidos, embora tais rituais não
sejam mencionados em lugar algum no Corão, um fato que as mu-
lheres muçulmanas que se opuseram a essa mutilação citam em seus
argumentos.
As justificativas aparentes para a mutilação genital são tão con-
traditórias quanto as teorias sobre sua origem. As explicações incluem
costume, religião, honra familiar, limpeza, proteção contra feitiços,
iniciação, certeza de virgindade no casamento, e prevenção da promis-
cuidade feminina ao reduzir fisicamente ou pelo terror o desejo se-
xual, este último particularmente em culturas poligâmicas. Por ou-
tro lado, o fato de que algumas prostitutas no Oriente Médio tam-
bém terem sido clitoridectomizadas é citado como prova de que isso
não reduz o prazer, como se mulheres se tornassem prostitutas por
desejo.
Uma superstição é uma prática ou crença justificada por uma
série de argumentos simultâneos e totalmente opostos. (Por exern-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 369

pio, diz-se que a circuncisão masculina não somente aumenta o desejo


mas também o diminui através do endurecimento da pele exposta ou
da remoção do "capuz" causador de fricção). Logo, uma razão freqüen-
temente dada para a mutilação sexual é que ela torna a mulher mais
fértil. Porém em 1978, Dr. R. T. Ravenholt, na época diretor do De-
partamento de População da Agência de Desenvolvimento Interna-
cional dos EUA, não se opôs com base em que era um método contraceptivo,
afirmando que "porque ela [a clitoridectomia/infibulação] objetiva a
redução do desejo sexual feminino, tem indubitavelmente o controle
da fertilidade como parte de sua motivação". De fato, alguns compor-
tamentos das mulheres indicam o contrário. A dor durante a relação
sexual freqüentemente leva as mulheres mutiladas a procurar engravidar
como um alívio temporário das exigências sexuais.
Em algumas culturas, a justificativa é bem menos obscura. Os
mitos dos mossi de Burkina Faso, e dogon e bambaras do Mali ex-
pressam claramente o medo de uma natureza humana inicialmente
hermafrodita e da sexualidade das mulheres: o clitóris é considerado
um órgão perigoso, fatal para um homem se entrar em contato com
seu pênis.
Igualmente, no século XIX em Londres, o Dr. Isaac Baker Brown
justificou cortar o clitóris de algumas de suas pacientes inglesas como
cura para doenças variadas tais como a insônia, a esterilidade, e "ca-
samentos infelizes". Em 1859, Dr. Charles Meigs recomendou a
aplicação de solução de nitrato de prata ao clitóris das meninas que
se masturbavam. Até 1925 nos Estados Unidos, uma associação médica
chamada de Sociedade de Cirurgia Orificial ofereceu treinamento
cirúrgico em clitoridectomia e infibulação "por causa da grande
quantidade de doenças e sofrimentos das quais as mulheres poderiam
ser poupadas..." Tais operações (e justificativas) ocorreram em tem-
pos tão recentes quanto os anos quarenta e cinqüenta nos Estados
Unidos. Por exemplo, em Nova York, a filha de uma família rica foi
clitoridectomizada como "tratamento" para masturbação recomen-
dado por um médico da família. Algumas prostitutas foram encora-
jadas por assistentes sociais de igrejas bem-intencionadas a fazer esse
procedimento como uma forma de "reabilitação".
Durante os anos setenta, a "mudança" clitoridiana — chamada
de "Cirurgia do Amor" — começou a aparecer em alguns consulto-
370 GLORIA STEINEM

rios médicos. Antes de 1980, o serviço de notícias femininas Hersay


divulgou a história do Dr. James Burt, um ginecologista de Ohio,
que oferecia uma operação "aperfeiçoada" de 1.500 dólares que en-
volvia a reconstrução vaginal para "deixar o clitóris mais acessível à
estimulação direta do pênis".
Sejam quais forem as justificativas para esses esforços de fazer
com que os corpos das mulheres entrem em conformidade com as
expectativas sociais, podemos explorar suas razões reais somente dentro
do contexto do patriarcado. Ele deve controlar o corpo feminino como
meio de reprodução e, logo, represar a independência da sexualida-
de feminina. Ambos os motivos são reforçados pelas recompensas e
punições socioeconômicas.
Se o casamento é o meio primário de sobrevivência econômica
para a mulher, então que seja feito o que quer que a torne mais de-
sejável para o mesmo. Se uma noiva que não é virgem arrisca-se à
morte, literalmente, ou à renúncia na noite de núpcias, então um
cinto de castidade feito com a sua própria pele é um gesto de preo-
cupação dos pais. Se o papel tribal de clitoridectomistas e parteiras
que executam tais mutilações é a única posição de honra, de poder,
ou mesmo o único meio de sobrevivência independente disponível
às mulheres, então as "mulheres-símbolo" que celebram tais ritos
lutarão para preservá-los. Como aqueles que organizam as cerimô-
nias de extirpação (às vezes famílias inteiras pela prerrogativa her-
dada) têm o direito, como fazem em algumas culturas, de "adotar"
as crianças extirpadas para trabalharem nos campos durante dois ou
três anos, então tais famílias têm motivo econômico considerável para
perpetuarem o costume. Se os ginecologistas homens também acre-
ditavam ser a sexualidade das mulheres independentes perigosa e
não natural, então a cirurgia era justificada para remover sua causa.
Se um ginecologista moderno ainda presume que os homens não
desejam aprender a achar ou estimular o clitóris para dar prazer às
mulheres, então ele pensará que é natural trazer o clitóris para perto
do lugar usual do prazer peniano.
As respostas ilógicas podem ser levadas a novos limites pela
burocracia. A Casa Branca e sua preocupação pelos "direitos huma-
nos", os vários departamentos do Departamento de Estado dos Es-
tados Unidos, e agências tais como o Fundo Internacional das Crianças
das Nações Unidas e a Organização Mundial de Saúde, todos têm
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 371

expressado relutância em interferir nas "atitudes sociais e culturais",


no que se refere à mutilação genital feminina. Essa sensibilidade tem
estado marcadamente ausente em outros assuntos, por exemplo,
campanhas para disseminar vacinas ou vitaminas apesar da resistên-
cia de tradicionalistas locais.
Claramente, a "cultura" trata daquilo que afeta mulheres enquanto
"política" afeta os homens. Mesmo os direitos humanos e outras afir-
mações políticas admiráveis não incluem aquelas de importância
especial à maioria feminina da humanidade. (Isto é verdade não só
em relação à mutilação genital como também a outras áreas de li-
berdade reprodutiva. Muitas mulheres do Oriente Médio não po-
dem deixar o país sem permissão, por escrito, de um dos membros
masculinos da família, porém isso não é comparado com, por exem-
plo, judeus que foram proibidos de deixar a União Soviética, ou outras
restrições de viagem que afetam homens também). Algumas agên-
cias internacionais assumem uma posição reformista — que a
clitoridectomia e/ou infibulação deveria ser feita em hospitais sob
condições higiênicas e supervisão médica apropriada. Os grupos fe-
ministas e organizações respeitadas como a Terre des Hommes, uma
agência (batizada ironicamente) baseada na Suíça dedicada à prote-
ção de crianças, pediram, repetidas vezes, um endurecimento dessa
posição para a de condenação do direito da prática.
A situação é mais complicada pela compreensível suspeita da par-
te de vários governos africanos e árabes e indivíduos de que o interesse
ocidental nos problemas é motivado não pelas preocupações humani-
tárias, mas por um desejo racista ou neocolonialista de erradicar cul-
turas indígenas. De fato, como Jomo Kenyatta, o primeiro presidente
do Quênia, observou em seu livro, Facing Mount Kenya, a mobilização-
chave de várias forças para a independência do Quênia da Inglaterra
foi uma resposta direta às tentativas dos missionários da Igreja da Escócia
em 1929 de suprimir a clitoridectomia. As autoridades patriarcais, tanto
tribais quanto imperiais, sempre consideraram como sendo central para
seus reinados e poder o direito de definir o que é feito com "suas" mulheres.
Mas as campanhas do passado, contra a mutilação de mulheres,
conduzidas por razões ambíguas ou mesmo deploráveis, não necessi-
tam impedir novas abordagens que poderiam ser mais eficazes por serem
sensíveis às culturas envolvidas e, mais importante, dariam apoio às
mulheres afetadas, reagindo às suas lideranças.
372 GLORIA STEINEM

Uma iniciativa exatamente deste tipo começou em fevereiro de


1979, em um encontro histórico em Cartum, Sudão, assistida por
delegadas (incluindo médicas, parteiras, e oficiais de saúde) de dez
nações africanas e árabes e apoiado por muitos que não puderam assis-
tir. Iniciada pelo Escritório Regional da OMS para o Mediterrâneo
Oriental, com assistência do governo sudanês, esse encontro foi cui-
dadosamente chamado de seminário sobre "Práticas tradicionais que
afetam a saúde de mulheres e crianças" — incluindo práticas como
casamento de crianças, tabus nutricionais durante a gravidez e lactação,
mas também a mutilação genital. Daí resultaram quatro recomen-
dações:

1. Adoção de circuncisões limpas e sem sofrimento.


2. Estabelecimento de comissões nacionais para coordenar ati-
vidades, incluindo a passagem de legislação abolicionista.
3. Intensificação da educação geral sobre os perigos da indese-
jável prática.
4. Intensificação dos programas educacionais para assistentes pré-
natais, parteiras, curandeiros, e outros praticantes da medi-
cina tradicional, com o objetivo de arregimentar seu apoio.

Mais tarde em 1979, uma conferência das Nações Unidas reali-


zada em Lusaka, Zâmbia — uma de uma série de encontros prepa-
ratórios regionais para a Conferência Mundial das Nações Unidas
para a Década das Mulheres, de 1980 — também tratou desse as-
sunto. Adotando uma resolução patrocinada por Edna Adan Ismail
da Somália, o encontro condenou as mutilações femininas e convo-
cou todas as organizações de mulheres nos países envolvidos "a mobilizar
informação e campanhas de educação sanitária sobre as conseqüên-
cias danosas sociais e médicas dessas práticas".
Também é verdade, no entanto, que a mutilação genital não e
sempre citada como prioridade pelas mulheres nos países desenvol-
vidos: a eliminação da fome, saúde em geral, desenvolvimento agrí-
cola e industrial pode ter precedência. Porém os encontros de Car-
tum e Lusaka mostraram claramente que muitas mulheres, e ho-
mens de consciência, por toda a África e países árabes se opõem ati-
vamente, há muito tempo, à clitoridectomia e à infibulação. Tais grupos
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 373

como a Federação de Mulheres Voltaicas e a Organização Democrá-


tica de Mulheres da Somália, como também, individualmente, a Dra.
Fátima Abdul Mahmoud, ministra de assuntos sociais do Sudão,
Mehani Saleh do Ministério da Saúde de Aden, Awa Thiam do Senegal,
e Esther Ogunmodede, a jornalista ativista da Nigéria, vêm fazendo
campanhas de diferentes maneiras contra a mutilação genital, com
pouco apoio internacional. De fato, de acordo com Fran P. Hosken,
uma feminista que por anos vem tentando mobilizar a América e a
consciência internacional sobre esse assunto, "as agências internacionais
e das Nações Unidas, assim como grupos de caridade e de igrejas e
organizações de planejamento familiar que trabalham na África, estão
comprometidos com 'a conspiração do silêncio'... Como resultado,
aqueles africanos que estão trabalhando por mudanças em seus pró-
prios países têm sido completamente isolados ou ignorados".
Agora, os sobreviventes e testemunhas estão começando a ser
ouvidos à medida que falam pessoalmente sobre o sofrimento in-
fringido, tanto na cabana do vilarejo, no apartamento moderno, ou
na estéril sala de operação, pela mutilação genital — sofrimento este
que poderá se estender por toda a vida. Suas vozes são inesquecíveis.
Há muito que deveríamos tê-las ouvido e compreendido o que esta-
va sendo dito — por elas, e por todas nós. E hora de começarmos a
agir — com elas, as vítimas mais imediatas, e no interesse comum
das mulheres como um povo.

— 1979 e 1992

PÓS-ESCRITO

Quando Robin Morgan e eu escrevemos este artigo, já o adiávamos


há vários anos. Estávamos dolorosamente conscientes de que, no
passado, a atenção externa tinha freqüentemente servido para man-
ter esta prática viva. Somente após a Organização Mundial de Saú-
de finalmente ter organizado foros regionais onde mulheres corajo-
sas de regiões afetadas podiam falar contra a tradição, é que publi-
camos este ensaio na Ms. Foi distribuído pelo Fundo Internacional
das Crianças das Nações Unidas. Algumas das muitas mulheres que
374 GLORIA STEINEM

trabalhavam contra a mutilação genital feminina em seus próprios


países expressaram alívio por ter feito a mutilação genital feminina
integrar o continuum de práticas patriarcais que incluíam a Europa e
os Estados Unidos.
Em 1980, a "circuncisão feminina" foi incluída no relatório do
UNICEF sobre mulheres e desenvolvimento, a Organização Mun-
dial de Saúde a colocou entre seus programas, e a Conferência Mun-
dial para a Década das Mulheres das Nações Unidas se encontrou
em Copenhague e aprovou as quatro recomendações feitas pela OMS
que encontram-se listadas acima.
Alguns governantes já haviam começado a luta, embora com
resultados mínimos. O Sudão tornara a infibulação ilegal em 1946,
e o Egito aprovou leis contra a clitoridectomia nos anos setenta. Em
1982, o presidente Daniel T. Arap Moi do Quênia baniu a clito-
ridectomia depois que quatorze meninas morreram em decorrência
de extirpações malfeitas. Em geral, sem os esforços da comunidade,
a legislação tem freqüentemente dirigido a prática para a ilegalida-
de. No entanto, as leis nacionais e as declarações internacionais são
apoios importantes para grupos de mulheres que trabalham contra
essa prática, e também uma guarda contra sua difusão.
As famílias africanas e do Oriente Médio, residentes na Europa,
transformaram a prática em questão local ao executarem as extirpações
pessoalmente ou solicitarem cirurgiões para operarem suas filhas. Como
resultado, a Noruega, a Dinamarca e a Suécia baniram a mutilação
genital feminina por lei, e houve um debate público na Inglaterra e
na França quando alguns cirurgiões foram acusados de executarem
essas operações por quantias monumentais. Em 1982, as autorida-
des francesas prenderam o pai de uma família do Mali que extirpara
o clitóris da filha de três meses de idade com um canivete. Em 1992,
uma parteira do Mali foi condenada a oito anos de prisão na França
por operar três bebês que mais tarde sangraram até a morte. Em
1991, o primeiro caso de uma mulher que pediu asilo político aos
tribunais franceses: Aminata Diop testemunhou que não poderia
retornar a Mali sem a probabilidade de ser mutilada. (Ela foi autori-
zada a permanecer na França, embora não tenha estabelecido urn
"precedente" para outros casos.)
Em 1993, o Canadá tornou-se o primeiro país a incluir a muti-
lação genital feminina entre as razões em potencial para a solicita-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 375

ção de asilo político, e a cerca de duzentas mulheres foi concedido


status de refugiadas nos últimos dois anos. Nos Estados Unidos, há
relatórios não confirmados de mulheres adultas submetidas a essa
prática como um sinal de conversão ao islamismo, ou como um tri-
buto ao nacionalismo cultural. Também foram documentados casos
de solicitação de asilo político para mulheres fugindo dessa prática
— por exemplo, o caso notório de Lydia Olularo que solicitou ao
Serviço de Imigração dos Estados Unidos sua permanência no Oregon
porque suas duas jovens filhas seriam sujeitas à mutilação se retor-
nassem à Nigéria — mas esses casos não estabeleceram precedente.
Finalmente, em maio de 1995, Doris Meissner, designada pelo pre-
sidente Clinton para chefiar o Serviço de Imigração, anunciou novas
diretrizes que reconheceriam a mutilação genital feminina e outras
formas de tortura específica de gênero e violência como razões po-
tenciais para a solicitação de status de refugiado.
A cobertura da mídia popular dos Estados Unidos sobre a muti-
lação genital feminina surgiu, apenas, nos anos noventa, e é rara-
mente parte rotineira das discussões de direitos humanos. A consciência
popular foi aumentada pelo best-seller de Alice Walker de 1992 so-
bre o assunto, Possessing th Secret of Joy [Possuindo o segredo da ale-
gria}, e também por Warrior Marks [Marcas das guerreiras}, um fil-
me-documentário e um livro do mesmo nome também criados por
Walker em parceria com o diretor Pratibha Parmar. Anteriormente
no Egito, Nawal El Saadawi, renomada escritora e ativista, viu seus
trabalhos serem banidos, em parte porque ela ousou contar sua pró-
pria história como sobrevivente da clitoridectomia. Mais recentemente,
Efua Dorkenoo publicou Cutting the Rose [Podando a rosa}, seu tes-
temunho como enfermeira em Gana e residente em Londres que,
embora não seja ela mesma uma sobrevivente, devotou a ultima década
na organização contra essa prática através do FORWARD, grupo
sediado em Londres. Ela também organizou caminhonetes cirúrgi-
cas e educacionais para chegar às mulheres infibuladas para as quais
dar à luz seria torturante e perigoso.
Em 1990, a comissão das Nações Unidas que monitora a CEDAW
(Convenção das Nações Unidas para Eliminação de todas as formas
de Discriminação contra as Mulheres) aprovou, com unanimidade,
uma recomendação condenando a prática como sendo deletéria para
376 GLORIA STEINEM

as mulheres, indo além das preocupações com a saúde e invocando o


direito básico de integridade física.
De "circuncisão" secreta à visibilidade internacional, de ameaça
à saúde a crime contra os direitos humanos, a conscientização públi-
ca sobre a mutilação genital feminina tem percorrido um longo ca-
minho nesses dezesseis anos. Cada vez mais pesquisas a identificam
como uma prática amplamente difundida. Em 1992, a Agência
Americana para o Desenvolvimento Internacional relatou aos membros
do Congresso dos Estados Unidos que "mais de cem milhões de
mulheres e meninas em pelo menos 25 países" sofriam como resul-
tado desse crime que foi finalmente reconhecido como uma "viola-
ção dos direitos humanos". Em 1979, quando este ensaio foi publi-
cado pela primeira vez, a estimativa era de trinta milhões.
Em algum lugar, neste momento, crianças do sexo feminino estão
experimentando essa tortura e traição nas mãos de pessoas das quais
são totalmente dependentes. Mulheres adultas estão sofrendo ao darem
à luz, fazerem amor, e nas funções normais de seu dia-a-dia. Ao apoiar
o trabalho de mulheres nos países afetados, certificar-se de que essa
prática jamais será tolerada em nossos próprios países, e ao explicar
o elo entre essa e outras práticas patriarcais, podemos ajudar no lon-
go processo de eliminação desse crime contra os seres humanos fe-
mininos.

— 1995
Receitas de Fantasias: Para Alívio Temporário
da Dor Causada Pela Injustiça

Escrevi este artigo no oitavo aniversário da revista Ais., um pouco


antes da Conferência das Mulheres das Nações Unidas em Copenhague.
Estes dois fatos me enchem com um misto de esperança e raiva.
Olho para trás, para os primeiros assuntos de interesse da Ais., e fico
alarmada ao constatar que muitos artigos ainda são completamente
atuais: as condições objetivas de vida não mudaram muito para a
maioria das mulheres. Estou estudando documentos para outra con-
ferência das Nações Unidas e percebo que nossas representantes ofi-
ciais e os pontos de conflito ainda são ditados pelos governos, não
pelas mulheres que são governadas.
Por outro lado, sei que uma nova maioria americana apoia ques-
tões de igualdade que nem eram reconhecidas como tal alguns anos
atrás, e a Ais. é um fórum bem-sucedido que começou com dinheiro
insuficiente para durar mais do que oito meses, muito menos oito
anos. Também espero que encontros multiculturais, como Copen-
hague, possam gerar contatos suficientes de mulher para mulher para
criar, no futuro, um Governo Revolucionário Feminista em Exílio.
De repente, começo a me sentir melhor. Grande parte dessa onda
de esperança é baseada na realidade, mas um pouco disso é uma fantasia
de tomada de poder pela parte feminina do mundo, que cresce de
frases inventadas tais como futuro Governo Revolucionário Femi-
nista em Exílio.
As fantasias fortalecem nossa força psíquica e, às vezes, desen-
volvem nossa visão. Elas também podem combinar riso com vin-
gança de forma um tanto salutar. O que ofereço aqui é um Conjun-
to de Introdução à Fantasia, para que cada um de nós crie a fantasia
que corresponda ao crime.
378 GLORIA STEINEM

As feministas formam um pequeno exército internacional e tomam


a Arábia Saudita. Somos capazes de fazer isso com um mínimo de
violência porque os homens da família real ficam tão embasbacados
com a idéia de serem atacados por mulheres -— e tão incapazes de
levar o ataque a sério — que praticamente não revidam o ataque.
São vítimas de seus próprios preconceitos.
Nós, então, libertamos as mulheres sauditas de seus aposentos
palacianos, dos haréns, de seus véus e de um status de mercadoria
tão claro que não lhes é permitido dirigir carros e legalmente po-
dem ser executadas por infidelidade. (Na realidade, tivemos agen-
tes subversivos infiltrados lá por algum tempo, não apenas as entediadas
esposas americanas dos executivos de companhias petrolíferas. As
mulheres sauditas têm comparecido disfarçadas às conferências in-
ternacionais de mulheres e há nomes sauditas na lista de assinaturas
da MS.) Juntas, voltamo-nos para o mundo e dizemos: "Pronto, ne-
gócio fechado. Você quer esse petróleo? Então é isto que tem de fa-
zer pelas mulheres e por todos os grupos sem poder. E assim que se
redistribui a renda e derruba os sistemas baseados em sexo, raça e
classe. Do contrário, fica sem petróleo."
Trabalhada e elaborada, esta fantasia pode deixá-la feliz por pelo
menos dez minutos. (Por exemplo, o exército de minha imaginação
é constituído por advogadas, ativistas negras, e pela feminista Florynce
Kennedy, nos dando nossa versão de "Florynce da Arábia".)

Uma feminista (escolha uma, preferivelmente você) acaba de derro-


tar (escolha um) o papa, o presidente da igreja mórmon, o rabino
Lubevitche Rebbe, um apresentador de direita de um programa de
entrevistas, William Buckley, William Shockley, Lionel Tiger, George
Gilder, Gay Talese, o aiatolá Khomeini, ou num debate
público. A audiência ri deles. A coisa toda é televisionada, via saté-
lite, em todas as línguas do mundo.

O New York Times é herdado por mulheres que rompem com a tradição
de família e não passam seu controle para maridos, irmãos, filhos ou
cunhados. (Como a hemofilia, o Times é passado através das mulheres
mas recebido pelos homens.) Em vez disso, elas mesmas assumem o poder
e demitem todos os editores e gerentes responsáveis pelos preconceitos
citados por funcionários em processos históricos de discriminação sexual
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 379

e racial. Então, eles dizem às suas litigantes: "Vão, minhas queridas ...
agora vocês decidam quem vai dirigir o New York Times."

À noite, nos edifícios de escritórios de Wall Street, um grupo de ser-


ventes planeja, organiza, lê sobre informática e realiza um meticuloso
roubo elaborado no qual elas manipulam os computadores das seis
maiores multinacionais para transferir 41 % de todos os bens para contas
em seus próprios nomes em bancos suíços. Embora elas deixem um
impresso explicando o que fizeram e por que ("Senhores: Já que as
trabalhadoras recebem apenas 55 centavos para cada dólar pago aos
homens...")*, os diretores ficam humilhados demais para admitir que
foram logrados.... por suas próprias serventes. Em vez de processá-
las, eles anunciam falência devido a "dificuldades técnicas". Suas
multinacionais estão quebradas e entregues aos trabalhadores.
Neste ínterim, a misteriosa gangue de serventes distribui seu
ganho entre os americanos que se encontram abaixo da linha de pobreza
(homens, também; elas estão construindo coalizões), guardando o
suficiente para financiar missões de treinamento para a Europa, Ásia,
África etc. Lá, elas transmitem seus conhecimentos para outras gangues
de serventes em Londres... Roma... Moscou... Tóquio... Pretória...

Pela segunda vez este ano, o papa João Paulo anuncia que a Igreja
deve ficar fora da política — só que desta vez ele realmente fala a
sério. Todas as tentativas da Igreja de influenciar a legislação em relação
aos anticoncepcionais, à sexualidade, ao aborto, à família e outros
problemas/questões privadas são imediatamente suspensas. São pa-
gos impostos sobre estacionamentos, hotéis, shopping centers, e todas
as outras propriedades religiosas. Nós realmente conseguimos sepa-
rar a Igreja do Estado.

Funcionárias administrativas, pesquisadoras, analistas e serventes de


escritórios e todas as outras funcionárias do Pentágono e do Depar-
tamento de Defesa entraram em greve —por apenas um dia. Tam-
bém dão aviso prévio. A não ser que 25% do orçamento militar seja
transferido para os programas sociais imediatamente, elas farão uma

*Hoje são 75 centavos por cada dólar, assim roubaríamos apenas 25 centavos — justiça é justiça.
380 GLORIA STEINEM

greve similar pelo menos uma vez por mês e depois duas vezes por
mês... e assim por diante. Elas fazem o Pentágono ficar de joelhos.

Esposas e secretárias começam a contar, umas às outras, tudo o que


sabem, e além disso dão entrevistas coletivas. As mulheres que tra-
balham para grandes empresas contam umas às outras quanto ga-
nham. Elas contam ao mundo quais são os salários dos executivos
— e muitos outros segredos. Toda mulher que engravidou e foi encora-
jada a fazer um aborto por políticos que são contra o aborto vão à
televisão e... bem, já deu para entender. Saber é poder.

Por favor não pense que todas as minhas fantasias são alegres. Mui-
tas são bem paranóicas. Dado à habilidade, cada vez maior, de
predeterminar o sexo do bebê, acrescentada aos preconceitos em favor
de filhos homens e ao desenvolvimento da gestação fora do útero, a
pior de minhas fantasias estende-se por décadas futuras de uma po-
pulação feminina decrescente. Termina em alguns zoológicos inter-
nacionais do futuro com uma dezena de nós em jaulas onde lê-se o
aviso: "Por favor não alimente as mulheres."
No entanto, uma vida com fantasias fortes é a nossa própria fic-
ção científica. É uma fonte de alívio, de fuga e até mesmo de algu-
mas idéias mirabolantes.
Pense no movimento de auto-ajuda feminina, por exemplo. Suas
pioneiras nos ajudaram a conhecer a incrível elasticidade, a força e a
sensibilidade do colo do útero. Suponhamos que tal conhecimento
fosse associado a técnicas de biofeedback que nos ensinaram a contro-
lar os músculos em questão. Mulheres incapazes de levar uma ges-
tação até o final talvez pudessem fazê-lo. Mulheres que não desejas-
sem uma gravidez talvez pudessem induzir abortos espontâneos. Se
até o ano 2000 as mulheres usassem cada publicação, cada confe-
rência nacional e internacional para ensinar umas às outras esta téc-
nica subversiva talvez conseguíssemos declarar uma seleta "greve do
bebê". Assim, não só deferíamos o controle sobre os meios de repro-
dução como também contaríamos com a irreversibilidade do fato.
Isto seria, certamente, de grande utilidade numa conferência de
mulheres — e nestas páginas.

— 1980
Se Hitler Estivesse Vivo,
de que Lado Estaria?

Seis milhões ê o número normalmente atribuído não apenas aos judeus


que morreram durante a época de Hitler mas aos bebês que têm morrido
devido às decisões da Suprema Corte.
— Patrick Riley,
National Catholic Register,
13 de maio de 1979

AUSCHWITZ, DACHAU, E MARGARET SANGER: SINÔNIMOS

— Cartaz exposto
na Convenção Pró-Vida de 1979

Assim como os judeus foram descritos como untermenschen, os que ain-


da não nasceram são descritos como não-humanos.

— Raymond J. Adamek,
Human Life Review, outono de 1977

Usando a mesma analogia com os nazistas alemães feita por muitos dos
conferencistas {o congressista Robert K.}, Dornan disse: "Sabemos o que
está acontecendo neste país. Alguns alemães tinham a desculpa de que
não tinham certeza."
— Washington Post,
23 de janeiro de 1977
382 GLORIA STEINEM

Esta não é a hora de "esfriar a retórica"... Não estamos "escorregando na


direção de Auschwitz". Não estamos "caminhando para o holocausto".
Estamos vivendo em meio a um... A Liga Abolicionista Americana ape-
la para a consciência da comunidade pró-vida para... trancar os abatedouros
a cadeado. Realizem protestos. Deixem que esta nação saiba que as leis
do Ser Supremo têm precedência sobre as leis da Suprema Corte.

— The Abolitionist, (publicação antiaborto


impressa em Pittsburgh)

{Na Convenção Nacional Pró-Vida} o professor William C. Brennan...


disse que (uma companhia} que fabrica dispositivos e remédios usados em
abortos está na mesma posição que a I.G. Farben, empresa alemã que fabricou
os produtos químicos usados na execução em massa dos judeus.

— The Catholic News,


5 de julho de 1979

Se você não compareceu a uma reunião antiaborto recentemente,


leu justificativas para o terrorismo antiaborto, ou se deparou com os
esforços da direita para promulgar uma proibição constitucional do
aborto, então as citações que você acabou de ler podem lhe parecer
bizarras e até excepcionais.
Certamente, os grupos que usam esses e outros argumentos in-
flamados não confiam na mídia principal. (O mesmo professor Brennan,
acima citado, por exemplo, continuou a comparar a imprensa ame-
ricana com a da Alemanha nazista e a condená-la por "esconder os
fatos".) Por esta razão, eles criaram o seu próprio mundo de mídia,
com publicações de direita, panfletos e livros distribuídos por igre-
jas e organizações locais ou por mala direta a qual, segundo eles, possui
um registro de dez milhões de nomes, além de. programas de televi-
são assistidos em quatorze milhões de lares, semanalmente.*
No entanto, as feministas que têm trabalhado principalmente
com as questões da liberdade de reprodução, e aqueles poucos re-
pórteres que pesquisam a extrema direita têm advertido sobre esta

*Nos anos oitenta e noventa, programas de rádio e redes de computadores on-line multiplicaram
este número diversas vezes.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 383

campanha cada vez mais agressiva desde as resoluções da Suprema


Corte sobre o aborto, em 1973. Até 1974, por exemplo, Marion K.
Sanders, uma repórter respeitada da revista Harper's, escreveu que
"a analogia com o programa de extermínio de Hitler... provou ser
uma propaganda potente. A implicação é que o aborto legal é ape-
nas um primeiro passo para o aborto compulsório de 'indesejáveis',
levantando o espectro do genocídio de pessoas negras".
O que efetivamente aconteceu foi que a maioria da comunidade
negra rejeitou o argumento de genocídio com base exclusivamente
em sua fonte: grupos da direita, formados em sua maioria por bran-
cos, são os que mais se opõem aos esforços dos movimentos de direi-
tos civis e de integração das raças. Se algumas mulheres negras faziam
um número desproporcional de abortos, como os grupos antiaborto
freqüentemente citavam como prova de "genocídio", foi porque elas
tinham menos acesso a anticoncepcionais. De fato, a taxa de natali-
dade de brancos caiu, proporcionalmente, tanto quanto a taxa de
natalidade de negros após a legalização dos anticoncepcionais e do
aborto, e permanece abaixo da de negros americanos. Mais impor-
tante, um número desproporcional de mulheres, cuja saúde e vida
são salvas pelo aborto legal e seguro, são negras. (Por exemplo, ape-
nas no Hospital do Harlem em Nova York, no primeiro ano após a
liberalização da lei do aborto de Nova York, em 1971, houve uma
redução de aproximadamente 750 casos de mulheres vítimas de abortos
ilegais ou auto-induzidos). Finalmente, a disponibilidade de abor-
tos legais ou subsidiados pelo sistema de saúde governamental, o
Medicaid, deixa as mulheres pobres menos vulneráveis à "barganha"
racista: um aborto seguro, em troca de esterilização consentida.
No total, muitos dos grupos antiaborto pareciam mais motiva-
dos pela preocupação com o declínio da taxa de natalidade de bran-
cos a patamares sem precedentes na história norte-americana — até
mesmo a produção de um número de crianças brancas "adotáveis"
insuficiente para atender à demanda — do que pela necessidade de
proteger os direitos de reprodução dos pobres. (Em alguns estados,
os líderes e legisladores contrários ao aborto apoiaram a retenção de
pagamentos previdenciários para mulheres com três ou mais filhos
se estas não concordassem em ser esterilizadas). A autodescrição de
"abolicionista" escolhida por grupos que trabalham para abolir a
legalização do aborto tenta estabelecer uma conexão emocional en-
384 GLORIA STEINEM

tre o movimento antiescolha e o movimento antiescravagista. Da


mesma forma, eles igualam as decisões da Suprema Corte, de 1973,
àquela do caso Dred Scott, como se negar personalidade jurídica a
um feto e a um escravo fossem a mesma coisa. Porém agora a direita
diminui seu enfoque sobre os negros e retorna àqueles que mais te-
mem mudanças: os brancos de classe média, os idosos, os fundamen-
talistas religiosos e outros que sentem que seu poder e seus estilos
de vida estão em perigo.
Para eles, o aborto é constantemente apresentado como o co-
meço simbólico de um futuro horripilante. Ele destruirá o casamen-
to e a moralidade ao retirar os filhos como único propósito do ato
sexual e da vontade de Deus; ele limitará o número de pessoas como
eles, prejudicando assim o futuro de uma maioria branca; ele colo-
cará em perigo as pessoas idosas ou deficientes ao pavimentar o ca-
minho para a eutanásia; ele tornará as mulheres masculinizadas ao
permitir que elas tenham o poder de escolha em vez de serem depó-
sitos passivos das vidas de outras pessoas; e finalmente será o mes-
mo que legalizar o assassinato.
A natureza do medo pode variar, mas a metáfora de terror é a
mesma: a filosofia e os campos de concentração de Hitler — o mais
perto que a memória moderna consegue chegar da versão terrena
de inferno.
"Existe uma grande diferença entre o conceito de 'Raça Superior'
(raça de qualidade) e a 'qualidade de vida' de nossos modernos
planejadores sociais que são a favor do aborto?", perguntam o Dr. e
Sra. J. C. Willke, retoricamente, em seu livro Handbook on Abortion
[Um manual sobre o aborto}. De acordo com essa publicação obs-
cura e amplamente distribuída (com a fotografia de uma adolescen-
te ouvindo atentamente um médico branco na capa), a resposta é
não. "Embora jamais legalizado, o aborto se tornara, de fato, uma
resposta aceitável para o problema social da mãe nas décadas de vinte
e trinta, na Alemanha", alegam os Willkes. "Esses médicos, acostu-
mados a aceitar a matança de um grupo de humanos que era social-
mente oneroso (os não-nascidos), eram aparentemente capazes de
seguir logicamente para a matança de outras classes de humanos."
Ao enfocar apenas os médicos e ignorar os direitos e solicitações
dos pacientes, esses autores igualam dois opostos: um aborto reali-
zado por solicitação de uma mulher que decidiu fazê-lo por livre escolha
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 385

(e que tem um direito lógico de decidir se uma gravidez usará ou


não seu corpo e todos os seus sistemas de apoio a vida), e a morte de
uma pessoa autônoma que não pediu tal coisa (nem mesmo, presu-
mivelmente, o direito de suicídio ou de ter uma morte tranqüila e
planejada). As questões cruciais de quem decide e onde a autorida-
de se assenta jamais são discutidas nessas comparações emocionais
entre o aborto e os campos de extermínio; entre a crença na escolha
reprodutiva como um direito individual contra as imposições do
governo e um autoritarismo nazista que se opõe à própria idéia de
direitos individuais.
"O verdadeiro idealismo", como escreveu Hitler em Mein Kampf,
"nada significa a não ser a subordinação dos interesses e da vida de
indivíduos à comunidade... O sacrifício da existência pessoal é ne-
cessário para assegurar a preservação das espécies."
Isso começa a lhe soar familiar? Deveria, pois o segundo erro na
equação difamatória dos que são a favor da escolha com os nazistas
é que o próprio Hitler, e a doutrina nazista por ele criada, foram
inequivocamente contrárias a qualquer direito individual ao aborto.
Na verdade, o Movimento Nacional Socialista de Hitler pregava contra
e punia os anticoncepcionais, a homossexualidade, quaisquer mu-
lheres cujo propósito principal não fosse a maternidade, homens que
não haviam provado sua masculinidade sendo pais de várias crian-
ças e tudo o mais que não preservasse e expandisse o povo "ariano"
e o Estado alemão.
Em Mein Kampf, Hitler escreveu: "Devemos acabar com o con-
ceito de que o tratamento do corpo é um assunto que diz respeito a
cada indivíduo."
Essas palavras eram um tapa direto no movimento feminista alemão
do final dos séculos XIX e começo do século XX, uma força influen-
te a favor, entre outras coisas, do divórcio, dos anticoncepcionais e
do aborto: em resumo, do direito da mulher de controlar seu pró-
prio corpo.
Não apenas as feministas alemãs partilhavam desses objetivos
com suas irmãs em outros países, como também obtiveram alguns
sucessos anteriores e maiores. Elas conseguiram o voto em 1918, por
exemplo, como parte da Constituição de Weimar que se seguiu à
Primeira Guerra Mundial. Até 1926, as feministas moderadas haviam
eleito 32 deputadas para o Reichstag, o corpo do parlamento nacio-
386 GLORIA STEINEM

nal, que simbolizava politicamente essa breve explosão de democra-


cia, da mesma forma que foi culturalmente simbolizada pelos gran-
des novelistas alemães, pelo Bauhaus, e pelo florescimento da lite-
ratura e da arte entre as guerras. (Nesta mesma época, existiam apenas
quinze mulheres membros do Parlamento Inglês, e três no Congresso
dos Estados Unidos). As feministas radicais alemães também haviam
começado a se organizar contra a legislação protecionista que nega-
va o acesso das mulheres a muitos empregos, e a trabalhar por obje-
tivos internacionais como alianças com suas equivalentes em outros
países, a desmilitarização e o pacifismo. As famílias alemães tinham
se tornado muito menores, as mulheres casadas tinham obtido di-
reito jurídico de guardar seus próprios salários, e tanto as casadas
quanto as solteiras se juntavam à força de trabalho remunerado em
números recordes.
Aqueles que sonhavam com os velhos tempos de supremacia
masculina, hierárquica e "invicta" do pré-guerra, ressentiram-se de
tais mudanças, precisamente porque eram óbvias no estilo de vida
diário e profundas em seus efeitos em potencial. A medida que o
desemprego e a inflação pioravam, as feministas em particular e as
mulheres que integravam a força de trabalho em geral foram bodes
expiatórios juntamente com os marxistas, os judeus e qualquer gru-
po que desafiasse a idéia ariana do poder baseado em raça e sexo.
Devido à pressão da direita, a República de Weimar começou a proibir
a competição das mulheres casadas com homens por empregos pú-
blicos. Devido a essas pressões e ao alarme pelo declínio da taxa de
natalidade, o acesso aos anticoncepcionais foi também restrito. Po-
rém, o partido nazista prometia muito mais. Coisas muito piores.
"O direito à liberdade pessoal", Hitler explicou em Mein Kampf,
"termina onde começa o direito de preservação da raça." Os líderes
nazistas disseram que não privariam a mulher do voto, mas ridicu-
larizavam feministas, liberais e socialistas que estavam "masculinizando"
as mulheres ao tratá-las como homens. Sua própria resposta às mu-
lheres era gkichwertig aber nicht gleichartig: "equivalente mas não o
mesmo."
Um retorno a uma vigorosa vida familiar; à identidade primor-
dial feminina como mãe; a cobrança de impostos para quem perma-
necesse solteiro; a concessão de empréstimos para casais jovens e
subsídios para gerar crianças; a proibição da prostituição, do homos-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 387

sexualismo, dos anticoncepcionais e do aborto. A Igreja Católica


Romana, o partido de centro católico e o partido nazista podiam e
concordavam em todas estas posições. Era bem verdade que discor-
davam fortemente sobre qual patriarcado prevaleceria, o da Igreja
ou o do Estado, mas o lugar da mulher e a necessidade da família
autoritária era uma plataforma, uma ligação e uma razão comparti-
lhada para uma coalizão.
Como o historiador britânico Tim Mason escreveu: "Esse tipo
de consenso, parcial e aparente, sobre uma questão básica entre in-
teresses setoriais diferentes e grupos de elite, foi um dos fundamen-
tos do reinado nazista... O antifemínismo não foi um componente
oportunista ou menor do nacionalsocialismo e sim uma parte cen-
tral do mesmo."
Uma vez no poder, Hitler, eleito diretamente pelo povo em par-
te pelo revide aos sucessos feministas, cumpriu imediatamente sua
promessa de restaurar a supremacia masculina.
Moderadas ou radicais, as organizações feministas foram desmem-
bradas. As publicações feministas foram fechadas ou censuradas. Ao
mesmo tempo, as organizações tradicionais de mulheres, como a
Associação de Mulheres Evangélicas ou a Associação Nacional de Donas
de Casa Alemãs, foram reforçadas por serem bem-vindas ao Frauenfront,
a associação de mulheres nazistas. Em 1933, as feministas foram
retiradas de cargos públicos e de ensino: a mesma lei removeu todos
os "não-arianos" de tais empregos. Todas as mulheres, feministas ou
não, foram banidas do Reichstag, dos cargos de juízas e de outros
postos de tomada de decisão.
Tanto quanto as necessidades de trabalho permitiam, as mulhe-
res casadas eram persuadidas ou forçadas a ficarem em casa e a dei-
xarem seus empregos para os homens. A propaganda retratava o ideal
de mulher como sendo sadia, loura, sem maquiagem; uma traba-
lhadora árdua e pura enquanto solteira, uma esposa e mãe devotada
o mais cedo possível. As propagandas de anticoncepcionais nas re-
vistas, antes lugar comum, foram banidas como sendo pornográfi-
cas (como muitos grupos de direita sugerem hoje em dia). O con-
trole da natalidade e as clínicas de aborto foram trancadas com ca-
deado (como alguns grupos antiaborto exigem hoje em dia).
Sob Hitler, a escolha do aborto tornou-se sabotagem — um cri-
me passível de punição com prisão e trabalhos forçados para a mu-
388 GLORIA STEINEM

lher e a possível pena de morte para quem o realizou. Era um ato do


indivíduo contra o Estado; um exagero no grau, mas não no tipo, de
argumentos fundamentalistas atuais que as mulheres devem ter fi-
lhos "para Jesus e para a Igreja"; ou, conforme decidiu a Suprema
Corte ao negar às mulheres pobres a escolha de fazer abortos subsi-
diados pelo Medicaid, por "interesse governamental legítimo".
Como escreveu Hitler: "Deixar de dar crianças sadias à nação
deve ser considerado uma conduta repreensível."
A palavra-chave era, claro, sadia. Já que os não-arianos eram
'racialmente impuros", e portanto doentes, judeus, ciganos, polo-
neses e vítimas de deficiências físicas e doenças graves (Hitler era,
por exemplo, obcecado pela sífilis) eram todos desencorajados ou
impedidos de reproduzir por métodos que variavam da segregação
dos sexos, ameaças, campos de trabalho, e aborto forçado ou esteri-
lização, até a prisão ou morte nos campos de concentração. A esco-
lha do método dependia amplamente de se e por quanto tempo os
"doentes" eram necessários como trabalhadores. Também dependia
da conveniência. Era mais fácil matar uma mulher grávida com gás
do que forçá-la a fazer um aborto.
Não obstante, os horrores dos campos de concentração apare-
cem mais e mais na literatura atual de direita como uma analogia às
clínicas de aborto. Tais argumentos extremistas bem podem incitar,
conscientemente ou não, atos violentos e cada vez mais freqüentes
tais como o bombardeio de clínicas de aborto, assédio ou ameaça de
morte a pacientes e médicos, piquetes e invasões de clínicas, sabota-
gem de telefones e outras comunicações privadas, e o escárnio de
"matadores de bebês" aos líderes pró-escolha eleitos.
Existem ativistas antiaborto que também temem tais resulta-
dos. O Dr. Bernard Nathanson, um médico que já fez abortos e que
escreveu um livro militantemente antiaborto, Aborting America [Abor-
tando a América}, explicou: "Como judeu, não posso permanecer
calado ante o uso superficial da analogia com o nazismo, embora saiba
que alguns judeus que são contra o aborto a usem. Se este argumen-
to é tão forte, por que é que a maioria dos judeus continua a favor
do aborto?"
As publicações dos católicos liberais, como muitos católicos in-
dividuais, demonstram alarme diante dessas falsas comparações, es-
pecialmente vindas do Movimento Pró-Vida, publicamente identi-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 389

ficado com a hierarquia católica. "Há algo de errado com um movi-


mento", diz o National Catholic Reporter em seu editorial, "que, ape-
sar de sua adaptação inteligente e atual de palavras de ordem
abolicionistas, valoriza a vida em apenas um estágio do desenvolvi-
mento humano."
Porém, até tais opositores usam palavras como exagero, como se
o aborto fosse menor em grau mas de natureza similar.

Ainda precisamos estabelecer um limite claro de diferença baseado


em onde está o poder se quisermos identificar o autoritarismo em to-
das as suas formas. Embora Hitler tenha afirmado a diferença crucial
entre o direito de escolha do indivíduo e o direito do Estado de im-
por —seja o aborto ou qualquer outra coisa —, os religiosos de extrema
direita de hoje obscurecem esta diferença com retórica.
"Se você é a favor da vida e apóia a pena de morte ou a corrida
armamentista", ouviu-se de um estudante ao discutir na Convenção
Pró-Vida em St. Louis, "você é inconsistente."
"Porém", o relato continua, "uma censura comum ao argumen-
to dos membros do Movimento Pró-Vida era que a vida dos não-
nascidos é 'perfeita' e a vida dos que já nasceram 'imperfeita'." Na
verdade, existe uma enorme correlação entre aqueles que são contra
o aborto e aqueles que são a favor tanto da pena de morte quanto
dos gastos militares. E permissível matar vidas que não são "inocen-
tes", e quem decide é o Estado.
A mesma reserva é repetida em forma secular no The Phyllis Schlafly
Report [O relatório Phyllis Schlafly}, uma publicação do Eagle Fórum,
a qual defende apenas "o direito à vida de todas as pessoas inocen-
tes, da concepção à morte natural". Esta provisão permite matar os
"culpados", através da pena de morte e de atividades militares.
E interessante que Hitler também apoiasse a pena de morte,
"devido a seu efeito inibidor".
A única discussão entre os autoritários é que nível e tipo de po-
der patriarcal será supremo — o nacional ou o internacional, o secu-
lar ou o religioso. Todos parecem concordar, no entanto, que a famí-
lia patriarcal é a base e o campo de provas para qualquer autoritarismo.
Era a célula básica {Keimzelle) do Estado para o socialismo naciona-
lista alemão. Na filosofia mais embaralhada do Eagle Forum, é ape-
nas "a unidade básica da sociedade". Para grupos mais religiosos, como
390 GLORIA STEINEM

o American Life Lobby, é uma progressão em três etapas de unida-


des autoritárias — "a família, a nação, as próprias leis de Deus".
Mas no primeiro nível da família — e da resistência a qualquer
autodeterminação para mulheres dentro dela — as pregações auto-
ritárias soam iguais. Nesse sentido, mesmo algumas pessoas que são
a favor das liberdades civis e que acalentam os direitos individuais
contra o Estado, não garantem direitos individuais e iguais para
mulheres dentro do Estado ou da família. Homens são indivíduos, a
família é sua unidade básica de segurança na qual o Estado não tem
direito algum de interferir, e as mulheres não se encontram em lu-
gar algum. E como se um direito básico dos homens fosse dominar
as mulheres e a família.
Uma crítica popular e atual antiaborto inclui a descrição de uma
família com saúde debilitada, muitos membros e muitas dificulda-
des. Quando a platéia concorda que a mãe devia ter o direito a um
aborto nestas circunstâncias, o expositor diz: "Parabéns. Você acaba
de matar Bach."
Na verdade, o raciocínio soa como: "Supondo que a mãe de Bach,
após seu quinto ou sexto ou mesmo décimo segundo filho, tivesse
dito 'Chega, é o bastante' — os trabalhos de Bach jamais teriam sido
escritos."
Esta última citação vem de Heinrich Himmler, fundador da
SS, chefe dos campos de concentração e criador das casas Lebensborn
onde as mulheres arianas, solteiras ou abandonadas por seus amantes
ou grávidas de amantes que não seus maridos, eram encorajadas a
ter os filhos que Himmler temia fossem, de outra forma, aborta-
dos ilegalmente. Elas podiam escolher ter a criança e ser apoiada
pelo Estado, ou entregá-la para adoção para uma boa família aria-
na, num ambiente social cuidadosamente escolhido. O que não
podiam fazer era escolher não ter a criança, e portanto controlar
seus meios de reprodução, seus próprios corpos, em desafio ao Es-
tado patriarcal.

Há ecos e paralelos aqui entre a Alemanha da entre-guerra e os Es-


tados Unidos após os anos setenta: uma explosão de esperança pelos
direitos do indivíduo, tanto raciais quanto sexuais, seguida pelo revide
da extrema direita; problemas econômicos e desemprego; perda de
prestígio internacional através da derrota em uma guerra. Talvez os
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 391

grupos antiaborto, que acusam as feministas e a maioria pró-esco-


lha de ser nazista, tenham nos feito, sem querer, um favor ao nos
enviarem de volta à leitura da história.

Na Alemanha, antes da Primeira Guerra Mundial, quando Adolf Hitler


era uma criança, o feminismo do século XIX realizava muitas coi-
sas. As mulheres na indústria, nos escritórios e nas profissões não
eram mais incomuns, e os políticos e a imprensa tornavam-se cada
vez mais solidários com os seus propósitos. Ao contrário dos movi-
mentos feministas em muitos outros países do Ocidente, este dava
apoio organizacional às exigências radicais feministas pelas igualda-
des sexual e econômica, por direitos iguais para crianças "ilegítimas"
e as pertencentes a casais casados, pelo fim da idéia de que ter filhos
era o único propósito das mulheres e do casamento, e por uma "nova
moral" que exigia direitos e consideração iguais para homens e mu-
lheres dentro ou fora do casamento.
Além destas, a maioria das mulheres ativistas enfocava questões
mais imediatas do que a obtenção do direito ao voto. Mudanças de
cima para baixo sempre parecem remotas, a princípio, e na Alema-
nha, antes da Primeira Guerra Mundial, a democracia parlamentar
era uma possibilidade limitada e muito nova. No entanto, as femi-
nistas alemãs haviam ganho apoio público para sua campanha, sem
precedentes, pela descriminalização da prostituição (sua ilegalidade
trouxe o conhecido resultado de bordéis protegidos ou administra-
dos pela polícia), e elas quase conseguiram, com seu lobby cuidadoso,
apagar o aborto completamente do código criminal argumentando
que "a competência do Estado moderno... é limitada pela necessi-
dade de preservação da liberdade de cada um [uma] ao uso de seu
próprio corpo".
Esse desafio ao sistema de castas sexuais encontrou grande re-
sistência das porções militares, religiosas e agrícolas da sociedade alemã,
assim como de algumas mulheres reformistas ou religiosas que tra-
balhavam para substituir as líderes feministas das organizações na-
cionais por aquelas que citavam a maternidade e a "moral superior"
como razões para que as mulheres recebessem mais (mas não iguais)
direitos. A obsessão nacional pelo declínio das taxas de natalidade,
conjugada às novas teorias darwinistas sobre quem devia ou não ser
encorajado a reproduzir, motivou essas reformistas não-feministas a
392 GLORIA STEINEM

citarem a maternidade alemã sadia como justificativa para a instru-


ção e outros direitos.
Entretanto, as feministas do começo dos anos 1900 estavam
mudando mentalidades e corroendo a hostilidade pública, ao final
de aproximadamente meio século ou mais de ativismo. Elas existiam,
por exemplo, até 1912, quando um pequeno grupo de oficiais mili-
tares, políticos conservadores, geneticistas de raças e acadêmicos
ressentidos com a concorrência feminina (todos tinham em comum,
como observou a imprensa, o fato de serem desconhecidos ou tão
antiquados ao ponto de estar "entre os mortos-vivos") formaram a
Liga para a Prevenção da Emancipação das Mulheres.
Pela primeira vez, houve um grupo antifeminista organizado
produzindo propaganda antiigualdade. Como tributo ao conser-
vadorismo alemão e os sucessos feministas, a "Anti-Liga" se sentiu
compelida a lançar um manifesto antifeminista. Numa reportagem
sobre o primeiro congresso desta Liga, um aristocrata de extrema
direita explicou: "O império alemão foi criado com sangue e ferro.
Isto foi trabalho de homem! As mulheres ajudaram dando apoio aos
homens em batalha e incentivando-os a matar tantos inimigos quanto
possível. (Fervorosos aplausos.)"
Em 1913, a Anti-Liga obtivera apoio de um sindicato de colari-
nho branco, de escrivães homens, convencidos de que os judeus, as
classes mais baixas e a "invasão de elementos femininos nas profis-
sões" estavam tirando seus empregos. Os líderes sindicais chama-
ram as feministas de "homens-mulheres", de "degeneradas" e de
"perversas".
Em 1914 a Anti-Liga importou Lady Griselda Cheape, uma lí-
der anti-sufragista inglesa — talvez a Phyllis Schlafly de sua época
— para dar palestras em Berlim e para viajar pelo país.
Embora as feministas estivessem divididas entre levar este desa-
fio a sério ou ignorá-lo (algumas o consideravam tão ridículo que,
de maneira não intencional, acabaria por ajudá-las), seu tema misógino
atingiu a sociedade patriarcal profundamente. Grupos como a Anti-
Liga nunca tiveram muitos membros (da mesma forma que o Eagle
Fórum ou o Real Women e outros grupos antiigualdade não tive-
ram nos anos setenta), mas eles transformaram as feministas em
particular e mulheres ativas em geral em bodes expiatórios, publi-
camente, por tudo o que havia de difícil na vida moderna. Isso foi
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 393

algo com que os militares, a Igreja e outros tradicionalistas podiam


concordar, mesmo quando não concordavam com mais nada.
Como Richard Evans, um dos poucos estudiosos homens a con-
siderar a história das mulheres seriamente, explicou em The Feminist
Movement in Germany: 1894-1933 {O movimento feminista na Ale-
manha: 1894-1933], esses argumentos antifeministas:

"baseavam-se na crença de que a Alemanha estava sujeita à crescente


hostilidade e aos perigos de forças internas e externas... O movimento
de mulheres criava divisões novas por... destruir a família... por
encorajar as mulheres casadas a aceitarem empregos, por apoiar as
mães solteiras e por incentivar as mulheres, em geral, a serem mais
independentes. Colocava em perigo o poderio militar da Alemanha
ao desencorajar o casamento [e ao encorajar o planejamento familiar,
assim, diminuindo a taxa de natalidade]. Ultrajava a natureza ao
clamar pela igualdade sistemática dos sexos e por incitar as mulheres
a fazer coisas para as quais não tinham aptidão. Era internacional
no espírito e impatriótico.

Em outras palavras, a campanha pós-Primeira Guerra contra o fe-


minismo, por ser um movimento antialemão e subversivo — e por-
tanto produto óbvio de uma conspiração judaico-comunista —, não
foi inventada por Hitler ou pela filosofia do nacionalsocialismo. Sua
promessa de devolver as mulheres à tríade "criança, cozinha e igre-
ja" ("Kinder, Küche, Kirche"), e conseqüentemente restaurar a fa-
mília predominada pelo masculino como modelo de uma sociedade
autoritária, era um apelo aos religiosos e aos descontentes de extre-
ma direita que estavam presentes desde o começo do século XX. É
verdade que tal descontentamento se aprofundara com a humilha-
ção da Alemanha durante e depois da Primeira Guerra Mundial, mas
os elementos atávicos desta obsessão pela supremacia masculina e a
restauração da "Pátria" já estavam presentes. Bastou apenas um lí-
der nacional disposto a alcovitar tais desejos, acrescentando a res-
peitabilidade de uma plataforma partidária na qual haviam apoios
emocionais importantes.
Em 1972, um grupo de historiadores americanos ficou tão preocu-
pado com os paralelos aparentes entre as tensões políticas modernas
nos EUA e na Alemanha da República de Weimar, o período que
394 GLORIA STEINEM

precedeu a eleição popular de Hitler, que decidiu sediar uma confe-


rência sobre o assunto.* Devido a circunstâncias similares tais como
os desafios ao poder tradicional baseados em sexo e raça, uma influência
reduzida no mundo, a divisão de opiniões sobre o Vietnã, as pres-
sões da inflação e o desemprego em casa e uma impaciência crescen-
te com a liderança eleita, não podiam os americanos ter tomado o
mesmo caminho autoritário?
Chegaram à conclusão que não. Afinal de contas, os Estados Unidos
possuíam uma tradição mais longa de governo democrático e de
aceitação da diversidade do que a Alemanha pós-Primeira Guerra.
Mesmo os acontecimentos que pareciam assustadoramente simila-
res em gênero eram ainda muito diferentes em grau.
Nos anos que se seguiram, a América sofreu sua primeira derro-
ta humilhante em guerra. A perda de 57 mil soldados no longínquo
Vietnã é dificilmente comparada à devastação da terra natal da Ale-
manha e a perda de dois milhões na Primeira Guerra Mundial. Além
disso, muito poucos americanos perceberam a derrota de nosso go-
verno como injusta ou devida à fraqueza: anos antes disto acontecer,
as pesquisas mostravam 70% de apoio à retirada dos Estados Uni-
dos. No entanto, as justificativas para nossa presença militar no Vietnã
continuam a receber grandes respostas emocionais de alguns gru-
pos. Os Veteranos de Guerras Estrangeiras deram a Ronald Reagan
uma ovação por descrever o Vietnã como "na verdade, uma causa
nobre" durante a campanha presidencial de 1980 e quebraram uma
tradição de oitenta anos sem apoiar oficialmente candidato algum.
O enxame de teóricos revisionistas, de Norman Podhoretz aos membros
de direita do Congresso, mantém que a única tragédia do Vietnã foi
nossa decisão de não usar nossa força militar plena — e nossa conse-
qüente retirada.
Além disso, a pressão internacional da crise de energia nos tor-
nou intimamente dependentes e vulneráveis a "estrangeiros" — e
ainda por cima não-ocidentais e não-cristãos. A supremacia indus-
trial e comercial americana também tem estacionado, a inflação e o
desemprego são preocupações populistas, o desafio das minorias ra-
ciais e das mulheres de diversas descrições continua, a confiança era

*Atas publicadas no Social Research, verão, 1972.


MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 395

nossa liderança eleita é baixa, e a liderança visível, da direita, agora


legitima um tipo de patriotismo particularmente militarista, religioso
e "de volta às bases".
Numa pesquisa do Gallup em 1976, foi perguntado aos ameri-
canos se achavam que o país precisava "de uma liderança realmente
forte que tentasse resolver os problemas diretamente sem se preo-
cupar com a reação do Congresso ou da Suprema Corte". Quarenta
e nove por cento concordaram. Em 1979, 66% dos questionados
por uma pesquisa do New York Times-CBS disseram que votariam em
"alguém que pisasse em alguns calos e que ignorasse algumas leis
para fazer as coisas acontecerem".
Tal impaciência com nossa situação nacional não significa, como
os iludidos pensadores de direita freqüentemente afirmam, que "o
país como um todo deu uma guinada para a direita". Em quase to-
das as questões de justiça social — de uma distribuição de renda mais
justa a uma nova igualdade baseada em raça e sexo, até uma dis-
posição para baixar os padrões de vida materiais se isto fizer sentido
em termos ambientais — existe o apoio da maioria. Nas pesquisas
nacionais, estas maiorias continuam a crescer. Quando os candidatos
de direita que não representam estas opiniões majoritárias se ele-
gem, é principalmente porque a maioria dos americanos não está
votando.
Mas a tolerância ou o desejo de uma liderança de "cima para baixo"
era também uma marca registrada da república de Weimar na qual
o nacional-socialismo cresceu, e nem todos esses desejos vieram da
direita tradicional.
Hitler apresentava-se como um campeão das classes baixas con-
tra a riqueza e o poder herdados (daí o seu "socialismo"), assim como
contra a "conspiração internacional" dos poderosos judeus. Vindo de
uma família da classe operária, ele substituiu a superioridade da classe
alta pela superioridade da raça, justificando seu próprio direito de
ascender ao topo. Textos básicos como The Nazi Primer {A cartilha
nazista] enfatizavam o trabalho árduo e o talento como meios de
qualquer alemão verdadeiro — ou seja, alemão-ariano — chegar ao
sucesso (daí, o "nacional-socialismo").
Um ex-futuro estudante de arquitetura reprimido, chocado pela
pecaminosa Munique; um vegetariano que não fuma nem bebe e
que vivia obcecado por ataques sexuais imaginários a meninas ale-
396 GLORIA STEINEM

mãs (embora somente se tais ataques viessem de "um judeu jovem,


de cabelos pretos, à espreita para atacar", conforme escreveu Hitler
em Mein Kampf); um trabalhador obscuro e zangado que se sentia
explorado pela riqueza e poder — esse era Adolf Hitler quando en-
trou nas choperias e clubes de trabalhadores da cidade. Seu dom para
fazer discursos emocionados liberou sonhos de vingança.
O mal é óbvio somente em retrospectiva. É importante lembrar
que Hitler, campeão de todo homem comum contra os ricos e aris-
tocratas, freqüentemente parecia despojado e charmoso. "O Führer
vem para saudar-me com a mão estendida", uma jornalista do Paris-
Soir escreveu em 1936. "Estou surpresa e espantada pelo azul de seus
olhos que parecem marrons nas fotografias, e prefiro a realidade —
o rosto que transborda com inteligência e energia e se ilumina quando
ele fala. Nesse momento, compreendo a influência mágica... e o seu
poder sobre as massas."
O status de segunda classe da entrevistadora, por ser mulher, foi
adoçado e tornou-se paralelo à descrição nacionalsocialista dos não-
arianos: "Nenhuma diferença real em termos de qualidade, mas sim
diferenças em tipo."
"Eu asseguro às mulheres os mesmos direitos que possuem os
homens, mas não acho que ambos sejam idênticos", explicou Hitler
jovialmente. "A mulher é a companheira do homem na vida. Ela não
deveria ser sobrecarregada com tarefas para as quais o homem foi
criado. Não vejo nenhum batalhão de mulheres... mulheres são mais
bem preparadas para o trabalho social."
Embora adoçada, toda forma de autoritarismo deve começar com
uma crença no direito maior de um grupo ao poder, seja este direito
justificado por sexo, raça, classe, religião, ou por tudo isto ao mes-
mo tempo. Por mais longínquo que possa parecer, a progressão re-
pousa inevitavelmente no poder desigual e nos papéis herméticos
dentro da família.

• "Se o mundo do homem é o Estado... [o da mulher] é seu


marido, sua família, seus filhos, e sua casa... Cada criança que
uma mulher traz ao mundo é uma batalha, uma batalha tra-
vada para a existência de seu povo... Não é verdade... que o
respeito depende da sobreposição das esferas de atividades
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 397

dos sexos; esse respeito exige que nenhum dos sexos tente
realizar o que pertence à esfera do outro."
— Discurso de Hitler para a Organização
de Mulheres da Nacional Socialista,
setembro de 1934.

• "O ataque à família é um ataque à civilização... Os homens


são, por natureza, móveis e agressivos, enquanto as mulhe-
res são, por natureza, compromissadas com a estabilidade,
com a permanência, e com a posteridade... A previdência
social, as creches, e o programa de affirmative action ou a
contratação preferencial de mulheres diminui o papel do
homem como provedor... Promovendo, assim, a dissolução
da sociedade."
— Tirado de um panfleto intitulado
"Comunismo, Família, e a Emenda
de Igualdade de Direitos",
Cruzada Cristã Anticomunista,
Califórnia, março de 1975.

• "Talvez os três pontos mais enfatizados na teoria da família",


escreveu Clifford Kirkpatrick, sociólogo americano, sobre o
nazismo alemão, em 1937, "sejam a reprodução, as diferen-
ças sexuais e vida familiar reforçada."

• "Noventa por cento de nossos problemas com crianças", ex-


plicou um livreto distribuído pelos membros do Comitê Elei-
toral Pró-Família na Conferência Sobre a Família de 1981,
organizada pela Casa Branca, "provavelmente são resultan-
tes de uma mãe que 1) não conseguiu aprender como real-
mente amar seu homem e ser submissa a ele, 2) tentou esca-
par de estar em casa, ou 3) atrapalhou seu marido na disci-
plina das crianças."

• A "Declaração dos Direitos da Criança", publicada pelo Eagle


Fórum de Phyllis Schlafly, inclui o direito: "De ser instruída
com livros que honram a família tradicional como unidade
398 GLORIA STEINEM

básica da sociedade, o papel das mulheres como esposa e mãe,


e o papel do homem como provedor e protetor."

• "Nenhuma verba [será] liberada ... sob lei federal [para} a


compra ou preparação de qualquer material educativo ou
estudos relativos à preparação dos materiais educativos, se
tais materiais tenderem a denegrir diminuir ou negar as di-
ferenças de papéis entre os sexos."
— Lei de Proteção à Família, uma lei federal
apresentada pelo Senador Paul Laxalt
(Republicano, estado de Nevada) em 1979.
(Essa lei também proibia leis federais
contra o abuso de menores e o
financiamento federal de abrigos para mulheres
espancadas, direito ao aborto, desagregação escolar,
direitos dos homossexuais etc.)

Se nos tornarmos indiferentes em nossos mundos mais primor-


diais e mais íntimos com relação à diferença de poder entre os mem-
bros de nossas próprias famílias, será mais fácil aceitar todas as ou-
tras hierarquias? Se um dos sexos nasce para o poder maior, então
por que não uma raça? Se fosse permitido às mulheres casar e ter
filhos com homens por elas escolhidos, como iriam raça e classe manter-
se "puras"? Se não é permitido a um homem mandar em sua esposa
e filhos, que se encontram abaixo dele, como vai tolerar ser manda-
do de cima?

• "O bordão 'Emancipação das Mulheres' foi inventado por


intelectuais judeus... Nosso movimento nacionalsocialista de
mulheres tem, na realidade, um só objetivo", Hitler falou às
mulheres em um discurso de 1934, "e este objetivo é a criança."
Em Mein Kampf, distribuído a todo casal recém-casado da
Alemanha, ele escreveu: "Assim como os [judeus] sistemati-
camente estragam as mulheres e as meninas... foram e são os
judeus que trazem os negros para a Renânia... estragando a
odiada raça branca, o que necessariamente resulta na dege-
neração... ascendendo [os judeus] ao lugar de senhores."
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 399

• "A Rússia possui uma ERA (Emenda de Igualdade de Direi-


tos) e sua taxa de natalidade tem caído abaixo da reposição",
relatou The Thunderbolt, uma publicação do Partido Nacio-
nal de Direitos Estaduais declaradamente a favor da supre-
macia branca. "E tempo, agora, de proteger a família e a
maternidade em si... as leis que exigem a separação de ho-
mens e mulheres na prisão seriam invalidadas (pela ERA).
Um juiz negro já usou estas leis de igualdade em Chattanooga
para trancar uma mulher branca na mesma cela com um
homem preto. Ela foi estuprada."

• O padre Paul Marx, diretor do Centro da Vida Humana, um


centro de estudos sobre o aborto em Minnesota, viajou por
mais de trinta países como parte de sua campanha contra o
aborto e os métodos anticoncepcionais. Como foi caracteri-
zado e citado pelo Minneapolis Star, ele teme que "o mundo
ocidental branco esteja cometendo suicídio através do abor-
to e do uso de anticoncepcionais", e explica: "Penso que te-
mos 250 mil vietnamitas já aqui e que eles terão famílias
grandes — os orientais sempre as têm. Existem coreanos e
filipinos... Deus sabe quantos mexicanos cruzam a fronteira
todas as noites... E se alguma vez tivermos que lutar contra
os russos, me pergunto se essas pessoas estarão dispostas a
colocar suas vidas em jogo."

Idéias extremistas? Talvez. Mas a crença de que os homens de-


vem controlar as mulheres — se cabe a eles manter as divisões de
raça e de classe, controlar o fornecimento de trabalhadores e de sol-
dados para o Estado, e manter a posse de seus próprios filhos — é a
raiz da injustiça, da qual crescem todas essas flores do mal.
Ao clamar pela liberdade das mulheres setenta anos atrás, uma
feminista alemã disse: "A mulher tem sido com freqüência reduzida
— fria e inconscientemente — a uma máquina de fazer filhos, seus
filhos são considerados propriedade do Estado ainda no útero." Outra
disse com raiva: "Se nós mulheres não tomarmos uma posição por
conta própria e por nós mesmas, aqui, na mais feminina de todas as
tarefas, que é a de "dar a vida"; se não tomarmos uma posição con-
400 GLORIA STEINEM

tra sermos consideradas meramente produtoras involuntárias de bucha


de canhão, então em minha opinião não merecemos ser considera-
das coisa alguma além disso!"
Muitas mulheres, na Alemanha de Hitler, tomaram uma posi-
ção pública contra o sistema de castas sexuais, assim como contra o
anti-semitismo que, por ser um castigo do qual muitos homens também
sofriam, era mais entendido como uma injustiça. "O nacional-socialismo
tem crescido muito em sua luta contra os judeus e as mulheres", disse
uma líder da maior organização feminina da Alemanha. "Hoje, sou
a favor do confronto."
Muitos fizeram passeatas nas ruas contra o fechamento das clí-
nicas de planejamento familiar por Hitler, um ato que uma feminis-
ta alemã, agora residente deste país, lembra como "a primeira coisa
que Hitler fez". O direito individual ao aborto foi tão reprimido que
mesmo as mulheres que abortavam espontaneamente precisavam
provar que não haviam tentado induzi-lo, sob pena de serem acusa-
das de crime.
Outras ativistas tentaram, sem sucesso, salvar suas organiza-
ções tornando-as menos "políticas", lutando contra o ataque ver-
bal nazista a elas com "correções fatuais" secas, ou mesmo usando
os próprios argumentos racistas de Hitler para colocar mulheres
arianas em posições de influência onde pudessem reformar a partir
de dentro.
As judias da Alemanha não eram apenas purgadas de quaisquer
empregos importantes mas freqüentemente abandonadas por seus
maridos ou amigos não-judeus. A princípio desencorajadas a casar e
ter filhos, depois proibidas de ambos, eram eventualmente subme-
tidas ao trabalho forçado ou enviadas a campos de concentração.
(Ravensbruch, um campo exclusivamente para mulheres, também
foi o lugar da maioria das "experiências médicas" nazistas. Embora
judeus homens tenham sofrido atrocidades similares, os médicos arianos
pareciam mais propensos a não se sensibilizarem com corpos tão
diferentes e desprezíveis.)
Neste ínterim, Hitler presumia que as mulheres eram ou de-
viam ser atraídas por sua imagem militar. Ele permaneceu solteiro
para inspirar a devoção e o romantismo de suas seguidoras. (Em meios
mais íntimos, ele afirmava que não teria filhos porque rebento al-
gum, por ser produto parcial de uma mulher, poderia ser tão grande
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 401

quanto ele.) Embora alguns nacional-socialistas reivindicassem que


"foi o voto feminino que levou Hitler ao triunfo", esse não era mais
verdade do que o argumento atual de que as mulheres votantes der-
rotaram a ERA. Hindenberg, presidente da Alemanha de 1925 a
1934, teve mais votos femininos em 1932 do que Hitler, tanto em
números absolutos quanto em percentagem.
Mas algumas mulheres votaram no nacional-socialismo. Muitas
eram jovens que sabiam pouco ou nada do passado das lutas femi-
nistas, e estavam estimuladas pela romântica imagem da deusa-he-
roína da condição feminina alemã de Hitler. Outras queriam ficar
em casa como donas de casa em vez de tornarem-se trabalhadoras
mal pagas e donas de casa. Outras ainda eram atraídas pela promes-
sa de Hitler de um noivo para cada jovem, uma promessa de cam-
panha sedutora porém improvável num país onde a Primeira Guer-
ra Mundial dizimara a população masculina.
Ironicamente, a carga de trabalho tradicional das mulheres e seu
ceticismo sobre a ajuda de qualquer homem, incluindo os nacional-
socialistas, salvou muitas de um envolvimento com o nazismo. "A
massa de mulheres alemãs não queria ser organizada," escreveu a
historiadora Jill Stephenson, "e a resistência passiva delas à tentati-
va de envolver a dona de casa nas 'tarefas femininas da nação' asse-
gurou que a organização das mulheres nazistas permanecesse preo-
cupação de uma minoria."

Não há dúvida de que as feministas teriam sido mais eficazes em sua


oposição a Hitler se tivessem possuído centros locais como possuem
as igrejas, ou comunidades de trabalho, como possuem os sindica-
tos, ou redes internacionais como possuem ambos.
Na prática, suas principais organizações dependiam de lugares
públicos para reuniões e para a divulgação de informações, portanto
eram facilmente consideradas ilegais ou eram facilmente controla-
das. A abordagem diversificada e dividida, em vários assuntos, não
podia fazer frente ao emocionalismo simples e motivado da oposi-
ção. "Enquanto a causa da emancipação feminina", explicou o his-
toriador Tim Mason, "[era} promovida por grupos de âmbito muito
amplo e normalmente descoordenados com objetivos parciais e vi-
sões políticas diferentes, a causa da restauração da superioridade
masculina podia ser apresentada como um único assunto, relativa-
402 GLORIA STEINEM

mente simples, e podia ser apropriada por um movimento político


único de poder incomparavelmente grande."
O resultado foi trágico para os homens assim como para as
mulheres, não apenas na Alemanha, como em toda área dizimada
pela expansão alemã. As feministas ficaram virtualmente sós no desafio
à família patriarcal como unidade básica da sociedade autoritária e
na tentativa de substituir sua primazia pela dos direitos do indiví-
duo, e assim pela possibilidade de famílias democráticas. Muitos grupos
religiosos poderosos apoiaram as opiniões de Hitler sobre a família e
as mulheres — e apoiaram o crescimento inicial do nacional-socialismo
por causa disso. E verdade que eles discordavam da supremacia do
Estado sobre a igreja—algo que ocorreu após a tríade "Kinder, Küche,
Kirche" — mas aí já era tarde demais. Mesmo os grupos sindicais,
radicais e liberais que haviam apoiado os direitos das mulheres no
mercado de trabalho e ao voto, haviam abandonado este apoio na
porta do lar.

De acordo com o atual recuo direitista antiigualdade com que estamos


vivendo, o maior objetivo é proteger e restaurar a família, claramente
definida por eles como sendo encabeçada pelo homem e de estrutu-
ra hierarquízada. Portanto, eles condenam como sendo "contra a
família", quaisquer garantias diretas de direitos para as mulheres e
crianças. Logo, a Emenda de Igualdade de Direitos (ERA) é contra a
família. Assim como as leis contra o abuso de menores e o financia-
mento de abrigos para mulheres espancadas. É também o caso do
direito individual à expressão sexual fora da família, quer seja ela
homossexual ou heterossexual. Assim também são o aborto, os an-
ticoncepcionais e qualquer outro meio de separar a expressão sexual
da procriação.
Essa explosão autoritária é refletida posteriormente na política
fiscal da direita, na censura à mídia, na interferência nas escolas públicas
para estabelecer a posse das crianças por suas famílias e o controle
sobre o que podem ler ou estudar. O pesadelo de tornar o aborto
um crime contra o Estado, passível de punição com morte, é tam-
bém prometido pela Emenda da Vida Humana, patrocinada pela
direita, que conferiria humanidade jurídica a um ovo fertilizado. De
todos os modos, a família deverá ser a unidade básica. As mulheres
devem ser subordinadas dentro dela.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 403

Muitos americanos se surpreendem com o fato de nossos grupos


de direita enfocarem questões de família e de reprodução. Alguns
de nossos mais capazes e democráticos líderes políticos não estão
dispostos ou não são capazes de lidar com assuntos que lhes são pouco
familiares, constrangedores ou pequenos.
Mas muitos europeus ficam surpresos com o fato de estarmos
surpresos. Eles dizem: Onde você esteve? Onde acha que o auto-
ritarismo começa? Você nunca viu o fascismo?
Eles já passaram por isso antes.

Existem outros paralelos perturbadores entre o passado e o presen-


te. A inundação atual da direita em seus esforços para censurar as
bibliotecas das escolas, começando com livros que são "contra a fa-
mília", freqüentemente aqueles escritos pelos especialistas em pla-
nejamento familiar, autores feministas e autores negros. Não seria
esta uma versão menos dramática do estilo nazista de queimar li-
vros, também começada com os livros contra a família e "contra a
Alemanha" escritos por planejadores familiares, por judeus e por
feministas? Seria o esforço de alguns políticos atuais, para apaziguar
a direita, desistindo de "questões sociais", um erro tão fatídico quanto
as concessões feitas pela República de Weimar em relação às mulhe-
res na força de trabalho e outras relações domésticas?
Certamente, existem diferenças enormes, e esperamos que
salvadoras, tanto em grau quanto em conteúdo. Nosso nacionalis-
mo não usa o anti-semitismo como um perigo interno e externo. Mas
nossa própria obsessão com qualquer coisa tida como "antiamericana"
às vezes beira a paranóia, e é usada para condenar críticos internos
como sendo "maus americanos". A hostilidade raramente força as
mulheres e as minorias para fora de empregos responsáveis. Mas,
sutilmente, cada vez mais, um destes grupos é posto na posição de
bode expiatório por tudo o que acontece, de divórcios a delinqüên-
cia juvenil até crimes e desemprego. Um homem branco, em boa
situação econômica, é tido como um gerador de empregos de espíri-
to público, mas as mulheres e homens de cor em boa situação eco-
nômica podem ser vistos como parte egoísta da "geração do eu".
Além disso, as feministas ainda parecem ser a única força coesa
a enfrentar a direita em assuntos da família e dos direitos do indiví-
duo — de baixo para cima. As forças antiigualdade percebem isso
404 GLORIA STEINEM

mais claramente do que nossos aliados liberais. "O feminismo orto-


doxo é uma manifestação especialmente militante", advertiu o Human
Life Review, uma publicação trimestral contra o aborto, "de uma grande
filosofia social que prevalece cada vez mais, sustentando que as 'ne-
cessidades' do indivíduo possuem valor próprio e que nenhum indi-
víduo ou instituição poderá restringir tais necessidades." Isto é he-
resia para aqueles que cultuam a família, a Igreja e o Estado.
Como na Alemanha, existe também uma semelhança perturbadora
entre aqueles que desejam reforçar a família tradicional e aqueles
que querem gastos militares cada vez maiores e mais confrontos no
mundo. O mais perturbador de tudo é que essa semelhança é en-
contrada nos mais altos escalões. Uma charge política de Ronald Reagan
mostrou-o com um chapéu de cowboy, dizendo: "Uma arma em cada
coldre, uma grávida em cada casa. Faça da América um homem
novamente." Esta foi uma súmula brilhante do laço existente entre
o antifeminismo e o militarismo.
Tudo isto nos soa um pouco familiar demais. Mas, pelo menos,
sabemos que o feminismo tem história. É a pedra angular de qual-
quer democracia duradoura.

-1980
Pensamentos Noturnos de um Telespectador

Após passar a infância ouvindo novelas no rádio e uma década em


quartos de hotéis vendo as mesmas sagas na TV, finalmente percebi
por que as novelas são, e logicamente deveriam ser, tão populares
entre as gerações de mulheres restringidas ao lar. Elas são o único lu-
gar na nossa cultura onde homens adultos levam a sério as coisas com as quai
as mulheres adultas precisam lidar o dia inteiro. As doenças familiares,
os problemas com as crianças, a convivência com os vizinhos, ciúmes,
preocupações com a perda do emprego como conseqüência do di-
vórcio, preocupações com uma possível perda — por parte de nos-
sos maridos — do emprego e, conseqüentemente, de nossa renda; o
que acontece no quarto, na mesa de jantar, nas salas de hospital —
tudo isto é parte vital do cotidiano feminino. Durante, pelo menos,
algumas horas no dia, um mundo fictício de homens as leva a sério,
também.
Da mesma maneira que os "filmes raciais" feitos para audiências
negras nas décadas de vinte a trinta—com histórias glamourosas e
cheias de suspense, povoadas por atores negros e alguns brancos do-
minados — as novelas dão valor e glorificam um mundo segregado.
Já que os menos poderosos estão mesmo presos a esta condição, to-
dos nós ficamos agradecidos e intrigados.
Essa mesma fórmula foi levada para o horário nobre na forma
de seriados melodramáticos tais como Dallas, mas não é a mesma
coisa. A fim de atrair o interesse masculino (ou pelo menos ser visto
como digno de seu interesse), os conflitos noturnos se concentram
em preocupações adultas como grandes negócios, crimes, violência
ou rivalidade masculina pelo legado de um pai poderoso. As situa-
ções típicas das novelas vespertinas de crianças desgarradas, infide-
lidade, alcoolismo e doenças são relegadas a tramas secundárias.
A política sexual pode mudar do dia para a noite, mas a classe e
406 GLORIA STEINEM

a raça continuam as mesmas. Embora uma pessoa ou família real-


mente pobre raramente protagonize um seriado de TV em qualquer
horário (é deprimente demais), uma tese de doutorado poderia ser
escrita sobre o porquê das comédias enfocarem as famílias das clas-
ses trabalhadoras e as famílias de classe média (ocasionalmente ne-
gras), enquanto os melodramas enfocam os ricos e poderosos (sem-
pre brancos). Pessoalmente, penso que é uma trama semiconsciente
de preservação da ordem social. A idéia é nos convencer de que é
engraçado ser pobre ou viver nos guetos, mas ser rico é terrivelmen-
te pesado e, sendo assim, nem deveríamos desejar sê-lo.
A televisão também prova as conclusões de Margaret Mead de
que, no patriarcado, as viúvas são as únicas mulheres atribuídas de
autoridade, Se você nasceu do sexo feminino, o que você tem de fa-
zer é se casar com um editor de jornal, um senador, um acionista de
alguma empresa, ou qualquer homem que tenha uma posição que
você deseje, e cumprir seu tempo como esposa-mãe-anfitriã. Quan-
do ele morrer, você poderá ser autorizada a seguir em seu lugar. Até
recentemente, a viuvez era o principal caminho para as mulheres
chegarem ao Congresso. Na televisão, também, as mulheres muito
poderosas geralmente herdaram o poder dos homens.
Na ficção e na realidade, talvez os homens pensem duas vezes
antes de fazer da viuvez nosso único caminho para o poder.

A Emenda de Igualdade de Direitos (ERA) começou seu longo pro-


cesso de ratificação em 1972, porém, ao que sei, nenhum jornal ou
rádio, nenhum departamento de jornalismo de uma rede ou progra-
ma nacional de televisão fez uma reportagem investigativa indepen-
dente sobre as conseqüências da ERA.
Muito pelo contrário, os principais canais de comunicação se
contentam em apresentar entrevistas ocasionais, debates e reporta-
gens contraditórias daqueles que são a favor ou contra. Um especia-
lista é citado dizendo que a ERA dará força aos direitos jurídicos das
mulheres em geral e das donas de casa em particular, fazendo com
que as cortes vejam o casamento como uma parceria. O especialista
seguinte afirma que a ERA forçará as esposas a trabalharem fora de
casa, eliminando pagamentos assistenciais. Um líder político expli-
ca, diante das câmeras, que a ERA protege as mulheres e os homens
das leis federais discriminatórias; depois um outro político chama a
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 407

ERA de trator federal que reduzirá os direitos do indivíduo. Um ativista


diz que a ERA é uma simples garantia de democracia que deveria
ter sido parte da Carta de Direitos, não tivesse a Constituição sido
escrita pelos e para os homens brancos donos de propriedades, e o
próximo insiste em que a emenda destruirá a família, eliminará a
heterossexualidade e criará banheiros unissex.
E compreensível que a platéia fique confusa. A princípio, acha-
mos que o céu fosse azul, mas uma parcela igual de tempo e de pres-
tígio dedicada à insistência de que ele é realmente verde pode, afi-
nal, nos levar a duvidar de nossas percepções. É verdade que a maio-
ria das mulheres e homens continua a apoiar a ERA (por uma mar-
gem que vem crescendo desde o governo Reagan, demonstrando que
o progresso poderia ser revertido sem ela) mas não tenho certeza de
que a mídia deva receber os louros por este fato. Existe alguma evi-
dência de que reportagens ditas objetivas, onde a platéia é exposta
igualmente aos prós e aos contras, têm, na verdade, impelido a cons-
trução de uma maioria crescente.
Por exemplo, ler ou ouvir as 24 palavras verdadeiras que com-
põem a ERA* é o caminho mais confiável para apoiá-la. Muitas pes-
soas ainda ficam surpresas ao aprender que não existe menção das
palavras unissex ou aborto ou combate em seu texto, tal a confusão
criada pelos argumentos anti-ERA. Porém a maioria das coberturas
de notícias da ERA jamais cita seu texto.
Entre os repórteres e executivos de notícias, no entanto, existe
uma grande auto-suficiência. Eles seguem a tão chamada doutrina
de justiça. Eles têm apresentado "os dois lados da questão", dando o
mesmo número de minutos ou quantidade de espaço aos "prós" e
aos "contras". Isto tem sido verdade, muito embora o apoio da maioria
a ERA signifique que achar um "contra" seria muito difícil. Muitas
vezes fui chamada por um entrevistador que me solicitou: "Dava para
você trazer um 'anti?"
Um resultado desta escola de luta de boxe profissional jornalística
e que Phyllis Schlafly, que não era uma pessoa famosa nacionalmen-
te antes da ERA, tem se tornado o único nome que muitos america-
nos associam quando perguntados qual a principal opositora da emenda.

* A igualdade de direitos, sob o regime da lei, não deverá ser negada ou abreviada pelos Estados
Unidos ou por qualquer estado devido ao sexo."
408 GLORIA STEINEM

Em um sentido real, ela é uma criação artificial da doutrina de jus-


tiça. Outro resultado é a idéia de que as mulheres votaram contra a
ERA, não aquelas duas dezenas ou mais de legisladores homens, brancos
e idosos, somados aos interesses religiosos e econômicos, que são os
verdadeiros culpados. Um terceiro resultado é a noção de que os
americanos negros não apoiam a ERA, embora os deputados esta-
duais negros tenham votado, em peso, pela sua aprovação. Se mu-
lheres e homens negros estivessem representados nas legislaturas
proporcionalmente aos seus atuais números na população, especial-
mente nos estados do sul, a ERA já teria sido aprovada há muito
tempo.
Nos primórdios do movimento de direitos civis, muitos jorna-
listas seguiram a mesma fórmula de "tempo igual". Quando noticiavam
o registro de eleitores negros no Sul, por exemplo, citavam que os
trabalhadores de direitos civis diziam ter sido espancados na cadeia.
Depois, citavam o xerife dizendo que aqueles jovens haviam ataca-
do a polícia ou brigado entre si. Os leitores ficavam confusos ou com
suas convicções originais intactas.
Eventualmente, no entanto, a maior parte da mídia séria assu-
miu a responsabilidade de fazer suas próprias investigações. Deram
o melhor de si para relatar os fatos como realmente ocorriam.
Infelizmente, isto jamais aconteceu no caso da ERA. Não que
tal reportagem independente seja difícil. Mais de cinqüenta anos de
história legislativa está disponível para explicar o impacto pretendi-
do pelo Congresso. Uma edição do Yale Law Journal e muitos livros
oficiais foram dedicados a projetar seu impacto em detalhes erudi-
tos. Finalmente, existem alguns poucos estados que já começaram a
impor as ERAs com uma redação igual ou similar à proposta em nível
federal. A Pensilvânia adotou sua ERA há mais de uma década e os
banheiros não viraram unissex nem os direitos ao aborto e dos ho-
mossexuais foram afetados para melhor ou pior. Por outro lado, os
direitos econômicos das mulheres têm sido reforçados; há igualdade
na instrução, no mercado de trabalho e os benefícios previdenciários
avançaram; e as leis discriminatórias contra homens, baseadas em
sexo, também foram derrubadas.
Portanto, por que não são realizados relatórios independentes e
profundos? Por que a mídia de sua cidade (e da minha) não leva esta
questão histórica a sério? Por que permitem que os legisladores votem
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 409

contra a opinião da maioria em seu próprio eleitorado, como vemos


nas pesquisas independentes, sem temer o sensacionalismo jornalístico
sobre os interesses especiais aos quais eles estão reagindo?
Pergunte a eles. Um futuro com ou sem a ERA está em jogo.
Como também está o bom ou mau jornalismo.

Tenho observado que, dos romances de Dostoiévski aos programas


de televisão sobre Las Vegas, a jogatina é retratada como uma ob-
sessão puramente masculina. Alguém me perguntou por que as
mulheres não jogam tanto quanto os homens. Dei a resposta sensa-
ta de que não temos tanto dinheiro quanto eles. Esta resposta é ver-
dadeira mas incompleta. Na verdade, o instinto das mulheres pela
aposta tem sido satisfeito pelo casamento.
Se os homens duvidam da magnitude da aposta, considere ape-
nas o quão duro é saber que alguém com quem você está prestes a se
casar seja, talvez por tradição e por falta de alternativa econômica,
sua identidade de uma vida inteira e seu ganha-pão, que ele terá a
carreira de advogado ou de capataz ou de político que você quer para
si mesma e para a sua segurança. Não é tão fácil, certo?
Nos anos cinqüenta, lembro de amigas de faculdade levando os
poemas, os esboços arquitetônicos, ou as teses de seus noivos para
um professor da matéria para perguntar: "Esse cara é bom mesmo?"
É claro que a aposta torna-se menos importante à medida que
adquirimos a capacidade de nos sustentar. Mas até que salários e o
poder sejam iguais, e as mulheres não mais tenham de acrescentar o
nome do marido ao seu e assumir a identidade e a carreira profissio-
nal dele, isso não acabará. Os romances e outros meios de comuni-
cação ainda permitem esse motivo de casamento somente para "mu-
lheres más".
Estão perdendo uma porção de bons enredos.

Está mais do que na hora de alguém agradecer publicamente a Gay


Talese por intitular seu catálogo exaustivo de sexo impessoal Thy
Neighbor's Wife [A esposa do vizinho}. Como as mulheres não possuem
esposas, o autor adverte (embora inadvertidamente) que elas não
precisam comprar o livro. Assim como os leitores homens que dei-
xaram de pensar nas mulheres como propriedade masculina. Isso deixa
410 GLORIA STEINEM

uma fatia pequena porém fervorosa de leitores para Mr. Talese: os


homens que estão, sexualmente falando, no piloto automático.
No entanto, A Escolha de Sofia, outra obra campeã de vendas (e
também um filme baseado no livro) é muito mais enganosa. Ao colocar
uma mulher no título do romance, William Styron (autor-narrador-
protagonista) nos encoraja a acreditar que ele pode escrever sobre
uma mulher com empatia. Em seu último romance, The Confessions
of Nat Turner [As confissões de Nat Turner}, Styron, que é branco,
prometeu o mesmo com relação aos homens negros. Ele foi muito
criticado por transformar o corajoso líder de uma revolta de escravos
numa fantasia do homem branco; retratando-o como obcecado por
uma jovem branca e responsável pelo seu assassinato, embora não
haja prova histórica alguma de que ele foi qualquer uma destas duas
coisas. Infelizmente, Sofia (supondo, como Styron nos pede, que ela
realmente existiu) deixou muito menos do que o ínfimo registro his-
tórico de um escravo, mas ela parece ser apenas uma prisioneira do
preconceito enervante e estereotipado de Styron. Como Turner, ela
é vista como sendo motivada pelo sexo, com um valor principalmente
sexual-psicológico, não histórico-ativista. Como outras protagonis-
tas femininas nos trabalhos de Styron, de Lie Down in Darkness [Deite-
se na escuridão} em diante, ela é masoquista e suicida.
Mesmo aceitando os contornos fatuais de sua vida como são
mostrados no romance de Styron, custo a acreditar que ela foi qual-
quer uma destas coisas. Por exemplo, embora Sofia sobrevivesse à
perda de seus dois filhos, a anos de fome e às atrocidades de um campo
de concentração nazista, e embora ela tenha jurado viver (como real-
mente viveu) mais do que o comandante odiado para que ele não
triunfasse, somos levados a acreditar que ela por livre escolha se entregou
e amou um fascista sexual em Nova York, um amante viciado e cli-
nicamente louco que a salvou da desnutrição apenas para espancá-la
e submetê-la a acessos de ciúme pela possibilidade de ela ter usado
o sexo para sobreviver no campo de concentração. (O que importa
se ela o fez? O autor-narrador parece aceitar a promessa do amante
louco de que nada é mais importante numa mulher do que seu com-
portamento sexual. De fato, ele apresenta o sadismo e o comporta-
mento controlador do amante como uma forma de amar masculina
normal). Embora Sofia seja uma refugiada com quase nenhuma al-
ternativa, ela tem força suficiente e amor-próprio para expressar ali-
M E M Ó R I A S D E TRANSGRESSÕES 411

vio quando seu amante violento parte temporariamente. Por esta


deslealdade, o autor-narrador a censura.* Ele também aceita e con-
corda com a recusa do irmão do amante em revelar a Sofia que o
homem com quem ela está vivendo inventou o seu passado de bió-
logo em nível de Prêmio Nobel, que ele possui um passado violen-
to, além de ter entrado e saído de hospitais psiquiátricos a vida toda.
Embora o narrador seja (Deus sabe o quanto) sexualmente ob-
cecado por Sofia e confesse seu amor por ela, este "amor" toma a
forma do desejo de possessão, não para avisá-la do perigo real ou
para ajudá-la a viver por conta própria. Na verdade, o narrador só se
assusta quando o amante de Sofia finalmente ameaça matar não apenas
Sofia mas, também, o narrador.
Mesmo quando o narrador "salva" Sofia, tirando-a do alcance
do amante louco, ele o faz sob a condição clara de que ela se case
com ele. Tendo de escolher entre estes dois homens, a decisão de Sofia
pelo suicídio é quase crível. (E claro que o narrador apresenta o sui-
cídio como inevitável, como resultado de uma culpa autopunitiva
por ter sobrevivido ao campo de concentração. Embora ele examine
um número inacreditável de motivos, ele jamais questiona uma possível
conexão entre ir para cama com ele pela primeira vez e a decisão de
se matar horas mais tarde.) No entanto, a escolha do suicídio não é
o único significado da Escolha de Sofia.
Dos flashbacks do campo de concentração, aprendemos que o oficial
nazista forçara Sofia a escolher qual dos seus dois filhos viveria. Se
ela não mandasse um para as câmaras de gás, ambos morreriam.
Sofia escolhe salvar o filho. A esta escolha é dado menos espaço
do que eu dou aqui. Seu motivo não é examinado.
Isto é especialmente estranho dada a exaustão com a qual Styron
examina tudo. (Faz parte de seu estilo pretensioso escrever duas fra-
ses longas quando uma única frase curta seria suficiente.) Por exem-
plo, ele especula incansavelmente o possível motivo que levou o oficial
nazista a forçá-la a esta escolha impensável e chega à estranha con-
clusão de que foi um desejo religioso forçar uma decisão pecadora.

*Os leitores que assistiram ao filme, lançado após a publicação deste ensaio, notarão que esta
passagem do livro foi suprimida. Na verdade, a fantástica atuação de Metyl Streep como Sofia quase
salvou o personagem na versão cinematográfica enquanto o amante sádico e o narrador tornaram-
se mais ternos e "limpos". Não obstante, a questão básica da moral de ambos e do "masoquismo"
de Sofia permanecem.
412 GLORIA STEINEM

No entanto, ele não gasta uma mísera palavra sobre a política sexual
que poderia estar implícita na decisão de Sofia de não salvar a filha.
Na mente do autor, a preferência pelo filho não precisa ser explicada.
É tão natural quanto o masoquismo feminino e a tendência suicida
das mulheres.
E difícil zangar-se com um autor que deixa seus próprios precon-
ceitos tão em evidência. Ler A escolha de Sofia é como ler um caso de
Freud em que ele sustenta ferrenhamente que uma paciente não foi
realmente estuprada por seu pai quando criança, que ela apenas cons-
truiu esta história porque desejara que isso acontecesse. E claro que
estamos descobrindo, agora, através das cartas de Freud, que ele sabia
que tais pacientes diziam a verdade. Mas ele continuou a acusar a
vítima a fim de tornar seus relatos aceitáveis para a sociedade. É possível
que Styron também soubesse o que estava fazendo. (Se isto for ver-
dade, eles são igualmente culpados.) No final, o leitor é deixado com
a triste suspeita de que, se Sofia não tivesse sido linda e se o autor
não tivesse gastado um longo verão tentando levá-la para a cama,
ele não teria se incomodado em registrar sua existência de forma
alguma. Em um quadro enorme sobre os campos de concentração,
o sofrimento humano, a morte de crianças e a insanidade, o autor
pintou o retrato de um escritor jovem branco, sulista, obcecado pelo
sexo, que finalmente consegue perder sua virgindade.
Minha primeira esperança é de que jamais tenha existido uma
Sofia verdadeira, que Styron a tenha criado completamente. Como
as pacientes de Freud, no entanto, ela é real e crível o bastante para
entristecer o leitor; muito mais porque ela é registrada por alguém
que a descreve mas nunca a entende.
Talvez devêssemos colocar bilhetinhos nas capas de ambos The
Confessions of Nat Turner e A escolha de Sofia: "Por favor, ajude-me.
Sou prisioneiro em um livro de William Styron".

Tanto quanto as mulheres possam ditar os termos de qualquer de-


bate nacional, penso que fizemos um erro de divulgação ao permitir
que os inimigos da Emenda de Igualdade de Direitos nos aprisio-
nem numa aprovação tácita do serviço militar obrigatório ao apoia-
rem a qualificação feminina para o mesmo.
O serviço militar obrigatório é terreno deles, não nosso. Embo-
ra muitas americanas (e americanos) sejam contra o serviço militar
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 413

obrigatório em tempos de paz, e que as feministas combatessem os


argumentos anti-ERA que têm como base a convocação militar com
uma negação ritual: "Sou contra o serviço militar obrigatório para
homens ou mulheres", acontecia, com freqüência, que acabávamos
apoiando, defensivamente, a tese de que sob estado de emergência
nacional as mulheres devam servir sob as mesmas condições — por
exemplo, com isenção para chefes de família e levando em conta idade
e saúde—que cabem aos homens. Aí ficávamos novamente sob ataque,
com muitos pais achando que podiam perder as filhas além dos fi-
lhos, e muitas mulheres temendo ser forçadas a ir contra a convicção
pessoal de que a violência raramente é um caminho eficaz para a
resolução de qualquer conflito.
A partir do ponto de vista da mídia e do feminismo, a longo
prazo, nosso terreno deveria ser — e deverá ser, no futuro — a li-
berdade de escolha. A idéia é não ditar a escolha a ser feita, dando a
cada pessoa o poder de fazê-la. Isso significa que nosso argumento
mais eficaz é o direito das mulheres de se apresentar voluntariamen-
te para o Exército, incluindo as posições de combate, nas mesmas
bases que os homens.
Em termos de mídia, a grande vantagem deste argumento é colocar
os adversários da igualdade na defensiva. Eles são quase uniforme-
mente contra a presença de mulheres em combate e, freqüentemente,
contra mulheres nas forças armadas, embora professem o patriotis-
mo e o direito de cada cidadão de possuir armas.
Além disso, se nós nos permitirmos ir adiante com o argumento
de que o serviço militar é uma precondição da igualdade do cida-
dão, estaremos ignorando a realidade. Muitos direitos dos homens
não foram amarrados ao serviço militar. O serviço militar obrigató-
rio tem existido somente há trinta dos mais de duzentos anos de
existência do país, e somente para os 5 % dos que estão no exército
que viram um combate. Colocar as obrigações antes das oportuni-
dades, ou deixar um maior número de pessoas vulneráveis ao que já
é uma instituição de pouca aceitação, não é o caminho para a cons-
trução de um movimento.
Por outro lado, apoiar os direitos das mulheres de se alistarem
nas mesmas bases que os homens, sem restrição de cota ou comba-
te, continua coerente com a liberdade de escolha, para mulheres e
homens. Também apóia as oportunidades iguais de promoção
414 GLORIA STEINEM

reivindicadas por mulheres que já estão no exército, e enfrentam o


argumento dominantemente masculino de que as mulheres não
deveriam aprender a lutar.
Muitos militares com experiência em combate (ao contrário dos
congressistas com experiência em poltronas) acreditam que nenhu-
ma guerra pode ser ganha se muitas das tropas de combate se en-
contram a postos contra sua própria vontade. Um sistema que se
assenta na vontade de homens e de mulheres de se alistarem prova-
velmente oferecerá melhores salários e condições dentro do exérci-
to, e oferecerá uma causa pela qual os convocados acreditem que valha
a pena lutar — um freio interessante sobre o aventureirismo militar
como o Vietnã, no passado, e possivelmente países como El Salva-
dor no futuro.
Finalmente, a atual proibição do ingresso de mulheres, com vontade
e capacidade, em posições de combate é um pretexto para limitar o
número de voluntárias e para manter as mulheres em posições su-
balternas? Isto reserva para os homens os melhores postos de treina-
mento e todos os postos de comando. Apesar da falta muito propa-
gandeada de soldados adequadamente instruídos e da necessidade
por parte das forças armadas de poupar verbas, notas baixas em exames
e instrução insuficiente ainda são aceitáveis no caso dos homens. Há
maior procura por recrutas masculinos. Os militares precisam gas-
tar 3.500 dólares a mais para recrutar um homem em vez de uma
mulher.
Na verdade, se todas as mulheres que desejam e que têm capacidade
para tal pudessem se alistar, as atuais necessidades de pessoal do Exército
poderiam ser preenchidas sem qualquer necessidade de alistamento
de homens. Clifford Alexander, ex-ministro do exército, relata que
mesmo no pior ano de recrutamento da era de alistamento voluntá-
rio o exército tinha apenas dezesseis mil soldados a menos do que o
necessário. Sem cotas restritivas, as mulheres ultrapassariam facil-
mente esse número. Poderíamos salvar os homens do serviço militar
obrigatório — o que não é uma má oferta. Nós mulheres podemos
ser perdoadas por suspeitarmos das razões da recusa.
Por que é que as mesmas forças de direita que fizeram campa-
nha pela igualdade de oportunidade da pena de morte e que se opu-
seram aos abrigos para mulheres espancadas ainda insistem em "pro"
teger" as mulheres do serviço militar em geral e do combate volun-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 415

tário especificamente? Margaret Mead e outros antropólogos fize-


ram estudos de cruzamento cultural que mostram mulheres lutan-
do em defesa própria serem tão ferozes quanto os homens. As mu-
lheres aparecem em muitas guerras que envolveram populações ci-
vis, e em algumas nas quais nos mandaram para a linha de frente.
Mesmo na Segunda Guerra Mundial, na Coréia, no Vietnã, algumas
mulheres serviram nas zonas de combate como enfermeiras e como
oficiais de comunicações. Aparentemente podemos ser alvos — e
ocasionalmente somos mortas. Só não podemos atirar de volta.
Não é de estranhar que exista uma profunda convicção entre muitas
mulheres de que nossa sociedade simplesmente não quer que apren-
damos a usar a força. O que aconteceria se todas as garçonetes mal
pagas, as vítimas de estupros e as esposas espancadas tivessem um
pequeno treinamento militar? O que aconteceria se as mães depen-
dentes dos fundos da previdência aprendessem as mesmas habilida-
des que muitos homens pobres aprenderam no Vietnã? De que for-
ma mudaria sua esposa, normal e dependente, com um ou dois anos
de serviço nacional universal?
Talvez aquilo do qual mais precisamos seja uma boa ação judicial
movida pelas mulheres que desejam se alistar para o exército — e
para o combate. Além do mais, o objetivo do feminismo é o poder
de escolha.

— 1980,1981
Se os Homens Menstruassem

Morar na índia me fez compreender que a minoria branca do mun-


do passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele
branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele bran-
ca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.
Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pê-
nis. O poder de dar à luz faz a "inveja do útero" mais lógica e um
órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens
extremamente vulneráveis.
Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada
inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara
em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ain-
da ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que
quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela
dissera a uma platéia 100% masculina: "Vocês deveriam estar orgu-
lhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente
a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!"
Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de al-
guma forma sua história se misturou à índia e a Freud para me fazer
compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o
que for característico de um grupo "superior" será sempre usado como
justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de
um grupo "inferior" será usado para justificar suas provações. Ho-
mens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem,
segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulhe-
res eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais "fracas".
Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de
ser advogado quando crescesse, como a mãe, "Que nada, isso é tra-
balho de mulher." A lógica nada tem a ver com a opressão.
Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica,
os homens menstruassem e as mulheres não?
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 417

Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de


gabações, um evento tipicamente masculino:
Os homens se gabariam da duração e do volume.
Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do
início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares
familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.
Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os pode-
rosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia.
Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do cora-
ção, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegi-
dos e muito a respeito das cólicas menstruais.
Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e
teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam
mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman,
Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e
Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath — "Para aqueles
dias de fluxo leve".
As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos
esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquis-
tam um maior número de medalhas olímpicas.
Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos ci-
tariam a menstruação ("men-struação", de homem em inglês) como
prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação
nos campos de batalha ("Você precisa dar seu sangue para tirar san-
gue"), ocupariam os mais altos cargos ("Como é que as mulheres podem
ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?"),
ser padres, pastores, o Próprio Deus ("Ele nos deu este sangue pelos
nossos pecados"), ou rabinos ("Como não possuem uma purgação
mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas").
Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são
seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mu-
lher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supre-
macia dos direitos menstruais ("O resto nãc passa de uma questão")
ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês ("Você precisa
dar seu sangue pela revolução").
O povo da malandragem inventaria novas gírias ("Aquele ali é
de usar três absorventes de cada vez") e se cumprimentariam, com
toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:
418 GLORIA STEINEM

— Cara, tu tá bonito pacasl


— É cara, tô de chicol
Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No
seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que
ele ainda é "The Fonz", embora tenha pulado duas menstruações
seguidas. Hill Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo
ciclo.) Assim como os jornais, (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM
HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.)
E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de San-
gue).
Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais
prazeroso "naqueles dias". Diriam que as lésbicas têm medo de san-
gue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo
era de um bom homem menstruado.
As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres
("elas podem desmaiar ao verem sangue").
É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais
e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da
lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disci-
plina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da mate-
mática, ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na
filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de
estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode
compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo
mês?
A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo,
o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade
suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstrua-
ção.
Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis
com as mulheres. O fato "desses seres" não possuírem o dom de medir
a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.
E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Pode-
mos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argu-
mentos com um masoquismo valente e sorridente. ('A Emenda de Igual-
dade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses":
Phyllis Schlafy. "O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus
e, portanto, sexy também!": Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 419

Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam.


As feministas explicariam incansavelmente que os homens também
precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana,
assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da "inveja mens-
trual". As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não
menstruam é o padrão para todas as outras opressões. ("Os vampiros
foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!") As feministas cultu-
rais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatu-
ra. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalis-
mo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens-
truariam. ("Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia", explicariam,
"é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo
capitalismo.")
Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado,
que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma
idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tor-
nam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual,
quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca,
então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres
comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu
deixo outros improvisos a seu cargo.*
A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas
do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.
Se permitíssemos.

— 1978

*Meus agradecimentos a Stan Pottinget pelos muitos improvisos incluídos neste texto.
Longe da Margem Oposta

TESTANDO A PROFUNDIDADE I

No movimento pacifista e na onda feminista do começo dos anos


70, Bella Abzug foi eleita para o Congresso. Ela traz melhorias para
as questões das mulheres e de outros grupos sem poder, é o primeiro
membro do Congresso a pedir o impeachment do Presidente Nixon,
torna-se respeitada pelas suas habilidades de advogada na redação
das leis e na pesquisa de atalhos pouco usados nos procedimentos do
congresso, e é eleita pelos colegas, depois de servir dois termos na
Câmara dos Deputados, como um dos três membros mais influen-
tes da mesma. Em 1976, ela ousa ser a primeira mulher a concorrer
a uma cadeira no Senado pelo estado de Nova York e perde por uma
pequena margem e, no ano seguinte, torna-se a primeira mulher a
concorrer para a prefeitura da cidade de Nova York por um dos par-
tidos principais.
Alguém a elogiou por ter tido a coragem de deixar um lugar
seguro no Congresso para ser a "primeira" em duas dificílimas corri-
das? Ela é elogiada por haver captado mais recursos políticos — em
sua maioria através de pequenas doações — do que qualquer outra
mulher (e do que muitos homens) na história americana? Será que
ela pelo menos merece algum apoio por ter gasto toda aquela ener-
gia para, então, perder? Não, definitivamente, não. Ela é condena-
da por liberais supostamente pró-feministas como sendo "agressiva
demais" ou "abrasiva" e rotulada pelas campanhas da direita, na mídia,
como "antifamília", "pró-comunista" e "Rainha dos Tarados". Como
resultado, até mesmo os seus esforços para recobrar seu assento na
Câmara foram em vão: um milionário do sexo masculino, branco, é
eleito em seu lugar. Na imprensa, e até mesmo em algumas áreas
do movimento feminista, sua derrota é humilhantemente diagnosticada
como sendo "culpa sua".
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 421

TESTANDO A PROFUNDIDADE II

A ERA — Emenda de Igualdade de Direitos ganha apoio da maio-


ria dos americanos, homens e mulheres, em pesquisas de opinião pública
feitas em todo o país e é ratificada pelos 35 estados nos quais a gran-
de maioria dos americanos vive. Não obstante, um punhado de de-
putados brancos, do sexo masculino, firmemente aferrados em suas
crenças, controlam um número suficiente de votos nos estados re-
manescentes para fazer com que a vitória seja impedida por apenas
três estados. Estes deputados são, então, repreendidos por não agir
de acordo com um consenso nacional? E os repórteres ou os ameri-
canos em geral exigem saber que interesses específicos são estes a
controlar a legislação dos estados? Não, a pergunta mais popular
parece ser "Por que é que as mulheres são contra a ERA?" A segun-
da pergunta mais popular não só culpa as vítimas como ainda intro-
duz um desejo, e não um fato. Você sabe, aquela pergunta: "Por que
é que o movimento feminista está morrendo?"

TESTANDO A PROFUNDIDADE III

Em 1973, após uma longa campanha para galvanizar a maioria


americana a favor do aborto, a Suprema Corte decide que o direito
constitucionalmente garantido à privacidade protege a escolha de
uma mulher em relação ao aborto. Embora a saúde e a vida de mi-
lhares de mulheres sejam salvas devido à disponibilidade de abortos
legais, ambos os candidatos às eleições presidenciais de 1976 pessoal-
mente se opunham ao aborto, legitimando assim o ponto de vista
de uma minoria antiaborto. Até 1977, grande parte das beneficiárias
da previdência, dentre as mulheres, as de menor poder político, ha-
viam sido privadas de subsídios governamentais para o aborto. O
resultado inevitável é a maternidade compulsória, a procura aos açou-
gueiros ou a morte devido a abortos auto-induzidos ou em clínicas
clandestinas. Enquanto isso, o vociferante lobby antiaborto acelera
sua campanha para restringir ainda mais, e eventualmente proibir,
o aborto e começa a assediar também as pacientes. As clínicas de
aborto são rodeadas e suas entradas são bloqueadas por manifestan-
tes com suas faixas e algumas são incendiadas. Muitas são invadidas
422 GLORIA STEINEM

por gangues antiaborto enquanto há mulheres nas mesas de opera-


ção. Tudo isto é feito em nome de uma crença religiosa que, até mesmo
quando formulada da forma mais racional nas pesquisas de opinião
pública, não é apoiada pela maioria de coisa alguma, incluindo os
membros das principais religiões que advogam tais crenças. Na ver-
dade, os ativistas antiaborto da hierarquia católica poderão estar
colocando em perigo a vida de suas próprias mulheres, pois como as
católicas têm menos acesso a métodos anticoncepcionais elas ten-
dem a fazer mais abortos, proporcionalmente ao número de mulhe-
res católicas, do que suas irmãs de outras religiões.
Por acaso essas forças antiaborto são vistas como minorias tirâ-
nicas, cujo poder coloca em jogo os direitos individuaias, assim como
a separação entre Igreja e Estado? Será que um eventual leitor dos
jornais tem a impressão de que 60 a 70% dos americanos apóiam o
direito ao aborto, como as pesquisas demonstram? Pelo contrário,
os grupos antiescolha são freqüentemente citados como sendo parte
de "uma guinada para a direita" pela "maioria dos americanos". E os
defensores da violência são séria e constantemente identificados como
sendo os pró-escolha.

TESTANDO A PROFUNDIDADE IV

Por cinco milhões de dólares, menos de um quarto da contribuição


governamental a um candidato à presidência, mulheres de toda a
nação trabalharam durante dois anos, organizaram 56 conferências
estaduais e territoriais e uma reunião de vinte mil observadores e
representantes, conhecida como a Conferência Nacional, em Houston.
É provavelmente a reunião mais representativa, mais democrática,
mais numerosa e mais barata de representantes nacionais eleitos da
história.
E, então, foram todas parabenizadas pelo trabalho árduo, pela
frugalidade e pela democracia dos processos políticos? E por acaso o
Congresso louvou os poucos projetos financiados pelo governo fede-
ral por terminarem seus mandatos sem pedir mais dinheiro? Não,
nem um pouco. Muito pelo contrário, os grupos de direita os ata-
cam dizendo que foram dólares públicos "desperdiçados", e suas ale-
gações são publicadas com pouca pesquisa por muitos repórteres e
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 423

acreditadas, com pouca justificativa, por muitos deputados. Assim


como algumas acusações feitas de que os dólares públicos gastos para
financiar a Conferência Nacional de Mulheres, em 1977, foram gas-
tos com "pornografia", com "um escândalo nacional". Um material
que nada tem a ver com a conferência é mostrado a deputados fede-
rais e estaduais e circula por diversas capitais estaduais.
É tanta lama atirada de um lado para o outro que alguma res-
pinga. Embora uma pesquisa pública pós-Houston, realizada por Louis
Harris, demonstre que a maioria, ou pelo menos a maioria relativa
dos americanos realmente apóia cada uma das principais resoluções
aprovadas pelas representantes na conferência, a conferência em si
não é vista com a mesma aprovação: 29% a desaprova completa-
mente, 52% não tem certeza de como se sente e apenas 19% a aprova.
E uma vitória parcial, mas incomodativa, das imagens fáceis criadas
pela mídia sobre as realidades conquistadas com tanta dificuldade.

Estas pequenas histórias apenas simbolizam os eventos emotivos e


complexos que nos mantêm nadando por um rio de transformação
cujos afluentes são a esperança, a revelação, o cansaço e a fúria. E, é
claro, além destes testes públicos há os particulares. Quantas de nós
demos asas aos nossos sonhos embora nada tenhamos conseguido
fazer para abalar as estruturas de nossas realidades cotidianas? Quantas
de nós voltou corajosamente a estudar, por exemplo, apenas para
integrar o time das desempregadas, um grupo cada vez mais instruído?
Ou quantas de nós se vê com um emprego de tempo integral fora
de casa e outro dentro? Quantas de nós tenta ajudar os filhos a ser
indivíduos livres mas enfrenta uma cultura inteira que os produz em
massa, em seus respectivos papéis? Quantas de nós tenta manter o
amor e o apoio mútuo entre iguais fluindo apenas para vê-lo ser re-
presado por algum desequilíbrio de autoconfiança ou de poder?
Parece que é aqui que nos encontramos, depois de uma década
da segunda onda do feminismo: esperanças renovadas, sede de mu-
dança e anos de trabalho árduo estão batendo de frente com a frus-
trante conscientização de que cada uma de nossas batalhas terá de
ser travada outra vez. Um dos resultados inevitáveis de conquistar-
se a mudança de consciência da maioria é um ataque por parte da-
quelas forças que dependem da antiga consciência para permanecer
no poder.
424 GLORIA STEINEM

Talvez esta seja a primeira Lição de Sobrevivência da qual preci-


samos nos lembrar se quisermos continuar a lutar: a oposição séria é
uma medida do sucesso. Nós mulheres fomos treinadas para medir a
nossa eficácia pelo amor e pela aprovação, não pelo conflito e pela
resistência. Isso faz com que seja difícil tornar-se individualmente
independente ou lutar por uma mudança básica. Mas a verdade é
que não houve nenhum retrocesso organizado contra nós quando
ainda tirávamos dinheiro de nossos próprios bolsos para organizar
conferências de mulheres ou eventos beneficentes. Isso só veio acon-
tecer depois de nos tornarmos fortes o bastante para destinar alguns
poucos dólares públicos, que também nos pertencem, para fins que
nos interessam. As Igrejas tradicionais e os líderes fundamentalistas
não se organizaram politicamente contra as feministas até que o
contágio da justiça começasse a fazer com que as freiras questionas-
sem a autoridade dos padres, que as mórmons se irritassem com as
restrições sexuais e raciais que governam sua abastada instituição
religiosa, que as mulheres judias e protestantes se tornassem rabinas
e pastoras e que a própria personificação de Deus como o Pai passas-
se a ser questionada.
E quanto ao princípio de remuneração igual por funções equi-
valentes, você deve lembrar que esta exigência já foi conhecida como
"a parte com a qual eu concordo". As vezes ainda é. Mas essa con-
cordância instantânea normalmente precedia a constatação de quantas
mulheres realmente estavam realizando tarefas análogas sem uma
remuneração equivalente à de sua contraparte masculina ou quantas
mulheres gostariam de se juntar às suas irmãs que já formam uma
porcentagem enorme da força de trabalho assalariada ou que fabu-
losa redistribuição de renda teríamos se as mulheres, como grupo,
deixassem de ser consideradas mão-de-obra barata, não-organizada
e excedente.
Em outras palavras, se até mesmo o trabalho que estamos reali-
zando hoje fosse pago de acordo com o seu valor lógico e compara-
tivo como "trabalho de homem", realizaríamos uma enorme distri-
buição de renda. E é justamente por isso que devemos insistir nessa
exigência. Um sistema baseado na mão-de-obra barata, que permi-
te o acúmulo de riqueza por métodos outros que não a produção,
merece ser transformado pela pressão de muitos sobre uns poucos.
A conscientização do potencial populista e radical da "remune-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 425

ração igual" começa a ocorrer a todo o mundo: àqueles com lucros a


serem perdidos e àqueles com igualdade a ser conquistada. Os re-
sultados lógicos são uma resistência mais profunda e um apoio mais
amplo. Depende, é claro, se alguém é beneficiado pelo baixo custo
da mão-de-obra feminina (o empregador, o investidor, o acionista
ou até mesmo o marido); ou se estamos falando da própria mulher
assalariada, de alguém que depende do poder remunerativo da mu-
lher ou apenas de alguém que acredita que a sociedade deva ser
melhorada para todos, a longo prazo, recompensando méritos e res-
tringindo o acúmulo de riqueza.

Culturalmente falando, como mulheres, não fomos preparadas para


tanta resistência e raramente fomos preparadas para ser estudantes
ou cidadãs. A América não foi construída tendo como um de seus
principais alicerces as oportunidades iguais? Por que então devemos
lutar, ou esperar encontrar resistência por algo que acreditávamos já
possuir?
Na verdade, a experiência tem sido nossa escola e nossa aposti-
la. Talvez tivéssemos começado pela descoberta de que a telefonista
da prefeitura recebe US$ 170 por semana enquanto um policial que
atende o telefone na delegacia ganha US$ 306. Ou que o "homem
da manutenção" ganha US$ 185 por semana para manter um pré-
dio de escritórios, durante o dia, enquanto uma "faxineira" recebe
US$ 170 para fazer o mesmo durante a noite. Ou então que uma
enfermeira formada recebe menos que o gari que serve ao mesmo
hospital e muito menos que o farmacêutico que recebeu o mesmo
tipo de treinamento mas que pertence a uma profissão exercida, quase
totalmente, por homens. As vezes reclamamos e nossos emprega-
dores nos dão algum alívio. Com mais freqüência, nos damos conta
da necessidade de uma pressão mais insistente e mais maciça. E sempre
aprendemos a lição de como nos organizar. Mas nós freqüentemente
ouvimos alguma versão da mesma história: "Isso poderia levar à fa-
lência cada um dos governos municipais e hospitais em todo o país."
Ou, de empregadores muito francos: "Nós só empregamos mulhe-
res aqui porque elas saem mais barato do que os homens."
Cada uma de nós tem muitos exemplos do tipo para contar. Mas
é importante lembrar as verdadeiras conseqüências econômicas da
igualdade, como nós mesmas as vemos e podemos acessá-la, se qui-
426 GLORIA STEINEM

sermos compreender a lógica e o tributo da inflexível oposição que


ainda enfrentamos.
É irônico mas até mesmo aquelas de nós que estudaram outras
revoluções econômicas não estavam necessariamente mais bem pre-
paradas para a resistência do que aquelas que agiam de boa fé, acre-
ditando na justiça das regras do jogo. Os teóricos políticos normal-
mente apresentavam a desigualdade feminina como um subproduto
acidental de questões econômicas mais amplas. A suposição era de
que a mudança deveria começar pelo topo, e o topo não inclui as
mulheres.
Estes teóricos não-feministas talvez estejam certos com relação
a uma revolução específica, mas há mais de uma maneira de engen-
drar uma transformação. Assim, começamos onde era possível co-
meçar: embaixo. Como não escolhemos uma rebelião armada, uma
nacionalização, uma tomada de fábricas por seus operários, tínha-
mos poucos modelos táticos a serem seguidos e não sabíamos o tipo
de resistência que poderíamos encontrar.
Nos anos sessenta e setenta, muitas de nós rejeitaram medidas
legislativas tais como a ERA, precisamente porque ela não nos soava
radical o bastante. Nós tínhamos todas as dúvidas típicas dos anos
sessenta, de fazer uma mudança através do sistema eleitoral, ou de
qualquer esforço que dependesse de infiltrar no sistema uma femi-
nista de cada vez. Por convicção política e por temperamento, eu
mesma fiquei no território dos céticos. Eu não era fanática por es-
truturas de nenhuma espécie (sem dúvida uma característica de jor-
nalistas free-lancer) e, além do mais, a ERA parecia ser as sobras de
um tempo em que nossas predecessoras ora radicais haviam sido
persuadidas a acreditar piamente no poder do voto.
Nos últimos anos, no entanto, o potencial lentamente revelado
das pressões de um movimento de massa nos fez mudar de idéia.
Assim como a reação da direita e seu testemunho implícito da im-
portância de um princípio constitucional de igualdade.
Mas, como disse uma pessoa muito esperta certa vez, a ausência
de surpresas é a medida da inteligência. Se nós mesmas tivéssemos
previsto o impacto da ERA, talvez tivéssemos nos esforçado mais para
conseguir as ratificações necessárias, na época em que a direita ain-
da cochilava em seus postos de comando legislativo. Talvez tivésse-
mos instruído melhor a imprensa quanto à localização e à motiva-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 427

ção da oposição, para que menos repórteres aceitassem os falsos ar-


gumentos dos deputados de que "minhas eleitoras mulheres são contra"
ou que o problema era o mítico espectro dos banheiros unissex.
Na ausência de uma análise econômica verdadeira, no entanto,
nossa tendência era apresentar a ERA. como sendo razão pura; sem
acrescentar que a eqüidade, quando introduzida em sistemas que
dependem da iniqüidade (no trabalho ou em casa), pode se tornar
algo muito radical.
É claro que nenhuma preparação prévia teria aumentado o atual
ritmo das mudanças. Como mulheres, precisamos ter cuidado para
não sucumbir à doença social da qual sofremos: a culpa terminal.
Direitos estaduais e controles legislativos locais sempre foram palavras-
códigos para preconceitos raciais e conservadorismo econômico; só
que a experiência da ERA gravou esta verdade em nossas peles. Em
algumas partes do país, tivemos de enfrentar a transformação de leis
que vêm fazendo com que a vítima pague pelo crime desde a Guer-
ra Civil. A Carolina do Norte, por exemplo, ratificou a emenda que
dava o direito de voto às mulheres em 1976 e o Mississippi resiste
até hoje. * O Kentucky não ratificou a emenda antiescravista até 1976.
Em Nevada, onze deputados que prometeram apoiar a ERA, e
que haviam sido apoiados por grupos pró-igualdade por uma pro-
messa pública, votaram contra a emenda depois de eleitos. Por quê?
Porque os líderes de direita do legislativo deixaram claro que eles
teriam pouca chance de liderar comissões ou de ter algum futuro
político se não votassem contra a emenda. Na Virgínia as mulheres
conseguiram o feito impossível de eleger um republicano pró-ERA
numa zona eleitoral democrata pertencente a um líder legislativo
democrata anti-ERA. Mas, como disse uma feminista: "Isso só ser-
viu para deixá-los ainda mais irados. Agora mesmo é que os outros
deputados querem nos castigar."
Talvez, a longo prazo, seja positivo para o país que a ERA tenha
exposto a falta de democracia no legislativo de diversos estados, mas
às vezes dá a sensação de termos de construir o sistema telefônico do
país inteiro para conseguir dar um telefonema.
Para o futuro, no entanto, devemos compreender que o proces-

*0 Mississippi finalmente ratificou a emenda que dá à mulher o direito ao voto em 1982.


428 GLORIA STEINEM

so de democratização do legislativo leva tempo. Trocar alguns ros-


tos não é o bastante, da mesma forma que ganhar o apoio da maio-
ria dos eleitores de um dado legislador não ajuda muito se ele tiver
chegado onde está devido a interesses especiais. Você tem de conhe-
cer o jogo há muito tempo para conseguir se sobrepor aos interesses
especiais e para mudar a liderança dos deputados.
Quando a ERA fizer finalmente parte da Constituição (como fará,
eventualmente) e os historiadores olharem para trás, para a nossa
jornada, eles poderão mencionar o fato de termos aceito o limite inicial
de sete anos para a ratificação como nosso maior e nosso único erro
estratégico. A maioria das emendas constitucionais não possui data
limite. O primeiro limite sugerido no caso da ERA foi de 35 anos.
Quando Alice Paul, a sufragista que escreveu e apresentou a ERA,
soube que os nossos patrocinadores do congresso haviam aceito os
sete anos ela duvidou de nosso sucesso. Afinal, se a Guerra Civil le-
vou mais de um século para conseguir incluir a igualdade racial na
Constituição, por que haveríamos de nos surpreender se a igualdade
de metade da população exigisse um esforço longo e constante?*
Leva também um bom tempo até que a massa crítica de qualquer
movimento aprenda que os caminhos da mudança prescritos em nossos
livros de cívica não são suficientes. Trabalhar de dentro dos partidos
políticos, eleger e des-eleger, ganhar o apoio da maioria: tudo isso faz
sentido. De vez em quando até funciona. Mas nossos livros não nos
preparam para o fato de que algumas considerações do poder nada
têm a ver com a maioria (por exemplo, quais interesses especiais fa-
zem as maiores contribuições políticas, quem nomeia os relatores das
comissões, quem consegue sufocar a ética dos deputados e quais le-
gisladores simplesmente não votarão a favor da igualdade porque
"Não era a intenção de Deus que as mulheres fossem iguais aos ho-
mens"); ou que o apoio da maioria exista durante anos numa dada
questão (tal como o controle de porte de armas, full employment ou a
retirada de tropas do Vietnã) sem que isto implique vencer.

*A Emenda de Igualdade de Direitos foi reintroduzida no Congresso um pouco depois de sua não
ratificação até a data limite de julho de 1982. Até as eleições de novembro do mesmo ano, os eleitores
pró-igualdade haviam conseguido mudar um número suficiente de deputados na Flórida e no Illinois,
dois estados-chave na não ratificação da ERA, para que os novos deputados conseguissem aprova-
la. Não obstante, se o mesmo processo de ratificação for seguido, estima-se no mínimo dez anos
para a sua ratificação.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 429

Nós que chegamos à idade de atividade política pela esquerda mas-


culina, também tivemos nossas cartilhas. Eles diziam que não se vence
nas urnas com lobbys, com o apoio da maioria ou com qualquer coisa
que não a rebelião. É preciso adotar métodos "fora do sistema" tais
como manifestações nas ruas, resistência passiva (ou mesmo violen-
ta) ao sistema e o rompimento com aqueles que não concordem com
os métodos mencionados.
Na prática, e sob as condições propícias, tanto as estratégias "de
fora" como as "de dentro", funcionam, mas ambas perdem força. Os
reformistas ou o pessoal "de dentro" muitas vezes tornam-se absor-
vidos demais ou imobilizados. Os revolucionários ou o pessoal "de
fora" muitas vezes ficam tão obcecados com impactos imediatos que
acabam ficando isolados ou desmoralizados quando uma transfor-
mação não se faz evidente de imediato (ou pelo menos antes de che-
garem aos trinta anos de idade).
Conscientemente ou não nós carregamos versões destes estilos
polarizados e pré-feministas dentro de nós e os arrastamos para dentro
do movimento feminista. Nos anos sessenta e setenta nos dividimos
entre feministas "reformistas" e "liberais" (às vezes a divisão tam-
bém incluía a hesitante ala do "Eu não sou feminista mas...") e femi-
nistas "socialistas" ou "radicais" (termos muitas vezes usados como
sinônimos, embora o primeiro tenda a achar que classe é mais im-
portante do que casta e o segundo grupo ache o contrário). Até mesmo
depois de muitas de nós nos identificarmos primordialmente com o
movimento feminista, algumas mutações destas divisões continua-
ram a surgir. Por exemplo, havia (e ainda há) uma distinção entre
"feministas políticas" (que possuem um impulso na direção das ações
ou análises econômicas e que se aliam com a esquerda não-feminis-
ta) e as "feministas culturais" (que se aproximam mais da antropo-
logia, da autotransformação e da construção de uma cultura femi-
nina).
Na vida real, no entanto, o mesmo indivíduo ou grupo talvez se
sinta atraído por ambas as metas, igualmente dignas, e acabe com-
bínando-as de forma criativa. A tragédia é que esta foi uma escolha
artificial e muitas vezes imposta. Não era para estarmos trabalhan-
do "de dentro" e "de fora" do sistema. Nos arriscamos a ser chama-
das de hipócritas ao tentarmos obter credenciais acadêmicas e ao mesmo
tempo desafiar o sistema que as exigia.
430 GLORIA STEINEM

Foi como se o feminismo tivesse apontado a injustiça de se divi-


dir a natureza humana nas falsas polaridades de "feminino" ou "mas-
culino", embora ainda não fosse forte o suficiente para ajudar-nos, a
todos, a superar outras divisões de "ou isso/ou aquilo" que as imita-
vam.
A maior de todas as penalidades foi o amortecimento de nossas
percepções. Na realidade, a maioria das situações acaba contendo
uma variedade de ações e de idéias que podem variar entre uma dúzia,
quatorze, cem ou apenas uma. Ao polarizarmos tudo em pares que
se opõem, nos privamos da precisão, da sutileza, da invenção, do
crescimento. Assim não conseguimos enxergar a gama de ações que
se apresentavam.
Numa cultura onde domina o masculino, a função vital da pola-
rização é estabelecer uma situação de ganho e perda. As mulheres
devem escolher estar do lado que concede ou do lado que perde: é
assim que se atinge a virtude, a solidariedade e o apoio da socieda-
de. Até mesmo entre as feministas, a pureza moral e a correção conti-
nuam associadas ao fracasso, uma idéia que pode nos levar a recom-
pensar as fraquezas umas das outras e a castigar a força.
Um exemplo recente é a divisão das feministas em uma maioria
"moderada" ou até mesmo "conservadora" versus uma minoria "ra-
dical" ou "pura". Nesta versão de polarização, qualquer grupo ou
pessoa que tenha sido bem-sucedido, ou mesmo que tenha sobrevi-
vido, seria colocado na categoria dos vendidos e qualquer um que se
sinra isolado e amargo seria colocado no território dos puros. Assim,
podemos ler em alguns lugares (embora não nos canais de comuni-
cação controlados pela direita, que é esperta demais para isto) que
as "conservadoras" ou as "moderadas" tomaram as rédeas do movi-
mento feminista das mãos da minoria "pura".*
O motivo por trás desta divisão se revela no desequilíbrio entre

*Em relação aos outros movimentos e grupos de interesse, o movimento feminista é mensuravelmente
mais radical, ou seja, muito mais interessado em mudanças fundamentais. Uma pesquisa realizada
pelo Centro para Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard e o Washington Post sobre
grupos de liderança nos Estados Unidos (grupos de jovens, o movimento negro e muitos outros)
determinou que as feministas estavam consistentemente mais aptas a falar de questões que implicam
mudanças básicas (por exemplo, a propriedade pública de companhias de gás, luz, água, esgoto e
telefone e disttibuidoras de combustível ou sobre a redistribuição de renda) do que qualquer outro
grupo. A maioria dos entrevistados era membro do N O W e do Comitê Eleitotal Nacional de
Mulheres, os mesmos grupos feministas considerados "moderados".
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 431

estes dois grupos. Você pode ter a certeza de que a maioria das femi-
nistas estará do lado condenado, já que apenas uma pequena mino-
ria poderá ser considerada "pura". As vezes, esta é a maneira paternalista
que os observadores políticos de fora do movimento encontram para
definir a inexistência do mesmo. E muitas vezes é a forma derrotista
que algumas poucas mulheres encontram de declarar sua superiori-
dade moral e sua propriedade sobre o feminismo.
Em ambos os casos, é importante ignorar rótulos e olhar regis-
tros de questões e ações. Estes muitas vezes revelam algo bem dife-
rente. O grupo da maioria sobreviveu e cresceu justamente por ser
feminista, e portanto radical o bastante para atacar problemas fun-
damentais e comuns e fazer com que as experiências e as histórias
pessoais de cada mulher sejam bem-vindas. Esta minoria "pura" e
amarga, por outro lado, pode ter sido isolada precisamente por ter
sido feminista em sua retórica, mas exclusiva ou autoritária em seu
comportamento e em seu estilo. Quer tenham vindo da esquerda ou
da direita, possuem a tendência de cavar seu território, de declarar
sua propriedade ou outra autoridade que lhes seja única e exigir res-
peito perpétuo àquilo que pregam.
Na realidade, no entanto, a mais reconhecível característica das
feministas e dos atos feministas é o seu esforço em ser inclusivo. As
visões radicais do feminismo dependem da sua possibilidade de trans-
formar as condições de todas as mulheres e não apenas de uma mi-
noria correta.

E isto não quer dizer que diferenças internas e críticas não sejam
construtivas. Podem sim, dado que descrevam diferenças verdadei-
ras e que não nos afastem sem motivo.* No que diz respeito aos rótulos,
por exemplo, eu prefiro ser chamada simplesmente de "feminista".
Afinal de contas, a crença na humanidade integral de uma mulher
leva à necessidade de transformar-se as estruturas machistas e, as-
sim, eliminar o modelo usado para outros sistemas de privilégio
determinado por nascimento. Isso em si deveria ser radical o bas-
tante. No entanto, como há feministas que acreditam que uma mulher

*Para uma descrição de grupos e tendências que compõem o movimento feminista, tanto durante
a primeira quanto a segunda onda, ver Shulamith Firestone, Dialectic of Sex {A dialética do sexo]
(Nova York: Bantam Books, 1971), pp. 15-40.
432 GLORIA STEINEM

possa integrar ou imitar estruturas existentes (ou então que nós de-
vemos aguardar até que as estruturas de classe sejam eliminadas e a
posição de subordinação das mulheres seja automaticamente altera-
da), eu sinto que preciso me identificar como uma "feminista radi-
cal". "Radical" quer dizer "ir à raiz das coisas" e achar que o sistema
de castas sexuais ê a raiz. Quer tenha se desenvolvido cronologica-
mente como o primeiro modelo de dominação na pré-história ou não,
ficou claro que a liberdade feminina é mais restringida em socieda-
des também dedicadas a manter algumas raças ou classes "puras" de
nascimento como forma de perpetuar seu poder.
Como acredito que o sistema de castas sexuais é este tipo de raiz
causai, crucial e antropológica, também acho que todas as ações efer
tivas tomadas contra ele contribuirão para uma transformação radi-
cal da sociedade. Isso acontecerá quer estas ações sejam efetuadas
por feministas radicais ou por alguém que declare, hesitante, "Eu
não sou feminista, mas..." Portanto, eu me sinto bem apoiando e
trabalhando com mulheres que não compartilham do rótulo que escolhi.
Sim, podemos discordar nas análises, a longo prazo: não acho que o
feminismo possa ser imitativo ou integracionista. Por definição, o
feminismo precisa transformar. Mas, a curto prazo, existem metas
nas quais concordamos. E é a curto prazo que precisamos agir.

A maioria das feministas começou a perceber que táticas e estilos


variados são trunfos. Aprendemos alguma coisa da experiência de
trabalhar com diferenças de raça, idade, classe e sexualidade. Apren-
demos com exemplos tais como o movimento de saúde da mulher
ou a mudança das leis que punem o estupro ou que deram início à
criação dos abrigos para mulheres espancadas, todos tendo nos be-
neficiado muito através de métodos variados: não só as táticas "de
fora" e "de dentro" mas também a criação de estruturas feministas
alternativas e a tradução de muitas de suas lições como possível den-
tro do próprio sistema dominante.
Cada assunto passa por uma ontogenia parecida: a identificação
do problema, a discussão do mesmo, a conscientização, a pesquisa, a
criação de estruturas alternativas e o início da criação ou da mudan-
ça das leis da sociedade e de suas estruturas para que o problema
seja resolvido de forma satisfatória para a maioria. Talvez esta seja a
segunda Lição de Sobrevivência: temos de nos impulsionar além do pré-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 433

feminismo, do "ou isso/ou aquilo", da mentalidade polarizada em direção a


uma gama completa de talentos e táticas. Precisamos cercar nossas metas.
Já dissemos com freqüência que a diversidade deveria ser o selo
de autenticidade de um futuro feminista. Mas só agora estamos co-
meçando a compreender isto como uma vantagem tática. Também
estamos nos tornando seguras o bastante para dispensar a idéia de
que todos que não escolhem nosso estilo específico estão nos rejei-
tando ou nos criticando. Isto nos libera para usarmos meios diver-
sos, e para ver que, na integridade orgânica exigida pelo feminismo,
os meios sejam o fim. Nós não teremos a diversidade que almejamos
como fim se não a alimentarmos pelo caminho.

Na história desta onda de feminismo, a campanha pela ERA pode


aparecer como a primeira experiência maciça e compartilhada que
tirou a massa crítica do movimento feminista de sua rotina "de den-
tro do sistema"/"de fora do sistema". E muito pouco provável que a
próxima luta contenha radicais que ignoram o poder do sistema eleitoral
ou reformistas que insistem em que tudo ficará bem se nos condu-
zirmos como damas bem comportadas, vestirmos saias e evitarmos
polêmica.
Mas só faz uma década que entramos nesta atual onda da mais
longa revolução. A última onda durou mais de um século e haverá
outras, criadas por nossas irmãs que ainda estão por nascer. E im-
portante extrairmos lições para ações futuras.

Por exemplo, analisemos a derrota de Bella Abzug nas pesqui-


sas de opinião. Se nós não a tivéssemos deixado ali, na vanguarda,
sem movimentos visíveis na rua, sem demonstrações, sem bater de
porta em porta para organizar eventos que deixassem bem claro que
ela tinha um eleitorado formidável, talvez não tivesse sido tão fácil
criticá-la por ser a voz mais radical no alcance dos ouvidos de políti-
cos ou da imprensa. O que ocorreu foi que muitas de nós sucumbiu
ao argumento polarizado de que estávamos (ou que ela estava) den-
tro do sistema e que o tempo de ir para as ruas, no início dos anos
setenta, já havia terminado. Algumas de nós chegaram a concordar
que sua agressividade foi responsável pela sua derrota. Mas será que
o estilo de Bella não estava muito próximo ao de Fiorello LaGuardia,
o mais amado de todos os prefeitos da cidade de Nova York?
434 GLORIA STEINEM

Talvez tivéssemos sido mais fortes para pressionar pelo lado de


fora da estrutura política, honrando o estilo de Bella, se tivéssemos
lido afirmações como a seguinte:

Pessoas cautelosas e cuidadosas, que fazem sempre o possível para preser-


var a própria reputação ou os padrões sociais, jamais realizarão refor-
mas. Aqueles realmente sinceros estão dispostos a ser o que for ou nada ser
aos olhos do mundo, em público ou em particular, no momento propício ou
não, declaram sua solidariedade para com idéias pouco populares e para
com os que as defendem e agüentam suas conseqüências.

Foi Susan B. Anthony que fez esta declaração em 1873. Sem o


conhecimento de citações como esta, às vezes pensamos nas ativistas
da primeira onda como brandas. Mas a quantas de suas táticas po-
demos corresponder, em termos de variedade ou força?
Até mesmo as sufragistas posteriores, as que são freqüentemente
rotuladas de reformistas devido a sua concentração no voto, usavam
táticas radicais. É verdade, elas eram lobbistas educadas e tomavam
chá com seus amigos no Congresso, mas também faziam piquete em
frente à Casa Branca e se envolviam em atos de desobediência civil
que os mesmos deputados detestavam. Esposas de homens conheci-
dos, de preferência amigos pessoais do Presidente Wilson, eram presas
(um fato de grande dramaticidade para a imprensa), e as sindicalis-
tas, a bordo de carros ornados com bandeirolas, desciam as ruas prin-
cipais, algo muito distante do estereótipo das trabalhadoras "imo-
rais" e das imigrantes. As sufragistas vestiam suas faixas de pano por
baixo das roupas para poder penetrar com elas em reuniões ou pi-
quetes bem vigiados. Quando uma faixa era confiscada pela polícia,
dúzias de outras faixas apareciam para substituir a primeira. Nossas
predecessoras tinham um grande talento para faustos: todas mar-
chavam com capas da mesma cor, carregavam flores da mesma cor,
apresentavam petições de quatro quilômetros e meio de comprimento,
ou (quando viam necessidade de mais firmeza), queimavam os dis-
cursos do presidente nas ruas de Washington de forma a envergonhá-
lo internacionalmente Elas também disciplinaram um sistema pré-
informatização no qual cartas, telegramas e telefonemas podiam ser
enviados através de sinais nacionais. Tinham também um timing
excelente. As reuniões das sufragistas eram marcadas normalmente
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 435

às vésperas de algum grande evento do establishment — como, por


exemplo, uma convenção política nacional — para aproveitar a con-
centração de jornalistas caceteados e sedentos por notícias.
Acorrentadas à cerca da Casa Branca, declarando greve de fome,
sendo alimentadas à força: estes acontecimentos ficaram famosos.
Mas suas táticas incluíam humor, dramaticidade, resistência passi-
va, persuasão, e, quando possível, a subversão de contatos e esposas
do establishment.
A reação antimulher daquele tempo também as acusou de se-
rem defensoras do amor livre, antifamília, masculinas e mulheres
antinaturais. Isso lhe soa familiar?
Idéias para ações, para a resolução de conflitos e um lembrete
de hostilidades análogas no passado: todas estas são razões práticas
para a Lição de Sobrevivência número três:precisamos conhecer a histó-
ria de nossas irmãs — tanto como fonte de inspiração quanto para acumu-
larmos um verdadeiro arsenal de idéias — e adotar o que for pertinente ao
presente. São poucas as táticas completamente novas, ou completa-
mente antiquadas. Mesmo quando nós mesmas já exaurimos nossa
capacidade de dar-lhes roupagem nova, outras feministas podem repetir,
estender e tranformá-las.

Todas nós somos organizadoras e nenhuma organizadora deveria


terminar uma reunião ou um livro ou um artigo sem dar idéias prá-
ticas. Afinal, um movimento nada mais é do que gente em movi-
mento. E o que vamos fazer de diferente quando nos levantarmos
amanhã pela manhã?
A grande força do feminismo — assim como do movimento negro
americano, do movimento de Ghandi na índia e de todas as lutas
orgânicas pelo autogoverno e pela justiça, pura e simples — sempre
foi nossa coragem de agir sem esperar, sem teorizar sobre uma to-
mada de poder. Não é por acaso que, quando um grupo pequeno
consegue uma revolução significativa, de cima para baixo, a mudança
parece beneficiar apenas àquelas que a provocaram. Mesmo com as
melhores intenções de dar "poder ao povo", a revolução, como um
todo, é traída.
O poder pode ser tirado, mas ele não pode ser concedido. O processo
de usurpá-lo é, em si, dar poder.
Então nos perguntamos: Qual será a real aparência de uma gama
436 GLORIA STEINEM

de táticas que ofereçam apoio mútuo para nós — individualmente


—, para nossas famílias e para grupos comunitários, para homens
que se preocupam com a igualdade, para as crianças e para os movi-
mentos políticos como um todo? Algumas táticas sempre serão úni-
cas a situações específicas e, portanto, imprevisíveis. Outras serão
adequadas a épocas de extrema energia em nossas vidas, e outras
farão sentido para aqueles que estão exaustos e que precisam de um
período de contemplação e de análise. Mas aqui estão algumas táti-
cas que podem inspirar ação, mesmo que seja apenas para dizer: "Isso
não está certo. Eu prefiro fazer assim, e não assim."

Como Indivíduos

No começo dos anos setenta, quando eu viajava e dava palestras na


companhia de uma advogada feminista e ativista negra, Florynce
Kennedy, um de seus muitos epigramas dizia mais ou menos o se-
guinte: "Costuma-se dar uma importância exagerada à unidade numa
situação de movimento. Se você fizesse parte do establishment, o que
você preferiria ver batendo à sua porta, quinhentos ratos ou um leão?"
Com a lição dela em mente eu, hoje em dia, termino minhas
palestras com uma negociação típica de organizadora. Se cada um
dos presentes prometer que, nas 24 horas seguintes, ela ou ele dará
um pequeno escândalo em prol da justiça, então eu prometo fazer o mesmo.
Não importa se o ato em questão for tão pequeno quanto dizer: "Pegue
você mesmo" (um passo enorme para todas nós que passamos a vida
inteira sendo as criadas da família) ou tão grande quanto organizar
uma greve. A questão é que, se cada um de nós fizer o que prome-
teu, é quase certo que obteremos pelo menos dois resultados. Em
primeiro lugar que o mundo, no dia seguinte ao nosso pequeno es-
cândalo, não será o mesmo. Em segundo lugar, que será tão diverti-
do dar nosso pequeno escândalo que nunca mais acordaremos nos
perguntando "Será que vou dar um pequeno escândalo hoje?" e sim
"Qual será meu pequeno escândalo de hoje?"
Aqui estão alguns pequenos escândalos a que eu já assisti na vida
real:
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 437

• Ter anunciado uma recusa permanente de contribuir mais,


financeiramente, para uma igreja ou sinagoga até que as
mulheres possam se tornar padres, pastores e rabinos.
• Ter pedido um aumento há muito merecido ou, no caso de
homens ou brancos em geral, ter recusado um aumento não-
merecido que passara direto pelos outros por razão de sua
raça ou sexo.
• Escrever uma crítica bem bolada de um livro racista ou se-
xista e distribuí-la numa universidade.

• Ter questionado imagens ou piadas misóginas com a mesma


seriedade normalmente reservada para insultos relacionados
a raça e religião.
• Ter compartilhado ou divulgado entre colegas os respectivos
salários de forma a medir a disparidade entre os mesmos. (É
interessante como nossos empregadores fazem de tudo para
não permitir que contemos um fato conhecido.)

• Ter tomado conta de uma criança para uma mãe que traba-
lha demais poder ter um dia só para si. (Isso é ainda mais
revolucionário quando feito por um homem.)

• Ter voltado a assinar o nome de solteira ou, no caso dos ho-


mens, sugerir que os filhos adotem o nome do pai e da mãe.

• Deixar a casa durante um fim de semana para que o pai de


uma criancinha se torne um pai de verdade. (Conforme nos
relatou uma mulher calmamente após o ato: "Quando eu voltei
para casa, meu marido e o bebê tinham criado um elo, da
mesma forma que mulheres e bebês os criam.")

• Ter feito abaixo-assinado para conseguir uma seção de Estu-


dos Feministas na biblioteca local ou numa livraria.
• Ter checado os programas de doação de uma corporação e
descobrir que eles realmente incluem mulheres entre seus
438 GLORIA STEINEM

beneficiados com pelo menos metade de seus dólares e fazer


sugestões caso este não seja o caso.

• Ter falado pessoalmente com um político que precisava ser


persuadido a apoiar ou recompensá-lo por ter ajudado nas
questões que dizem respeito à igualdade.

• Ter redividido uma casa convencional pata que cada pessoa


ficasse responsável por um espaço específico, revezando também
os cuidados com a cozinha, o banheiro e outros cômodos de
uso comum.

• Casar-se com um igual ou divorciar-se de um não-igual.

• Deixar um amante ou marido violento.

• Liderar uma retirada de um cinema durante a exibição de


uma cena de estupro ou qualquer outro ato de violência apre-
sentado num dado filme como sendo sexualmente estimu-
lante.

• Fazer uma reclamação formal por estar trabalhando (ou vi-


vendo) num gueto branco. A privação, no caso cultural, afe-
ta também os brancos.

• Dizer a verdade a um filho ou a um dos pais.

• Dizer, com orgulho, "Eu sou feminista". (Porque a palavra


indica que se tem fé na igualdade, sendo particularmente útil
quando dita por um homem.)

• Ter organizado uma quadra, um bairro, um edifício ou um


alojamento universitário para se registrar como eleitor e para
votar.

• Ter feito piquete pessoalmente e/ou ter processado um em-


pregador/professor/treinador/capataz/chefe sindicalista por
preconceito.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 439

Além destes pequenos escândalos isolados, há também alguns


constantes que deveriam se tornar essenciais para todos nós. Por exemplo:
escrever cinco cartas por semana para criticar ou elogiar qualquer coi-
sa, de programas de televisão a senadores; doar 10% de nossa renda
em prol da justiça social; comparecer a um protesto por mês ou fre-
qüentar um grupo de autoconsciência uma vez por semana só para
manter os níveis de apoio e energia em alta; encontrar uma forma de
viver nosso dia-a-dia de forma a refletir nossas crenças pessoais. As
pessoas que normalmente incorporam estas mudanças ao seu cotidia-
no contam que não é tão difícil assim: as cinco cartas lobbistas podem
ser escritas em frente à televisão; doar 10% da renda às vezes se trans-
forma no melhor investimento jamais feito; reuniões nos dão espaço
para sermos livres, para fazer amigos e são um verdadeiro antídoto ao
isolamento; e tentar transformar um emprego ou uma família ou um
estilo de vida para refletir crenças pessoais, em vez de deixar que seja
ao contrário, nos dá a sensação de estar afetando o mundo.
Se cada um de nós transformar cinco outras pessoas no decorrer de
nossas vidas, o espiral da revolução se ampliará enormemente.

Em Grupos

Alguns dos mais eficazes atos em grupo são também os mais sim-
ples:

• Dividir as listas de uma associação de acordo com zona elei-


toral, do nível distrital para cima, para que possamos infor-
mar e conseguir o voto pró-igualdade.

• Pedir a cada organização à qual pertencemos, quer seja co-


munitária ou profissional, sindicalista ou religiosa, para in-
cluir formalmente o apoio às questões de igualdade, em suas
agendas.

• Certificar-se de que os grupos não-feministas aos quais per-


tencemos funcionam de forma a fazer com que a maioria do
trabalho seja realizado pelas mulheres tendo, em sua maio-
ria, homens na diretoria.
440 GLORIA STEINEM

• Tornar grupos feministas feministas; isto é, relevante às mu-


lheres de uma ampla gama de idades, raças, níveis econômi-
cos, estilos de vida, habilidades e rótulos políticos práticos
para a tarefa em pauta — o que requer homens feministas
também. (Trata-se de uma inclusivismo que precisa começar
entre as fundadoras. É bem mais difícil fundar qualquer que
seja o grupo e mais tarde tentar alcançar os "outros".)
• Apoiar quando for necessário, sem precisar que o apoio seja
pedido. Por exemplo, apoiar a bibliotecária da escola que travou
uma luta com a censura direitista aos livros feministas, e outros;
ou então apoiar uma família recém-chegada que se sente ra-
cialmente deslocada. (Você gostaria de ter de pedir a alguém
para lhe ajudar?)
• Identificar grupos para alianças e aliados em questões diversas.
• Aperfeiçoar a comunicação. Se houver uma emergência na
semana que vem — uma vítima de discriminação que preci-
sa de defesa jurídica, um trecho particularmente sinistro numa
legislação que anda deslizando pela assembléia ou pelo Con-
gresso — você conseguiria alertar todos os seus associados?
• Colocar o dinheiro do grupo naquilo que realmente lhe inte-
ressa e não no que não interessa. Isto pode significar contri-
buir para o abrigo local de mulheres espancadas ou protestar
contra o uso do fundo comunitário que doa muito mais di-
nheiro às bandeirantes e aos escoteiros; publicar uma lista
de negócios de propriedade feminina; não pagar as taxas de
atividades estudantis num compus que contrata principalmente
palestrantes do sexo masculino. (Certifique-se de que o ou-
tro lado sabe quanto dinheiro estará perdendo com sua ati-
tude. Para ser mais convincente, transforme suas contribui-
ções em títulos, a serem resgatados apenas depois que certas
mudanças forem feitas.)
• Organizar noites de depoimentos e entrevistas coletivas. Não
há nada como o testemunho pessoal de pessoas que já passa-
ram por um problema semelhante
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 441

• Premiar publicamente e oferecer jantares a mulheres (e ho-


mens) que fizeram uma diferença positiva.

• Contratar palestrantes ou organizar cursos de Estudos Femi-


nistas para manter seus associados bem informados; criar um
núcleo de palestrantes para que a mensagem do grupo se
estenda à comunidade.

• Certificar-se de que novos associados sentem-se convidados


e bem-vindos ao chegarem e incumbir antigos associados de
fazer um pequeno briefing sobre as atividades do grupo e trans-
ferir os conhecimentos comuns ao grupo.

• Ligar-se a outros grupos como o seu, regional ou nacional-


mente, para trocar experiências, ações e receber alguma ga-
rantia de que não se está reinventando a roda.
É óbvio que precisamos escolher a ação apropriada dentre um
imenso vocabulário de táticas que vão do exercício do voto à deso-
bediência civil, do apoio profissional às mulheres a boicotes econô-
micos, de audiências no Congresso a ações rápidas, bem-humoradas
e bem informadas.
Dada a feminização da pobreza, no entanto, os grupos passam a
ter outra importância. Como as mulheres formam uma mão-de-obra
subdesenvolvida, subcapitaüzada, com acesso desigual à tecnologia
— em outras palavras, somos um "Terceiro Mundo" onde quer que
estejamos —, estamos começando a nos dar conta de que o modelo
de Horatio Alger, grande protagonista do sonho americano, de pro-
gresso econômico individual não funciona muito bem para nós. É
bem provável que tenhamos muito mais a aprender sobre o desen-
volvimento econômico com nossas irmãs que vivem em países ditos
subdesenvolvidos. Formas de propriedade cooperativa e formação
comunitária de capital podem se tornar tão importantes para o nos-
so futuro quanto o conceito de remuneração igual.
Até aqui, estas experiências cooperativistas vêm engatinhando
humildemente: três mães solteiras que juntam filhos e recursos para
comprar uma casa que nenhuma delas poderia comprar sozinha; duas
mulheres que compram, juntas, um caminhão para fazer transpor-
442 GLORIA STEINEM

tes a longa distância; uma dúzia de mulheres que se juntam para


começar uma padaria-confeitaria ou um serviço de limpeza e arqui-
tetas feministas que transformam prédios velhos em novos lares.
Mas estamos começando a olhar para os exemplos do Terceiro
Mundo, que sugerem maiores esforços. Se as mulheres mais pobres
da zona rural do Quênia podem juntar suas economias de anos para
comprar um ônibus, cobrar passagens e construir uma loja coo-
perativista, por que não podemos nós, com mais recursos, ajudar umas
às outras com empreendimentos parecidos em nossas próprias vi-
das? Se as mulheres analfabetas da Índia podem fundar e adminis-
trar sua própria cooperativa de crédito, conseguindo assim emprés-
timos a juros baixos para adquirir as mercadorias que vendem nas
ruas, como podem as mulheres americanas se sentir imobilizadas por
uma economia ruim? Sem contar que trata-se de uma saudável re-
viravolta no fluxo normal das coisas, do país desenvolvido para o
subdesenvolvido, reviravolta esta que talvez ajude as feministas a
construir pontes que liguem os abismos de condescendência e
desconfiança nacionais. Grupos e organizações foram a base de nos-
so progresso em questões específicas, eleitorais e de autoconscíentização
e de ações diretas. No futuro, talvez sejam também nossa base eco-
nômica.

Como estrategistas

Passamos a primeira década, mais ou menos, da segunda onda do


feminismo às margens de um rio, salvando-nos umas às outras de
um possível afogamento. Nas áreas de sobrevivência tais como es-
tupro, espancamento e outras violências terroristas contra as mu-
lheres, por exemplo, começamos a organizar auxílio através de abri-
gos, serviços de atendimento telefônico, pressões sobre a polícia para
nos dar mais proteção, reformas nos serviços sociais e na legislação e
insistindo para que a sociedade deixe de culpar a vítima.
Agora algumas de nós precisam continuar a galgar o caminho
em direção à nascente para descobrir por que as mulheres estão caindo
no rio.
Por exemplo, podemos seguir novas estratégias que se prova-
ram eficazes no tratamento de homens que espancavam as esposas e
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 443

de outros homens violentos. Tais estratégias vêm sendo bem-suce-


didas exatamente por serem fruto de experiência e de reflexão femi-
nista: a violência é um vício criado por uma sociedade onde domina
o masculino, através do ensinamento de que "homens de verdade"
precisam dominar e controlar o mundo em geral e as mulheres es-
pecificamente. Quando alguns homens viciam-se na violência como
prova de sua masculinidade, o tratamento freudiano convencional
diz apenas: "Sim, os homens são agressores naturais, mas você deve
aprender a controlar o grau de violência." É como dizer a um vicia-
do que ele só pode ter um pouquinho de heroína.
O tratamento baseado na experiência, e não em Freud, diz: "Não,
os homens não são agressores naturais; você precisa desatrelar sua
noção de identidade e de masculinidade da violência e, assim, aban-
donar de vez o vício."
Os poucos programas do gênero vêm sendo úteis para espan-
cadores, estupradores e outros homens violentos, criminosos e cida-
dãos perigosos considerados sem tratamento precisamente por se
considerarem homens normais. Este desafio fundamental a noções
culturais de masculinidade também nos dão esperança de que haja
formas menos violentas de resolver os conflitos existentes em nosso
frágil planeta.
Há muitas outras estratégias centradas em torno das nossas quatro
metas principais: liberdade reprodutiva; redefinição do trabalho; famílias
democráticas e uma cultura despolitizada.
E claro que estas metas estendem-se por uma longa distância,
pelo futuro adentro. Ainda estamos muito longe da outra margem
do rio.
Talvez a imagem da travessia do rio seja simples demais para
descrever as realidades que experimentamos. Na verdade, repetimos
lutas similares que parecem cíclicas e desanimadoras a curto prazo
e, no entanto, cada uma ocorre num território levemente transfor-
mado. Uma revolução completa não se dará até termos passado pela
superficialidade da novidade e até mesmo da lei antes de se integrar
à cultura. Só quando olharmos para trás, daqui a muito tempo, é
que seremos capazes de enxergar que cada um destes ciclos vem
caminhando numa direção. Enxergaremos, então, o espiral da his-
tória.
444 GLORIA STEINEM

Nos meus primeiros dias de ativismo, pensei que faria isso ("isso"
significando o feminismo) durante alguns anos e que depois voltaria
à minha vida de verdade (o que era essa "vida de verdade", eu não
sabia). Em parte, acho que essa era uma crença ingênua de que uma
injustiça só precisava ser indicada para ser sanada. Por outro lado,
acho que era pura falta de coragem.
Mas como tantas outras ativistas, de hoje e de movimentos pas-
sados, aprendi que estamos nisso pelo resto da vida e pela vida. Não
precisamos nem mesmo do espiral da história para percebermos a
distância percorrida. E só olhar para trás, para as pessoas menos com-
pletas que fomos um dia.
E a última Lição de Sobrevivência é: ao olharmos a distância já
percorrida sabemos que não há como voltar atrás.

— 1978, 1982
Se a luta das últimas décadas foi contra o colonialismo, que permitia
que uma nação dominasse outra, a luta atual e futura será contra o
colonialismo interno, que permite que uma raça ou um sexo domi-
ne outro.

Um dia, nossos descendentes acharão incrível termos dado tanta


importância a coisas tais como a quantidade de melanina que temos
em nossas peles ou o formato de nossos olhos ou nosso sexo, em vez
das identidades únicas de cada um de nós, seres humanos tão com-
plexos.
— Franklin Thomas
The Liberty ofthe Citizen (A liberdade do cidadão)
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EDTTORA
ROSADOS
TEMPOS

Memórias da Transgressão - um grande sucesso que vendeu perto


de meio milhão de exemplares desde sua publicação, nos EUA -
é uma variada e oportuna coletânea de ensaios de Gloria Steinem.
Leitores de ambos os sexos aclamaram este livro como uma visão
de mundo inteligente, apaixonada e capaz de promover mudanças
radicais na vida de todos nós. O estilo moderno de Gloria Steinem
se evidencia desde o artigo "Fui uma coelhinha da Playboy",
de t o m jocoso, até o comovente tributo a sua mãe contido
em "A Canção de Ruth" e os proféticos ensaios sobre mutilação
genital feminina e a diferença entre erotismo e pornografia.
O satírico e hilariante "Se os homens pudessem menstruar"
por si só vale o livro.

Gloria Steinem é autora de quatro livros de sucesso, incluindo


Revolution from within e Moving beyond words. Ela foi co-fundadora
da NewYork Magazine, onde também assinou uma coluna política,
e da Revista Ms, em que escreve até hoje.

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