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LIVRE INICIATIVA, LIVRE CONCORRÊNCIA E INTERVENÇÃO DO ESTADO

NO DOMÍNIO ECONÔMICO

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu1

1. INTRODUÇÃO: O JULGAMENTO DO RE 422941 – DESTILARIA ALTO


ALEGRE X UNIÃO.

No final do ano de 2005, o Supremo Tribunal Federal terminou o


julgamento de um interessante caso que tratava da possibilidade de se
responsabilizar a União por danos causados em razão da prática de atos de
intervenção no domínio econômico. Tratava-se do Recurso Extraordinário n.
422941, interposto pela Destilaria Alto Alegre contra acórdão do Superior
Tribunal de Justiça que deu provimento a recurso especial da União contra
decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

A Destilaria Alto Alegre promoveu uma ação de indenização em face


da União, pedindo a reparação dos prejuízos que teria suportado em razão da
fixação de preços do setor sucro-alcooleiro, por ato administrativo federal, em
desacordo com os valores apurados e sugeridos pelo antigo Instituto do Açúcar
e do Álcool – IAA. A promovente sustentou que o tabelamento feito pela União
em desacordo com os critérios técnicos da apuração pelo IAA lhe teria causado
danos indenizáveis, pedindo assim a respectiva reparação.

O pedido foi julgado procedente em primeiro grau e a decisão foi


mantida em grau de recurso no tribunal. A União interpôs recurso especial e,
dando-lhe provimento, o Superior Tribunal de Justiça reformou o acórdão do
TRF para afastar a condenação. O STJ reconheceu que a União teria agido
1
Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em
direito fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal substituto
na Paraíba. Professor de direito penal do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
2

dentro das prerrogativas que possui para intervir no domínio econômico,


podendo legitimamente fixar os preços do setor sucro-alcooleiro em valores
inferiores aos sugeridos pelo IAA. Do exercício legítimo da intervenção estatal
na economia não poderiam decorrer danos indenizáveis à empresa
promovente.

Inconformada, a Destilaria Alto Alegre interpôs recurso extraordinário


contra a decisão do STJ. No final de 2005, o Supremo Tribunal Federal julgou
definitivamente a questão, confrontando dois grandes postulados da ordem
econômica na Constituição. De um lado, colocou-se o poder que tem a União
de intervir no domínio econômico. De outro, a garantia constitucional à
liberdade de iniciativa, que seria frustrada se o poder público inviabilizasse a
exploração econômica do negócio pelo particular.

Do caso acima descrito, observa-se que não houve contestação da


legitimidade de a União intervir no domínio econômico, inclusive através da
fixação dos preços do setor sucro-alcooleiro (o que era permitido até que
Resolução do Ministério da Fazenda, com autorização da legislação pertinente,
houvesse determinado a liberação integral dos preços). A abordagem não
procurou limitar o exercício da intervenção. A questão se resumiu à
averiguação da ocorrência de prejuízo individual e concreto a um agente
econômico privado como conseqüência da intervenção estatal na economia,
bem como à correspondente possibilidade de responsabilização civil da
entidade interventora.

A natureza singular do conflito constitucional que se coloca na decisão


do Supremo Tribunal Federal, em decisão que se apresenta paradigmática, nos
inspirou na realização do presente trabalho. Seguindo na mesma esteira, e
como forma de tornar mais clara a exposição do assunto, decidimos fazer a
apresentação e a apreciação de outras situações concretas em que o conflito
constitucional acima retratado toma lugar. O exame desses conflitos,
principalmente, será o objeto do presente trabalho.

A solução dada pelo Supremo Tribunal Federal ao RE 422941 e a


exposição de outros problemas concretos com base constitucional econômica,
3

além de alguma proposta de solução aos casos apresentados (à guisa de uma


simples tentativa de contribuição) serão apresentadas ao final.

Até lá, é indispensável explicar as bases em que se assentam os


cânones constitucionais em conflito.

2. A EXISTÊNCIA DE UMA “CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA” NO BRASIL

A partir do final da Primeira Guerra Mundial, com a Europa


absolutamente devastada e o povo em situação de penúria, os Estados
começaram uma mobilização pela alteração de suas bases constitucionais,
revendo a posição liberal que assumia seu constitucionalismo até então. Era
necessário garantir prestações positivas à população. As Constituições que
surgiram a partir do grande conflito passaram a prever direitos sociais, típicos
direitos de prestação2, fundados no princípio da igualdade (direitos de segunda
dimensão)3. As Constituições que passaram a incluir em seu texto esses
direitos de conteúdo prestacional positivo, de que são exemplos a mexicana de
1917 e a alemã de 1919, foram batizadas de “econômicas”.

A primeira Constituição brasileira que positivou direitos sociais em seu


texto, na linha da Constituição alemã, foi a de 1934, que incluiu um capítulo
dedicado à disciplina da Ordem Econômica e Social, no que foi seguida por

2
“As Constituições elaboradas após o final da Primeira Guerra Mundial têm algumas
características comuns – particularmente, a declaração, ao lado dos tradicionais direitos
individuais, dos chamados direitos sociais ou direitos de prestação, ligados ao princípio da
igualdade material que dependem de prestações diretas ou indiretas do Estado para serem
usufruídos pelos cidadãos. Estas novas Constituições são consideradas parte do novo
„constitucionalismo social‟ que se estabelece em boa parte dos Estados europeus e em alguns
americanos. Em torno nestas Constituições, adjetivadas de sociais, programáticas ou
econômicas, vai se dar um intenso debate teórico e ideológico.” (BERCOVICI, Gilberto.
Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da constituição de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2005).
3
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. pp. 56 e ss.
4

todas as constituições posteriores. A organização da ordem econômica deveria


se pautar pelos princípios da justiça e pelas necessidades sociais4.

A Constituição Brasileira de 1988 consagra seu Título VII (arts. 170 a


192) à disciplina da Ordem Econômica e Financeira, trazendo o Capítulo I
princípios gerais da atividade econômica. Muitos dos fundamentos e princípios
ali contidos encontram reflexo em outros setores da Constituição, a exemplo da
soberania nacional e da livre iniciativa (fundamentos da República – art. 1º, I e
IV), redução das desigualdades sociais e regionais (objetivo fundamental da
República – art. 3º, III), função social da propriedade e defesa do consumidor
(direitos e garantias individuais e coletivos – art. 5º, XXIII e XXXII), além de
outros.

Como se vê, a Constituição brasileira de 1988 contém normas que


tratam do domínio econômico. Embora elas sejam muito mais direcionadas à
atividade do Estado e a seu papel nessa área – que inclui a prerrogativa de
intervir, direta e indiretamente, na economia5 – não se pode esconder a
existência de normas constitucionais que se aplicam diretamente aos atores
principais da ordem econômica: os agentes econômicos privados. Esse
sistema normativo, sugerindo uma franca interação entre os setores jurídico e
econômico, definindo as bases da atuação do Estado na ordem econômica,
conduz à compreensão de que, no âmbito da própria Constituição, existe um
sistema de normas que pode ser encarado como uma verdadeira Constituição
Econômica6.

No seio dessa Constituição Econômica, o legislador constituinte de


1988 previu regras e princípios que darão a forma definitiva da ordem
econômica brasileira. Os fundamentos da ordem econômica são definidos pelo
caput do art. 170 da CF: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa.
Os princípios de observação obrigatória estão contidos nos incisos do mesmo

4
BERCOVICI, Gilberto. Op. Cit. Pp. 17 e ss.
5
Conferir especialmente os arts. 173 a 175 da CF/88.
6
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003. pp. 71
e ss.
5

dispositivo e, dentre todos, interessa obrigatoriamente ao presente estudo o


que se refere à livre concorrência (IV).

No presente trabalho, temos a intenção de examinar a possibilidade da


ocorrência de conflitos entre o exercício concreto da prerrogativa estatal de
intervenção na ordem econômica e as garantias decorrentes da livre iniciativa e
da livre concorrência, respectivamente fundamento e princípio da ordem
econômica. Como se viu, todos encontram previsão no seio da Constituição
Econômica brasileira. Não existe hierarquia normativa que possa resolver, no
plano abstrato, a gama de conflitos possíveis. Assim sendo, deveremos
examinar mais pormenorizadamente cada um desses cânones constitucionais.

3. NOÇÕES SOBRE A LIBERDADE DE INICIATIVA

3.1 Idéia conceitual

A Constituição brasileira adota um modelo capitalista de economia,


baseado na propriedade privada dos meios de produção (não obstante a
necessidade do cumprimento de sua função social), na economia de mercado,
na ampla (porém não ilimitada) liberdade de empreendimento, associação,
contrato, trabalho etc. Com Eros Roberto Grau, pode-se dizer que vige, antes
de tudo, a liberdade. A livre iniciativa apareceria, portanto, como um
desdobramento da liberdade7.

A idéia conceitual de livre iniciativa passa pela compreensão que se


tenha sobre sua amplitude e seus limites. Por isso mesmo, não pretendemos
dar, no presente trabalho, um conceito sólido e acabado de livre iniciativa. A
noção de idéia conceitual, portanto, deve ser admitida como uma contribuição

7
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 11. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 201.
6

para a compreensão do objeto estudado, ou seja, um passo na direção de um


conceito em formação.

A liberdade de iniciativa – assim diz a doutrina – não pode ser vista


exclusivamente como a liberdade de iniciativa econômica. Considerando que a
iniciativa econômica e a atividade de empreendimento privado (uma das formas
mais simples de ver a iniciativa) constituem uma realidade ampla e multiforme,
devemos atentar para os institutos que formam sua base estrutural e
operacional.

Numa visão prática, podemos dizer claramente que a garantia de livre


iniciativa como liberdade de empreendimento seria nula de sentido se
houvesse restrições à liberdade de associação. Da mesma forma, eventual
legislação que viesse a restringir mais severamente a liberdade contratual
inviabilizaria por completo a livre iniciativa.

Destaque-se que uma das mais importantes facetas da livre iniciativa


encontra-se na liberdade de trabalho, em todas as suas formas. Daí a própria
norma constitucional (art. 170, caput) colocar, lado a lado, a livre iniciativa e a
valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica
brasileira.

Uma das principais regras trazidas pela Constituição sobre a livre


iniciativa encontra-se no caput do art. 170, quando estabelece limitações à
atuação direta do Estado no domínio econômico. De fato, a CF procura deixar
a iniciativa econômica direta ao alcance dos agentes econômicos, somente
permitindo a interferência estatal em hipóteses excepcionais. A regra, portanto,
é a iniciativa privada.

Como todas essas dimensões que compõem a ampla liberdade de


iniciativa serão examinadas nos tópicos seguintes, maiores pormenores serão
deixados para o lugar oportuno.

Procurando formular, desse modo, uma simples idéia conceitual acerca


da liberdade de iniciativa, podemos dizer que se trata da liberdade garantida
aos agentes econômicos de manejarem, nos limites constitucionalmente
7

garantidos, os instrumentos econômicos disponíveis em busca dos fins


inerentes a uma sociedade de base capitalista.

3.2 Fundamentos constitucionais

A liberdade de iniciativa, conforme se viu no tópico anterior, encontra


suas bases normativas previstas diretamente na Constituição Federal de 1988.
De forma expressa, a CF elege os valores sociais da livre iniciativa8 como
fundamento da República Federativa do Brasil no art. 1º, IV, ao lado da
soberania (I), da cidadania (II), da dignidade da pessoa humana (III), dos
valores sociais do trabalho (IV, 1ª parte) e do pluralismo político (V).

Da mesma forma, a Constituição destaca, de forma direta, a livre


iniciativa como fundamento da ordem econômica em seu art. 170, caput,
reforçando-a no parágrafo único do mesmo artigo quando assegura a liberdade
de exercício de qualquer atividade econômica. Outras disposições que se
aplicam à livre iniciativa, definindo-a quase como uma garantia dos particulares
contra eventuais anseios estatais de atuação direta, encontram-se no art. 173
da CF, estabelecendo como excepcional a atuação direta do Estado no
domínio econômico.

Contudo, entendida a livre iniciativa como algo mais amplo do que a


simples liberdade de empreendimento, torna-se necessário apontar que a
Constituição traz regras e princípios diretamente ligados à liberdade de
associação (arts. 5º, XVII e 8º), ao direito de propriedade privada (art. 5º, XXII),
à liberdade do exercício e escolha de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII)
etc.

8
“Daí por que o art. 1º, IV do texto constitucional – de um lado – enuncia como fundamento da
República Federativa do Brasil o valor social e não as virtualidades individuais da livre iniciativa
e – de outro - o seu art. 170, caput coloca lado a lado trabalho humano e livre iniciativa,
curando contudo no sentido de que o primeiro seja valorizado.” (A ordem econômica na
constituição de 1988. Obra citada. p. 206).
8

3.3 Características

Considerando a estreita relação que existe entre a ordem jurídica e a


ordem econômica, a Constituição Federal não poderia deixar de estabelecer a
posição do Estado brasileiro no contexto da economia. Diríamos que, no caso
do Brasil, o papel do Estado em face da economia e dos agentes econômicos
deve ser buscado diretamente no texto constitucional.

Ao definir como fundamentos da ordem econômica a valorização do


trabalho humano e a livre iniciativa, ao garantir a propriedade privada dos
meios de produção como direitos individuais fundamentais, ao estabelecer a
livre concorrência como princípio da ordem econômica e, finalmente, ao fixar
como principal base da economia nacional a liberdade de atuação, a CF de
1988 adotou um modelo econômico de feição nitidamente capitalista e liberal.

No entanto, a própria Carta faz a previsão de limites ao exercício dessa


liberdade econômica. Assim, ao mesmo tempo em que garante a propriedade
privada dos meios de produção, estabelece que o direito de propriedade não
pode ser utilizado de forma abusiva e antieconômica, devendo, em todo caso,
cumprir sua função social. Na mesma linha, embora sejam livres os agentes
econômicos para atuarem na economia, devem suportar os limites impostos
pela Constituição e pelas leis.

Segundo o modelo econômico traçado pela Constituição, o Brasil adota


uma economia de mercado de natureza capitalista, preconiza a liberdade de
atuação econômica, a propriedade privada dos meios de produção e o
liberalismo econômico. Contudo, estabelece disposições restritivas à ampla
liberdade, de modo que o Estado resguarda a si próprio os instrumentos
necessários para atuar no domínio econômico e evitar que os agentes
privados, abusando de suas prerrogativas, possam violar os fundamentos e
princípios constitucionais.
9

3.4 Abrangência

Como dissemos linhas acima, a liberdade de iniciativa abrange


diversas dimensões, não se resumindo na simples liberdade de atividade
econômica. No contexto de uma visão mais ampla da livre iniciativa, para nos
limitarmos ao mais importante, podemos apontar a liberdade de
empreendimento, a liberdade de associação, a liberdade do exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão e a liberdade contratual.

3.4.1 Liberdade de empreendimento

A liberdade de empreendimento é a garantia de que os agentes


econômicos podem explorar livremente determinados setores econômicos,
independentemente de autorização dos poderes públicos (ressalvadas as
exceções constitucionais e legais). Envolve a liberdade de escolher a atividade
a desempenhar, o lugar e o tempo em que será desenvolvida etc.

Essa assim chamada liberdade de empreendimento encontra-se


implícita no princípio da livre iniciativa, mas é diretamente garantida pelo art.
170, parágrafo único, da Constituição Federal e tem uma nítida ligação com o
princípio constitucional da legalidade, impedindo que eventuais restrições
constitucionalmente autorizadas sejam implementadas e executadas por
instrumento diverso da lei.

3.4.2 Liberdade de associação


10

A liberdade de associação9 é garantida na Constituição através de uma


série de normas previstas nos incisos do art. 5º, começando pelo inciso XVII,
que garante como plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedando
associações de caráter paramilitar. O inciso XVIII restringe a interferência
estatal na criação e no funcionamento de associações e cooperativas. O inciso
XIX estabelece que a dissolução das associações e o encerramento de suas
atividades dependem de decisão judicial, exigindo-se o trânsito em julgado no
primeiro caso. O inciso XX consagra a liberdade associativa em sua vertente
negativa e, finalmente, o inciso XXI confere às associações a prerrogativa de
atuar em nome de seus associados, aumentando-lhes a relevância.

A liberdade de associação, em conjunto com a liberdade contratual,


exerce um importante papel no contexto da livre iniciativa, pois a reunião de
esforços em busca de um objetivo comum constitui uma das mais importantes
ferramentas de atuação dos particulares no domínio econômico. Se a liberdade
de associação e contrato (sociedade) não fosse permitida, a liberdade de
empreendimento não poderia contar, dentre outras coisas, com a participação
de grandes capitais, formados principalmente pela reunião de pequenos
investidores. O melhor exemplo está na expressão que assumem as
sociedades por ações na economia mundial, representativas do acúmulo de um
enorme capital a partir da reunião de, por vezes, pequenos e médios
investidores.

9
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – Ação de anulação de normas estatutárias e de eleição de
diretoria de entidade associativa. Antecipação dos efeitos da tutela. Cerceamento de defesa.
Decisão extra petita. Liberdade associativa. A antecipação dos efeitos da tutela concedida no
bojo da sentença de mérito, ainda que inexistentes seus requisitos específicos, não configura
cerceamento de defesa a ensejar a nulidade da decisão definitiva. Não é extra petita a decisão
que, arrimada na exposição dos fatos alegados pelo autor, anula dispositivos de normas
estatutárias impugnadas, indicando os artigos a que se reporta a nulidade, mesmo que estes
não tenham sido grafados na petição inicial. Por expressa determinação constitucional, é plena
a liberdade de associação de pessoas para fins lícitos, não dependendo a sua criação de
qualquer tipo de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu
funcionamento, inafastável, porém, a apreciação, pelo poder judiciário, de lesão ou
ameaça a direito. A liberdade associativa abrange a autonomia e independência
administrativa, funcional e organizacional da entidade, as quais devem ser exercidas
sobre o primado da vontade soberana dos seus associados manifestada em assembléia
geral, que se constitui no seu órgão máximo de deliberação, respeitada, porém, a ordem
constitucional e infraconstitucional vigente. Recurso conhecido e provido. (TJMA – AC
018353/2001 – (42.367/2002) – 4ª C.Cív. – Rel. Des. Jamil de Miranda Gedeon Neto – J.
03.12.2002) (grifado).
11

3.4.3 Liberdade de trabalho

A liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão 10,


prevista na Constituição Federal no art. 5º, inciso XIII, encontra no atendimento
às qualificações profissionais previstas em lei seu mais relevante limite
constitucional. Defende-se que a liberdade profissional encontra suporte
também no parágrafo único o art. 170, de modo que também seria possível
condicionar tal liberdade à necessidade de autorização estatal, mas sempre
nos casos e limites previstos em lei.

A liberdade de trabalho confere ao indivíduo, principalmente, o direito


de escolher o que quer fazer, ou seja, de definir qual a atividade profissional
que desempenhará. O trabalho humano é expressamente valorizado pela
Constituição Federal, de modo que não se pode defender como atividade lícita
a escolha pelo não exercício de qualquer profissão. A tanto não chega a
garantia constitucional da liberdade prevista no art. 5º, inciso II, da
Constituição. A CF não contempla, desse modo, a liberdade negativa ao
trabalho, como um suposto direito de não trabalhar11.

3.4.4 Liberdade contratual

10
MANDADO DE SEGURANÇA – NEGATIVA DE AUTORIZAÇÃO PARA IMPRESSÃO DE
DOCUMENTOS FISCAIS – AIDF – IMPOSSIBILIDADE DE CONDICIONAR A IMPRESSÃO DE
BLOCOS DE NOTAS FISCAIS AO PRÉVIO PAGAMENTO DE DÉBITOS COM O FISCO –
INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF – REMESSA DESPROVIDA – O
Supremo Tribunal Federal em voto proferido pelo ilustre ministro Marco Aurélio no recurso
extraordinário nº 413.782-8, declarou a inconstitucionalidade da norma estadual que proibia a
impressão de documentos fiscais para as empresas que estivessem em débito com o fisco,
pois esta estava a contrariar os textos constitucionais da garantia do livre exercício do
trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, inciso XIII, da CF) e de qualquer atividade
econômica (art. 170, parágrafo único, da CF). (TJSC – AC-MS 2002.007447-6 – Urussanga
– 1ª CDPúb. – Rel. Des. Nicanor da Silveira – J. 06.10.2005).
11
A Lei de Contravenções Penais prevê, em seus artigos 59 e 60, as contravenções de
vadiagem e mendicância.
12

A liberdade contratual12 é fundamental para a livre concorrência. O


contrato é o meio jurídico por excelência para a circulação de riquezas, bens,
mercadorias e serviços. É o meio através do qual podem os sujeitos da ordem
econômica concertar sua atuação em prol do desempenho satisfatório das
atividades econômicas a que se dedicarem. O respeito à liberdade contratual
assume foros de indispensabilidade como instrumento da economia, sendo
certo que não existirá liberdade de iniciativa privada na economia onde não se
conceder aos particulares efetiva liberdade contratual e eficácia à autonomia da
vontade.

Como toda liberdade jurídica é sempre relativa, também a liberdade


contratual e a autonomia da vontade encontram limitações na ordem jurídica.
Assim, sempre que o abuso se manifestar no exercício da liberdade, a atuação
privada será antijurídica e, portanto, passível de invalidação e controle pelos
órgãos competentes do Estado13.

12
CONTRATO BANCÁRIO – EMPRÉSTIMO/FINANCIAMENTO – CRÉDITO ROTATIVO –
DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO – Não é abusiva a cláusula inserida no contrato de
empréstimo bancário que versa autorização para o banco efetuar o desconto em folha de
pagamento do mutuário, seja por não ofender o princípio da autonomia da vontade, que
norteia a liberdade de contratar, seja por não atingir o equilíbrio contratual ou a boa-fé
(TRF 4ª R. – AC 2002.71.02.009383-5 – 3ª T. – Relª Juíza Fed. Vânia Hack de Almeida – DJU
01.02.2006 – p. 413) (grifado).
CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL – CONTRATO DE MÚTUO – DESCONTO EM FOLHA
DE PAGAMENTO – MOVIMENTAÇÃO DE CONTAS PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA –
AUSÊNCIA DE DANO MATERIAL E MORAL – Prestigiados os princípios da liberdade de
contratar e da boa-fé, uma vez que o contrato de empréstimo firmado pelas partes continha
cláusula prevendo o desconto em folha de pagamento.. Não se configura abusiva a cláusula
que permite à instituição financeira a movimentação das contas de seus correntistas, posto que
a parte autora o firmou de livre vontade, prevalecendo, pois, o princípio pacta sun servanda.
Ausência de dano moral e material.. Sucumbência mantida, fixada na esteira dos precedentes
da turma.. Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de
decidir.. Apelação improvida. (TRF 4ª R. – AC 2001.71.00.004050-0 – 3ª T. – Relª Desª Fed.
Sílvia Goraieb – DJU 15.02.2006 – p. 495) (grifado).
13
“Essa liberdade de contratar pode ser vista sob dois aspectos. Pelo prisma da liberdade
propriamente dita de contratar ou não, estabelecendo-se o conteúdo do contrato, ou pelo
prisma da escolha da modalidade do contrato. A liberdade contratual permite que as partes se
valham dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos típicos), ou
criem uma modalidade de contrato com suas necessidades (contratos atípicos).
Em tese, a vontade contratual somente sofre limitações perante uma norma de ordem pública.
Na prática, existem imposições econômicas que dirigem essa vontade. No entanto, a
interferência do Estado na relação contratual privada mostra-se crescente e progressiva.”
13

3.5 Limites

A noção de liberdade como garantia constitucional deverá ser sempre


uma noção relativa. De fato, é ponto comum na doutrina e na jurisprudência
que os direitos e liberdades previstos na Constituição nunca são absolutos,
devendo sempre ceder espaço diante de outros direitos e liberdades que, no
caso concreto, segundo postulados de aplicação conformativa 14, adquiram
maior eficácia e normatividade no caso concreto.

A livre iniciativa, desse modo, jamais se apresentou como plena em


qualquer momento15. Um hipotético reconhecimento pleno da liberdade de
iniciativa, em todas as suas vertentes, implicaria na necessidade de o Estado
se abster completamente de disciplinar os instrumentos utilizados no
desempenho da atividade econômica. Não poderia existir qualquer regulação
estatal das relações de trabalho, principalmente de caráter protetivo dos
direitos dos trabalhadores. As relações de consumo não poderiam ser tuteladas
pelo Estado. A liberdade de contratar teria que ser absoluta e, finalmente, todas
as variáveis do mercado, incluindo preços, oferta, demanda, consumo e
emprego, encontrariam no mercado seu exclusivo fator de definição16.

Seria o caos.

A liberdade de iniciativa não é colocada na Constituição como uma


verdade, como algo retirado do mundo do ser. Ao contrário, traduz um

(VENOSA, Sílvio de Sálvio. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos
contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 375.
14
Valiosa é a lição de Humberto Ávila sobre os princípios. O autor diferencia com maestria três
conceitos de fundamental interesse no estudo das normas constitucionais e sua interpretação:
regras, princípios e postulados. Para detalhes, conferir: ÁVILA, Humberto. Teoria dos
princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2006. Na mesma linha, cf. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
15
A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 203.
16
Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 245 e ss.
14

compromisso do Estado com a sociedade, de modo que deve adotar os


comportamentos necessários para tornar a livre iniciativa uma realidade
permanente. Desse modo, a atuação do Estado deverá ser, por vezes, de total
abstenção. Outras vezes, deverá se mostrar completa e permanente, como na
adoção de políticas públicas para promover o desenvolvimento da economia.

Sendo assim, a Constituição estabelece limites à plena liberdade de


iniciativa, alguns deles a depender de complementação por legislação
infraconstitucional e outros a exigir uma atuação direta e positiva do aparelho
do Estado. É importante frisar que tais limitações encontram no princípio da
legalidade seu mais importante ponto de referência, funcionando este último
como uma auto-limitação à atuação interventiva estatal.

Como claros exemplos da necessidade de se imporem limites à


plenitude da liberdade de iniciativa, destacam-se a proteção à livre
concorrência (prevista na Constituição como um princípio da ordem econômica)
e a regulamentação do exercício profissional (legítima prerrogativa estatal).

3.5.1 Proteção à concorrência

Antes de tudo, esclarecemos que o princípio constitucional econômico


da livre concorrência será mais fielmente examinado no capítulo seguinte.

Na livre iniciativa, vigem as regras que consagram a liberdade dos


agentes econômicos que iniciam empreendimentos privados na busca pelo
lucro, colaborando, assim, para o desenvolvimento econômico pessoal e do
próprio Estado. Com as ressalvas já feitas sobre a amplitude do conceito,
podemos dizer que a livre concorrência pressupõe um Estado em que a
atuação econômica direta seja livremente acessível aos particulares.

Sendo livre a todos os particulares esse acesso ao domínio econômico,


é natural que inúmeros atores econômicos procurem exercer as atividades que
15

lhes sejam mais convenientes, multiplicando-se os sujeitos que exploram cada


um dos setores da economia. Com a multiplicidade de fornecedores, surge a
necessidade de lutar pelos espaços no mercado e pela obtenção de uma
clientela que viabilize a circulação da riqueza produzida. Surge, desse modo, a
concorrência.

Ocorre que essa liberdade de iniciar um empreendimento e mantê-lo


em atuação no domínio econômico pode ser confrontada pelo Estado ou pelos
demais agentes econômicos. Quando o Estado atua direta ou indiretamente no
domínio econômico, diz-se que está intervindo na ordem econômica, e seus
objetivos não podem ser outros que não a promoção do equilíbrio da economia
e do bem comum. Sendo a livre iniciativa fundamento da ordem econômica, ao
Estado é constitucionalmente proibido concorrer com os particulares sem
motivos baseados no interesse público.

De outro lado, quando são os demais agentes econômicos que atuam


contra a livre iniciativa, mediante condutas que procuram alijar do mercado os
demais exploradores da mesma atividade econômica, tem-se o abuso do poder
econômico e a afronta à livre concorrência, com tendência ao oligopólio ou ao
monopólio.

Ao Estado, nessas hipóteses, protegendo a livre concorrência entre os


agentes econômicos, cabe intervir para reprimir os abusos, limitando o
exercício da liberdade de atuação no domínio econômico.

3.5.2 Exercício das profissões

A liberdade do exercício das profissões é garantida a todos como


direito econômico fundamental de base constitucional. A liberdade de trabalho
envolve prerrogativas como a escolha do trabalho, ofício ou profissão, o lugar
de sua prestação, a possibilidade de mudança de ramo, dentre outras. Não
16

abrange, contudo, em termos absolutos, a liberdade de escolher simplesmente


não trabalhar17.

A conjugação do art. 5º, XIII, com o art. 170, parágrafo único, ambos da
Constituição, fornecem a tônica da amplitude que essa liberdade apresenta no
ordenamento jurídico constitucional. A escolha da profissão, ofício ou trabalho
é absolutamente livre ao sujeito, que poderá, querendo, ser médico, advogado,
empresário, contador, servidor público etc. A escolha é sua. Trata-se de um
direito seu.

A restrição está em que, para o exercício de determinadas profissões,


a lei deverá estabelecer requisitos mínimos a serem preenchidos pelos
pretensos exploradores. Assim, o exercício da advocacia requer colação de
grau em curso de Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais, aprovação em
Exame de Ordem etc. Da mesma forma, a atuação como servidor público
requer a comprovação do grau mínimo de escolaridade, habilitação acadêmica
específica (se for necessária), aprovação em concurso público prévio etc. Tudo
previsto em lei, conforme autorização constitucional.

A necessidade de autorização estatal para o exercício de determinadas


profissões se deve ao fato de que seria absolutamente nocivo à sociedade que
as pessoas pudessem praticar quaisquer atividades independentemente de
qualquer habilitação ou preparação. O melhor exemplo ocorre com a medicina,
onde um mínimo erro, dependendo do caso, significa morte certa para o
paciente. O Estado controla tais atividades e exige que os pretensos titulares
da exploração comprovem sua aptidão (técnica, operacional, jurídica etc.) para
o exercício da profissão.

17
A restrição não se aplica àquelas hipóteses em que a pessoa disponha de imenso patrimônio
e, embora não trabalhe, ganhe a vida através de investimentos (em bolsa de valores, por
exemplo). Quando se diz que a liberdade de trabalho na CF não abrange a liberdade de não
trabalhar (ao contrário do que ocorre com a liberdade de associação, que inclui a liberdade de
não se associar), está-se querendo dizer que a Carta não protege sujeitos economicamente
inativos por puro abuso de liberdade. Daí a tipificação dos delitos de vadiagem e mendicância,
os quais pressupõem que haja a aptidão para o trabalho e a vontade livre e consciente que,
ainda assim, não trabalhar (Lei das Contravenções Penais, arts. 59 e 60).
17

Como podemos facilmente observar, também aqui o objetivo exclusivo


do poder público em sua atuação restritiva da liberdade de iniciativa encontra-
se na promoção do bem comum e na defesa da sociedade.

4. NOÇÕES SOBRE A LIVRE CONCORRÊNCIA

4.1 Idéia conceitual

A Constituição Federal consagra a livre concorrência como um


princípio da ordem econômica (CF, art. 170, IV). André Ramos Tavares define-
a como “a abertura jurídica concedida aos particulares para competirem entre
si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico pelas leis de mercado” 18.
Para Eros Roberto Grau, com base em Canotilho, trata-se de princípio
constitucional impositivo19.

Discute-se sobre a relação que existiria entre a livre iniciativa e a livre


concorrência, dizendo alguns que esta última seria corolário daquela e
afirmando outros que seriam absolutamente independentes. Se a concorrência
pressupõe a coexistência de diversos agentes econômicos em um determinado
mercado e a livre iniciativa é o fundamento responsável pela viabilização do
surgimento de cada um desses atores, então podemos dizer que a
concorrência (como fato econômico) é decorrência da livre iniciativa.

A livre concorrência, contudo, como princípio de base constitucional


(indicação de objetivo a atingir), procura assegurar a eficácia da livre iniciativa.
De nada valeria poder entrar no mercado, utilizando o fundamento da livre
iniciativa, se nele não fosse possível se manter, dada a falta de efetividade do
princípio da livre concorrência. Sendo assim, parece-nos adequado dizer que o

18
Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 255.
19
A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 208.
18

princípio da livre concorrência alicerça e efetiva o fundamento constitucional


econômico da livre iniciativa.

4.2 Fundamento constitucional

O fundamento constitucional normativo expresso da livre concorrência


encontra-se no art. 170, IV, sendo trazido ao texto constitucional como um dos
princípios que deverão ser observados na composição da ordem econômica. O
princípio é instrumentalmente reforçado no art. 173, § 4º, da CF, estabelecendo
que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos
mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. A
lei a que se refere o texto constitucional é a Lei n. 8.884/94, que trata da
prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica.

Quando a Constituição fala na livre concorrência, não está se referindo


à mera constatação de uma realidade, retratada no texto constitucional. Ao
contrário, o art. 170, IV, da CF, traduz um objetivo constitucional, um
compromisso estatal a ser mantido e garantido permanentemente, devendo o
Estado agir para restabelecer a livre concorrência sempre que houver condutas
abusivas da parte dos agentes econômicos.

Considerando que os agentes econômicos estão sempre fadados a


cometer abusos no desempenho de suas atividades, o princípio da livre
concorrência não pode ser encarado como norma que determine uma total
abstenção do Estado, como se fosse possível deixar às leis do mercado toda a
disciplina da produção, do consumo, do trabalho etc. A livre concorrência,
como princípio constitucional, deve ser vista como um poder-dever atribuído ao
Estado para manter as condições que viabilizem uma concorrência sadia entre
os agentes econômicos, tudo em prol do desenvolvimento nacional e do
interesse público.
19

4.3 Violação à concorrência: o abuso do poder econômico

O poder econômico reflete a concentração de bens de produção nas


mãos de agentes do domínio econômico, como instrumento de atuação no
mercado para o atingimento dos objetivos inerentes a uma sociedade de
produção capitalista. A apropriação privada dos bens de produção e do produto
do trabalho caracteriza como capitalista a sociedade instaurada por força das
normas constitucionais econômicas contidas na CF. Desse modo, sendo o
poder econômico instrumento legítimo dessa atuação, é reconhecido e deve
ser protegido pelo Estado.

O que a Constituição (inicialmente) e a lei (em seguida) combatem é o


abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação
da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4º). Como
todo abuso de poder20, o abuso do poder econômico traduz um meio
predisposto a uma finalidade que contraria a ordem jurídica e que, desse modo,
deve ser repelida pela atuação do Estado. É a utilização ilícita de um
instrumento lícito para a obtenção de resultados ilícitos21.

Note-se que o abuso do poder econômico é retratado na Constituição


como um simples instrumento a serviço do agente econômico infrator. Seus
objetivos imediatos e acessórios podem ser a dominação dos mercados, a
eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. Seu objetivo
mediato e principal será o afastamento da livre concorrência.

A dominação dos mercados significa o poder de impor a própria


vontade a uma significativa parcela de mercado relevante. Acompanha
normalmente o poder de definir, de forma unilateral, todas as variáveis do

20
O novo Código Civil brasileiro define o abuso de direito da seguinte forma: “Também comete
ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (CC/2002, art. 173).
21
“A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado
pelo regime constitucional. Não raro, esse poder econômico é exercido de maneira anti-social.
Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso”. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 15.ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 761.
20

mercado, as quais deveriam encontrar nas leis do mercado seu critério de auto-
regulação. Assim, o agente econômico que domina mercado relevante pode
estabelecer os preços praticados, a produção, a oferta, o consumo etc.

A eliminação da concorrência age através do afastamento dos demais


competidores do mercado, resultando na formação artificial de monopólios e
oligopólios. Se determinado empresário dispõe de uma imensa concentração
econômica e passa a vender seus produtos em valores inferiores aos custos de
produção, os pequenos empreendedores não terão condições financeiras de
competição. As grandes empresas terão lastro financeiro suficiente para
suportar a prática de preços subfaturados por algum tempo. Já os pequenos
empresários certamente serão alijados do mercado.

A livre concorrência não tolera a formação de monopólios e oligopólios


de forma artificial por atuação dos próprios agentes econômicos. Não que os
oligopólios e monopólios não existam ou sejam ilícitos em todo e qualquer
caso. Na verdade, a CF contempla atividades econômicas a serem exercidas
em regime de monopólio estatal, através da concessão de privilégios a
operadores privados.

O que se proíbe, na verdade, é a utilização abusiva do poder


econômico (meio) para o afastamento artificial da concorrência (fim acessório)
e a completa eliminação da liberdade (fim principal).

O aumento arbitrário dos lucros é também proibido pela Constituição. O


Estado deve, desse modo, combater os acordos entre empresários que visem
ao aumento concertado e artificial dos preços praticados e, em conseqüência,
dos lucros auferidos pelo empreendimento, sem vinculação alguma com os
custos da produção.

A liberdade de iniciativa confere ao agente econômico a prerrogativa de


definir sua produção (qualitativa e quantitativamente) e seus preços, segundo
as leis do mercado. Nesse caso, contudo, o fundamento da livre iniciativa seria
fraudado pelo operador econômico, o qual abusaria da liberdade para alijar as
leis do mercado e aumentar artificial e arbitrariamente seus lucros. O abuso do
21

poder econômico estaria no fato de que apenas o empresário dispõe da


propriedade dos bens de produção e do controle da própria produção. São
exemplos notáveis dessa hipótese os trustes e cartéis.

5. INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA

5.1 Noções gerais

Em uma economia de mercado pura, todos os agentes econômicos


seriam absolutamente livres para atuar segundo as leis do mercado. Essas
mesmas leis definiriam integralmente todas as variáveis da economia, incluindo
o número de agentes exploradores de cada setor econômico, a produção de
cada um deles, os preços praticados, o consumo, as relações de trabalho etc.
Ocorre que, se esse modelo puro nunca existiu efetivamente, a concentração
econômica tornou definitivamente insustentável qualquer pretensão de
liberdade absoluta. Fadados que estão os atores do domínio econômico a
cometer abusos no desempenho de suas atividades, exige-se do poder público
uma permanente vigilância em prol da manutenção da integridade do sistema.
22

Por esse motivo, compreende-se como indispensável viabilizar ao


Estado os instrumentos de que necessita para intervir no domínio econômico,
preservando as bases do sistema e garantindo aos agentes econômicos o
exercício da liberdade de iniciativa nos estritos limites em que for reconhecida
pela Constituição Federal. Isso implica dizer que essa liberdade deve se
condicionar a todos os fundamentos, princípios e regras que a Constituição lhe
impuser, e caberá ao Estado agir em prol do interesse público para reprimir os
abusos, quando verificados22.

A noção de atividade econômica encontra na doutrina duas acepções,


sendo uma ampla e outra restrita. Considerando que o Estado também realiza
atividades de fornecimento de bens e prestação de serviços, a atividade
econômica em sentido estrito seria aquela constitucionalmente reservada aos
particulares como essencialmente econômica. Esta seria, em regra, vedada ao
Estado. Já a atividade econômica em sentido amplo incluiria, ao lado das
primeiras, aquelas reservadas ao Estado para prestação sob regime
determinantemente público.

Em termos mais simples, a atividade econômica em sentido amplo


abrange a atividade econômica em sentido estrito e o serviço público.

Uma interessante distinção que Eros Roberto Grau faz em seu “A


Ordem Econômica na Constituição de 1988” se refere aos conceitos de
atuação do Estado e intervenção do Estado na economia. Para o autor, quando
o Estado agir em área que lhe seja naturalmente acessível (através de serviços
públicos, por exemplo), estará atuando no domínio econômico. Se, por outro
lado, estiver agindo em área de titularidade da iniciativa privada, estará
intervindo no ou sobre o domínio econômico. Costuma-se chamar esta última
hipótese de intervenção propriamente dita.

22
“O que justifica a intervenção estatal no domínio econômico são circunstâncias conhecidas
como falhas de mercado, impeditivas do equilíbrio das forças competitivas, e cuja experiência
demonstrou não serem adequadamente sanadas por meio de auto-regulação. A estas falhas
visa o Estado corrigir.” (TAVARES, André Ramos. A intervenção do estado no domínio
econômico. In CARDOZO, José Eduardo Martins, QUEIROZ, João Eduardo Lopes e SANTOS,
Márcia Walquíria Batista dos (orgs). Curso de direito administrativo econômico. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 176).
23

Também desse autor é a classificação que divide as formas de


atuação/intervenção estatal no domínio econômico em a) intervenção por
absorção ou participação, b) intervenção por direção e c) intervenção por
indução23. As duas primeiras (item “a”) seriam formas de intervenção do Estado
no domínio econômico, ao passo que as duas últimas (itens “b” e “c”) seriam
formas de intervenção sobre o domínio econômico.

A Constituição Federal contempla duas formas básicas de intervenção


do Estado na economia. Trata-se da intervenção direta e da intervenção
indireta, sendo a primeira fundada nos artigos 173 (atividade econômica em
sentido estrito) e 175 (serviços públicos), e a segunda no artigo 174, todos da
Constituição Federal.

5.2 Intervenção direta

A intervenção direta do Estado no domínio econômico se dá quando o


poder público atua no mercado como agente econômico, por si ou através de
pessoas que cria para tal finalidade (entidades da administração indireta),
especialmente empresas públicas e sociedades de economia mista. Na
intervenção direta o Estado age empresarialmente, utilizando-se dos mesmos
instrumentos predispostos aos demais atores do cenário econômico.

Conforme a classificação de Eros Roberto Grau a que nos referimos


linhas acima, a intervenção direta assume a forma de intervenção por absorção
ou intervenção por participação. No primeiro caso, o Estado toma para si a
exploração de determinada atividade econômica, vedando-a para todos os
demais agentes econômicos. Atua, dessa maneira, em regime de monopólio,
podendo, contudo, conceder privilégios para um ou mais agentes econômicos
privados.

23
A ordem econômica na Constituição de 1988. Obra citada. p. 93.
24

Já no segundo caso – intervenção por participação – o Estado atua


empresarialmente no domínio econômico com os mesmos instrumentos dos
demais agentes privados e em concorrência com eles, explorando atividade
econômica em regime de competição com a iniciativa privada. Não há
monopólio nesse caso. A entidade da Administração Pública deverá atuar em
igualdade de condições com os demais participantes, não podendo usufruir das
prerrogativas inerentes ao poder público.

5.2.1 Fundamento constitucional

A intervenção direta do Estado no domínio econômico encontra sua


base no próprio texto constitucional. De fato, o art. 173 da Constituição Federal
de 1988 estabelece as bases em que se insere a intervenção estatal na
economia através da exploração direta de atividade econômica. Trata-se, aqui,
de intervenção do Estado no domínio econômico, tomado este último termo em
sua acepção mais estrita, significando uma atuação em moldes empresariais.

Mais do que simplesmente conferir ao Estado a prerrogativa de intervir


empresarialmente no domínio econômico, o caput do art. 17324 restringe a
atuação estatal direta na economia. Ao conferir a prerrogativa, deixa claro que
se trata de uma competência excepcional, sendo a regra o respeito à livre
iniciativa dos agentes privados. Por isso mesmo diz que, ressalvados os casos
expressos em seu texto, a exploração direta de atividade econômica só é
permitida por questões de segurança nacional ou relevante interesse público,
conforme definição em lei25.

24
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de
atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
25
Celso Antônio Bandeira de Mello entende que deve ser complementar a lei a que se refere o
art. 173, caput, da CF. Sustenta o autor que, admitindo-se que a definição dos imperativos da
segurança nacional e do interesse público seja feita através de lei, toda lei que autorizar o
Estado a intervir no domínio econômico já poderá incluir no seu texto a hipótese em questão
como sendo de segurança nacional ou interesse público. A referência à necessidade de
25

O art. 175, caput, faz a previsão da intervenção do Estado no domínio


econômico, tomada a expressão em seu sentido amplo (abrangente dos
serviços públicos) e, dessa vez, não em termos excepcionais. Aqui, a atuação
estatal é a regra, excepcionada apenas quando a prestação do serviço for
descentralizada, o que pode ser feito a entidades da administração indireta por
meio de lei (outorga mediante lei) ou a agentes econômicos privados através
de concessões ou permissões (delegação mediante contrato)26.

5.2.2 Subsidiariedade

Conforme dissemos acima, a exploração direta de atividades


econômicas pelo Estado somente será permitida em três hipóteses: a) quando
houver expressa previsão no texto constitucional; b) quando, não havendo
expressa permissão na CF, a intervenção for necessária aos imperativos da
segurança nacional, conforme definição em lei; e c) quando, não havendo
expressa permissão na CF, a intervenção for necessária para acorrer a
relevante interesse coletivo, conforme definição em lei.

A ordem econômica encontra na liberdade de iniciativa privada um de


seus fundamentos constitucionais. Sendo assim, é absolutamente lógico que a
Constituição tenha reservado aos agentes econômicos privados a primazia na
exploração das atividades econômicas de produção e comercialização de bens
e prestação de serviços. Sendo assim, a atuação do Estado nessa área deve
ser excepcional, suprindo as deficiências do setor privado. Trata-se de uma
atuação eminentemente subsidiária da atuação privada.

Por esse motivo, a Constituição somente admite que o Estado


intervenha diretamente no domínio econômico em uma das três hipóteses que

previsão em lei no caput do art. 173 perderia completamente sua eficácia. Cf. BANDEIRA DE
MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 18. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 742.
26
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. pp.
349 e ss.
26

enumera no caput do art. 173. Mesmo assim, tal atuação deverá, quando
autorizada, seguir fielmente as balizas que lhe traçam os parágrafos e incisos
do mesmo artigo.

A Constituição Federal garante expressamente ao Estado, por


exemplo, a exploração das atividades previstas nos incisos do art. 177 em
regime de monopólio27, sendo-lhe permitido contratar com empresas estatais
ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV, observadas
as condições definidas em legislação própria28.

Fora das hipóteses expressa e especificamente autorizadas na


Constituição Federal, a intervenção direta do Estado no domínio econômico
deverá atender aos imperativos de segurança nacional ou de relevante
interesse público, os quais deverão encontrar em lei (complementar) um
embasamento mínimo primário.

Tais expressões (segurança nacional e interesse público), segundo


crítica da doutrina, são excessivamente amplas e vagas, encerrando o perigoso
atributo da volatilidade, podendo sofrer modificações ao sabor de eventuais e
sucessivas modificações na orientação da ordem política ou econômica.
Tratam-se de conceitos jurídicos indeterminados, inerentes à necessária
discricionariedade que deve servir de instrumento legítimo à atuação da

27
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarburetos fluidos;
II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades
previstas nos incisos anteriores;
IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de
petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto,
seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio
de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja
produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão,
conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.
(Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 49, de 08.02.2006, DOU 09.02.2006).
28
Art. 177. § 1º. A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das
atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em
lei. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional nº 09/95).
27

Administração29, atribuindo ao legislador (primeiro) e ao administrador (em


seguida) a prerrogativa de conferir ao conceito a densidade necessária para
sua aplicação, cabendo ao poder judiciário, por fim, o controle quanto a
eventual abuso cometido por qualquer dos poderes.

5.2.3 Formas de intervenção

A intervenção direta do Estado no domínio econômico pode se dar,


principalmente, de duas maneiras: através da exploração de atividade
econômica privada ou mediante a prestação de serviços públicos.

Na hipótese de intervenção direta pela exploração de atividade


econômica em sentido estrito, o Estado atua no domínio econômico por si
mesmo (pessoa jurídica de direito público interno) ou através de uma pessoa
jurídica de direito privado, integrante da Administração Pública indireta, criada
especificamente para tal finalidade.

Segundo José dos Santos Carvalho Filho, quando o Estado atua


diretamente na exploração de uma atividade econômica, haveria exploração
direta. Já quando atua por intermédio de uma entidade da administração
indireta, haveria exploração indireta. Para esse autor, portanto, a exploração
direta ou indireta da atividade dependerá de sua realização pela pessoa
jurídica de direito público criadora ou pelas entidades criadas. Em ambos os
casos, tratar-se-ia de intervenção indireta do Estado na economia30.

A exploração estatal de atividade econômica pode ser feita em regime


de concorrência, ou seja, de competição com os demais agentes privados, bem
como em regime de monopólio. No primeiro caso, o Estado deve atuar através
de entidades da Administração indireta com personalidade jurídica de direito

29
Curso de direito administrativo. Obra citada. pp. 882 e ss.
30
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed. rev. atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. pp. 747 e ss.
28

privado (empresas públicas e sociedades de economia mista), bem como


seguir rigorosamente os parâmetros traçados pelos parágrafos do art. 173 da
Constituição.

O § 1º prevê a elaboração de um estatuto (lei) das empresas estatais


que explorem atividade econômica, destacando a sujeição dessas entidades ao
regime jurídico próprio das empresas do setor privado, inclusive quanto aos
direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários (II), e a
necessidade de licitação e de observância dos princípios da administração
pública em suas contratações de obras, serviços, compras e alienações (III). O
§ 2º estabelece restrições relativas a privilégios fiscais, vedando o acesso
dessas entidades a benefícios não extensíveis às empresas do setor privado.

A lógica do sistema está na seguinte idéia: se fosse permitido ao


Estado conferir a suas empresas públicas e sociedades de economia mista
prerrogativas e privilégios próprios ao poder público (v.g., imunidade tributária),
as demais empresas do setor privado ficariam em franca desvantagem, com
manifesto prejuízo para a livre concorrência. A intervenção estatal, assim,
incidiria nas mesmas patologias que deve reprimir: o abuso do poder como
forma de eliminação da concorrência, dominação dos mercados e aumento
arbitrário dos lucros.

A atuação empresarial do Estado em regime de monopólio faculta ao


Estado a adoção de um regime próprio às entidades do setor público. Não
havendo concorrência, quaisquer privilégios concedidos à entidade da
Administração indireta que exerça a atividade monopolizada não estarão
prejudicando outros agentes privados. O regime de monopólio faz presumir que
não haverá qualquer agente econômico – exceto o Estado – explorando aquela
atividade. Vale frisar que o único monopólio artificial legítimo é aquele
decorrente de previsão constitucional, em benefício do próprio Estado 31.

31
Nada impede que ocorram monopólios no setor privado. Desde que o regime de monopólio
tenha sido conseqüência de uma atuação absolutamente legítima do agente privado no
domínio econômico, não se o pode tachar de ilegítimo. Tratar-se-ia de monopólio natural. É o
que ocorreria se determinada empresa descobrisse ou inventasse uma técnica revolucionária
que tornasse seu produto tão atrativo a ponto de alijar do mercado todos os demais
29

Por fim, pode o Estado intervir no domínio econômico através da


prestação de serviços públicos, nos termos do que dispõe o art. 175 da
Constituição Federal. Se a exploração de atividades econômicas em sentido
estrito é em princípio vedada ao Estado, a prestação de serviços públicos é
conferida ao poder público em caráter de exclusividade, facultando a CF sua
execução através de delegados (mas sempre mantendo a titularidade do
serviço).

Ainda não há concordância entre os doutrinadores sobre o conceito de


serviço público32. A doutrina aponta pelo menos três acepções para a
conceituação de serviço público, sendo uma subjetiva (orgânica), uma objetiva
(material) e uma formal, conforme o critério escolhido. A primeira leva em conta
o prestador do serviço como sendo o Estado. A segunda toma em
consideração a atividade prestada. A terceira, por sua vez, destaca a natureza
pública das regras que disciplinam a prestação do serviço.

Diante desse problema conceitual (ainda não definitivamente


resolvido), uma interessante questão se coloca, com total pertinência ao objeto
de nosso estudo. Poderia o Estado – sem que sua atitude significasse burla à
restrição contida no art. 173 da CF – eleger como serviço público uma atividade
até então considerada como atividade econômica em sentido estrito?

Se a resposta for negativa, ter-se-á que admitir como verdadeira e


correta a acepção material de serviço público, com exclusão das demais. A
natureza da atividade, portanto, passaria a determinar a divisão entre as
atividades econômicas stricto sensu e os serviços públicos, sem a possibilidade
de interferência legislativa superveniente que lhe alterasse a natureza jurídica.
A aplicação exclusiva do critério material exigiria uma compreensão apriorística
(um catálogo) das atividades que seriam econômicas ou públicas, em

empreendedores. O que veda a CF é a obtenção do monopólio por práticas anti-


concorrenciais, como o dumping, tendentes à formação de um monopólio artificial.
32
“Não é fácil oferecer a noção de serviço público, como se depreende do expendido nos
números anteriores. A doutrina toma essa locução nas mais variadas acepções e com isso
dificulta a obtenção da almejada uniformidade conceitual. Tal verificação levou Waline a dizer,
sobre a busca desse desejado conceito, tratar-se de um „diálogo de surdos‟, e a preconizar-se,
na França, a „crise da noção de serviço público‟” (GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo.
11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 289).
30

manifesto prejuízo à versatilidade que deve ter a Administração, nos limites da


legalidade.

Se a resposta, ao contrário, for positiva, então bastaria ao Estado


adotar os critérios subjetivo e formal para transformar em serviço público
qualquer atividade econômica que queira absorver. A norma do art. 173,
tratando como excepcional a atuação direta do Estado no domínio econômico,
perderia completamente sua eficácia uma vez que ao Estado fosse permitido,
de forma arbitrária, transformar em serviço público qualquer atividade
econômica privada.

Podemos, assim, facilmente constatar que nenhuma das duas


respostas, tomadas em caráter absoluto, solucionaria o problema. Por esse
motivo é que se sustentamos a posição de que a melhor definição de serviço
público deverá reunir quanto possível os três critérios disponíveis (subjetivo,
objetivo e formal), sem lhes exigir coexistência em todos os casos. Trata-se de,
casuisticamente, examinar quando determinada atividade poderá – conforme o
direito positivo mas sem desconsiderar radicalmente a natureza das coisas –
ser enquadrada como serviço público.

Para ilustrar, tomemos como exemplo a prestação de serviços médico-


hospitalares. Sabe-se que tal atividade pode ser desempenhada em hospitais
públicos ou privados, ou seja, por pessoas jurídicas de direito público e por
agentes econômicos privados. Entendendo-se que se trataria de serviço
público, então os agentes privados somente poderiam prestá-lo mediante
delegação do poder público (contrato de concessão ou permissão33), vindo
seus prestadores a gozar de prerrogativas próprias da fazenda pública
(imunidade tributária, impenhorabilidade dos bens aplicados ao serviço etc.).
Por outro lado, entendendo-se a mesma atividade como econômica em sentido
estrito, o Estado não poderia desenvolvê-la a não ser nas hipóteses
excepcionais contidas na Constituição.

33
Não obstante a classificação clássica da permissão como ato administrativo, entendemos
que, quando se trata de delegação de serviços públicos, a permissão deve ser
instrumentalizada por contrato administrativo.
31

Tudo gira em torno, portanto, de evitar a arbitrariedade e respeitar, em


determinados casos, a natureza das coisas. O Estado jamais poderá abrir mão
da prestação direta de atividades educacionais e de saúde, ao passo que não
deverá criar restrições inconstitucionais à exploração das mesmas atividades
pelos agentes econômicos privados. Tais atividades serão públicas ou privadas
conforme sejam prestadas ou não pelo Estado, valendo, aqui, o critério
subjetivo34. Já a atividade de comércio no varejo (supermercados, por exemplo)
jamais poderá, sem violação ao art. 173 da CF, ser considerada pelo Estado
como um serviço público, nem mesmo através de lei.

5.3 Intervenção indireta

Na intervenção direta, o Estado age como um dos agentes econômicos


privados, assumindo a posição de ator da economia no mesmo cenário das
entidades privadas. Desceria à arena econômica e participaria do “jogo”
segundo as mesmas regras existentes aplicáveis a todos os demais
gladiadores. Trata-se de uma verdadeira atuação empresarial. O Estado se
vale, para tanto, das chamadas empresas estatais (empresas públicas,
sociedades de economia mista e subsidiárias) como instrumentos de atuação
direta na ordem econômica.

Na intervenção indireta, diferentemente, o Estado age através de


instrumentos diversos e não ingressa na arena econômica ao lado dos demais
agentes econômicos privados. Em vez disso, procura influenciar a vida
econômica através de normas jurídicas e atividades de regulação, incentivando
ou não atividades, fiscalizando o cumprimento das normas de regulação e,
finalmente, traçando planos para a economia em prol do desenvolvimento
nacional.

34
Alguns autores, a exemplo de André Ramos Tavares, incluiriam os serviços educacionais e
de saúde na categoria de serviços de interesse público, a meio caminho dos serviços públicos
e das atividades econômicas. Nesse sentido, Direito constitucional econômico. Obra citada. p.
291.
32

5.3.1 Fundamento constitucional

A Constituição Federal embasa o modelo indireto de intervenção


estatal no domínio econômico em seu art. 174, caput, estabelecendo que,
“como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado
exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,
sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

Dos sucessivos parágrafos constam regras que permitem uma clara


identificação dos valores que o constituinte pretende preservar. Podemos citar,
como exemplos, o desenvolvimento nacional equilibrado (§ 1º), o
cooperativismo (§ 2º) e a atividade garimpeira (§§ 3º e 4º).

5.3.2 O Estado como agente regulador da economia

Há até bem pouco tempo, o Estado era proprietário de empresas que,


bem ou mal, exploravam atividades eminentemente econômicas (em sentido
estrito), em concorrência ou não com as empresas do setor privado. Entendia-
se que a administração da maioria dessas entidades era nitidamente deficiente,
sendo que algumas das atividades eram prestadas como serviços públicos de
péssima qualidade.

A idéia de que o Estado, incompetente e deficitário como agente


econômico privado, seria muito mais eficiente como agente regulador e
fiscalizador da economia fixou as bases do Programa Nacional de
Desestatização, criado pela Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990, dando um
passo decisivo na formação do perfil que deveria assumir o poder público
diante do domínio econômico a partir de então.
33

Nessa linha de pensamento, ensina André Ramos Tavares que “Estado


regulador é o novo perfil do Estado contemporâneo, que se afastou da
prestação diversas atividades (sic), transferindo-as aos particulares, sem,
contudo, abandonar totalmente os setores que deixava, já que permaneceu
neles regulando e acertando a conduta privada”35.

5.3.3 Funções

O art. 174, caput, da Constituição Federal atribui ao Estado regulador o


exercício, na forma da lei, das funções de fiscalização, incentivo, planejamento
vinculativo ao setor público e planejamento indicativo ao setor privado. O
principal instrumento de atuação do Estado como agente normativo e
regulador, portanto, deverá ser a lei, obedecendo-se, dessa forma, ao princípio
da legalidade (arts. 5º, II, 37, caput, e 170, parágrafo único). A lei, contudo, não
deverá ser o único instrumento direto de atuação indireta do Estado na
economia, como veremos adiante.

a) Fiscalização

Como ente normativo e regulador, deve o Estado traçar regras e impor


limites à atuação dos agentes privados, tolhendo-lhes os abusos e evitando
que sua conduta demasiado livre venha a corromper a própria ordem
econômica. A liberdade de iniciativa, como fundamento/prerrogativa relativa
que é, não chega ao ponto de permitir aos agentes privados a utilização de
práticas ilícitas lesivas à livre concorrência. Ao poder público incumbe fiscalizar
a conduta desses agentes, mantendo-a nos limites da legalidade.

35
Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 299.
34

A prerrogativa de estabelecer regras que evitem a destruição do


sistema pela atividade lesiva e anticoncorrencial dos agentes privados confere
ao Estado o dever-poder de fiscalizar o respectivo cumprimento. A intervenção
indireta do Estado funciona aqui como uma forma de limitar a liberdade de um
em prol da liberdade de todos e da própria perpetuação da ordem econômica.

b) Incentivo

Acreditar que a conduta do empresário que utiliza seu poder


econômico em benefício próprio na busca pelo lucro é ilícita ou lesiva constitui,
antes de tudo, um erro. A Constituição Federal reconhece como perfeitamente
lícitos o poder econômico e seu uso, bem como a atuação em busca do lucro e
do aumento do próprio poder econômico. Veda, contudo, práticas
anticoncorrenciais que traduzam abuso dos direitos econômicos de base
constitucional ou legal. Não havendo abuso, a atividade econômica privada
lucrativa deve ser incentivada pelos poderes públicos.

É a partir do êxito da iniciativa econômica legitimamente exercida que


se poderá buscar o desenvolvimento nacional, o pleno emprego, a dignidade
da pessoa humana, dentre outros valores eminentemente econômicos. Não é
tolhendo a iniciativa privada em moldes arbitrários que estará o Estado
trabalhando em prol da sua população.

A atividade normativa e reguladora do Estado deve incentivar a


atuação legítima dos agentes econômicos privados. Quando o desempenho de
determinada atividade pela iniciativa privada interessar diretamente ao Estado,
este poderá se utilizar, inclusive, de benefícios fiscais e creditícios, ou mesmo
da concessão de assistência técnica (como na agricultura).

c) Planejamento
35

O planejamento pode ser compreendido como um método de


racionalização e otimização das diversas formas de atuação do Estado no
domínio econômico. Não representa propriamente um dos meios de
intervenção, mas traduz a opção estatal pela ordenação racional dos meios de
intervenção.

De fato, a intervenção (ou atuação) do Estado na economia pode se


dar com ou sem o planejamento. Por outro lado, o planejamento deve servir de
base para a adoção ordenada dos métodos de intervenção que, não utilizadas,
tornaria o planejamento absolutamente inútil. Fazendo uma comparação com a
engenharia e a arquitetura, poderíamos dizer que o planejamento seria a
idealização da obra pelo arquiteto, ao passo que sua realização através dos
métodos de intervenção traduziria a execução da obra pelo engenheiro.

Sobre o ponto, é oportuna a transcrição do pensamento de Eros


Roberto Grau:

“O planejamento, assim, não configura modalidade de intervenção –


note-se que tanto intervenção no quanto intervenção sobre o domínio
econômico podem ser praticadas ad hoc ou, alternativamente, de modo
planejado – mas, simplesmente, um método a qualificá-la, por torná-la
sistematizadamente racional.”36

Considerando a adoção do sistema capitalista de produção pela


República Federativa do Brasil, a Constituição Federal define o planejamento
como uma das funções do Estado na qualidade de agente normativo e
regulador da economia, mas estabelece que dito planejamento seja vinculante
para o setor público e meramente indicativo para o setor privado.

Na prática, isso quer dizer que o Estado detém a prerrogativa de definir


planos e metas para guiar a economia nacional, os quais deverão ser
irrestritamente obedecidos pelas entidades do setor público. Quanto às

36
A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 151.
36

entidades privadas, terão liberdade para seguir ou não as balizas traçadas,


cabendo ao poder público a utilização dos instrumentos de intervenção para
incentivar tais agentes econômicos, indicando-lhes o melhor caminho segundo
o plano econômico estatal.

Não se pode perder de vista que a natureza meramente indicativa do


planejamento estatal para o setor privado não significa que não possa o Estado
adotar medidas de coerção indireta dentro dos limites de atuação que lhe
garante a Constituição. Por isso mesmo, se determinado setor da economia
deve ser reforçado, nada obsta que a União possa elevar alíquotas de
importação dos produtos importados, fortalecendo a indústria nacional. Os
particulares continuam livres para a aquisição dos produtos no exterior.
Contudo, o negócio torna-se visivelmente mais atrativo (por conta da maior
rentabilidade) quando adquiridos insumos nacionais.

5.3.4 Formas de intervenção

Há diversas formas de intervenção estatal no domínio econômico


catalogadas pela doutrina brasileira. Dada a amplitude e pretensão do presente
trabalho, abordaremos aqui as figuras da regulação e da regulamentação
econômica, com ênfase na distinção entre as duas figuras, e teceremos alguns
comentários sobre a atuação fiscal e financeira do Estado, formas bastante
utilizadas de intervenção indireta.

a) Regulação e regulamentação econômica

A regulação econômica é apresentada por André Ramos Tavares como


um instituto que se caracterizaria “pela imposição, por meio de lei, de
determinações acerca do desenvolvimento de atividades econômicas visando
37

ao interesse público37.” Destacam-se, portanto, no conceito fornecido pelo


autor, os elementos formal-instrumental (lei formal), modal (determinações,
mandamentos, ordens e imposições), material (desenvolvimento de atividades
econômicas) e finalístico (interesse público).

Na mesma obra, o autor cita conceitos mais amplos formulados por


outros autores, dentre os quais Floriano de Azevedo Marques, para quem
regulação seria toda atividade estatal que, incidindo no domínio econômico,
não envolvesse a assunção direta da exploração de atividade econômica em
sentido amplo. Outra posição, também referida pelo autor, defende a tese de
que mesmo atividades materiais de cunho econômico pertenceriam ao campo
da regulação, embora se afirme que tais categorias devam ser excluídas,
adotando-se o conceito mais restrito.

De forma plenamente coerente com o conceito adotado para


regulação, André Ramos Tavares define regulamentação econômica como o
próprio exercício do poder regulamentar (através de normas complementares à
lei, a exemplo do decreto) pelo Chefe do Poder Executivo, quando orientado à
disciplina do domínio econômico. O autor adota uma visão estrita e formal de
regulamentação, associando-a ao poder regulamentar como estudado no
direito administrativo.

Observamos que os conceitos acima transcritos, principalmente aquele


adotado para regulamentação econômica, são eminentemente formais.
Procurando afastar os conceitos mais amplos de regulação econômica, André
Ramos Tavares parece esquecer que a atuação regulatória pode ser feita ou
não através de normas jurídicas. Daí dizer Alexandre Santos de Aragão que há
“três poderes inerentes à regulação: aquele de editar a regra, o de assegurar a
sua aplicação e o de reprimir as infrações”38.

37
TAVARES, André Ramos. A intervenção do estado no domínio econômico. Obra citada. p.
181.
38
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 24.
38

Se é verdade que o poder de editar a regra se enquadraria


perfeitamente no conceito de regulação dado por André Ramos Tavares, o
mesmo não se pode afirmar quanto aos poderes de assegurar a aplicação das
mesmas regras e de punir as infrações. Os dois últimos traduzem o exercício
de competências inerentes ao poder executivo de polícia, que é instrumento de
intervenção indireta do Estado na economia. O próprio André Ramos Tavares
diz que “figura o poder de polícia como modo de intervenção estatal quando,
por seu intermédio, há possibilidade de aplicar sanções a qualquer errônea
atuação de particulares no exercício da atividade econômica”39.

A restrição do conceito de regulação econômica às atividades


realizadas por meio de leis que imponham determinações aos agentes
econômicos em prol do interesse público deixa ao largo as condutas estatais
que influenciam (sem determinar) o domínio econômico, conduzindo a
economia nacional pelos caminhos traçados e incluídos no plano
(planejamento).

A amplitude do conceito de regulação se mostra perfeitamente visível


quando examinamos a classificação de Alexandre Santos de Aragão sobre o
que seria a regulação lato sensu: a) regulação estatal, b) regulação pública não
estatal, c) auto-regulação e d) desregulação40. Daí a preferência do autor pela
adoção de um conceito mais amplo de regulação econômica, “excluindo tanto a
sua assimilação à desregulação, como apenas à regulação coercitiva” 41, e
identificando nos critérios de grau e estratégia interventiva a diferença entre
regulação e regulamentação42.

39
A intervenção do estado no domínio econômico. Obra citada. p. 185.
40
“Condensando o exposto até o momento, podemos enumerar como possibilidade de
regulação lato sensu da economia, (a) a regulação estatal, feita pelas regras emitidas por
órgãos do próprio Estado, mesmo que deles participem representantes de organismos
intermédios da sociedade; (b) a regulação pública não-estatal, feita por entidades da própria
sociedade, mas por delegação ou por incorporação das suas normas ao ordenamento jurídico
estatal; (c) auto-regulação, levada a cabo autonomamente por instituições privadas, geralmente
associativas (auto-regulação associativa), sem qualquer delegação ou chancela estatal; e (d) a
desregulação, consistente na ausência de institucionalizada, pública ou privada, ficando os
agentes sujeitos apenas ao livre desenvolvimento do mercado.” (ARAGÃO, Alexandre Santos
de. Agências reguladoras... Cit. p. 33).
41
Ibidem. p. 29.
42
Ibidem. p. 28.
39

Dados os limites da proposta do presente trabalho, não nos será


possível tecer considerações mais aprofundadas sobre os conceitos de
regulação e regulamentação da economia. Deixamos, contudo, registrada a
enorme controvérsia que, sobre o tema, remanesce na doutrina.

b) Atuação fiscal e financeira

O Estado pode intervir no domínio econômico através do competente e


racional manejo de instrumentos fiscais e financeiros, nos termos daquilo que
lhe permitirem a Constituição Federal e as leis. A utilização interventiva do
chamado poder de tributar confere função extrafiscal43 aos tributos cuja
imposição é assim realizada.

Há tributos que são inerentemente extrafiscais, a exemplo dos


impostos de importação e exportação, previstos no art. 153, incisos I e II 44, da
Constituição Federal. O adequado manejo de suas alíquotas pelo Poder
Executivo45 pode incentivar ou tornar inviável a exploração de determinados
setores econômicos, fazendo de tais impostos poderosos instrumentos de
intervenção do Estado no domínio econômico pela regulação indutiva do fluxo
de mercadorias no comércio com o exterior.

43
Os tributaristas classificam as funções dos tributos em três categorias básicas: fiscal,
parafiscal e extrafiscal. Função fiscal é aquela que orienta o tributo para arrecadação de
receitas aos cofres do Estado (ex.: Imposto de Renda). Na função parafiscal, os tributos
servem ao fim de arrecadação de receitas dirigidas ao financiamento de entidades diversas do
Estado (ex.: Contribuições Parafiscais). Por fim, na função extrafiscal o tributo não serve ao fim
de arrecadação, mas ao incentivo ou inibição de determinada atividade (ex.: Imposto de
Importação cuja alíquota é elevada, inibindo a importação do produto e tornando o similar
nacional mais atrativo). Sobre parafiscalidade e extrafiscalidade, cf. TORRES, Ricardo Lobo.
Curso de direito financeiro e tributário. 10. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 166-
167.
44
“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
I - importação de produtos estrangeiros;
II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;”
45
O art. 153, § 1º, da CF, confere ao Poder Executivo a prerrogativa de, atendidas as
condições e os limites previstos em lei, alterar as alíquotas dos impostos de importação e
exportação. Essa característica, havida como exceção ao princípio da legalidade tributária,
caracteriza os impostos aduaneiros como nitidamente extrafiscais.
40

O imposto de importação é utilizado como forma de tornar mais


elevados os custos da importação, tornando esses produtos mais caros no
mercado nacional. Com isso, incentiva-se o consumo do similar produzido no
Brasil. Da mesma forma, o imposto de exportação pode ser utilizado para inibir
a remessa de determinados produtos ao exterior, aumentando a oferta no
mercado nacional. Este último tributo tem suas alíquotas normalmente
reduzidas para viabilizar uma maior competitividade dos produtos nacionais no
mercado internacional, evitando-se a exportação de ônus tributários.

Há tributos que apresentam nítida função fiscal (arrecadatória), mas


que são também utilizados de maneira extrafiscal (interventiva), como forma de
regular o consumo de certos produtos. Um grande exemplo é o Imposto sobre
Produtos Industrializados – IPI, com alíquotas elevadas para produtos
supérfluos (cigarros, bebidas etc.) e bem reduzidas para produtos essenciais
(alimentos de primeira necessidade).

Outra importante forma de utilização do poder estatal de tributar para


atuação do Estado no domínio econômico está na previsão constitucional de
um tratamento privilegiado a ser conferido às microempresas, empresas de
pequeno porte e cooperativas (art. 146, III, “c” e “d” e parágrafo único)46.

46
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(...)
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as
empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto
previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição
a que se refere o art. 239. (Alínea acrescentada pela Emenda Constitucional nº 42, de
19.12.2003, DOU 31.12.2003, com efeitos a partir de 45 dias da publicação)
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um
regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, observado que:
I - será opcional para o contribuinte;
II - poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado;
III - o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos
pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou
condicionamento;
41

Ligada à utilização interventiva do poder de tributar está a atuação


financeira do Estado, também poderosamente exercida como meio de
intervenção no domínio econômico. São exemplos de instrumentos dessa
atuação financeira estatal na economia os investimentos públicos em infra-
estrutura aeroportuária e de transportes, bem como as concessões de créditos
e assistência técnica a pequenos produtores rurais. Vale lembrar que a
legitimidade da atuação financeira do Estado depende de autorização do Poder
Legislativo nas chamadas leis orçamentárias (Lei do Orçamento, Lei de
Diretrizes Orçamentárias e Plano Plurianual).

6. CONFLITOS (REAIS OU APARENTES)

O princípio da livre concorrência, associado ao fundamento


constitucional econômico da livre iniciativa, tem como base conceitual o
princípio maior da liberdade. A concessão de uma liberdade irrestrita, contudo,
teria como conseqüência inevitável a autodestruição da própria liberdade.
Liberdade duradoura, portanto, é liberdade regrada, condicionada, limitada.

Sendo assim, só existe conflito real entre liberdade e autoridade


quando são examinados conceitualmente. Na prática, a liberdade depende da
autoridade como o ser humano depende de oxigênio. A autoridade do Estado é
a base da liberdade dos indivíduos. Sem ela, só haveria liberdade até onde
cada um pudesse garanti-la pela força cega, irracional e arbitrária.

Os conflitos que se apresentam a seguir sobre a liberdade de iniciativa


e concorrência e a autoridade do Estado para intervir na economia são
meramente aparentes no plano prático e, como se verá a seguir, a liberdade
depende, em todos os casos, da autoridade para manter-se viva e operante.

IV - a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes


federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes.” (NR) (Parágrafo acrescentado
pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, DOU 31.12.2003, com efeitos a partir de 45
dias da publicação)
42

Comecemos pelo tabelamento oficial de preços.

6.1 Tabelamento oficial de preços

Em uma sociedade onde vigore o princípio da liberdade de


concorrência e de iniciativa, as diversas variáveis inerentes à economia –
produção, oferta, preço, demanda, consumo etc. – devem ser dimensionadas
de acordo com as leis do mercado, sem interferências externas artificiais, ou
seja, provenientes do Estado.

A aplicação absoluta da liberdade de iniciativa e concorrência garantiria


aos agentes econômicos privados a prerrogativa de estabelecer seus preços
de forma livre e autônoma, independentemente de quaisquer condicionamentos
ou recomendações estatais. O abuso da prerrogativa tornaria a fixação do
preço algo fora do alcance do controle do Estado.

Nenhum princípio, contudo, é absoluto. De acordo com a Constituição


Federal de 1988, o Estado tem a prerrogativa de intervir direta ou indiretamente
no domínio econômico, desde que se mantenha dentro dos limites
estabelecidos pela própria CF. Deve atender aos fins previstos, utilizar os
meios legítimos e nunca ir além daquilo que seja essencialmente necessário ao
atingimento da proposta constitucional.

Aqui se coloca o problema do tabelamento ou congelamento de preços


que, na prática, significa uma imposição feita pelo Estado aos agentes
econômicos privados para que comercializem seus produtos pelo chamado
preço oficial, podendo a venda por preço superior ser punida civil,
administrativa e até penalmente.

A crítica que se faz ao expediente do tabelamento oficial é que


representaria clara violação a uma das mais importantes prerrogativas
conferidas pelo princípio da livre concorrência: a fixação do próprio preço
43

segundo as leis do mercado. André Ramos Tavares diz que tanto o


tabelamento quanto o congelamento “são medidas intervencionistas que
afetam a economia de mercado e não podem subsistir válidas perante a ordem
constitucional brasileira”47. O tabelamento/congelamento seria, dessa forma,
inconstitucional por violação à liberdade de iniciativa e (principalmente)
concorrência.

Aqui surge a questão dos monopólios naturais. O monopólio será


artificial quando se formar a partir da utilização de recursos que traduzam
abuso do poder econômico, como a prática de preços inferiores aos custos da
produção pelo tempo necessário à eliminação de todos os demais concorrentes
(dumping). O monopólio será natural quando advier da utilização lícita do poder
econômico, como no caso em que um industrial desenvolve uma técnica que
torna seu produto muito melhor e mais barato que os similares, alijando os
concorrentes do mercado.

O Estado tem a função de reprimir os abusos cometidos pelos agentes


privados na utilização do poder econômico. Ao passo que a formação de
monopólios artificiais deve ser duramente combatida, os monopólios naturais
são decorrência legítima da liberdade de iniciativa e concorrência. Sua
formação, portanto, não é conseqüência de um ato abusivo que visava à
eliminação da concorrência ou à dominação dos mercados.

O problema surge quando, formado um monopólio natural em razão da


exclusividade do fornecedor, venha o agente econômico monopolista a praticar
um preço excessiva e abusivamente superior aos custos da produção.
Piorando o problema, considere-se que o produto fornecido é um medicamento
comprovadamente eficaz no combate a uma doença infecto-contagiosa mortal
sem cura até então conhecida.

Seria possível o tabelamento oficial do preço praticado?

A par da discussão sobre a possibilidade ou constitucionalidade do


tabelamento oficial, o que parece certo é que a conduta do agente privado

47
Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 271.
44

exclusivo que pratica preço extorsivo é nitidamente um abuso do poder


econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros, figura prevista no art.
173, § 4º, da Constituição Federal como motivadora de uma atuação estatal
repressiva a ser realizada com base em lei.

Parece-nos claro que o Estado não poderia ficar inerte diante dessa
situação, assistindo passivamente à prática de tal abuso. Como alternativa ao
tabelamento, o poder público poderia responsabilizar o agente privado por
infrações à ordem econômica (o que teria caráter punitivo), além do que lhe
seria possível utilizar o poder de polícia de modo a forçar um retorno da
atividade empresarial aos lindes da legalidade. Os instrumentos iriam desde as
multas administrativas até medidas de cunho punitivo por infrações contra a
ordem econômica.

E o tabelamento? Não nos parece que, nesse caso, o tabelamento


oficial fosse inconstitucional.

A Constituição Federal consagra a liberdade de iniciativa e


concorrência respectivamente como fundamento e princípio inerentes à ordem
econômica, valores que devem ser protegidos em razão de suas funções para
a manutenção da proposta constitucional de garantir uma economia de
mercado de base capitalista sem prejuízo do desenvolvimento nacional, da
dignidade da pessoa humana, dos valores do trabalho e da proteção ao
consumidor.

As liberdades, portanto, não são finalidades em si. Existem para que os


agentes privados possam contribuir com o Estado na implementação dos
valores abraçados pela Constituição. Se essa mesma liberdade, no caso
concreto, é utilizada contra os valores que deveria ajudar a proteger, deve o
Estado, com autoridade, intervir para fazer retornar à legalidade o estado de
coisas.

A conclusão a que se chega é que a liberdade de iniciativa e


concorrência – intocadas no plano normativo constitucional – não protege o
sujeito que, em concreto, abusa no exercício do poder econômico para afastar
45

a concorrência, dominar mercados ou aumentar arbitrariamente seus lucros.


Não existe garantia constitucional que sobreviva no ambiente do abuso e
proteja o agente econômico privado contra uma atuação estatal interventiva
dotada de proporcionalidade e razoabilidade.

A idéia, portanto, é a de que o tabelamento oficial de preços constitui,


em princípio, violação ao princípio da liberdade de concorrência no plano
conceitual e abstrato. De fato, o conceito de liberdade de concorrência é
incompatível com o conceito de imposição oficial de preços. Contudo, se no
plano (caso) concreto determinado agente econômico atuar com abuso do
poder econômico para aumentar arbitrariamente seus lucros, considera-se que
abandonou o manto protetor da garantia constitucional e se expôs à sorte de
medidas interventivas estatais razoáveis e proporcionais, dirigidas à repressão
contra o abuso e à restauração da normalidade. Se a medida de intervenção
age, concretamente, como veículo de efetiva restauração da
constitucionalidade, não poderá haver inconstitucionalidade.

É a autoridade do Estado atuando como oxigênio da própria liberdade.

6.2 Benefícios fiscais e lesão concreta à livre iniciativa

Uma interessante questão em que se coloca a necessidade de


compatibilização entre a função estatal de intervenção do domínio econômico e
o respeito à livre iniciativa e livre concorrência está na outorga de benefícios e
incentivos fiscais a determinados agentes econômicos privados, gerando com
isso a redução da clientela dos agentes não beneficiados.

A Constituição Federal estabelece, como objetivos fundamentais da


República Federativa do Brasil, a) a garantia ao desenvolvimento nacional (art.
3º, II), b) a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como c) a
redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). A redução das
46

desigualdades regionais e sociais está igualmente prevista como princípio da


ordem econômica (art. 170, VII).

Em razão desse compromisso constitucional, a União tem a


excepcional prerrogativa de instituir tributos de forma regionalmente
diferenciada, com vistas à promoção do objetivo fundamental de reduzir
desigualdades regionais. Pode, por exemplo, reduzir a carga tributária de
empresas que vierem a se instalar em áreas menos populosas ou mais
carentes de recursos e empregos, a exemplo do que ocorre nas Regiões Norte
e Nordeste.

É o art. 151, I, da CF/88 que, estabelecendo o princípio da


uniformidade tributária, prevê a excepcional prerrogativa de instituição
diferenciada de tributos segundo a necessidade de redução das desigualdades
regionais o recomende48.

Uma crítica bastante pertinente que se faz à utilização dessa


prerrogativa tributária extrafiscal dirige-se à concessão de benefícios fiscais a
determinadas empresas venham a se estabelecer em determinado lugar do
País, negando-se a extensão do benefício àquelas que, explorando o mesmo
ramo de atividade, já se encontrassem sediadas há algum tempo na mesma
região.

É absolutamente lógico que, com menores custos para produção e


circulação de sua mercadoria, as empresas beneficiadas estarão em muito
melhor condição de produzir e comercializar seus produtos do que as demais.
A situação fica ainda mais ilógica quando se atenta para o fato de que a
empresa recém chegada não tinha a vontade de investir naquela região até a
proposta de concessão dos incentivos fiscais e, por isso, sai extremamente
beneficiada. As empresas que ali se instalaram antes resolveram investir no
lugar independentemente de qualquer benefício e, a partir de agora, vê o poder

48
“Art. 151. É vedado à União:
I – instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção
ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de
outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do
desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País;”
47

público financiar parte dos custos operacionais de uma empresa concorrente,


saindo sensivelmente prejudicada.

Intervenções assim são manifestamente inconstitucionais por violação


à livre iniciativa e livre concorrência, pois prejudicam o agente econômico
privado que, desprovido dos mesmos benefícios, tem mais custos operacionais
para a produção e a circulação de seus produtos do que a empresa
beneficiada, e poderá ver-se obrigada a fechar suas portas naquela localidade.
Antes de promover redução de desigualdade regional ou aumento do emprego,
tal atuação gera instabilidade econômica naquela região e afasta novas
empresas. O fantasma de serem alijadas do mercado por outras concorrentes
beneficiadas estará sempre lá para afugentar novos investimentos.

Não obstante essas considerações, parece lógico que a concessão de


incentivos ou benefícios fiscais a prazo certo e extensível às empresas já
localizadas na região beneficiada, preservando-se as condições de livre
concorrência, poderá bem e fielmente servir aos objetivos constitucionais de
redução das desigualdades regionais. Em assim procedendo, o Estado eliminar
a possibilidade do surgimento de um conflito real e concreto entre intervenção
e liberdade, mantendo-o, como propomos acima, exclusivamente no plano
abstrato e conceitual.

6.3 A disciplina de preços no setor sucro-alcooleiro em desacordo com o


Instituto do Açúcar e do Álcool (RE 422941)

Através do Estatuto da Lavoura Canavieira (DL n. 3855/41), como


forma de incentivo aos produtores rurais ligados à agricultura canavieira e
exemplo de atividade estatal de intervenção indireta no domínio econômico, o
Estado adotou uma política de tabelamento do preço da tonelada da cana,
disciplina que se manteve vigente até o advento da Portaria MF n. 275/98.
48

De fato, a Portaria MF n. 275, de 16 de outubro de 1998, pondo fim ao


tabelamento oficial de preços até então vigente, estabeleceu, em seu art. 5º,
que “os preços da cana-de-açúcar, inclusive os fretes, fornecida às usinas e
destilarias autônomas de todo o País, os do açúcar cristal standard, os do
álcool hidratado para fins carburantes, os do álcool para fins não carburantes
de todos os tipos e os do mel residual, na condição PVU ou PVD, serão
liberados em 1º de fevereiro de 1999”.

O Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA, até sua extinção em 1990 pelo


Decreto n. 99.288/90, tinha um importante papel no contexto da intervenção
exercida pela União sobre a atividade econômica de produção e circulação da
cana-de-açúcar e seus derivados, a exemplo do álcool hidratado para fins
carburantes e do açúcar cristal. Com a extinção do IAA, suas atribuições foram
transferidas ao Ministério da Fazenda e à Secretaria do Desenvolvimento
Regional da Presidência da República.

No caso que interessa ao presente trabalho, ocorreu que a União teria


fixado os preços a serem praticados na circulação da produção canavieira em
valores inferiores aos sugeridos pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, com o que
não teria concordado a Destilaria Monte Alegre. Alegando a ocorrência de
prejuízos de ordem patrimonial, a destilaria ajuizou ação de indenização em
face da União.

Tomando conhecimento da causa em caráter originário, a Justiça


Federal de primeira instância julgou procedente o pedido, sendo mantida a
decisão pelo Tribunal Regional Federal diante da apelação interposta pela
União. Com a interposição do recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça
entendeu que seria válida a fixação dos preços em valores inferiores aos
propostos pelo IAA, uma vez que decorreria do poder estatal de intervenção no
domínio econômico, não gerando, por tal motivo, direito a indenização. Contra
essa decisão foi interposto recurso extraordinário.

O julgamento da questão pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal


(em sede de recurso extraordinário) se deu em 06 de dezembro de 2005 e a
49

decisão foi publicada na edição do dia 24 de março de 2006 do Diário da


Justiça. O acórdão ficou assim ementado:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. ECONÔMICO. INTERVENÇÃO


ESTATAL NA ECONOMIA: REGULAMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DE
SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE
INICIATIVA. CF, art. 1º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6º.

I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e


regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e
fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é
fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1º, IV; art. 170.

II. – Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em


desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre
exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre
iniciativa.

III. – Contrato celebrado com instituição privada para o estabelecimento


de levantamentos que serviriam de embasamento para a fixação dos preços,
nos termos da lei. Todavia, a fixação dos preços acabou realizada em valores
inferiores. Essa conduta gerou danos patrimoniais ao agente econômico, vale
dizer, à recorrente: obrigação de indenizar por parte do poder público. CF, art.
37, § 6º.

IV. – Prejuízos apurados na instância doutrinária, inclusive mediante


perícia técnica.

V. – RE conhecido e provido.”

A decisão do STF traz à tona aquilo que procuramos demonstrar como


sendo o ponto central do presente trabalho: a coexistência entre o poder estatal
válido e efetivo de intervenção do domínio econômico e a necessidade de
respeito ao fundamento da livre iniciativa e ao princípio da livre concorrência. A
compatibilização entre as duas grandezas constitucionais – autoridade e
liberdade – fica bastante clara na conclusão a que chegou o tribunal.
50

Começando pela própria demanda, atentemos para o fato de que o


pedido foi de indenização por danos em razão da ocorrência de prejuízos
materiais a partir do ato de intervenção, de modo que a decisão judicial não
precisaria considerar inválida a atuação estatal, mas apenas reconhecer que,
embora válida, ela teria sido lesiva de direito subjetivo legítimo. Exatamente por
esse motivo que a parte autora fundamentou seu pedido na responsabilidade
civil objetiva do Estado, com o que eliminaria quaisquer defesas que se
baseassem na licitude da atuação estatal.

O julgamento do STJ incidiu exatamente nessa questão quando


reconheceu a legitimidade da atuação interventiva da União, afastando a
indenizabilidade dos danos alegados em razão exatamente dessa legitimidade.
Uma atuação estatal legítima, representativa do poder de intervenção no
domínio econômico, não poderia ser ao mesmo tempo geradora de danos
indenizáveis e, por isso mesmo, a União teria a prerrogativa de, exercendo
esse poder, definir preços em valores inferiores aos sugeridos pelo IAA,
mesmo que isso causasse danos materiais.

Em seu julgamento, o Supremo Tribunal Federal eliminou a


legitimidade da intervenção estatal como causa excludente da responsabilidade
civil e adotou a teoria da responsabilidade civil por atos lícitos. A própria teoria
objetiva da responsabilidade civil, afastando a necessidade de apuração de
culpa, prega a responsabilidade civil por atos lícitos. A licitude da atuação
estatal, portanto, não pode ser encarada por si mesma como uma causa
eficiente de exclusão da responsabilidade civil do Estado49.

Desse modo, o STF entendeu que as duas grandezas deveriam


coexistir no mesmo ambiente. Não se pretendeu, em momento algum (e isso
49
Em trabalho anterior, desenvolvemos a idéia de que a licitude da conduta não pode ser
admitida como causa eficiente da exclusão de responsabilidade civil. Sendo, por um lado, ato
ilícito aquela figura definida no art. 186 do CC, dependente da existência de culpa lato sensu a
permear a conduta e, por outro, não havendo necessidade de culpa para a responsabilidade
objetiva, concluímos que a responsabilidade objetiva é uma forma de responsabilidade civil por
atos lícitos. Em nosso trabalho, contudo, procuramos afastar da conduta e das teorias da culpa
e do risco o fundamento da responsabilidade civil, concentrando-o no dano. O critério
unificador da responsabilidade civil seria, dessa forma, a ilicitude do dano. (Cf. ABREU,
Rogério Roberto Gonçalves de. Teoria do dano ilícito. In DELGADO, Mário Luiz e ALVES,
Jones Figueiredo. Questões controvertidas: responsabilidade civil (Série Grandes Temas de
Direito Privado). São Paulo: Método, 2006. v.5. pp. 507-528).
51

ficou claro na decisão do STF), invalidar os atos praticados pela União que
fixaram os preços do setor sucro-alcooleiro em valores inferiores aos sugeridos
pelo IAA. Por outro lado, com a indenização dos danos suportados pelo agente
econômico privado, reconheceu-se a este último o direito a não se permitir
imolar por essa mesma atuação legítima estatal interventiva, a qual deverá
sempre respeitar os direitos fundamentais, especialmente aqueles de índole
constitucional-econômica.

Dessa maneira, ao mesmo tempo em que se resguarda a legitimidade


do poder estatal de intervenção ativa no domínio econômico, fica igualmente
protegida a integridade da liberdade de iniciativa e da livre concorrência.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início, a proposta principal do presente trabalho era a


realização de um estudo casuístico sobre os conflitos existentes entre o
fundamento da livre iniciativa, o princípio da livre concorrência e a prerrogativa
estatal de intervenção do domínio econômico, pondo relevo ao necessário
equilíbrio de forças entre autoridade e liberdade. A base do estudo seria o já
comentado julgado do Supremo Tribunal Federal que, dando provimento a
recurso extraordinário da Destilaria Monte Alegre, reformando decisão do
Superior Tribunal de Justiça, entendeu que o poder do Estado de intervir no
domínio econômico teria que respeitar o fundamento constitucional-econômico
da livre iniciativa.

Como um exame específico do julgado demandaria, por amor à


clareza, a construção de bases teóricas mais sólidas, procuramos tecer
algumas considerações acerca das “grandezas constitucionais” envolvidas:
livre iniciativa, livre concorrência e intervenção do Estado no domínio
econômico (autoridade e liberdade). Daí as linhas sobre cada um desses
assuntos. Registramos também que a proposta do trabalho não permitia (e não
permitiu) um aprofundamento nos temas em questão, mas o êxito da
52

empreitada passava por um exame, ainda que superficial, dos institutos em


conflito. Assim procuramos fazer.

Na redação do trabalho, uma idéia surgiu como muito clara. É


interessante notar como as liberdades mal utilizadas se tornam fatores de
cerceamento da própria liberdade: inicialmente por parte dos beneficiários e,
em seguida, pela entidade garantidora da liberdade. Com o exame casuístico
de situações em que a liberdade conflita com a autoridade do Estado, o que se
viu foi a constatação de que a última está para a primeira como uma forma de
efetivação e preservação. Utilizada na medida certa, a autoridade do Estado é
a única forma de perpetuar a liberdade. Por outro lado, não utilizada a
autoridade estatal mediadora, a própria liberdade se encarrega de sua
destruição.

Exatamente por esse motivo é que sustentamos a idéia de que,


partindo-se do ponto de que liberdade e autoridade devem ser utilizadas e
usufruídas sempre e tão somente nos limites do que dita o racional (razoável,
proporcional), só se pode identificar um conflito entre ambas no plano
puramente conceitual, quase virtual. Na prática, a liberdade confere
legitimidade à autoridade do Estado. Esta, por sua vez, confere perenidade à
liberdade. Nisso reside, portanto, a compatibilização entre a autoridade do
Estado quando intervém no domínio econômico e a liberdade dos agentes
econômicos quando atuam no mesmo domínio.

8. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ABREU, Rogério Roberto Gonçalves de. Teoria do dano ilícito. In DELGADO,


Mário Luiz e ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas:
responsabilidade civil (Série Grandes Temas de Direito Privado). São Paulo:
Método, 2006. v.5. pp. 507-528.
53

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito


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ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios


jurídicos. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006.

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rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura


a partir da constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed.
rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo:
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GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo. 11. ed. rev. e atual. São Paulo:
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GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 11. ed. rev.
e atual. São Paulo: Malheiros, 2006.

_____. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São


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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. atual.
e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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TAVARES, André Ramos. A intervenção do estado no domínio econômico. In


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SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (orgs). Curso de direito administrativo
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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 10. ed. atual.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

VENOSA, Sílvio de Sálvio. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria
geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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