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DENISE: Não, o que eu queria também lembrar é que esse termo que a
gente colocou, por uma epistemologia não-cartesiana, é o ultimo capitulo de
um dos livros dele que é O novo espírito cientifico. É o titulo deste
capítulo. Isso para nós faz muito sentido porque todos nós somos de áreas
de artes e humanidades e temos dificuldade às vezes de lidar com certas
restrições da epistemologia cartesiana, isso é muito difícil, muito pesado,
para objetos que são mais...
NORA: ...singulares
DENISE: Quando a gente lida com objetos com singularidade, com uma
indeterminação maior, sem fixidez, é bem mais difícil pensar numa
epistemologia cartesiana. Por isso a gente, antes de começar a ler
Feyerabend, leu o Discurso do método, de Descartes, para começar a
situar o que é o método cartesiano e situar o que seria um método não-
cartesiano.
NORA: Depois partimos para Feyerabend e, dentro deste processo, a
continuidade é com Bachelard que é um autor que traz na veia essa
proposta de epistemologia aberta, bem mais aberta, e acho que a gente
pode começar já com as questões.
ELYANA: É. Desse livro é uma tese dele, é a tese dele para a Sorbonne, em
que ele é super-elogiado e também todas as pessoas que se referem a esse
trabalho, que é um trabalho difícil, não é um trabalho fácil, porque ele vai
lidar justamente com essa matemática inexata, com essa idéia que estava
surgindo na época através da teoria da relatividade. A teoria da relatividade
foi rechaçada durante anos, ela foi divulgada em 1905 e só foi aceita depois
de 1926 e olhe lá... Foi uma briga danada para aceitar a teoria da
relatividade.
DENISE: Agora, onde é que entra a Química na vida dele? Porque os livros
dele têm muita coisa de química, da alquimia, faz a história...
ELYANA: É... Então ele vai pegando os conceitos que estão na Alquimia
para mostrar como a Química se apropriou desses conceitos.
DENISE: magia...
ELYANA: E ele está muito preso a essa idéia de magia nesses primeiros
livros dele sobre poética, sobre a poética do espaço, a terra e o devaneio da
vontade, o ar, os sonhos. Para mim, é um livro encantador. Ele faz uma
diferença entre songe e reverie. Então, songe é sonho mesmo, e reverie é
devaneio. O homem que devaneia, aquele que sonha acordado, e aquele
que sonha os sonhos noturnos. E ai ele vai um pouco por Jung quando ele
vai falar dos sonhos noturnos. Ele vai um pouco por Jung. Então, pois é
nesse primeiro momento dele que vai de 1937 a 1957, ele trabalha mais a
história da Química, história da Física, ele vai misturando, trabalha livros de
poesia, trabalha um livro que eu acho lindo, o livro sobre Lautréamont, e ele
vai então pinçando alguns livros de poética, até foi Olival quem me disse
isso. Porque nós tínhamos uma fotografia, quer dizer, eu tinha uma
fotografia, eu não entendia porque Bachelard estava presente na Sociedade
francesa de Ciência e Olival falou que foi naquela sociedade que Jacques
Brunschwig resolveu abandonar a idéia bachelardiana e voltar pra o
cartesianismo. Aí você vê uma ruptura na obra de Bachelard, ele rompe com
a epistemologia também, porque Brunschwig era muito amigo dele, ele
confiava muito em Brunschwig. Ele abandona as idéias de Brunschwig e
volta então para a poética do devaneio, a poética do espaço, a poética do
fogo.
ELYANA: Já mais para o fim, porque ele morre em 1962. De 1957 a 1962,
ele escreve somente sobre essas coisas. Não escreve mais epistemologia.
ISA: Essa seria uma via conhecida como via onírica, não é? Que fala da via
noturna...
ELYANA: É...
ELYANA: Eu posso passar para vocês. São trabalhos aqui da Bahia, porque
temos um grupo de pesquisa cadastrado no CNPq que...
ELYANA: É...
DENISE: É um grupo interdisciplinar, tem professores de Letras, Filosofia,
Artes Cênicas, Dança. Houve ate um colóquio que foi na Politécnica, há um
ano, Sidarta participou.
NORA: Você falou dessa diferença que ele faz entre o conceito de sonho e
devaneio e acabou entrando nesse lugar do homem diurno, da ação diurna
e da ação noturna. Foi uma questão que ficou: é que ao ler a apresentação
sobre a obra dele, ao mesmo tempo em que a gente vê essa aproximação
que ele faz entre o fazer arte, o fazer ciência, pela via da criação que é o
ponto comum...
ELYANA: Por isso que não há diferença entre pensar a arte ou pensar a
realidade cientifica, a realidade numa perspectiva mais cientifica. Para ele,
não há essa diferença, exatamente por essa idéia de criatividade.
NORA: Nessa leitura primeira que a gente vem fazendo, numa aproximação
primeira à obra, claro que à medida que vamos nos aprofundando,
aproximando mais, com certeza esse entendimento vai aparecendo. Mas
logo de inicio a gente pensou assim, como é que ele junta essa coisa de
fazer arte e fazer ciência como ações complementares e próximas, mas
continua repetindo o discurso em alguns momentos, pedindo para que o
pesquisador saiba separar a ação intelectual da ação criativa, do que é essa
ação do homem diurno e do homem noturno, então a gente ficou um pouco,
ainda, sem entender.
DENISE: a dualidade...
NORA: Mas, ao mesmo tempo, mesmo nesse discurso dual não fica tão
presente uma questão hierárquica; é bem diluída, ele não impõe uma
hierarquia de uma ação sobre outra. Até nas anotações das questões, eu
fiquei pensando se não seria um jogo talvez até inconsciente de ele fazer
com que o interlocutor, como depois ele vai falar dos obstáculos
epistemológicos e vai trazer a experiência primeira como um dos principais
obstáculos, que talvez a gente vai falar um pouquinho mais depois, mas se
o interlocutor, eu me coloquei no lugar de interlocutor de Bachelard e tendo
a experiência primeira de achá-lo dicotômico e dualista e positivista apesar
de ele trazer um argumento super-coerente e rompendo com isso. Então
ficou essa tensão...
ELYANA: Até 1980, foi por isso que eu dei o titulo O arauto da Pós-
modernidade, é porque até 1980, ele não existia para o francês, por causa
do marxismo, por causa da teoria marxista. Como a teoria marxista
dominava todo aquele cenário..., inclusive tenho um livro do Althusser que
eu acho super-interessante que é O futuro...
ELYANA: Isso, porque ele vai fazer uma história do ocorrido na França
naquela época e nessa historia do ocorrido ele coloca Bachelard exatamente
para explicar porque que Bachelard não era reconhecido. A partir do
momento em que a teoria marxista começa a ser questionada, começa a
ser indagada pelas pessoas, ressurge Bachelard e ai começam a publicar
Bachelard dois, três livros por ano. Por isso pós-modernidade, todos esses
pós-modernos, Deleuze, Bourdieu, Guattari, Derrida, percorrem o mesmo
caminho de Bachelard. Você vai pegar Deleuze no O que é a filosofia você
vai ver que tudo ali é fundamentado em Bachelard. Então a questão do
conceito em Derrida, é a mesma coisa. A questão da diferença que aparece
com Bachelard, por exemplo, A filosofia do não, e a epistemologia não-
cartesiana. Este não não é negação, o não é diferença, é o outro, mas
necessariamente não é negação.
ELYANA isso, exatamente. Mas isso ele faz com todo mundo.
DENISE: é verdade, Lacan sempre fez isso, Lacan sempre tomou conceitos
da matemática, da topologia, da semiótica e não deu crédito.
ELYANA: ele é positivista sem ter consciência de que ele esta sendo
positivista. Então quando ele fala, por exemplo, da questão empírica do
conhecimento, ele está sendo positivista, mas ele não tem consciência
disso. Então existem muitas passagens no trabalho dele, na obra dele, que
ele está sendo positivista sem ter idéia de que está sendo positivista. Ele
não tem consciência, mas ele esta sendo positivista. Ele está criticando o
positivismo, mas sendo positivista. São as contradições do pensador
naquela época em que o positivismo era vigente, você vê de 1900 ate 1980,
82, o espírito cientifico é positivista. Todas as análises, tanto que a força do
positivismo é tão grande, que cai no neo-positivismo. Quer dizer, na
verdade, o positivismo é muito forte.
Denise: embora ele mesmo diga que a gente convive numa etapa posterior
com fatos muito anteriores que a gente é medieval quando já é moderno,
que isso não se separa em camadas como o positivismo mais rasteiro
pensaria: termina aqui essa etapa vamos para outra, ele quebra com isso
por isso há uma movimentação no pensamento dele que mostra que nossos
preconceitos fazem com que a gente às vezes seja medieval no modo de
encarar.
SIDARTA: essa noção guarda alguma aproximação com aquela idéia que se
fala zeitgeist.
ELYANA: Exatamente
DENISE: não tem como se livrar disso. A gente é filho do tempo, mesmo
que rompa, muitas coisas ficam.
ELYANA: Eu acho que é a idéia de complexidade, que ele fala em 1937. Ele
fala que “O real é complexo e fugaz”. Então são dois obstáculos que você
não tem como resolver. Você tem como driblar tem como ter um jeito para
lidar como. Mas você não tem como, são coisas que você não pode. Em
relação ao sujeito os limites dos sentidos e a questão da subjetividade. São
quatro obstáculos primeiros e permanentes. Aí, depois vêm aqueles outros
obstáculos, a generalidade, você generalizar, quer dizer, você dizer todo
livro é verde; não tem como generalizar, generalidade foi um obstáculo que
apareceu na história da ciência e prejudicou a historia da ciência.
ELYANA: Talvez ele seja contra essa idéia de desvelamento por causa da
teoria marxista porque na teoria marxista você trabalha com esta idéia de
desvelamento, você desvela o social, há uma idéia de desvelamento. E
como ele não gostava, quer dizer, eu não sei, ele não se importava com a
teoria marxista; não sei se porque ele sabe que a obra dele foi impedida de
ser divulgada por causa da teoria; então ele não dá bola para a teoria, então
ele vai falar exatamente isso, que nos pressupostos básicos da teoria
marxista há um desvelamento do real, o real está ai, ele é ocultado e você
desvela, descobre. Então, ele não usa a palavra desvelamento, nem
adequação.
ISA: Interessante a senhora dizer isso porque, assim, se a gente não tiver
cuidado, não sei se é experiência primeira, a impressão que a gente tem é
que ele é contraditório; pelo menos na experiência primeira, a gente tem
essa percepção.
ELYANA: Uma vez eu fui fazer uma palestra lá no PICE, tem uns sete anos,
e tinha um professor alemão lá, ele já foi embora, esqueci o nome dele, e ai
eu falei, falei, falei, falei, falei, falei, aí quando terminou ele falou assim:
“continuo positivista, acho tudo muito bonito, mas continuo positivista”.
Quer dizer, para o cientista da ciência dura é muito difícil compreender
Bachelard.
DENISE: mas essa foi uma coisa que a gente vinha conversando no carro.
Nós vimos um bonito trabalho que Isa encontrou na internet de uma
professora de química e eu lembro que a UFBA tem uma colega nossa que é
Soraia Freaza que é da química também e a gente ficou assim se
perguntando que tipo de interesse pode ter um químico hoje numa obra que
é pouco positivista como a de Bachelard, o que você diria sobre isso? Por
que os químicos mantêm o interesse por ele?
ELYANA: Mas às vezes fazem o trabalho por algum outro motivo, outra
demanda.
DENISE: Ou mesmo não é hegemônico; pode ser que seja uma coisa
isolada.
ELYANA: É!
NORA: E, naquele artigo específico, ela não chega a entrar numa relação
mais direta com a química; ela apresenta e faz uma política a favor, ela
concorda, apresenta de forma consistente o pensamento dele, mas não
chega a aproximar com nenhuma questão especifica da Química.
ELYANA: É... No Brasil e fora do Brasil. Tem um filosofo italiano, Carlo Vinti
[(Università degli studi di Perugia, Italia], que escreve muito sobre Bachelard
e educação, Bachelard educador, ele é bom. Carlo Vinti é bom!
ISA: Acredito que seja pelo fato de nossa educação estar voltada
atualmente para formar um pedagogo, um professor que seja um
pesquisador.
ELYANA: Porque vocês têm Piaget ou aquele russo, Vigotsky, pois é, mas
eles não dão cabo do que a educação está querendo.
ISA: E eu sei que o livro que antecede este, que é O novo espírito
científico, fala muito em relação à teoria da relatividade, que é um livro
mais condensado, que no caso foi esse que Sidarta passou pra gente,
ISA: Qual seria, na verdade, o titulo que não fosse a teoria da relatividade
para esse O novo espírito cientifico? Se fosse mudar, claro que é muito
difícil mudar, a gente estava conversando sobre isso, é muito difícil dar um
titulo. Mas só pra gente ter um entendimento mais claro do que ele quis
dizer.
DENISE: Precisa ver o que é que Newton instaura uma nova discursividade
como diria Foucault, ver o que é que Einstein instaura e Bachelard fazendo
essa retomada a partir de, como você disse, Galileu, Newton e Einstein.
ELYANA: tem aquela frase que ele fala também na formação que é mais
fácil um professor mudar de...
DENISE: Ele diz assim: “no decurso de minha longa e variada carreira,
nunca vi um educador mudar de método pedagógico, o educador não tem o
senso do fracasso justamente porque se acha um mestre. Quem ensina,
manda.” É um bom puxão de orelha!
ELYANA: Eu tive um professor que dava a aula em cima de um livro que ele
tinha; aí, no outro semestre eu ia assistir a aula dele, e eu falei: mas este
homem já falou tudo isso na aula passada... De onde será que ele tira isso?
Aí, eu descobri o livro...
NORA: tinha que cumprir o crédito... E por isso eu acho que o que me
encanta na obra é essa ênfase no método, na importância de estar vigiando
esse método, esse como fazer, como se aproximar do objeto, seja ele da
natureza que for.
ELYANA: Em Direito você deve ter encontrado muito professor que fica
repetindo porque não tem como não repetir por causa dos códigos.
ISA: Ele cita isso, que um pesquisador na primeira metade de sua vida pode
não ser nocivo, mas depois desse período...
ELYANA: É, é dele...
ELYANA: E que ele fala exatamente... Aliás, Bourdieu também utiliza muito
isso. Mas ele fala exatamente para a pessoa ser vigilante naquilo que faz,
para não cair nos erros que a gente cai.
DENISE: Uma das coisas que ele coloca, que é um dos grandes obstáculos,
é a utilização de metáforas. E cada vez mais nessas teorias pós-modernas, a
epistemologia da complexidade, se fala como a metáfora é inevitável e, ao
mesmo tempo, um obstáculo. Retoma-se muito isso em alguns livros mais
atuais falando como se fosse uma sereia que encanta. A metáfora tem essa
idéia de que é uma coisa encantadora e você usa, mas ao mesmo tempo é
muito perigosa e as vezes muito prejudicial até. Aí, o que é que Bachelard
diz? Que você começa a usar e isso vira um senso comum e as pessoas
usam facilmente aquilo como se soubessem o que estão dizendo e, na
verdade, é um pensamento muito acostumado, já não tem mais novidade
nenhuma naquilo.
ELYANA: Ele faz uma critica, quando vai criticar a metáfora, ele faz uma
critica a Bergson. Ele não suporta Bergson. Não sei qual foi o problema
entre os dois, mas ele faz uma crítica à metáfora de Bergson. E também faz
uma crítica, num desses livros, sobre a terra e o devaneio, ele faz uma
critica às metáforas que Frazer, um antropólogo, utiliza e aí ele cita, que é
interessante. Por que ele tem tanta raiva da metáfora? Alguma coisa
psicológica passa por ele.
ISA: Eu tinha preparado uma pergunta, mas acho que ela foi respondendo
no caminho, às vezes acontece, não é? Que seria assim, um tanto simples,
mas é bom frisar: qual seria a importância do erro que a gente citou no
fazer ciência para que se tenha uma concepção de verdade, essa verdade
que para ele não existe, dentro da epistemologia de Bachelard?
DENISE: a retificar...
ELYANA: a retificar!
ELYANA: Ah, sim, aí ele faz a critica à sintaxe do conceito que ele acha que
a sintaxe do conceito impede, é um obstáculo, para você ver: o conceito
dinamológico. Porque o conceito, a sintaxe, como a palavra res, por
exemplo, a palavra res significa coisa. A sintaxe prende, aprisiona a
possibilidade de você pensar diferente.
NORA: É o que você procura na hora que você está estudando. Pronto,
achou o conceito, acabou o trabalho, acabou o dever.
NORA: Talvez, se se tivesse ficado preso ao conceito fechado, e para que foi
criado, esse conceito fixo não teria aberto espaço para...
DENISE: Eu me lembro que, talvez pra gente finalizar, uma das coisas que
mais impacta a gente quando abre esse livro, Isa disse: é a primeira frase!
ELYANA: É, o Programa...
ELYANA: Ah! Mas ele só é Bachelard, é isso que eu ia dizer. Para mim, ele é
cópia! Mas quando eu cheguei lá na França disseram o seguinte: que
Thomas Kuhn foi visitar Bachelard, aí Bachelard perguntou: ele fala francês?
Disseram: não! Então, não quero falar com ele!
ELYANA: É, é.
ELYANA: Não é, não... Mas como um cara de língua inglesa, não é? Isso
facilita muito e Bachelard, não. Aí, dificulta mais.
DENISE: Mas, de todo modo, Elyana, você vê, eu estava fazendo uma
pesquisa para uma banca que eu fui e Bourdieu é o autor de sociologia mais
citado no mundo. Embora ele seja francês, Bourdieu. Mas Bachelard não
conseguiu, ele foi muito multiplicado. As idéias dele foram reproduzidas, não
citadas com o devido credito, e ele...
ELYANA: Mas ele se meteu na ciência, não é... Ele se meteu com a ciência,
quer dizer ele se meteu assim: “não, não é por aí, tem que pensar o erro,
tem que pensar no conceito dinamológico, tem que pensar na
fenomenotecnia, tem que pensar no racionalismo aplicado”. Aí, os
cientistas... Se bem que houve um colóquio na França, o Colóquio de Cerisy
[Colloques de Cerisy], muito importante em relação a Bachelard.
ELYANA: É verdade... Ele era muito ousado. Tem um amigo dele, chamado
Jean Libis, ele é diretor da Associação dos Amigos de Bachelard [Association
des Amis de Gaston Bachelard]. Libis diz que ele era muito ousado.
ELYANA: É interessante.