You are on page 1of 12
MARIA LUCIA DE BARROS MOTT A CRIANCA ESCRAVA NA LITERATURA DE VIAGENS RESUMO A partir da andl do corca de 80 obras cujos autores 2+ tiveram no Rio de Janeiro entre 1800 e 1850, 380 destacados, {do contexto goral da sociedade escravocrata ds tp0cs, 08 dados referentes & situagdo da crianga negra, seja coma ""mereadoria recémimportada da Alries, aja como fruto da reproducso de opulaedo j escravizada “A transcrigéo de trechos de relatos os visjantes europous revelam, em toda sua crusza, 86 condi {5es em que eram mantides as crianeae, su relacionemento com, 2 mie, com os petrdes, com o trabalho @ o valor que postuiam fenquanto “"moreadoria SUMMARY The article analyses about 80 books written by european travelers who visited Rio de Janeiro between 1800 and 1860, ata about the condition of the black child are detached from the general background of the slavocrat society, including the Imported save child as well at the hildren born from enslaved mothers. The traveler's descriptions reveal, in a cruel wey, the conditions endured by slave children, their relationships with their mothers and owners, their valué as labor force and ae 3 “merchandise” CADERNOS DE PESQUISA ¢ FUNDAGAO CARLOS CHAGAS 57 Este trabalho faz parte de uma pesquisa financiada pela Lundacdo Carlos Chagos que ver serdo reaizada, em colabora co com Miriam L. Morera Leite, sobte a mulher, na obra 30s jauantes estrengeiras que estiveram no Ria de Janeira, na pr mera metade ao secula XIX. As bras foram selacionadae a par Lit de bibliegratia de Paulo Berger (Bergor. 19641, obedecendo a de idioma — e um circunstancial: muitos livras foam descartados fem sequ0"terem sido wistos, por teem sesoparecido dos acervos das bibliotecas. Iniialmente, foram levantadss todos as obras ‘sus autores estiveram na Rio de Janeia (Provincia e Cidade) lente 1800 © 1850, que foram escritas ou sradueidae para 0 90": ugués, inglés, francés, alana e espanhol e que fazias meneS0 4 miner. Chegou-se assim a um numero aproximada de oitenta Para uma discussse mais setalhada da utlieacdo dersas fon tes, vejase “Dacumentarsa e Metodologia" om anexo E sie artigo preter aprerotar 2 ‘contribuicfo da literatura de viagens para o estudo da condigo da crianga escrava, na primeira metade do sé- culo XIX, Até 0 inicio do século XIX, 0s relatos de viagens so: bre 0 Brasil sio relativamente poucos, se comparados a0 rlimero de relatos encontrados a partir de 1808. Com a transmigraco da familia real portuguesa para o Brasil, foram abolidas as restrigdes impostas pelo antigo sistema colonial, iniciando-se um perfodo marcado pela presenca de estrangeiros, principalmente comerciantes, atrafdos plas possibilidades de mercado brasileiro ¢ latino-ameri ‘eano. A situagdo privilegiada do Rio de Janeiro tornou seu porto parada quase obrigat6ria para os navios em vie germ para a Asia, Africa e Oriente, A corte, por sua vez, procurou atrair cientistase artistas especialmente contra: ‘tados para retratar e estudar 0 pais onde se estabelecera ‘2 Coroa Portuguesa, assim como para dar um toque eu: Topeu a paisagem cabocla, Vieram ainda cientistas em misses organizadas por governos europeus, diplomatas, mercenérios, refugiados, missionérios ¢ até mesmo vist tantes motivados pelo simples prazer de viajar. Os rela: tos deixados por estes estrangeiros — diérios, cartas, re: latorios oficiais, guias de navegagGo, imigragio e comér- cio, dlbuns, memérias, livros de poesias para criancas & paradidéticos, ete, — apareceram publicados em grande Umero, sendo inclusive reeditados em vérias linguas, Jogo apés sua publicacio. A utilizagdo dessa literatura de viagens como fonte de documentacdo! j foi legitimada pelos historiadores; porém, sua utilizago de maneira acr{tica por parte de al uns estudiosos tem perpetuado, entre nos, concengdes preconceituosas repetidas infinitamente e que s6 agora estdo sendo revistas, como a da suavidade da escravido no Brasil e a escravidia como um vefculo de civilizagfo. ACRIANCA AFRICANA NO BRASIL Das sspctos chamam a atento na leitura dos relatos dos viajantes que estiveram no Rio de Janeiro entre 1800 e 1850. O primeira deles refere-se fs modificagées por que a cidade passou e seu reflexo no estilo de vida das camadas abastadas; 0 segundo, & presenca constante do escravo. Nestes cingienta anos, 0 trabalho escravo predomi: rnava tanto no meio rural como no urbano. A deman- da da méo-de-obra servil era suprida mais pela importa cio de africanos que pela reprodugo natural da popu: lagdo escrava, O crescimento vegetative dos escravos era pequeno, devido, entre outras coisas, & maior pro- oreo de homens do que de mulheres (principalmen- te no meio rurall, & baixa fertilidade das escravas e & alta taxa de mortalidade dos filhos dos escravos. A maior parte das criangas encontradas no Rio de Jane ro, no periodo, era, portanto, proveniente da Africa (Karash, sd). ‘Até 1831, quando foi fechado o mercado de escra- vos do Valongo (destinado aos escravos recém-chega- dos da Africa), sfo freqientes 05 relatos © as ilustra (Bes de criangas af colocadas 8 vend: Ebel (1824)? “Logo que chegam os navios negreiros — ocorréncia fre- quente — os escravos siio desembarcados @ depois que se restabelecem relativamente da viagem, no geral curt, 18 so expostos para serem vendidos. Hé dias fundeou um com 250 negros, na maioria criancas de dez @ quatorze ‘anos, que, acocorados nesses galpGes ern filas de trés, pe- Jo cho, assemelhavam-se mais @ macacos, dando mostra por sinal, de bom humor e satisfacio, embora repelen- tes no aspecto e depauperados ..)" (Ebel, 1972, p. 42). 1 Ag datas entre pardnteses que pracedom as citapbesreferom: 8 a0 perioda em que oviajantaestove no Brasil 58 CADERNOS DE PESQUISA * FUNDACAO CARLOS CHAGAS Mesmo no periodo de ilegalidade do tréfico (a par ir de 1831 até aproximadamente 1852, quando passou a vigorar de fato a Lei Eusébio de Queirés), em que preva leceu © contrabando, foram encontradas referéncias venda de meninos e meninas Lavollée (1844) “Aprés une traversée «environ cing neures, nous mines pied 3 terre au fond d'une baie, derriare le fort San: ta-Cruz (. ..) C’était a qu’avait 86 déposée une partie de a cargaison du négrier. Dés note arrivée, toute la ‘maison fut en mouvement |...) on nous introduisit dans un jardin ou une vingtaine de jeunes noirs de huit 4 dowze ans étaient rangés en ligne, les filles & part: la traite aussi semblait avoir sa pudeur (...)" (Lavoliée, 1852, p. 36)" A preferéncia pela importacéo de escravos jovens @ mesmo de criangas pode ser explicada pela maior facili dade com que se adaptavam ao trabalho, pela perspecti va de uma vida mais longa e portanto de trabalho por mais tempo, pela diferenga entre © prego do escravo adulto e da crianca, assim como pela crenea, geralmen- te difundida entre os senhores de escravos, que os criouw los (escravos nascidos no Brasil) eram menos déceis ¢ ‘menos ativos. © cartegamento dos navios negreiros era composto, principalmente ‘de escravos do sexo masculino. Néo se 2 "Depois de uma wavessia de perto de cincw horas nbs anor ‘amos no fundo de uma baia atrés do forte de Sante Cruz.) Era ld que estava dopositada’ uma parte do carga do traticanta 190 excrovos. Desde nossa chogada, toda a case Ficau em movimen: to (...) nos introduziram em umn jardim onde duas dezenas da Jovens nearas de oito 2 daze anos extavam em fila, a meninas 8 Parte: o trafico também areca ter sou pudor (...1". (As tad: «gies aprosantadas om notas de rods so da Aural FP" Ladino (-.-)“alziase do escrovo ou do indio que ié fa Portugués, tina instrugdoreligiosae sabia fazer o servigo ori Fio da cass ou dos campos” (...) (Ferreira, 1975, p. B19), sabe a0 certo se os africanos vinham acompanhados de seus familiares, apesar de algumas ilustragdes do Valon- go mostrarem mulheres amamentando criangas, pos sivelmente seus filhos. SGo raros os viajantes que fazem distinedo entre 0 negro recém-chegado, 0 escravo ladino? e 0 crioulo. ‘Quando esta distingdo é feita, notese uma tendéncia fem ressaltar aspecto “repugnante”’ e “seivagem” do afrieano recém-chegado em contraposiego a “civil zagio” dos escravizados a mais tempo e principalmen- te, dos mulatos. Tudo indica que a condigdo da crianga africana no Brasil diferia daquela da crianga crioula. A impossibi Hidade de se distinguir em muitos casos, uma de outra, neste tipo de documentacio, fez com que elas fossem ‘aqui consideradas por sua condigao comum de escravas. A CRIANGA ESCRAVA A santa cos do ara po sua une mateide ue 1816, sends mulees ards de tol tra (royce 1805p 105, 9 Ui Pomoppan tia gus em TEA la cetav ee rulers ingots Pontpoian, a, p87). Em 888, Scand do Gaels tio eon oR ere te Galo 980 p78, ev). aschaen, oancs tepals © eerowh randy onan Rs porta cram pete aor widcon, Aigner fared por Sim tomas prs ov eras ue to cesar ilmenite tener gue doom CADERNOS DE PESQUISA * FUNDACAO CARLOS CHAGAS 59 Adalberto da Prissia (1842), nas proximidades de Can- ragalo. “Enquanto eu me entretinha com as senhoras da casa, meus companheiros aproveitaram a oportunidade para irem ver 0 alojamento dos escravos, que ficava numa comprica e suja construedo de um sé piso que exterior- ‘mente tinha uma grande semethanca com uma cavala- rica. No Lazareto, que viram primeiro, encontraram en- fermarias, como os quartos também, separados para ambos 0s sexos. Uma negra estava deitada em sua este ra de junco amamentando 0 seu negrinho a quem dera & uz a noite anterior. ‘Dentro de dois dias voltard a0 trabalho’, disse 0 Doutor ao Conde de Bismark, a quem devo este relato (,..)” (Adalberto da Prissia, 1977, pp. 85:86). A razio da alta mortalidade das criancas escravas & apresentada como sendo resultado da volta a0 trabalho a escrava parturiente num espaco de tempo curto: cer- cade 16s dias Saint Hilaire (1815-1822). “(...) Quando teve inicio a campanha da aboli¢so da escravatura, © governo ordenou aos proprietérios de Campos que casassem seus escravos, alguns abedeceram a essa determinacéo, mas outros responderam que seria iniitil dar maridos as negras porquanto no seria possivel ceriar seus filhos. Logo apés os partos essas mulheres ‘eram obrigadas a trabalhar nas plantagées de cana, sob 0 so! abrasader, e, quando apés afastadas de seus filhos durante parte do dia, era-thes permitido voltar para jun- 10 deles elas levavam-Ihes um aleitamento defeituoso; co: ‘mo poderiam as pobres criancas resistir 4s cruéis misé- vias com que a avareza dos brancos cercava seus bercos? 1... (Saint-Hilaire, 1974, p. 201) ‘A maneira pela qual as escravas amamentavam e car- regavam seus filhos deve estar relacionada com as ativide des que desempenhavam. Quando néo havia quem cuidasse da crianca, ela era incorporada ao trabalho exe: cutado pela mie. Schlichthorst (1825-1826): “....) Nada mais comum do que uma negra que carrega 0 filho as costas, amamenté-fo, dando-Ihe o peito por ci ‘ma do ombro ou por baixo do braco |..." (Schlich- thorst, 1943, p. 131). Walsh (1828-1829), nas proximidades de Iraj: “L..1 In a large fallow, in the midst of this green amphitheatre, were from eighty to one hundrod negroes of both sexes; some with infants strapped on their backs, in a rank, breaking up the ground for fresh crops with hhoes {...)" (Walsh, 1830, p. 15, 29 v.)* Kidder (1837-1840): “4,...) A cérca do meio do caminho entre éste bairro e 0 contro, fica o das Laranjeiras. Limpido arroia saltita no fundo de um precipicio cavado nas fraidas do Corcova: do. Passeando-se pelas margens podemse contemplar inimeras lavadeiras dentro digua batendo roupa sobre as pedras que se sobrelevam 4 corrente. Muitas delas saem da cidade pela manh3, com enorme trouxa sObre a eabega e voltam 4 tarde com toda ela lavada e enxuta. Em diversos lugares véern-se pequenos foges improvisa- dos onde preparam as refeicGes e grupos de criancas brin- cando pelo chio, algumas das quais, jd grandinhas, cor- ram atras das mées. As menores, porém, vao penduradas 4 costa das escravas sobrecarregadas com a mala de rou- ‘pas (...J" (Kidder, 1972, p. 971. Ewbank (1846): “As jovens pretas minas © mocambiques sf0 as mais nu- merosas, sendo consideradas como as mais espertas ven: dedoras. Muitas delas leva consigo tembém uma crian- ¢2, que prendem as suas costas por meio de uma faixa amarrada 20 redor da cintura. Entre 0 pano @ 0 seu cor- po, @ crianca aninhasse e dorme. Quando acorda, espia curiosamente para fora camo andorinha implume, es: preitando pela beirada do minho. Para proteger a crian- ¢¢2 contra 0 sol, @ negra coloca uma jarda de tecido de a god na parte de trds da caixa que leva sobre a cabeca: (© pano serve como cortina e conforme seus movimentos atua também como uma espéicie de leque” (Ewbank, 1976, p. 80). Nas proximidades de Macacu: “Nesta fazenda fazemse tijolos e telhas em grande quan: tidade. Sob um telheiro estavam negras jovens e madu: ras, quase completamente nuas, sd com uma tanga, € ‘algumas com criancas presas as costas, inclinadas sobre bancos e pondo 0 barro em moldes, @ tendo os braces @ as pernas cobertas @ as faces marcadas por ele” (Ewbank, 1976, p. 276). A relacdo entre o senhor e a crianga escrava, até cer 1 de cinco ou seis anos, & muitas vezes descrita pelo vie jante como sendo afetuosa. Ewbank, visitando uma fa zenda nas proximidades de Macacu, encontrou um se- hor vivo que tinha uma crianca sentada em seus joe- thos e outras brincando ao seu redor (Ewbank, 1976, . 274). Cena semethante foi descrita pela Baroneza de Langsdorff (1842-1843). “Mon mari m‘a quittée pour aller aux Orgues passer trois jours. J'ai diné chez Mme de Saint-Georges. Aprés diner nous sommes descendues dans son jardin; elle s‘est arrétée dans sa course. Les petits négres ont criés ‘pour se promener avec elle: elle a été materneliement les caresser, a appelé une négresse, a fait mettre une che- mise & ceux qui n’en avaient pas, a fait laver les mains de ceux qui les avaient sales, me demandant si je voulais, bien attendre” (...) (Langsdortf, 1964, p. 107)*. 60 CADERNOS DE PESQUISA * FUNDACAO CARLOS CHAGAS Mme Langsdorff notou que esta relago afetuosa co- rnhecia um limite. As criangas eram obedientes e no se misturavam quando ngo tinham permissio para tal, ‘mesmo em divertimentos to irreverentes como o entru- do. Para Debret (1816-1831), as criancas eram conside radas como espécies de bichinhos domésticos: 1... 08 dois negrinhos, apenas em idade de engatinhar @ que gozam, no quarto de dona da casa, dos privlégios do pequeno macaco, experimentam suas forcas na estei: va da criada (...)" (Debret, 1978, p. 186, 19 v.). “No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, & costume, durante 0 “tetedtete”’ de um jantar conjugal, que 0 marido se ocupe silenciosamente com seus nego clos @ a mulher se distraia com os negrinhos que subs- tituem 0s doguezinhos, hoje quase completamente desaparecides na Europa. Esses molecotes mimados até 2 idade de cinco ou seis anos, so em seguide entreques 4 tirania dos outros escravos que os domam a chicota- ‘das @ 0s habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho" (Debret, 1978, p. 195, 19 w.). ‘A idade de cinco a seis anos parece encerrar uma fa se na vida da crianca escrava, A partir desta idade ela aparece desempenhando alguma atividade. Das obras e- vantadas para @ primeira metade do século XIX, talvez seja a de Debret aquela que apresenta um maior name- ro de crianeas escravas trabalhando. Algumas aparecem exclusivamente nas pranchas, outras sfo acompanhadas por texto, No meio rural, as mulheres @ as criancas desempe- nhavam freqilentemente a mesma tarefa, como por exemplo descascar mandioca, descarogar algodo @ ar- rancar ervas daninhas. Mawe (1807-1811), a caminho de Cantagalo: “(...) Alguns filhos dos negras brincavam, outros de ida- de mais avangada, ajudavam as mulheres a descaragar al- ‘godéo, @ os homens ralavam e preparavam mandioca” (..-) (Mawe, 1978, p. 92). [Nas ilustracées, os meninos aparecem, em geral, car regando alguma coisa: guarda-chuva, trouxa de roupa, ve- las para pagar promessas do dono, etc. Eram eles ainda 4 "(..) Em um grande terreno layrado, no mao deste anf teatro verde, ertavam de oitenta a cer negras dos dois 22x08 alguns deles com babes amarrados nas suas costs, om fla cavan {oa terra com enxadas para platio soe) Nou marido me deixou @ fot aos Oras pastar tls las, Eu jantel na cass da Sra, de Soint. Georges, Depois do jantar 1s fornos 20 Jardim: ela parou no meio do caminho. Os neat Ios grtaram para passaar com ela; ela maternalmente Os 2973 ‘dou, chamou uma napra, mancou colocar uma blusa naqveles ‘ue no 8 tinham, laver as mos daqueles que as thar suas, € me padiu para esperar um pouco (..-} que levavam os recados (dai a expresso moleque de re- ceado), ou que faziam pequenas compras e buscavam en- comendas. Debret (1816-1831): “Um negrinho de casa rica acaba de encher um saco com uma proviso de pao para seus senhores, enquanto um ‘moleque e uma negra compram 0 piozinho de vintém in lipensdvel para 0 almoco" (Debret, 1978, p. 362, 19 v.) “I...) © negécio (venda de pio-de-i6) é tanto mais in teressante quanto as familias brasileiras so em geral nu- ‘merosas. A venda nas ruas nio é menos lucrativa, pois se ‘quer 0 negrinho enviado a recado de manha deixa de ti- ‘ar do dinheiro que Ihe & confiado 0 vintém necessério 3 aquisicso de pao-dels (. . .)" (Debret, 1978, p. 342, 1 v.). ‘As meninas so representadas carregando as coisas dda senhora ou cuidando de criancas. “(..«) Neste momento ela se ocupa com fazer assar esp 192s de milho na brasa; jé uma negrinha, encarregada de ppassear com um negrinho, come uma dessas guloseimas que acaba de comprar para passar 0 tempo agradavel- ‘mente |...) (Dobret, 1978, p. 247, 19 v.) Os filhos pequenos do dono da casa muitas vezes possuiam escravos para o seu servigo particular. Esses es ccravos eram, em certas casas, mais novos do que aque- les a que serviam. “A mulata representada aqui & da classe dos artitices abastados. Sua filhinha abre @ marcha conduzindo pela CADERNOS DE PESQUISA * FUNDAGAO CARLOS CHAGAS 61 ‘mio um negrinho, bode espiatério a seu servio parti cular (...)" (Debret, 1978, p. 164, 20 v.) © séquito de escravos que acompanhava a saida do senhor @ sua familia, nos passeios, nas visitas, nas idas 3 igreja e que acompanhava a menina da casa quan- do ia & escola, simbolizava a abastanca do chefe de fa milia e reproduzia a hierarquia social. Como afirma Debret, 0 cortejo de escravos em fila indiana caiu em desuso no periodo final da sua estada, em 1831 (por volta de meados do século, as mulheres jé davam braco a0s cavalheiros, durante os passeios). Enquanto per durou o costume do cortejo, as criancas escravas eram colocadas em ditimo lugar na fila, sendo que as criancas escravas, nascidas no Brasil, antecediam as recém-che- gadas da Africa. Caldcleugh (1819-1821) “...) At an early hour the household prepares for church, and marches, almost without exception, in the following order: first, the master, with cocked hat, white trowsers, blue linen jacket, shoes and buckles, and a gold headed cane; next follows the mistress, in white muslin, with jewels, 9 large white fan in her hand, white shoes and stockings; flowers ornament the dark hair: then follow the sons and daughters; afterwards a favourite ‘mulatto girl of the lady, with white shoes and stockings, perhaps two or three of the same rank; next, a black ‘mérdomo, or a stewart, with a cocked hat, breeches and buckles, next blacks of both sexes, with shoes and no stockings, and several others without either; and two or three black boys, little incumbered with clothes, bring up the rear’ (Caldcleugh, 1825, p. 64, 19 v.)® No servigo doméstico, a crianga escrava tinha ainda ‘outras tarefas como por exemplo ajudar na cozinha, ser vir a mesa, buscar Squa. Meninos e meninas escravas eram empregados na venda de mercadorias. Debret (1816-1831): “(....) Perto deste e da porta pequena da vends, outro negro, orgulhoso da linha vermelha tracada na testa, adguire um pacote de polvitho a um pequeno ven: dedor de nove 2 dez anos; em cima uma negra dispée-se 2 vingar com um limo, um punhado de polvilho que the cobre 0 olho (Debret, 1978, pp. 301-302, 19 v.)” Em algumas profissdes, principalmente naquelas relacionadas aos oficios mecénicos, os escravos eram ini- ciados desde pequenos. Debret apresenta, em uma pran- ccha sobre os barbeiros, um menino girando m6 de afiar navalha (Debret, 1978, p. 211, 19 v.]. Os meninos tam- bém participavam da banda de misica dos barbeiros, como mostra a ilustragdo de Ewbank (Ewbank, 1976, p. 192) ‘A alfabetizacao dos escravos, segundo Walsh, no era, em geral, desejada por seus proprietérios, Talvez acreditassem que eles fariam mal uso dela (Walsh, 1839, . 438, 19 v.]; alids, a mesma justficativa utilizada para explicar @ pequena atencdo dada a instrucdo feminina. Luccock, em sua ultima descricéo do Rio de Janeiro, enumera algumas transformacdes ocorridas na cidade, dentre elas 0 aumento do numero de escolas. Transcre: ve um andincio saido na Gazeta do Rio de 9 de julho de 1814, onde um morador na Rua do Lavradio oferecia-se para ensinar a ler, escrever, contar, etc. “a quem quiser mandar as suas ‘filhas, © as suas crias e escravas’”® (Luccock, 1820, p. 567). ‘A partir da leitura dos relatos de viagem néo se po: de afirmar que as criangas brancas ou negras, livres ou escravas apanhassem de seus pais. Quando os castigos corporais sG0 descritos aparecem exclusivamente na re- lagdo senhor/escravo (adulto e crianga). Walsh (1828-1829) “immediatly joining our house was one occupied by 2 mechanic, from which the most dismal cries and moans constantly proceeded. | entered the shop one day, and found it was occupied by a saddler, who had two negro boys working at his business. He was a tawny cadave- rous-looking man, with'a dark aspect; and he had cut from his leather 2 scourge like a Russian knout, which hhe held in his hand, and was in the act of exercising on ‘one of the naked children in a inner room: and this was the cause of the moans and cries we heard every day, and almost all day along” (Walsh, 1830, p. 365, 29 v.)” Os grithdes — mascaras, colar e correntes de ferro eram usados em escravos de qualquer idade. Debret (1816-1831): “(...) Sendo ainda crianca 0 escravo, o peso da corrente 6 de apenas 5 a 6 libras, fixendo-se uma das extremids- des no pé e outra a um cepo de madeira que ele carrega 4 cabera durante 0 servico (....)" (Debret, 1978, p. 344, 10). Para livrar 0s filhos, os irméos, ¢ asi préprios da es cravidlo, os escravos nfo raro recorriam a fuga, 20 suici- dio e 20 assassinato. Walsh (1828-1829): This horror at slavery is carried to such as extent that they not only kill themselves, but their children to scape it. Negresses are known to be remarkably fond mo- thers (...) yet this very affection often impels them to ‘commit infanticide. Many of them, particularly the Minas slaves, have the strongest repugnance to have children, and practise means to extinguish life before the infant is born, and provide, as they say, against the affliction of bringing slaves into the world” (...) (Walsh, 1830, p. 349, 20 v.)'° Para obter a alforria de suas criangas, os escravos convidavam, muitas vezes, uma pessoa de influéncia pa- 62 CADERNOS DE PESQUISA ¢ FUNDAGAO CARLOS CHAGAS +a padrinho, a fim de que pela compra, the fosse assegu rada a liberdade. Rugendas (1821-1825). “Hd, no Brasil, para muitos negros, um outro meio de conseguir a liberdade: & 0 costume que tém as negras de convidar gente de certa categoria para padrinhos de seus filhos, 0 que ninguém tem coragem de recusar, sem provocar um descontentamento geral. Tal incum éncia, Jonge de diminuir, & encarada em virtude das ‘déias religiosas do povo e de influéncia do clero, como ‘muito meritéria. O pequeno escravo estd quase assegu- rado da aquisicao da liberdade pelo padrinho, 0 que é tanto mais féci! quanto 0 prego do negrinho & insigni- © "desde cedo, a6 pessoas da casa se praparam para ir 3 jae andar, quase som excosso, na squite order: primeito, © dono da casa, com tricornia, caleas broncas, palet® azul de i ‘ho, sapatose fvelas, © uma Bengala de cabo de Ouro: em sequ ds, 8 senhora de musslina brance, com jolas, um grande leave re mao, meiss © sapatos brancos p flores arnamantendo os eabe- los escuros: a soguir, 0 filhoee fihae: depois a mulata favorite de senhora, com sepotos © mes brancas, talvee mas dus Ou tres 38 mesma cancigso; depo's. 0 mardomo negra, com trieérnio, ea: 28 e fveias: saquer ainda negos dos dois sexos, com sapstos ® sem meias,e varias outros sam sapatos ¢ som meias; Finalmente {ois ou tés meninos negros, pouce cobertos com roupas, Fecha A ortdem ds pessoas, na fila, apresontada por Debret@ Fu gordas, ¢ um poucodiferente, As craneas que i caminnar so has estéo colocadas entre © pai v a mie, as pequenas no colo {de uma escrava que vai logo atras da senhora. Quando o pal no ‘ ropresantado, as criangae abrem a marcha ficante, raramente ultrapassa 60 a 80 piastras’” (Rugen- das, 1976, pp. 149-150). A roda dos expostos parece ter sido utilizada pelas escravas como meio de livrar 0s fithos da escravidio, co. mo também pelo proprietério que no queria se respon- sabilizar pelos encargos da criag3o da prole de seus escra- A roda recebia criancas de qualquer cor e preserva va 0 anonimato dos pais. A partir do alvaré de 31 de ja- neiro de 1775, as eriangas escravas, colocadas na ro. da, eram consideradas livres. Este alvaré, no entanto, foi letra morta e as criangas escravas eram devolvidas a seus donos, quando solicitadas, mediante o pagamento das 7 Este texto faz parte do capitulo sobre 0 carnaval @ prancha correspondente. © pequeno vendedor, Je anos, a quo Deorat se rater 6, na ilustragdo um menino neg. a are Luccock, era significa criade, cacao lac da nossa era ceupada por um artifice, Oe i ‘ouviam-e canstantamente os male horrivels gritos # gemido 1705 trabalhando pare ee, Ele era um homem morene de aspecto adavirica © sombrio: tinha feita um agaite de coura camo umn azorrague russo, que surava om sua mao o so exercitava, dentro Je uma sala, em uma das erianeas que estava nus; esta ora a causa dos gritos ¢ dos gomidos que ouviamas todos os dias e quase © 10° “Este horror 3 escravidio 6 to grande, que eles ndo s6 50 sulcidam como também maton sous fihos para escapar dela 'As nearas S30 contecidas como Sendo Stimas mies (as ‘mesma amor freaidentemente as leva a cometer infanticisio. Va Flas dela, sobretudo a6 nagras Minas, tom a maior aversio a ter filhos @ provocam aborto, procavendo se asim, contra 0 dexgosto be dar a vida a exravas" CADERNOS DE PESQUISA * FUNDAGAO CARLOS CHAGAS 63 despesas feitas com a eriagdo, Em 1823, saiu um decreto que considerava as criangas da roda como Orfds e assim 05 filhos dos escravos seriam criados como cidadéos, gozando dos privilégios dos homens livres. Contudo, na pritica, isto nem sempre acontecia Maria Graham (1821-1823) “Bui ao asilo de drfa0s, que & também o hospital dos ‘expostos. Os rapazes recebem instrucdo profissional em jdade adequada, As mocas recebem um dote de 200 mil réis que apesar de pequeno, a6 ajuda a estabelecerem-se @ 6 muitas vezes acrescido por outros fundos. (...) Den- tro de pouco mais de nove anos foram recebidas 10.000 criancas: estas eram dadas a criar fora, e de muitas nun- ca mais houve noticia. Ngo talvez porque tédes tenham ‘morrido, mas porque @ tentacgo de conservar uma crian- ca mulata como escrava deve, 20 que parece, garantir 0 cuidado com sua vida (. . .)" (Graham, 1956, p. 345). Joaquim Manuel de Macedo, em A Luneta Magica, faz 0 mesmo tipo de dendincia, acrescentando que mui- tos senhores utiizavam os atestados de Obito dos escra- vos mortos para os enjeitados, transformando estes ilt- mos em escravos (Macedo, 1972, pp. 204-205). Por volta dos doze anos as meninas @ os meninos es- cravos eram vistos como adultos, no que se refere ao tra- balho e & sexualidade. Rugendas (1821-1825), referindo-se as fazendas do ‘lero “l...) Até a idade de doze anos as criancas néo sio obri- gades 2 trabalhar; apenas limpam os feijdes e outros cereais destinados @ alimentacdo dos escravos ou cuidam dos animais, e executam pequeninos trabalhos domés- ticos. Mais tarde, as mocas e os rapazes so encaminha: dos para os campos. Quando um menino mostra dispo- sigdes especiais para determinado of icio, élhe este en- sinado, a fim de que o pratique na propria tazen- da” |...) Rugendas (1825-1826). ‘Schlichthorst (1825-1826) “Doze anos & a idade em flor das africanas. Nelas hé de ‘quando em quando, um encanto téo grande que a gente ‘esquece 2 cor. As negrinhas sao geralmente fornidas @ s6- lidas, com feicbes denotando agradével amabilidade, @ todos os movimentos cheios de graca natural, pés e més: plesticamente belos. Labios vermelhos-escuros e den: tes alvos e brilhantes convidam ao beijo. Dos olhos se irradia um fogo tio peculiar e 0 sefo arfa em to ansio- ‘80 desejo que é dificil resistr a tais sedupSes. Até o dig- ‘no Clapperton muitas vezes compartilhou as mesmas sen- sacoes que me assaltavam no momento, sem disso se en- vergonhar. Por que deverei eu me deixar influenciar pe- Ja soberba européia e negar um sentimento que néo se originava em baixa sensualidade, mas no puro agrado ‘causado por uma obra prima da criacéo? A menina que se achava d minha frente era, a seu modo, uma dessas ‘obras primas da criacéo e, para ela eu me podia servir das _palavras em inglés; “a beautiful negro lady” (Schlichthorst, 1943, pp. 203-204). Excluindo-se © trabalho e a sexualidade, em tudo ‘mais os escravos eram considerados como criangas, crian- ‘8 grandes, pelo resto da vida Preiffer (1865) “Hl n'y a pas d’école etablie pour eux (négres); ils ne regoivent ancune instruction; en un mot, ane ne fait rien pour developper leurs facultés intellectuelles. On les ‘maintient 4 dessein dans une sorte d’enfance, suivant le vieil usage des Etats despotiques, car le réveil de ce peuple opprimé pourrait étre terrible” (Pfeiffer, 1865, p. go)!" A FAMILIA A poser de senichtnors atime ‘que néo se separava, na hora da venda, a escrava de seus {ilhos, parece ter sido norma néo se respeitar os tacos de parentesco (Schiichthorst, 1943, p. 135). Os hor rores da separacio de mie e filho, a dissolucdo de fam lias e a venda de filhos mulatos ¢ escravos pelo pai, fo- ram temas sobre 0s quais quase todos os viajantes es creveram, como também foram temas explorados por uase todos of escritores abolicionistas. 0 rrelacionamento entre os sexos, @ vida familiar, 2 moradia dos escravos eram regulamentados pelo pro- prietério. Mesmo na escolha do par para casemento, prevalecia @ vontade do dono. O casamento era encara do pelo senhor sob dois prismas: como uma maneira de reter 0 escravo na propriedade evitando roubos e fugas ‘ou como um estorvo, jé que 0 casamento dificultava ¢ ‘até mesmo impossbilitave @ venda de um dos cOnjuges. (© proprietério, em geral, nfo encorajava 0 casamen- to entre 0s escravos. O negro era considerado um ser in termediério entre os homens @ os animais, sem condi 80 ou necessidade de casarse. van (1844) a caminho de Nova Friburgo: Ce que je fais de mes négresses? Mais je les emplois suivant le but de la nature; elles font des enfants. = Est-ce que chacune d’elles est pourvue d'un mari? reprise. 11") Nao ha escola para eles (negros), no racebiem ne. nhuma instrugio. Nada 6 foto para que els deanvolvem as fo Culdades intelectuais. So deixados 8 sua prépria sorte @ mant dos numa expécie de Infancia, sogundo o velho costume dos Pat tee despoticnr, pols 0 despertar desta pove oprimido poderia sor terrive” 64 CADERNOS DE PESQUISA * FUNDACAO CARLOS CHAGAS Donnez-vous dans un troupeau un bélier 4 chaque brebis et un boue 4 chaque chévre en légitime mariage? repartit le fazendeiro” (Yvan, 1853, p. 120)'? © que parece ter prevalecido eram as unides ocasio- nals entre escravos e escravas e entre o senhor @ as escra- Debret (1816-1831) “Como um proprietério de escravos no pode, sem ir a0 encontro 4 natureza, impedir aos negros de freqilents: rem as negras, terse por habito, nas grandes propried des, reservar uma negra para cada quatro homens; ca- be-hes arranjar-se para compartilharem soscegadamente 0 fruto dessa concessio, feita tanto para evitar os pretex: 10s de fuga como em vista de uma procriacao destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade” (Debret, 1978, p. 268, 19 v.). escravo, como objeto de propriedade, nao tinha Jireito a sua prole. Ela pertencia ao senhor. A escrava era vista como reprodutora, sobretudo de mulatos, ji ue 0 ventre materno determinava a condigdo do filho. Schlichthorst (1825-1826). “L..) A riqueza dessa gente modesta constava de uma easinha e de alguns negros, que trabalhavam na Alfén: dega. O capital crescia. com um bando de moleques, de tempos em tempos aumentado pela extraordindria ferli dade das negras ou, como dizia a velha — pela bencio do céu" (Schlichthorst, 1943, p. 7) Lavollée (1844). “{.. «) Les négres étaient plus dgés et plus robustes; ils arraissaient avoir beaucoup moins souffert de la tra- versée. Quelques négresses, cont l'ége promettait des mulétres (c'est ainsi que s‘exprimait le maitre), se te- naient 4 ('écart et attendaient 1a visite comme des filles perdues (.. .)” (Lavoliée, 1852, p. 39)"°. Yvon (1844), nas proximidades do Corcovado: ‘— Vous arrivez & propos, docteur, on vient de m‘ame- ner Juana, ronde comme un coco! Elle dit qu'elle va ‘accoucher, cette pécore!... Ou done a-telle pu pecher cet enfant?. 6...) A cet dge, un accouchement peur la tuer, n’est-ce pas, docteur? Si du moins elle allait me donner un rmu- létre! quoique plus méchants que ces canailles des négres, ils sont plus intelligents, et, par le temps qui court, cela se vend mieux. ..”” (Yvan, 1853, p. 70)'* Isto_resultou numa instabilidade familiar muito Grande. O seu reflexo nos relatos talvez possa ser avalia do pela quase total auséncia de dados sobre a relacio entre 0 pai escravo e 0 filho @, entre irméos escravos. A figura da mie é a mais constante, porém s6 nos pri- meiros anos de vida da crianca, enquanto ela depen- dia do seu cuidado. A mulher negra 6 vista pelos via jantes como sendo boa mie © amorosa de seus flhos ‘A relagdo entre 0 pai proprietério e seu filho es- cravo poucas vezes foi descrita como indo além da re lagdo senhor/escravo e mereceu a reprovagao dos via jantes, principalmente pelo nfo reconhecimento do filho pelo pai A MERCADORIA Se + pertecess wing ere dora da caso costontc epee Uns dus par eo hareads noo, enten nba ao, tease coc cel dao arco ae oe prerorie etnies” abe, 1978, 6 09, wel ‘A relagio do senhor com as criancas pequenas de seus escravos foi descrita por varios viajantes como sen- do afetuosa, A afetuosidade significa algumas cegalias ‘que no questionavam a relacio senhor/escravo e devia estar relacionada & idéia de inocéncia da inféncia, pois acreditava-se que as criangas negras, como as brancas, ‘ransformavam-se em anjos depois de mortas. O que no entanto definia a relacdo entre o senhor e a crianga es- crava era o seu valor enquanto mercadoria. Os filhos dos escravos sobreviviam com dificulda de. O preco de uma crianga pequena é sempre mencio- nado como sendo uma ninharia. A alta taxa de mortal dade das eriancas pode ser atribufda 30 excesso de tra balho da mie durante a gravidez e aps 0 parto, & mé ali mentagio da mie e do filho e as precérias condicdes de higiene ento existentes. As facilidades em se adauirir ‘© escravo faziam com que se desse pouca atencio a reprodugo natural gun: (© que eu faco de minhas negras? Mas eu as emoredo so: 4 aia propria natureza’ eas proeriam ~"Cada uma poesui um marido? porgunte Costuina-se dar, um rebanho, um earner a cada avelha © lum bode @ a8 eabra er leaitima casamento? respondex 0 fa va | Os negros exam mais velhos e mais rabustos, Els pa reclam tar sofrida bem menos na travesia, Alqumas negra, cui8 ‘dade prometia mulator (ora assim que a exrimia o senor Tea vom separadase esperavem visitas como prostituas |.) seo’ aenhor chegou em baa hora doutor, acabaram de me ‘razor uana, redonda como um coco! Ele diz Quo vai pare sta testa... Onde soré que ela pescou esta eriancal.- (=) Un arto, 8 este idede, pode mati, nao & outor? Se a0 menos la me der um mulatol Ainda que piores que esta coria de negro, flee #80 mals inteligentes © nos tempos atuss so vendios mai faciimente 1" 15" "Esta imagor contrasta com a indiferenca em relaclo 20st thot atribuido & mie Indigena, (Eweank, 1876, p. 109). Neste sentido serie importante verifiar quais 85 origens do culto a mae nears, CADERNOS DE PESQUISA * FUNDACAO CARLOS CHAGAS 65 Nao se pode negar, porém, que nio tenha havido expectativa do proprietério em relagdo a0 nascimento @ 8 sobrevivincia dos filhos de seus escravos. Walsh refe- rese a uma lei que estabelecia ser alforriado 0 escravo ‘que desse dez filhos 20 seu senhor (Walsh, 1830, p. 342, 2.) ‘A preteréncia do proprietério parece ter recaido so- bre as criangas mulatas pois eram consideradas mais inte ligentes, preferidas para 0 servigo doméstico e obtinham melhor preco. Walsh observou, no entanto, que nas fa zendas do clero, tomava-se 0 cuidado de preservar a cor escura dos escravos (Walsh, 1830, p. 352, 29 v.), (© maior ou menor cuidado do proprietario com a sobrevivéncia das criancas escravas parece estar relacio- nado com sua situacio econémica, Para aqueles que pos: suiam poucos escravos e viviam do que eles ganhavam diariamente, a prole das escravas era vista como uma "pencao dos céus". A impossibilidade, por falta de ca pital, de adquirir um escravo, parece ter levado a um. maior cuidado com as criancas nascidas na casa. Para aqueles que possu‘am um capital maior e precisavam de ‘um escravo como forga de trabalho imediata ou dentro do menor prazo possivel, © investimento na mie, pelo afastamento do trabalho por certo tempo, ou no filho, até que estivesse em idade de produzir, era talvez, vi 10 como sendo oneroso. Pode-se perguntar, ainda, se ngo teria havido uma modificaggo no tratamento dispensado as criancas quan: do ocorreu aumento do preco do escravo pela proibic do trafico (1831) e pela expansio cafeeira no Vale do Paraiba, Dois relatos da década de quarenta fazer mencdo a fazendas de criar escravos. Melchior Yvan, que esteve por cerca de um més no Rio de Janeiro, diz a certa altura, ter pernoitado na casa de um fazendeiro de as- ecto misterioso cujo vizinho the afirmou, mais tar- de, tratar-se de um francés, que se dedicava a "’élevage du négre" (Yvan, 1853, p. 127) Ewbank, inglés radicado nos Estados Unidos, re fere-se ao fato de ter encontrado em uma fazenda, nas proximidades de Macacu, dos Frades Carmelitas da lgre ja da Lapa do Rio de Janeiro, principalmente mutheres e crriangas. Seus donos achavam mais rendoso criar negros do que plantar café (Ewbank, 1975, p. 276). Esta pesquisa tem como data limite 1850. Seria im portante verificar se as condigdes de sobrevivéncia da crianga escrava se modificaram nos anos que separam a extingdo do tréfico (por volta de 1852) da Lei do Ven- tre-Livre (1871), para se poder avaliar 0 significado ¢ 0 aleance da Ie. Vista 8 luz da condiggo da crianga escrava, na pri meira metade do século XIX, pode-se afirmar que, apesar dda aura de benevoléncia e humanidade que cerca @ Lei do Ventre-Livre, ela ngo foi fruto de uma moditicacao ‘na maneira da sociedade encarar 0 escravo e sua familia ‘mas foi, antes, uma herdeira direta dos quatro séculos de escravidéo. A pouca importancia que a sociedade dava & familia escrava esté consubstanciada no corpo da propria lei . ini) DOCUMENTACAO E METODOLOGIA A. recuperagio do material escrito e iconografico deixado pelos viajantes é uma tarefa que esté por se rea. lizar. As bibliografias existentes limitamse, via de regra, 205 livros raros, excluindo os artigos saidos em jornais e revistas especializadas ¢ 0s manuscritos. A localizacdo dos livros de viagens requer uma pesquisa que extrapo: la 08 limites do Brasil e dos organismos oficiais, pois 0 valor comercial destes exemplares tornou-se objeto de rendosa especulacdo. Assim, 0 que existe arrolado é ape: nas um némero aproximado daquilo que se escreveu s0- bre o Brasil ‘A importancia de um levantamento sistematico do material deixado pelos viajantes e 2 organizaglo de bi: bliografia regionais reside na sua importancia como fon- te de documentagio, Uma andlise critica em profundi- dade deste material abriria certamente novos dngulos de pesquisa assim como possibilitaria um novo dimensio- namento do nosso passado. ‘Como fonte para 0 estudo da crianea branca (bra- sileira e imigrante), negra, indigena e cigana, a literatu- ra de viagens oferéce importante contribuigo e mere- ce ura pesquisa detalhada. Os dados encontrados po- dem ser classificados em: nascimento, amamentacdo, alimenta¢o, indumentéria, educardo, ocupacao, diver- timentos, instrugdo, religido, higiene e satide, e ritos fu nerérios. Durante o levantamento dos dados sobre a crianca eserava nos relatos de viagem, surgiram algumas dificul dades. A primeira delas refere-se 3 sua condicdo de es- crava, Nem sempre foi possivel se determinar a quem 0 Viajante estava se referindo, se 20 negro livre ou escra- Vo; freqiientemente ¢ omitida a condigdo jurfdica do in- dividuo e negro e escravo $80 usados como sindnimos. A distingo entre o escravo africano e o crioulo (nascido ‘no Brasil) também raramente 6 feita. Menos do que in- validar a documentagio, estes dados merecem ser avalia- dos e podem refletir, entre outras coisas, a situago s0- ial do negro livre e do escravo na sociedade brasileira. ‘A segunda dificuldade enfrontada refere-se a sua condigo de crianga. Nos textos de lingua inglesa, al- 66 CADERNOS DE PESQUISA * FUNDACAO CARLOS CHAGAS ‘uns termos — como boy, girl, lad — so empregados para uma faixa etéria bastante ampla. Quando nao so ‘acompanhados de idade, nem sempre foi possivel se de- terminar a quem — e crianca, joven ou adulto — 0 av- tor estava se referindo. ‘As palavras rapaz, rapariga, moga, moleque, cria, brinquedo, ama e certos diminutivos {como por exem- plo negrinho') frequentemente apresentavam proble- ‘mas, tendo sido necessério, embora nem sempre posstvel, © confronto com o original ‘As palavras cria € moleque dizem respeito & crianca ‘escrava. O significado que Ihes é atribuido nos textos ori dginais e nas traduedes variou muito. Atualmente, cria significa animal que ainda mama; criatura; pessoa em geral pobre criada em casa de ou- trem; pessoa ou animal procedente de determinado lugar (Ferreira, 1975, p. 401). No Dicionério Brasileiro de Lingua Portuguesa (1875-1888) de Antonio Macedo Soares, cria é 0 filho ou filha de escravo até mais ou me- nos 7 anos de idade; muleque ou muleca nascida na ca- se do senhor; produto dos animais de criac0; etc. (Soa res, 1954-5, p. 147). Para Luccock, comerciante inglés que esteve cerca de 10 anos no Brasil, entre 1808 e 1818, cria era a palavra entéo usada para criada (Luc- cock, 1975, p. 376). Ewbank, que visitou 0 Rio de Ja- nneiro de janeiro a julho de 1846 diz que cria significa va potro e s2 utilizava também para os filhos dos escra vos (Ewbank, 1856, p. 283). No dicionério de Aurélio Buarque de Holanda mole- que € dado como sendo de origem quimbunde e signi- fica negrinho; individuo sem palavra ou sem gravidade; canalha, patife, velhaco; menino de pouca idade, etc. (Ferreira, 1975, p. 943). No dicionario de Antonio Ma- cedo Soares muleque 6 0 filho de escravo até 21 anos; filo de negros até a maioridade; desprezivel, sem consi deracdo, coisa & toa; patife, maroto, tratante; gaisto, ete. (Soares, 1954-5, pp. 46-47, 29 v.). Segundo Debret “0 governo brasileiro havia deter- minado por meio de onze denominacées utilizadas na inguagem vulgar a classificacdo geral da populago bra- sileira a partir de seu grau de civilizagdo”. Moleque es- tava classificado em 89 lugar e significava negrinho de origem africana (Debret, 1978, p. 141, 19 v.). Para Fer- dinand Denis, a palavra perdeu a sua conotacio etéria: nnegros moleques s80 negros que vieram da Africa (Denis, 1837, p. 112). Na tradugio da obra de Schlichthorst (0 ‘original foi escrito em alemao}, os meninos negros so ‘chamados moleques, no sendo, portanto, feita men- ‘gGo & sua origem africana (Schlichthorst, 1943, p. 140). Para o dinamarqués Steen A. Bille, também consultado através da tradu¢o, moleque foi usado para rapaz es- cravo, recém-chegado da Africa (Bille, sd., p. 20) Nas tradugdes, a coeréncia interna do texto rmuitas vvezes escapou 20 tradutor e prevaleceu 0 hébito de se atribuir determinado significado a determinada palavra. Em alguns casos, no entanto, as palavras foram mal tra duzidas: “Neither age or sex is free from iron shackles (...) a few evenings ago, while standing on the balcony of a ‘house in Custom — house Street, a litle old negress, four fifths naked, toddled past, in a middle of the street, with an enourmous tub of swill on her head, and secu: red by a lock and chain to her neck (...J"" (Ewbank, 1856, p. 116); ‘@ como foi traduzido: “L.. ) Corta tarde, hé alguns dias, quando me encontrava 1n0 baledo de uma casa na rua da Alféndega, uma negri: nha com quatro quintos do corpo nu (....)" Ewbank, 1976, p. 94); ou ainda: “Devant chaque groupe, on voit marcher un certain nombre d'enfants conduits par de moines (...)" (De- nis, 1837, p. 134); 1a traduedo: “4...) Diante de cada grupo vai certo riimero de me- nines, que representam os anjos, vestidos de saidte...”" (Denis, 5.0, p. 237). Nem sempre foi possivel o confronto da traducéo com o original, seja por dificuldade de localizaggo da cobra, seja pelo desconhecimento. da lingua original Quando 0 texto na traduedo no apresentou. ambi: Giiidade ou problemas de compreensfo, optou-se por sua incluso na pesquisa, * 0¢ aiminutivos tanto podem significa tamanho pequeno, ‘quanto pouea idade. Segundo Burmeister "nogro ora entdo (1850) Lum térmo earinhoso, especialmente para crianeas,sendo freaven: t€0 pai chem 0 fitho de ‘meu negro" (Burmeister, 60,9. 54) CADERNOS DE PESQUISA ¢ FUNDACAO CARLOS CHAGAS 67 A C8 501 BIBLIOGRAFIA [ADALBERTO DA PRUSSIA, Principe, Grail: Amazonas ~ Xin gu (.. J: tad. de Eduardo Lima Casto, Belo Horizonte, Ea. Iataia, 1977. ARIES, Philippe, Mistéria Socal de Crianga e de Familie, Rio de “Janeiro. Zahar Eaitores, 1978 BERGER. Paulo. Biblicgratia do Rio de Janeiro de visjantes # ‘autores estrangeiros (1531-1900). Rio de Joneira, Livro. fia S30 Jose, 1964 BILLE, Steen Andersen. Relatdrio de Viagem om tdrno da Ter ‘a feita pela Corveta Galathea (J: Wad, Guttorn Haneen, atilograt, (Col, Particular Berger) BURMEISTER, Hermann. Viagens 20 Brasil (.. J: wad, Manos! Salvaterra e Hubert Schoonfelét. Séo Paulo, Liraria Mar tins Editéra SA, sd. (Biblioteca Histories Brasileira CALOCLEUGH, Alexender. Travels in South America (.. J London, John Murray, 1825. 2 CASTELNAU, Francis. Expediedes as Regides Contras do “América d0 Sul; tr, Olivéria M. de Oliveira Pinto. SSO lo, Cis. Editora Nacional, 1949. 2v. (Col. Brasilana, 5 sri, vol. 26), CONRAD, Robert. Os uitimos anos do escravatura no Brasil: wad. de Fernando Cartro Ferra, Rio de Janeiro, Civil zap Brasileira, Brasilia, LN. L., 1978, DEBRET, Jean Baptist. Viagem Pitorasca @ Historica a0 Bre Si); rad, Sérgio Millet. Belo Horizonte, Ed, Itatiia; Seo Paulo, EDUSP, 1978. 2. —— Voyage pittoresaue et historique au Bréeil J Pas min Dibot Fréres, Editeure, 1894-1899, 9 Fir DENIS, Joon Ferdinand. Brazil trad. portuguesa. Rio de Janet: ro, H. Garnier Livreiro-Editor, $8.2. —. Brési. Paris. Firmin Dibot Freres, Editeur, 1837, EBEL, Ernest. 0 Rio de Jancirae seus arredores em 1824; trad de Joaquim de Souza Lego Fitho. S30 Paulo, Ed, Nacio nal, 1972. EWBANK, Thomas. Life in Brazil 1256. =A vida no Brest; tad. Jomil Almensut Haddad. Bolo Hori: ‘zonte, Ed. ltataia, $30 Paulo, EDUSP, 1976. FERREIRA, Aurdio Buarque de Holanda. Novo Dictandrio da Lingus’ Portuguese. Rio de Janeiro, Nova Frontera, 1975. FREYCINET, LoulsClaude 0. Voyage autour du monde (.. Paris, Chez Pllet Ain, Imprimeur-Libraie, 1825, GRAHAM, Maria. Diério de uma viager 90 Brasil ( ‘Américo J. Lacombe. SH Paulo, Cia. Editor 1056 (Brasiliana, série 6, vol 8) J. London, Sampson Low, Jit. Nacional, KARASCH, Maty Catherine. Slave /ifo in Rio de Janeiro, 1808- 1850. Tess (Doutorarento) — Unw, of Witconsin, mimeo, KIDDER, Daniel Parish. Reminizcéncias de viogons (...]; tad. ‘de Moacir N. Vasconcelos. Si0 Paulo, Martins, EDUSP, 3972. 2 LANGSDORFF, E. Barone de, Journal de Le Barone E. de Langsdortf(.. J (sl, Les Amis des Mutees de lo Merine, 1958. LAVOLLEE, Charle Hubert, Voyage en Chine (. Paris, Just ouvir, 1852. LUCCOCK, ‘oln, Wores sobre © Rio de Janeiro (J; tad. Mil ton do Silva Radigues. Belo Horizonte, Ed. total; S50, Paulo, EDUSP, 1975 —. Notes on Ria de Janeiro ( Leigh, 1820, MACEDO, Joaquim Manuel. Luneta Mépic. S¥0 Paulo, Edito: 0 Teds, 1972. MALHEIRO, Perdido. A escraviddo no Brasil (...). 39 ed. Pe- wOpalis, Editors Vozee: Brasilia, LN.L., 1976. 2 MAWE, John. Travels in the interior of Brazil (..). London, printed for Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1822. -—. Viagens 20 interior do Brasil: tad, de Selena Benevides Via na. Belo Horizonte, Ed. Wtatiia; Sfo Paulo, EDUSP, 1978 MENDEL, Gerard. Pour décoloniser enfant (.. J. Paris, Payot, 197%, (Petite Bibliothéque Payot, 1881, PEIFFER, Ida. Voyage d'une ferme autour du monde; trad. M. W. de Suckan 3d. Pars, Libraie de L. Hachette, 1865, PONTOPPIDAN, D. Viagem 2 América do Sul (...); tad. Gut torn Hanson, #4, datilogr. Col. Particular de Paulo Berger. RUGENDAS, Johann’ Morts. Viagem pitoresca através do Bra al (J; tad, Sérgio Millet. 79 ed. Sdo Paulo, Livraria Martine Editora; Gratilia, .N.L, 1976, SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem pelo Distrito dos Diaman- tos ¢ Litoral do Bra; wed, Leonem de Azevedo Penna. Be- lo Horizonte, Ed, Iatiaia; So Paulo, EDUSP, 1974, SCHLICHTHORST, Carl 0 Rio de Janeiro como 6 (...); ‘ea. Emmy Dost ¢ Gustavo Barroto, Rio, Livraria Editors Ze lig Valverde, 1943. SOARES, Antonio Macedo, Dicionério Brailero de Liegua Portuguesa [...). (18761888), Rio de Janeiro, INL/MEC, 1055.2 YVAN, Melchior. Voyages et Récits. Bruxelles; Moline, Cans et Cie, Libraires Editeur, 1853. WALSH, R. Notices of Braz! ( ‘ond ALM, Davis, 1830. 2 J. London, Printed for Samuel J. London, Frederick Wi ey 68 CADERNOS DE PESQUISA # FUNDACAO CARLOS CHAGAS

You might also like