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ICLEIA BORSA CATTANI © principio de realidade na pintura do Renascimento —a questo da perspectiva Até hoje um dos critérios do pitblico leigo para julgar da maior ou menor “qualidade” de uma pintura, é comparé-la a algum modelo do mundo visivel e medir seu maior ou menor grau de semelhanya com o real Uma pintura € considerada bea, bela © compreensivel segundo esses Pardmetros, como se fosse 0 objetivo “natural” da arte. Essa é uma das razdes (evidentemente, nfo a nica) pelas quais 2 distancia entre a arte moderna e contemporanea e o piiblico leigo aumentou progressivamente. 0 dominio dos cédigos ficou cada vez mais restrito a pequenos grupos de especialistas, como se houvesse de um lado uma arte “natural”, elaborada a imagem e semelhanga do mundo visivel, e de outro lado produgdes “artificiais”, “falsas” ou “‘codificadas”, aquelas que no se guiam pelo principio de realidade. Entretanto, esse principio tal como 0 conhecemos ainda hoje, elaborou-se na produgo artistica (principalmente, a pintura), no Renascimento, sob condigées histéricas e sociais bem definidas. © novo sistema de formas era em tudo diferente do sistema medieval anterior, embora tivesse comegado de forma embriondria ainda na Idade Média, no perfodo gético, marcando progressivamente uma nova visto de mundo e de arte. A arte medieval se havia caracterizado até 0 periodo roménico, ¢ no estilo bizantino, pela auséncia de profundidade espacial, pela estilizago das formas e simplificagdo dos volumes, e pelo tratamento arbitrério do corpo humano, que tanto podia ser deformado para adaptar-se a um espaco definido, quanto ser representado em tamanhos diferenciados dentro de um mesmo espago de representago. para significar a importancia hierérquica de cada personagem. A arte no possuia compromisso com a representagdo da realidade, contrariamente ao sistema renascen- tista. Os cédigos eram, em oposigao a um sistema de representaco individualizado, genéricos e rigidos. Porto Arte, Porte Alegre, 1 11) mato 1990 Pierre Francastel assim define a arte bizantina (em oposiggo a0 novo sistema de signos que comegou a se elaborar na Itélia uo século XIV com Giotto): “Para Bizancio, o problema do lugar e do tempo se colocava de um.modo bem preciso. Toda representagd é ali ligada a0 dogma cristolégico sobre 0 qual repousa igualmente a hierarquia social do universo. A pintura é assim destinada a materializar as dimensOes de um espago do qual todas as qualidades so determinadas pela lei divina. Nao hd de certo modo espago figurado; o espago representado 6 atual, seja quando se trata das paredes e dos arcos de uma igreja, seja quando se trata da superficie de uma imagem, A esséncia é uma, e ela esté em tudo na sua totalidade. O universo ¢ a atualizagzo do pensamento divino." 1 A pintura do Renascimento tentou elaborar em oposigZo a esse sistema de formas um outro sistema, igualmente complexo, mas baseado em novos princfpios construtivos. As razdes para as mudangas foram varias, Francastel coloca, no mesmo texto citado, a propésito de Giotto, que nffo foram razBes puramente figurativas que o levaram a renovar o espago-tempo de sua pintura, mas razdes intelectuais e sensfveis. Esse novo sistema de representagzo, base2do no principio de realidade, organiza-se na verdade @ partir de ostruturas formais inovadoras mas igualmente abstratas, dentre as quais € necessdrio destacar o sistema perspectivo que foi sendo gradualmente elaborado. O sistema perspectivo visava unificar a imagem representada a partir de um ponto de convergéncia tnico. Visava também reproduzir, num espago bidimensional, a realidade corpérea, volumétrica, de figuras e objetos tridimensionais reais. Transformado num espago de representa¢o do tridimensional, o suporte bidimensional da pintura passou a ser negado na sua realidade fisica, sendo concebido como plano transparente, ponto de intersecg%o da pirmide formada pelos raios visuais, tendo por apice o olho do observador e por base o objeto a ser representado. 0 objetivo era sempre representar, sobre o suporte (tela, madeira, parede), 0s objetos © © espago reais, pela determinagdo exata e matemitica de sua forma, de suas dimensGes e posigo, de modo que a imagem pictérica correspondesse fielmente a que produz a visio direta* A pintura devia ser uma reprodugio fiel do real, “janeia pela qual, como o artista quer nos fazer crer, nosso olhar mergulha no espaco”.> Entretanto, nfo se trata de uma representagdo mais “real” do que outras. Erwin Panofsky coloca a questo da “perspectiva como forma simbélica”,* portanto como algo relativo e mutavel, e analisa em seu livro os diversos estudos e ensaios perspectivos. Pierre Francastel analisa a cofistrugdo perspectiva como uma convengao representativa “A. perspectiva linear — que no é absolutamente a ‘inica forma conhecida pelo Quattrocento — nfo é um sistema racional mais adaptado do que qualquer outro a estrutura do espirito humano; ela nfo corresponde a um progresso absoluto da humanidade na via de uma representagdo cada vez mais adequada do mundo exterior sobre o suporte plastico fixo bidimensional; ela é um dos aspectos de um modo de expresso convencional embasado num certo estado das técnicas, da ciéncia, da ordem social do mundo num dado momento.”5 Marisa Dalai Emiliani analisa, além das quest6es colocadas por Francastel, as condigdes (arbitrérias ¢ artificiais) através das quais a perspectiva pode funcionar como “desdobramento” do mundo visfvel: “Para que a imagem construida através da projec perspectiva, ou central, coincida cientificamente com a da visio direta, ¢ necessdrio . . . que o observador se dobre as condigoes estabelecidas pela propria construgdo: ou seja, que ele olhe o quadro a partir do mesmo centro visual adotado pelo pintor, a mesma distancia, € com um tnico olho absolutamente imével. Fora dessas condigdes, a imagem que ele perceberd ser4 arbitrariamente deformada em relag&o a imagem natural.”6 Além dessas condigdes, que j4 evidenciam por si mesmas o cardter anti-realisia da representagio perspectiva, somam-se outros fatores inerentes a percep¢do humana normal. Esta é binocular e mével, tomando esférico 0 campo visual. Por outro lado, a imagem retiniana é projetada sobre uma superficie céncava, de modo que “a este nivel factual inferior e ‘pré-psicclégico’ estabelece-se j4 uma discordancia fundamental entre a ‘realidade’ e a construg&o perspectiva.”” O olhar humano corrige distorg6es que a fotografia por exemplo revela, por basear-se mecanicamente no mesmo princfpio da perspectiva plana, do olho tinico e imével. Partindo do postulado de que a representago perspectiva nflo é mais “real” do que qualquer outro tipo de representago, anterior ou posterior (pois no Ocidente esse sistema de representacao foi questionado a partir do século XIX), veremos de que modo concreto ela se evidencia nas obras renascentistas. Segundo Emiliani, para que a representagdo perspectiva fosse absolu- tamente fiel 4 visdo natural, conforme os objetivos dos pintores renascentistas, era necessério que estes recorressem por um lado 2 perspectiva linear, com a qual se obtém a estrutura geométrica dos corpos, e por outro lado a perspectiva atmosférica, através da qual pode-se registrar as variagdes de intensidade luminosa e as gradacdes de cores conforme a distincia.8 Alguns dos magnificos esbogos deixados por Leonardo da Vinci, como a Adoragdo dos Magos da Galleria Uffizi de Florenga (1481), mostra como, através do escorgo e do claro-escuro que modela as formas, 0 artista tentava harmonizar os dois princfpios perspectivos. Os contrastes de claro-escuro so maiores no modelado das figuras do primeiro plano, atenuando-se gradualmente nos planos subseqiientes ¢ evidenciando, jd nesta fase de esbogo 33 monocromético, a atenuacHo das linhas ¢ dos modelados conforme a distancia dos objetos em relagZo ao observador — Leonardo foi um mestre na utilizacto do sfumato, técnica que consiste justamente na diluigZo dos contomos das formas, na “passagem” gradual de uma forma para outra, que visa reforgar o efeito de distanciamento. Segundo Panofsky, esse esbogo afirma a conquista de uma concepgo definitivamente “moderna” da pintura, na medida em que prioriza o espago global sobre os objetos singulares.» Nos quadros terminados, a esses recursos estruturais unia-se a cor, nitida e de limites bem definidos no primeiro plano. atenuada e adquirindo uma tonalidade azulada que diminu‘a os contrastes nos planos subseqiicntes. A técnica da veladura, que consistia em sobrepor camadas finissimas de tinta sobre outra camada ja seca, auxiliava grandemente na representagdo atmosféri- ca. A veladura surgiu naquela época, fruto das experiéncias com a pintura a dleo, que provocou grandes mudangas nos métodos de trabalho nas formas. Nao podemos esquecer entretanto que os princfpios supra-citados referem-se aos quadros de Leonardo da Vinci ¢ aos de alguns outros pintores seus contemporaneos, e nfo a totalidade da pintura renascentista. Com efeito, nos inicios do século XV, ela apresentava outras caracteristicas: “Durante a primeira metade do Quattrorento, vemos multiplicarem-se experiéncias espaciais um pouco contraditérias, que os maiores artistas colocam no mesmo plano, pesquisss das quais algumas so 0 desenvolvimento das experiéacias do passado ¢ outras, em menor mimero, preparam o futuro. Nada mais falso do que acreditar que a descobesta de um novo espayo plistico, 0 espago modemo, houvesse aparecido mesmo a seus iniciadores como uma invengo absoluta. No plano das técnicas, eles ndo cessaram de colher a0 seu redor e de experimentar. Na primeira geragdo, ninguém teve 0 sentimento de possuir uma férmula definitiva. No esquegamos que no infcio do Quattrocento, criousse em virtude de um sentimento interior, ¢ nao em virtude de um plano preconcebido.”! Foi a partir da segunda metade do século XV que se cristalizou o principio da perspectiva iinear enquanto doutrina, segundo as normas estabelecidas por Alberti, negando em parte 05 outros tipos de pesquisa realizados até entio. Segundo Francastel, 0 Renascimento realizou um “sistema feroz de selego”.'1 de carter arbitrério. © espago estruturado pela perspectiva linear possui um principio unificador. Ao espago unificado, ccrrespondem figuras Gnicas (em oposigao as sucess6es de cenas medievais, nas quais uma mesma figura era representada varias vezes num mesmo espago, significando os vérios episédios do fato ilustrado) 34 Tomemos como exemplo a Anunciagdo de Ueonardo da Vinci. da Galleria Uffizi (1475-1478): num espago unificado, né qual as linhas da composigo convergem para um ponto centralizado. situado na linha do horizonte. as duas figuras sfo simetricamente dispostas nas laterais, criando um equilibrio de massas em torno de um “vazio". a extensdo do espago central. As duas figuras esto em espaco aberto, mas por detrés da Virgem, uma fachada de palécio auxilia a sugerir 0 espaco ciibico unificado, Tudo nesta cena contribui para sublinhar 0 cardter nico do momento mesmo da Anunciagdo. Podemos contrapé-lo a pintura de Fra Angélico, Nascimento de Sao Nicolau, sua vocagdo, 0 Santo e os trés 7 em Roma (1437). Neste coexistem, mais no inicio do Quattrocento, um espaco unificado pela perspectiva e pelas massas das figuras e construgdes arquitet6nicas, com um desdobramento do personagem: Sao Nicolau é representado trés vezes dentro do mesmo espago. Esse desdobramento simboliza conseqiientemente, trés momentos diferentes, prética comum ao sistema de formas medieval. Na inunciagao, pelo contrério, as figuras unificadas, ao espago uno, corresponde um tempo unificado, momento singular, sem pasado nem futuro visiveis. Entretanto, se esse modo de representag&o nos parece mais “real” do que outros, temos que considerar que essa leitura provém de todo um sistema de signos culturais surgidos simultanea- mente ¢ transmitidos pela tradigdo representativa e pela vivéncia empirica. Com efzito, no Renascimento outros campos de representagdo social .endcram-se 20 principio da unidade espago-temporal: dentre eles, o urbanismo das cidades, as construgdes arquitet6nicas e a cena teatral, com o palco A italiana, bem como o tipe de pegas que nela eram representadas. Grande parte dessas criagdes chegaram até os dias de hoje ¢ fazem parte de nossa bagagem cultural. Entretanto, desde 0 século XIX, novas experiéncias e anélises da realidade levaram a modificagdes dos conceitos de espago-tempo e de individuo. O marxismo estudou a hist6ria e a sociedade como complexos sociais que extrapolam os individuos tomados isoladamente. A psicanélise demonstrou a existéncia do inconsciente (que nos faz duplos) e os processos fragmentarios de percepgiio de nossos préprios corpos e da realidade circundante. As experiéncias e teorias da fisica demonstrardma ielatividade dosconceitos de tempo espaco. 203, da Pinacoteca do Vaticano Além desses aspectos, as modificagdes dialéticas internas ao proprio proceso de produgio, distribuicdo e consumo da arte nos séculos XIX e XX e as novas experiéncias imagéticas e cinéticas provocadas pcla fotografia, pelo cinema, pelos sistemas de arte no-ocidentais, etc, modificaram os modos de apreensio e representagdo do tempo, do espago e dos corpos no espago. Todos esses fatores, e outros mais, contribufram para colocar em questo os valores figurativos tradicionais. Pode-se concluir que a pintura do Renascimento, embora elaborada 35 sob a égide da representago do mundo visivel, na verdade criou um sistema de formas to artificial (face @ realidade) quanto os que a antecederam ¢ os que lhe foram posteriores. Entretanto, esse sistema de formas estruturou a pintura ocidental durante quatro séculos e chegou até 0 século XX como modelo cultural, a ser seguido ou negado — ne nosso século € que ocorreu a verdadeira ruptura. E, se seu principio de realidade ¢ falso, isso nfio depde de modo algum contra as extraordinérias criagBes que o elaboraram ¢ the deram sustentagdo durante todo este tempo. Pois o compromisso da arte ¢ sua fungdo nao so jamais de reproduzir o real, mas de atuar neste real de suas maneiras préprias, enquanto verdadeiro agente social que lida com ‘© campo do simbélico e do imaginério. NOTAS. 1. (FRANCASTEL, 1970, p. 73) 2. (EMILIANI, 1975, p. 12) 3. (PANOFSKY, 1975, p. 38) 4. (PANOFSKY, 1975, p. 38) 5. (FRANCASTEL,1965, p. 7) 6. (EMILIANI, 1975, p. 8) 7. (PANOFSKY, 1975, p. 44) 8. (EMILIANI, 1975, p. 7) 9. (PANOFSKY, 1975, p. 130) 10. (FRANCASTEL, 1965, p. 24-25) 11. (FRANCASTEL, 1965, p. 33) 36 BIBLIOGRAFIA BLUNT, Anthony. La théorie des arts en Italie de 1450 @ 1600 Paris, Gallimard, 1966. BOURDIEU, Pierre. Postface. In: PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris, Minuit, 1967. EMILIANI, Marisa Dalai. La question de la perspective. In: PANOFSKY, Erwin. La perspective comme forme symbolique. Paris, Minuit, 1975. FRANCASTEL, Pierre. Etudes de sociologie de Vart. Paris, Denoel-Gonthier, 1970. FRANCASTEL, Pierre. Peinture et société, Paris, Gallimard, 1965. HAUSER, Amold. Histéria social da literatura e da arte, Sio Paulo, Mestre Jou, 1972. 2v. PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris, Minuit, 1967 PANOFSKY, Erwin. La perspective comme forme symbolique. Paris, Minuit, 1975. WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundameniais da histéria da arte. Sto Paulo, Martins Fontes, 1984. WORRINGER, Wilhelm. L ‘art gothique, Paris, Gallimard, 1967. ICLEIA BORSA CATTANI Doutora em Histbria da Arte pela Universidade de Paris I ~ Panthéon ~ Sorbonne, Franga; Prof. Assistente de Histéria da Arte do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, — Vice-Diretora do Instituto de Artes da UFRGS. Leonardo da Vinci. “Adorapto dos Reis Magos"”. 1481 pintura s. madeira. Galleria degli Uffizi, Florent. Leonardo da Vinci. “Anunciagdo”: 1475-1478. pinturas, madeira. Galleria degli Usfizi, Florenga Fra Angélico, “Nascimento de Sdo Nicolau, sua Vocarao, 0 Santo e os Trés Meninos”. 1437. pintura s. madeira Pinacoteca da Vaticano, Roma. 39

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