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A POSSIBILIDADE

DA POLÍTICA RACIONAL*

Jon Elster

Introdução desdobramentos subseqüentes mostraram que, de


maneira geral, a noção de preferências sociais não
A idéia de organismo político, sugerindo tem uma definição muito clara. Outro argumento,
que a ação política é uma ação individual em proposto pela primeira vez por Hayek, diz que as
escala aumentada, é muito antiga. Entre suas ver- informações difundidas e espalhadas por toda a
sões modernas estão as noções de engenharia sociedade não podem ser reunidas em um centro
social e planejamento econômico. Podemos defi- para formar crenças sociais. Um argumento adicio-
ni-la com mais precisão como a idéia de que as nal, associado particularmente aos teóricos da es-
sociedades podem formar, e formam, preferên- colha pública, é que a ação social tende a ser
cias, coletam informações, tomam decisões e as distorcida e deturpada pelos interesses privados
executam de maneira estrita ou, pelo menos, dos agentes e das agências que os devem realizar.
aproximadamente análoga à escolha racional indi- Concluo que o processo de tomada de decisões
vidual. Este artigo apresenta uma análise crítica sociais tem, no melhor dos casos, uma semelhança
dessa idéia. grosseira com a escolha individual.
A primeira seção examina até que ponto o A seção seguinte enfatiza o amplo espaço de
aparato formal aplicado à escolha racional indivi- indeterminação que existe nas decisões sociais. As
dual pode ser aplicado às decisões políticas, dando decisões de largo alcance produzem efeitos de
ênfase às diferenças entre a escolha individual e a equilíbrio muito difíceis de avaliar teoricamente,
escolha social.* * As diferenças mais conhecidas porque a habitual metodologia ceteris paribus não
surgem no processo de formação de preferências.
O teorema da impossibilidade de Arrow e seus
** No capítulo 1 do mesmo livro, intitulado “When rationa-
lity fails”, Elster estabelece os elementos básicos da
* Texto publicado originalmente como o capítulo IV do
teoria da escolha racional e aponta suas falhas, decor-
livro Solomonic judgements (Cambridge, Cambridge
rentes seja de sua indeterminação, seja de sua inadequa-
University Press, 1989).
ção. O autor organiza a análise desenvolvida no capítu-
Tradução de Vera Pereira. lo 4, objeto desta tradução, de forma a torná-la compa-
Revisão técnica de Argelina Cheibub Figueiredo. rável à discussão realizada naquele capítulo.

RBCS Vol. 14 no 39 fevereiro/99


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é aplicável. Mais ainda do que nas decisões indivi- Escolha individual e escolha social
duais, imperam nas decisões sociais a incerteza e a
ignorância. Além disso, nessas decisões, a ignorân- Para certa concepção, a política é como uma
cia não pode ser superada por procedimentos de escolha individual em escala aumentada. Em pri-
ensaio e erro. O “aprendizado pela experimenta- meiro lugar, as preferências políticas — objetivos,
ção” desenvolve-se mediante inferências, no mais trade-offs e prioridades — são definidas pelo pro-
das vezes não confiáveis, que partem das conse- cesso político democrático. Em segundo lugar, as
qüências transitórias, de curto prazo e em pequena agências governamentais coletam informações so-
escala, para os efeitos de equilíbrio em larga escala bre assuntos concretos e sobre as relações entre
e longo prazo. Por outro lado, a própria noção de meios e fins, com a finalidade de formar uma
“fazer experiências com a reforma” beira a incoe- opinião acerca de quais políticas públicas poderi-
rência, pois o fato de os agentes saberem que estão am melhor realizar esses objetivos. Finalmente,
participando de uma experiência leva-os a adotar outras agências executam essas políticas considera-
um horizonte de curto prazo que torna ainda das ótimas. De acordo com essa concepção, o
menos provável o êxito da experimentação. parlamento, o órgão central de estatística e o
A terceira seção analisa a fraqueza de vontade governo formam um sistema unificado de tomada
e o excesso de vontade como formas de irraciona- de decisões políticas racionais.
lidade política. Ressalto as diferenças e as seme- Não estou interessado naqueles que (se os
lhanças entre a acrasia individual e a acrasia políti- houver) acreditam que essa concepção é literalmen-
ca, sendo a principal delas que as sociedades, por te verdadeira, ou seja, que a escolha política pode
definição, não podem resolver seus problemas ser entendida pelos desejos, crenças e ações de uma
encarregando um agente executor externo de cum- entidade supra-individual, a “sociedade”. Ao contrá-
prir sua vontade. O excesso de vontade política rio, estou interessado naqueles que, embora acei-
também se diferencia do excesso de vontade indi- tando os cânones do individualismo metodológico,
vidual, porque o sujeito e o alvo do primeiro supõem ou argumentam que é possível proceder
podem ser indivíduos diferentes. Portanto, a tenta- como se essa concepção fosse correta.2 Em outras
ção de adotar esse comportamento é maior, embo- palavras, estes últimos supõem que não há mal
ra os prognósticos de êxito a longo prazo sejam algum em tratar a sociedade como um ator unitário,
igualmente reduzidos. dotado de valores estáveis e coerentes, de crenças
A quarta e última seção considera a justiça bem fundamentadas e de capacidade para pôr em
como uma alternativa à racionalidade para orientar prática suas decisões. Esse suposto tem predomina-
a ação política. Dada a fragilidade da lógica instru- do no estudo das relações internacionais3 e na
mental em política, a concepção de justiça escolhida teoria do planejamento econômico.4 Por razões
não pode ser conseqüencialista, como o utilitaris- óbvias, essa hipótese é menos evidente no estudo
mo. Ao contrário, o conceito de justiça deve focali- da política interna das democracias pluralistas. Mes-
zar os direitos inerentes aos indivíduos de obter mo nesses regimes, porém, há uma forte tentação de
igual participação no processo decisório e no bem- usar a linguagem própria do ator. Esta seção susten-
estar material. Nessa seção, baseio-me amplamente ta que tal linguagem, apesar de tentadora, também
nos trabalhos de John Rawls, Ronald Dworkin e pode ser traiçoeira e levar a conclusões erradas.
Jürgen Habermas. Advirto, porém, que meu objeti- O oportunismo oferece uma explicação geral
vo não é propor ou mesmo esboçar uma teoria da para a diferença entre sociedades e indivíduos. É
justiça. Não sei como extrair de princípios funda- mais fácil para um indivíduo enganar a outros do
mentais uma teoria da democracia. Contudo, dada a que a si mesmo. Quando os indivíduos se entregam
existência da democracia, principalmente da demo- a ilusões que favorecem seus interesses pessoais,
cracia limitada pelo debate público racional, acredi- ou se entregam ao oportunismo, não se pode ter
to que algumas implicações para a escolha e para a certeza de que o resultado agregado do seu com-
ação política podem ser deduzidas.1 portamento corresponda ao modelo de racionalida-
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de política do ator unitário. Gostaria de explicar o que as economias do tipo soviético criam incenti-
significado dessa proposição nas três dimensões da vos perversos ao fornecimento da informação verí-
escolha que me proponho a analisar nesta seção: dica. Às vezes, o medo de ser punido por trazer
preferências, informações e ação. consigo más notícias cria um estímulo para pintar
Em primeiro lugar, cabe definir o problema as coisas melhores do que, de fato, são; outras
mais cuidadosamente como uma dificuldade da vezes, é o interesse próprio que leva uma pessoa a
política democrática. Isto é, excluímos as concep- apresentar a situação como pior do que é. Um
ções que correspondem à máxima de Napoleão: exemplo é o administrador que presta informações
“Tout pour le peuple, rien par le peuple”. Mais especi- subestimadas sobre a produção a fim de evitar um
ficamente, deseja-se que o método de agregação aumento de sua cota. Problemas essencialmente
das preferências individuais não seja ditatorial e semelhantes podem surgir em qualquer sistema
que, além disso, seja invulnerável ao oportunismo; que dependa da coleta de informações a partir de
quer dizer, que o indivíduo não seja capaz de, fontes descentralizadas. Mais uma vez, embora, em
falsificando suas preferências, produzir um resulta- certos casos, o problema possa ser contornado, não
do melhor, de acordo com suas verdadeiras prefe- há uma receita geral para induzir as pessoas a
rências, do que aquele que obteria se revelasse prestarem informações verdadeiras.
essas verdadeiras preferências. Por último, deseja-se Finalmente, problemas com os incentivos
que o mecanismo garanta resultados compatíveis também ocorrem no nível da implementação. No
com o ótimo de Pareto. O único método que satisfaz caso do indivíduo, geralmente não há nenhuma
a esses requisitos é alguma forma de votação por distância entre tomar uma decisão e executá-la,
loteria, mas este método comporta tantas outras excluindo-se a fraqueza de vontade ou a inaptidão
desvantagens que não deve ser examinado com física. Em casos típicos, o caráter unitário do ator
seriedade. Embora, para certos casos especiais, seja individual assegura que suas decisões, uma vez
possível imaginar mecanismos à prova de estraté- tomadas, serão executadas. A falta de unidade da
gias para a revelação de preferências (ver, por sociedade torna essa hipótese muito mais proble-
exemplo, Ordershook, 1986, caps. 5 e 6), de uma mática. Não se pode, em geral, confiar em que os
maneira geral, não se pode supor que as pessoas agentes incumbidos da execução das decisões
sejam induzidas a agir com sinceridade por conta do deixem de levar em conta seus próprios interesses
interesse pessoal. ou sua concepção pessoal do interesse geral.5
O problema da compatibilidade de incentivos Tampouco seu principal pode estar o tempo todo
estende-se ao da coleta de informações sobre ocupado em monitorar as atividades desses agen-
assuntos concretos. Quando se solicita aos agentes tes, no mínimo porque os agentes da monitorização
econômicos que forneçam informações facilmente podem ser, eles mesmos, corruptos.6
disponíveis para eles, mas que não seriam disponí- Não é necessário, porém, fundamentar nosso
veis ou teriam algum custo para os outros, pode-se argumento nos perigos do oportunismo. Na verda-
assumir que eles se perguntarão se é do seu de, não se deveria fazê-lo. Embora sempre exista o
interesse atender ao pedido. Sabe-se, por exemplo, perigo de uma conduta voltada para a satisfação do
que a única forma de tributação não sujeita a interesse próprio, até que ponto esse comportamen-
deturpações é um imposto cobrado dos indivíduos to está realmente presente varia muito. Boa parte da
de uma só vez [lump-sum tax] e calculado em literatura sobre escolha social e escolha pública,
função de sua capacidade produtiva, e não de sua com seu pressuposto sobre a universalidade do
verdadeira produção. Mas é raro que o indivíduo comportamento oportunista, parece simplesmente
tenha interesse em informar corretamente sobre fora de contato com o mundo real, onde há muito de
sua capacidade produtiva. Igualmente, talvez não honestidade e senso do dever. Se as pessoas sempre
seja do interesse dos indivíduos informar com se comportassem de maneira oportunista quando
exatidão quanto estariam dispostos a pagar pela contassem com a impunidade, a civilização tal qual
provisão de bens públicos. É fato bem conhecido a conhecemos não existiria.7 Não se deve partir do
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pressuposto de que a única tarefa da política seja As economias de tipo soviético exemplificam bem
inventar instituições que submetam o interesse opor- esse paradoxo. As democracias pluralistas, ao con-
tunista a objetivos socialmente úteis. Uma outra trário, tendem a realizar mais, em virtude de tenta-
tarefa de igual importância é criar instituições que rem fazer menos. O planejamento macroeconômi-
incorporem uma concepção válida de justiça. Se as co que se utiliza do instrumento das políticas fiscais
pessoas não se sentirem enganadas pela sociedade, e monetárias tem mais probabilidade de alcançar
a tentação de enganar a sociedade se reduzirá muito seus objetivos do que as formas mais ambiciosas de
(Rawls, 1971, pp.177-183 e 567-577). planejamento físico. O planejamento físico centra-
O que se deve perguntar, então, é se uma lizado requer informações muito detalhadas e tam-
sociedade justa, que conte com normas efetivas de bém tende a gerar oportunismo. O primeiro proble-
honestidade e confiança, corresponde a uma boa ma é inerente ao planejamento físico; o segundo
aproximação do modelo de ator unitário da política problema, se minha análise é correta, decorre da
racional. Uma resposta concisa é que apesar de, falta de legitimidade. Se as pessoas acham que
com certeza, ser esta uma aproximação melhor do estão sendo enganadas, por que não deveriam
que a noção de uma sociedade de oportunismo enganar o sistema de volta? Os sistemas políticos
generalizado, continuam existindo sérias dificulda- que deixam mais decisões a cargo do indivíduo, ao
des. Embora desapareça o problema da implemen- contrário, economizam informações e simultanea-
tação, os problemas da agregação de preferências e mente geram mais confiança.
da centralização das informações não desapare- Concluindo esta seção, cabe observar que a
cem. Ainda que as preferências sejam declaradas analogia entre escolha individual e escolha social
com sinceridade, a noção de “vontade popular” é também pode ser feita da perspectiva oposta. Em
incoerente. Mesmo que os indivíduos procurassem vez de alegar-se que a sociedade deve ser interpre-
declarar suas preferências e capacidades da manei- tada a partir do modelo do ator unitário, pode-se
ra mais verídica possível, e mesmo que deixemos propor que o indivíduo deveria ser compreendido
de lado os custos de oportunidade de fazer relató- a partir do modelo da sociedade dividida.9 Primei-
rios e o risco de que a informação já esteja desatua- ro, por causa dos problemas de agregação de
lizada quando for finalmente usada, o centro não a preferências internos à própria pessoa; segundo,
consideraria muito útil. As pessoas geralmente têm por causa do auto-engano e de outras formas de
um conhecimento tácito, embutido e pessoal, e não compartimentalização cognitiva; terceiro, por cau-
explícito, verbal e abstrato, sobre seus estados sa da fraqueza de vontade e de outros obstáculos à
mentais e suas capacidades produtivas (Polanyi, execução de decisões. Os indivíduos, como as
1962). As empresas não têm acesso à totalidade da sociedades, muitas vezes não sabem o que querem,
função de produção com que operam; precisam ou não sabem o que sabem, ou deixam de realizar
saber o que estão fazendo, mas não têm incentivos o que decidiram fazer. Acredito, porém, que a
para saber o que poderiam fazer, até que sejam analogia falha em um ponto decisivo: os indiví-
forçadas a isso pelas circunstâncias (Nelson e Win- duos, ao contrário das sociedades, têm um centro
ter, 1982, cap. 4 e passim). Os consumidores organizador — às vezes chamado de vontade,
podem ser incapazes de dizer que compras plane- outras vezes de ego — que procura constantemen-
jam fazer nos próximos anos. Essas objeções bem te integrar as partes fragmentadas.10 As sociedades,
conhecidas8 ao planejamento central continuam ao contrário, não têm nenhum centro.
sendo, a meu ver, irrefutáveis.
Os sistemas políticos concretos aproximam-
Indeterminação política
se em diversos graus do modelo do ator unitário.
Quanto mais tentam realizar seus objetivos por Nesta seção, desenvolvo um argumento de
intermédio do planejamento deliberado, isto é, duas partes contra a exeqüibilidade da engenharia
quanto mais sua auto-imagem é a do ator unitário, social em grande escala. Primeiramente, alego que
mais tendem a desviar-se desse modelo na prática. não existe nenhuma teoria que nos permita predi-
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zer os efeitos de equilíbrio a longo prazo de havia enfim encontrado seu estado natural e per-
grandes reformas sociais. Segundo, afirmo que a manente, mas os acontecimentos subseqüentes
metodologia do ensaio e erro não pode substituir a demonstraram que isso estava errado.” (Tocquevi-
previsão teórica. Ou seja, a teoria é impotente, e lle, 1953, p. 343). Nessas situações, devem ser
não se pode aprender pela experiência e com a levadas em conta quatro possibilidades: (a) que o
experimentação. Em conseqüência, as escolhas processo está se aproximando de um equilíbrio,
políticas são feitas em condições de radical indeter- mas ainda não o alcançou; (b) em qualquer tempo
minação cognitiva.11 dado, o processo encaminha-se para o estado de
Ora, essas afirmações são muito amplas. Não equilíbrio, mas este, em si mesmo, desloca-se
tentarei demonstrar sua validade como proposições constantemente devido a mudanças no ambiente
gerais, embora acredite que muitos dos meus argu- externo; se a velocidade da mudança no ambiente
mentos específicos possam ser generalizados.12 Em externo for maior do que a velocidade da adapta-
vez disso, procederei à análise de três exemplos: as ção a este meio, o equilíbrio nunca será alcançado;
transições da aristocracia para a democracia, da (c) o sistema não tem um ponto de equilíbrio fixo,
propriedade privada para a propriedade cooperati- mas converge para um ciclo-limite. Já se disse, por
va e de uma economia planejada para uma econo- exemplo, que a conseqüência permanente da Re-
mia de mercado. Nesta e nas seções seguintes, volução Francesa foi introduzir uma mudança cícli-
utilizarei as análises de Tocqueville sobre a demo- ca entre o orleanismo e o bonapartismo (Lévi-
cracia e o ancien régime.13 Para usar um exemplo Strauss, 1960, p. 94; Aron, 1967, p. 292); que os
corrente e controverso, analisarei a proposta de sistemas políticos do Planalto Birmanês estavam
substituir a propriedade privada dos meios de pro- em um estado de “equilíbrio móvel”, contendo
dução pela propriedade cooperativa.14 Por fim, ciclos de 150 anos (Leach, 1954, p. xi); e que as
farei algumas referências ocasionais às reformas sociedades modernas estão condenadas a oscilar
econômicas em curso na China. entre dois sistemas terríveis — capitalismo e socia-
Acredito que a primeira parte do meu argu- lismo —, cada um deles parecendo sedutor quando
mento não suscite grandes discordâncias. Imagine- visto da perspectiva do outro (Dunn, 1985).16 (d) O
se que a sociedade está em um estado (aproxima- sistema é inerentemente instável. Mesmo que o
do) de equilíbrio, no sentido de que os recursos ambiente seja estável, o sistema não comporta nem
pessoais, as crenças, as normas, os hábitos e os um estado de equilíbrio fixo nem um ciclo-limite. A
objetivos dos indivíduos estão bem ajustados entre primeira pergunta do parágrafo anterior pressupõe
si e ao ambiente natural e institucional.15 Nossa que (a) seja uma explicação adequada ao comentá-
intenção é prever as conseqüências de grandes rio de Tocqueville.
mudanças no sistema de direitos de propriedade ou Meu argumento principal, todavia, não é que
no sistema político. Numa primeira abordagem do as perguntas são inadequadas, mas que não podem
problema, convém ponderar sobre duas perguntas ser respondidas, mesmo que seus pressupostos
básicas: como será o novo equilíbrio quando tudo sejam satisfeitos. No estado atual das ciências
o mais estiver adaptado à mudança institucional? E sociais, não se pode sequer imaginar como seria
qual será a via de transição para o novo equilíbrio? uma teoria do equilíbrio social geral — uma teoria
Retomarei essas questões mais adiante, mas em que tudo fosse endógeno, de modo que a
cabe observar, primeiramente, que elas levantam metodologia usual de ceteris paribus seria inaplicá-
muitos problemas. A existência de um estado de vel. Os cientistas sociais são, em geral, razoavel-
equilíbrio e a tendência para aproximar-se dele mente bons para prever os efeitos de curto prazo de
devem ser demonstradas, e não pressupostas. Refe- mudanças marginais; para afirmar, por exemplo,
rindo-se ao impacto da Revolução Francesa, em um que se a taxa de mulheres casadas reduzir-se em x
texto escrito em 1855, Tocqueville observou: “Já por cento, a oferta de mão-de-obra crescerá em y
ouvi dizer por quatro vezes na minha vida que a por cento. Mas os impactos de longo prazo de
nova sociedade, conforme a criou a Revolução, mudanças nos padrões de trabalho sobre a religião,
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o casamento, os conflitos sociais ou a marginalida- efeitos do casamento por amor, prática muito
de continuam sendo inteiramente inacessíveis para difundida nas democracias, Tocqueville (1969, p.
nós. Para pensar em um exemplo mais dramático, 596) escreve que “nossos ancestrais tinham uma
imaginem-se os problemas enfrentados pelos pla- opinião muito peculiar sobre o casamento. Notan-
nejadores chineses. Eles se defrontam com a tarefa do que os poucos casamentos por amor no seu
extremamente complexa de estimar os efeitos de tempo quase sempre terminavam em tragédia,
equilíbrio a longo prazo sobre o estado de equilí- chegaram à decidida conclusão de que, nessas
brio produzido por reformas de mercado introduzi- questões, era muito perigoso confiar no próprio
das numa sociedade predominantemente agrária e coração”. Em seguida, indica duas razões pelas
impregnada de duas poderosas ideologias antimer- quais essa opinião é indefensável. A primeira é a
cado: o confucionismo e o marxismo. Como podem discriminação negativa: casar por amor numa so-
os planejadores chineses dizer de antemão se essas ciedade em que isso é exceção é atrair desastre,
ideologias irão frustrar as tentativas de introduzir pois ir contra a corrente tende a provocar a hostili-
um sistema de mercado, ou se o mercado é que se dade dos outros e, por outro lado, a gerar rancor na
deixará corromper pelas ideologias? própria pessoa. A segunda é a auto-seleção negati-
A referência teórica para a análise da segunda va: somente pessoas muito opiniáticas topam sair
parte do meu argumento deriva da argumentação na frente contra a corrente — e isso não é uma
desenvolvida por Tocqueville a respeito da demo- característica favorável a casamentos felizes.
cracia política na América. Sua discussão,17 travada O desempenho de cooperativas de trabalha-
principalmente com os críticos franceses da demo- dores pode ser também influenciado pela discri-
cracia, toma a forma de uma refutação de uma série minação (positiva ou negativa) e pela auto-sele-
de falácias; ao todo, quatro. Essas falácias consis- ção (positiva e negativa). Examinemos primeiro a
tem em, partindo dos efeitos locais, parciais, a curto discriminação positiva. Diz-se que, para as coope-
prazo ou de transição da democracia, fazer inferên- rativas sobreviverem numa economia capitalista,
cias erradas sobre os efeitos, no nível global, elas precisam contar com uma organização de
líquido, a longo prazo, do seu estado de equilíbrio. apoio, fortemente motivada por uma ideologia
Observando que os primeiros efeitos eram em (Gunn, 1984, pp. 57-61). Na medida em que essas
muitos casos negativos, os críticos franceses inferi- organizações têm razão de ser, é evidente que o
ram equivocadamente que a democracia era inde- bom desempenho das cooperativas nelas apoia-
sejável. O fato de as inferências serem injustificadas das não nos permite inferir que um sistema de
não prova, é claro, que as conclusões sejam falsas. cooperativas se sairia igualmente bem. O caso da
Tocqueville alegou, porém, que os efeitos de equi- discriminação negativa é mais estudado. Freqüen-
líbrio da democracia podiam ser observados nos temente se diz que o capitalismo, principalmente
Estados Unidos18 e que sistematicamente demons- suas instituições financeiras, dá um tratamento
travam que as conclusões dos outros estavam desfavorável às cooperativas, de modo que o mau
erradas. No caso de reformas ainda não implemen- desempenho de algumas cooperativas isoladas
tadas ou concluídas, não se pode mostrar da mes- não pode servir de argumento contra o princípio
ma maneira que as inferências levam a conclusões do cooperativismo (ver, por exemplo, Bowles e
equivocadas, apenas que não há razões para crer Gintis, 1976, p. 62). Uma objeção a essa interpre-
que conduzam a conclusões corretas. tação afirma que, em um mercado financeiro
competitivo, nenhuma instituição pode se dar ao
Efeitos locais versus efeitos globais luxo de perder uma oportunidade de lucro (No-
Tocqueville fornece um exemplo instrutivo zick, 1974, pp. 252-253), e ainda que, por sua
da tendência falaciosa de generalizar o efeito de estrutura de propriedade, as cooperativas são al-
uma mudança institucional, introduzida em peque- vos imperfeitos para investimento e empréstimo
na escala, para o efeito obtido quando essa mudan- (Miller, 1981). Mas nenhuma dessas objeções é
ça é realizada em grande escala. Discutindo os inteiramente convincente.19
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 19

A auto-seleção se dá quando as poucas coo- gativas criadas pelas empresas capitalistas ou (b)
perativas existentes em um meio predominante- por não conseguirem internalizar externalidades
mente capitalista atraem (ou só contratam) pessoas positivas geradas por elas mesmas. Um exemplo do
muito motivadas e idealistas, dispostas a trabalhar primeiro caso é a “externalidade ideológica” criada
com afinco, a suportar os custos da participação e, pela presença do trabalho assalariado na econo-
se necessário, a aceitar uma redução de salário. As mia. Em um contexto predominantemente capita-
cooperativas dos trabalhadores florestais do Nor- lista, as cooperativas bem-sucedidas serão tentadas
deste dos Estados Unidos parecem adequar-se a a empregar trabalhadores assalariados a fim de
essa descrição (Gunn, 1984, cap. 3). As cooperati- aumentar sua flexibilidade de ajustamento a mu-
vas de Mondragon, na Espanha, também têm con- danças nas condições do mercado.20 Com isso, no
seguido selecionar os candidatos e admitir apenas entanto, elas podem acabar perdendo tanto as
aqueles que se afinem com o sistema de valores vantagens intangíveis quanto as vantagens tangí-
cooperativistas (Bradley e Gelb, 1982). A auto- veis decorrentes das intangíveis. Outro exemplo da
seleção positiva aparece em mais alto grau ainda primeira situação é a “externalidade da barganha
nos kibutz de Israel (ver Ben-Ner e Neuberger, coletiva”, que Peter Jay (1980, p. 40) definiu da
1982). É claro que a viabilidade dessas cooperati- seguinte maneira: “Na medida em que a grande
vas não implica que o modelo seja facilmente vantagem proporcionada pela economia gerida
transferível para outros lugares. A situação é de pelos trabalhadores é causar [...] o enfraquecimento
certa forma análoga à das escolas particulares de da barganha coletiva, eliminando então o dilema
forte motivação ideológica em comparação com as catastrófico entre o aumento do desemprego ou a
escolas públicas. Como as escolas particulares mui- aceleração da inflação, isso não pode ser compro-
tas vezes conseguem atrair professores excepcio- vado pela análise da experiência de cooperativas
nalmente motivados, produzem resultados difíceis individuais numa economia gerida pelo capital, em
de encontrar em um sistema mais amplo, no qual o que existe uma profunda percepção da necessida-
corpo docente constitui-se, em média, de um corte de da organização sindical e da barganha coletiva.”
transversal da população. A auto-seleção negativa Um exemplo da situação (b) é a “externalida-
também poderia ser encontrada no exemplo de de empresarial” criada pelas cooperativas. Numa
Tocqueville: “É possível que essas experiências de empresa de gestão democrática, os indivíduos do-
reforma atraiam indivíduos instáveis, demasiado tados de talento empresarial não só tomam boas
propensos a correr riscos e pessoas sem orientação decisões: eles educam os companheiros. Os traba-
pragmática.” (Putterman, 1982, p. 152). lhadores de Mondragon, por exemplo, têm sua
A divergência entre os efeitos locais e globais própria escola técnica. Se os operários que se
também pode ocorrer sem que haja seleção e beneficiaram com o treinamento saem da empresa
discriminação, se houver interferência de uma e arranjam emprego numa firma capitalista, o efeito
externalidade positiva ou negativa. Se uma coope- é, na realidade, tornar disponível gratuitamente
rativa isolada pode pegar carona nas empresas para outras empresas esse treinamento. Mesmo que
capitalistas, seu desempenho será melhor do que a cooperativa seja expulsa do ramo porque os
obteria como participante de um sistema de coope- retornos de sua atividade são inferiores aos das
rativas. Se as cooperativas forem ruins de inovação, firmas capitalistas típicas, o retorno social pode ser
mas boas em imitar, serão bem-sucedidas enquanto bem maior para a cooperativa do que para a firma
houver firmas capitalistas dinâmicas para imitar. capitalista. Outro exemplo da situação (b) é o da
Em termos mais conjecturais, a motivação para “externalidade política” criada pelas cooperativas.
participar em empresas auto-administradas depen- Se ser membro de cooperativas produz cidadãos
de de um sentimento de superioridade moral que melhores e se o espírito cívico é um bem público,
pressupõe que a maioria das firmas seja capitalista. as cooperativas geram benefícios difusos não cap-
Por outro lado, cooperativas isoladas pode- tados pelo mecanismo de preços (Pateman, 1970;
riam ser prejudicadas (a) pelas externalidades ne- ver também Krouse e McPherson, 1986). Pode-se
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questionar essa interpretação alegando, primeiro, cado à religião, conforme se pode conferir pela
que, para muitas pessoas, a participação econômi- justaposição de duas passagens: “Enquanto a lei
ca diminui a participação nos assuntos políticos, em permite ao povo americano fazer tudo, existem
vez de aumentá-la. Parafraseando Oscar Wilde, há coisas que a religião os impede de imaginar e
muitas noites para aproveitar. Segundo, há dúvidas proíbe de ousar fazer.” (idem, p. 292). E prossegue
de que a participação nas decisões econômicas Tocqueville: “Duvido que o homem seja capaz de
tenha efeitos positivos em outras arenas, salvo se suportar a completa independência da religião e a
estas forem consideradas valiosas por si mesmas. total liberdade política ao mesmo tempo. Sou
Os efeitos irradiadores da participação são funda- levado a pensar que se ele não tem fé, precisa
mentalmente subprodutos.21 obedecer, e se é livre, precisa acreditar.” (idem, p.
444). O ponto central da primeira passagem é que
Efeitos parciais versus efeitos líquidos a religião é endógena nas democracias, ao passo
Um exemplo engraçado formulado por Toc- que a segunda diz que a religião tende a restringir
queville é o seguinte: “como não existe nenhuma a liberdade potencialmente perigosa que também é
organização preventiva nos Estados Unidos, há parte integrante da sociedade democrática. Natu-
mais incêndios lá do que na Europa, mas, em geral, ralmente, os adversários da democracia focalizam o
eles são apagados mais depressa porque os vizi- que as pessoas podem fazer nesse regime, enquan-
nhos sempre chegam rapidamente ao local do to seus defensores dão ênfase aos limites, endoge-
perigo”. (Tocqueville, 1969, p. 723). A estrutura da namente gerados, sobre o que eles vão querer
argumentação é a seguinte. Queremos analisar o fazer.
efeito de uma variável independente (regime polí- Estruturas causais semelhantes podem surgir
tico) sobre uma variável dependente (número de no caso do socialismo de mercado. De fato, o
casas destruídas pelo incêndio). Entre a causa e o caráter dualista desse sistema é óbvio, pois merca-
efeito há duas variáveis intervenientes que intera- do e socialismo têm conotações muito diferentes e
gem de maneira multiplicativa: o número de casas podem apontar para direções bem opostas. Assim,
que pegam fogo e a proporção dos incêndios que é possível esperar que o aspecto socialista do
não são rapidamente extintos. Não é difícil imagi- sistema, ou seja, a propriedade dos meios de
nar adversários da democracia americana enfati- produção pelos trabalhadores, promova um espíri-
zando o primeiro efeito parcial e os defensores to de cooperação e solidariedade, enquanto o
realçando o segundo. Mas a verdadeira questão é aspecto de mercado tenderia a operar na direção de
saber se o efeito líquido é positivo ou negativo. Na um espírito de competição e até de hostilidade. É
falta de informações mais precisas sobre a força das difícil dizer a priori se as relações pessoais numa
correntes adversárias, talvez não seja possível res- sociedade socialista de mercado seriam modeladas
ponder a essa pergunta. mais pelo primeiro do que pelo segundo aspecto.
Uma forma de raciocínio muito próximo des- O impacto sobre a distribuição de renda
ta é a seguinte: Tocqueville foi o primeiro a ter a também é ambíguo. Por um lado, seria de esperar
ocasião de observar que a democracia tende a que a distribuição de renda dentro das empresas
aumentar as oportunidades das pessoas de modo entre trabalhadores de diferentes níveis de qualifi-
potencialmente perigoso e a assinalar, em seguida, cação fosse relativamente igualitária. Por outro
que a democracia também tende a reduzir o desejo lado, é possível que haja desigualdades duradouras
dessas pessoas de aproveitar essas oportunidades. entre trabalhadores de qualificações semelhantes
Tocqueville (1969, p. 138) observou que a Consti- em empresas diferentes. Como não há mercado de
tuição americana “conferiu muito poder ao presi- trabalho numa economia socialista de mercado,
dente, mas tirou-lhe a vontade de usá-lo”. O poder não existe nenhuma tendência natural para a uni-
decorre de suas prerrogativas e de seu poder de formização dos níveis de salários. As empresas
veto, a falta de vontade de sua constante preocupa- bem-sucedidas, além disso, não tendem a se ex-
ção em reeleger-se. Raciocínio semelhante é apli- pandir e, portanto, a absorver outros trabalhado-
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 21

res.22 E mesmo que convidem outros trabalhadores sária do nível ou velocidade do seu desempenho a
a entrar para essas empresas, os últimos a chegar longo prazo”.24 Para avaliar a eficiência de um
poderiam receber um retorno inferior ao dos pio- sistema, é preciso levar em conta sua capacidade
neiros, caso tenham de pagar o valor de mercado de criar novos recursos e não simplesmente a de
por uma ação da empresa.23 Caberia a esperança alocar os recursos existentes de modo ótimo.
de que, em um ramo lucrativo de atividades, a Argumento semelhante pode ser aplicado ao
criação de novas empresas obtivesse o mesmo caso da propriedade cooperativa. “Se o emprego
resultado que a expansão das firmas tem no capita- parcimonioso e estático de capacidades decisórias
lismo. Todavia, a criação de novas empresas leva escassas, que caracteriza as organizações hierárqui-
mais tempo do que a expansão das antigas e, nesse cas, pode ser vantajoso a curto prazo, essa mesma
meio tempo, a atividade pode perder em lucrativi- característica pode ter a propriedade de retardar a
dade. Quanto aos efeitos parciais, pode-se argu- multiplicação de capacidades que um sistema mais
mentar que a distribuição de renda no socialismo participativo ocasionaria, e que, na realidade, se
de mercado poderá ser mais ou menos igualitária revelaria muito benéfica.” (Putterman, 1982, p. 149;
do que no capitalismo. grifos no original). Esta é uma transposição para a
esfera da democracia econômica do argumento de
Efeitos de curto prazo versus efeitos de longo Tocqueville acerca da democracia política. Note-se
prazo que a questão não é que os sacrifícios a curto prazo
Essa distinção é um caso especial da ante- sejam uma condição necessária para o crescimento
rior, mas suficientemente importante para mere- a longo prazo, conforme demonstra a necessidade
cer uma reflexão em separado. Tocqueville (1969, de investimentos (sacrifício do consumo imediato),
p. 224) escreveu a esse respeito que, “a longo como uma forma de obter um aumento futuro do
prazo, o governo democrático deveria aumentar consumo. Ao contrário, trata-se de que a ineficiên-
as forças reais de uma sociedade, mas não pode cia no curto prazo (e a conseqüente perda de
reunir de imediato, em um ponto determinado e consumo) pode ser um subproduto inevitável do
em um dado momento do tempo, forças tão po- sistema que apresenta o melhor desempenho a
derosas quanto as que estão à disposição de um longo prazo. O sacrifício imediato (a curto prazo)
governo aristocrático ou de uma monarquia abso- está correlacionado com o desempenho a longo
lutista”. Aplicado à guerra, o argumento diz que prazo, mas não é sua causa.
“um povo aristocrático que, ao lutar contra uma
democracia, não conseguir destruí-la na primeira
batalha, sempre correrá o risco de ser derrotado Efeitos de transição versus efeitos do estado de
por ela” (idem, p. 658). Aplicado à tributação, o equilíbrio
argumento alega que “a liberdade engendra muito Tocqueville (1969, p. 688) escreveu que “é
mais mercadorias do que destrói, e nos países preciso ter cuidado para não confundir a realidade
onde isso é compreendido, os recursos do povo da igualdade com a revolução que logra introduzi-
sempre aumentam mais rápido do que os impos- la nas condições da sociedade e nas leis”. Os
tos” (idem, p. 209). produtos do equilíbrio endógeno da democracia
Posteriormente e de maneira independente não devem ser confundidos com os produtos tem-
(suponho), Schumpeter (1961, p. 83) fez a mesma porários da democratização. Os últimos podem ser
afirmação em seu famoso comentário de que “um indesejáveis, mas os primeiros muito desejáveis,
sistema — qualquer sistema, econômico ou não — como Tocqueville demonstra em uma grande
que, em cada momento do tempo, utiliza da quantidade de situações. Por exemplo, “enquanto a
melhor forma todas as suas possibilidades pode, igualdade propicia a solidez dos princípios morais,
ainda assim, a longo prazo, ser pior que um sistema a insurreição social que a promove tem uma in-
que não o faz em momento nenhum do tempo, fluência muito perniciosa sobre eles” (idem, p.
porque seu fracasso pode ser uma condição neces- 599). E mais: “embora as ambições cresçam durante
22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

o processo de criação de igualdade, essa caracterís- tanto do ponto de vista dos atores quanto de um
tica é perdida quando a igualdade se torna um fato observador externo. Em termos genéricos, e tudo o
da realidade” (idem, p. 629). Inversamente, em mais permanecendo constante, um sistema que
seus comentários ao segundo volume sobre a estimula o planejamento a longo prazo terá, com o
Revolução Francesa, Tocqueville questiona a no- correr do tempo, um desempenho superior a um
ção de que os regimes sem liberdade política outro que leva os atores a adotarem horizontes
favorecem a criação literária, porque dão mais muito curtos. Mas, é claro, os outros fatores podem
tempo para as pessoas se dedicarem aos seus não permanecer constantes. Tocqueville disse que
interesses particulares. Muito pelo contrário, diz a democracia americana é produtiva a longo prazo,
Tocqueville (1953, pp. 345-346), a transição da apesar de induzir os atores a pensarem em horizon-
ausência de liberdade para a liberdade é que tende tes de tempo muito curtos. Nas democracias, as
a estimular as artes. Quando a tirania se instala, o pessoas “têm medo de si mesmas, temem que, com
espírito criativo desaparece. a mudança de seus gostos, venham a lamentar não
Esse argumento tem aplicações muito am- terem sido capazes de abandonar algo que antiga-
plas. Para analisar um sistema econômico, social ou mente foi objeto de seu ardente desejo” (Tocquevi-
político, não se deve examinar seu desempenho lle, 1969, p. 582). Por isso elas “realizam muitos
imediatamente posterior à sua introdução, mas empreendimentos com rapidez em vez de erigirem
esperar até que as propriedades de equilíbrio do monumentos duradouros” (idem, p. 631). No en-
sistema tenham tido tempo de emergir.25 Quer o tanto, seu desempenho a longo prazo é melhor do
sistema de transição tenha um desempenho melhor que o das pessoas capazes de enxergar mais longe.
ou pior do que o novo estado de equilíbrio, Cada realização isolada é menos impressionante,
certamente será diferente deste em muitos e impor- mas “sua incansável atividade, sua grande abun-
tantes aspectos. “Portanto, comparar a eficiência de dância de energia e força” (idem, p. 243) permite-
uma instituição participativa, que conta com mem- lhes realizar muito mais.
bros hierarquicamente adaptados, com a eficiência Todavia, a estabilidade das preferências do
de uma instituição hierárquica com o mesmo tipo consumidor é apenas um fator determinante do
de membros pode ser um procedimento tenden- planejamento a longo prazo. Outro fator, muito mais
cioso, pois a instituição participativa que tem esse importante, é a estabilidade do ambiente institucio-
tipo de membros pode não ser uma proxy adequa- nal. Os agentes econômicos relutam em realizar
da para uma organização participativa bem consti- investimentos que demoram muito para produzir
tuída que poderia desenvolver-se em condições frutos se temem a imposição de novos impostos ou
mais ideais” (Putterman, 1982, p. 149). Ao contrá- mudanças no sistema básico dos direitos de proprie-
rio, numa economia cooperativa bem organizada dade. As reformas em curso na China são uma boa
haveria ganhos de transição a ser alcançados com o ilustração desse ponto. Os reformadores chineses
retorno da hierarquia, pois, durante um certo tem- dizem claramente que estão empenhados numa
po, seria possível usufruir tanto das capacidades gigantesca experiência. Em uma frase muito repeti-
geradas pelas cooperativas quanto da utilização da, comparam o processo de reformas “a sentir as
eficiente dessas capacidades que a hierarquia havia pedras debaixo dos pés quando cruzam o rio”,
possibilitado. sugerindo que pode ser necessário voltar a uma
Além desses quatro argumentos usados por posição anterior, caso determinada linha de ação
Tocqueville para mostrar que o aprendizado pela conduza a águas mais profundas. Essa atitude certa-
experiência e com a experimentação não pode mente induz os agentes econômicos a tomar uma
substituir a teoria, gostaria de tratar de outra razão, perspectiva de tempo muito curta. Sabendo que, na
ainda na linha de Tocqueville. Assim como alguns hipótese de um fracasso da reforma, ela será imedia-
temas analisados até aqui, minha questão refere-se tamente abandonada, adotam uma atitude prudente
à dimensão temporal da mudança política. Ao e cautelosa que, por sua vez, aumenta a probabili-
contrário de Tocqueville, porém, abordo o tempo dade de fracasso. Essa tendência é reforçada pelas
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 23

pressões políticas para obter resultados rápidos, tiva e irreversível. Isso se faz uma vez ou duas, mas
devidas, em parte, ao fato de a reforma agrária de decerto não é possível enganar o povo o tempo
1978 ter obtido um êxito tão rápido e tão notável inteiro. Cada reviravolta provoca uma perda de
que os operários agora esperam que a reforma confiança; cada recuo na travessia do rio derruba
industrial tenha igual sucesso; em parte porque os algumas pedras e torna mais difícil a nova tentativa
grupos conservadores tenderão a usar, a qualquer de atravessá-lo.
custo, qualquer prejuízo imediato como pretexto
para bloquear o processo das reformas.
Irracionalidade política
Isso implica, na prática, que os novos empre-
sários somente se disporão a investir se houver De acordo com o modelo da ação racional
perspectivas de superlucros, suficientes para recu- individual,* a irracionalidade pode decorrer da
perar seus investimentos em um prazo de dois a fraqueza de vontade, do excesso de vontade e de
três anos. Numa economia que transita do planeja- distorções na formação das crenças ou preferên-
mento centralizado para o regime de mercado há cias. Não discutirei aqui os análogos políticos da
muitos desequilíbrios a ser explorados por empre- última classe de fenômenos. Pelas razões explica-
sários desejosos de enriquecer depressa.26 Há mui- das na primeira seção, não existe nenhum modelo
to menos incentivos para investir produtivamente a canônico de crenças e preferências racionais na
longo prazo. Além disso, os empresários bem- esfera da política; portanto, não existe uma noção
sucedidos tendem a não reinvestir os lucros na clara do significado de crenças racionais e prefe-
empresa, preferindo empregá-los em mansões par- rências racionais. Acredito, em vez disso, que a
ticulares, menos vulneráveis ao confisco pelo Esta- fraqueza de vontade e o excesso de vontade
do. Da mesma maneira, os camponeses investem efetivamente surgem no decorrer da ação política;
seus rendimentos em habitação, em vez da melho- a primeira, porque a sociedade talvez não seja
ria das suas terras, pois não estão muito convenci- capaz de manter decisões passadas, já que nenhu-
dos da promessa do governo de respeitar o prazo ma autoridade superior obriga-a a sustentá-las; o
de 15 anos de arrendamento das terras. segundo, porque a sociedade, mais ainda do que o
Por conseguinte, a situação dos planejadores indivíduo, está constantemente sujeita à tentação
é muito difícil. Em termos ideais, gostariam de de empregar meios cujo conhecimento os tornaria
apresentar cada nova reforma como definitiva e ineficazes. Não admira, portanto, que a analogia
irreversível, já que a eficácia e os benefícios de uma entre indivíduo e sociedade seja muito imperfeita.
reforma dependem muito da certeza que se tenha Na realidade, o valor da comparação está nas
de que ela durará tempo suficiente para valer a inúmeras dissimilitudes que ajudam a compreender
pena fazer investimentos de longo prazo. Na práti- claramente o que está envolvido nas duas modali-
ca, é claro que tais afirmações não são críveis na dades de irracionalidade.
falta de instrumentos irreversíveis de comprometi- No indivíduo, a fraqueza de vontade pode
mento prévio. Na próxima seção argumento que os decorrer seja do poder da paixão, seja da incapaci-
planejadores chineses talvez não tenham mesmo dade de sustentar uma decisão tomada no passado.
condições de assumir esses compromissos. Além O primeiro caso é exemplificado pelo homem que
do mais, não está claro se desejariam assumi-los, abandona a mulher porque se apaixonou por outra;
mesmo que pudessem. Se as reformas de mercado o segundo, pelo homem que promete a si mesmo
provocassem fome e desemprego generalizado, começar a fazer ginástica no dia seguinte. Existem
eles não desejariam se ver impedidos de abandonar alguns análogos políticos imperfeitos às duas situ-
tais compromissos.27 Concluo, portanto, que a ações. As sociedades democráticas podem ceder a
própria noção de “fazer experiências de reformas” impulsos antidemocráticos mobilizados por temo-
não tem quase nenhum sentido, a não ser que os res irracionais ou pela demagogia. Impostos cria-
planejadores consigam enganar os agentes econô-
micos, levando-os a pensar que a reforma é defini- * Modelo dezenvolvido no capítulo 1 do mesmo livro.
24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

dos como medidas temporárias tendem a se tornar modo que seus ministros prestam-lhe obediência
permanentes não obstante a firme intenção de total quando se recusam a executar uma ordem
aboli-los assim que desaparecer a situação que os sua que transgride às leis. Pode-se esclarecer esse
provocou. Em um nível mais geral, os políticos ponto com o exemplo de Ulisses, cujos compa-
empenhados na sua reeleição estão constantemen- nheiros de fato cumpriram sua ordem ao se
te sujeitos à tentação de postergar a resolução dos recusarem, apesar de todos os seus pedidos e
problemas. ameaças, a desamarrá-lo do mastro do navio
No caso do indivíduo, as respostas gerais à enquanto ele estivesse enfeitiçado pela canção da
fraqueza de vontade são o comprometimento pré- sereia; e deve-se creditar ao seu bom senso que
vio [precommitment] (Elster, 1984; Schelling, 1984, ele lhes tenha agradecido depois por terem cum-
caps. 3, 4 e 6) e o bunching * (Ainslie, 1982, 1984 e prido sua intenção original de maneira tão obedi-
1986). Para um homem, o casamento é um compro- ente. Até mesmo os reis seguiram o exemplo de
metimento prévio com uma mulher que torna me- Ulisses; geralmente, instruíam seus juízes a não
nos provável, embora legalmente possível, o divór- terem nenhuma deferência com as pessoas na
cio. O tempo que demora concluir um processo de aplicação da justiça, nem mesmo com o próprio
divórcio cria uma oportunidade para que a paixão rei, se porventura ele ordenasse algo que signifi-
esfrie um pouco e ele reflita melhor. Posso me forçar casse uma transgressão às leis estabelecidas. Por-
a fazer ginástica fixando um contrato de pagar uma quanto os reis não são deuses, mas homens,
grande quantia a uma instituição de caridade se não muitas vezes adulados pelo canto da sereia. As-
cumprir a decisão. O último problema, ao contrário sim, se tudo ficasse na dependência da vontade
do primeiro, também pode ser resolvido por bun- inconstante de um único homem, nada seria
ching: se eu não começar a correr hoje, será que estável. (Tractatus politicus, VII.1)
algum dia o farei? Na discussão que se segue,
deixarei de lado o bunching, que não me parece ser Raciocínio semelhante aplica-se às democra-
um mecanismo importante na política, e me con- cias.28 Se todas as questões estivessem sujeitas ao
centrarei no comprometimento prévio como solu- voto por maioria simples, a sociedade não teria
ção para a fraqueza de vontade política. estabilidade e previsibilidade. Uma pequena maio-
Numa análise anterior do problema, Spinoza ria pode ser facilmente derrubada por eventualida-
estabeleceu uma analogia clara entre o comprome- des da participação ou pela mudança de opinião de
timento prévio do indivíduo e o da política: alguns poucos indivíduos. E o que é mais importan-
te, se a maioria fosse movida por paixões passagei-
Não é de modo algum contrário à prática que as ras ou expedientes imediatos, poderia atuar de
leis sejam tão firmemente estabelecidas que o maneira imprudente e passar por cima de direitos
próprio rei não as pode revogar. Os persas, por individuais concedidos por decisões anteriores.
exemplo, costumavam adorar os reis como deu- Todas as democracias, diretas ou indiretas, sempre
ses, no entanto os próprios reis não tinham poder contaram com instrumentos estabilizadores para
para revogar as leis já estabelecidas, como revela evitar que todas as questões fossem resolvidas por
claramente o livro de Daniel, capítulo 6; e, em maioria simples o tempo todo. Nas democracias
lugar algum, ao que eu saiba, um rei é nomeado representativas modernas, a auto-imposição de li-
de modo incondicional, sem quaisquer termos mites [self-binding] pode assumir várias formas (ver
explícitos. Na verdade, isso não é contrário nem à Elster e Slagstad, 1988). A abdicação ao poder na
razão nem à obediência absoluta devida ao rei, democracia se dá quando a assembléia delega, de
pois as leis fundamentais do Estado devem ser modo irrevogável, determinada parcela de poder a
encaradas como decretos permanentes do rei, de organismos independentes, como o Federal Reser-
ve Board ou o Fundo Monetário Internacional. As
* O termo bunching, neste contexto, significa tomar várias constituições políticas também contêm limitações
decisões ao mesmo tempo e não uma de cada vez. ao poder democrático, por meio de uma combina-
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 25

ção de regras substantivas de proteção à privacida- tivesse sido aprovada nenhuma lei que os proibisse
de, à propriedade e às liberdades civis, e regras de expressamente. Igualmente, “até 1980, o tamanho
procedimento que exigem mais do que uma maio- da empresa privada era limitado a sete trabalhado-
ria simples para a realização de uma mudança res. A restrição foi revogada, mas não se decretou
constitucional. nenhuma lei que permitisse o emprego de mais do
Entretanto, a analogia entre a auto-imposição que sete trabalhadores até 1987, de modo que a
individual e a auto-imposição política de limites é simples suspensão do limite de sete trabalhadores
extremamente restrita. Um indivíduo pode com- não foi suficiente para favorecer a formação de
prometer-se com determinadas ações, ou, pelo empresas privadas. [...] A não ser que uma autorida-
menos, tornar mais difícil e menos provável des- de estatal tenha explicitamente introduzido nas
viar-se delas, recorrendo a uma estrutura legal regras um determinada prática, ela poderia ser
externa e independente de si próprio. Mas não arbitrariamente considerada ilegal.” (Roemer, 1988).
existe nada externo à sociedade. Com exceção de Nesse tipo de sistema, os sinais políticos são
alguns casos especiais, como a abdicação de pode- mais importantes do que as leis para indicar aos
res ao FMI, as sociedades não podem confiar sua indivíduos o que eles podem ou não podem fazer.
vontade a estruturas fora do seu próprio controle: Janos Kornai diz que existem limites para a reforma
os vínculos sempre podem ser desfeitos se as econômica em qualquer economia socialista en-
sociedades assim o desejarem. O problema não é quanto a “burocracia não esteja disposta a respeitar
explicar por que tantas constituições fracassam em um refreamento voluntário de intervir” (apud
impor obediência a seus criadores e nunca passam Dernberger, 1987). Mas essa não me parece ser a
de meros pedaços de papel escrito. A questão está maneira correta de formular a questão. O problema
em compreender de que maneira muitas constitui- é se a burocracia é capaz e está disposta a se fazer
ções conseguem adquirir essa misteriosa capacida- incapaz de intervir, já que a tentação de fazê-lo
de de serem obedecidas.29 sempre estará presente. Há necessidade de novas
Para ilustrar o problema, retorno ao processo medidas constitucionais, inclusive medidas que
de reformas em curso na China. Além dos proble- retirem a interpretação da Constituição das mãos
mas criados pela atitude experimental em relação às daqueles que ela supostamente deve conter. Atual-
reformas, um importante obstáculo ao êxito e ao mente, “o Congresso Nacional do Povo pode decre-
progresso chinês é a ausência do princípio da tar qualquer lei que deseje, ignorando o espírito e
legalidade, que se define da seguinte maneira: (a) a letra da Constituição. Isso porque a Constituição
uma ação individual é permitida a não ser que exista concedeu o poder de interpretar a Constituição ao
uma lei que a proíba expressa e inequivocamente; Comitê Permanente do Congresso Nacional do
(b) a intervenção do Estado é proibida a não ser que Povo. [...] Não se pode sequer imaginar que esse
exista uma lei que a autorize expressa e inequivoca- órgão subordinado interprete uma lei decretada
mente. Em vez disso, a tradição chinesa contém uma por seu organismo de origem, isto é, o Congresso
concepção positiva da lei, segundo a qual (a) uma Nacional do Povo, como sendo inconstitucional.”
ação individual é permitida se houver uma lei que a (Chiu, 1987).31
autorize expressamente; (b) o Estado tem o direito Afirmei, até aqui, duas coisas a respeito das
de intervir em todas as atividades não permitidas, reformas na China. Primeiro, que a ausência de
mesmo que não sejam expressamente proibidas.30 regras permanentes e estáveis impõe dificuldades
Se uma atividade não é permitida pela lei, os aos agentes econômicos para a realização dos
indivíduos podem ou não ser autorizados a realizá- investimentos de longo prazo necessários ao suces-
la — eles nunca podem saber. Por exemplo, houve so das reformas. Nas atuais circunstâncias, isso
uma época em que havia uma lei permitindo a talvez seja inevitável. Se os planejadores tivessem
confecção de cartazes murais. Mais tarde, quando de se comprometer de modo irreversível e definiti-
essa lei foi revogada, interpretou-se que havia uma vo com um sistema específico de propriedade,
proibição de confeccionar cartazes, embora não tributação e transferências para os particulares, o
26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

resultado poderia ser desastroso, acarretando de- direitos venham a ser abolidos quando a economia
semprego e fome em larga escala. O comprometi- enfrentar dificuldades. Mesmo que os planejadores
mento prévio pode gerar mais problemas do que abdicassem do poder de interpretar a Constituição,
soluções quando o contexto é suficientemente por muito tempo teriam ainda condições de agir fora
incerto e imprevisível.32 Em termos ideais, nós da lei. A curto e médio prazos, o Partido Comunista
gostaríamos de poder distinguir os bons dos maus Chinês não poderá fazer-se efetivamente incapaz
motivos para quebrar regras; os bons motivos de reverter o processo de reformas. Ele tem muitas
seriam a razão para criar regras em primeiro lugar, espécies de poder, mas não o poder de se fazer sem
e os segundos seriam exceções legítimas devidas a poder. Ulisses teve sorte porque tinha à mão a
circunstâncias não previstas. (Afinal de contas, às tecnologia necessária para impor a si mesmo uma
vezes temos boas razões para cancelar uma consul- limitação. Os planejadores centrais não dispõem de
ta ao dentista.) Os indivíduos usam uma variedade meios para atar suas próprias mãos e para impedir
de expedientes para fazer essa distinção, mas estes seus subordinados de as desatar. Em conseqüência
são sempre frágeis e vulneráveis ao auto-engano disso, os agentes econômicos tenderão a adotar um
(Ainslie, 1986). Pareceria ainda mais difícil para um horizonte curto de tempo, de modo que o sistema
sistema político construir não só salvaguardas de terminará realmente entrando em crise. Somente se
primeira ordem contra a impulsividade, mas tam- e quando os direitos são adotados em bases não
bém salvaguardas de segunda ordem contra a instrumentais adquirem a desejada eficácia instru-
obediência irracionalmente rígida ao primeiro tipo mental, porque somente então o governo terá credi-
de garantias e proteções. Não é uma questão de bilidade para declarar que as violações dos direitos
vigiar os guardas, mas de fazê-los abaixar a guarda não serão toleradas.
em casos de força maior.33 Ao sugerir que os efeitos salutares da liberda-
Meu segundo comentário sobre a prática dos de são essencialmente subprodutos, sigo mais uma
reformadores chineses, que trata da falta do princí- vez a opinião de Tocqueville (1952, p. 217):
pio da legalidade, é mais crítico. Aceitar a necessida-
de da experimentação e os perigos de um compro- Tampouco penso que um genuíno amor pela
metimento muito rígido é uma coisa; admitir a liberdade é despertado pela perspectiva de re-
legislação retroativa e a invocação de uma concep- compensas materiais; na realidade, essa perspec-
ção positiva da lei é outra. Essas práticas estimulam tiva é muitas vezes duvidosa, pelo menos no que
a passividade e a relutância em assumir qualquer diz respeito ao futuro imediato. É verdade que, a
tipo de risco. Nesse sentido, o atual regime vem longo prazo, a liberdade sempre traz conforto e
perpetuando os anos turbulentos vividos entre 1957 bem-estar para aqueles que sabem como conser-
e 1976, que criaram nas pessoas uma tendência vá-la e, muitas vezes, grande prosperidade. Entre-
profundamente arraigada de viver no tempo futuro, tanto, às vezes, ela não traz comodidades dessa
constantemente se perguntando sobre como suas natureza e, inclusive, há ocasiões em que o
ações seriam interpretadas e punidas se “o outro despotismo é mais capaz de assegurar um breve
lado” retomasse o poder. O primeiro passo na desfrute dessas amenidades. Na realidade, os que
direção de uma reforma constitucional deve ser, prezam a liberdade apenas por causa dos benefí-
portanto, introduzir o princípio da legalidade. cios materiais que ela oferece nunca a conservam
Finalmente, há uma questão de maior profun- por muito tempo.
didade: será que os reformadores poderão realizar
reformas constitucionais sem um compromisso nor- Tampouco aqueles que prezam a liberdade
mativo com o princípio da legalidade e com os apenas por causa dos benefícios materiais que ela
direitos individuais? Se eles introduzirem um siste- oferece conservaram esses próprios benefícios. A
ma constitucional e renunciarem a alguns dos seus tentativa deliberada de criar liberdade política como
poderes apenas para fazer a economia funcionar, os meio de obter prosperidade material é uma forma
agentes econômicos sempre irão temer que os de excesso de vontade. Para que a liberdade seja
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 27

valiosa do ponto de vista instrumental é preciso que se destinavam estão: as tentativas de manter os
se saiba que ela tem uma base não instrumental, jovens nas escolas (ou universidades), mais para
caso contrário ela não garantirá a segurança e a paz evitar que eles se tornem problemas do que para
de espírito que ocasionam seus efeitos salutares. ensinar-lhes conhecimentos; a generalização da
Saber que as liberdades só foram concedidas por ênfase na participação, no process values e no
motivos instrumentais retira parte de sua eficácia dignitary values, como objetivos em si mesmos
instrumental, porque os cidadãos nunca podem mais do que como instrumentos de aperfeiçoamen-
confiar em que o governo não virá a mutilá-las, se to dos resultados; e, nas economias de planejamen-
assim lhe parecer vantajoso a curto prazo. to central, a prática de fixar deliberadamente metas
Um problema correlato está latente em muitos irrealizáveis para forçar os agentes a um esforço
programas governamentais de frentes de trabalho.34 máximo. Esses programas tendem a dar melhores
Entre os benefícios freqüentemente citados desses resultados (e, portanto, são mais atraentes) na
programas está seu efeito sobre o auto-respeito das política do que no caso do indivíduo, porque, na
pessoas que têm emprego. De fato, é verdade que primeira hipótese, o sujeito e o objeto da vontade
estar desempregado e viver à custa do seguro- excessiva são agentes distintos. Quando o governo
desemprego pode ser nocivo para o auto-respeito promove a liberdade para incentivar a iniciativa
de uma pessoa, mas não é evidente que um trabalho dos cidadãos, ou cria empregos para manter o auto-
cujo único e principal objetivo é criar o auto- respeito dos trabalhadores, os grupos alvo não
respeito produza o efeito pretendido.35 Para gerar precisam estar informados dessas intenções. Um
auto-respeito, um trabalho precisa ter como objetivo indivíduo, ao contrário, dificilmente está alheio à
imediato a produção de bens e serviços socialmente sua intenção de vencer a insônia ou de ser mais
considerados valiosos. O valor não instrumental do espontâneo.
auto-respeito somente pode ser alcançado como Todavia, as sociedades democráticas são cons-
subproduto do valor instrumental de produzir bens truídas sobre a premissa de que o governo não deve
e serviços. A experiência dos programas de frentes enganar os cidadãos, mesmo que seja para o próprio
de trabalho na década de 30 apóia essa opinião: bem deles. A condição da publicidade, propagada
por Kant e Rawls,36 elimina o tipo de embuste capaz
A economia política das frentes de trabalho criou de permitir que o governo ponha em prática políti-
uma série de obstáculos aos fatores de produção, cas insustentáveis à luz do dia, tais como trabalho,
à tecnologia, à organização e ao tipo de produtos. educação e participação fictícios. Mesmo nas socie-
Esses obstáculos afetaram o valor social do produ- dades não democráticas e em sociedades apenas
to. Não só a eficiência das medidas tornou-se formalmente democráticas, nas quais essa condição
muito inferior à dos programas comparáveis de é violada, em geral os governos não são capazes de
contratos, como também as forças políticas de sustentar o embuste por muito tempo. A hipocrisia é
uma economia de livre iniciativa tornaram esses contagiosa. Treinamentos e empregos de faz-de-
programas não competitivos. A restrição dos tipos conta criam estudantes e trabalhadores de faz-de-
de projetos foi provavelmente o fator mais grave conta. O entusiasmo simulado com que o gerente da
na diminuição do valor do produto. Os benefícios fábrica anuncia as metas planejadas para o ano
não pecuniários que deveriam ser derivados dos seguinte acaba por traí-lo.
programas de frentes de trabalho — sustentação
da moral, das qualificações e dos hábitos de traba-
lho — dependiam eles mesmos, e de maneira
Alternativas ao racionalismo na
decisiva, do valor do produto. (Kesselman, 1978,
política
p. 215; grifos meus) Se a concepção de racionalidade baseada no
ator unitário não consegue orientar ou explicar a
Entre as políticas que, por razões semelhan- ação política, quais seriam as possíveis alternativas?
tes, acabam gerando o resultado contrário ao qual A questão da explicação reduz-se a uma análise do
28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

comportamento individual uma vez reconhecida a justiça como direito não instrumental à igualdade
necessidade de desagregar o processo político. de consideração e de respeito que, sob vários formas,
Nesta seção focalizo o problema normativo: que é subjacente aos estudos de John Rawls e Ronald
tipos de argumentos para a ação são coerentes com Dworkin. Isso inclui principalmente o direito à igual
os limites cognitivos à racionalidade que estou participação na formulação de decisões políticas e
procurando mostrar? A resposta de Michael Oake- no bem-estar material. Segundo essa concepção, as
shott e Friedrich Hayek seria a de que a fragilidade desigualdades apenas se justificam em um conjunto
da razão humana exclui por completo a reforma muito restrito de condições. A exclusão do direito de
consciente e deliberada. Na opinião desses autores, voto somente se justifica por razões de grave inca-
tentativas de mudar a sociedade numa direção pacidade mental. Desvios do padrão de completa
específica consistem no que denominam de “racio- igualdade nas condições de bem-estar material só
nalismo” e no que Otto Neurath chamou de “pseu- podem ser justificados por dois critérios de não-
do-racionalismo”, a incapacidade da razão de defi- perversidade: primeiro, não deveria haver compen-
nir e respeitar seus próprios limites. Sustentarei, sação e redistribuição quando os benefícios conce-
porém, que não se pode extrair essa conclusão didos aos indenizados forem pequenos em compa-
excessivamente cética, porque nem todas as razões ração com os custos que acarretam para outros;37
para a reforma são de natureza conseqüencialista. segundo, não deveria haver compensação se esta
Dentro do paradigma da teoria das decisões implicar tratar os beneficiários como não responsá-
foram formuladas várias alternativas à abordagem veis por seus próprios estados mentais.
conseqüencialista. Isaac Levi (1974) sugere, por O ponto central da minha argumentação é
exemplo, que a segurança e o diferimento podem que, na medida em que o princípio subjacente às
suplementar a racionalidade instrumental como cri- reformas for considerado fundamentalmente justo,
tério de escolha em condições de incerteza. É no sentido acima indicado, as pessoas estarão
evidente que ambos são relevantes para a ação dispostas e motivadas a suportar os custos da
política. Na escolha da forma de energia — fóssil ou transição e a experimentar diversas modalidades de
nuclear —, é muitas vezes difícil estimar os custos e implementação. Quem achar essa proposição ex-
os riscos (Elster, 1983b, apêndice 1). Uma linha de cessivamente idealista talvez se sinta mais interes-
argumentação consiste em pressupor que o pior vai sado numa outra maneira de formulá-la: se uma
acontecer, e optar, por exemplo, pelos riscos locais reforma é geralmente considerada justa, é difícil
de um acidente nuclear, ao invés do risco universal alguém fazer-lhe oposição de modo um pouco
do efeito estufa. Outra maneira de pensar é dar mais entusiasmado. Geralmente é fácil distinguir a
ênfase à necessidade de ganhar tempo e manter verdadeira oposição às reformas de campanhas
abertas nossas opções até que se tenha um maior que sabidamente não vão dar em nada, destinadas
conhecimento dos riscos envolvidos na escolha. apenas a adiar o inevitável.
Neste artigo, quero ir além da abordagem da Examinemos primeiro o caso da extensão do
teoria das decisões e sugerir que a justiça propor- direito de voto. Nas democracias, o direito de voto
ciona uma motivação alternativa para a realização é necessariamente limitado pela idade e pela con-
de reformas políticas. Não acredito que as principais dição de cidadão (ou residente). Além desses
reformas políticas realizadas no último século te- limites, não há restrições inerentemente indispen-
nham-se apoiado sobretudo em razões instrumen- sáveis e, na maioria das democracias, hoje em dia
tais; ao contrário, elas foram defendidas por movi- existem poucas restrições além dessas. Antigamen-
mentos sociais ancorados numa concepção de justi- te, porém, houve numerosas e fortes limitações.
ça. Ilustro essa proposição com dois principais Pode-se distingui-las por seu conteúdo substantivo
exemplos: a extensão do direito de voto e o surgi- ou, o que é melhor, por sua motivação subjacente.
mento do welfare state. Posteriormente, aplico a Restrições econômicas, como a posse de
mesma idéia a algumas propostas em curso para a propriedades ou o pagamento de impostos, foram
reforma econômica. Baseio-me na concepção da justificadas pelo menos de quatro maneiras diferen-
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 29

tes.38 Primeiro, antes da introdução do voto secre- sua família. A relação estabelecida entre o sufrágio
to, a prosperidade econômica foi muitas vezes universal e o serviço militar obrigatório baseia-se
entendida como garantia da integridade que se em razões de justiça comutativa.41 A privação do
considerava necessária para evitar que os eleitores direito de voto dos soldados que estão no serviço
fossem comprados.39 Segundo, considerava-se fre- ativo, ao contrário, justifica-se pelo fato de serem
qüentemente que a posse de propriedades conferia membros temporários da corporação e de, por isso,
aos seus donos uma competência especial para não terem interesse algum na sua prosperidade a
participar da política, ou porque a propriedade era longo prazo (Ely, 1980, p. 120). Alega-se essa
vista como uma proxy para a educação (daí o fato mesma razão para vetar a representação estudantil
de que possuir propriedades eximia a pessoa do nos organismos dirigentes das universidades e para
teste de alfabetização), ou porque se acreditava impor requisitos estritos de residência para que
que a propriedade era uma garantia de que o uma pessoa tenha o direito de votar em eleições
indivíduo dispunha do tempo livre necessário, ou locais. A comprovação de ser alfabetizado tem a
ainda porque se pensava que ter propriedades finalidade de separar os eleitores mais competentes
levaria o indivíduo a interessar-se pelo bem-estar dos menos qualificados. A privação do direito de
da sociedade a longo prazo e não ser movido voto dos doentes mentais justifica-se pelos mesmos
apenas pelo desejo de obter ganhos imediatos. Os motivos. Os criminosos não podem votar enquanto
proprietários de terras, por exemplo, foram espe- estiverem confinados, ou mesmo depois de soltos,
cialmente favorecidos por essas razões. Terceiro, a por razões de justiça comutativa, mas os legislado-
taxa de imposto fixo por pessoa [poll tax] foi res possivelmente também foram influenciados
defendida porque se acreditava que a disposição pela idéia de que as opiniões políticas dos crimino-
para pagar impostos demonstrava um alto nível de sos condenados tendem a ser distorcidas ou falsas,
motivação e interesse nas questões políticas.40 A e, portanto, eles não devem ser representados.42
principal alegação a favor da poll tax, no entanto, Por fim, a exclusão das mulheres foi justificada por
era que ela indicava que um cidadão era competen- razões de competência ou de justiça comutativa
te para deliberar. Por último, as limitações econô- (porque as mulheres não são obrigadas ao serviço
micas foram justificadas com base na justiça comu- militar).
tativa: não deve haver tributação sem representa- Os argumentos baseados na justiça comutati-
ção, e vice-versa. Entre esses argumentos, os três va partem de uma visão da sociedade como uma
primeiros são claramente instrumentais, no sentido sociedade anônima, em que os cidadãos cooperam
de que seu objetivo é produzir decisões substanti- visando obter vantagens mútuas. Embora os contri-
vamente boas. Passariam no teste “de racionalida- buintes do imposto de renda possam estar dispos-
de” e até mesmo no teste de “inspeção especial” do tos a gastar uma parte do que pagam com os não
que constitui uma classificação admissível (Ely, contribuintes, geralmente insistem em participar da
1980, pp. 31, 120-124 e 146-148). O último argu- decisão de empregar o dinheiro dessa maneira e,
mento baseia-se em considerações sobre a justiça, crucialmente, em excluir os não contribuintes dessa
mas de um tipo muito especial e restrito, como decisão.43 “Não há representação sem tributação.”
argumento abaixo. Mais adiante, sustento que existe uma ambigüidade
A maioria das outras restrições pode ser na expressão “não contribuinte”, que pode incluir
classificada em uma dessas categorias. A exclusão tanto os que estão permanentemente incapacitados
dos filhos que residem com a família mas não têm para o trabalho e, portanto, não têm condições de
um quarto próprio era uma prática usual na Grã- pagar imposto de renda, quanto os que estão
Bretanha antes de 1914, e justificava-se por uma temporariamente sem emprego. Por ora basta notar
razão de integridade: não era possível formar uma que, nas duas acepções, destituir os não contri-
opinião política de modo adequado e independen- buintes (ou, em decorrência, os que não prestam
te se a pessoa não dispusesse da privacidade ou não podem prestar serviço militar) do direito de
mínima de ter um quarto só para si na residência da voto baseia-se numa concepção muito estreita de
30 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

justiça. Trata-se da visão de que uma sociedade cipação política — seja mais freqüentemente encon-
bem organizada nasce de uma negociação entre trada em qualquer dos grupos mencionados, ou em
indivíduos motivados pelo interesse próprio, na qualquer outro grupo. O governo dos inteligentes,
qual os que não têm nada a contribuir e, por ricos e cultos tende a tornar-se, e a continuar sendo,
conseguinte, nenhum poder de barganha também o governo para os inteligentes, ricos e cultos. (f) Os
não podem esperar receber coisa alguma, exceto que são impedidos de votar raramente são impedi-
das instituições de caridade.44 dos de reclamar que deveriam votar. Em conse-
O sufrágio adulto universal fundamenta-se qüência disso, os grupos privilegiados se vêem
numa concepção mais simples e mais atraente, que frente a frente com um dilema: caso se recusem a
transcende ao mesmo tempo as considerações ins- oferecer explicações, enfraquecem sua própria po-
trumentais e de justiça comutativa. De fato, a socie- sição como donos de uma sabedoria superior; se
dade é uma joint venture, mas o que une seus fornecerem explicações, implicitamente estarão re-
membros não é apenas o interesse mútuo, mas conhecendo os grupos excluídos como seus iguais
também o respeito mútuo e a tolerância recíproca. em inteligência.45 Uma vez instalada alguma forma
Se o primeiro passo no desenvolvimento da demo- de democracia, a defesa de um privilégio parcial
cracia foi a idéia de que nenhum grupo de pessoas torna-se insustentável; não haverá compromisso
podia imaginar-se intrinsecamente superior aos ou- possível entre contrários: a democracia tem de
tros (Barry, 1979), o segundo foi que nenhum grupo expandir-se ou desaparecer. A condição de publici-
podia imaginar-se intrinsecamente inferior aos ou- dade assegura que a igualdade é promovida pela
tros. Esse argumento, reformulado, desenvolve-se própria tentativa de combatê-la.
da maneira que se segue. (a) Não existe nenhum Freqüentemente se diz que a extensão do
grupo, seja qual for sua definição (os ricos, os direito de voto deve ser interpretada em termos de
nobres, os proprietários de terras, os homens, os exigências de legitimidade (ver, por exemplo, Free-
velhos, os educados ou os inteligentes), cuja totali- man e Snidal, 1982). Os governos e as classes
dade dos seus membros seja intrinsecamente mais dominantes aboliram sucessivamente as restrições
apta do que os não membros para tomar decisões ao direito de voto porque foram obrigados a fazê-lo
políticas. (b) Como as afirmações de superioridade para manter sua legitimidade. Se o sufrágio adulto
ou inferioridade podem ter no máximo validade universal não tivesse sido concedido, haveria um
estatística, há razões para que as pessoas se sintam grande descontentamento e inquietação social; por
ofendidas e rebaixadas pela exclusão decorrente de isso, governos escolhidos por um eleitorado restrito
uma generalização que inevitavelmente comporta optaram pelo menos pior, ou seja, foram motivados
exceções. (c) A escolha de especialistas para averi- pela racionalidade instrumental ao ampliarem o
guar o fundamento das afirmações de superioridade direito de voto. Essa opinião pode ter algum grau de
e inferioridade é uma questão passível de disputa, verdade, mas fica muito aquém de uma explicação
da qual nenhum grupo potencialmente inferior cabal. Argumentos baseados na legitimidade pres-
deveria ser excluído. (d) Caso fique demonstrado supõem outras razões. A não ser que a maioria da
que os membros de algum grupo carecem da população desejasse a extensão do sufrágio por
necessária competência e motivação, dever-se-ia outros motivos, os governos não perderiam legitimi-
presumir que a razão disso foi a falta de oportunida- dade por não concedê-la. Minha opinião é que,
des de participação, e não um déficit inato de entre esses outros motivos, argumentos baseados
inteligência. Além disso, os indivíduos excluídos em justiça tiveram importância. A concessão do
teriam boas razões para duvidar de que as decisões direito de voto às mulheres é o exemplo mais claro.
tomadas pelos habilitados a votar sejam guiadas Não foi uma concessão propugnada por um partido
pela preocupação de um dia incorporá-los (Ely, ou movimento político, com o propósito de usar o
1980, pp. 220-221). (e) Especificamente, não há voto para promover os interesses sociais e econômi-
razão alguma para acreditar que a integridade — o cos das mulheres; ao contrário, a exclusão das
mais importante critério de habilitação para a parti- mulheres do direito de votar foi considerada intrin-
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 31

secamente intolerável e degradante.46 Quanto à dentro de uma classe pelos riscos ligeiramente mais
classe operária, as motivações estiveram muitas baixos” (Abraham, 1986, p. 84). Os aspectos redistri-
vezes intimamente relacionadas com a defesa de butivos do seguro social vão deliberadamente além
interesses econômicos. No entanto, como fica claro desses efeitos, em geral no sentido de um nivela-
a qualquer leitor de A formação da classe operária mento. É o que acontece com freqüência cada vez
inglesa, de E.P. Thompson, a luta pelo voto masculi- maior nas companhias privadas de seguros, quando
no foi em grande parte motivada por simples estão proibidas por lei de adotarem certas classifica-
argumentos de justiça.47 ções para diferenciar entre classes de risco. Por
O surgimento do welfare state é análogo à exemplo, se as classificações por sexo fossem proi-
extensão do direito de voto, e ambos os fatos estão bidas, “os homens subsidiariam as aposentadorias
interligados. Em primeiro lugar, é preciso fazer das mulheres e estas subsidiariam o seguro de vida
uma distinção entre dois aspectos do welfare state. dos homens” (idem, p. 92). Esse tipo de política
Por um lado, algumas de suas iniciativas têm a pode levar a situações absurdas. Por exemplo, “não
forma de poupança compulsória ou de contribui- parece correto pedir aos segurados por invalidez
ção compulsória para um fundo comum de risco, que arquem com o custo total dos subsídios aos
sem nenhum componente redistributivo. Por outro hemofílicos”(idem, p. 99). Desde que a sociedade
lado, algumas atividades são essencialmente redis- decida usar o seguro compulsório para fins redistri-
tributivas. Embora a maioria dos serviços de wel- butivos, não é adequado exigir que cada programa
fare combine os dois elementos, é interessante em separado seja autofinanciável. De fato, não há
distingui-los. razão alguma até mesmo para exigir que todos os
Quanto às primeiras atividades, é o seu cará- programas sejam autofinanciáveis, pois não há por
ter compulsório que as torna um componente do que manter essa forma de redistribuição inteiramen-
welfare state. As pessoas podem fazer e fazem te separada da redistribuição pela tributação. O
poupanças para a velhice e seguros contra doenças resultado final é o welfare state, um sistema no qual
e acidentes pessoais. No entanto, os pagamentos a correlação original entre prêmios e benefícios em
de seguros por livre escolha dos indivíduos foram grande medida desapareceu.
crescentemente substituídos por descontos com- Embora a contribuição compulsória para um
pulsórios em folha de pagamento.48 Às vezes, os fundo comum de risco e a redistribuição muitas
sistemas de indenização compulsória conservam a vezes andem juntas no moderno welfare state, a
base atuarial dos sistemas privados. Nesse caso, os distinção entre ambas não deixa de ter utilidade. Por
argumentos para mantê-los só podem ser paterna- um lado, o sistema público oferece proteção contra
listas. Os indivíduos se comprometem, por inter- muitos casos de invalidez que jamais seriam cober-
médio dos políticos, com medidas que gostariam tos pelos seguros privados. Os portadores de ce-
de tomar enquanto cidadãos privados, não fosse gueira congênita ou de defeitos genéticos não
sua fraqueza de vontade. Mas os sistemas compul- podem contratar seguros contra essas fatalidades,
sórios diferem do seguro privado de duas maneiras: pois não se pode fazer seguro contra um evento que
não são atuarialmente corretos, no plano do indiví- já ocorreu. É difícil fazer seguro privado contra o
duo, nem autofinanciáveis, no plano coletivo. desemprego, pois os riscos para os diferentes indiví-
O seguro compulsório é muitas vezes acom- duos não são estatisticamente não correlacionados,
panhado de medidas redistributivas. As pessoas como seria necessário a um sistema sólido de
geralmente não recebem de volta, quando chegam à seguros. Na outra ponta do espectro, alguns compo-
velhice, o equivalente atuarial do que pagaram nentes do sistema de seguro social ainda obedecem
durante a vida inteira. É verdade que existem aproximadamente aos princípios atuariais (Page,
aspectos redistributivos na maioria dos sistemas de 1983, pp. 67 e 75). A meio caminho entre esses
seguro privado: “Como nenhuma classe de risco é pólos, alguns serviços comportam um elemento
inteiramente homogênea, sempre parece haver um redistributivo mais amplo, outros, um componente
certo subsídio dos riscos ligeiramente mais elevados de fundo de risco. Este último corresponde à con-
32 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

cepção da sociedade como uma joint venture para a da justiça, segundo a qual as pessoas têm direito aos
obtenção de vantagens mútuas, ao passo que o frutos de suas aptidões e esforços, mas não aos
componente redistributivo reflete um princípio mais frutos da propriedade herdada. Um véu um tanto
fundamental de simples justiça. mais grosso é aquele proposto por Ronald Dworkin,
Pode-se explorar mais a fundo essa distinção que afirma que a distribuição do bem-estar deveria
introduzindo a idéia de um “véu de ignorância”. ser “sensível à ambição”, mas não “sensível aos
Muitas teorias sobre a justiça distributiva coincidem dotes” (Dworkin, 1981, p. 2). O véu mais impenetrá-
na opinião formal de que uma justa distribuição de vel é o que John Rawls formulou ao dizer que as
recursos é aquela em que os agentes racionais ambições e preferências, inclusive as preferências
escolhem por trás do véu de ignorância, embora de tempo, preferências de lazer e a aversão ao risco,
discordem quanto à “espessura” desse véu. Usando não são menos arbitrárias moralmente do que as
terminologias distintas, mas em essência equivalen- aptidões. O utilitarismo baseia-se em uma idéia
tes, as teorias podem concordar que a distribuição semelhante, mas chega a conclusões diferentes por
de produtos ou de bem-estar não deveria ser afetada incluir uma noção distinta do que constitui a escolha
pelos aspectos “moralmente arbitrários” das pes- racional por trás do véu de ignorância.
soas, embora divirjam quanto ao que é arbitrário e o O componente redistributivo do welfare state
que é relevante. O fundo de risco ocorre por trás de baseia-se na premissa de que alguns atributos dos
um véu muito fino, que permite às pessoas conhece- indivíduos são moralmente arbitrários, incluindo-
rem suas aptidões, preferências e riqueza, mas não se entre eles, no mínimo, as aptidões e inaptidões
sua futura capacidade e oportunidade de auferir inatas. O Estado de bem-estar corresponde a uma
renda. Nessas circunstâncias, os indivíduos racio- crença generalizada de que é injusto deixar que as
nais admitirão fazer seguro contra riscos, isto é, pessoas sofram por causa de acidentes genéticos
pagar um prêmio para um fundo comum do qual que não podem controlar. Segundo essa perspecti-
podem extrair indenizações. A redistribuição ocorre va, a visão meritocrática parece ser inconsistente.
por trás de um véu mais grosso, que nega às pessoas Se o acaso social deve ser eliminado como fator
o conhecimento de muitas, talvez a totalidade, das determinante do bem-estar, por que o acaso gené-
suas qualidades e dotes pessoais. Quando estão por tico deveria ser respeitado? Entretanto, a opinião de
trás de um grosso véu de ignorância, as pessoas se Dworkin também pode ser acusada de inconsistên-
perguntam como gostariam que uma sociedade cia (ver especialmente Roemer, 1985). Como se
fosse organizada se desconhecessem os bens ou pode defender a idéia de que um nível baixo de
preferências que passariam a possuir. Os indivíduos ambição e uma elevada taxa de desconto temporal
racionais talvez queiram proteger-se contra o risco não são também produtos do acaso social e gené-
de nascerem pobres, ou pouco dotados de aptidões tico? Se o forem, por que não servem de base para
produtivas, ou excessivamente dotados de gostos a compensação? Esta parece ser a questão filosófica
dispendiosos. central do debate atual sobre o welfare state.49
A noção de fino véu de ignorância deve ser Para responder a essas perguntas deve-se
entendida de modo bem literal: como não sabemos começar observando o fato de que o welfare state
o que o futuro nos reserva, há sentido em tomar moderno está inserido em uma democracia política
precauções. O véu grosso, ao contrário, não pode que se baseia, entre outras coisas, na condição de
ser entendido literalmente, pois temos noção de publicidade. Dizer a um cidadão que ele tem
nossas aptidões, preferências e riqueza. Os véus direito à previdência social porque não é responsá-
grossos são apenas expedientes literários para ex- vel por suas preferências é pragmaticamente inco-
pressar a idéia de que o bem-estar dos indivíduos erente.50 Não se pode tratar as preferências de uma
não deveria ser afetado por determinados atributos pessoa como uma desvantagem que justifica uma
arbitrários — justamente aqueles que são abstraídos compensação e, ao mesmo tempo, considerar essas
por trás do véu em questão. O mais fino desses véus mesmas preferências como contribuições legítimas
grossos corresponde a uma concepção meritocrática para o processo político; não se pode a um só
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 33

tempo tratar o indivíduo como movido por forças genuinamente arbitrários, como a riqueza, a justiça
psíquicas fora do seu controle e como racional e impõe considerar moralmente arbitrárias algumas
acessível à argumentação. Essas práticas talvez características que seriam vistas como não arbitrá-
possam ser justificadas para um terceiro interlocu- rias, não fosse pela existência das primeiras.
tor alegando-se que é melhor permitir que pessoas A extensão do direito de voto e do welfare
irresponsáveis tenham acesso ao processo político state realizou-se a despeito de várias objeções de
do que provocar um tumulto político excluindo-as. fundamento instrumental. Dizia-se que as classes
Mas, numa sociedade democrática, uma política não proprietárias iriam abusar de seu poder eleito-
que não pode ser explicada de maneira coerente às ral, confiscar a riqueza dos ricos e, por fim, empo-
pessoas envolvidas deve ser rejeitada. Restringindo brecer todo mundo, inclusive elas mesmas. A troca
a concessão de benefícios materiais, protegem-se do risk pooling pela redistribuição criaria uma nova
os valores cruciais da consideração e respeito. classe de parasitas, que iriam explorar o núcleo de
Aqueles que têm condições de trabalhar mas se pessoas trabalhadoras da população até que, no
recusam a fazê-lo não deveriam receber auxílio, da final, também elas acabariam sendo prejudicadas
mesma maneira como aqueles que têm condições pelas reformas. Por outro lado, defensores das
de poupar e se recusam a fazê-lo não deveriam ser reformas formularam argumentos baseados na ex-
compensados por sua incontinência. A democracia pectativa de vantagens instrumentais. O processo
política inclui um componente de justiça comutati- político sairia ganhando com a maior diversidade
va ou de quid pro quo: não é que se deva exigir que de opiniões e perspectivas que acompanharia a
os cidadãos façam incondicionalmente determina- extensão do direito de voto. A provisão de benefí-
das coisas (como pagar impostos ou ir à guerra), cios previdenciários reduziria as taxas de morbida-
mas sim que se deveria pedir-lhes que façam de e mortalidade, não só entre os não proprietários
determinadas coisas se podem fazê-las. como também entre as classes possuidoras, por
Entretanto, como já adverti, esse princípio reduzir a incidência de doenças contagiosas. E
austero é apenas um começo de resposta. Se fosse assim por diante, toda uma longa lista de supostos
aplicado à maioria das sociedades contemporâne- riscos e vantagens.
as, muitos o considerariam injusto, e com razão, Se aceitarmos a argumentação desenvolvida
porque os recursos econômicos necessários para nas seções anteriores, essas razões são errôneas, e
formar preferências de modo autônomo são desi- os argumentos positivos às vezes são duplamente
gualmente distribuídos. Em qualquer sociedade há equivocados. É praticamente impossível antecipar
indivíduos que, por razões idiossincráticas, são os efeitos líquidos a longo prazo do estado de
surdos aos incentivos e, em casos mais graves, equilíbrio instalado por grandes reformas desse
precisam ser sustentados pelo Estado. Mas, numa tipo. Além disso, alguns argumentos positivos não
sociedade de bases justas, o sustento não seria resistem a uma exposição à luz do dia. A condição
dado como compensação, e os indivíduos benefi- de publicidade impede que se defendam medidas
ciados se distribuiriam de modo mais ou menos cuja única e principal justificativa é o impacto
aleatório, como os doentes mentais, entre todos os esperado sobre o caráter dos cidadãos, os quais
grupos sociais. A maioria das sociedades contem- deveriam tornar mais entusiásticos, dotados de
porâneas não se aproxima dessa condição. Elas espírito público ou mais passivos. A norma da
incluem grupos numerosos cujos membros são igualdade, pelo contrário, é transparente e irresistí-
sistematicamente impedidos, pela pobreza ou pela vel; é uma característica inevitável de uma socieda-
falta de oportunidades de emprego, de desenvol- de democrática, baseada na discussão racional e
ver uma atitude de responsabilidade por seus pública. Como afirmei antes, opor-se a essa norma
atos.51 Tratá-los como se as condições do contexto já implica reconhecê-la. Ignorá-la é rejeitar os
fossem justas, dizendo-lhes que devem culpar ape- marcos democráticos da discussão e da justificação.
nas a si mesmos por seu fracasso, é prova de má-fé. Concluo fazendo alguns comentários sobre
Enquanto não for eliminada a influência de fatores três propostas recentes para a reforma econômica.
34 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

São elas: (a) a proposta de James Meade (1964) em sem a vida com uma substancial renda da proprie-
prol de uma “property-owning democracy ”, desen- dade”. Serviria também para criar atitudes psicoló-
volvida por Richard Krouse e Michael McPherson gicas diferentes da experiência corrente, uma vez
(1986);52 (b) propostas para a criação de um “divi- que os “operários de uma empresa seriam proprie-
dendo social” ou garantia de renda em um nível tários de ações de outras empresas: estando subor-
suficiente para proporcionar uma subsistência de- dinados à autoridade dos gerentes em uma empre-
cente, sem obrigatoriedade de trabalhar como retri- sa, ajudariam a fiscalizar os gerentes de outras
buição (Van Parijs e Van der Veen, 1986);53 e (c) a firmas”. Por último, a renda gerada por esse sistema
democracia econômica no plano da empresa, tendo criaria os recursos materiais necessários para a
como fim imediato ou último a plena propriedade formação de cooperativas de trabalhadores, sem
dos trabalhadores (ver Elster e Moene, 1989). Todas que fosse preciso impô-las como uma modalidade
essas propostas envolvem grandes mudanças na compulsória de propriedade.
atual organização capitalista da produção. Minha As pretensas conseqüências dessa proposta
opinião é que as duas primeiras não têm chances de são extremamente duvidosas. O projeto de taxação
dar certo, porque não se baseiam numa simples da herança acarretaria incentivos despropositados
concepção de justiça, firmada na igualdade e capaz e problemas alarmantes de implementação.54 Além
de estimular um movimento de massas. Trata-se de disso, não há razão alguma para imaginar que todos
projetos detalhados sobre uma mecânica das uto- seriam escolhidos por alguém para serem contem-
pias — sonhos ou pesadelos tecnocráticos destituí- plados com uma doação ou herança. Não é difícil
dos de potencial para insuflar vida a um movimento imaginar o impacto negativo sobre a auto-estima
social. Qualquer tentativa de colocá-los em prática daqueles que não fossem escolhidos por ninguém
encontraria forte resistência, porque as pessoas se para herdar ou receber propriedades em doação.
sentiriam convidadas, e com razão, a participar de Por outro lado, a sugestão de que ter parte na
uma experiência em ampla escala, destituída de propriedade de outras empresas proporcionaria
qualquer valor intrínseco e de valor extrínseco alguma compensação ao fato de ser subordinado à
extremamente incerto. autoridade gerencial na firma que a pessoa trabalha
Examinemos, em primeiro lugar, a proposta é um absurdo.55 Portanto, a proposta é falha em
de Meade, que se fundamenta numa combinação dois aspectos: os supostos benefícios são altamente
de imposto progressivo sobre a propriedade e conjecturais e, além do mais, o projeto não contém
reforma radical do imposto sobre a transmissão de nenhuma virtude intrínseca de levar as pessoas a se
heranças. Este último visa induzir os detentores de disporem a suportar os custos do ensaio e erro
grandes propriedades a legar sua riqueza a um durante um período de experimentação.
grande número de indivíduos relativamente po- Examinemos em seguida as demais propostas
bres. Haveria duas maneiras de alcançar esse obje- de imposto de renda negativo, dividendos sociais,
tivo: pela tributação “de cada doação ou herança de subvenções universais e similares. Há evidentes
acordo não só com o tamanho da doação ou objeções à viabilidade econômica de conceder uma
herança individual, mas também de acordo com a renda garantida, substancial e incondicional a todas
riqueza do beneficiário”, ou pela tributação do as pessoas. Nesse caso, direi apenas que qualquer
beneficiário “quando ele recebe uma doação ou proposta dessa natureza tende ao fracasso porque
herança, não em função do tamanho dessa doação será vista como injusta e até exploradora.56 As
ou herança, nem da totalidade do seu patrimônio pessoas que escolherem trabalhar em troca de um
na época do recebimento da doação ou herança, salário em vez de viverem numa comunidade por
mas de acordo com o tamanho do montante total conta de um auxílio universal terão de pagar mais
do que ele recebeu durante toda sua vida na forma impostos para sustentar os que fizeram a segunda
de doações ou de heranças” (Meade, 1964, pp. 56- opção. Eles bem poderiam pensar — a meu ver,
57). Na opinião de Krouse e McPherson, esse corretamente — que são explorados pelo outro
sistema asseguraria que “todas as pessoas começas- grupo. Contra essa objeção foi feita a seguinte
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 35

contra-argumentação (Van Parijs e Van der Veen, outras propostas discutidas acima, a idéia de pro-
1986): toda pessoa, por suposto, teria liberdade priedade cooperativa parte de uma concepção de
para escolher a subvenção incondicional; se algu- justiça capaz de oferecer a necessária motivação. A
mas preferiram não fazê-lo, não poderiam reclamar extensão da igualdade política e social para o
porque outras o fizeram. Sua preferência pelo campo da economia provavelmente encontrará
consumo em vez do lazer não é razão para impedir oposição por parte de muitos interesses estabeleci-
que outras tenham preferências diferentes. A essa dos, o que provocará uma desaceleração do ritmo
argumentação respondo de duas maneiras. Em do progresso. Os proprietários formularão pseudo-
primeiro lugar, algumas pessoas poderiam perma- soluções e rituais de participação para ganhar
necer na força de trabalho simplesmente porque tempo. Os sindicatos resistirão a essa usurpação de
acham que alguém tem de estar trabalhando. Con- sua autoridade. Se meu raciocínio estiver correto,
templando os felizes membros da comunidade, tudo isso tenderá a ser visto como não mais que
elas poderiam resmungar, com raiva: “E se todo resistências destinadas a fracassar. Faz sentido
mundo fizesse o mesmo?”. Em segundo lugar, defender a propriedade cooperativa — ela visa
mesmo que algumas pessoas realmente prefiram eliminar os mais importantes resquícios da autori-
trabalhar, porque valorizam o consumo, isso não é dade e da hierarquia na sociedade, a matéria de
razão para impor-lhes tributos mais pesados. Elas que se constituem os movimentos sociais (ver, por
podem preferir a semana de 40 horas à semana de exemplo, Jones, 1968).
50 horas que trabalham por causa dos elevados
tributos que lhes são impostos pelos que escolhe-
ram viver à custa da subvenção. Assim, o argumen-
NOTAS
to sobre a liberdade perde sentido, já que os
trabalhadores seriam forçados pelos não trabalha-
dores a trabalhar mais do que desejam. 1 Essa é a maneira como compreendo os textos recentes
Examinemos, por fim, as propostas relativas à de Rawls, principalmente Rawls (1985).

propriedade dos trabalhadores, ao socialismo de 2 De modo análogo, para determinados fins, as células
podem ser entendidas como se fossem unidades funda-
mercado e semelhantes. Conforme expliquei na mentais da análise médica ou biológica, independente
segunda seção deste artigo, é difícil prever as do conhecimento de sua estrutura molecular.
conseqüências de um regime de cooperativa. Muita 3 Uma discussão desse ponto encontra-se em Snidal
coisa ficaria na dependência dos arranjos escolhi- (1986, especialmente pp. 29-36).
dos. Teria de haver uma escolha entre uma demo- 4 Uma discussão desse ponto encontra-se em Johansen
cracia representativa e uma democracia direta. Os (1977, cap. 2).
gerentes poderiam estar sujeitos à demissão ime- 5 Para uma análise da enorme literatura sobre burocracias
interessadas em maximizar seus orçamentos ou outras
diata ou ser nomeados para períodos mais longos. práticas corruptas, ver Mueller (1979, cap. 8).
Poderiam deter amplos poderes discricionários ou
6 Andvig e Moene (1988) elaboraram um modelo que
ser obrigados a consultar a assembléia geral em inclui essa possibilidade.
todos os assuntos importantes. Os direitos e deve- 7 Elster (1989) desenvolve uma defesa dessa possibilidade.
res econômicos associados à admissão, filiação e 8 Ver especialmente os estudos de Friedrich Hayek, des-
saída de uma cooperativa poderiam tomar diferen- de Hayek (1937) até Hayek (1982).
tes formas. Seria necessário escolher entre o finan- 9 Os ensaios reunidos em Elster (1986) examinam várias
ciamento da dívida ou a inversão no capital social analogias desse tipo.
da empresa, inclusive com a possibilidade de 10 Outros comentários sobre essa questão podem ser
vender ações fora da cooperativa, incorporando encontrados em Elster (1985 e 1986a).
acionistas sem direito a voto. Dadas todas essas 11 Não são essas as únicas fontes de indeterminação
política. O problema da agregação de preferências,
variações, é provável que um arranjo exeqüível
discutido na seção anterior, implica que a sociedade
pudesse ser encontrado, com paciência e disposi- pode não ser capaz de avaliar as conseqüências da ação,
ção para suportar experiências. Ao contrário das mesmo que se suponha que são previsíveis.
36 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

12 A teoria geral do second-best (Lipsey e Lancaster, 1956), trabalhadores e empresas capitalistas, dessa perspecti-
principalmente, proporciona uma explicação mais abs- va, encontra-se em Meade (1972).
trata e unificada de muitas das afirmações que faço a 23 Meade (1980). Essa prática é seguida nas cooperativas
seguir. madeireiras dos Estados Unidos (ver Gunn, 1984), mas
13 Elster (1988b) contém uma discussão mais extensa. não, por exemplo, nas cooperativas de Mondragon.
14 Baseando-me em Elster e Moene (1989). 24 Como se poderia prever, Leibniz formulou o mesmo
15 A análise do equilíbrio em Stinchcombe (1983) é um argumento antes: “On pourrait dire que toute la suite des
bom exemplo disso. choses à l’infini peut être la meilleure qui soit possible,
quoique ce qui existe par tout l’univers dans chaque
16 Para uma breve discussão dessas “preferências contra- partie du temps ne soit pas le meilleur” (Leibniz, 1875-90,
adaptativas”, ver também Elster (1983a, pp. 111-112). vol. 6, p. 237; ver também vol. 3, pp. 582-583).
17 Ou melhor, minha reconstrução do seu argumento. 25 Note-se que as diferenças entre efeitos de transição e
Apesar de sua metodologia muito complicada, Tocque- efeitos do estado de equilíbrio não coincidem com
ville, como historiador, orgulhou-se de esconder a aquelas observadas entre os efeitos a curto e a longo
estrutura do seu raciocínio. prazo, pois é possível distinguir diferentes perspectivas
18 Essa afirmação é um tanto simplificada. Tocqueville temporais dentro do estado de equilíbrio.
sabia que diversas correntes políticas ameaçavam a 26 Por exemplo, estão aparecendo bancos privados cujos
estabilidade da democracia na América. Em várias oca- acionistas obtêm lucros de mais de 30% sobre o
siões, afirmou que o sistema poderia evoluir para uma investimento. Em situações normais, seria de esperar
tirania da maioria sobre a minoria, uma espécie de que isso gerasse competição, com alguns bancos co-
despotismo tutelar moderado, ou para uma plutocracia. brando taxas de juros mais baixas para os empréstimos
Essa afirmação é coerente com seu pressuposto de que e taxas mais elevadas para os depósitos, a fim de atrair
a sociedade americana que observou, por volta de 1830, capitais para financiar os empréstimos. Mas não é isso
havia adquirido uma estabilidade relativa e temporária, que acontece, porque o Estado fixa um limite máximo
ao contrário do fluxo constante que encontrou na vida para a taxa de juros sobre os depósitos. Esse limite é
política francesa. necessário por causa da taxa artificialmente baixa,
19 Para contestar a opinião de Nozick, pode-se citar a carta determinada por razões políticas, para os empréstimos
de John Stuart Mill em apoio a uma cooperativa que concedidos pelos bancos estatais às empresas públicas.
vinha sendo alvo da concorrência desleal de suas Como os bancos estatais têm de financiar os juros sobre
equivalentes capitalistas. “Tomo a liberdade de anexar os depósitos com os juros que recebem pelos emprés-
uma contribuição de £ 10 para ajudar, na medida em timos, o nível baixo destes últimos força para baixo o
que essa quantia seja útil, na luta que a cooperativa dos limite dos primeiros.
fabricantes de fechaduras de Wolverhampton vem sus- 27 Em um artigo publicado em The Economist, 21/3/1981,
tentando contra a concorrência desleal dos mestres do F. Bates faz uma observação semelhante: “Será que um
ramo. Não é de meu desejo protegê-los da concorrência governo democrático pode comprometer-se de maneira
leal [...] mas vender com prejuízo com a finalidade de confiável em aderir a uma política independentemente
destruir os competidores não é fazer concorrência leal. de suas conseqüências — assegurar que a base mone-
Nessa concorrência, se prolongada, os competidores tária não crescerá mais do que x%, ainda que os
que dispõem dos menores recursos, apesar de que otimistas estejam errados e que a política gere desem-
possam ter todos os outros fatores de sucesso, serão prego em massa, rápido crescimento da capacidade
necessariamente esmagados sem que tenham cometido ociosa e somente reduza a inflação gradualmente? O
erro algum. [...] Estou agora convencido de que eles dilema é o seguinte: talvez a teoria esteja certa, mas a
devem ser apoiados contra a tentativa de arruiná-los” única maneira de testá-la é convencer o povo de que o
(apud Jones, 1968, p. 438). Como objeção ao argumen- governo persistiria nela mesmo que estivesse errada”.
to de Miller, cabe observar que a cooperativa seria até
certo ponto mantida sob controle porque saberia que, 28 Para uma análise da mudança de função do Império da
no futuro, poderia precisar atrair novos capitais. Se os Lei — de proteger contra a monarquia absoluta para
acionistas externos (sem direito a voto) não receberem uma proteção contra a democracia absoluta — ver
dividendos satisfatórios, não serão encontrados futuros Sejersted (1988).
acionistas. Sabendo disso, é possível que os atuais 29 Agradeço a Adam Przeworski por sugerir-me essa ma-
acionistas não se desencorajem diante do fato de a neira de colocar a questão.
cooperativa ter a liberdade formal de reduzir os dividen- 30 O Código Penal Chinês de 1979 não reconhece o
dos a zero. (Jay, 1980, pp. 14-15). princípio da “não punição sem a existência prévia de
20 Jones (1968) inclui vários exemplos desses “fracassos uma lei que defina o ato como criminoso” (nullum
provenientes do sucesso”. crimem, nula poena sine lege). O artigo 79 do Código
21 A respeito dessa idéia, ver Elster (1983a, cap. 2, seção 9). prevê que “uma pessoa que comete um crime não
explicitamente definido nas seções específicas do Códi-
22 Uma exposição simples e inteligente das razões dessas go Criminal pode ser presa e condenada após a aprova-
diferenças de comportamento entre cooperativas de ção da Corte Suprema do Povo, de acordo com o artigo
A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL 37

mais próximo do Código” (Chiu, 1987). No Ocidente, ao teoria “de senso comum” da justiça exposta por Froh-
contrário, o raciocínio por analogia só é permitido no lich, Oppenheimer e Eavey (1987). Sou também inten-
Código Civil. cionalmente vago a respeito da natureza daquilo que é
31 Conforme me foi sugerido por Tang Tsou, essa descri- distribuído, pois os argumentos desenvolvidos a seguir
ção legalista é equivocada. Na realidade, o Comitê aplicam-se igualmente às condições de bem-estar mate-
Permanente é a instância superior e o “organismo de rial, aos bens primários, às capacidades básicas ou às
origem” é que é subordinado. oportunidades de acesso ao welfare.

32 Vejamos novamente a história do Livro de Daniel na 38 A argumentação que se segue baseia-se em Seymour e
cova dos leões. Conta-se ali como o rei Dario foi Frary (1918), McGovney (1949), Williamson (1960) e
ludibriado pelos inimigos de Daniel e levado a promul- Kay (1986).
gar um decreto segundo o qual “quem quer que rogue 39 Na realidade, o argumento apenas mostra que comprar
a Deus ou ao homem durante 30 dias, exceto a ti, Oh rei, eleitores ricos é mais caro, o que pode ser compensado
será mandado para a cova dos leões”. Quando Daniel pelo fato de que quando o direito de voto é limitado aos
fez suas orações a Deus, seus inimigos denunciaram-no ricos, há menos eleitores para subornar.
a Dario e exigiram que ele fosse mandado para a cova 40 Stephen Holmes chamou minha atenção para o fato de
dos leões. Dario tentou escapar da difícil situação mas que os romanos impunham condições econômicas ao
colocaram-no diante dos termos da lei: “nenhum decre- direito de voto com a finalidade de arrancar informa-
to ou estatuto que o rei estabeleceu poderá ser modifi- ções dos cidadãos a respeito de suas propriedades
cado”, diante do que o rei teve de ceder. Como se sabe, tributáveis. Em tese, essa regra também servia ao propó-
os leões não tocaram em Daniel; mesmo assim, a sito de selecionar os cidadãos suficientemente interessa-
história ilustra os riscos do comprometimento prévio. dos na res publica para levar sua riqueza ao conheci-
Quando uma pessoa se compromete de maneira rígida mento das autoridades.
com determinadas regras de procedimento, pode ficar
impedida de fazer a escolha certa em circunstâncias não 41 Os cidadãos atenienses perdiam o direito ao voto por
previstas. conduta covarde na guerra e por não pagarem suas
dívidas com o Estado (MacDowell, 1978, pp. 160-165).
33 Cass Sunstein indicou-me dois exemplos americanos
interessantes que destacam a ambigüidade das exce- 42 Como afirmou Aiskhines no discurso Against Tima-
ções às regras constitucionais. Em Korematsu v. United rkhos: “O legislador considerou impossível que o mes-
States, 323 U.S 214 (1944), consideraram-se constitucio- mo homem fosse mau na vida privada e bom na vida
nais medidas de confinamento de cidadãos americanos pública” (apud MacDowell, 1978, p. 174).
descendentes de japoneses. Em New York Times Co. v. 43 Evidentemente, é assim que os países ricos hoje deci-
United States; United States v. Washington Post Co., 404 dem conceder ajuda financeira aos países pobres.
U. S. 713 (1971), considerou-se inconstitucional a tenta-
tiva de interromper a publicação dos “Documentos do 44 Gauthier (1986) formula a mais recente e sistemática
Pentágono”. Nos dois casos, os defensores das medidas exposição desse ponto de vista.
restritivas alegaram que a Constituição não deve ser 45 Essa percepção crucial deriva da obra de Habermas,
uma camisa-de-força para a ação governamental quan- conforme interpretada em Elster (1983a, cap. 1, seção
do a segurança militar da nação está em jogo. “A 5).
Constituição não é um pacto suicida”. Não me parece 46 Na Grã-Bretanha, houve também um fator de justiça
claro, porém, se essas opiniões representavam (a) o tipo comutativa. Devido às tarefas vitais desempenhadas
de tentação que a Constituição visa prevenir, (b) uma pelas mulheres durante a Primeira Guerra Mundial,
preocupação legítima de que a Constituição possa tornou-se impossível alegar que elas não tinham nada a
impor restrições excessivamente estritas ao governo, ou oferecer em troca do sufrágio. O fato de as mulheres
(c) uma alegação de que a Primeira Emenda às vezes proporcionarem um bem coletivo de importância cru-
pode ser sobrepujada por outros itens da Constituição. cial — as crianças que asseguram a continuidade da
34 A argumentação que se segue baseia-se em Elster sociedade — também podia ser usado como argumento
(1988a). (como provavelmente o foi).
35 Igualmente, movimentos políticos que se justificam pelo 47 Caberia também levar em conta um argumento de
auto-respeito que proporcionam aos seus participantes natureza puramente instrumental-utilitarista para a am-
provavelmente não conseguem êxito nem a esse respei- pliação do direito de voto, segundo o qual a eliminação
to (Elster 1983a, pp. 98-100). dessa degradante discriminação representou ipso facto
36 Referências e uma discussão mais profunda encontram- um ganho em bem-estar social. Contudo, mais uma vez,
se em Elster (1983a, pp. 92-93). essa consideração instrumental é parasitária em relação
a uma razão não instrumental, qual seja, a injustiça
37 Isso inclui, como caso especial, as transferências que inerente a um tratamento desigual.
pioram a situação dos beneficiários. A fórmula intenci-
onalmente vaga “A água pode vazar, mas não deve 48 Esses descontos são formalmente apresentados como
entornar demais” é compatível tanto com a teoria de contribuições do empregador. Porém, os economistas
Rawls quanto com o utilitarismo, bem como com a concordam que são, de fato, deduções da folha de
pagamento, no sentido de que sem a contribuição
38 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 39

compulsória do empregador os salários dos emprega- BIBLIOGRAFIA


dos seriam mais altos na proporção do desconto.
49 Para evitar ambigüidades, deve-se entender que há dois ABRAHAM, K. (1986), Distributing risk. New Haven,
aspectos na ambição. Por um lado, pode-se desejar in- Yale University Press.
centivar a ambição para o bem de todos. Qualquer teoria
da justiça deve levar em conta a necessidade de pagar AINSLIE, G. (1982), “A behavioral economic approach
mais às pessoas, quando isso é necessário, a fim de criar to the defense mechanisms: Freud’s energy
empregos socialmente úteis. Por outro lado, pode-se pen- theory revisited”. Social Science Information,
sar (como Dworkin) ou não pensar (como Rawls) que a 21: 735-779.
ambição é uma base moralmente importante para recom-
pensas mais altas. Imagine-se três operários de qualifica- __________. (1984), “Behavioral economics II: moti-
ção equivalente, A, B e C, que escolhem trabalhar duran- vated involuntary behavior”. Social Science
te uma jornada diária de 4, 8 ou 12 horas, respectivamen- Information, 23: 247-274.
te, em troca de um dado salário por hora. Poder-se-ia
pensar, como Rawls e o utilitarismo, que é moralmente __________. (1986), “Beyond microeconomics”, in J.
justificado taxar C (e talvez B) e empregar o produto para Elster (ed.), The multiple self, Cambridge Uni-
subsidiar A, e, mesmo assim, ficar abaixo da alíquota de versity Press, pp. 133-176.
tributação que poria os três em boa situação, isto é, se
essa alíquota pusesse A em má situação (Rawls) ou redu- ANDVIG, J. e MOENE, K.O. (1988), How corruption
zisse o bem-estar total (utilitarismo) em comparação com corrupts. Manuscrito.
um percentual inferior. Dworkin, porém, não aceitaria
qualquer taxação sobre diferenciais de renda por causa ARON, R. (1967), Les étapes de la pensée sociologique.
da ambição em lugar das aptidões. Paris, Gallimard.
50 Dworkin (1981, parte 1) menciona o evidente absurdo BARRY, B. (1979), “Is democracy special?”, in P.
de uma política pública que indenizasse os indivíduos Laslett e J. Fishkin (eds.), Philosophy, politics
pela infelicidade causada por suas crenças religiosas. and society, Oxford, Blackwell Publisher, pp.
51 Certos grupos têm uma posição mais ambígua. Conside- 155-196.
re-se a atitude do welfare state com os ciganos em uma
sociedade afluente como a Noruega. A única coisa que BEN-NER, A. e NEUBERGER, F. (1982), “The kibbutz”,
os impede de levar uma vida de trabalho regular e de in F. Stephen (ed.), The performance of la-
aprendizado escolar é sua própria atitude em relação a bour-managed forms, Nova York, St. Martin’s
essas coisas. Eles gostam de ser livres, de viajar e de não Press, pp. 186-213.
precisar de fazer planos para o futuro. Deveria a
sociedade salvá-los de dificuldades e dar um apoio mais BOWLES, S. e GINTIS, H. (1976), Schooling in capita-
geral ao seu estilo de vida, às expensas dos outros list America. Londres, Routledge & Kegan
cidadãos? Voltarei a um problema semelhante quando Paul.
analisar a proposta de um dividendo social.
BRADLEY, K. e GELB, A. (1982), “The Mondragon
52 Ver também os comentários em Elster (1986b). cooperatives”, in D.C. Jones e J. Svejnar (eds.),
53 Ver também os comentários em Elster (1986c). Participatory and self-managed firms, Lexing-
54 Elster (1986b) arrola algumas das dificuldades. ton, Mass., Lexington Books, pp. 153-172.
55 Nesse ponto, Meade (1964) é mais realista quando CHIU, H. (1987), Institutionalizing a new legal system
afirma que “os investimentos [teriam de ser escolhidos] in Deng’s China. Trabalho apresentado na
por especialistas em nome do homem das ruas”. International Conference on a Decade of Re-
56 Frank (1985, pp. 256-257) formula um argumento seme- form under Deng Xiaoping, Brown University,
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